Lutando contra o estigma da
violência numa turnê consagradora, Renato Russo transforma o Legião Urbana na
sensação dos palcos e do disco
É como se o personagem certo
entrasse no filme errado - algo como Arnold Schwarzenegger saltitando e
cantando pelos bosques do Tirol no papel de Noviça Rebelde. O público que foi
ao estádio do Guarani, em Campinas, no interior de São Paulo, na quinta-feira
passada, assistir ao show do grupo Legião Urbana acabou surpreendido pelo
vocalista Renato Russo. Ele, que foi um dos fundadores no país do movimento
punk - aqueles cujos seguidores costumavam furar o próprio nariz com alfinetes
e a paciência alheia com a pose de rebeldes automarginalizados -, entrou no
palco sobraçando um colorido buquê de flores. Ele, que em shows anteriores
metralhou platéias classificando-as de "fascistas" ou
"bobocas", passou as duas horas de espetáculo namorando o público,
chegando a agradecer os aplausos de joelhos. Por fim, ele, que ficou conhecido
com virulentos protestos musicas no quilate de Que País É Este (Nas favelas/No
Senado/Sujeira pra todo lado), reservou um momento do show para elogiar a
campanha antidrogas do governo e informar que "o Brasil é o país do futuro".
Só um componente do show, nesse rosário de surpresas, não mudou: o
extraordinário sucesso do grupo. O Legião Urbana se consolidou, na turnê que há
seis meses cumpre pelo país, como o acontecimento mais quente em sua área de
atuação musical, levando sucessivamente as platéias ao delírio. Em diversos
shows no passado, esse delírio desaguou em quebra-quebras dignos de um levante
de presídio, como ocorreu em abril, quando o ginásio poliesportivo de Poços de
Caldas, em Minas Gerais, foi parcialmente depredado pelo público. Hoje, porém,
Renato Russo, líder, cabeça pensante e imagem do Legião, parece disposto a
conquistar o público com flores e não com metralhadoras. A guinada do grupo
começou no ano passado, com o lançamento do disco As Quatro Estações, no qual
trocou o som pesado e primal que marcava os LPs anteriores por canções que
falam de amor e melodias mais elaboradas. Alguns fãs - aqueles que sempre
veneraram Renato Russo como o messias do rock pesado - torceram o nariz. Com a
virada, no entanto, o Legião mais ganhou do que perdeu admiradores. As Quatro
Estações vendeu até agora nada menos que 730 000 cópias, mais do que a soma dos
últimos LPs dos principais rivais do Legião, Cazuza e Paralamas. Enquanto essas
bandas se apresentam normalmente em teatros, o Legião só faz shows em ginásios
e estádios de futebol. Em Campinas, na quinta-feira, o público estimado era de
16 000 pessoas, em pleno meio de semana. O grupo chegou a arrastar 60 000
pessoas para um show no Jockey Clube do Rio de Janeiro, em julho, e 42 000
pessoas para o estádio do Palmeiras, em São Paulo, em agosto.
Fundo da Cartola - Com esse
desempenho, o Legião Urbana herda a abandonada coroa do RPM no reinado do rock
nacional - e as semelhanças terminam por aí. O RPM, à luz do marketing, era o
protótipo da banda destinada a fazer um megassucesso - e o Legião, um grupo
fadado a agradar apenas a um público restrito. O RPM apresentava um vocalista
com pose de astro pop inglês e voz sensual - Paulo Ricardo. O Legião ataca com
Renato Russo, um cantor com a aparência de um jogador de pôquer em fim de
noite, a sensualidade de uma vovó de pijama e proclamações bissexuais: "Eu
sempre gostei de meninos, gosto de meninas também", disse numa entrevista
recente. Em contrapartida à música e às letras discursivas do RPM, o Legião
tinha a oferecer até há pouco um som primitivo e poesias rebuscadas, coalhadas
de citações e metáforas, embora sempre criativas. Como a música não é só
marketing, mas também talentos e idéias, o RPM passou e o Legião Urbana continua.
Em As Quatro Estações, além da vendagem astronômica, o grupo conseguiu um feito
singular na MPB: emplacar nas rádios seis faixas do disco. Essa proeza é ainda
mais significativa ao se considerar que essas canções contrariam as receitas de
sucesso. Nenhuma delas tem um refrão marcante, em geral as letras são longas e
algumas lançam mão de citações do fundo da cartola. O Legião chega ao requinte
- ou à pretensão - de colocar música num soneto de Camões, em Monte Castelo.
Calças Rasgadas - A maioria
dessas músicas é resultado da imaginação de Renato Russo, que está para o grupo
assim como Maradona para a seleção argentina na Copa da Itália: ele vale por
90% do time. Nascido no Rio de Janeiro e criado em Brasília, filho de um
economista do Banco do Brasil, Renato Manfredini Júnior, hoje com 30 anos, é um
daqueles cidadãos que desde pequenos são apontados como alguém que irá ser
diferente. Aos 4 anos de idade, iniciou seus estudos de piano. Aos 5 , já sabia
ler e escrever. Aos 7, mudou-se com a família para os Estados Unidos e, em
apenas dois meses, aprendeu a falar inglês. Sempre foi o primeiro da classe.
Aos 18 anos, como seria previsível, começou a mudar de comportamento. "Um
dia ele chegou em casa com as calças rasgadas e cheias de alfinetes", lembra
sua mãe, Maria do Carmo Manfredini. "Disse que tinha virado punk".
Tinha mesmo. Data desta época - 1978 - a fundação do grupo Aborto Elétrico, um
dos precursores do movimento punk no Brasil. Com o Aborto, em que pontificava
ao lado do baterista Felipe Lemos, o "Fê Lemos", hoje no conjunto
Capital Inicial, Russo ensaiou as atitudes de rebeldia que no futuro iriam se
tornar sua marca registrada. Tocava punk rock em sorveterias da moda e na porta
de festinhas de rapazes ricos da cidade com o intuito de azucrinar-lhes a
paciência. "Eles nos ameaçavam, e às vezes a polícia aparecia", conta
Fê Lemos. "Para fugir, Renato começava a falar inglês e dizia que era
filho de algum embaixador. Acabava sendo solto". Com o passar do tempo,
Russo deixou de lado o protesto adolescente e acabou por montar o Legião
Urbana, cuja formação hoje se completa com o baterista Marcelo Bonfá e o
guitarrista Dado Villa-Lobos, sobrinho-neto do compositor homônimo que é a
glória da música erudita brasileira.
Golpes de Microfone - Tendo o
irrequieto Russo à frente, o Legião sempre conviveu com o estigma de grupo que
incita à violência, principalmente porque em muitas ocasiões seus shows
desandam em pancadaria de verdade. Em 1988, um show para 42 000 pessoas no
Estádio Mané Garrincha, de Brasília, acabou com saldo de mais de 200 feridos,
58 pessoas presas e treze ônibus depredados. Com os ânimos acirrados pela ação
da polícia - que investiu a cavalo contra os que tentavam furar a fila - e com
o atraso de uma hora da banda, o show já começou tenso. O estopim foi aceso
quando um fã da banda subiu ao palco e se agarrou ao cantor, sendo repelido a
golpes de microfone. O público, a partir daí, passou a dirigir impropérios e a
jogar fogos de artifício sobre a banda, ao que Renato revidou chamando o
público de "fascista" e "boboca" e encerrou o show.
"Se não fosse o trabalho da polícia, Renato ia ser linchado", diz
Hezir Espindola, à época responsável pelo Estádio Mané Garrincha. "Ele foi
mal-educado em cena". A turnê de lançamento de As Quatro Estações, ao longo
deste ano, não apresentou nenhum episódio tão grave, mas a fama de violência do
grupo se manteve. Em Poços de Caldas, as 7 000 pessoas que se acotovelavam num
ginásio quebraram vidros do local, destruíam s banheiros e mobilizaram todo o
efetivo policial da cidade. Tudo porque, depois do início do espetáculo - que
começou com mais de uma hora de atraso -, Renato Russo cantou apenas uma música
e se retirou do palco, adiando o show por não estar se sentindo bem. Os shows
da mesma turnê realizados em São Paulo e no Rio de Janeiro também tiveram sua
cota de emoções. Em São Paulo, em agosto, cerca de 1 000 fãs ficaram de fora do
Estádio do Palmeiras devido a um lote de ingressos falsos vendidos para um
show. No Rio de Janeiro, onde 60 000 pessoas lotaram o Hipódromo da Gávea em
julho, um grupo de fãs baderneiros iniciou uma guerra de areia com os
seguranças. Renato Russo ameaçou não voltar para o esperado bis. "Não vim
show para animais", berrou ao microfone. O grupo saiu empurrando todo o
mundo que estava em volta.
Panela de Pressão - O Renato
Russo que protagonizou esses tumultos e o cantor que subiu ao palco em Campinas
na semana passada parecem ter tanta afinidade quanto Xuxa e Frankenstein. O
humor de Russo parece andar de montanha-russa. Quando está no alto, segundo
seus amigos, ele é uma pessoa doce, simpática e capaz de entabular conversas em
que brilha o artista talentoso. Quando está em curva descendente, pode
transformar os shows em panelas de pressão prestes a estourar pelos ares.
"Renato sempre teve temperamento explosivo", avalia Sérgio Resende,
um dos donos do bar Gate's, em Brasília, onde o compositor aprontou um
qüiproquó em junho passado. Durante a apresentação de um grupo de jazz, ele
resolveu subir ao palco para entoar um blues. A princípio, os músicos
concordaram em acompanhá-lo, mas logo o canto de Russo se transformou num
amontoado de palavras ininteligíveis. Os músicos deixaram o palco, e Russo
ganhou uma estrepitosa vaia das 150 pessoas presentes. "Ele é boa pessoa.
Apenas não consegue se controlar em certas situações ", avalia Rubens de
Carvalho, sócio de Resende no bar. "Há muito exagero no que se fala de
Renato", reclama Romildo Valiate Jr., um dos fundadores do fã-clube Legião
Urbana no Coração dos Paulistas, que reúne trinta membros e edita um
jornalzinho com as novidades sobre a banda. Renato Russo pode não encarnar o
agitador que alguns de seus shows fazem supor, mas faz certo esforço para
cultivar essa imagem. "Ele é fogo. Quando está disposto, incita mesmo à
agitação", diz Walter Fonseca, dono da Fonseca's Gang, empresa paulista
que é chamada para garantir a ordem em nove entre dez shows de grande porte
realizados no país. "Quando o Legião fecha contratos para shows, inclui
uma cláusula que obriga o empresário a convocar nossos serviços, mas, se
entramos em cena para acalmar um fã mais exaltado ou violento, Renato vai ao
microfone para nos chamar de truculentos", queixa-se Fonseca. "E
ainda levamos vaia do público."
Cutelo e Spray - As atuações do
Legião Urbana que acabam em tumulto são uma das pontas, entre as mais visíveis
devido à projeção do grupo, de um fenômeno que habita os shows de música jovem:
o do rock violência. Assim como o Legião, grupos como o Sepultura, de Belo
Horizonte, ou Nenhum de Nós, do Rio Grande do Sul, costumam criar faíscas de
tensão que logo detonam explosões caso na platéia existam integrantes das
gangues organizadas que hoje acorrem aos shows de rock. Herdeiras dos punks e
dos skinheads (cabeças raspadas) ingleses, essas turmas jogam pesado e são
capazes de bater duro em quem lhes cruze pelo caminho. Há três anos, um desses
grupos, o Carecas do ABC, protagonizou um tumulto memorável num show do grupo
de rock pesado Ramones, no Palace, em São Paulo. Cerca de oitenta deles
reuniram-se em frente ao local entoando gritos de guerra qual vândalos
enfurecidos. "Fomos protestar pelo show ser no Palace, onde não dava para
entrar porque o ingresso era caro", lembra "Carrasco", codinome
de um dos Carecas do ABC. "Esses jovens brigam contra o sistema porque se
sentem marginalizados por ele", filosofa Eduardo Correa Lopes, de 27 anos,
que, com sua estampa de caminhão FNM, ganhou o apelido de "Caixa
d'Água". Há três anos, Lopes integrava as tribos de São Paulo
especializadas em transformar shows de rock em arruaças. Hoje, desistiu da
militância e ocupa o cargo não menos tranqüilo de inspetor da Febem. Ainda
assim, guarda no vocabulário resquícios do jargão dos skinheads. Rapaz rico,
para ele, por exemplo, é "bebê". Aprontar uma briga ou cometer um
crime é "fazer uma função", e "colocar no cavalete"
entende-se por humilhar alguém que foi atacado. "Tenho medo do que possa
acontecer daqui para frente nos shows com a sofisticação a que essas gangues
estão chegando", diz Walter Fonseca. Nos últimos meses, ao revistar roqueiros
em portas de shows, a equipe de Fonseca tem apreendido desde cutelos de
açougueiro até a última palavra em instrumento de agressão: um tubo de spray
com gás lacrimogêneo, fabricado em Porto Alegre e oficialmente restrito ao uso
militar, que é aplicado diretamente no rosto da vítima. Seria disparate dizer
que toda essa violência é apenas um reflexo do que acontece nos palcos do rock.
Se fosse assim, o teatro La Scala de Milão seria depredado a cada encenação da
ópera Aída, em que se pune um soldado enterrando-o vivo com a amante. Grupos
como o Legião Urbana carregam o estigma de violentos porque os acordes e as
palavras agressivas de muitas de suas músicas, além de incentivar a platéia a
dançar e liberar tensões, acabam por servir de pretexto para jovens que são delinqüentes
com ou sem rock. O êxito do Legião, a megavendagem de seus discos e a alegria
que reina em seus shows quando Renato Russo resolve fazer um bom espetáculo
provam que, ao ouvir rock, o público quer mesmo é se divertir. No momento, o
Legião Urbana é a melhor opção para isso na música brasileira.
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