NICOLA ABBAGNANO
DICIONÁRIO
DE
FILOSOFIA
Martins Fontes
São Paulo 1998
Esta obra foi publicada originalmente em italiano com o título
DIZIONARIO Di FILOSOFIA por Vnione Tipografico-Editrice
Torinense - UTET, Torino, 1971.
Copyright © 1971, UTET, Torino.
Copyright © Livraria Martins Fontes Editora Ltda.,
São Paulo, 1998, para a presente edição.
2ª edição, Editora Mestre Jou, São Paulo, 1992.
3ª edição totalmente revista e ampliada
junho de 1998
Tradução da l8
edição brasileira coordenada e revista por
Alfredo Bosi
Com a colaboração de
Maurice Cunio, Antonieta Scartabello, Carla Comi,
Rodolfo llari e Sílvia Salvi
Tradução dos novos textos inc'jídos nesta edição
Ivone Castilho Benedetti
Revisão da tradução, confronto com a nova edição italiana
Ivone Castilho Benedetti
Preparação do original e coordenação da revisão
Vadim Valentinovitch Nikitin
Revisão gráfica
Teresa Cecília de Oliveira Ramos, Lilian Jenkino, Célia Regina Camargo,
Sandra Rodrigues Garcia, Fáoio Weintraub, Eliane Rodrigues de Abreu
Protlnção gráfica
. Ge aldo Alves
Pagin^-jTForairoV
Studio 3 Desenvolvimento Editorial \6957-7653
Capa
Marcos Lisboa
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Abbagnano, Nicola, 1901-
Dicionário de filosofia / Nicola Abbagnano ; tradução Alfredo Bosi. - 21
ed. - São Paulo : Martins Fontes, 1998.
Título original: Dizionario di filosofia. ISBN 85-336-0865-9
1. Filosofia - Dicionários, enciclopédias I. Título.
98-1824___________________________________CDD-103
índices para catálogo sistemático:
1. Filosofia : Dicionários 103
Todos os direitos para o Brasil reservados à Livraria Martins Fontes Editora Ltda.
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PREFÁCIO
O objetivo deste dicionário é colocar à disposição de todos um repertório das possibilidades de filosofar
oferecidas pelos conceitos da linguagem filosófica, que vem se constituindo desde o tempo da Grécia
antiga até nossos dias. O Dicionário mostra como algumas dessas possibilidades foram desenvolvidas e
exploradas à exaustão, ao passo que outras foram insuficientemente elaboradas ou deixadas de lado. Ele
apresenta, assim, um balanço do trabalho filosófico do ponto de vista de sua fase atual.
Em função desse objetivo foi estabelecida a regra fundamental a que obedeceu a formulação dos verbetes:
a de especificar as constantes de significado passíveis de serem demonstradas ou documentadas com
citações textuais, mesmo que de doutrinas aparentemente diferentes. Mas as constantes de significado só
podem ser especificadas quando os diferentes significados, compreendidos por um mesmo termo, são
claramente reconhecidos e distintos. Essa é a exigência da clareza, considerada fundamental numa obra
como esta e que, na verdade, é, condição essencial para que a filosofia possa exercer qualquer função de
esclarecimento e'orientação nos confrontos entre os seres humanos.
Numa época em que os conceitos são freqüentemente confusos e equívocos a ponto de se tornarem
inutilizáveis, a exigência de uma definição rigorosa dos conceitos e de suas articulações internas adquire
importância vital. Espero que o Dicionário que ora apresento ao leitor esteja à altura dessa exigência e
contribua para difundi-la, restituindo aos conceitos sua força diretiva e asseguradora.
Vejo-me agora na grata obrigação de lembrar aqui as pessoas que me ajudaram na realização deste
trabalho.
O professor GIULIO PRETI elaborou para mim alguns verbetes de lógica (sendo o principal, justamente,
Lógica), todos assinados com as iniciais G. P. Também me ajudou na compilação de alguns outros, que
trazem suas iniciais e as minhas.
Todos os artigos principais do Dicionário foram discutidos, às vezes longa e minuciosamente, com um
grupo restrito de amigos: NORBERTO BOBBIO, EUGÊNIO GARIN, C. A. Viano, Pietro Rossi, Pietro Chiodi.
Outros amigos ajudaram-me a encontrar ou confrontar textos de mais difícil acesso. Foram eles
GRAZIELLA VESCOVTNI FEDERICI, GRAZIELLA GIORDANO, SÉRGIO RUFFINO.
Minha mulher, Marian Taylor, me prestou grande ajuda na correção das provas.
A todas essas pessoas dirijo meu cordial agradecimento. Mas o trabalho deste Dicionário não teria sido
iniciado nem levado a termo sem a ampla ajuda da grande e benemérita casa editora UTET, que agora a
publica. A ela expresso, portanto, minha gratidão.
Turim, 11 de outubro de 1960.
NlCOLA ABBAGNANO
VI
PREFÁCIO
NOTA À SEGUNDA EDIÇÃO ITALIANA
Esta segunda edição, inteiramente revista, contém 22 verbetes novos: Artefato, Asserção-, Autômato-,
Casamento-, Classe, consciência de, Deus, morte de, Diacrônico, Sincrônico-, Doxologia-, Ensomatose-,
Futurologia-, Iluminismo-, Ocorrência; Performativo-, Poiético-, Praxiologia-, Previsãa, Psicodélico-,
Recusa, grande, Tábuas de verdade, Teleonomia; Ler, Trabalho.
Foram inteiramente refeitos os verbetes:
Condicional; Conseqüência; Entimema; Implicação-, Matrizes, método das; Panteísmo-, Tecnocracia.
Turim, 20 de abril de 1971.
N.A.
OBSERVAÇÕES
1. — O Dicionário contém apenas termos, não nomes próprios. No entanto, contém termos como
Platonismo, Aristotelismo, Criticismo, Idealismo, etc, que se referem à doutrina de um filósofo ou de uma
escola, ou a aspectos ou linhas comuns a várias doutrinas. Mas esses verbetes limitam-se a expor os
pontos principais das doutrinas ou linhas em questão com a maior brevidade possível, dado que as
opiniões dos filósofos a que se referem são amplamente citadas em todos os verbetes principais.
2. — Foram incluídos artigos dedicados não apenas às simples disciplinas filosóficas (Metafísica,
Ontologia, Gnosiologia, Metodologia, Ética, Estética, etc), mas também a disciplinas científicas de
caráter ou fundamento teórico (Matemática, Geometria, Economia, Física, Psicologia, etc), em cuja
abordagem os verbetes do Dicionário limitam-se a distinguir as diversas fases conceituais pelas quais a
disciplina passou ou as diversas linhas que ela oferece como alternativas de pesquisa ou de interpretação.
3. — Para os termos que se referem a conceitos complexos ou problemáticos, ou que tiveram ou têm
interpretações diversas, foi adotado o seguinte procedimento: A) Demos de início, quando possível, o
significado geral ou generalizado ao qual podem ser reduzidos todos os significados encontráveis, ou a
maioria deles; B) distinguimos e agrupamos em poucas categorias estes últimos significados; O cada
categoria de significado foi ilustrada com citações de textos. Tivemos o cuidado de fazer com que os
significados fundamentais fossem distinguidos e formulados de modo que incluíssem o maior número
possível de significados incontráveis.
4. — O Dicionário tem, como qualquer outro Dicionário lingüístico, uma base essencialmente histórica:
isso mostra quais foram e quais são os usos de um termo na linguagem filosófica ocidental e também, se
for o caso, relaciona-os com seu uso na linguagem comum. As ambigüidades de significado foram
cuidadosamente registradas. Quando foi possível fazê-lo sem demasiado arbítrio, indicamos o modo de
evitar tais ambigüidades.
5. — Foram utilizadas abreviações para os títulos das obras citadas com maior freqüência (ver a lista
apresentada nas páginas seguintes). Para as obras clássicas, utilizamos os sistemas de citação adotados
correntemente pelos estudiosos. Sempre que possível, indicamos, das obras citadas, a parte ou volume, o
capítulo e o parágrafo, além da página, para tornar a citação independente das diversas edições ou
traduções existentes.
6. — Os verbetes assinados pelas iniciais G. P. são da autoria do professor Giulio Preti, da Universidade
de Florença.
X
LISTA DAS PRINCIPAIS ABREVIATURAS
Duns Scot (1265-1308)
Rep. Par. = Reportata Parisiensia, in Opera, ed. Wadding, vol. Xi, 1639-
Op. Ox. = Opus Oxoniense, nelle Opere, ed. de L. Wadding, vol. V-X. As partes desta obra publicadas sob o título de
Ordinatio nos quatro primeiros volumes da Opera omnia, em ed. org. pela Commissione Vaticana em 1950, foram
citadas no texto seguido nesta última edição.
Fichte (1762-1814)
Wissenschajislehre = Grundlage dergesammten Wissenschqftslehre, 1794, in Werke,OTg. pelo filho I. H. Fichte, 8
vols., 1845-46. Também as outras obras de Fichte são citadas (salvo advertência em contrário) por essa edição ou pela
das Machgelassene Werke, org. também pelo filho, 1834-35 (citadas no texto como Werke, IX, X, XI).
Ficino (1433-1499)
Theol.Plat. = Theologia Platônica, in Opera, 1561.
In Conv. Plat. de Am. Comm. = In Convivium
Platonis deAmore Commentarium, ibidem.
Füon (c. 20 a.C.-c. 50 d.C.) Ali. leg. =Allegoria legis, ed. Colson e Whitaker, 1929-62.
Hegel (1770-1831)
Ene. = Encyklopádie derphilosophischen Wis-senschaften im Grundrisse, 2
a
ed., 1827; ed. Lasson, 1950. Nas citações
desta obra também foi consultada a versão italiana de B. Croce, Bari, 1906.
Fil. do dir. = Grundlinien der Philosophie des Rechts, 1821.
Phãnomen. des Geistes = Phánomenologie des Geistes, 1807.
Quando não é dada outra indicação, as obras de Hegel são citadas na edição original: Werke, Volstãndige Ausgabe,
1832-45.
Hobbes (1588-1679) De corp. = De corpore, 1655. De bom. - De homine, 1658 Leviath. = Leviathan, 1651.
Hume (1711-1776)
Inq. Cone. Morais = Inquiry Concerning the
Principies ofMorais, 1752; ed. Green e Grose,
1879; nova ed., 1912.
Inq. Cone. Underst. = Inquiry Concerning
Human Understanding, 1748. Treatise = A Treatise of Human Nature, 1738;
ed. Selby-Bigge, 1888.
Husserl (1859-1938)
Ideen, I, II, III = Ideen zu einer reinen Phánomenologie undphanomenologischen Philosophie, I, II, III, 1950, 1951,
1952.
Cart.Med. = CartesianischeMeditationen, 1950.
Krisis = Die Krisis der europaischen Wissens-chaften unddie transzendentale Phánomenologie, 1954.
Jaspers (1883-1969)
Phil. = Philosophie, 3 vols., 1932; 3a
ed., 1956.
Kant (1724-1804)
Antr. = Anthropologie inpragmatischerHinsicht, 1798.
Crít dojuizo = Kritik der Urteilskraft, 1790.
Crít. R. Prática Kritik derpraktischen Vemunft, 1787.
Crít. R. Pura = Kritik der reinen Vernunft, I
a ed., 1781; 2a
ed., 1787. As citações referem-se à 2g
ed., salvo indicação
em contrário.
Met. der Sitten = Metaphysik der Sitten, 1797.
Prol. = Prolegomena zu einer jeden künftigen Metaphysik, die ais Wissenschaft wird auf-treten kónnen, 1783-
Religion = Die Religion innerhalb der Grenzen der blossen Vernunft, 1793. Às vezes são indicadas entre colchetes as
páginas segundo a edição da Academia Prussiana. Nesse caso, no que diz respeito à Crítica da Razão Pura, indica-se
com A a Ia edição e com B a segunda.
Kierkegaard (1813-1855) Werke = Gesammelte Werke, trad. ted. E. Hirsch, 1957 ss.
Leibniz (1646-1716)
Disc. demét. = Discours de métaphysíque, 1686,
ed. Lestienée, 1929. Monad. = Monadologie, 1714. Nouv. ess. = Nouveaux essais sur1'entendement
humain, 1703-Théod. = Essais de Théodicée sur Ia bonté de
Dieu, Ia liberte de 1'homme et 1'origine du
mal, 1710.
LISTA DAS PRINCIPAIS ABREVIATURAS
XI
As duas obras precedentes e muitos outros escritos de Leibniz são citados de Opera Philosophica, ed. Erdmann,
1840. Também são citadas as duas coletâneas: Mathematische Schriften, ed. Gerhardt, 7 vols., 1849-63;
PhilosophischeSchriften, ed. Gerhardt, 7 vols., 1875-90.
Locke (1632-1704)
Saggio = An Essay concerning Human Understanding, 1690; ed. Fraser, 1894; trad. it.
C. Pellizzi, Bari, 1951.
Lucrécio (c. 96-c. 53 a.C.)
Derer. nat. =Dererum natura, ed. Bailey, 1947.
Mill,J. S. (1806-1873)
Logic - System of Logic Ratiocinative and Lnductive, 1843.
Nicolau de Cusa (1401-1464)
De docta ignor. = De docta ignorantia, 1440.
Ockham (c. 1280-c. 1349) In Sent. = Quaestiones in IVlibros Sententiarum, 1495.
Orígenes (c. 185-c. 253) Deprinc. = De principiís. Injohann. = Injohannem.
Pascal (1623-1662)
Pensées (os números referem-se à ordem da ed. Brunschvicg).
P. G. = MIGNE, Patrologia graeca, o primeiro número indica o volume.
P. L. = MIGNE, Patrologia latina, o primeiro número indica o volume.
Pedro Hispano (Papa João XXI, c. 1220-1277) Summ. log. = Summulae logicales, ed. Bo-nhenski, 1947
Peirce 1839-1914)
Coll. Pap. = Collected Papers, vols. I-VI, ed.
Hartshorne e Weiss, 1931-35; vols. VII-VIII,
ed. Burks, 1958.
Platão (c. 427-c. 347 a.C.) Ale, I, II = Alcibiades, I, II.
Ap. = Apologia Socratis.
Carm. = Charmides.
Conv. = Symposium.
Crat. = Cratylus.
Crit. = Crito.
Critia = Critias.
Def. = Definitiones.
Ep. = Epistulae.
Eutid. = Euthydemus.
Fed. = Phaedo.
Fil. = Philebus.
Gorg. = Gorgias.
Ion. = Ione.
Lach. = Laches.
Leggi = Leges.
Men. - Menon.
Parm. = Parmenides.
Pol. = Politicus.
Prot. = Protagoras.
Rep. = Respublica, ed. Chambry, 1932.
Sof. = Sophista.
Teet. = Teaethetus.
Tim. = Timaeus.
Os textos são citados na edição de Burnet,
1899-1906.
Plotino (205-270)
Enn. = Enneades, ed. Bréhier, 1924.
Santo Agostinho (354-430) De civ. Dei = De civitate Dei. Conf. = Confessionum libri XIII.
Santo Tomás de Aquino (1225-1274)
S. Th. = Summa Theologiae, ed. Caramello,
Torino, 1950. Contra Gent. = Summa contra Gentiles, Torino,
1938. De ver. = Quaestiones disputatae de veritate,
Torino, 1931-
Scheler (1874-1928)
Formalismus = Formalismus in der Ethik und
die materiale Wertethik, 1913-16. Sympathie= Wesen undFormen derSympathie
1923; trad. franc. Lefebvre, 1928.
Schelling (1775-1854)
Werke = Sámmtliche Werke, organizada pelo filho K. F. A. Schelling: I série (obras já editadas), 10 vols.; II série
(obras inéditas), 4 vols., 1.856 ss.
XII
LISTA DAS PRINCIPAIS ABREVIATURAS
Schopenhauer (1788-1860)
Die Welt = Die Welt ais Wille und Vorstellung,
1819; 2a
ed., 1844; trad. it. P. Savi-Lopez e
G. De Lorenzo, Bari, 1914-30.
Scotus Erigena (séc. K)
De divis. nat. = De divisione naturae, nella P. L, 122.
Sêneca (12 a.C-65 d.C.) Ep. = EpistulaemoralesadLucilium, ed. Beltrami, 1931; trad. it. U. Boella, Torino, 1951.
Sexto Empírico (180-220)
Adv. math. = Adversus mathematicos, ed. Mau,
1954. Pirr. hyp. = Pirroneion hypotyposeon libri três,
ed. Mutschmann, 1912.
Stobeo (séc. V)
Ecl. = Eclogaephysicae et ethicae, ed. Wachsmuth
e Hense, 1884-1923. Spinoza Et. = Ethica more geométrico demonstrata, 1677,
in Opera, ed. Wachsmuth e Hense, 1884-1923.
Telésio (1509-1588)
De rer. nat. = De rerum natwa iuxta própria
principia, I-II, 1565; III-IX, 1586; ed. Spampanato, 1910-23.
Wittgenstein (1889-1951)
Tractatus= Tractatvs logico-philosopkicus, 1922.
Wolff (1679.-1754)
Cosm. = Cosmologia generalis, 1731-
Log. = Philosophia rationalis, siveLógica, 1728.
Ont. = Philosophia prima sive Ontologia, 1729.
Outras abreviaturas não estão registradas acima porque ou são de uso corrente entre os estudiosos, ou são de
compreensão imediata, como Ap., para Apêndice; Fil. para Filosofia; Phil. para Philosophie ou Philosophy; Intr. para
Introdução; Schol. para scholium; etc.
A
A. 1. Foi Aristóteles quem usou pela primeira vez, particularmente em Analíticos, as primeiras letras
maiúsculas do alfabeto, A, B, F, para indicar os três termos de um silogismo. Todavia, como na sua
sintaxe o predicado é posto antes do sujeito (A tmápxei xco B, "A é inerente [ou pertence] a B"), em geral
em Analíticos os sujeitos são B e L. Na Lógica da Idade Moderna, com o costume de se escrever "A est
B", A tornou-se normalmente o símbolo do sujeito.
2. A partir dos tratadistas escolásticos (ao que parece, de Introductiones de Guilherme de Shyreswood,
séc. XIII), a letra A é usada na Lógica formal "aristotélica" como símbolo da proposição universal
afirmativa (v.), segundo os conhecidos versos que chegaram até nós em várias redações. Nas Summulae
de Pedro Hispano (ed. Bochenski, 1. 21), lê-se:
A affirmat, negat E, sed universaliter ambae,
I affirmat, negat O, sed particulariter ambae.
3. Na lógica modal tradicional, a letra A designa a proposição modal que consiste na afirmação do modo
e na afirmação da proposição. P. ex.: "É possível que p' onde p é uma proposição afirmativa qualquer
(ARNAULD, Log., II, 8).
4. Na fórmula "A é A" ou "A=A", que começou a ser usada com Leibniz como tipo das verdades
idênticas e foi adotada depois por Wolff e por Kant como expressão do chamado princípio de identidade
(v.), A significa um objeto ou um conceito qualquer. Fichte dizia: "Todo<; concordam que a proposição A
é A (assim como A=A porque este é o significado ua có-pula lógica) e, de fato, não é preciso pensar muito
para reconhecê-la como plenamente certa e indubitável" (Wissenschaftslehre, 1794,
§ 1). Durante muito tempo essa fórmula exprimiu o princípio de identidade e, ao mesmo tempo, constituiu
um tipo de verdade absolutamente indubitável. Diz Boutroux: "O princípio de identidade pode ser assim
expresso: At A. Não digo o Ser, mas simplesmente A, isto é, qualquer coisa, absolutamente qualquer,
suscetível de ser concebida, etc." (De Vidée de loi naturelle, 1895, p. 12).
5. No simbolismo de Lukasiewicz a letra "A" é usada como o símbolo da disjunção para a qual se
emprega mais comumente o símbolo "V" (cf. A. CHURCH, Introduction to Mathema-tical Logic, nota 91 )
■
ABAUEDADE. V. ASEIDADE.
ABDERTTISMO (ai. Abderitismus). Assim Kant designou a concepção que considera que a história não
está em progresso nem em regresso, mas sempre no mesmo estado. Deste ponto de vista, a história
humana não teria mais significado do que a de qualquer espécie animal; seria apenas mais penosa (Se o
gênero humano está em constante progresso para o melhor, 1798).
ABDUÇÃO (gr. cmaycoTií; lat. Reductio-, in. Abduction; fr. Abduction; ai. Abduction; it. Abduzioné). É
um processo de prova indireta, semidemonstrativa (teorizado por Aristóteles em Top., VIII, 5, 159 b8, e
160 a 11 ss.; An.pr, II, 25, 69 a 20 ss.), em que a premissa maior é evidente, porém a menor é só provável
ou de qualquer forma mais facilmente aceita pelo interlocutor do que a conclusão que se quer demonstrar.
Embora se trate de um processo mais dialético do que apodítico, já fora admitido por Platão (cf. Men., 86
ss.) para a matemática, e também será sancionado como um dos métodos de demonstração matemática
por Proclo (In Eucl, 212, 24).
ABERTO
2
ABSOLUTISMO
Peirce introduziu o termo abduction (ou retroductiori) para indicar o primeiro momento do processo
indutivo, o da escolha de uma hipótese que possa servir para explicar determinados fatos empíricos (Coll.
Pap., 2.643).
ABERTO (in. Open-, fr. Ouvert; it. Aperto). Adjetivo empregado freqüentemente em sentido metafórico
na linguagem comum e filosófica para indicar atitudes ou instituições que admitem a possibilidade de
participação ou comunicação ampla ou até mesmo universal. Um "espírito aberto" é um espírito acessível
a sugestões, conselhos, críticas que lhe vêm dos outros ou da própria situação e que está disposto a levar
em conta, isto é, sem preconceitos, tais sugestões. Uma "sociedade aberta" é uma sociedade que
possibilita a correção de suas instituições por vias pacíficas (K. POPPER, The Open Society and it
Enemies, Londres, 1945). Bergson deu o nome de sociedade aberta àquela que "abraça a humanidade
inteira" (Deux sources, 1932,1; trad. ital., p. 28). C. Morris falou de um "eu aberto" (The Open Self,
1948), A. Capitini de uma "religião aberta" {Religione aperta, 1955).
AB ESSE AD POSSE. É uma das consequen-tiaeformates (y. CONSEQÜÊNCIA) da Lógica Esco-lástica;
ah esse ad posse valet (tenet) con-sequentia, ou, com maior rigor, ah Mia de inesse valetOenei) illa de
possibili; isto é: de "'p' é verdadeira" segue-se que "'p' é possível". G. P.
AB INVIDIA. Assim Wolff denomina "as razões com as quais se provoca ódio contra as opiniões dos
outros" (Log., § 1.049). É o assunto preferido pelos "perseguidores", isto é. por aqueles "que, com o
pretexto de defender a verdade, procuram levar os adversários ao perigo de perderem a fama, a fortuna ou
a vida" Obid, § 1.051).
ABISSAL, PSICOLOGIA. V. PSICOLOGIA, E.
ABNEGAÇÃO (gr. àitápvr|oiç; lat. Abnega-tio, in. Self-denial; fr. Abnégation; ai. Verleu-gnung; it.
Abnegacioné). É a negação de si mesmo e a disposição de pôr-se a serviço dos outros ou de Deus, com o
sacrifício dos próprios interesses. Assim é descrita essa noção no Evangelho (Mat., XVI, 24; Luc, IX,
23): "Se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo, e tome cada dia a sua cruz". Essa negação de si
mesmo, porém, não é a perda de si mesmo, mas, antes, o reencontro do verdadeiro "si mesmo", como se
explica no versículo seguinte: "pois quem quiser conservar a sua vida, perdê-la-á; mas quem perder a sua
vida por
mim, salvá-la-á". Por isso nos Evangelhos, a noção de abnegação não é uma noção de moral ascética, mas
exprime o ato da renovação cristã, pelo qual da negação do homem velho nasce o homem novo ou
espiritual.
ABSOLUTISMO (in. Absolutism; fr. Absolu-tisme, ai. Absolutismus; it. Assolutismó). Termo cunhado na
primeira metade do séc. XVIII para indicar toda doutrina que defenda o "poder absoluto" ou a "soberania
absoluta" do Estado. No seu sentido político original, esse termo agora designa: 1B
o A. utopista de Platão
em República; 2
a
o A. papal afirmado por Gregório VII e por Bonifácio VIII, que reivindica para o Papa,
como representante de Deus sobre a Terra, a plenitudopotestatis, isto é, a soberania absoluta sobre todos
os homens, inclusive os príncipes, os reis e o imperador; 39
o A. monárquico do séc. XVI, cujo defensor é
Hobbes; 4S
o A. democrático, teorizado por Rousseau no Contrato social, por Marx e pelos escritores
marxistas como "ditadura do proletariado". Todas essas formas do A. defendem igualmente, embora com
motivos ou fundamentos vários, a exigência de que o poder estatal seja exercido sem limitações ou
restrições. A exigência oposta, própria do liberalismo (v.), é a que prescreve limites e restrições para o
poder estatal.
No uso filosófico corrente, esse termo não se restringe mais a indicar determinada doutrina política, mas
estende-se à designação de toda e qualquer pretensão doutrinai ou prática ao absoluto, em qualquer
campo que seja considerado. Diz, p. ex., Reichenbach {The Theory of Probability, p. 378): "Devemos
renunciar a todos os resíduos do A. para compreender o significado da interpretação, em termos de
freqüência, de uma asserção de probabilidade em torno de um caso individual. Não há lugar para o A. na
teoria das asserções de probabilidade referentes à realidade física. Tais asserções são usadas como regras
de conduta, como regras que determinam a conduta mais eficaz em dado estágio do conhecimento. Quem
quiser encontrar algo a mais nessas asserções descobrirá no fim que perseguiu uma quimera". O A.
filosófico não é tanto de quem fala do Absoluto ou de quem lhe reconhece a existência, mas de quem
afirma que o próprio absoluto apoia suas palavras e lhes dá a garantia incondicional de veracidade. Nesse
sentido, o protótipo do A. doutrinai é o Idealismo romântico, segundo o qual, na filosofia, não é o filósofo
como homem que se manifesta e fala, mas o próprio
i
ABSOLUTO
3
ABSOLUTO
Absoluto que chega à sua consciência e se manifesta.
ABSOLUTO (in. Absolute, fr. Absolu- ai. Absoluto; it. Assoluto). O termo latino absolutus (desligado de,
destacado de, isto é, livre de toda relação, independente) provavelmente corresponde ao significado do
termo grego kath' auto (ou por si) a propósito do qual diz Aristóteles: "Por si mesmo e enquanto ele
mesmo é significam a mesma coisa; p. ex.: o ponto e a noção de reta pertencem à linha por si porque
pertencem à linha enquanto linha" {An. post., I, 4, 73 b 30 ss.). Nesse sentido, essa palavra qualificaria
uma determinação que pertence a uma coisa pela própria substância ou essência da coisa, portanto,
intrinsecamente. Esse é um dos dois significados da palavra dis-tinguidos por Kant, o que ele considera
mais difundido, mas menos preciso. Nesse sentido, "absolutamente possível" significa possível "em si
mesmo" ou "intrinsecamente" possível. Desse significado Kant distingue o outro, que considera
preferível, segundo o qual essa palavra significaria "sob qualquer relação"; nesse caso, "absolutamente
possível" significaria possível sob todos os aspectos ou sob todas as relações (Crít. R. Pura, Dial. transe,
Conceitos da razão pura, seç. II).
Esses dois significados se mantêm ainda no uso genérico dessa "palavra, mas o segundo prevalece, talvez
por ser menos dogmático e não fazer apelo ao misterioso em si ou à natureza intrínseca das coisas. P. ex.,
dizer "Isto é absolutamente verdadeiro" pode eqüivaler a dizer "Esta proposição contém em si mesma
uma garantia de verdade"; mas pode também querer dizer "Esta proposição foi amplamente verificada e
nada há ainda que possa provar que ela é falsa"; este segundo significado é menos dogmático do que o
primeiro. Assim, responder "Absolutamente não" a uma pergunta ou a um pedido significa simplesmente
avisar que este "não" está solidamente apoiado por boas razões e será mantido. Esses usos comuns do
termo correspondem ao uso filosófico que, genericamente, é o de "sem limites", "sem restrições", e
portanto "ilimitado" ou "infinito". Muito provavelmente a difusão dessa palavra, que tem início no séc.
XVIII (embora tenha sido Nicolau de Cusa que definiu Deus como o A., De docta ignor, II, 9), é devida à
linguagem política e a expressões como "poder A.", "monarquia A.", etc, nas quais a palavra significa
claramente "sem restrições" ou "ilimitado".
A grande voga filosófica desse termo deve-se ao Romantismo. Fichte fala de uma "dedução A.", de
"atividade A.", de "saber A.", de "reflexão A.", de "Eu A.", para indicar, com esta última expressão, o Eu
infinito, criador do mundo. E na segunda fase de sua filosofia, quando procura interpretar o Eu como
Deus, usa a palavra de modo tão abusivo que beira o ridículo: "O A. é absolutamente aquilo que é,
repousa sobre si e em si mesmo absolutamente", "Ele é o que é absolutamente porque é por si mesmo...
porque junto ao A. não permanece nada de estranho, mas esvai-se tudo o que não é o A."
(Wissenschaftslehre, 1801, §§ 5 e 8; Werke, II, pp. 12, 16). A mesma exageraçào dessa palavra acha-se em
Schelling, que, assim como Fichte da segunda maneira, emprega, além disso, o substantivo "A." para
designar o princípio infinito da realidade, isto é, Deus. O mesmo uso da palavra reaparece em Hegel, para
quem, como para Fichte e Schelling, o A. é, ao mesmo tempo, o objeto e o sujeito da filosofia e, embora
definido de várias formas, permanece caracterizado pela sua infinidade positiva no sentido de estar além
de toda realidade finita e de compreender em si toda realidade finita. O princípio formulado na
Fenomenologia (Pref.) de que "o A. é essencialmente o resultado" e de que "só no fim está o que é em
verdade" leva Hegel a chamar de Espírito A. os graus últimos da realidade, aqueles em que ela se revela a
si mesma como Princípio autoconsciente infinito na religião, na arte e na filosofia. O Romantismo fixou
assim o uso dessa palavra tanto como adjetivo quanto como substantivo. Segundo esse uso, a palavra
significa "sem restrições", "sem limitações", "sem condições"; e como substantivo significa a Realidade
que é desprovida de limites ou condições, a Realidade Suprema, o "Espírito" ou "Deus". Já Leibniz
dissera: "O verdadeiro infinito, a rigor, nada mais é que o A." (Nouv. ess., II, 17, § 1). E na realidade esse
termo pode ser considerado sinônimo de "Infinito" (v.). Em vista da posição central que a noção de
infinito ocupa no Romantismo (v.), entende-se por que esse sinônimo foi acolhido e muito utilizado no
período romântico. Na França, essa palavra foi importada por Cousin, cujos vínculos com o Romantismo
alemão são conhecidos. Na Inglaterra, foi introduzida por William Hamilton, cujo primeiro livro foi um
estudo sobre a Filosofia de Cousin (1829); e essa noção tornou-se a base das discussões sobre a
cognoscibilida-
ABSORÇÃO, LEI DE
4
ABSTRAÇÃO
de de A., iniciadas por Hamilton e Mansel e continuadas pelo evolucionismo positivista (Spencer, etc),
que, assim como esses dois pensadores, afirmou a existência e, ao mesmo tempo, a incognoscibilidade do
Absoluto. Na filosofia contemporânea, essa palavra foi amplamente usada pela corrente que estava mais
estreitamente ligada ao Idealismo romântico, isto é, pelo Idealismo anglo-americano (Green, Bradley,
Royce) e italiano (Gentile, Croce), para designar a Consciência infinita ou o Espírito infinito.
Essa palavra permanece, portanto, ligada a uma fase determinada do pensamento filosófico, mais
precisamente à concepção romântica do Infinito, que compreende e resolve em si toda realidade finita e
não é, por isso, limitado ou condicionado por nada, nada tendo fora de si que possa limitá-lo ou
condicioná-lo. No seu uso comum, assim como no filosófico, esse termo continua significando o estado
daquilo que, a qualquer título, é desprovido de condições e de limites, ou (como substantivo) aquilo que
se realiza a si mesmo de modo necessário e infalível.
ABSORÇÃO, LEI DE (in. Law of absorption; fr. Loi d'absorption; it. Leggi di assorbimen-tó). Com
esse nome designam-se na Lógica contemporânea os dois teoremas da álgebra das proposições:
pr\pq = p, p(pr\q)=p,
e os dois teoremas correspondentes da álgebra das classes:
a r\ab =a,- a(ai\ti) = a.
A A. é, nessas expressões, a possibilidade lógica de substituir-se p por p v pq ou por p (p r) q) nas
primeiras expressões; ou a por ar\ ab ou por a («f| ti) nas segundas expressões. (Cf. CHURCH, Intr.
toMathematicalLogic, 15, 8). Fora da linguagem da lógica, essa lei significa que, se um conceito implica
outro, ele absorve este outro, no sentido de que a asserção simultânea dos dois eqüivale à asserção do
primeiro e pode ser, portanto, substituída pela asserção deste toda vez que ela reapareça. Cf. TAUTOLOGIA.
ABSTRAÇÃO (gr. àçaípeaiç; lat. Abstractio-, in. Abstraction; fr. Abstraction; ai. Abstraktion;
it. Astrazioné). É a operação mediante a qual alguma coisa é escolhida como objeto de percepção,
atenção, observação, consideração, pesquisa, estudo, etc, e isolada de outras coisas com que está em uma
relação qualquer. A A. tem dois aspectos: Ia
isolar a coisa previamente escolhida das demais com que está
relacionada (o abstrair de); 2S
assumir como objeto específico de consideração o que foi assim isolado (A.
seletiva ou pré-cisão). Esses dois significados já foram distinguidos por Kant (Logik, § 6), que, porém,
pretendia reduzir a A. somente à primeira dessas formas.
A A. é inerente a qualquer procedimento cognoscitivo e pode servir para descrever todo processo desse
gênero. Com tal finalidade foi utilizada desde a Antigüidade. Aristóteles explica com a A. a formação das
ciências teoréticas, isto é, da matemática, da física e da filosofia pura. "O matemático", diz ele, "despoja
as coisas de todas as qualidades sensíveis (peso, leveza, dureza, etc.) e as reduz à quantidade descontínua
e contínua; o físico prescinde de todas as determinações do ser que não se reduzam ao movimento.
Analogamente, o filósofo despoja o ser de todas as determinações particulares (quantidade, movimento,
etc.) e limita-se a considerá-lo só enquanto ser" (Met., XI, 3, 1.061 a 28 ss.). O processo todo do conhecer
pode ser, segundo Aristóteles, descrito com a A.: "O conhecimento sensível consiste em assumir as
formas sensíveis sem a matéria assim como a cera assume a marca do sinete sem o ferro ou o ouro de que
ele é composto" (De an., II, 12, 424 a 18). E o conhecimento intelectual recebe as formas inteligíveis
abstraindo-as das formas sensíveis em que estão presentes (ibid., III, 7, 431 ss.). S. Tomás reduz o
conhecimento intelectual à operação de A.: abstrair a forma da matéria individual e assim extrair o
universal do particular, a espécie inteligível das imagens singulares. Assim como podemos considerar a
cor de um fruto prescindindo do fruto, sem por isso afirmar que ela existe separadamente do fruto,
também podemos conhecer as formas ou as espécies universais do homem, do cavalo, da pedra, etc,
prescindindo dos princípios individuais a que estão unidas, mas sem afirmar que existem separadamente
destes. A A., por isso, não falsifica a realidade, mas só possibilita a consideração separada da forma e,
com isso, o conhecimento intelectual hu-
ABSTRAÇÃO
5
ABSTRAÇÃO
mano (S. Th., I, q. 85, a. 1). Esses conceitos, ou conceitos afins, repetem-se em toda a Es-colástica. A
Lógica de Port-Royal (I, 4) resumiu muito bem o pensamento da Escolástica e a estreita conexão do
processo abstrativo com a natureza do homem, dizendo: "A limitação da nossa mente faz que não
possamos compreender as coisas compostas senão considerando-as nas suas partes e contemplando as
faces diversas com que elas se nos apresentam: isto é o que geralmente se costuma chamar conhecer por
A.".
Locke foi o primeiro a evidenciar a estreita conexão entre o processo de A. e a função simbólica da
linguagem. "Mediante a A.", diz ele, "as idéias extraídas de seres particulares tornam-se representantes
gerais de todos os objetos da mesma espécie e os seus nomes tornam-se nomes gerais, aplicáveis a tudo o
que existe e está conforme com tais idéias abstratas... Assim, observando-se hoje no gesso ou na neve a
mesma cor que ontem foi observada no leite, considera-se só esse aspecto e faz-se com ele a
representação de todas as outras idéias da mesma espécie; e dando-se o nome 'brancura', com este som
significa-se a mesma qualidade, onde quer que ela venha a ser imaginada ou encontrada; e assim são
compostos os universais, quer se trate de idéias, quer se trate de termos" {Ensaio, II, 11, § 9). Baseandose nessas observações de Locke, Berkeley chegou à negação da idéia abstrata e da própria função da
abstração. Nega, em outros termos, que o homem possa abstrair a idéia da cor das cores, a idéia do
homem dos homens, etc. Não há, de fato, a idéia de um homem que não tenha nenhuma característica
particular, assim como não há, na realidade, um homem desse gênero. A" idéias gerais não são idéias
desprovidas de caráter particular (isto é, "abstratas"), mas idéias particulares assumidas como signos de
um grupo de outras idéias particulares afins entre si. O triângulo que um geômetra tem em mente para
demonstrar um teorema não é um triângulo abstrato, mas um triângulo particular, p. ex., isósceles; mas já
que não se faz menção desse caráter particular durante a demonstração, o teorema demonstrado vale para
todos os triângulos indistintamente, podendo cada um deles tomar o lugar do que foi considerado (Princ.
of Hum. Know., Intr., § 16). Hume repetiu a análise negativa de Berkeley (Treatise, I, 1, 7). Tais
análises, todavia, não negam a A., mas a sua noção psicológica em favor do seu conceito ló-gicosimbólico. A A. não é o ato pelo qual o espírito pensa certas idéias separadamente de outras; é, antes, a
função simbólica de certas representações particulares. Kant, porém, sublinha a importância da A. no
sentido tradicional, pondo-a ao lado da atenção como um dos atos ordinários do espírito e sublinhando a
sua função de separar uma representação, de que se está consciente, das outias com que ela está ligada na
consciência. Embora ele exemplifique de modo curioso a importância desse ato ("Muitos homens são
infelizes porque não sabem absLair". "Um celibatário poderia fazer bom casai íento se soubesse abstrair a
partir de uma v' uga do rosto ou a partir da falta de um dente de sua amada" [Antr., § 31), é claro que o
procedimento todo de Kant, que tem por fim isolar (isoliereri) os elementos do conhecimento, a priori, ou
da atividade humana, em geral, é um procedimento abstrativo. Diz ele, por ex.: "Em uma lógica
transcendental, nós isolamos o intelecto (como acima, na Estética transcendental, a sensibilidade) e
extraímos de todo o nosso conhecimento só a parte do pensamento que tem origem unicamente no
intelecto" (Crít. R. Pura, Div. da Lóg. transcend.).
Com Hegel, assiste-se ao estranho fenômeno da supervalorização da A. e da desvalorização do abstrato.
Hegel opõe-se à opinião de que abstrair significa somente extrair do concreto, p^r
a proveito subjetivo,
esta ou aquela nota que constitua o conceito, entre outras que todavia permaneceriam reais e válidas fora
do conceito, na própria realidade. "O pensamento abs-traente", diz ele, "não pode ser considerado como
pôr à parte a matéria sensível que não seria prejudicada por isso em sua realidade; é, antes, superar e
reduzir essa matéria, que é simples fenômeno, ao essencial, que só se manifesta no conceito" (Wissenscb.
derLogik, III, Do conceito em geral, trad. it., pp. 24-25). O conceito a que se chega com a A. é, por isso,
segundo Hegel, a própria realidade, aliás, a substância da realidade. Por outro lado, todavia, o abstrato é
considerado por Hegel como o que é finito, imediato, não posto em relação com o todo, não resolvido no
devir da Idéia, e por isso produto de uma perspectiva provisória e falaz. "O abstrato é o finito, o concreto
é a verdade, o objeto infinito" {Phil. derReligion, II, em Werke,
ABSTRAÇÃO
6
ABSTRATIVO, CONHECIMENTO
ed. Glockner, XVI, p. 226). "Somente o concreto é o verdadeiro, o abstrato não é o verdadeiro"
(Geschichte der Phil, III, em Werke, ed. Glockner, XK, p. 99). Está claro, todavia, que Hegel entende por
abstrato aquilo que co-mumente se chama concreto — as coisas, os objetos particulares, as realidades
singulares oferecidas ou testemunhadas pela experiência — enquanto chama de concreto o que o uso
comum e filosófico sempre chamou de abstrato, isto é, o conceito; e chama-o de concreto porque este
constitui, para ele, a substância mesma da realidade (conforme o seu princípio "Tudo o que é racional é
real e tudo o que é real é racional"). De qualquer forma, essa inversão de significado permitiu que boa
parte da filosofia do séc. XDC se pronunciasse a favor do concreto e contra o abstrato, ainda quando o
"concreto" de que se tratava era, na realidade, uma simples A. filosófica. Gentile falava, p. ex., de uma
"lógica do abstrato", ou do pensamento pensado, e de uma "lógica do concreto", ou do pensamento
pensante (Sistema di lógica, I, 1922, pp. 119 ss.). Croce falava da "concretitude" do conceito como
imanência deste nas representações singulares e da "abstrateza" das noções consideradas desligadas dos
particulares (Lógica, 4
a
ed., 1920, p. 28). Bergson contrapôs constantemente o tempo "concreto" da
consciência ao tempo "abstrato" da ciência e, de modo geral, o procedimento da ciência que se vale de
conceitos ou símbolos, isto é, de "idéias abstratas ou gerais", ao procedimento intuitivo ou simpático da
filosofia (cf., p. ex., Lapensée et le mouvant, 3
a
ed., 1934, p. 210). Esses temas polêmicos foram bastante
freqüentes na filosofia dos primeiros decênios do nosso século. E certamente a polêmica contra a A. foi
eficaz contra a tendência de entificar os produtos dela, isto é, de considerar como substâncias ou
realidades, entidades que não têm outra função senão possibilitar a descrição, a classificação e o uso de
um complexo de dados. Mas, por outro lado, essa mesma polêmica às vezes fez esquecer a função da A.
em todo tipo ou forma de atividade humana, enquanto tal atividade só pode operar através de seleções
abstrativas. Mach insistiu nessa função da A. nas ciências, afirmando que ela é indispensável para a
observação dos fenômenos, para a descoberta, ou para a pesquisa dos princípios (Erkenntniss und Irrtum,
cap. VIII; trad. fr., pp. 146 ss.). A esse propósito foi oportunamente distinguida por Peirce uma dupla
função da A.: a de operação seletiva e a que dá ensejo
às verdadeiras e próprias entidades abstratas, como p. ex., na matemática. "O fato mais comum da
percepção, como, p. ex., 'há luz', implica A. pré-cisiva ou pré-cisão. Mas a A. hipos-tática, que
transforma 'há luz' em 'há luz aqui', que é o sentido que dou comumente à palavra A. (desde que pré-cisão
indica a A. pré-cisiva), é um modo especialíssimo do pensamento. Consiste em tomar certo aspecto de um
objeto ou de vários objetos percebidos (depois que já foi 'pré-cindido' dos outros aspectos de tais objetos)
e em exprimi-lo de forma proposicional com um juízo" (Coll. Pap., 4.235; cf. 3-642; 5.304). Essa
distinção que já fora acenada por James (Princ. ofPsychoL, I. 243) e aceita por Dewey (Logic, cap. 23;
trad. it., pp. 603-604) não impede que tanto a pré-cisão quanto a A. hipostática sejam especificações da
função geral seletiva, que tradicionalmente foi indicada pela palavra "abstração". Paul Valéry insistiu
poeticamente na importância da A. em todas as construções humanas, logo também na arte: "Estou
dizendo que o homem fabrica por A.; ignorando e esquecendo grande parte das qualidades daquilo que
emprega, aplicando-se somente a condições claras e distintas que podem, via de regra, ser
simultaneamente satisfeitas não por uma, mas por muitas espécies de matérias" (Eupalinos, trad. ital., p.
134).
ABSTRACIONISMO (in. Abstractionism; fr. Abstractionnisme, ai. Abstraktionismus, it. Astrazionismó). Assim William James (The Mea-ning of Truth, 1909, cap. XIII) denominou o uso ilegítimo
da abstração e em particular a tendência a considerar como reais os produtos da abstração.
ABSTRATAS, CIÊNCIAS. V. CIÊNCIAS, CLASSIFICAÇÃO DAS.
ABSTRATAS, IDÉIAS. V. ABSTRAÇÃO.
ABSTRATIVO, CONHECIMENTO (lat. Cognitio abstractiva; in. Abstractive knowledge, fr.
Connaissance abstractive, ai. Abstrahierende Erkenntniss, it. Conoscenza astrattivá). Termo que Duns
Scot empregou de modo simétrico e oposto ao de conhecimento intuitivo (cognitio intuitiva), para indicar
uma das espécies fundamentais do conhecimento: a primeira delas "abstrai de toda existência atual"
enquanto a segunda "se refere ao que existe ou ao que está presente em certa existência atual" (Op. Ox.,
II, d. 3, q. 9, n. 6). A distinção foi aceita por Durand de St. Pourçain (In Sent., Prol., q. 3, F) e por
Ockham, que, porém, a reinterpretou a seu modo, entendendo por co-
ABSTRATOR
7
ACADEMIA
nhecimento intuitivo aquele mediante o qual se conhece com evidência a realidade ou a irrealidade de
uma coisa ou de algum outro atributo empírico da própria coisa; portanto, em geral, "toda noção simples
de um termo ou de vários termos de uma coisa ou de várias coisas, em virtude da qual se possa conhecer
alguma verdade contingente especialmente em torno do objeto presente" {In Sent., Prol, q. 1, Z.). E
entendeu por conhecimento abstratívo o que prescinde da realidade ou da irrealidade do objeto e é uma
espécie de imagem ou cópia do conhecimento intuitivo. Nada se pode conhecer abstrativa-mente, diz ele,
que não tenha sido conhecido intuitivamente, senão até mesmo o cego de nas-cença poderia conhecer as
cores {Ibid., I, d. 3, q. 2, K). Essa doutrina do conhecimento intuitivo é a primeira formulação da noção
de experiência no sentido moderno do termo (V. EXPERIÊNCIA). ABSTRATOR. V. OPERADOR.
ABSTRUSO (lat. Abstrusus [= escondido]; in. Abstruse, fr. Abstrus, ai. Abstrus, it. Astrusó). Termo
pejorativo para qualificar qualquer noção insólita ou de difícil compreensão; ou, como diz Locke
{Ensaio, II, 12, § 8), "distante dos sentidos e de toda operação do nosso espírito". Esse termo é aplicado
sobretudo a noções abstratas, mas aplica-se igualmente a noções que se afastem, mais ou menos, do
universo comum do discurso. *
ABSURDO (gr. CXTOTIOV, aôúvatov; lat. Ab-surdum; in. Absurd; fr. Absurde, ai. Absurd; it. Assurdó).
Em geral, aquilo que não encontra lugar no sistema de crenças a que se faz referência ou que se opõe a
alguma dessas crenças. Os homens — e, em especial, os filósofos — sempre usaram muito essa palavra
para condenar, destruir ou pelo menos afastar de si crenças (verdadeiras ou falsas) ou mesmo fatos ou
observações perturbadoras, incômodas ou, de qualquer modo, estranhas ou opostas aos sistemas de
crenças aceitos por eles. Portanto, não é de surpreender que até mesmo experiências ou doutrinas que
depois seriam reconhecidas como verdadeiras tenham sido por muito ou pouco tempo definidas como
absurdas. P. ex.: os antigos reputavam A. a crença nos antípodas porque, não tendo a noção da
relatividade das determinações espaciais, acreditavam que nos antípodas os homens deveriam viver de
cabeça para baixo. Nesse sentido, a palavra significa "irracional", isto é, contrário ou estranho àquilo em
que se pode crer racionalmente, ou "inconveniente", "fora de lugar", etc.
Em sentido mais restrito e preciso, essa palavra significa "impossível" {adynatori) porque contraditório.
Nesse sentido, Aristóteles falava de raciocínio por A. ou de redução ao A.: seria um raciocínio que assume
como hipótese a proposição contrária à condição que se quer demonstrar e faz ver que de tal hipótese
deriva uma proposição contraditória à própria hipótese {An. pr., II, 11-14, 6l ss.). A demonstração por A.,
acrescenta Aristóteles {ibid., 14, 62 b 27), distingue-se da demonstração ostensiva porque assume aquilo
que, com a redução ao erro reconhecido, quer destruir; a demonstração ostensiva, ao contrário, parte de
premissas já admitidas. Leibniz chamou de demonstração apagógica o raciocínio por A. e considerou-o
útil ou pelo menos dificilmente eliminavel, no domínio da matemática {Nouv. ess., IV, 8, § 2). Kant, que
emprega o mesmo nome, justificou-o nas ciências, mas o excluiu da filosofia. Justificou-o nas ciências
porque nestas é impossível o modusponens de chegar à verdade de um conhecimento a partir da verdade
das suas conseqüências: seria necessário, de fato, conhecer todas as conseqüências possíveis: o que é
impossível. Mas, se de uma proposição pode ser extraída ainda que uma só conseqüência falsa, a
proposição é falsa: por isso o modus tollens dos silogismos conclui ao mesmo tempo com rigor e com
facilidade. Mas esse modo de raciocinar é isento de perigos só nas ciências em que não se pode trocar
objetivo por subjetivo, isto é, nas ciências da natureza. Em filosofia, porém, essa troca é possível, isto é,
pode acontecer que seja subjetivamente impossível o que não é objetivamente impossível. Portanto, o
raciocínio apagógico não leva a conclusões legítimas {Crít. R. Pura, Disciplina da razão pura, IV).
AB UNIVERSALI AD PARTICUIAREM. É uma das consequentiaeformalesiy. CONSEQÜÊNCIA) da
Lógica escolástica: ab universali ad par-ticularem, sive indefinitam sive singularem valet {tenei)
consequentia; isto é: de "todo A é B" valem as conseqüências "alguns A são B", "A é B", "S (se S é um A)
é B".
ACADEMIA (gr. 'AicccôrjuEtcc; lat. Academia; in. Academy, fr. Académie, ai. Akademie, it.
Accademid). Propriamente a escola fundada por Platão no ginásio que tomava o nome do herói Academos
e que depois da morte de Platão foi dirigida por Espeusipo (347-339 a.C), por Xenócrates (339-14 a. C.),
por Pole-mon (314-270 a. C.) e por Cratete (270-68 a.C).
ACADEMIA FLORENTINA
8
AÇÃO
Nessa fase, a Academia continuou a especulação platônica, vinculando-a sempre mais estreitamente
aopitagorismo; pertenceram a ela matemáticos e astrônomos, entre os quais o mais famoso foi Eudoxo de
Cnido. Com a morte de Cratete, a Academia mudou de orientação com Arcesilau de Pitane (315 ou 314-
241 ou 240 a.C), encaminhando-se para um probabilismo que derivava da época em que Platão afirmara,
sobre o conhecimento das coisas naturais, que estas, não tendo nenhuma estabilidade e solidez, não
podem dar origem a um conhecimento estável e sólido, mas só a um conhecimento provável. De
Arcesilau e de seus sucessores vde que não sabemos quase nada) esse ponto de vista estendeu-se a todo o
conhecimento humano no período que se chamou de "Academia média". A "nova Academia" começa com
Carnéades de Cirene (214 ou 212-129 ou 128 a.C); essa orientação de tendência cética e probabilística foi
mantida até Fílon de Larissa, que, no século I a.C, iniciou a IV Academia, de orientação eclética, na qual
Cícero se inspirou. Mas a Academia Platônica durou ainda por muito tempo e sua orientação também se
renovou no sentido religioso-místico, que é próprio do Neoplatonismo (v.). Só em 529 o imperador
Justiniano proibiu o ensino da filosofia e confiscou o rico patrimônio da Academia. Da-máscio, que a
dirigia, refugiou-se na Pérsia com outros companheiros, entre os quais Sim-plício, autor de um vasto
comentário a Aristóteles, mas logo voltaram desiludidos. Foi assim que terminou a tradição independente
do pensamento platônico.
ACADEMIA FLORENTINA. Foi fundada por iniciativa de Marsílio Ficino e de Cosimo de Mediei e
reuniu um círculo de pessoas que viam a possibilidade de renovar o homem e a sua vida religiosa
mediante um retorno às doutrinas genuínas do platonismo antigo. Nessas doutrinas, os adeptos do
platonismo, especialmente Ficino (1433-1499) e Cristóvão Lan-dino (que viveu entre 1424 e 1498), viam
a síntese de todo o pensamento religioso da Antigüidade e, portanto, também do cristianismo e por isso a
mais alta e verdadeira religião possível. A esse retorno ao antigo ligou-se outro aspecto da Academia
florentina, o anticuria-lismo; contra as pretensões de supremacia política do papado, a Academia
sustentava um retorno à idéia imperial de Roma; por isso, De monarchiade Dante (V. RENASCIMENTO) era
objeto freqüente de comentários e discussões.
AÇÃO (gr. 7tpá^iÇ; lat. Actio, in. Action; fr. Action; ai. Tat, Handlung; it. Azioné). 1. Termo de
significado generalíssimo que denota qualquer operação, considerada sob o aspecto do termo a partir do
qual a operação tem início ou iniciativa. Nesse significado, a extensão do termo é coberta pela categoria
aristotélica do fazer (TtotEív), cujo oposto é a categoria da paixão (v.) ou da afeição (v.). Fala-se, assim,
da A. do ácido sobre os metais ou do "princípio de A. e de reação" ou da A. do DDT sobre os insetos; ou
então fala-se da A. livre ou voluntária ou responsável, isto é, própria do homem e qualificada por
condições determinadas. Produzir, causar, agir, criar, destruir, iniciar, continuar,termi-nar, etc. são
significados que inscrevem-se nesse significado genérico de ação.
2. Aristóteles foi o primeiro a tentar destacar desse significado genérico um significado específico pelo
qual o termo pudesse referir-se somente às operações humanas. Assim, começou excluindo da extensão
da palavra as operações que se realizam de modo, necessário, isto é, de um modo que não pode Ser
diferente do que é. Tais operações são objeto das ciências teo-réticas, matemática, física e filosofia pura.
Essas ciências referem-se a realidades, fatos ou eventos que não podem ser diferentes do que são. Fora
delas está o domínio do possível, isto é, do que pode ser de um modo ou de outro; mas nem todo o
domínio do possível pertence à ação. Dele é preciso, com efeito, distinguir o da produção, que é o
domínio das artes e que tem caráter próprio e finalidade nos objetos produzidos {Et. nic, VI, 3-4, 1.149
ss.). S. Tomás distingue A. transitiva {transiens), que passa de quem opera sobre a matéria externa, como
queimar, serrar, etc, e A. imanente (imma-nens), que permanece no próprio agente, como sentir, entender,
querer {S. Th., II, I, q. 3, a 2; q. 111, a. 2). Mas a chamada A. transitiva nada mais é do que o fazer ou
produzir, de que fala Aristóteles {ibid., II, I, q. 57, a. 4). Nessas observações de S. Tomás, assim como nas
de Aristóteles, está presente a tendência a reconhecer a superioridade da A. chamada imanente, que se
consuma no interior do sujeito operante: A. que, de resto, outra coisa não é senão a atividade espiritual ou
o pensamento ou a vida contemplativa. S. Tomás diz, com efeito, que só a A. imanente é "a perfeição e o
ato do agente", enquanto a A. transitiva é a perfeição do termo que sofre a A. {ibid., II, I, q. 3, a 2). Por
outro lado, S. Tomás distingue, na A. voluntária, a A.
AÇÃO, FILOSOFIA DA
9
AÇÃO, FILOSOFIA DA
comandada, que é a ordenada pela vontade, p. ex., caminhar ou falar, e a A. elícita da vontade, que é o
próprio querer. O fim último da A. não é o ato elícito da vontade, mas o comandado: já que o primeiro
apetecível é o fim a que tende a vontade, não a própria vontade (ibid., II, I, q. 1, a. 1 ad 2
a
). Esses
conceitos permaneceram durante muito tempo inalterados e são pressupostos também pela chamada
filosofia da A. (v.); esta, se tende a exaltar a A. como um caminho para entrar em comunicação mais direta
com a realidade ou o Absoluto, ou na posse mais segura destes, não se preocupa muito em fornecer um
esquema conceituai da A. que lhe determine as constantes. Essa tentativa, porém, foi feita por ciências
particulares, em vista das suas exigências, especialmente pela sociologia. Assim, p. ex., Talcott Parsons
determinou o esquema da ação. Esta implicaria: l9
um agente ou um ator; 2e
um fim ou estado futuro de
coisas em relação ao qual se orienta o processo da A.; 3S
uma situação inicial que difira em um ou mais
importantes aspectos do fim a que tende a A.; 4Q
certo complexo de relações recíprocas entre os
elementos precedentes. "Dentro da área de controle do ator", diz Parsons, "os meios empregados não
podem, em geral, ser considerados como escolhidos ao acaso ou dependentes exclusivamente das
condições da A., mas devem de algum modo estar sujeitos à influência de determinado fator seletivo
independente, cujo conhecimento é necessário à compreensão do andamento concreto da A.". Esse fator é
a orientação normativa que, embora possa ser diferentemente orientada, não falta em nenhum tipo de A.
efetiva {The Structure of Social Action, 1949, pp. 44-45). Esse esquema analítico proposto por Parsons
sem dúvida corresponde muito bem às exigências da análise sociológica; mas pode ser assumido também
em filosofia como base para a compreensão da A. nos vários campos de que a filosofia se ocupa, isto é,
no campo moral, jurídico, político, etc.
AÇÃO, FILOSOFIA DA (in. Philosophy of Action; fr. Philosophie de Vaction; it. Filosofia delVazione).
Com esse nome indicam-se algumas manifestações da filosofia contemporânea, caracterizadas pela
crença de que a A. constitui o caminho mais direto para conhecer o Absoluto ou o modo mais seguro de
possuí-lo. Trata-se de uma filosofia de origem romântica: o moralismo de Fichte fundava-se na
superioridade metafísica da A. (V. MORALISMO). O primado da razão prática, de que Kant falara, não tinha significado fora do domínio moral; mas com Fichte esse
primado significa que só na A. o homem se identifica com o Eu infinito. O símbolo da filosofia da A.
pode ser expresso na frase de Fausto, na obra de Goethe, que propunha traduzir In principio erat Verbum
do IV Evangelho por "No princípio era a A.".
Foi com esses pressupostos românticos que a filosofia da A. se vinculou; na França, através de OlléLaprune (1830-99) e de Blondel (1861-1949), assumiu forma religiosa: para ela a A. é o núcleo essencial
do homem e só uma análise da A. pode mostrar as necessidades e as deficiências do homem, assim como
sua aspiração ao infinito, que, por sua vez, só pode ser satisfeita pela A. gratuita e misericordiosa de
Deus. A supremacia da A. era transferida por George Sorel (1847-1922) do domínio religioso para o
social e político. Aqui a ação se desembaraçava de toda limitação factual ou racional e era reconhecida
como capaz de criar por si, com o mito, a sua própria justificação {Rêflexions sur Ia violence, 1906). A
crença de que a A. possa produzir por si só as condições do seu êxito e por si só justificar-se de modo
absoluto, constitui o ativismo (v.) próprio de algumas correntes filosóficas e políticas contemporâneas.
Por uma das não raras ironias da história do pensamento, justamente uma das correntes que pertencem à
filosofia da A. deveria levar a noção de A. até seus limites máximos e encaminhá-la para uma nova fase
interpretativa. Essa corrente é o pragmatismo (v.). Se, num primeiro momento, William James declara que
a A. é a medida da verdade do conhecer e, portanto, considera-a capaz de justificar proposições morais e
religiosas teoricamente injustificáveis, as análises empiristas de James e, melhor ainda, as de Dewey
deveriam evidenciar o condicionamento da A. por parte das circunstâncias que a provocam, sua relação
com a situação que constitui seu estímulo e, daí, os limites da sua eficiência e da sua liberdade. Mas,
desse ponto de vista, a A. deixa de estar ligada unicamente ao sujeito e de encontrar unicamente nele ou
na atividade dele (vontade) o seu princípio. Perde a possibilidade de consumar-se e de exaurir-se no
próprio sujeito; e torna-se um comportamento, cuja análise deve prescindir da divisão das faculdades ou
dos poderes da alma, enquanto deve ter presente a situação ou o estado de coisas a que deve adequar-se
(V. AÇÃO; COMPORTAMENTO).
AÇÃO ELÍCITA e AÇÃO COMANDADA 10 AÇÃO
REFLEXA
AÇÃO ELÍCITA e AÇÃO COMANDADA
(lat. Actus elicitus et actus imperatus). Segundo os Escolásticos, a A. voluntária elícita é a própria
operação da vontade, o querer, enquanto a A. comandada é dirigida, iniciada e controlada pela vontade,
como, p. ex., caminhar ou falar (S. TOMÁS, S. Th., II, I, q, 1, a, 1).
AÇÃO MÍNIMA (in. Least action; fr. Moin-dre action; ai. Kleinsten Aktion; it. Azione mínima).
Princípio de que "a natureza nada faz de inútil" inatura nihilfacitfrustra) e segue o caminho mais curto e
econômico. Essa máxima encontra-se em Aristóteles (Dean., III, 12, 434 a 31; Decael, I, 4, 271 a 32;
Depart. an., I, 5, 645 a 22), é repetida por S. Tomás (7n IIIAn., 14) e retomada nos tempos modernos por
Galileu, Fermat, Leibniz, etc. Em 1732, Maupertuis formulava matematicamente esse princípio e o
introduzia em mecânica com o nome de "lei de economia da natureza" (LexParsimoniaè). Mas também
para Maupertuis esse princípio conservava o caráter finalista que convencera Aristóteles a adotá-lo. No
Ensaio de cosmologia, Maupertuis escrevia: "É este o princípio, tão sábio, tão digno do Ser supremo:
qualquer que seja a mudança que se realize na natureza, a soma de A. despendida nessa mudança é a
menor possível". Todavia o princípio não tem, em mecânica, o significado finalista que lhe atribuía
Maupertuis. Na reexposição que dele fez La-grange iMécanique analytique, II, 3, 6), ficou claro que ele
exprime a conservação não só do mínimo como também do máximo de A. e que, além disso, tanto o
mínimo quanto o máximo devem ser considerados de modo relativo e não absoluto. Desse ponto de vista,
Hamilton generalizava o princípio na forma de "princípio da A. estacionaria": e, nessa forma, diz somente
que, em certas classes de fenômenos naturais, o processo de mudança é tal que qualquer grandeza física
apropriada é um extremo (isto é, um mínimo ou um máximo, mais freqüentemente um mínimo). Mas a
grandeza em questão e o seu mínimo ou máximo são coisas que podem mudar de uma ordem de
considerações para outra.
Sobre princípio da mínima ação já se falou em psicologia, em estética e até na ética (cf. JAMES, Princ.
ofPsychol, II, pp. 188, 239 ss.; SIMMEL, Einleitung in die Moral Wissenschaft, 1892,1, p. 58). Não deve
ser confundido com o princípio metodológico da economia, que não diz respeito à ação da natureza ou de
Deus,
mas à escolha dos conceitos e das hipóteses para a descrição dos fenômenos naturais (v. ECONOMIA).
AÇÃO RECÍPROCA. V. RECIPROCIDADE.
AÇÃO REFLEXA (in. Reflex action; fr. Action réflexe, ai. Reflex Bewegung, it. Azione riflessa). Em
geral, uma resposta mecânica (involuntária), uniforme e adaptada, do organismo a um estímulo externo
ou interno ao próprio organismo. Um reflexo é, p. ex., a contração da pupila quando o olho é estimulado
pela luz ou a salivação pelo gosto ou pela vista de um alimento. Do reflexo assim entendido deve
distinguir-se o arco reflexo, que é o dispositivo anatomofisiológico destinado a pôr o reflexo em ação. Tal
dispositivo é formado pelo nervo aferente ou centrípeto que sofre o estímulo, pelo nervo eferente ou
centrífugo que produz o movimento e por uma conexão entre esses dois nervos, estabelecida nas células
nervosas centrais. A importância filosófica dessa noção, elaborada primeiramente pela fi-siologia (séc.
XVIII), depois pela psicologia, está no fato de ter sido assumida como esquema explicativo causai da vida
psíquica; inicialmente, apenas dos mecanismos involuntários (instintos, emoções, etc), depois, também
das atividades superiores. Tudo o que, da vida psíquica, pode ser reportado à A. reflexa, pode ser
explicado causalmente a partir do estímulo físico que põe em movimento o arco reflexo. Em vista de sua
uniformidade, essa A. é previsível a partir do estímulo: isso quer dizer que ela é causalmente determinada
pelo próprio estímulo. Desse modo, a A. reflexa não é senão o mecanismo pelo qual a causalidade
psíquica se insere na causalidade da natureza, como parte dela.
Essas noções foram sendo elaboradas a partir da metade do séc. XIX, isto é, desde que a psicologia «$e
constituiu como ciência experimental (V. PSICOLOGIA). De acordo com a orientação atomista, própria da
psicologia durante muito tempo, ela procurou resolver os reflexos complexos em reflexos simples,
dependentes de circuitos nervosos elementares. A doutrina dos reflexos condicionados, fundada por Pavlov em bases experimentais (a partir de 1903; cf. os escritos de Pavlov recolhidos no volume / riflessi
condizionati, Turim, 1950), obedece à mesma exigência e, aliás, contribuiu para reforçá-la durante algum
tempo, fazendo nascer a esperança de que os comportamentos su-
AÇÃO REFLEXA
11
ACASO
periores também pudessem ser explicados pela combinação de mecanismos reflexos simples. Um reflexo
condicionado é aquele em que a função excitadora do estímulo que habitualmente o produz (estímulo
incondicionado) é assumida por um estímulo artificial (condicionado) ao qual o primeiro foi de algum
modo associado. P. ex., se se apresenta um pedaço de carne a um cão, esse estímulo provoca nele
salivação abundante. Se a apresentação do pedaço de carne foi muitas vezes associada com outro estímulo
artificial (p. ex., o som de uma campainha ou o aparecimento de uma luz), este segundo estímulo acabará
por produzir, sozinho, o efeito do primeiro, isto é, a salivação do cão. É claro que a combinação e a
sobreposição dos reflexos condicionados podem explicar numerosos comportamentos que, à primeira
vista, não estão ligados a reflexos naturais ou absolutos. Mais recentemente, viu-se também no reflexo
condicionado a explicação do chamado comportamento simbólico do homem, isto é, do comportamento
dirigido por signos ou símbolos, lingüísticos ou de outra natureza. P. ex., o viajante que encontra na
estrada um cartaz advertindo que a estrada está interrompida adiante, reage (p. ex., voltando) exatamente
como se houvesse visto a interrupção da estrada. Aqui Q símbolo (o cartaz) substituiu, como estímulo
artificial, o estímulo natural (a vista da interrupção). Pavlov e muitos defensores da teoria dos reflexos
condicionados mantiveram-se fiéis ao princípio de que todo reflexo que entra na composição de um
reflexo condicionado é um mecanismo simples e infalível, realizado por determinado circuito anatômico.
Por isso, a teoria do reflexo condicionado, na forma exposta por Pavlov, inscreve-se nos limites daquilo
que hoje se costuma chamar "teoria clássica do ato reflexo", isto é, da interpretação causai da A. reflexa.
Todavia, um respeitável complexo de observações experimentais, feitas pela fisiologia e pela psicologia
nos últimos decênios, a partir de 1920, aproximadamente, foi tornando cada vez mais difícil entender a A.
reflexa segundo seu esquema clássico. Em primeiro lugar, viu-se que a A. dos estímulos complexos não é
previsível a partir da A. dos estímulos simples que o compõem, ou seja, os chamados reflexos simples
combinam-se de modos imprevisíveis. Em segundo lugar, o próprio conceito de "reflexo elementar", isto
é, do reflexo que entraria na composição dos reflexos complexos, foi julgado ilegítimo: e, com efeito, todos os reflexos observáveis são complexos e um reflexo "simples", isto é,
não decomponível, é uma simples conjectura. Em terceiro lugar, as mesmas reflexões sobre os reflexos
condicionados demonstram a irregularidade e a imprevisibilidade de certas respostas: irregularidade e
imprevisibilidade que Pavlov explicava com a noção de ini-bição, que, porém, é somente um nome para
indicar o fato de que certa reação, que se esperava, não se verificou (GOLDSTEIN, DerAufbau des
Organismus, 1927; MERLEAU-PONTY, Struc-ture du comportement, 1949). Essas e outras ordens de
observação, apresentadas sobretudo pela psicologia da forma (cf., p. ex., KATZ, Gestaltpsychologie, cap.
III), mostram que o reflexo não pode ser entendido como uma A. devida a um mecanismo causai. Fala-se
de reflexo sempre que se pode determinar, em face de certo estímulo, um campo de reações
suficientemente uniformes para serem previstas com alto grau de probabilidade. As A. reflexas
constituem, desse ponto de vista, uma classe de reação, mais precisamente a que se caracteriza pela alta
freqüência de uniformidade das próprias reações. Mas com isso a noção de reflexo sai do esquema causai
para entrar no esquema geral de condicionamento (V. CONDIÇÃO).
ACASO (gr. at>TÓ|i.aTOV; lat. Casus-, in. Chance, fr. Hasard; ai. Zufall; it. Caso). Podem-se distinguir
três conceitos desse termo que se entrecruzaram na história da filosofia. ls
o conceito subjetivista, que
atribui a imprevisibilidade e a indeterminação do evento casual à ignorância ou à confusão do homem. 2r
o conceito objetivista, que atribui o evento casual à mistura e à interseção das causas. 3Q
a interpretação
moderna, segundo a qual o acaso é a insuficiência de probabilidades na previsão. Este último conceito é o
mais geral e o menos metafísico.
I
a
Aristóteles (Fís., II, 4, 196 b 5) já falava da opinião segundo a qual a sorte seria uma causa superior e
divina, oculta para a inteligência humana. Os Estóicos equiparavam o A. ao erro ou à ilusão; julgavam
que tudo acontece no mundo por absoluta necessidade racional {Plac. philos., I, 29). É claro que quem
admite uma necessidade desse gênero e a atribui (como achavam os Estóicos) à divindade ima-nente no
cosmos ou à ordem mecânica do universo não pode admitir a realidade dos eventos que costumam ser
chamados de acidentais ou
ACASO
12
ACASO
fortuitos e muito menos do acaso como princípio ou categoria de tais eventos; deve ver neles a ação
necessária da causa reconhecida em ato no universo, negando como ilusão ou erro o seu caráter casual. É
esse o motivo por que Kant, que modela as suas categorias e os seus princípios a priori sobre a física
newtoniana, inteiramente fundada no princípio de causalidade, nega a existência do A., e faz, aliás, dessa
negação um dos princípios a priori do intelecto: "A proposição 'nada ocorre por A. {in mundo non
daturcasus)' é uma lei a priori da natureza" {Crít. R. Pura, Analítica dos princípios, Refutação do
idealismo). Hegel, que parte do princípio da perfeita racionalidade do real, ?tri-bui o A. à natureza, ou
melhor, vê na natureza "uma acidentalidade desregulada e desenfreada" {Ene, § 248), mas na medida em
que a natureza não está adequada à substância racional do real e, por isso, carece ela própria de realidade.
De modo análogo, na filosofia contemporânea, Bergson explicou o A. pela troca, meramente subjetiva,
entre a ordem mecânica e a ordem vital ou espiritual: "Que a mecânica das causas que fazem a roleta
parar sobre o número me permita vencer e, por isso, aja como um gênio benéfico para quem os meus
interesses tivessem grande importância; ou que a força mecânica do vento arranque uma telha do teto e a
arroje sobre a minha cabeça, isto é, que aja como um gênio maléfico que conspirasse contra a minha
pessoa; em ambos os A. eu encontro um mecanismo onde eu teria procurado e onde deveria encontrar, ao
que parece, uma intenção: é isso que se exprime quando se fala de A." (Évol. créatr., 8
a
ed., 1911, p. 254).
2? Por outro lado, segundo a interpretação objetivista, o A. não é um fenômeno subjetivo, mas objetivo, e
consiste no entrecruzar-se de duas ou mais ordens ou séries r1
!. ersas de causas. A mais antiga das
interpretações desse tipo é a de Aristóteles. Aristóteles começa notando que o A. não se verifica nem nas
coisas que acontecem sempre do mesmo modo, nem nas que acontecem quase sempre do mesmo modo,
mas entre as que ocorrem por exceção e sem qualquer uniformidade (Fís., II, 5, 196 b 10 ss.). Desse
modo, ele atribui corretamente o A. à esfera do imprevisível, isto é, do que acontece fora do necessário
("o que acontece sempre do mesmo modo") e do uniforme ("o que acontece quase sempre do mesmo
modo"). Assim sendo, o A. (ou a sorte) é definido por Aristóteles como "uma causa acidental no âmbito das coisas que não acontecem nem de modo absolutamente uniforme nem freqüente e que poderiam
acontecer com vistas a uma finalidade" {ibid., 197 a 32). Para Aristóteles, a determinação da finalidade é
essencial, já que o A. tem ao menos o aspecto ou a aparência da finalidade: como no exemplo de quem
vai ao mercado por motivo completamente diferente e ali encontra um devedor que lhe restitui a soma
devida. Nesse exemplo chama-se A. (ou sorte) o evento da restituição devido ao encontro que não foi
deliberado ou desejado como finalidade, mas que teria podido ser uma finalidade: enquanto, na realidade,
foi o efeito acidental de causas que agiam com vistas a outras finalidades. A noção de encontro, de enredamento de séries causais para a explicação do A., foi retomada na Idade Moderna por filósofos,
matemáticos e economistas, que reconheceram a importância da noção de probabilidade (v.) para a
interpretação da realidade em geral. Assim, Cournot definiu o A. como o caráter de um acontecimento,
"devido à combinação ou ao encontro de fenômenos independentes na ordem da causalidade" {Théorie
des chances et des probabilités, 1843, cap. II), noção que se tornou predominante no positivismo, também
porque foi aceita por Stuart Mill {Logic, III, 17, § 2): "Um evento que aconteça por A. pode ser mais bem
descrito como uma coincidência da qual não temos motivo para inferir uniformidade... Podemos dizer que
dois ou mais fenômenos são reunidos ao A. ou que coexistem ou se sucedem por A., no sentido de não
serem, de modo algum, vinculados pela causação; que não são nem a causa ou o efeito um do outro, nem
efeitos da mesma causa ou de causas entre as quais subsista uma lei de coincidência, nem efeitos da
mesma colocação de causas primárias". De modo semelhante, Ardigò {Opere, III, p. 122) relaciona o A.
com a pluralidade e o entrelaçamento de séries causais distintas. Essa noção, todavia, é objetiva só entre
certos limites, ou melhor, só na aparência. Dizer que o A. consiste no encontro de duas séries causais
diferentes significa que ele é um acontecimento causalmente determinado como todos os outros, mas só
mais difícil de ser previsto porque a sua ocorrência não depende do curso de uma série causai única.
Segundo essa noção, a determinação causai do A. é mais complexa, mas não menos necessitante; a
imprevisibilidade, característica fundamental do A., deve-se tão-somente a tal complexidade
ACATALEPSIA
13
ACIDENTE
e não é de natureza objetiva. Para que seja de natureza objetiva, tal imprevisibilidade deve ser realmente
devida a uma indeterminação efetiva inerente ao funcionamento da própria causalidade.
3
Q
Essa última alternativa constitui um terceiro conceito do A., conceito que se pode fazer remontar a
Hume. Parece que Hume quer reduzir o acaso a um fenômeno puramente subjetivo, pois diz: "Embora
não haja no mundo alguma coisa como o A., a nossa ignorância da causa real de cada acontecimento
exerce a mesma influência sobre o intelecto e gera semelhante espécie de crença ou de opinião". Mas, na
realidade, se não existe "A." como noção ou categoria em si, tampouco existe a "causa" no sentido
necessário e absoluto do termo; existe somente a "probabilidade". E é na probabilidade que está fundado
o que chamamos A.: "Parece evidente que, quando a mente procura prever para descobrir o
acontecimento que pode resultar do lançamento do dado, considera-se o aparecimento de cada lado como
igualmente provável; e essa é a verdadeira natureza do A.: de igualar inteiramente todos os eventos
individuais que compreende" (Jnq. Cone. Un-derst., VI). Essa idéia de Hume deveria revelar-se
extremamente fecunda na filosofia contemporânea. O conceito, de que o A. consiste na equivalência de
probabilidades que não dão acesso a uma previsão positiva em um sentido ou em outro foi enfatizado por
Peirce, que também viu sua implicação filosófica fundamental: a eliminação do "necessitarismo", isto é,
da doutrina segundo a qual tudo no mundo acontece por necessidade {Chance, Love and Logic, II, 2; trad.
it., p. 128 ss.). Desse ponto de vista, o A. torna-se um exemplo particular do juízo de probabilidade, mais
precisamente, de que a própria probabilidade não tem relevância suficiente para permitir prever um
evento. Nesse sentido, o A. foi considerado uma espécie de entropia (v.) e o conceito relativo comumente
é empregado no campo da informação e da cibernética (v.).
ACATALEPSIA (gr. àKOCT(XAT|V|/ía; in. Aca-talepsy, fr. Acatalepsie, ai. Akatalepsie, it. Acatalessia). É a negação feita por Pirro e pelos outros céticos antigos da representação compreensiva
(qxxvTacía Kata?ir|7i-aKií), isto é, do conhecimento que permite compreender e apreender o objeto, que,
segundo os Estóicos, era o verdadeiro conhecimento. A acatalepsia é a atitude de quem declara não
compreender e,
portanto, suspende o seu assentimento, isto é, não afirma nem nega (SEXTO EMPÍRICO, Pirr. hyp., I, 25).
ACCIDENTIS FALIACIA. A falácia (v.) já é identificada por Aristóteles (El. sof, 5, 166 b) como
derivada da identificação de uma coisa com um seu acidente ou atributo acidental ("Se Corisco é diferente
de Sócrates, e Sócrates é homem, Corisco é diferente de um homem"). Cf. PEDRO HISPANO, Sumtn. log.,
7, 40 ss. G. P.
ACENTO (gr. Tipocioôía; lat. Accentus-, in. Accent; fr. Accent; ai. Prosodie, it. Accentó). Segundo
Aristóteles (Sof. ei, 4, 166 b), seguido pelos lógicos medievais (cf. PEDRO HISPANO, Sumtn. log., 7, 31),
da acentuação diferente das palavras pode derivar, em enunciados escritos, uma equivocidade que pode
causar paralo-gismos. G. P.
ACIDENTE (gr. cru(i(íefÍTiKÓÇ; lat. Accidens; in. Accident; fr. Accident; ai. Accidenz; it. Ac-cidentè).
Podem-se distinguir três significados fundamentais desse termo, quais sejam:
l
s
uma determinação ou qualidade casual ou fortuita que pode pertencer ou não a determinado sujeito,
sendo completamente estranha à essência necessária (ou substância) deste;
2
Q
uma determinação ou qualidade que, embora não pertencendo à essência necessária (ou substância) de
determinado sujeito e estando, portanto, fora de sua definição, está vinculada à sua essência e deriva
necessariamente da sua definição;
3
Q
uma determinação ou qualidade qualquer de um sujeito, que pertença ou não à sua essência necessária.
Os dois primeiros significados do termo foram elaborados por Aristóteles. "Acidente", diz ele (Top., I, 5,
102 b 3), "não é nem a definição nem o caráter nem o gênero, mas, apesar disso, pertence ao objeto; ou
também, é o que pode pertencer e não pertencer a um só e mesmo objeto, qualquer que seja ele." Como
essa definição exprime a essência necessária de uma realidade, isto é, a substância (v. DEFINIÇÃO), o
acidente está fora da essência necessária e, portanto, pode pertencer ou não ao objeto a que se refere.
Todavia, o acidente pode ter uma relação mais ou menos estreita com o objeto a que se refere, conforme a
causa dessa relação; por isso, Aristóteles distingue dois significados, ambos empregados no Organon e A
metafísica: \° o acidente pode ser casual na medida em que a sua causa é indeterminada: p. ex., um
músico pode ser branco, mas como
ACIDENTE
14
ACIDENTE
isso não acontece por necessidade ou na maior parte dos casos, ser branco, para um músico, será um
"acidente". Da mesma forma, para alguém que cave um buraco a fim de colocar uma planta, encontrar
um tesouro é acidental, já que a encontrar um tesouro não se segue necessariamente o ato de cavar um
buraco, nem acontece habitualmente em semelhante circunstância. Nesse significado (Met, V, 30,1.025 a
14), portanto, acidente é tudo o que acontece por acaso, isto é, pela inter-relação e o entrelaçamento de
várias causas, mas sem uma causa determinada que assegure a sua ocorrência constante ou, pelo menos,
relativamente freqüente. Mas há, também: 2a
o acidente não casual, ou acidente por si, isto é, aquele
caráter que, embora não pertença à substância, estando, pois, fora da definição, pertence ao objeto em
virtude daquilo que o próprio objeto é. P. ex., ter ângulos internos iguais a dois retos não pertence à
essência necessária do triângulo, tal qual é expressa pela definição; por isso, é um acidente. Mas é um
acidente que pertence ao triângulo por acaso, isto é, por uma causa indeterminável, mas por causa do
próprio triângulo, quer dizer, por aquilo que o triângulo é; e é por isso um acidente eterno (Met., V,
30,1.025 a 31 ss.). Aristóteles ilustra a diferença do seguinte modo (An.post., 4, 73 b 12 ss.): "Se
relampeja enquanto alguém caminha, isso é um acidente, já que o relâmpago não é causada pelo
caminhar... Se, porém, um animal morre degolado, em virtude de um ferimento, diremos que ele morreu
porque foi degolado, e não que lhe ocorreu, acidentalmente, morrer degolado". Em outros termos, o
acidente por si está vinculado causalmente (e não casualmente) às determinações necessárias da
substância, embora não faça parte delas. E embora não haja ciência do acidente casual, porque a ciência
é só do que é sempre ou habitualmente (Met, X, 8, 1.065 a 4) e porque ela investiga a causa, ao passo que
a causa do acidente é indefinida (Fís., II, 4,196 b 28), o acidente por si entra no âmbito da ciência, como
é indicado pelo próprio exemplo geométrico de que se valeu Aristóteles em Met., V, 30, e em numerosos
textos dos Tópicos.
Com esse segundo significado aristotélico da palavra pode-se relacionar o terceiro significado, segundo
o qual ela designa, em geral, as qualidades ou os caracteres de uma realidade (substância) que não
podem ficar sem ela, porque o seu modo de ser é o de "inerir" (inessé) à
própria realidade. Talvez esse uso tenha sido iniciado por Porfírio, que define o acidente (Isag., V, 4 a,
24): "O que pode ser gerado ou desaparecer sem que o sujeito seja destruído". Essa definição,
obviamente, refere-se à definição aristotélica do acidente como "o que pode pertencer e não pertencer a
um só e mesmo objeto". S. Tomás anota corretamente (Met., V, 1.143) que, no segundo dos dois
significados aristotélicos, o acidente se contrapõe à substância. Em virtude dessa contraposição, o
acidente é "o que está em outra coisa" (S. Th., III, q. 77, a. 2 ad I
a
), isto é, em um sujeito ou substrato sem
o qual ele, no curso ordinário da natureza (isto é, prescindindo da ordem da graça que se manifesta no
sacramento do altar) não pode subsistir (ibid., III, q. 76, a. 1 ad\°). Nesse significado, em que o acidente
se contrapõe à substância, porquanto o seu modo de ser é inerir (inessé) a algum sujeito, em oposição ao
subsistir da substância que não tem necessidade de apoiar-se em outra coisa para existir, o termo acidente
torna-se coextensivo ao de qualidade em geral, sem referência a seu caráter casual e gratuito, que
Aristóteles tinha ilustrado. A terminologia dos escolásticos adere habitualmente a este último significado,
que destes passa para os escritores modernos, na medida em que se valem da linguagem escolástica.
Todavia, mais próxima da definição aristotélica que do uso escolástico encontra-se a definição de Stuart
Mill, para quem os acidentes são todos os atributos de uma coisa que não estão compreendidos no
significado do nome e não têm vínculo necessário com os atributos indivisíveis dessa mesma coisa
(Logic, I, 7, § 8). Locke e os empiristas ingleses, o mais das vezes, usam no lugar da palavra acidente, a
palavra qualidade (v.). Mas a sua insistência na inseparabilidade das qualidades em relação à substância,
que sem elas se esvai no nada, influi no uso posterior da palavra em questão: uso que tende a reduzir ou a
anular a oposição entre acidente e substância e a considerar os acidentes como a própria manifestação da
substância. Na verdade esse uso também pode ser encontrado em Spinoza, se, porém, se admitir que a
palavra "modo" que ele emprega é sinônimo de acidente; essa sinonímia parece ser sugerida pela
definição que ele dá de "modo" (Et., I, def. 5) como o que está em outra coisa e é concebido por meio
dessa outra coisa. De qualquer forma, a mudança de significado é claramente verificável em Kant e
Hegel. Kant
ACÍDIA
15
ACORDO
diz (Crít. R. Pura, Analítica dos princípios, Primeira Analogia): "As determinações de uma substância,
que não são senão modos especiais do seu existir, chamam-se acidentes. Eles são sempre reais, porque
dizem respeito à existência da substância. Ora, se a esse real que está na substância (p. ex., ao movimento
como acidente da matéria) se atribui uma existência especial, essa existência é chamada de inerência,
para distingui-la da existência da substância, que se chama subsistência". Essa passagem retoma a
terminologia escolástica com um significado totalmente diferente, pois os acidentes são considerados
"modos especiais de existir" da própria substância. Noção análoga encontra-se em Hegel, que diz {Ene, §
151): "A substância é a totalidade dos acidentes nos quais ela se revela como a absoluta negatividade
deles, isto é, como potência absoluta e, ao mesmo tempo, como a riqueza de cada conteúdo". O que
significa que os acidentes, na sua totalidade, são a revelação ou a própria manifestação da substância.
Fichte exprimira, por outro lado, um conceito análogo, afirmando, na esteira de Kant, que "Nenhuma
substância é pensável senão com referência a um A. ... Nenhum A. é pensável sem substância"
(Wissenschaftslehre, 1794, § 4 D, 14). O uso desse termo sofreu, assim, ao longo da sua história, uma
evolução paradoxal: começou significando as qualidades ou determinações menos estreitamente ligadas à
natureza da realidade, ou até mesmo gratuitas ou fortuitas, e acabou por significar todas as determinações
da realidade e, assim, a própria realidade em sua inteireza.
ACÍDIA (lat. Acedia; in. Sloth; fr. Accidie, ai. Acedie, it. Accidid). O tédio ou a náusea no mundo
medieval: o torpor ou a inércia em que caíam os monges que se dedicavam à vida contemplativa.
Segundo S. Tomás, consiste no "entristecimento do bem divino" e é uma espécie de torpor espiritual que
impede de iniciar o bem (S. Tb., II, II, q. 35, a. 1). Com o tédio, a acídia tem em comum o estado que a
condiciona, que não é de necessidade, mas de satisfação (V. TÉDIO).
ACLARAÇÃO (in. Clarification; fr. Éclair-cissement; ai. Klãrung, Erhellung; it. Chiarifi-cazionê). Nó
uso filosófico contemporâneo, esse termo tem um significado específico, porque não significa
genericamente "esclarecimento", mas indica o processo com que se leva à clareza conceituai certo
substrato de consciência ou de experiências vividas. Foi precisamente nesse sentido que Husserl falou de "método da A. (Klãrung)" (Ideen, I, § 67, 125). Husserl insistiu no
fato de que a A. exige que seja levado à evidência o seu substrato (as experiências vividas que a
sustentam) de tal modo que "transforme todo elemento morto em vivo, toda confusão em distinção e todo
elemento não intuível em intuível" (ibid., § 125). Por sua vez, Jaspers usou do termo Erhellung paia
indicar a relação entre existência e razão. A A. é a existência que procura tornar-se evidente para si
mesma e assim aclarar-se como razão. "A A. existencial", diz Jaspers, "não é conhecimento da existência,
mas recorre às suas possibilidades" (Vernunft und Existem, II, 7). Isto significa que "a razão não existe
como pura razão, mas é o fazer-se da existência possível" (ibid., II, 6); e precisamente este fazer-se é a
aclaração.
ACONTECIMENTO (gr. cw|i(Je|}r|KÓ<;; lat. Ac-cidens; in. Occurrence; fr. Événement; ai. Vorfall; it.
Accadimentó). Um fato ou um evento que tem certo caráter acidental ou fortuito ou, pelo menos, do qual
não se pode excluir esse caráter.
A CONTRARIO. Forma de argumentação dialética por analogia: do contrário se conclui o contrário. (Se
a A convém um predicado B, a não-A é provável que convenha um predicado não-B).
G. P.
ACORDO (in. Agreement; fr. Convenance, ai. Übereinstimmung; it. Accordo). Essa noção serviu, na
Idade Moderna, para definir a natureza do juízo ou da proposição em geral. Diz a Lógica de Port-Royal:
"Depois de conceber as coisas através de nossas idéias, comparamos essas idéias entre si; e descobrindo
que algumas estão de acordo entre si e outras não, nós as ligamos ou as desligamos, o que se chama
afirmar ou negar e, geralmente, julgar" (Log, II, 3). Essa noção foi usada no mesmo sentido por Locke,
para definir o conhecimento em geral, entendido como "a percepção do vínculo e do acordo ou desacordo
e da oposição entre as nossas idéias, quaisquer que sejam elas" (Ensaio, IV, 1, § 2). Essa noção foi
criticada por Leibniz: "O acordo ou o desacordo não é propriamente o que é expresso pela proposição.
Dois ovos estão de acordo e dois inimigos estão em desacordo. Trata-se aqui de um modo de acordo ou de
desacordo bastante particular" (Nouv. ess., IV, 5). Spinoza falou de acordo (convenientià) entre a idéia e o
seu objeto. "A idéia verdadeira deve convir com o seu ideado; ou seja, o que objetivamente está contido
no intelecto deve necessariamente ser dado na na-
ACOSMISMO
16
ADEQUAÇÃO
tureza" (Et., I, 30). Mas para esse significado, v. VERDADE.
ACOSMISMO (in. Acosmism- fr. Acosmis-me, ai. Akosmismus, it. Acosmismó). Termo empregado por
Hegel (Ene, § 50) para caracterizar a posição de Spinoza, em oposição à acusação de "ateísmo"
freqüentemente dirigida a este filósofo. Spinoza, segundo Hegel, não confunde Deus com a natureza e
com o mundo finito, considerando o mundo como Deus, mas, antes, nega a realidade do mundo finito
afirmando que Deus, e só Deus, é real. Nesse sentido a sua filosofia não é ateísmo, mas acosmismó, e
Hegel nota, ironicamente, que a acusação contra Spinoza deriva da tendência a crer que se pode mais
facilmente negar Deus do que negar o mundo.
ACRIBIA (gr. cncpífieia). Exatidão ou precisão. No sentido moderno, escrúpulo em seguir as regras
metódicas de qualquer pesquisa científica. No significado platônico, "o exato em si" (cnrtò xccKpifiéç) é
o justo meio (TO néxpiov), isto é, o conveniente, ou o oportuno enquanto objeto de um dos dois ramos
fundamentais da arte da medida, isto é, daquele que propriamente interessa à ética e à política. O outro
ramo da mesma arte é o que, sendo propriamente matemático, concerne ao número, ao comprimento, à
altura, etc. (Pol, 284 d-e)
ACROAMÁT1CO (gr. àKpoa(j.attKÓç; in. Acroamatic, fr. Acroamatique, ai. Akroama-tisch; it.
Acroamaticó). Assim foram chamados, por se destinarem a ouvintes, os textos de Aristóteles que
constituíam lições por ele ministradas no Liceu, para distingui-las das destinadas ao público, das quais
restam apenas fragmentos. Todas as obras aristotélicas que possuímos são acroamáticas, porque os textos
compostos para um público mais vasto, quase todos em forma de diálogo, caíram em desuso quando os
textos de lições, levados a Roma por Sila, foram reorganizados e publicados por Andronico de Rodes em
meados do séc. I a.C. (V. EXOTÉRICO).
ADEQUAÇÃO (lat. Adaequatio; in. Adequa-tion; fr. Adéquation-, ai. Übereinstimmung; it.
Adequazioné). Um dos critérios de verdade, mais precisamente aquele pelo qual um conhecimento é
verdadeiro se está adequado ao objeto, isto é, se se assimila e corresponde a ele de tal modo que
reproduza, o mais possível, a sua natureza. A definição da verdade como "adequação do intelecto e da
coisa" foi dada pela primeira vez pelo filósofo hebraico Isac
Ben.Salomão Israel (que viveu no Egito entre 845 e<J4ó) no seu Liberde definitionibus. Essa definição
foi retomada por S. Tomás que lhe deu uma exposição clássica (S. Th., I, 16, 2; Contra Gent., I, 59; De
ver., q. 1, a. 1). As coisas naturais, cuja ciência o nosso intelecto recebe, são a medida do intelecto, já que
este possui a verdade só na medida em que se conforma às coisas. As próprias coisas são, por sua vez,
medidas pelo intelecto divino, no qual subsistem suas formas tal como as formas das coisas artificiais
subsistem no intelecto do artífice. Deus, portanto, é a verdade suprema porquanto o seu entendimento é a
medida de tudo o que é e de todos os outros entendimentos. A noção de adequação (ou acordo, ou
conformidade, ou correspondência) é pressuposta e empregada por muitas filosofias, mais precisamente
por todas as que consideram o conhecimento como uma relação de identidade ou semelhança (v.
CONHECIMENTO). Locke afirma que "o nosso conhecimento é real só se há conformidade entre as idéias e
a realidade das coisas" (Ensaio, IV, 4, § 3). O próprio Kant declara pressupor "a definição nominal da
verdade como acordo do conhecimento com o seu objeto" e propõe-se o problema ulterior do critério
"geral e seguro para determinar a verdade de cada conhecimento" (Crít. R. Pura, Lógica transe, Intr., III)
e Hegel usa explicitamente a idéia de correspondência (Ene, § 213): "A idéia é a verdade, já que a
verdade é a correspondência entre objetividade e o conceito, mas não que coisas externas correspondam
às minhas representações; estas são apenas representações exatas que eu tenho como indivíduo. Na idéia
não se trata nem disto, nem de representações, nem de coisas externas". Aqui Hegel faz a distinção entre a
exatidão das representações finitas, próprias do indivíduo, enquanto correspondentes a objetos finitos, e a
verdade do conceito infinito, ao qual só pode corresponder a idéia infinita ("O singular por si não
corresponde ao seu conceito: esta limitação da sua existência constitui a finitude e a ruína do singular").
Num e noutro caso, o critério é sempre o da correspondência. Na orientação lingüística da filosofia
analítica contemporânea mantém-se a noção de correspondência como relação de semelhança entre
linguagem e realidade. Wittgenstein, p. ex., diz: "A proposição é a imagem (BilCi) da realidade... A
proposição, se é verdadeira, mostra como estão as coisas" (Tractatus, 4.021, 4.022). A coincidência entre
ADEQUADO
17
ADIVINHAÇÃO
doutrinas tão diferentes sobre essa nt>çãr»dai verdade deve-se à interpretação do <MJI<1« mento como
relação de assimilação (V.ICO NHE^.
CIMENTO; VERDADE).
ADEQUADO (lat. Adaequatus; in. Adequate, fr. Adéquat; ai. Adãquat; it. Adeguadó). Nem sempre o
significado desse adjetivo está vinculado ao significado do substantivo correspondente. Ele pode
significar em geral "co-mensurado a". Nesse sentido dizemos que uma descrição é adequada se não
neglicencia nenhum elemento importante da situação descrita; ou que um pagamento é adequado se é
proporcional à importância da remuneração, etc. Spinoza fez uso constante da noção de idéia adequada,
por ele assim definida {Et., II, def. IV): "Entendo por idéia adequada a que, considerada em si, sem
relação com o objeto, tem todas as propriedades ou as denominações intrínsecas da idéia verdadeira. Digo
intrínsecas para excluir a denominação que é extrínseca, isto é, a correspondência da idéia com o objeto
ideado". Aqui, como se vê, a noção de adequado é admitida de modo completamente independente da
noção de adequação^.). Spinoza nega explicitamente que a idéia verdadeira seja a que corresponde ao
próprio objeto porque nesse caso ela se dis-tinguiria da idéia falsa somente pela denominação extrínseca e
não haveria diferença entre idéia verdadeira e idéia falsa quanto à sua realidade e perfeição intrínsecas
{Et., II, 43, escol.).
AD HOMINEM. Assim foi chamada, na lógica do séc. XVII, a argumentação dialética que consiste em
contrapor ao adversário as conseqüências que resultam das teses menos prováveis concedidas ou
aprovadas por ele (JUNGIUS, Lógica, 1638, V, 1,8; LOCKE, Ensaio, IV, 17, 21, etc).
ADIÂFORA (gr. àSiácpopoc; in., fr., ai., Adia-phora-, it. Adiaforà). Cínicos e estóicos chamaram de
adiáfora, isto é, indiferentes, todas as coisas que não contribuem nem para a virtude nem para a maldade.
P. ex., a riqueza, a saúde podem ser utilizadas tanto para o bem como para o mal; são, portanto,
indiferentes para a felicidade dos homens; não porque deixem os homens indiferentes (na realidade,
suscitam o seu desejo), mas porque a felicidade consiste somente no comportamento racional, isto é, na
virtude (DIÓG. L., VII. 103-104).
Os estóicos distinguiam três significados de indiferença. O primeiro indica aquilo pelo que
ttf¥e ^'nJiMiMfbHBfiTeiulsa, como, p. ex., crfaro de que jjs^xabetos «u as estrelas sejam
a«TflítrrTêro™par. O segundo indica aquilo pelo que se sente excitação ou repulsa, mas não mais por isto
do que por aquilo, como no caso de duas moedas idênticas das quais é preciso escolher uma. No terceiro
sentido, diz-se que é indiferente "o que não contribui nem para a felicidade nem para a infelicidade, como
a saúde e a riqueza ou, em outros termos, aquilo de que se pode fazer bom ou mau uso" {Pirr. hyp., III,
177). Kant usou esse termo para indicar as ações julgadas moralmente indiferentes, isto é, nem boas nem
más {Religion, I, observação e nota relativa) (v. LATITUDINARISMO; RIGORISMO).
ADIAFORÍSTICA, CONTROVÉRSIA (in Adiaphoristic controversy, fr. Controverse adia-phoristique,
ai. Adiaphoristen Streit; it. Controvérsia adiaforisticd). Controvérsia surgida entre os luteranos a respeito
do valor das práticas religiosas (como a Missa, a Extrema-Unção, o Crisma, etc.) que Lutero declarara
"indiferentes" para a salvação e que Melâncton aceitara por espírito de conciliação ou de paz. A
controvérsia concluiu-se com a "fórmula de concórdia", de 1577-80, que reafirmava o caráter indiferente
ou neutro dos ritos e das cerimônias.
ADIÇÃO LÓGICA (in. Logical addition; fr. Addition logique, ai. Logische Addition; it. Ad-dizione
lógica). Na Álgebra da Lógica (v.) dá-se esse nome a operação "« + tí\ que goza de propriedades formais
análogas às da adição aritmética (importantíssima a exceção "a + a = a"). Interpretada como operação
entre classes "a + b", forma a classe que contém todos e só os elementos, comuns e não comuns, da classe
a e da classe b. Interpretada como operação entre proposições, "a + b" indica sua afirmação dis-juntiva
{"a eu b"). G. P.
A DICTO SECUNDUM QUID AD DICTUM SIMPLICITER. É uma das consequentiae formalesiy.
CONSEQÜÊNCIA) da Lógica aristotélica escolástica: a dicto secundum quid ad dictum simpliciter non valet
consequentia; isto é, se A é B em relação a alguma coisa, não se segue que A seja B em sentido absoluto
(ARISTÓTELES, El. sof, 168 b 11; PEDRO HISPANO, Summ. log., 7, 46).
G. P.
AD IGNORANTIAM. Assim Locke chamou o argumento que consiste em exigir que o adversário acolha
a prova aduzida ou aduza uma melhor {Ensaio, JV, 17, 20).
ADIVINHAÇÃO (gr. LiocvTEÍa; lat. Divina-tio; in. Divination; fr. Divination; ai. Wahr-
ADJETIVO
18
ADMISSÃO
sagung; it. Dimnazionè). Profetização do futuro, com base na ordem necessária do mundo. Era admitida
pelos estóicos, sendo, aliás, assumida como prova da existência do destino. Crisipo achava que as
profecias dos adivinhos não seriam verdadeiras se as coisas todas não fossem dominadas pelo destino
(EusÉBio, Praep. Ev., IV, 3,136). Para Plotino, a A. é possibilitada pela ordem global do universo, graças
à qual todas as coisas podem ser consideradas sinais das outras. Os astros, por exemplo, são como cartas
escritas nos céus, que, mesmo desempenhando outras funções, têm o papel de indicar o futuro (Enn., II, 3,
7). A A. baseada no determinismo astrológico foi admitida pelos filósofos árabes, especialmente por
Avicena, e destes passou para alguns aristotélicos do Renascimento, como p. ex. Pomponazzi {De incantationibus, 10).
ADJETIVO (lat. Adjectivum, in. Adjective, fr. Adjectif, ai. Eingenschaftswort; it. Aggettivó). Na lógica
tradicional, esse nome indica um modo da coisa significada enquanto distinta ou distinguível da própria
coisa indicada pelo substantivo (PEDRO HISPANO, Summ. log., 6.02; ARNAULD, Log., II, 1). Na lingüística
moderna, o A. é a classe de palavras definível pela sua função de caracterizar a substância e divide-se em
descritivo ou limitativo, conforme siga ou preceda o nome (cf. BLOOMFIELD, Language, 1933, pp. 202
ss.).
AD JUDICIUM. Assim chamou Locke a argumentação que consiste "em usar as provas extraídas de
qualquer um dos fundamentos do conhecimento ou da probabilidade". É a única argumentação válida
{Ensaio, IV, 17, 22).
ADMIRAÇÃO (gr. 0auu.áÇetV; lat. Admi-ratio, in. Wonder, fr. Admiration; ai. Betvun-derung, Staunen,
it. Ammirazionè). Segundo os antigos, a A. é o princípio da filosofia. Diz Platão: "Essa emoção, essa A. é
própria do filósofo; nem tem a filosofia outro princípio além desse; e quem afirmou que íris é filha de
Taumas a meu ver não errou na genealogia" (Teet., 11,155 d). E Aristóteles: "Devido à A. os homens
começaram a filosofar e ainda agora filosofam: de início começaram a admirar as coisas que mais
facilmente suscitavam dúvida, depois continuaram pouco a pouco a duvidar até das coisas maiores, como,
p. ex., das modificações da lua e do que se refere ao sol, às estrelas e à geração do universo. Aquele que
duvida e admira sabe que ignora; por isso, o filósofo é também amante do mito, pois o mito consiste
em^coisas admiráveis" (Met., I, 2, 982 b 12 ss.). No princípio da Idade Moderna, Descartes exprimiu o
mesmo conceito: "Quando se nos depara algum objeto insólito, que julgamos novo ou diferente do que
conhecíamos antes ou supúnhamos que fosse, admiramos esse objeto e ficamos surpresos; e como isso
ocorre antes que saibamos se o objeto nos será ou não útil, a A. me parece a primeira de todas as paixões;
e não tem oposto porque, se o objeto que se apresenta não tem em si nada que nos surpreenda, não somos
afetados por ele e o consideramos sem paixão" (Pass. de Vâtne, II, 53). Nesse ponto, a diferença entre
Descartes e Spinoza é grande: Spinoza considerou a A. apenas como a imaginação de algo a que a mente
permanece atenta por ser algo desprovido de conexão com outras coisas {Et, III, 52 e escol.) e recusou-se
a considerá-la como uma emoção primária e fundamental, e muito menos como uma emoção filosófica
que esteja na origem da filosofia. A única atitude filosófica, para ele, é o amor intelectual a Deus, a
contemplação imperturbável e bem-avènturada da conexão necessária de todas as coisas na Substância
Divina. Para Aristóteles e para Descartes, a A. é, ao contrário, a atitude que está na raiz da dúvida e da
investigação: é tomar consciência de não compreender o que se tem à frente, que, mesmo sendo familiar,
sob outros aspectos revela-se, a certa altura, inexplicável e maravilhoso. Kant falava da A. a propósito da
finalidade da natureza, porquanto esta é inexplicável com os conceitos do intelecto {Crtt. do Juízo, § 62).
Por sua vez, Kierkegaard definia a A. como "o sentimento apaixonado pelo devir" e a reputava própria do
filósofo que considera o passado, como um sinal da não-necessidade do passado. "Se o filósofo não
admira nada (e como poderia, sem contradição, admirar uma construção necessária?), é por isso mesmo
estranho à história, já que, onde quer que entre em jogo o devir (que certamente é no passado), a incerteza
do que seguramente se transformou (a incerteza do devir) só pode exprimir-se por meio dessa emoção
necessária ao filósofo e própria dele" {Phüosophische Broc-ken, p. IV, § 4). Whitehead disse: "A filosofia
nasce da A." (Nature and Life, 1934, 1).
ADMISSÃO (in. Admission; fr. Admission, ai. Aufnahme, it. Admmisioné). Uma proposição alheia, que
se assume alheia (porquanto outros já a propuseram ou por ser comumente empregada), com a finalidade
de fundamentar
ADOPCIONISMO
19
ÁFECÇÃO ou AFEIÇÃO
nela algum raciocínio ou de fazer, a partir dela, alguma inferência. Ou ainda: o ato de admitir tal
proposição. A proposição admitida pode ser considerada verdadeira, falsa, provável ou indiferente; se
considerada verdadeira, chama-se axioma-, se provável, hipótese, se indiferente, postulado. Mas pode ser
admitida só com a finalidade de ser refutada, mediante redução ao absurdo. A A. dislingue-se de assunção
(v.) porque aquela diz respeito a uma proposição cuja escolha ou proposta, como base de raciocínio, já foi
feita por outros.
ADOPCIONISMO (in. Adoptionism; fr. Ado-ptionisme, ai. Adoptionismus; it. Adozionismó). Doutrina
segundo a qual Cristo, em sua natureza humana, é considerado Filho de Deus só por adoção. Essa
doutrina compareceu várias vezes na história da Igreja. Foi ensinada por Teodoro, bispo de Mopsuéstia,
por volta de 400; foi retomada no séc. VIII por alguns bispos espanhóis, combatida por Alcuíno e
condenada pelo Concilio de Frankfurt de 794. Essa doutrina implicava a independência da natureza
humana em relação a Deus e, daí, o dualismo entre natureza humana e natureza divina: dualismo
inadmissível do ponto de vista da dogmática cristã.
AD VERECUNDIAM. É assim que Locke denominou a argumentação que consiste "em citar as
opiniões de •'homens que por talento, doutrina, eminência, poder ou algum outro motivo obteve fama e
firmaram reputação na estima comum com alguma espécie de autoridade" {Ensaio, IV, 17, 19). É o apelo
à autoridade.
AFASIA (gr. áepocoia; in. Aphasia; fr. Apha-sie, ai. Aphasie, it. Afasid). Em sentido filosófico, é a atitude
dos céticos na medida em que se abstêm de pronunciar-se, de afirmar ou de negar alguma coisa a respeito
de tudo o que é "obscuro", isto é, que não move a sensibilidade de forma a produzir uma modificação que
in-duza necessariamente a assentir. A A. é, assim, a abstenção do juízo vinculada à suspensão do
assentimento (v.) (SEXTO EMPÍRICO, Pirr. hyp., I, 20, 192 ss.).
AFECÇÃO ou AFEIÇÃO (gr. jcá8oç; lat. Passio-, in. Affection; fr. Affection; ai. Affektion; it.
Affezionê). Esse termo, que às vezes é usado indiscriminadamente por afeto (v.) e paixão (v.), pode ser
distinguido destes, com base no uso predominante na tradição filosófica, pela sua maior extensão e
generalidade, porquanto designa todo estado, condição ou qualidade
que consiste em sofrer uma ação ou em ser influenciado ou modificado por ela. Nesse sentido, um afeto
(que é uma espécie de emoção [v.]), ou uma paixão, é também uma A., na medida em que implica uma
ação sofrida, mas também tem outras características que fazem dele uma espécie particular de afeição.
Dizemos comumente que um metal é afetado pelo ácido, ou que fulano tem uma afecção pulmonar, ao
passo que reservamos as palavras "afeto" e "paixão" para situações humanas, que apresentam todavia
certo grau de passividade por serem estimuladas ou ocasionadas por agentes externos.
Nesse sentido generalíssimo, Aristóteles entendeu a palavra rocGoç, que considerou como uma das dez
categorias e exemplificou com "ser cortado, ser queimado" {Cal, 2 a 3); chamou de afetivas (;ta9f|TiKai)
as qualidades sensíveis porque cada uma delas produz uma A. dos sentidos (ibid., 9 b 6). Além disso, ao
declarar, no princípio de De anima, o objetivo de sua investigação, Aristóteles entendeu que visava
conhecer (além da natureza e da substância da alma) tudo o que acontece à alma, isto é, tanto as A. que
pareçam suas, quanto as que ela tem em comum com a alma dos animais (Dean., I, 1, 402 a 9). No
referido texto a palavra A. (7iá0T|) designa o que acontece à alma, isto é, qualquer modificação que ela
sofra. O caráter passivo das A. da alma, caráter que parecia ameaçar-lhe a autonomia racional, levou os
estóicos a declarar irracionais, logo más, todas as emoções (DIÓG. L., VII, 110): donde a conotação
moralmente negativa que assumiu a expressão "A. da alma", revelada claramente em expressões como
perturbatio animi, ou concitatio animi, usadas por Cícero (Tusc, IV, 6, 11-14) e por Sêneca (Ep., 116), e
expressamente consideradas por S. Agostinho (De civ. Dei, IX, 4) como sinônimos de affectio e affectus
(emoção). Mas S. Agostinho e, depois dele, os escolásticos mantiveram o ponto de vista aristotélico da
neutralidade das A. da alma sob o ponto de vista moral, no sentido de que elas podem ser boas ou más,
segundo sejam moderadas ou não pela razão; ponto de vista que S. Tomás defendeu referindo-se
precisamente a Aristóteles e a S. Agostinho (S. Th., II, I, q. 24, a. 2).
A noção de modificação sofrida, isto é, de qualidade ou condição produzida por uma ação externa,
mantém-se constante na tradição filosófica e exprime-se o mais das vezes com a
AFECÇÃO ou AFEIÇÃO
20
AFECÇÃO ou AFEIÇÃO
palavra passio, que só na segunda metade do século XVIII assume o seu significado moderno (v.
PAIXÃO). Assim, Alberto Magno entende por A. "o efeito e a conseqüência da ação" (S. Th., I, q. 7, a 1).
S. Tomás, que dá idêntica definição (ibid., I, q. 97, a. 2), distingue três significados do termo: "O
primeiro, que é o mais próprio, tem-se quando alguma coisa é afastada daquilo que lhe convém segundo a
sua natureza ou a sua inclinação própria, como quando a água perde a sua frieza por ação do calor, ou
como quando o homem adoece ou se entristece. O segundo significado, que é menos próprio. tem-se
quando se perde uma coisa qualquer, seja ela ou não conveniente; e nesse sentido se pode dizer que sofre
uma ação (pati) não só quem adoece mas também quem se cura e, em geral, quem quer que seja alterado
ou mudado. Num terceiro sentido, diz-se quando o que estava em potência recebe aquilo que ele era em
potência sem perder nada; em tal sentido, pode-se dizer que tudo o que passa da potência ao ato sofre uma
ação mesmo quando se aperfeiçoa" (ibid., I, q. 79, a. 2). Cada um desses significados, distinguidos por S.
Tomás e compreendidos na noção geral de A., pode ser encontrado no uso ulterior do termo. Passio animi
era a denominação que alguns escolásticos (cf. OCKHAM, In Sent., I, d. II, q. 8 C) davam à species
intelectiva, isto é, ao universal ou conceito. A passio em geral é definida por Campanella (Phil. ration.
dialectica, I, 6) como "um ato de impotência que consiste em perder a própria entidade — essencial ou
acidental, no todo ou em parte — e em receber uma entidade estranha". Descartes deu expressão clássica
a essa noção em Paixões da alma (I, 1, 1650): "Tudo o que se faz ou que acontece de novo geralmente é
chamado pelos filósofos de afecção, no que se refere ao sujeito a quem acontece, e de ação, no que se
refere àquilo que faz acontecer; de tal modo que, embora o agente e o paciente sejam muitas vezes bem
diferentes, a ação e a afecção não deixam de ser a mesma coisa com esses dois nomes, devido ao dois
sujeitos diferentes aos quais se pode referir". Em sentido análogo, essa palavra é empregada por Spinoza
para definir o que ele chama de affectus e que nós chamaríamos de emoções ou sentimentos. As emoções,
enquanto passiones, isto é, A., constituem a impotência da alma, que as vence transformando-as em idéias
claras e distintas. "A emoção, diz Spinoza (Et., V, 3), "que é uma A., cessa de ser
uma A. assim que dela formamos idéia clara e distinta". Nesse caso, realmente, essa idéia se distingue só
racionalmente da emoção e se refere só à mente; assim, deixa de ser uma A. (ibid., V, 3). Por isso Deus,
que é desprovido de idéias confusas, está isento de A. (ibid., V, 17). No mesmo sentido, exprime-se
Leibniz (Monad., § 49): "Atribui-se a ação à mônada na medida em que ela tem percepções distintas, e a
A. na medida em que tem percepções confusas". No mesmo sentido exprimem-se Wolff (Ont., § 714) e
Crusius (Vemunftwahrheiten, §66).
Kant exprimiu do modo mais claro possível a noção de A. como recepção passiva, em um texto de
Antropologia (§ 7): "As representações em relação às quais o espírito se comporta passivamente, por
meio das quais, portanto, o sujeito sofre uma A. [Affection] (de si mesmo ou de um objeto), pertencem à
sensibilidade; aquelas, porém, que incluem o verdadeiro agir (o pensamento) pertencem ao poder cognoscitivo intelectual. Aquele é também chamado poder cognoscitivo inferior e este, poder cognoscitivo
superior. Aquele tem o caráter da passividade do sentido interno das sensações, este tem o caráter da
espontaneidade da aper-cepção, isto é, da consciência pura do agir que constitui o pensamento; e pertence
à lógica (isto é, a um sistema de regras do intelecto) assim como aquele pertence à psicologia (isto é, ao
complexo de todos os atos internos submetidos a leis naturais) e fundamenta a experiência interna". Esses
conceitos são fundamentais para toda-a Crítica da Razão Pura, especialmente para a distinção entre
estética e lógica, que repousa no seguinte princípio: "Todas as intuições, por serem sensíveis, repousam
em A.; os conceitos, ao contrário, repousam em funções" (Crít. R. Pura, Analítica dos conceitos, I, seção
I). Essas observações de Kant estão em polêmica com a tese da escola leibniziano-wolffiana, segundo a
qual a sensibilidade consiste nas representações indistintas e a intelectualidade, nas distintas; o que,
segundo notava Kant (Antr, § 7, nota), significa que a sensibilidade consiste numa falta (falta de
distinção), enquanto esta é algo de positivo e de indispensável ao conhecimento intelectual.
Em conclusão, o termo A., entendido como recepção passiva ou modificação sofrida, não tem
necessariamente conotação emotiva-, e, embora tenha sido empregado freqüentemente a propósito de
emoções e afetos (pelo caráter
AFETIVO
21
ÁFRICA
claramente passivo destes), deve considerar-se extensivo a toda determinação, inclusive cognoscitiva, que
apresente caráter de passividade ou que possa de qualquer modo ser considerada uma qualidade ou
alteração sofrida.
AFETIVO (in. Affective- fr. Affectif ai. Affektiv, it. Affettivó). O significado deste adjetivo não se vincula
ao da palavra "afeto", já que designa em geral tudo o que se refere à esfera das emoções. "Estado A.",
"função A.", "condição A." significam estado, função ou condição de caráter genericamente emotivo e
podem referir-se a qualquer emoção, afeto ou paixão. O mesmo significado genérico tem a expressão
"vida A." e a empregada por Heidegger, "situação A." (Befindlichkeit), para indicar a estrutura emotiva da
existência humana em geral (v. SENTIMENTO).
AFETO (lat. Affectus; in. Affection, fr. Affection; ai. Affektion-, it. Affettó). Entendem-se com esse termo,
no uso comum, as emoções positivas que se referem a pessoas e que não têm o caráter dominante e
totalitário da paixão (v.). Enquanto as emoções podem referir-se tanto a pessoas quanto a coisas, fatos ou
situações, os A. constituem a classe restrita de emoções que acompanham algumas relações interpessoais
(entre pais e filhos, entre amigos, entre parentes), limitando-se à tonalidade indicada pelo adjetivo
"afetuoso", é que, por isso, exclui o caráter exclusivista e dominante da paixão. Essa palavra designa o
conjunto de atos ou de atitudes como a bondade, a benevolência, a inclinação, a devoção, a proteção, o
apego, a gratidão, a ternura, etc, que, no seu todo, podem ser caracterizados como a situação em que uma
pessoa "preocupa-se com" ou "cuida de" outra pessoa ou em que esta responde, positivamente, aos
cuidados ou a preocupação de que foi objeto. O que comumente se chama de "necessidade de A." é a
necessidade de ser compreendido, assistido, ajudado nas dificuldades, seguido com olhar benévolo e
confiante. Nesse sentido, o A. não é senão uma das formas do amor (v.).
AFINIDADE (in. Affinity, fr. Affinité, ai. Affinitãt; it. Affinitã). Kant chamou de "lei da A. de todos os
conceitos" a regra da razão que prescreve "a passagem contínua de uma espécie à outra por meio do
aumento gradual da sua diferença" (Crít. R. Pura, Apêndice à dialética transcendental). Essa lei, que
resume em si as outras duas de homogeneidade (v.) e de especificação (v.), constitui, com elas, a determinação daquilo que deve ser o uso regulador das idéias da razão pura.
AFIRMAÇÃO (gr. Katácpamç; lat. Affirma-tio; in. Affirmation; fr. Affirmation; ai. Be-jahung; it.
Affermazioné). Termo com o qual se pode designar tanto o ato de afirmar, quanto o conteúdo afirmado,
isto é, a proposição afirmativa. Por isso, Aristóteles considerou-a uma das duas formas da asserção, mais
precisamente a que "une alguma coisa com alguma coisa". {De interpr., \1 a 25). Segundo a mesma teoria
aristotélica, ela une dois conceitos em um conceito composto. Substancialmente, a tradição lógica
sucessiva conservou essa doutrina e, daí, esse significado do termo A.; só os adeptos da teoria do juízo
como assentimento (Rosmini, Fr. Brentano, Husserl) consideram a A. como ato de aceitação de uma
representação ou idéia (v. ASSERÇÃO). G. P.
AFORISMO (gr. à<popiau.óç = determinação, delimitação; in. Aphorism; fr. Aphorisme, ai.
Aphorismus; it. Aforismo), Proposição que exprime de maneira sucinta uma verdade, uma regra ou uma
máxima concernente à vida prática. Inicialmente, essa palavra foi usada quase exclusivamente para
indicar as fórmulas que exprimem, de modo abreviativo e mnemônico, os preceitos da arte médica: p. ex.,
os A. de Hipócrates. Bacon exprimiu sob a forma de A. as suas observações (contidas no livro I do
Novum organum) "sobre a interpretação da natureza e sobre o reino do homem": provavelmente para
sublinhar o caráter prático e ativo dessas observações enquanto dirigidas a preparar o domínio do homem
sobre a natureza. E Schopenhauer chamou de A. sobre a sabedoria de vida (em Parerga und
Paralipomend) os seus preceitos para tornar feliz, ou menos infeliz, a existência humana, conservando
assim na palavra o seu significado de máxima ou regra para dirigir a atividade prática do homem.
A FORTIORI. Expressão que não indica um modo específico de argumentar, mas significa simplesmente
"com maior força de razão". Alguns lógicos designam com essa expressão as inferências transitivas do
tipo "x implica y, y implica z, logo x implica z" (cf. STRAWSON, Intro-duction to Logical Theory, 1952, p.
207).
ÁFRICA (in. África; fr. Afrique, ai. Afrik, it. África). Os filósofos procuraram às vezes justificar
"especulativamente", isto é, nos termos da sua filosofia, também a divisão dos continentes, não a
considerando causai ou convencional, mas essencial e racional. Assim, Hegel propôs
AGAPISMO
22
AGORA
a divisão do velho mundo em três partes, A., Ásia e Europa, que estariam entre si como tese, antítese e
síntese. Nessa tríade, a A. representaria o momento em que o espírito não consegue chegar à consciência e
o homem permanece embrutecido na passividade e na escravidão (PhilosophiederGeschichte, ed. Lasson,
pp. 203 ss.). Analogamente, Gioberti viu na raça africana "a mais degenerada das estirpes humanas"
porque "o negro é privação da luz" (Protologia, II, p. 221).
AGAPISMO (in. Agapisni). Termo empregado por Peirce para designar a "lei do amor evolutivo", em
virtude da qual a evolução cósmica tenderia a um incremento do amor fraterno entre os homens (Chance,
Love and Logic, pp. 266 ss.).
AGATOLOGIA (in. Agathology, fr. Agatho-logie, ai. Agathologie, it. Agatologid). Nome raramente
usado para a doutrina do bem, como parte da ética (v.).
AGENTE (gr. 7toiT|'n.KÓÇ; lat. Agens; in. Agent; fr. Agent; ai. Tàtige, it. Agente). Em geral, o que toma
a iniciativa de uma ação ou aquilo de que a ação promana ou deriva, em contraposição a paciente, que é o
que sofre a ação. Esses termos são próprios da filosofia escolástica (v. AÇÃO). Para intelecto A., v.
INTELECTO.
AGNOIOLOGIA (in. Agnoiology). Palavra introduzida por J. F. Ferrier (Institutes of Metaphysics, 1856,
p. 48) em correlação com epistemologia (v.), para indicar as duas esferas em que se divide a pesquisa
filosófica. A A. é a doutrina da ignorância, assim como a epistemologia é a doutrina do saber. A esfera da
ignorância era assim definida em relação com a esfera do saber, com o procedimento que depois também
foi seguido por Spencer, para determinar os limites do incognoscívelíy.).
AGNOSIA (gr. àYVOOOÍoi; in. Agnosy, fr. Agnosie, ai. Agnosie, it. Agnosid). Atitude de quem professa
nada conhecer, como a de Sócrates, que afirmava só saber que não sabia (PLATÃO, Ap., 21 a), reforçada
pelo cético Arcesilau, que dizia não saber nem mesmo isso (CÍCERO, Acad., I, 45).
AGNOSTICISMO (in. Agnosticism; fr. Ag-nosticisme, ai. Agnosticismus-, it. Agnosticismó). Esse termo
foi criado pelo naturalista inglês Thomas Huxley em 1869 (Collected Essays, V, pp. 237 ss.) para indicar
a atitude de quem se recusa a admitir soluções para os problemas que não podem ser tratados com os
métodos
da ciência positiva, sobretudo os problemas metafísicos e religiosos. O próprio Huxley declarou ter
cunhado esse termo "como antítese do 'gnóstico' da história da Igreja, que pretendia saber muito sobre
coisas que eu ignorava". Esse termo foi retomado por Darwin, que se declarou agnóstico em uma carta de
1879- Desde então o termo foi usado para designar a atitude dos cientistas de orientação positivista em
face do Absoluto, do Infinito, de Deus e dos respectivos problemas, atitude essa marcada pela recusa de
professar publicamente qualquer opinião sobre tais problemas. Assim, foi chamada da agnóstica a posição
de Spencer, que, na primeira parte dos Primeiros princípios (1862), pretendeu demonstrar a
inacessibilidade da realidade última, isto é, da força misteriosa que se manifesta em todos os fenômenos
naturais. O fisiólogo alemão Du-Bois Raymond, num texto de 1880, enunciava Os sete enigmas do
mundo (origem da matéria e da vida; origem do movimento; surgimento da vida; organização finalista da
natureza; surgimento da sensibilidade e da consciência; pensamento racional e origem da linguagem;
liberdade do querer), em face dos quais ele achava que o homem estava destinado a pronunciar um
ignorabimus, já que a ciência nunca poderá resolvê-los. No mesmo período, essa palavra foi estendida
para designar também a doutrina de Kant, porquanto esta considere que o númeno, ou a coisa em si, está
além dos limites do conhecimento humano (v. NÚMENO). Mas essa extensão da palavra não pode ser
considerada de todo legítima, dada a concepção kantiana de númeno como conceito-Iimite. É parte
integrante da noção de A. a redução do objeto da religião a simples "mistério", em cuja interpretação os
símbolos usados são de todo inadequados.
AGONÍSTICO (gr. àycDvicraKóç; in. Ago-nistio, fr. Agonistiqué). Uma das distinções, referidas por
Diógenes Laércio, dos diálogos platônicos. O A. e o exercitativo seriam as duas espécies do diálogo
zetético ou inquisitivo-, e o diálogo zetético e o expositivo seriam as duas divisões fundamentais dos
diálogos platônicos (DIÓG. L., III, 49).
AGORA (gr. TÒ vüv; lat. Nunc; in. Now-, fr. Instant; ai. Jetzt; it. Ora). Entende-se por este termo, na
linguagem filosófica, o momento presente como limite ou condição do tempo, portanto diferente do
instante (v.), que é uma espécie de encontro entre a eternidade e o tempo. Segundo Aristóteles, o A. é o
presente ins-
AGOSTINISMO ou AUGUSTEMSMO
23
ALEGORIA
tantâneo, sem duração, que serve de limite móvel entre o passado e o futuro (.Fís., IV, 11, 219 a 25). Essa
noção reaparece com freqüência nas especulações medievais sobre o tempo. Algumas vezes, o A. foi
concebido como uma resfluens que logo se corrompe falha, sendo suplantada por outra (cf. PEDRO
AURÉOLO, In Sent, II, d. 2, q. 1, a. 3). Essa concepção foi combatida por Ockham, que identificou o A.
com a posição do móvel cujo movimento é tomado como medida do tempo (Summulae in
librosphysicorum, IV, 8). Na filosofia contemporânea, esse termo foi empregado por Husserl para indicar
o horizonte temporal da vivência. Como nenhuma experiência pode cessar sem a consciência de cessar ou
de ser cessada, essa consciência é um novo instante presente ou agora. "Isto significa que cada A. de uma
experiência tem um horizonte de experiências que, também estas, têm a forma originária do A. e, como
tais, constituem o horizonte originário do eu puro, o seu A. de consciência, abrangente e originário ildeen,
I, § 82). AGOSTINISMO ou AUGUSTTNISMO (in. Augustinianism-, fr. Augustinism, ai. Augustinismus-, it. Agostinismó). Entende-se por esse termo, mais do que a doutrina original de S. Agostinho, o
conjunto de caracteres doutrinários que caracterizaram uma das tendências da Escolãstica (v.), seguida
predominantemente pelos doutores franciscanos, errt oposição à tendência aristotélico-tomista dos
doutores dominicanos. A fisionomia geral do A. medieval pode ser expressa com os seguintes pontos (cf.
MANDONNET, SigerdeBrabant, 2
a
ed., 1911,1, pp. 55 ss.): a) falta de distinção precisa entre o domínio da
filosofia e o da teologia, isto é, entre a ordem das verdades racionais e a das verdades reveladas; b) teoria
da iluminação divina, segundo a qual a inteligência humana não pode funcionar senão pela ação
iluminadora e imediata de Deus e não pode encontrar a certeza do seu conhecimento fora das regras
eternas e imutáveis da ciência divina; c) primazia da noção de bem sobre a de verdadeiro e, portanto, da
vontade sobre a inteligência, tanto em Deus quanto no homem; d) atribuição de uma realidade positiva à
matéria, ao contrário de Aristóteles, que nela vê pura potencialidade; do que deriva, p. ex., que o corpo
humano possui realidade ou atualidade próprias, isto é, uma forma independente da alma e que a alma é,
portanto, uma forma ulterior que se acrescenta ao composto vivente e animal; daí, a chamada pluralidade
das formas substanciais no composto.
Essas características aproximam os grandes mestres da Escolástica franciscana como Alexandre de Hales
(aprox. 1200), Robert Gros-setete, S. Boaventura, Roger Bacon, Duns Scot e muitos outros menores.
Algumas dessas características também podem ser encontradas em doutrinas filosóficas modernas e
contemporâneas, às quais chegam através da tradição medieval ou, diretamente, da obra de S. Agostinho.
AGREGADO (in. Aggregate, fr. Agrégat; ai. Aggregat; it. Aggregató), Em geral, uma coleção, um
aglomerado, um agrupamento, uma soma ou uma quantidade de coisas que, apesar disso, conservam a
individualidade. Esse termo é muito usado em matemática e lógica matemática contemporânea (v.
CONJUNTO) e, em geral, nas ciências naturais, que o empregam para indicar massas ou agrupamentos de
elementos que, apesar de estarem juntos, conservam as propriedades que têm separadamente.
AGRESSÃO, INSTINTO DE. V. INSTINTO.
ALEGORIA (gr. òXA.Tyyopíoc; lat. Allegoria; in. Allegory, fr. Allégorie, ai. Allegorie, it. Allegoria). No
seu primeiro significado específico, essa palavra indica um modo de interpretar as Sagradas Escrituras e
de descobrir, além das coisas, dos fatos e das pessoas de que elas tratam, verdades permanentes de
natureza religiosa ou moral. A primeira aplicação importante do método alegórico é o comentário ao
Gêneses de Fílon de Alexandria (séc. I). Fílon não hesita em contrapor o sentido alegórico ao sentido
literal e em qualificar de "tolo" (eür|&r|ç) este último. Eis um exemplo: "'E Deus acabou no sétimo dia as
obras que Ele criou' (Gên., II, 2). É absolutamente tolo crer que o mundo nasceu em seis dias ou, em
geral, no tempo. Por quê? Porque todo tempo é um conjunto de dias e de noites necessariamente
produzidos pelo movimento do sol que vai para cima e para baixo da terra; mas o sol é uma parte do céu,
de tal modo que se conclui que o tempo é mais recente do que o mundo" (Ali. leg., I, 2). Por sua vez,
Orígenes, que é o primeiro autor de um grande sistema de filosofia cristã, distinguia nos textos bíblicos
três significados: o somático, o psíquico e o espiritual, que estão entre si como as três partes do homem: o
corpo, a alma e o espírito (Deprinc, TV, 11). Na prática, porém, contrapunha o significado espiritual ou
alegórico ao corpóreo ou literal e sacrificava decididamente este último em favor do primeiro, já que só o
significado alegórico constitui a verdade
ALEGORIA
24
ALEXANDRINISMO
racional contida nas Sagradas Escrituras (ibid., TV, 2). Em seguida, tornou-se dominante na Idade Média a
distinção de três significados da Escritura (como se encontra, por exemplo, formulada por Hugo de S.
Vítor, De scripturis, III): significado literal, significado alegórico e significado anagógico. Eis como
Dante expõe a doutrina: "As escrituras podem ser entendidas e devem ser expostas sobretudo em quatro
sentidos. Um chama-se literale é o que não vai além da própria letra; o outro chama-se alegórico e é o
que se esconde sob o manto das fábulas, sendo a verdade oculta sob belas mentiras... O terceiro sentido
chama-se moral, e é o que os leitores devem atentamente ir descobrindo nas escrituras para utilidade sua e
de seus discípulos... O quarto sentido chama-se anagógico, isto é, supra-sentido; e aparece quando se
expõe espiritualmente uma escritura que, embora seja verdadeira também no sentido literal, pelas coisas
significadas significa coisas supremas da eterna glória: como se pode ver naquele canto do Profeta que
diz que, com a saída do povo de Israel do Egito, a Judéia tomou-se santa e livre. O que, embora seja
verdadeiro segundo a letra manifesta, não menos verdadeiro é o que se entende espiritualmente, isto é,
que na saída da alma do pecado, ela se toma santa e livre em sua potestade" COBanq., II, 1). Mas entre
esses sentidos, como diz o próprio Dante, o fundamental, para o teólogo como para o poeta, é o alegórico.
E, de fato, na Idade Média a A. tornou-se o modo de entender a função da arte e, especialmente, da
poesia. João de Salisbury dizia que Virgílio, "sob a imagem das fábulas, exprime a verdade de toda a
filosofia" e que Dante (Vita nuova, 25) definia assim a tarefa do poeta: "Vergonha seria para aquele que
rimasse coisas sob as veste de figura ou de cor retórica, e depois, interrogado, não soubesse desnudar as
suas palavras de tal veste, de modo que tivessem real entedi-mento".
No mundo moderno a A. perdeu valor e negou-se que ela possa exprimir a natureza ou a função da
poesia. Viu-se nela a aproximação de dois fatos espirituais diferentes, o conceito de um lado, a imagem de
outro entre os quais ela estabeleceria uma correlação convencional e arbitrária (Croce); e sobretudo, foi
acusada de negligenciar ou impossibilitar a autonomia da linguagem poética, que não teria vida própria
porque estaria subordinada às exigências do esquema conceituai a que deveria dar corpo.
Boa parte da estética moderna declara, por isso, que a A. é fria, pobre e enfadonha; e insiste na
interpretação da poesia e, em geral, da arte, com base no símbolo (v.), que pode ser vivo e evocador,
porque a imagem simbólica é autônoma e tem interesse em si mesma, isto é, um interesse que não
transforma sua referência convencional em conceito ou doutrina. Todavia, se levarmos em conta a
potencialidade e a vitalidade de certas obras de arte que têm clara estrutura alegórica (p. ex., Divina
comédia e muitas pinturas medievais e renascentistas), deveremos dizer que a A. não impossibilita,
necessariamente, a autonomia e a leveza da imagem estética e que, em certos casos, mesmo a
correspondência pontual entre imagem e conceito pode não ser mortificante para a imagem nem lhe tolher
a vitalidade artística ou poética. T. S. Eliot fez, justamente a propósito de Dante, uma defesa da A. nesse
sentido (The Sacred Wood, 1920, trad. it., pp. 241 ss.).
ALETIOLOGIA (ai. Alethiologie). Assim chamou Lambert a segunda das quatro partes do seu Novo
organon (1764), mais precisamente a que estuda os elementos simples do conhecimento. É uma espécie
de anatomia dos conceitos que tem a finalidade de compreender os conceitos mais simples e indefiníveis.
ALEXANDRINISMO (in. Alexandrinism, fr. Alexandrinisme, ai. Alexandrinismus; it. Alessandrinismó). Entende-se por esse termo a cultura alexandrina, isto é, a cultura do período que se seguiu à
morte de Alexandre Magno (323 a.C), que unificara o mundo antigo sob o signo da cultura grega
centralizando-a no Egito, na nova cidade de Alexandria. A dinastia dos Ptolomeus almejou fazer dessa
cidade um grande centro intelectual para o qual confluís-sem a cultura grega e a oriental, mediadas e
unificadas pela língua que se tornara patrimônio comum dos doutos, o grego. Cientistas e pensadores de
todos os países ficavam hospedados no Museu e tinham à sua disposição um material científico e
bibliográfico excepcional para o tempo. Ao Museu foi depois acrescentada a biblioteca, cujo primeiro
núcleo, diz-se, foi formado pelas obras de propriedade de Aristóteles, e que depois se tornou riquíssima,
até compreender 700.000 volumes. A cultura alexandrina é caracterizada pelo divórcio entre ciência e
filosofia. Enquanto as pesquisas científicas, a determinação dos métodos da ciência e a sistematização dos
resultados dão grandes passos nesse período, a filosofia renuncia à ta-
ALEXANDRISMO
25
ALGUM
refa que constituiu a sua grandeza no período clássico: a de procurar livremente os caminhos e os modos
de uma existência propriamente humana. Enrijece-se na pretensão de assegurar ao homem, a todo custo, a
paz e a serenidade de espírito, e desse modo torna-se privilégio de uns poucos pensadores que conseguem
isolar-se do resto da vida e dos problemas que a dominam, desinteressando-se, portanto, também da
pesquisa científica. A ciência da era alexandrina conta com grandes matemáticos (Euclides, Arquimedes,
Apolônio); astrônomos (Hiparco e Ptolomeu); geógrafos (Eratóstenes); médicos (Galeno). A filosofia
apresenta-se dividida em duas grandes escolas: o Epicurismo (v.) e o Estoicismo (v.); e em duas
tendências filosóficas sustentadas por escolas diferentes: o Ceticismo (v.) e o Ecletismo (v.). Pode-se dizer
que é desse período que provém a noção de filosofia, ainda hoje muitas vezes predominante no senso
comum, como atividade consoladora ou tranqüilizante, que impede ao homem imiscuir-se nas coisas da
vida comum e procura garantir-lhe a imperturbabilidade de espírito.
ALEXANDRISMO (in. Alexandrianism; fr. Alexandrisme, ai. Alexandrismus; it. Alessan-drismó).
Assim foi chamada, no Renascimento, a doutrina de Alexandre de Afrodísia sobre o intelecto ativo (v.).
ALFA-ÔMEGA. 'Expressão usada no Apocalipse para designar Deus como princípio e fim do mundo
(Ap., I, 8; 21, 6; 22, 13; etc).
ÁLGEBRA DA LÓGICA (in. Logical álgebra; fr. Algèbre de Ia logique, ai. Álgebra derLogik, it.
Álgebra delia lógica). Já Leibniz intuíra a possibilidade de um cálculo literal que tivesse afinidade com a
A. comum, em que, definindo-se por axiomas (muito semelhantes aos al-gébricos) certas operações
lógicas (adição, subtração, multiplicação, divisão, negação) e certas relações (implicação, identidade)
fundamentais, indicadas com símbolos extraídos da matemática, seria possível derivar desses axiomas,
mediante cálculo, todas as regras da silogística tradicional. Mas (talvez pelo predomínio de fortes
preocupações com o conteúdo de origem filosófica sobre a idéia pura do cálculo) Leibniz não chegara a
resultados satisfatórios. Não foram mais felizes as tentativas de seus continuadores, como Lambert.
Somente os lógicos ingleses do séc. XIX conseguem fundar uma verdadeira A. O primeiro foi George
Boole (Mathematical Analysis of Logic, 1847; Laws of Thought, 1854), cujas
pegadas foram seguidas por Stanley Jevons {Purê Logic, 1864), por J. Venn (Symbolic Logic, 1881) e
pelo alemão E. Schrõder {Álgebra der Logik, 1890-1895). A álgebra da lógica geralmente é entendida
como um cálculo literal bi-valente, caracterizado: lfi pelo fato de que as equações podem assumir apenas
os valores 0 ou 1; 2° pelos axiomas "a + a = a" e "a = a" (com todas as conseqüências que daí derivam);
3
e
pela ausência de operações indiretas, como a subtração (não sendo possível equiparar a negação"- a" à
subtração, não obstante o axioma, já enunciado por Leibniz, "a - a = 0"). Esse cálculo literal em si nada
significa,é um mero jogo simbólico (precisamente, uma "A. booliana" entre as muitas possíveis), mas é
passível de duas interpretações, que interessam à Lógica. Na primeira, os símbolos a, b, c,... indicam
classes; os sinais "+", "." indicam operações entre classes (v. ADIÇÃO,- MULTIPLICAÇÃO LÓGICA); a < b
interpreta-se como "a classe a está incluída na classe b?'; o sinal de negação "- a" ou "a'" indica a classe
formada por todos os indivíduos que não pertencem à classe a; 0 indica a classe vazia; 1 indica a classe
total ou universo do discurso (v.). A segunda interpretação é, ao contrário, proposicional. os símbolos a,
b, c,... indicam proposições; os sinais "+", ".", indicam operações sobre proposições; "a< b" indica
implicação ("a implica £>"); "— a" (ou a') indica a negação da proposição a; finalmente, 0 é interpretado
como "falso", 1 é interpretado como "verdadeiro". Desse modo, funda-se a interpretação do cálculo
lógico-algébrico que vai absorver a silogística tradicional, transformando-a em disciplina formal e
dedutiva. Foi ultrapassada pela Lógica matemática, fundada por Frege e Russell, e, depois, pela Lógica
simbólica contemporânea, que absorveu os elementos mais vitais da A. da Lógica.
G. P.
ALGORITMO (in. Algorism-, fr. Algorithme, ai. Algorithmus-, it. Algoritmo). Qualquer processo de
cálculo. Esse termo, derivado do nome do autor árabe de um tratado que introduziu a numeração decimal
na Europa do séc. IX, designava a princípio os processos de cálculo aritmético e depois foi generalizado
para indicar todos os processos de cáclulo.
ALGUM (in. Some, fr. Quelque, ai. Einige, it. Qualché). Na Lógica contemporânea, "A." ou "alguns" é
um operador de campo, cujo símbolo mais usado é "(3x)", p. ex., em fórmulas como "(3x) . f(x)", que se
lê "existe ao menos
ALGUMA COISA
26
ALIENAÇÃO
um .se tal que f(x) é verdadeira". Corresponde a uma soma ou a uma disjunção lógica operada no campo
de validade do (x), isto é, à disjunção "f(a) ou f(b) ou f(c) ou ...". Onde f(x) for um predicado, essa
fórmula eqüivalerá à fórmula costumeira "algum x é f" ou ainda "alguns x são f da Lógica tradicional. Já
nos Analíticos de Aristóteles, Tiç (habitualmente no dativo xivi na fórmula TÒ A Tivi T<p B vnápxei, "A
é inerente a algum fi") é usado com esse valor preciso, como sinal da proposição particular afirmativa. No
latim medieval, introduzindo-se como forma normal de proposição a fórmula "homo currit", o Ttç grego,
que já em Aristóteles sempre se referia ao sujeito lógico da proposição, é traduzido pelo adjetivo aliquis,
concordando gramaticalmente com o sujeito (assim, aliquis homo currit, mas aliqui homines currunt,
embora as duas formas, em Lógica, sejam perfeitamente sinônimas): daí, o nosso "A." e "alguns".
Todavia, é na Lógica medieval que se lhe reconhece claramente a função de operador, isto é, de signo não
significante cuja única tarefa é modificar a denotação do termo que funciona como sujeito.
G. P.
ALGUMA COISA (gr. TÍ; lat. Aliquid; in. Something; fr. Quelque chose, ai. Etwas; it. Qualcosd). Um
objeto indeterminado. Diz Wolff: "A. é aquilo a que corresponde determinada noção" (Ont., § 591): o que
quer dizer aquilo a que corresponde uma noção que não inclua contradição. Baumgarten vale-se desta
última característica para definir A. (Met., § 8). E Kant dizia: "A realidade é A., a negação é nada" (Crit.
R. Pura, Anal. dos princ, Nota às anfibolias dos conceitos da reflexão). E Hegel: "O ser determinado,
refletido em si neste seu caráter, é o que existe, o A." {Ene, § 90). O conceito é agora de pertinência da
lógica (cf. QUANTIFI-CADOR).
ALIENAÇÃO (in. Alienation; fr. Alienation; ai. Entfremdung; it. Alienazioné). Esse termo, que na
linguagem comum significa perda de posse, de um afeto ou dos poderes mentais, foi empregado pelos
filósofos com certos significados específicos.
1. Na Idade Média, às vezes foi usado para indicar um grau de ascensão mística em direção a Deus.
Assim, Ricardo de S. Vítor considera a A. como o terceiro grau da elevação da mente a Deus (depois da
dilatação e do so-levamentó) e considera que ela consiste no abandono da lembrança de todas as coisas
finitas e na transfiguração da mente em um
estado que não tem nada mais de humano (De gratia contemplationis, V, 2). Nesse sentido, a A. não é
senão o êxtase (v.).
2. Esse termo foi empregado por Rousseau para indicar a cessão dos direitos naturais à comunidade,
efetuada com o contrato social. "As cláusulas deste contrato reduzem-se a uma só: a A. total de cada
associado, com todos os seus direitos, a toda a comunidade" (Contrato social, I, 6).
3. Hegel empregou o termo para indicar o alhear-se a consciência de si mesma, pelo qual ela se considera
como uma coisa. Este alhear-se é uma fase do processo que vai da consciência à autoconsciência. "A A.
da auto-consciência", diz Hegel, "coloca, ela mesma, a coisalidade, pelo que essa A. tem significado não
só negativo, mas também positivo, e isto não só para nós ou em si, mas também para a própria
autoconsciência. Para esta, o negativo do objeto ou a auto-subtração deste último tem significado
positivo, isto é, ela mesma; de fato, nessa A. ela coloca-se a si mesma como objeto ou, por força da
inscindível unidade do ser-para-si, coloca o objeto como si mesma, enquanto, por outro lado, nesse ato
está contido o outro momento do qual ela tirou e retomou em si mesma essa A. e objetividade, estando,
portanto, no seu ser outra coisa como tal, junto a si mesma. Este é o movimento da consciência que nesse
movimento é a totalidade dos próprios momentos" (Phãnomen. des Geistes, VIII, 1).
Esse conceito puramente especulativo foi retomado por Marx nos seus textos juvenis, para descrever a
situação do operário no regime capitalista. Segundo Marx, Hegel cometeu o erro de confundir
objetivação, que é o processo pelo qual o homem se coisifica, isto é, exprime-se ou exterioriza-se na
natureza através do trabalho, com a A., que é o processo pelo qual o homem se torna alheio a si, a ponto
de não se reconhecer. Enquanto a objetivação não é um mal ou uma condenação, por ser o único caminho
pelo qual o homem pode realizar a sua unidade com a natureza, a A. é o dano ou a condenação maior da
sociedade capitalista. A propriedade privada produz a A. do operário tanto porque cinde a relação deste
com o produto do seu trabalho (que pertence ao capitalista), quanto porque o trabalho permanece exterior
ao operário, não pertence à sua personalidade, "logo, no seu trabalho, ele não se afirma, mas se nega, não
se sente satisfeito, mas
ALIENAÇÃO
27
ALMA
infeliz... E somente fora do trabalho sente-se junto de si mesmo, e sente-se fora de si no trabalho". Na
sociedade capitalista, o trabalho não é voluntário, mas obrigatório, pois não é satisfação de uma
necessidade, mas só um meio de satisfazer outras necessidades. "O trabalho exterior, o trabalho em que o
homem se aliena, é um trabalho de sacrifício de si mesmo, de mortificação" (Manuscritos econômicofilosófi-cos, 1844, I, 22). Esse uso do termo tornou-se corrente na cultura contemporânea, não só na
descrição do trabalho operário em certas fases da sociedade capitalista, mas também a propósito da
relação entre o homem e as coisas na era tecnológica, já que parece que o predomínio da técnica "aliena o
homem de si mesmo" no sentido de que tende a fazer dele a engrenagem de uma máquina (v. TÉCNICA).
Também sob esse ponto de vista Sartre retornou ao conceito hegeliano da A., entendida como "um caráter
constante da objetivação, seja ela qual for": onde se entende por "objetivação" qualquer relação do
homem com as coisas e com os outros homens (Critique de Ia raison dialectique, 1960, p. 285). Marcuse,
por sua vez, considerou a A. como a característica do homem e da sociedade "numa só dimensão", ou
seja, como a situação na qual não se distingue o dever ser do sere, por isso, o.pensamento negativo, ou a
força crítica da Razão, é esquecida ou calada pela força onipresente da estrutura tecnológica da sociedade
(One Dimensional Man, 1964, p. 12).
Na linguagem filosófico-política hoje corrente, esse termo tem os significados mais díspares, dependendo
da variedade dos caracteres nos quais se insiste para a definição do homem. Se o homem é razão
autocontemplativa (como pensava Hegel), toda relação sua com um objeto qualquer é A. Se o homem é
um ser natural e social (como pensava Marx), A. é refugiar-se na contemplação. Se o homem é instinto e
vontade de viver, A. é qualquer repressão ou diminuição desse instinto e dessa vontade; se o homem é
racionalidade operante ou ativa, A. é entregar-se ao instinto. Se o homem é razão (entendida de qualquer
modo), A. é refugiar-se na fantasia; mas, se é essencialmente imaginação e fantasia, A. é qualquer
disciplina racional. Enfim, se o indivíduo humano é uma totalidade auto-suficiente e completa, A. é
qualquer regra ou norma imposta, de qualquer modo, à sua expressão. A equivocidade do conceito
de A. depende da problematicidade da noção de homem.
ALMA (gr. \|/uxt|; lat. Anima-, in. Soul; fr. Âme, ai. Seele, it. Anima). Em geral, o princípio da vida, da
sensibilidade e das atividades espirituais (como quer que sejam entendidas e classificadas), enquanto
constitui uma entidade em si, ou substância. Esta última noção é importante porque o uso da noção de A.
está condicionado pelo reconhecimento de que certo conjunto de operações ou de eventos, chamados
"psíquicos" ou "espirituais", constituem manifestações de um princípio autônomo, irredutível, pela sua
originalidade, a outras realidades, embora em relação com elas. Que a alma seja incorpórea ou tenha a
mesma constituição das coisas corpóreas é questão menos importante, já que a solução materialista em
geral se fundamenta, assim como a solução oposta, no reconhecimento da A. como substância. Nesse
significado fundamental, a A. é o mais das vezes considerada como "substância": entendendo-se por esse
termo precisamente uma realidade em si, isto é, que existe independentemente das outras (v.
SUBSTÂNCIA). O reconhecimento da reali-dade-A. parece prover sólido fundamento aos valores
vinculados às atividades espirituais humanas, os quais, sem ela, pareceriam suspensos no nada; de modo
que a substancialidade da A. é considerada, pela maior parte das teorias filosóficas tradicionais, como
uma garantia da estabilidade e da permanência desses valores; garantia que, às vezes, é reforçada pela
crença de que a A. é, no mundo, a realidade mais alta ou última, ou, às vezes, o próprio princípio
ordenador e governador do mundo. Dadas essas características da noção, a sua história filosófica
apresenta-se relativamente monótona, por ser, predominantemente, a reiteração da realidade da A. nos
termos dos conceitos que cada filósofo assume para definir a própria realidade. Assim, p. ex., a A. é ar
para Anaxímenes (Fr. 2, Diels) e para Diógenes de Apolônia (Fr. 5, Diels), que julgam ser o ar o princípio
das coisas; é harmonia para os pitagóricos (ARISTÓTELES, Pol., VIII, 5, 1340 b 19), que na harmonia
exprimível em números vêem a própria estrutura do cosmos; é fogo para Heráclito (Fr. 36, Diels), que vê
no fogo o princípio universal; para Demócrito, é formada por átomos redondos, que podem penetrar no
corpo com grande rapidez e movê-lo (ARISTÓTELES, Dean., I, 2, 404,1); e assim por diante.
Provavelmente Platão só fez exprimir um pensamento implícito nes-
ALMA
28
ALMA
sas determinações, quando afirmou que a A. se move por si e a definiu com base nessa característica.
"Todo corpo cujo movimento é imprimido de fora é inanimado, todo corpo que se move de per si, do seu
interior, é animado; e essa é, precisamente, a natureza da A." (Fed., 245 d). A alma é, portanto, a causa da
vida (Crat., 399 d) e por isso é imortal, já que a vida constitui a sua própria essência (Fed., 105 d ss.).
Com essas determinações, Platão fazia nítida distinção entre a realidade da A., simples, incorpórea, que se
move por si, que vive e dá vida, e a realidade corpórea, que tem os caracteres opostos. E essas
determinações deviam servir de base a todas as considerações filosóficas ulteriores sobre a alma.
Entre elas, a de Aristóteles é a mais importante, pois as determinações que ele atribui ao ser psíquico, nos
termos do seu conceito de ser, deveriam permanecer por longo tempo o modelo de boa parte das doutrinas
da alma. Segundo Aristóteles, a A. é a substância do corpo. É definida como "o ato final (entelechid) mais
importante de um corpo que tem a vida em potência". A A. está para o corpo assim como a visão está para
o órgão da visão: é a realização da capacidade própria de um corpo orgânico. Assim como todo
instrumento tem sua função, que é o ato ou a atividade do instrumento (como, p. ex., a função do
machado é cortar), também o organismo, enquanto instrumento, tem a função de viver e de pensar, e o ato
dessa função é a A. {Dean., II, 1, 412 a 10). Por isso, a A. não é separável do corpo ou, ao menos, não são
separáveis do corpo as partes da A. que são atividades das partes do corpo, já que nada impede que sejam
separáveis as partes que não são atividade do corpo (ibid., 413 a 4 ss.). Com essa restrição, Aristóteles
alude à parte intelectiva da A., que ele chama de "um outro gênero de A.", e a considera como a única
separável do corpo (ibid., II, 2, 413 b 26). Como ato ou atividade, a A. é forma e como forma é
substância, em uma das três determinações da substância, que são: forma, matéria ou o composto de
forma e matéria. A matéria é potência, a forma é ato e todo ser animado é composto por essas duas coisas;
mas enquanto o corpo não é o ato da A., a A. é a atividade de um corpo determinado, isto é, a realização
da potência própria desse corpo: donde se pode dizer que ela não existe nem sem o corpo nem como
corpo (ibid., 414 a 11).
Essas determinações aristotélicas constituíram, por séculos a fio, todo o projeto da "psicologia da A.".
Consoante os vários interesses (metafísico, moral, religioso) que orientaram os desenvolvimentos dessa
psicologia, ao longo de sua história deu-se maior ênfase a uma ou a outra das determinações aristotélicas.
Destas, as mais importantes são: que a alma é substância, isto é, realidade no sentido forte do termo, e
princípio independente de operações, isto é, causa. São determinações cuja finalidade é garantir um
sólido sustentáculo para as atividades espirituais, portanto para os valores produzidos por tais atividades.
A segunda série de determinações é a da simplicidade e da indi-visibilidade, cujo objetivo é garantir a
impas-sibilidade da A. em face das mudanças do corpo e, através de sua indecomponibilidade, a sua
imortalidade. A terceira determinação importante é a sua relação com o corpo, definida por Aristóteles
como relação da forma com a matéria, do ato com a potência. A primeira determinação não é negada nem
mesmo pelos materialistas. Epicuro, que diz ser a A. composta por partículas sutis, difundidas por todo o
corpo como um sopro quente, crê, todavia, que ela tem a capacidade causativa da sensação, que é
preparada pelo corpo — que dela participa —, mas que, em certa medida, é independente do próprio
corpo, pois, quando a A. se separa do corpo, este deixa de ter sensibilidade (Ep. a Herod., 63 ss.). Desse
modo, a A. não é simples nem imortal (dissolve-se nas suas partículas com a morte do corpo), mas ainda é
uma realidade em si, dotada de capacidade causativa própria, indispensável à vida do corpo. De modo
análogo, os estóicos julgam que a A. é um sopro congênito; que, como tal, é corpo, pois, se não o fosse,
não poderia unir-se a ele nem separar-se dele; todavia, pode ser imortal, como é certamente imortal a A.
do mundo, de que fazem parte as A. dos seres animados e as dos sábios (DIÓG. L., VII, 156-67). Aqui, a
corporeidade da A. não a isenta de simplicidade nem de imortalidade; o mesmo se dá com a concepção de
Tertuliano, que também a considera um sopro, ou flatus, de Deus e, portanto, gerada, corpórea e imortal
(De an., 8 ss.).
A aceitação quase universal da doutrina aris-totélica da A. tem uma exceção em Plotino, que critica tanto
a doutrina segundo a qual a A. é corpo quanto a da A. como forma do corpo (Enn., IV, 7, 2 ss.; IV, 7, 8, 5).
E o motivo é um
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só: Plotino não acha que a A. tenha ligação alguma com o corpo e a sua única preocupação é definir a
realidade exatamente nos termos da sua independência em relação ao corpo e a todas as determinações
corpóreas. Por conseguinte, Plotino acentua os caracteres di-vinosda. A.: sua unidade e indivisibilidade,
donde sua ingenerabilidade e incorruptibilidade, que são todos caracteres negativos, assim como, aliás,
são negativos os caracteres que Plotino atribui a Deus. Mas qual é a via de acesso à realidade da A. assim
entendida? Plotino responde que, para examinar-se a natureza de uma coisa, é preciso considerá-la em sua
pureza, pois tudo o que se lhe acrescenta é um obstáculo a seu conhecimento. Daí, para examinar-se o que
é a A., é preciso retirar-lhe tudo o que lhe é estranho, isto é, convém olhar para si mesmo e retirar-se na
própria interioridade. Desse modo, a noção de consciência, entendida como intros-pecção ou reflexão
sobre si mesmo, ou reflexão interior, graças a Plotino, começa a superar a noção de A., já que a própria
alma é reduzida ao movimento de introspecção. "Não é saindo da A.", diz Plotino, "que se podem ver a
sabedoria e a justiça; a A. vê essas coisas em si mesma, na sua reflexão sobre si mesma; no seu estado
primeiro, vê-as em si como estátuas cheias da ferrugem do tempo, que ela limpa. É como se o ouro
tivesse A. è ficasse livre do lodo que o cobrisse: no início, estaria na ignorância de si mesmo, não se veria
como ouro, depois, admiraria a si mesmo vendo-se isolado, e não desejaria ter outra beleza estranha, mas
seria tanto mais forte quanto mais ficasse entregue a si mesmo" (Enn., IV, 7, 10). Essas palavras de
Plotino abrem a outra alternativa da doutrina da A., isto é, aquela pela qual acabará sendo suplantada pelo
conceito de consciência. Aqui, retirar-se em si mesmo, ficar entregue a si mesmo, olhar para a própria
interioridade, refletir sobre si são expressões que servem para definir um tipo de busca que prescinde
completamente do corpo e, por isso, também daquilo com que o corpo se põe em relação, isto é, as coisas
e os outros homens (ibid., V, 3, 1-2).
Os neoplatônicos e os Pais da igreja oriental repetem as determinações neoplatônicas: a imaterialidade e a
unidade da A. são os caracteres fundamentais, atribuídos por Porfírio (STOBEO, Ecl., I, 818) e por Proclo
(Inst. theol., 15), assim como por Gregório de Nissa (De an. etresur., pp. 98 ss.). Mas é sobretudo S.
Agostinho que recolhe a herança do neoplatonismo
e a transmite ao mundo cristão, com o reconhecimento da interioridade espiritual como via de acesso
privilegiada à realidade própria da alma.
Essa via de acesso é a experiência interior, a reflexão sobre a própria interioridade, a "confissão" como
reconhecimento da realidade íntima; em uma palavra, o que na linguagem moderna se chama consciência
(v.). Nos Solilóquios (I, 2), S. Agostinho declarava não querer conhecer nada além de "Deus e a A.". Mas,
para ele, Deus e a A. não exigem duas indagações paralelas ou de qualquer forma diferentes, já que Deus
está na A. e se revela na mais oculta interioridade da própria A. "Não saias de ti, volta-te para ti mesmo,
no interior do homem mora a verdade; e, se achares mutável a tua natureza, transcende-te a ti mesmo"
(De vera rei, § 39). Essa atitude, que domina toda a busca agostiniana, deveria produzir frutos mais tarde,
a começar pela Escolástica tardia. — Mas a Escolástica, em seu conjunto, é dominada pela doutrina
aristotélica da A., reproposta quase nos mesmos termos desde Scotus Erigena (De divis. nat., II, 23) até
Duns Scot (Op. Ox., IV, 43, q. 2), que se limita a acrescentar que, sendo a A. a forma do corpo, como
dizia Aristóteles, não pode subsistir quando o corpo é destruído; logo, a imortalidade é pura matéria de fé.
As próprias observações de S. Tomás (5. 3Tb., I, q. 75; Contra Gent., II, 79 ss.) nada acrescentam à
doutrina aristotélica da A., salvo a maior insistência na independência desta em relação ao corpo, com o
fim de assegurar-lhe a imortalidade. A única inovação que a Escolástica agostiniana apresenta em relação
a essa teoria, em oposição à orientação áristotelicotomista da mesma Escolástica, diz respeito à relação
entre A. e corpo: a admissão de uraz forma corporeitatis, que é própria do corpo como tal, anteriormente
à sua união com a A., e que o predispõe a tal união. A forma corporeitatis é a realidade que o corpo
humano possui, como corpo orgânico, independentemente da sua união com a A. (DUNS SCOT, Op. Ox.,
IV, 11, q. 3; OCKHAM, Quodl, II, q. 10). Essa admissão vincula-se ao reconhecimento de que a matéria,
em geral, não é pura potência, mas possui, já como matéria, certa realidade atual que é precisamente a
forma corporeitatis (v. AGOSTINISMO).
Mas a Escolástica do séc. XIV oferece-nos, com Ockham, uma inovação muito mais radical: a dúvida
apresentada sobre a realidade da A. intelectiva. Diz, com efeito, Ockham (Quodl., I, q. 10) que, se
entendermos por A.
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intelectiva "uma forma imaterial e incorruptível que está por inteiro em todo o corpo e por inteiro em cada
parte, não se pode conhecer com evidência, nem com a razão nem com a experiência, que tal A. seja
forma do corpo e que o entendimento seja próprio de semelhante substância". De fato, as razões que se
podem aduzir para a demonstração de tal forma são dúbias; e, quanto à experiência, tudo o que
experimentamos são a intelecção, a voliçâo, etc.: operações que podem muito bem ser próprias de uma
"forma extensa, generável e corruptível", isto é, do próprio corpo. Por isso, Ockham relega a matérias de
fé não só a imortalidade da A. (como já havia feito Scot), mas a própria realidade da A. intelectiva como
suposto sujeito das operações espirituais de que temos experiência. Essa negação baseia-se precisamente
na experiência que se tem dos próprios atos espirituais (intelectivos e volitivos), experiência que, para
Ockham, é um conhecimento intuitivo e de natureza espiritual (cognitio intuitiva intellectivd), pelo qual
estão imediatamente presentes, na sua singularidade e nas suas relações recíprocas, os atos ou as
operações espirituais (In Sent., prol. q. 1; Quodi, I, q. 14; II, 1. 12). — Com essas observações, o conceito
de experiência interna, diferente da experiência sensível ou externa, era introduzido na história da
filosofia, precisamente quando a realidade a que tal experiência deveria dar acesso, isto é, a realidade da
A., era posta em dúvida. Com Descartes, a experiência interna deveria tornar-se o ponto de partida da
filosofia moderna.
A noção de A. como substância sobrevive à crise do Renascimento. Nem mesmo o materia-lismo de
Telésio e o de Hobbes constituem negações propriamente ditas da substancialidade da alma. Telésio
admite uma substância intelectiva, diretamente criada e infundida por Deus no homem, só para explicar a
vida religiosa do homem, a sua aspiração ao transcendente (De rer. nat., V, 2); mas o mesmo "espírito
animal", de que ele se vale para explicar a sensibilidade, a inteligência e até a vida moral do homem,
embora sendo de natureza corpórea e produzido pelo sêmen, é por ele considerado como realidade em si,
como "substância" (ibid., V, 10). Quanto a Hobbes, declara ilegítima a transição operada por Descartes da
proposição "Sou uma coisa que pensa", que é indubitável, à proposição "Sou uma substância pensante", já
que não é necessário que a coisa que pensa
seja pensamento, mas pode ser o próprio corpo (/// Objections, 2). Mas a interpretação materialista não
nega que a alma seja uma "coisa", isto é, uma "realidade".
No que diz respeito à noção de alma no mundo moderno, o desenvolvimento decisivo ocorre com
Descartes, em cuja doutrina a reafirmação da realidade da A. une-se ao reconhecimento de uma via de
acesso privilegiada a tal realidade. Essa via de acesso é o pensamento, ou melhor, a consciência (v.). O
cogito ergo sum revela de modo evidente, segundo Descartes, a substância pensante, isto é, revela "um
ser, cuja existência nos é mais conhecida do que a dos outros seres, de modo que pode servir como
princípio para conhecê-los" (Lett. à Clercelier, em CEuvres, IV, 443). Ora, o cogito compreende "tudo o
que está em mim e de que sou imediatamente consciente" (IIRép., def. I): isto é, duvidar, compreender,
conceber, afirmar, negar, querer, não querer, imaginar, sentir, etc. Assim, a consciência é uma via de
acesso privilegiada — porque .tão segura, a ponto de ser absolutamente indubitável — a uma realidade, a
substância A., que, por sua vez, também é privilegiada porque pode servir como princípio para conhecer
as outras realidades. E de fato é a própria consciência, enquanto testemunha do caráter passivo da
faculdade sensível, que faz pensar em uma substância ou realidade diferente da A., que aja sobre a A., isto
é, em uma substância corpórea ou extensa, certificada pelo princípio da veridicidade divina. Desse modo,
Descartes determinou a virada subjetivista na interpretação da A. como substância. Para ele, os atributos
da A. continuam sendo os tradicionais, como simplicidade, indestrutibilidade, unidade, etc. Mas a via de
acesso à realidade da A. tem o privilégio de ser a mais certa porque possui a certeza do cogito.
Comparada a esta, a certeza das outras coisas, isto é, das substâncias extensas, é secundária e derivada,
porque mediada pela consciência. — Ora, essa colocação domina todas as doutrinas modernas. Spinoza e
Leibniz traduzem o conceito cartesiano da A. nos termos de seus conceitos de realidade. Para Spinoza, a
A. é "a idéia de um corpo singular existente em ato" (Et., II, 11): é a consciência correlativa a um corpo
orgânico. Não se pode dizer que a A. seja substância porque a substância é uma só, Deus. Mas, como
idéia, a A. é parte do intelecto infinito de Deus, isto é, uma manifestação necessária da substância divina
(ibid., II, 9), portanto
ALMA 31
ALMA
eterna (ibid., V, 23). Para Leibniz, a A. é uma substância espiritual, uma mônada que, como um espelho,
representa em si todo o mundo, mas é em si mesma simples, isto é, sem partes e indecomponível
(Monad., §§ 1, 56). Diferentemente das outras mônadas, que são os átomos espirituais que compõem
todas as coisas do universo (inclusive as corpóreas), a A. é espírito, isto é, razão, porquanto possui as
verdades necessárias e pode, assim, elevar-se aos atos reflexivos que constituem os objetos principais dos
nossos raciocínios (Théod., pref.; Monad., § 30). Mas trata-se mais de uma diferença de grau do que de
qualidade: a A. é somente uma mônada mais ativa e perfeita, na qual as apercepções, isto é, as percepções
claras e distintas, têm mais participação do que as pequenas percepções ou percepções obscuras e
confusas. A doutrina de Leibniz representa, assim, uma redução ao limite, no sentido espiritualista, do
princípio cartesiano que privilegiava a consciência. A "psicologia racional" de Wolff, que foi objeto
específico da crítica de Kant, não é senão a expressão sistemática da doutrina de Leibniz.
A partir de Descartes, o conceito de "consciência", isto é, de totalidade ou mundo da experiência interna,
começa gradualmente a suplantar o conceito tradicional de alma. Já Descartes e Leibniz> embora se
referindo às determinações tradicionais da A. como substância, acabam interpretando a seu modo a noção
de substância: a realidade que atribuem à A. é a revelada e testemunhada pelos atos, ou pelo ato
fundamental da consciência como pensamento, apercepção, etc. Locke, que reputava 'incognoscível" a
substância espiritual (assim como, aliás, a material) (Ensaio, II, 23, 30), considerou certo, de modo
privilegiado, o conhecimento que o homem tem da própria existência, atribuindo-o a um "conhecimento
intuitivo" que não é senão a consciência dos próprios atos espirituais (ibid., IV, 9, 3). Além disso, Locke
identificou na experiência interna, ou reflexão, uma das fontes do conhecimento e entendeu-a como "a
percepção das operações que o nosso espírito realiza em torno das idéias que recebe do exterior". Tais
operações são as de percepção, pensamento, dúvida, conhecimento, vontade, etc, isto é, em geral, todos os
atos do espírito de que se é consciente. "Essa fonte de idéias", acrescenta Locke, "reside internamente no
homem, e embora não seja um sentido, porque nada tem a ver com os
objetos externos, ainda assim é semelhante a um sentido e pode ser propriamente chamado sentido
interno" (ibid., II, I, 4). Com isso, Locke admitiu duas vias de acesso paralelas e independentes a duas
realidades que se pressupõem independentes e paralelas, isto é, o corpo e a alma.— Hume não pressupôs
a distinção dessas duas realidades, nem, por conseqüência, admitiu a distinção entre as duas vias de
acesso respectivas. A realidade substancial, seja a das coisas materiais, seja a da A. ou do eu, é uma
construção fictícia, que parte das relações de semelhança e de causalidade das percepções entre si
(Treatise, 1,4, 2 e 6; Inq. Cone. Underst., XII, 1). Todavia os ingredientes elementares de tais construções,
ingredientes que são o único dado certo da experiência, são constituídos por impressões e por idéias, isto
é, são fornecidos pela experiência interna ou consciência. De tal modo que, enquanto realiza a demolição
cética da noção de A. como realidade ou substância, Hume contribui em igual medida para estabelecer a
supremacia da consciência, cujos dados são reconhecidos como os únicos elementos certos do
conhecimento humano.
A rivalidade entre as duas noções de A. e de consciência chega ao ponto culminante na crítica de Kant à
psicologia racional, isto é, à noção de A. nos seus atributos tradicionais de subs-tancialidade,
simplicidade, unidade e possibilidade de relações com o corpo (Crít. R. Pura, Dial. transe, Paralogismos
da razão pura). A crítica kantiana consiste em dizer que toda a psicologia racional funda-se num
"paralogis-mo", isto é, num erro formal de raciocínio ou num "equívoco", no sentido de assumir como
objeto de conhecimento, ao qual é aplicável a categoria de substância, aquele "Eu penso", que é simples
"consciência" e que é a condição primeira do próprio uso das categorias. "A unidade da consciência", diz
Kant, "que está no fundamento das categorias, aqui é tomada por intuição do sujeito, tomado como
objeto, apli-cando-se-lhe a categoria de substância." É preciso observar que a consciência de que Kant
está falando é a expressa pela proposição empírica "Eu penso", que contém em si a proposição "Eu
existo" (ibid., Refut. do arg. de Mendelssohn, nota), isto é, a consciência da própria existência como
determinável por parte de um conteúdo empírico dado, ou seja, como "espontaneidade" intelectual que só
pode operar sobre um material fornecido pela experiência. Portanto, é diferente do conhecimento de si
ALMA
32
ALMA
mesmo que, assim como qualquer outro conhecimento, só é possível mediante a aplicação das categorias
a um conteúdo empírico e, portanto, é também conhecimento fenomênico (ibid., Analítica dos conceitos,
§ 25). Assim sendo, a crítica kantiana à psicologia racional e ao conceito de A. sobre o qual ela se baseia
consiste em declarar ilegítima a transformação da consciência em substância e, por isso, em eliminar a
própria noção de A. como realidade subsistente por si.
Essa crítica foi, de certa forma, decisiva na história da filosofia: não que os filósofos tenham deixado de
falar de algum modo em A., mas o tipo ou espécie de realidade que se atribui à A., a partir de Kant, passa
a ser entendida em termos de consciência e, freqüentemente, reduzida à própria consciência. Essa
inversão da relação entre A. e consciência, pela qual a consciência, antes via de acesso à realidade-A.,
transforma-se nessa mesma realidade, é igualmente evidente nas duas grandes correntes da filosofia
oitocentista, o Idealismo e o Positivismo. Hegel, p. ex., considera a A. como o primeiro grau do
desenvolvimento do Espírito, que é a consciência no seu grau mais alto, isto é, Autoconsciência, e a
configura como "Espírito subjetivo", isto é, como o espírito em seu aspecto de individualidade. Eis como
ele descreve o processo do Espírito subjetivo: "Na A., a consciência desperta; a consciência coloca-se
como razão que desperta assim que toma ciência de si; e a razão, por meio de sua atividade, liberta-se
fazendo-se objetividade, consciência do seu objeto" (Ene, § 387). O primeiro desses momentos, isto é, o
despertar da consciência é a alma. A ela Hegel atribui as características tradicionais (substancialidade,
imaterialidade), mas no sentido de que essas características podem dizer respeito à consciência. "A A.",
diz ele, "não é imaterial só para si, mas é a imaterialidade universal da natureza, a sua vida ideal simples.
Ela é a substância e, portanto, o fundamento absoluto de qualquer particulari-zação e individualização do
espírito, de tal modo que o espírito tem na A. toda a matéria da sua determinação e a A. é a idealidade
idêntica e prevalente desta. Mas, nessa determinação ainda abstrata, a A. é apenas o sonho do espírito, o
nous passivo de Aristóteles, que, sob o aspecto da possibilidade, é tudo" (ibid., § 389). Em outros termos,
dizer que a A. é imaterial significa tão-somente que a matéria não existe porque "a verdade da matéria é o
espírito": dizer
que a A. é substância significa unicamente que o espírito é também individualidade, ou seja, consciência
individual. As determinações tradicionais são aqui conduzidas para significados diversos, condicionados
pela redução da A. à primeira fase do espírito consciente.
Por outro lado, e com outro intuito, o Positivismo efetuava a mesma redução da A. à consciência,
retomando e continuando a doutrina do empirismo clássico, especialmente de Hume. O intento, aqui, era
preparar e fundar uma "ciência" dos fatos psíquicos, que tivesse o mesmo rigor das ciências da natureza.
Nessa direção, o termo A. já aparece como impróprio e é freqüentemente substituído pelo termo espírito
(v.); nesse sentido, Stuart Mill diz, p. ex., que o espírito (tnind) é a "série das nossas sensações", tendo,
além disso, "uma infinita possibilidade de sentir" (Examination of Hamilton 's Philo-sophy, pp. 242 ss.)
ou, mais simplesmente, "aquilo que sente" (Logic, VI, IV, 1). Tornam-se objeto da psicologia os
"fenômenos psíquicos" ou "os estados de consciência", que são explicados por meio da associação
variada dos seus elementos mais simples (v. ASSOCIACIONISMO). Essa "psicologia sem alma" dominou os
primórdios da psicologia científica e foi a insígnia polêmica pela eliminação, em seu campo, da noção
tradicional da A. como substância.
Contudo, esse termo foi e ainda é usado para indicar o conjunto das experiências psíquicas enquanto
recolhidas em alguma unidade. Assim o entendeu Wundt (Logik, II, pp. 245 ss.), que por unidade
entendeu a unidade da consciência. E assim o entende também Dewey: "Em conclusão, pode-se afirmar
que a palavra A., quando libertada de todos os resíduos do tradicional animismo materialista, denota a
qualidade das atividades psicofísicas, organizadas em unidade. Alguns corpos têm A. de modo eminente,
assim como outros têm, eminentemente, fragrância, cor e solidez... Dizer enfaticamente que uma pessoa
tem A., ou uma grande A., não significa pronunciar uma frase aplicável igualmente a todos os seres
humanos. Exprime, ao contrário, a convicção de que o homem ou a mulher em questão possui em grau
notável as qualidades de participação sensível, rica e coordenada em todas as situações da vida. Assim, as
obras de arte, a música, a pintura, a arquitetura têm A., enquanto outras são mortas, mecânicas"
(Experience andNature, pp. 293 ss.). Mas a A., nesse sentido, não é mais "um habitante do corpo";
designa um conjunto
ALMA, PARTES DA
33
ALMA BELA
de capacidades ou de possibilidades de que cada homem ou cada coisa em particular participa em maior
ou menor grau. A última crítica à noção de A. é a de Ryle (Concept ofMind, 1949), que deu à concepção
de A. de origem cartesiana o nome de "espectro na máquina". Na realidade, essa noção é muito mais
antiga, como se viu, e sua força se deve, mais do que às suas capacidades explicativas, às garantias que
fornece ou parece fornecer a determinados valores. Ryle julga que essa noção é fruto de um erro
categorial, pelo qual os fatos da vida mental são considerados pertencentes a um tipo ou categoria (ou
classe de tipos ou categorias) lógica (ou semântica) diferente daquela a que eles pertencem. Esse erro é
semelhante ao de quem, depois de visitar salas, laboratórios, bibliotecas, museus, escritórios, etc, que
constituem uma Universidade, pergunta o que vem a ser e onde fica a própria Universidade. A
Universidade não é uma unidade que se acrescente aos organismos ou aos membros que a constituem, e
que possua, portanto, uma realidade à parte de tais organismos ou membros. Assim também, a A. não tem
realidade à parte das manifestações singulares e dos comportamentos particulares superiores que essa
palavra serve para designar em seu conjunto.
Em conclusão, já muito antes dessa última condenação, a noção tradicional de A., como uma espécie de
realidade em si, princípio e fundamento dos chamados eventos mentais, fora abandonada e reduzida à
noção de entidade funcional ou de uma espécie de coordenação e de síntese entre aqueles eventos. Mas,
nesta forma, essa noção remete à de consciência (v.).
ALMA, PARTES DA. V. FACULDADE.
ALMA BELA (gr. KaA.rj yx>%r\-, fr. Belle âme, ai. Schòne Seele, it. Anima belld). Essa expressão tem
origem mística: Plotino já falava da A. bela, que é a A. que retorna a si mesma ou é ela mesma (Enn., V,
8, 13), recordando talvez a "beleza nas almas" de que Platão falava como forma de beleza superior à
beleza do corpo (O Banq., 210 b). Essa expressão reaparece nos místicos espanhóis do século XVI.
Expressão equivalente (Beauty of the Heari) e a mesma expressão {belle âmê) encontram-se,
respectivamente, em Shaftesbury e em Nova Heloísa (1761) de Rousseau. Mas no seu significado
específico, essa expressão foi usada pela primeira vez por Friedrich von Schiller para indicar o ideal de
uma A. não só "virtuosa" (isto é, cuja
vontade é determinada pelo dever), mas também "graciosa", no sentido de que nela a sensibilidade
concorda espontaneamente com a lei moral. "Chama-se A. bela", diz Schiller, "a alma em que o
sentimento moral acabou por assenhorear-se de todas as afeições do homem, a ponto de poder, sem
receio, entregar à sensibilidade a direção da vontade, sem nunca correr o risco de achar-se em desacordo
com as decisões desta... Uma A. bela não tem outro mérito que o de existir. Com facilidade, como se o
instinto agisse por ela, cumpre os deveres mais penosos pela humanidade e o sacrifício mais heróico, que
ela arrebata do instinto natural, aparece como livre efeito desse mesmo instinto" {Werke, ed Karpeles, XI,
202. Cf. PAREYSON, A estética do idealismo alemão, pp. 239 ss.). Kant não refutou decididamente esse
conceito de Schiller e, mesmo atenuando-o, não negou que a virtude pudesse ou devesse concordar com a
graça (Religion, I, obs., nota). Aliás, em Antropologia (I, § 67), adotou a expressão A. bela, entendendo
por ela o "ponto central em torno do qual o juízo de gosto reúne todas as suas apreciações do prazer
sensível, na medida em que este pode unificar-se com a liberdade do intelecto". Esse conceito viria a ter
grande importância no Romantismo. Hegel retomou-o em Fenomenologia do espírito (VI, C, c): a A. bela
é uma consciência que "vive na ânsia de manchar com a ação e com o existir a honestidade do seu
interior"; que, não querendo renunciar à sua refinada subjetividade, exprime-se somente com palavras e
que, se deseja agir, perde-se em absoluta inconsistência. Goethe dedicou à "confissão de uma A. bela" o
VI livro das Experiências de Wilhelm Meister e a fazia falar assim; "Não me recordo de nenhuma ordem;
nada me aparece com forma de lei; é um impulso que me conduz e me guia sempre retamente; sigo
livremente minhas disposições e sei tão pouco de limitações quanto de arrependimentos". A A. bela é uma
das figuras típicas do Romantismo: a encarnação da moralidade, não como regra ou dever, mas como
efusão do coração ou do instinto. Scheler, mesmo apercebendo-se do decadentismo dessa noção
romântica, considera ainda que "a antiga questão a respeito da relação entre a A. bela, que quer o deverser ideal e o realiza não por dever, mas por inclinação, e o comportamento 'pelo dever', a que Kant reduz
todo valor moral, deve ser resolvida no sentido de que a A. bela é não só de igual valor, mas de valor
supe-
ALMA DO MUNDO
34
ALTERIDADE
rior" (Formalismus, p. 226). Mas, no uso contemporâneo, essa expressão assumiu um significado irônico
e motejador, designando a atitude de quem vive satisfeito com a sua suposta perfeição moral, ignorando
ou desconhecendo os problemas efetivos, as dificuldades e as lutas que tornam difícil o exercício da
atividade moral eficaz. Essa reviravolta de apreciação deve-se, provavelmente, a Nietzsche, que, em
Genealogia da moral (I, § 10), descreveu os puros de coração, as A. belas que embandeiram poeticamente
suas virtudes, como "homens do ressentimento", que estremecem com um espírito subterrâneo de
vingança contra aqueles que encarnam a riqueza e o poder da vida (v. RESSENTIMENTO).
ALMA DO MUNDO (gr. U£YáA,T| V(ru%ií; lat. Anima mundi; in. World-soul; fr. Âme du monde, ai.
Weltseele, it. Anima dei mondo). Noção recorrente na cosmologia tradicional, que, freqüentemente,
concebe o mundo como "um grande animal", dotado, portanto, de A. própria. Assim Platão concebeu o
mundo em Timeu e imaginou que a A.dele fosse construída e distribuída geometricamente pelo Demiurgo
( Tim., 34 b). — Essa noção foi retomada pelos estói-cos, que identificaram Deus com o mundo e
conceberam-no como "um animal imortal, racional, perfeito, inteligente e bem-aventurado" (DiÓG. L.,
VII, 137). Para Plotino, a A. do mundo é a segunda emanação do Uno ou Deus e procede do Intelecto,
que é a primeira emanação, assim como este procede do Uno. A A. universal está voltada, de um lado,
para o intelecto e, de outro, para as coisas inferiores ou materiais que ela ordena e governa (Enn., V, 1, 2).
Na Escolástica, a A. do mundo foi, às vezes, identificada com o Espírito Santo, como em Abelardo
(Theol. Christ., I, 17) e em alguns representantes da Escola de Chartres (Bernardo Silvestre, Teodorico de
Chartres). No Renascimento, essa doutrina foi retomada por Giordano Bruno, para quem Deus é o
intelecto universal, "que é a primeira e principal faculdade da A. do mundo, e esta é forma universal
daquele [do próprio mundo]" (De Ia causa, III); essa doutrina foi comumente aceita por todos os que
admitiram a validade da magia, que foram muitos (Cornélio Agripa, Paracelso, Fracastoro, Cardano,
Campanella, etc), já que considerada como o fundamento da "simpatia universal" entre as coisas do
mundo, que o mago utiliza em seus encantamentos e em suas operações miraculosas. Schelling utilizou o
conceito de A. do mundo
(Sobre a A. do mundo, 1798) para demonstrar a continuidade do mundo orgânico e do mundo inorgânico
num todo, que é também um organismo vivo, enquanto Hegel negava a "A. mundial", pois considerava
que a A. "tem a sua verdade efetiva só como individualidade, subjetividade" (Ene, § 391). Com o
predomínio da ciência e da concepção mecânica do mundo, a noção de A. do mundo tornou-se,
obviamente, inútil.
ALÓGICO (in. Alogical; fr. Alogique, ai. Alo-gisch; it. Alogicó). 1. O mesmo que a-racio-nal (v.).
2. O que não pode ser reduzido a algum tipo particular de racionalidade e de lógica. O substantivo
alógica foi empregado nesse sentido por Jaspers: "Nesse ponto nasce uma alógica racional (vernunftige
Alogik), isto é, o movimento verdadeiro da razão que alcança o seu objetivo só quando quebra a lógica do
intelecto" (Vemunft und Existenz, 1935, IV, 2, trad. it., p. 128).
ALOGLOSSIA (fr. Alloglossiè). Troca ou confusão no significado das palavras. Esse termo é usado por
Leibniz ( V. Lettre à Clarke, § 45).
ALTERAÇÃO (gr. àlXoíaxnç, in. Alteration; fr. Alteration; ai. Alteration; it. Alterazioné). Segundo
Aristóteles, uma das formas da mudança, mais precisamente aquela conforme à categoria da qualidade,
não se entendendo por qualidade a que é essencial a uma substância e se expressa na diferença específica,
mas a que uma substância ou realidade recebe ou sofre (Fís., V, 2, 226 a 23 ss.). Em outros termos, a A.,
para Aristóteles, é a aquisição ou a perda de qualidades acidentais, como, p. ex., estar ora com boa saúde,
ora com má saúde (Met., VIII, 1, 1.042 a 36). Esse significado de "mudança qualitativa" permaneceu no
uso filosófico da palavra em questão, conquanto nem sempre esse uso tenha ficado dentro dos limites
fixados por Aristóteles, que excluía da A. as qualidades essenciais.
ALTERIDADE (gr. ÉTepóxnç; lat. Alteritas, Alietas; in. Otherness; fr. Altérité, ai. Anderheit,
Anderssein; it. Alteritd). Ser outro, colocar-se ou constituir-se como outro. A A. é um conceito mais
restrito do que diversidade e mais extenso do que diferença. A diversidade pode ser também puramente
numérica, não assim a A. (cf. ARISTÓTELES, Met., IV, 9,1.018 a 12). Por outro lado, a diferença implica
sempre a determinação da diversidade (v. DIFERENÇA), enquanto a A. não a implica. Aristóteles
considerou que
ALTERNAÇÃO
35
ALTRUÍSMO
a distinção de um gênero em várias espécies e a diferença dessas espécies na unidade de um gênero
implica uma A. inerente ao próprio gênero: isto é, uma A. que diferencia o gênero e o torna
intrinsecamente diverso {Met., X, 8, 1.058 a 4 ss.). Do conceito de A. valeu-se Plotino para assinalar a
diferença entre a unidade absoluta do primeiro Princípio e o intelecto, que é a sua primeira emanação:
sendo o intelecto ao mesmo tempo pensante e pensado, intelecto enquanto pensa, ente enquanto é
pensado, é marcado pela A., além de sê-lo pela identidade {Enn., V, I, 4). De modo análogo, Hegel utiliza
o mesmo conceito para definir a natureza com relação à Idéia, que é a totalidade racional da realidade. A
natureza é "a idéia na forma de ser outro (Anderssein)". Desse modo, é a negação de si mesma e é
exterior a si mesma: de modo que a exterioridade constitui a determinação fundamental da natureza {Ene,
§ 247). Mas, de modo mais geral, pode-se dizer que, segundo Hegel, a A. acompanha todo o
desenvolvimento dialético da Idéia, porque é inerente ao momento negativo, intrínseco a esse
desenvolvimento. De fato, tão logo estejam fora do ser indeterminado, que tem como negação o nada
puro, as determinações negativas da Idéia tornam-se, por sua vez, alguma coisa de determinado, isto é,um
"ser outro" que não aquilo mesmo que negam. "A negação — não mais como o nada abstrato, mas como
um ser determinado e um algo — é somente forma para esse algo, é um ser outro" {Ene, % 91).
ALTERNAÇÃO. V. ALTERNATIVA.
ALTERNATIVA, PROPOSIÇÃO (in. Alternative proposition; fr. Proposition alternative, ai.
Alternative Proposition; it. Proposizione alternativa). Com esse nome costuma-se indicar, propriamente,
a proposição molecular dis-juntiva "p ou q" ("ao menos p é verdadeiro, portanto se p não é verdadeiro, q é
verdadeiro"). Mas não raro, em uso não rigoroso, as componentes da disjuntiva molecular são chamadas
de "alternativas", uma em relação à outra. Parece que a palavra alternatio, introduzida pelos escritores
latinos para indicar a proposição disjuntiva, deriva da linguagem jurídica.
G. P.
ALTRUÍSMO (in. Altruism; fr. Altruisme, ai. Altruismus, it. Altruísmo). Esse termo foi criado por
Comte, em oposição a egoísmo (v.), para designar a doutrina moral do positivismo. No Catecismo
positivsta (1852), Comte enunciou a máxima fundamental do A.: viver para os outros. Essa máxima, acreditava ele, não contraria indistintamente todos os instintos do homem já que o
homem possui, ao lado dos instintos egoístas, instintos simpáticos que a educação positivista pode
desenvolver gradualmente, até torná-los predominantes sobre os outros. Com efeito, as relações
domésticas e civis tendem a conter os instintos pessoais, quando eles suscitam conflitos entre os vários
indivíduos, e a promover as inclinações benévolas que se desenvolvem espontaneamente em todos os
indivíduos. Esse termo logo foi aceito por Spencer {Princípios de psicologia, 1870-72), segundo o qual a
antítese entre egoísmo e A. estaria destinada a desaparecer com a evolução moral e que haveria cada vez
mais coincidência entre a satisfação do indivíduo e o bem-estar e a felicidade do outro {Data o/Ethics, §
46). Como se vê, o fundamento da ética altruísta é naturalista, porque apela para os instintos naturais que
levam o indivíduo em direção aos outros e pretende promover o desenvolvimento de tais instintos. O seu
termo polêmico é a ética individualista do séc. XVIII, que reivindica os valores e os direitos do indivíduo
contra os da sociedade, em especial do Estado. Comte, como todo o Romantismo (v.), obedece à exigência
oposta, que insiste no valor preeminente da autoridade estatal; por isso, sua ética prescreve pura e
simplesmente o sacrifício do indivíduo. Não é, portanto, de se estranhar que as doutrinas interessadas na
defesa do indivíduo tenham considerado com hostilidade e desprezo a moral do altruísmo. Assim, em
Nietzsche, ao identificar-se amor ao próximo com A., este é condenado por Zaratustra. "Vós ides ao
próximo fugindo de vós mesmos e quereríeis fazer disso uma virtude; mas eu leio através do vosso A...
Não sabeis suportar-vos a vós mesmos e não vos amais o bastante; e eis que quereis seduzir o vosso
próximo induzindo-o ao amor e embelezar-vos com o seu amor" {Also sprach Zarathustra, cap. sobre o
Amor ao próximo). Em terreno mais objetivo e científico, Scheler {Sympathie, II, cap. I) negou a
identificação (pressuposta também por Nietzsche) do A. com o amor. Observou que os atos que se
dirigem para os outros enquanto outros nem sempre são, necessariamente, "amor". A inveja, a maldade, a
alegria maligna, referem-se igualmente aos outros enquanto outros. Um amor que faz abstração total de si
mesmo apóia-se num ódio ainda mais primitivo, isto é, o ódio de si mesmo. "Fazer abstração de si, não
poder suportar
AMABIMUS
36
AMBIVALÊNCIA
o colóquio consigo mesmo, são coisas que nada têm a ver com o amor". Na realidade, a máxima do A.,
"viver para os outros", se tomada literalmente, faria de todos os homens meios para um fim que não
existe; por isso, é contrária a um dos teoremas mais bem estabelecidos da ética moderna (e da ética em
geral), isto é, aquele segundo o qual o homem nunca deve ser considerado um simples meio, mas deve ter
sempre, também, valor de fim.
AMABIMUS. V. PURPÚREA.
AMBIENTE (in. Environment; fr. Milieu; ai. Mittel; it. Ambiente). No significado corrente, um
complexo de relações entre mundo natural e ser vivo, que influem na vida e no comportamento do mesmo
ser vivo. Nesse sentido, essa palavra {milieu ambianf) foi provavelmente introduzida pelo biólogo
Geoffroy St.-Hilaire {Études progressives d'un naturaliste, 1835), sendo retomada e empregada por
Comte {Cours dephilosophiepositive, liç. 40, § 13 ss.). Observações sobre a influência das condições
físicas, especialmente do clima, sobre a vida dos animais, em geral, e do homem em particular, e até sobre
a vida política do homem, encontram-se freqüentemente nos escritores antigos (cf., p. ex., ARISTÓTELES,
Pol., VII, 4, 7), sendo depois repetidas de várias formas. No mundo moderno, deve-se a Montesquieu
(Livro XIV de Vesprit des lois, 1648) o princípio, por ele sistematicamente desenvolvido, de que "o
caráter do espírito e as paixões do coração são extremamente diferentes nos diversos climas" e por isso
"as leis devem ser relativas à diferença dessas paixões e à diferença desses caracteres". O positivismo
oitocentista atribuiu ao A. físico e biológico valor de causa determinante de todos os fenômenos
propriamente humanos, da literatura à política. A obra literária e filosófica de Taine contribuiu para a
difusão dessa tese, segundo a qual o ambiente físico, biológico e social determina necessariamente todos
os produtos e valores humanos, bastando para explicá-los. Em Filosofia da arte (1865), Taine afirmou
que a obra de arte é produto necessário do ambiente e que, por isso, se pode inferir dele não só o
desenvolvimento das formas gerais da imaginação humana, como também a explicação para as variações
de estilos, as diferenças de escolas nacionais, e até mesmo os caracteres gerais das obras individuais. No
mundo contemporâneo, a noção de A. continuou sendo fundamental nas ciências biológicas,
antropológicas e sociológicas, mas foi se
transformando gradualmente, já que a relação entre o A. e o organismo, ou entre o homem e o grupo
social deixou de ser entendida segundo um esquema mecânico, isto é, como uma relação de determinismo
causai absoluto. A ação seletiva que o ser, sobre o qual o A. age, exerce em face do próprio A. foi
amplamente sublinhada. "O A. de um organismo", disse Goldstein, "não é algo acabado, mas vai-se
formando continuamente, à medida que o organismo vive e age. Poder-se-ia dizer que o A. é extraído do
mundo pela existência do organismo, ou, mais objetivamente, que um organismo não pode existir se não
conseguir encontrar no mundo, talhar nele, para si, um A. adequado, contanto, naturalmente, que o mundo
lhe ofereça essa possibilidade" {Aufbau des Organismus, 1934, p. 58). Analogamente, a propósito do A.
histó-rico-social, Toynbee disse: "O A. total, geográfico e social, em que está compreendido tanto o
elemento humano quanto o não-humano, não pode ser considerado um fator positivo a partir do qual as
civilizações foram geradas. É claro que uma combinação virtualmente idêntica dos dois elementos do A.
pode originar uma civilização num caso e deixar de originá-la em outro, sem que seja possível, de nossa
parte, explicar essa diferença absoluta em seu surgimento com alguma diferença substancial nas
circunstâncias, por mais exatos que tenham sido os termos da comparação" {A Study ofHistory, I, p. 269).
Isto, obviamente, não significa que o A. não aja de nenhum modo sobre a vida e sobre as criações dos
homens, mas apenas que é mais condição do que causa. Os filósofos sublinharam esse novo significado
de ambiente. Mead disse: "O A. é uma seleção dependente da forma viva" (PM. oftheAct, p. 164). Por
outro lado, Heidegger pretendeu analisar o ser no mundo (que é determinação essencial da existência)
como um questionamento e uma discussão da noção de A. que a biologia apenas pressupõe {Sein und
Zeit, §12).
AMBIGÜIDADE (in. Ambiguity, fr. Am-biguité. ai. Ambiguitüt; it. Ambiguitã). 1. O mesmo que
equivocação (v.).
2. Referindo-se a estados de fato ou situações: possibilidade de interpretações diversas ou presença de
alternativas que se excluem.
AMBIVALÊNCIA (in. Ambivalence, fr. Am-bivalence, ai. Ambivalenz; it. Ambivalenzá). Estado
caracterizado pela presença simultânea de valorizações ou de atitudes contrastantes ou
AMÉRICA
37
AMIZADE
opostas. Esse termo é usado especialmente em psicologia, para indicar certas situações emotivas que
implicam amor e ódio, e em geral atitudes opostas em face do mesmo objeto (cf. E. BLEULER, Lehrbuch
derPsychiatrie, 2
g
ed., 1918). AMÉRICA (in. America; fr. Amérique, ai. Amerika; it. America). Os
filósofos do Romantismo tiveram participação ativa na "disputa no Novo Mundo", que se iniciou em
meados do séc. XVIII e pode-se dizer que ainda perdura, a propósito da inferioridade ou superioridade da
América. A tese da fragilidade ou da "imaturidade" das Américas nasce com Buffon, que, examinando
comparativamente as espécies animais na A. e na Europa, concluía que na A. "a natureza viva é bem
menos ativa, bem menos variada e, pode-se dizer também, bem menos forte" (CEuvres, ed. 1826-28, XV,
429). As teses de Buffon foram polemicamente amplificadas pelo abade De Paw, num texto de 1768,
Recherchesphilosophiqu.es sur les Américains. Nas mãos de Hegel, as observações de Buffon e De Paw
tornam-se, em conformidade com seu espírito, "determinações absolutas", verdades necessariamente
deduzidas. A A. é um mundo novo no sentido de ser imaturo e fraco; nele, a fauna é mais débil, mas em
compensação a vegetação é monstruosa. Nela faltam os dois instrumentos de, progresso civil, o ferro e o
cavalo (Ene, § 339, Zus). A A. é, portanto, um mundo novo no sentido de ser jovem e imaturo. Até
mesmo o mar entre a A. do Sul e a Ásia "manifesta uma imaturidade física quanto à sua origem". E, por
tudo isso, "a A. sempre se mostrou e mostra-se ainda impotente, tanto do ponto de vista físico quanto do
espiritual" {Phil. der Geschichte, ed. Lasson, pp. 122 ss.). É bem verdade que, talvez mesmo por essa
imaturidade, a A. é "a Terra do futuro, para a qual, em tempos futuros, talvez na luta entre o Norte e o Sul,
se voltará o interesse da história universal". Mas Hegel logo acrescenta: "Como terra do futuro, ela
absolutamente não nos diz respeito. O filósofo não entende de profecias. Pelo lado da história nós temos
mais a ver com o que foi e com o que é, ao passo que na filosofia não nos ocupamos nem do que só foi,
nem do que só será, mas do que é e é eternamente: da razão; com o que já temos muito que fazer" (ibid.,
ed. Lasson, p. 129). Schopenhauer, por sua vez, repetia as observações (se assim se podem chamar) sobre
a inferioridade da fauna americana e dos indígenas; e acrescia, na linguagem florida das suas invectivas,
uma descrição dos
Estados Unidos como de um país próspero, mas dominado por um vil utilitarismo e por sua inevitável
companheira, a ignorância, que abriu caminho à estúpida beatice anglicana, à tola presunção e à brutal
vulgaridade, aliada a uma estulta veneração pelas mulheres (Die Welt, II, 44; Parerga, II, VI § 92). Da
mesma tendência denegridora não se exime o outro ramo do Romantismo, o positivismo, que, através de
Comte, desvaloriza o alcance da revolução americana, vê nos Estados Unidos uma "colônia universal" e
considera a sua civilização de todo desprovida de originalidade e uma simples filial da civilização inglesa
(Cours de phil. positive, V, 470-71; VI, 60 n.). Por outro lado, o mesmo Romantismo sugeria a Emerson
uma exaltação mística da A., tão fantástica e arbitrária quanto as infamações dos românticos europeus
{The American Scholar, 1837; The YoungAmerican, 1844). Já Humboldt notava (Ansichten derNatur,
1807) o caráter arbitrário e fantástico desses comentários que pretendiam ser "científicos" ou
"especulativos" e que eram somente dog-matizações de preconceitos. Mas, apesar disso, os elementos da
polêmica sobre o Novo Mundo permaneceram por longo tempo e talvez ainda hoje permaneçam os
mesmos que apontamos (para mais detalhes, cf. A. GERBI, La disputa dei Nuovo Mondo, Milão-Nápoles,
1955). AMIZADE (gr. (piÀia; in. Friendship, fr. Amitiê, ai. Freundschaft; it. Amicizid). Em geral, a
comunidade de duas ou mais pessoas ligadas por atitudes concordantes e por afetos positivos. Os antigos
tiveram da A. um conceito muito mais amplo do que o admitido e usado hoje em dia, como se infere da
análise que Aristóteles fez dela nos livros VIII e IX da Ética a Nicômaco. Segundo Aristóteles, a amizade
é uma virtude ou está estreitamente unida à virtude: de qualquer forma, é o que há de mais necessário à
vida, já que os bens que a vida oferece, como riqueza, poder, etc, não podem ser conservados nem usados
sem os amigos (VIII, 1, 1.155 a 1). A A. deve ser distinguida das duas coisas com as quais parece ter mais
afinidade: amor e benevolência. Distingue-se do amor ((píÀncriç) porque este é semelhante a uma
afeição (v.); a A. a um hábito (v.). De tal modo que o amor também pode dirigir-se a coisas inanimadas,
ao passo que corresponder ao amor, que é próprio da A. implica uma escolha que provém de um hábito
(VIII, 5,1.157 b 28). Além disso, o amor é acompanhado por excitação e desejo, que são estranhos à A.;
além disso, di-
AMIZADE
38
AMOR
ferentemente da A., é provocado pelo prazer causado pela vista da beleza (IX, 5, 1.166 b 30). A A.
distingue-se também da benevolência porque esta também pode dirigir-se a desconhecidos e permanecer
oculta: o que não acontece com a A. (IX, 5, 1.167 a 10). A A. é, certamente, uma espécie de concórdia,
mas uma concórdia que não repousa na identidade de opiniões, mas, assim como a concórdia entre
cidades, na harmonia das atitudes práticas, de sorte que, a justo título, chama-se de "A. civil" a concórdia
política (IX, 6, 1.167 a 22). A A. é, certamente, uma comunidade no sentido de que o amigo se comporta
em relação ao amigo como em relação a si mesmo (IX, 12, 1.171 b 32). Há tantas espécies de amizades
quantas são as comunidades, isto é, as partes da sociedade civil: entre os navegantes, entre os soldados,
entre os que fazem um trabalho qualquer em comum (VIII, 9, 1.159 b 25). Pode haver também A. entre
senhor e escravo, se o escravo não for considerado apenas um instrumento animado, mas um homem. Só
na tirania há pouca ou nenhuma A., pois nela não há nada em comum entre quem manda e quem obedece,
e a A. é tão mais forte quanto mais coisas comuns houver entre iguais (VIII, 11, 1.161, b 5). Há também
tantas A. quantas são as formas do amor: entre pai e filho, entre jovem e velho, entre marido e mulher.
Esta última é a mais natural e nela se unem a utilidade e o prazer (VIII, 12, 1.Í61 b 11). Quanto ao
fundamento da A., pode ser a utilidade recíproca, o prazer ou o bem, mas é claro que, enquanto a A.
fundada na utilidade ou no prazer está destinada a acabar quando o prazer ou a utilidade cessarem, a A.
fundada no bem é a mais estável e firme, portanto a verdadeira A. (VIII, 3, 1.156 a 6 ss.). Essa análise de
Aristóteles, a mais completa e bela que em filosofia já se fez sobre o fenômeno A., apóia-se nos seguintes
pontos: le a A. é uma comunidade ou participação solidária de várias pessoas em atitudes, valores ou bens
determinados; 22
está ligada ao amor, tem formas semelhantes, mas não se identifica com o amor; 3e
aproxima-se mais da benevolência e, por isso, está vinculada aos afetos positivos, que implicam
solicitude, cuidado, piedade, etc. Assim, segundo Aristóteles, a A. é mais ampla do que o amor, que é
limitado e condicionado pelo prazer da beleza. E é diferente do amor pelo seu caráter ativo e seletivo,
pelo que Aristóteles diz que o amor é uma afeição (rtá8oç), isto é, uma modificação sofrida, ao passo que
a
A. é um hábito (assim como hábito é a virtude), isto é, uma disposição ativa e compromissiva da pessoa.
Depois de Aristóteles, a A. foi exaltada pelos epicuristas, que nela basearam um dos fundamentos de sua
ética e de sua conduta prática. Nessa escola, porém, assume caráter aristocrático; é uma das manifestações
da vida do sábio, e não está, como em Aristóteles, vinculada às relações humanas como tais. Nos
testemunhos epicuristas que nos chegaram, reaparecem alguns reparos aristotélicos, como, p. ex., que "A
A. nasce do útil, mas é um bem por si. Amigo não é quem procura sempre o útil, nem quem nunca o une à
A., pois o primeiro considera a A. como um tráfico de vantagens, e o segundo destrói a esperança
confiante de ajuda, que é parte importante da A." (Sent. Vat., 39-24, Bignone).
Com o predomínio do Cristianismo, a importância da A. como fenômeno humano primário declina na
literatura filosófica. O conceito mais amplo e mais importante passa a ser o do amor, do amor ao próxúno,
que carece dos caracteres seletivos e específicos que Aristóteles atribuíra à amizade. De fato, "próximo" é
aquele com que deparamos ou que está comumente em relação conosco, seja quem for, amigo ou inimigo.
A máxima aristotélica da A., "comportar-se com o amigo como consigo mesmo", ver nele "um outro eu"
(Et. nic, IX, 9, 1170 b 5; IX, 12, 1171 b 32), é estendida pelo Cristianismo a todo próximo.
AMOR (gr. epcoç àyárvc\; lat. Amor, caritas; in. Love, fr. Amour, ai. Liebe, it. Amoré). Os significados
que este termo apresenta na linguagem comum são múltiplos, díspares e contrastantes; igualmente
múltiplos, díspares e contrastantes são os que se apresentam na tradição filosófica. Começaremos
apontando os usos mais correntes da linguagem comum, para selecioná-los, ordená-los e utilizá-los como
critério de seleção e organização dos usos filosóficos desse termo: d) em primeiro lugar, com a palavra A.
designa-se a relação intersexual, quando essa relação é seletiva e eletiva, sendo, por isso, acompanhada
por amizade e por afetos positivos (solicitude, ternura, etc). Do A., nesse sentido, distinguem-se
freqüentemente as relações sexuais de base puramente sensual, que não se baseiam na escolha pessoal,
mas na necessidade anônima e impessoal de relações sexuais. Muitas vezes, porém, a mesma linguagem
comum estende também para esse tipo de relações a palavra A., como quando se diz "fa-
AMOR
39
AMOR
zer amor"; b) em segundo lugar, a palavra A. designa uma vasta gama de relações interpessoais, como
quando se fala do A. entre amigos, entre pais e filhos, entre cidadãos, entre cônjuges; c) em terceiro lugar,
fala-se do A. por coisas ou objetos inanimados: p. ex., A. ao dinheiro, a obras de arte, aos livros, etc.; d)
em quarto lugar, fala-se de A. a objetos ideais: p. ex., A. à justiça, ao bem, à glória, etc; é) em quinto
lugar, fala-se de A. às atividades ou formas de vida: A. ao trabalho, à profissão, ao jogo, ao luxo, ao
divertimento, etc.;/) em sexto lugar, fala-se de A. à comunidade ou a entes coletivos: A. à pátria, ao
partido, etc; g) em sétimo lugar, fala-se de A. ao próximo e de A. a Deus.
Sem dúvida, alguns desses significados podem ser eliminados por impróprios, já que podem ser expressos
e designados mais exatamente por outras palavras. Assim: d) a relação intersexual só pode ser chamada
de A. quando é de base eletiva e implica o compromisso recíproco. Evitar-se-á, assim, chamar de "A." a
relação sexual ocasional ou anônima. No que diz respeito aos usos indicados em c) (isto é, A. a objetos
inanimados), está claro que, aí, a palavra A. está por desejo de posse, quando tal desejo atinge a forma
dominante da paixão. E, no que tange aos usos indicados em d) (A. a objetos ideais), está também claro
que a palavra "A." está aí a indicar certo compromisso moral, capaz de fixar limites e condições à
atividade do indivíduo. Enfim, no que diz respeito a é) (A. a atividades, etc.) a palavra "A." está a indicar
certo interesse mais ou menos dominante, isto é, mais ou menos incorporado na personalidade do
indivíduo, ou até mesmo uma "paixão". Portanto, pode-se tomar em consideração, como significados
próprios e irredutíveis da palavra "A.", as acepções indicadas em (d), (£). (/"), Cg)- Esses usos revelam de
imediato certas afinidades de significado: ls
o A. designa, em todos os casos, um tipo específico de relação
humana, caracterizado pela solidariedade e pela concórdia dos indivíduos que dele participam; 2Q
o
desejo, em particular o desejo de posse, não se inclui necessariamente na constituição do A., pois, se é
discutível que se inclua no A. sexual, deve ser totalmente excluído do A. de que se fala em (b), (/"), (g);
3
Q
o caráter específico da solidariedade e da concórdia, que constituem o A., não pode ser determinado de
uma vez por todas, já que é diferente, segundo as formas ou as espécies diversas do A. e implica também graus diversos de intimidade, de familiaridade e de emotividade. P. ex., o A. entre homem e
mulher, entre pai e filho, entre cidadãos ou entre homens que se considerem como "próximos" tem
diferentes bases biológicas, culturais e sociais e não permite a reunião sob o mesmo tipo ou a mesma
forma de solidariedade, de concórdia e de co-participação emotiva. Será necessário, portanto, ter em
mente essa diversidade ao se considerar o uso que os filósofos fizeram desse termo, já que não raro esse
uso é modelado por um ou mais tipos particulares de experiência amorosa.
Os gregos viram no A. sobretudo uma força unificadora e harmonizadora, que entenderam baseada no A.
sexual, na concórdia política e na amizade. Segundo Aristóteles {Mel, I, 4,984 b 25 ss.), Hesíodo e
Parmênides foram os primeiros a sugerir que o A. é a força que move as coisas, que as une e as mantém
juntas. Em-pédocles reconheceu no A. a força que mantém unidos os quatro elementos e, na discórdia, a
força que os separa: o reino do A. é o esfero, a fase culminante do ciclo cósmico, na qual todos os
elementos estão ligados na mais completa harmonia. Nesse fase, não há nem sol nem terra nem mar,
porque não há nada além de um todo uniforme, uma divindade que frui a sua solidão {Fr. 27, Diels).
Platão nos deu o primeiro tratado filosófico do A.: nele foram apresentados e conservados os caracteres
do A. sexual; ao mesmo tempo, tais caracteres são generalizados e sublimados. Em primeiro lugar, o A. é
falta, insuficiência, necessidade e, ao mesmo tempo, desejo de conquistar e de conservar o que não se
possui (O Banq., 200 a, ss.). Em segundo lugar, o A. dirige-se para a beleza, que outra coisa não é senão o
anúncio e a aparência do bem, logo, desejo do bem (ibid., 205 e). Em terceiro lugar, o A. é desejo de
vencer a morte (como demonstra o instinto de gerar, próprio de todos os animais) e é, portanto, a via pela
qual o ser mortal procura salvar-se da mortalidade, não permanecendo sempre o mesmo, como o ser
divino, mas deixando após si, em troca do que envelhece e morre, algo de novo que se lhe assemelha
(Jbid., 208 a, b). Em quarto lugar, Platão distingue tantas formas do A. quantas são as formas do belo,
desde a beleza sensível até a beleza da sabedoria, que é a mais elevada de todas e cujo A., isto é, a
filosofia, é, por isso mesmo, o mais nobre iibid., 210 a, ss.). Em Fedro, a finalidade é mostrar o caminho
pelo qual o A. sensível pode tornar-se amor
AMOR
40
AMOR
pela sabedoria, isto é, filosofia, e o delírio erótico pode tornar-se uma virtude divina, que afasta dos
modos de vida usuais e empenha o homem na difícil procura dialética (Fed., 265 b. ss.). Essa doutrina
platônica do A., ao mesmo tempo em que contém os elementos de uma análise positiva do fenômeno,
oferece também o modelo de uma metafísica do A., que seria retomada várias vezes na história da
filosofia. Aristóteles, ao contrário, detém-se na consideração positiva do amor. Para ele o A. é A. sexual,
afeto entre consangüíneos ou entre pessoas de algum modo unidas por uma relação solidária, ou amizade
(v.). Em geral, o A. e o ódio, como todas as outras afeições da alma, não pertencem à alma como tal, mas
ao homem enquanto composto de alma e corpo (Dean., 1,1, 403 a 3) e, portanto, enfraquecem-se com o
enfraquecimento da união de alma e corpo (Jbid., I, 4, 408 b 25). Aristóteles também reconhece no A. o
fundamento de necessidade, imperfeição ou deficiência, em que Platão insistira. A divindade, diz ele, não
tem necessidade de amizade, pois é o seu próprio bem para si mesma, enquanto para nós o bem vem do
outro (Et. eud., VII, 12, 1.245 b 14). O A. é, portanto, um fenômeno humano e não é de estranhar que
Aristóteles não tenha feito nenhum uso dele em sua teologia. Ele é uma afeição, isto é, uma modificação
passiva, enquanto a amizade é um hábito, uma disposição ativa (Et. nic, VIII, 5,1.157 b 28). Ao A. unemse a tensão emotiva e o desejo: ninguém é atingido pelo A. se não foi antes ferido pelo prazer da beleza;
mas esse prazer de per si não é ainda A., que só se tem quando se deseja o objeto amado que está ausente
e se anseia por ele quando presente (ibid., IX, 5, 1.167 a 5). O A. que está ligado ao prazer pode começar
e acabar rapidamente, mas pode também dar lugar à vontade de conviver; neste caso, assume a forma da
amizade (ibid., VIII, 3, 1.156 b 4). Se a análise aristotélica do A. é desprovida de referências metafísicas e
teológicas, convém recordar que a ordenação finalista do mundo e a teoria do primeiro motor imóvel
levam Aristóteles a dizer que Deus, como primeiro motor, move as outras coisas "como objeto de A.", isto
é, como termo do desejo que as coisas têm de alcançar a perfeição dele (Met., XII, 7, 1.072 b 3). Essas
palavras serão muito empregadas pela filosofia medieval. Ao findar da filosofia grega, o neoplatonismo
utilizou a noção de A. não para definir a natureza de Deus, mas para indicar uma das fases do caminho que conduz a Deus. O Uno de Plotino não é A., porque é unidade inefável,
superior à dualidade do desejo (Enn., VI, 7, 40). Mas o A. é o caminho preparatório que conduz à visão
dele, porque o objeto do A., segundo a doutrina de Platão, é o bem, e o Uno é o bem mais alto (ibid., VI,
7, 22). O Uno, portanto, é o verdadeiro termo e o objeto último e ideal de todo A., conquanto não seja
através do A. que o homem se une a Ele, mas através da intuição, de uma visão em que o vidente e o visto
se fundem e se unificam (ibid., VI, 9, 11).
Com o Cristianismo, a noção de A. sofre uma transformação; de um lado, é entendido como relação ou
um tipo de relação que deve estender-se a todo "próximo"; de outro, transforma-se em um mandamento,
que não tem conexões com as situações de fato e que se propõe transformar essas situações e criar uma
comunidade que ainda não existe, mas que deverá irmanar todos os homens: o reino de Deus. O A. ao
próximo transforma-se no mandamento da não-resistência ao mal' (MATEUS, 5, 44), e a parábola do bom
Samaritano (LUCAS, 10, 29 ss.) tende a definir a humanidade à qual o A. deve dirigir-se, não no seu
sentido composto, mas no seu sentido dividido, como cada pessoa com quem cada um entre em contato; a
qual, exatamente como tal, faz apelo à solicitude e ao A. do cristão. Além disso, na concepção cristã, o
próprio Deus responde com A. ao A. dos homens; por isso, seu atributo fundamental é o de "Pai". As
Epístolas de S. Paulo, identificando o reino de Deus com a Igreja e considerando a Igreja o "corpo de
Cristo", cujos membros são os cristãos (Rom., 12,5 ss.), fazem do A. (àyáw[\), que é o vínculo da
comunidade religiosa, a condição da vida cristã. Todos os outros dons do Espírito, a profecia, a ciência, a
fé, nada são sem ele. "O A. tudo suporta, em tudo crê, tudo espera, tudo sustenta... Agora há fé, esperança,
amor, três coisas; mas o amor é a maior de todas" (Cor., I, 13, 7-13). A elaboração teológica sofrida pelo
Cristianismo no período da Patrística não utilizou, no princípio, a noção de A. Nos grandes sistemas da
Patrística oriental (Orígenes, Gregório de Nissa), a terceira pessoa da Trindade, o Espírito Santo, é
entendida como uma potência subordinada e de caráter incerto: daí, também, as freqüentes discussões
trinitárias que o concilio de Nicéia (325) não logrou eliminar de todo. Somente por obra de S. Agostinho,
com a identificação do Espírito
AMOR
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AMOR
Santo ao A. (enquanto Deus Pai é o Ser e Deus Filho é a Verdade), o A. é introduzido explicitamente na
própria essência divina e torna-se um conceito teológico, além de moral e religioso. O A. a Deus e o A. ao
próximo unem-se em S. Agostinho, quase formando um conceito único. Amar a Deus significa amar o A.;
mas, diz Agostinho, "não se pode amar o A. se não se ama quem ama". Não é A. o que não ama ninguém.
Por isso, o homem não pode amar a Deus, que é o A., se não amar o outro homem. O A. fraterno entre os
homens "não só deriva de Deus, mas é Deus mesmo" (De Trin., VIII, 12): é a revelação de Deus, em um
de seus aspectos essenciais, à consciência dos homens. Contudo, em S. Agostinho, a noção de A. ainda é a
mesma dos gregos: uma espécie de relação, união ou vínculo que liga um ser ao outro: quase "uma vida
que une ou tende a unir dois seres, o amante e o que se ama" (ibid., VIII, 6). Essas idéias de Agostinho
são retomadas freqüentemente durante todo o desenvolvimento de uma das principais correntes da
Escolástica medieval, o agostinismo (v.): por João Scotus Erigena e João Duns Scot. Scotus Erigena diz:
"O A. é a conexão e o vínculo pelo qual todas as coisas são ligadas em amizade inefável e em indissolúvel
unidade... Com justiça, diz-se que Deus é A., porque eje é causa de A. e o A. difunde-se através de todas
as coisas, reúne-as todas na unidade e as reconduz ao seu inefável ponto de partida: o movimento de A. de
toda criatura tem o seu termo em Deus" (De divis. nat., I, 76). E Duns Scot afirma que Deus gera o Verbo
conhecendo a Sua própria essência e exala o Espírito Santo amando esta essência. Desse modo, o A.
eterno é a origem e a causa de toda comunicação da essência divina e, embora esse ato não seja "natural",
porque é um ato de vontade, é todavia necessário (Op. Ox., I, dist. 10, q. 1, ns
2). Comentários análogos
reaparecem freqüentemente na corrente mística (v. MISTICISMO), enquanto na corrente aristotélica o uso
teológico da noção de A. é muito mais restrito, preferindo-se ilustrar a natureza divina com base nos
conceitos de ser, substância e causalidade. Contudo, em toda a Escolástica, são repetidas as idéias de
Aristóteles sobre a amizade, oportunamente modificadas e adaptadas para caracterizar a natureza do A.
cristão (caritas). Assim, S. Tomás afirma que é comum a toda natureza ter certa inclinação, que é o
apetite natural ou o A. Essa inclinação é diferente nas diferentes naturezas e há,
portanto, um A. natural e um A. intelectual; o A. natural é também um A. reto, por ser uma inclinação
posta por Deus nos seres criados; mas o A. intelectual, que é caridade e virtude, é mais perfeito do que o
primeiro; portanto, ao se acrescentar a ele, aperfeiçoa-o, do mesmo modo como a verdade sobrenatural se
acrescenta à verdade natural, sem se lhe opor, e a aperfeiçoa (S. Tb., I, q. 60, a. 1). Quanto ao A.
intelectual, isto é, à caridade, esta é definida por S. Tomás como "a amizade do homem por Deus",
entendendo-se por "amizade", segundo o significado aristotélico, o A. que está unido à benevolência
(amor benevolentiaé), isto é, que quer o bem de quem se ama, e não quer simplesmente apropriar-se do
bem que está na coisa amada (amor concupiscientiae), como acontece com quem ama o vinho ou um
cavalo. Mas a amizade supõe não só a benevolência como também o A. mútuo e, assim, funda-se em certa
comunicação, que, no caso da caridade, é a do homem com Deus, que nos comunica a Sua bemaventurança (ibid., II, 2, q. 23, a. 1). Essa comunhão é, segundo S. Tomás, o que há de próprio no A.: este
é uma espécie de união ou vínculo (unio vel nexus) de natureza afetiva, semelhante à união substancial
porquanto quem ama comporta-se em relação ao amado como em relação a si mesmo. Uma união real é
também efeito do A., mas trata-se de uma união que não altera nem corrompe aqueles que se unem, mas
se mantém nos limites oportunos e convenientes, fazendo, p. ex. que conversem e dialoguem ou que se
unam de outros modos semelhantes (ibid., II, 1, q. 28, a. 1, ad 2). Porquanto "amar" significa querer o
bem de alguém, o A. pertence à vontade de Deus e a constitui. Mas o A. de Deus é diferente do amor
humano porque, enquanto este último não cria a bondade das coisas, mas a encontra no objeto pelo qual é
suscitado, o A. de Deus infunde e cria a bondade nas próprias coisas (ibid., I, q. 20, a. 2).
A especulação teológica sobre o A. retorna no platonismo renascentista, mas este acentua a reciprocidade
do A. entre Deus e o homem, consoante a tendência, própria do Renascimento, de insistir no valor e na
dignidade do homem como tal. Marsílio Ficino afirma que o A. é o liame do mundo e elimina a
indignidade da natureza corpórea, que é resgatada pela solicitude de Deus (Theol. plat., XVI, 7). O
homem não poderia amar a Deus, se o próprio Deus não o amasse; Deus volve-se para o mundo
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como um livre ato de A., cuida dele e torna-o vivo e ativo. O A. explica a liberdade da ação divina assim
como a da ação humana, já que ele é livre e nasce espontaneamente da livre vontade (In Conv. Plat. de
Am. Comm., V, 8). As mesmas palavras repetem-se em Diálogos de amor, de Leão Hebreu, que tiveram
vastíssima difusão na segunda metade do séc. XVI. Mas também no naturalismo do Renascimento o A.
retorna, às vezes, como força metafísica e teológica. Campanella julga que as três primalidades do ser
(isto é, os três princípios constitutivos do mundo) são o Poder, o Saber e o A. (Met, VI, proêmio). O A.
pertence a todos os entes porque todos amam o seu ser e desejam conservá-lo (ibid., VI, 10, a. 1). Nas três
primalidades, a relação de um ser consigo mesmo precede a sua relação com o outro: só se pode exercer
força sobre outro ser na medida em que se a exerce sobre si mesmo; assim, pode-se amar e conhecer o
outro ser só na medida em que se conhece e se ama a si mesmo (ibid., II, 5, 1, a. 13). Em todas as coisas
finitas as três primalidades misturam-se com os seus contrários: a potência com a impotência, a sapiência
com a insipiência, o A. com o ódio. Somente em Deus, que é infinito, elas excluem tais contrários e
existem em pureza e em absoluto (ibid., VI, proêmio). Trata-se, como se vê, de comentários que lembram
os de Agostinho. E, na realidade, o uso metafísico e teológico da noção de A. pode ser considerado, na
tradição filosófica, como uma contribuição do agostinismo, pelo menos até ao Romantismo, quando essa
noção assume sentido panteísta, cujo precedente mais importante é Spinoza. É preciso ter em mente que o
uso teológico da noção de A. implica não só que Deus é objeto de A. (o que não é negado por nenhuma
concepção cristã da divindade), mas que Ele próprio ama: o que é algo completamente diferente e que se
encontra só no agostinismo, no Romantismo e em algumas concepções que, como a de Feuerbach e do
positivismo moderno, tendem a identificar Deus com a humanidade. Na realidade, o A., no seu conceito
clássico, que tem como modelo a experiência humana, tem como condição a falta — e portanto o desejo e
a necessidade — daquilo que se ama; dificilmente pode ser atribuído a Deus, que, na sua plenitude e
infinitude, está isento de qualquer deficiência. A concepção panteísta do A., p. ex., como a de Spinoza, de
Schelling e de Hegel, resolve essa dificuldade só quando interpreta o A. como unidade ou consciência da
unidade,
isto é, de um modo que não encontra correspondência em qualquer tipo de experiência amorosa. A
unidade, seja ela ou não consciente de si, nada tem a ver com o A. e é, aliás, a negação do A., porque
exclui a relação e a comunidade que o constituem em todas as suas manifestações. E bastante óbvio que
onde há uma só coisa não há nem quem ame nem quem seja amado.
À tradição agostiniana podem-se referir as famosas palavras de Pascal: "O Deus de Abrão, o Deus de
Isaac, o Deus de Jacó, o Deus dos Cristãos, é um Deus de A. e de consolação, é um Deus que enche a
alma e o coração daqueles que Ele possui e lhes faz sentir interiormente a sua própria miséria e a
misericórdia infinita d'Ele" (Pensées, 556, Brunschvicg). Mas é duvidoso que neste texto ou em outros
semelhantes de Pascal se possa ver muito mais do que a noção de que Deus é — em primeiro lugar e
sobretudo — objeto de amor. Quanto a Male-branche, afirma que Deus criou o mundo "para
proporcionar-Se uma honra digna de Si" (Recherche de Ia vérité, IX) e que o Verbo disse: "É o meu poder
que faz tudo, tanto o bem quanto o mal... por isso, deves amar somente a mim, porque ninguém fora de
mim produz em ti os prazeres que experimentas por ocasião do que acontece no teu corpo" (Méditations
chrétiennes, XII, 5); palavras que parecem excluir a doutrina de Deus como A.
As apreciações de Descartes sobre o fenômeno A., em escala humana, são importantes. "O A.", diz ele, "é
uma emoção da alma, produzida pelo movimento dos espíritos vitais que a incita a unir-se
voluntariamente aos objetos que lhe parecem convenientes." Porquanto é produzido pelos espíritos, o A.,
que é uma afeição e depende do corpo, difere do juízo que também induz a alma, de sua livre vontade, a
unir-se às coisas que julga boas (Pass. de l'âme, II, 79). O A. distingue-se, outrossim, do desejo, que é
dirigido para o futuro; permite, porém, que nos consideremos imediatamente unidos com o que amamos
"de tal modo que imaginamos um todo de que somos só uma parte e do qual a coisa amada é a outra
parte" (ibid., 80). Descartes rejeita a distinção medieval entre A. de concupiscência e A. de benevolência
porque, diz ele, essa distinção concerne aos efeitos do A., mas não à sua essência: na medida em que
estamos unidos voluntariamente a algum objeto, qualquer que seja a natureza deste, temos por ele um
sentimento de benevolência e este é um dos principais efeitos do A. (ibid.,
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81). Há, todavia, várias espécies de A., relativas aos diferentes objetos que possamos amar: o A. que um
homem ambicioso sente pela glória, o pobre pelo dinheiro, o beberrão pelo vinho, um homem brutal por
uma mulher que deseje violar, o homem honrado pelo amigo ou pela mulher e um bom pai pelos filhos
são espécies diversas e todavia semelhantes de A. As quatro primeiras, porém, são A. só à posse dos
objetos para os quais a emoção se dirige e não são A. aos objetos em si mesmos; as outras, no entanto,
dirigem-se aos próprios objetos e desejam o bem deles (ibid., 82). Desta natureza é também a amizade,
que, além do mais, está ligada à estima da pessoa amada; de tal modo que não se pode ter amizade por
uma flor, um pássaro, cavalo, mas só pelos homens (ibid., 83)- Em geral, quando julgamos o objeto do A.
inferior a nós mesmos, sentimos por ele simples afeto (v.); quando o julgamos igual a nós mesmos,
sentimos amizade, e quando o julgamos superior a nós mesmos, sentimos devoção. Desta última, o
principal objeto é, naturalmente, Deus, mas pode dirigir-se também à pátria, à cidade e a qualquer homem
que julgamos muito superior a nós mesmos (ibid., 83). Na mesma linha, acha-se a análise de Hume,
segundo a qual o A. é uma emoção indefinível, mas cujo mecanismo pode ser compreendido. A sua causa
é sempre um ser pensante Chão se podem amar objetos inanimados) e o mecanismo com que essa causa
age é constituído por uma dupla conexão: conexão de idéias — entre a idéia de si e a idéia do outro ser
pensante — e conexão emotiva entre a emoção do A. e a do orgulho (que é a emoção que nos põe em
relação com o nosso eu); ou entre a emoção do ódio e a da humildade (Diss. on thePassions, II, 2). Em
geral, os escritores do séc. XVIII insistem na conexão do A. com a benevolência, que é a característica na
qual Aristóteles insistira a propósito da amizade. Leibniz exprimiu essa noção do A. da forma mais clara,
que deveria ser repetida numerosas vezes na literatura do século: "Quando se ama sinceramente uma
pessoa", diz ele (Op. Phil., ed. Erdmann, pp. 789-790), não se procura o próprio proveito nem um prazer
desligado do da pessoa amada, mas procura-se o próprio prazer na satisfação e na felicidade dessa pessoa;
e se essa felicidade não agradasse por si mesma, mas só pela vantagem que dela resultasse para nós, já
não se trataria de A. sincero e puro. É preciso, pois, que se sinta imediatamente prazer nessa felicidade e
que se
sinta dor na infelicidade da pessoa amada, pois o que dá prazer imediato, por si mesmo, é também
desejado por si mesmo como constitutivo (ao menos em parte) do objetivo das nossas intenções e como
algo que faz parte da nossa própria felicidade e nos dá satisfação". Segundo Leibniz, essa noção de A.
elimina a oposição entre duas verdades, isto é, entre a que diz ser-nos impossível desejar outra coisa que
não o nosso próprio bem, e a que diz não haver A. a não ser quando procuramos o bem do objeto amado
por si mesmo e não para nossa própria vantagem. Tem também a vantagem, segundo Leibniz, de ser
comum ao A. divino e ao A. humano porque exprime todos os tipos de A. "não mercenário", como, por
ex., a caritas ou "benevolência universal" (Op.phil, p. 218). Subentende-se que, neste sentido, o A. pode
voltar-se só para "o que é capaz de prazer ou de felicidade"; assim, não se pode dizer, a não ser por
metáfora, que amamos as coisas ina-nimadas que nos dão prazer (Nouv. ess., II, 20,4). Apreciações desse
gênero são bastante freqüentes nos escritores do séc. XVIII. Wolff diz que o A. é "a disposição da alma de
sentir prazer pela felicidade alheia" (Psichol. empírica, § 633). E Vauvenargues afirma: "O A. é
comprazer-se no objeto amado. Amar uma coisa significa comprazer-se em sua posse, em sua graça, em
seu crescimento e temer a sua privação, o seu decaimento, etc." (De 1'esprit humain, § 24).
Nenhum dos escritores do séc. XVIII põe em dúvida que o A. se baseia nos sentidos, pelo que se
diferencia da amizade. Vauvenargues, por ex., diz: "Na amizade, o espírito é o órgão do sentimento; no
A., são os sentidos" (ibid., § 36). E Kant parece admitir esse pressuposto quando distingue o A. baseado
nos sentidos, ou "patológico", do A. "prático", isto é, moral, que é imposto pela máxima cristã "Ama a
Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo". O A. a Deus, como inclinação, diz Kant, é
impossível, pois Deus não é um objeto dos sentidos. Outrossim, A. semelhante aos homens é possível,
mas não pode ser imposto, porque ninguém tem o poder de amar o outro por preceito. "Amar a Deus",
portanto, pode significar tão-somente "cumprir de bom grado os seus mandamentos"; e "amar ao
próximo", tão-somente "pôr em prática de bom grado todos os deveres para com ele". Mas, aqui, a
expressão "de bom grado" diz que a máxima cristã só obriga a aspirar a esse A. prático, mas que ele não é
atingível pelos seres finitos. Com efei-
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to, seria inútil e absurdo "impor" o que se faz "de bom grado"; por isso, o preceito evangélico apresenta a
intenção moral na sua perfeição total "como um ideal de santidade não atingível por nenhuma criatura e
que, todavia, é o exemplo de que devemos procurar aproximar-nos pelo progresso ininterrupto, mas
infinito" {Crít. R. Prática, I, I, cap. 3) (v. FANATISMO).
A doutrina de Spinoza apresenta dois conceitos de A., dos quais o segundo seria utilizado pelos
Românticos. Em primeiro lugar, o A., como qualquer outra emoção (affectus), é uma afecção da alma
(passió) e consiste na alegria acompanhada pela idéia de uma causa externa (Et., III, 13 escól.). Nesse
sentido, deve-se dizer com mais propriedade que Deus não ama ninguém, pois não está sujeito a nenhuma
afecção (ibid., V, 17 corol.). Mas existe um "A. intelectual de Deus", que é a visão de todas as coisas na
sua ordem necessária, isto é, na medida em que derivam, com eterna necessidade, da própria essência de
Deus iibid., V, 29 escól.; 32 corol.). Este A. intelectual é o único eterno e é aquele com que Deus ama-se a
si mesmo; de tal modo que o A. intelectual da mente para com Deus é parte do A. infinito com que Deus
se ama a si mesmo. "Resulta", diz Spinoza, "que Deus, porquanto se ama a si mesmo, ama os homens e,
por conseqüência, o A. de Deus aos homens e o A. intelectual da mente a Deus são a mesma coisa" (ibid.,
V, 36 corol.). Esse A. é aquilo em que consiste a nossa salvação ou bem-aventurança, ou liberdade; e é o
que, nos livros sagrados, se chama "glória" (ibid., escól.). Está claro que já não é uma afecção, nem uma
emoção no sentido que Spinoza deu a tais termos, mas é a pura contemplação de Deus, ou melhor, como a
mente que contempla Deus não é senão um atributo de Deus, esse A. outra coisa não é senão a
contemplação que Deus tem de si, como unidade de si mesmo e do mundo. Aqui, o conceito de A. deixa
de referir-se à experiência humana: torna-se o conceito metafísico da unidade de Deus consigo mesmo e
com o mundo, logo com todas as manifestações do mundo, inclusive os homens.
Esse conceito tornar-se-ia central e dominante no Romantismo (v.) da primeira metade do séc. XLX, que
se baseia inteiramente na tentativa de demonstrar a unidade (isto é, a total identidade e intimidade) de
finito e Infinito. Schleiermacher faz dessa unidade, enquanto se revela na forma do sentimento, o
fundamento da religião; Fichte, Schelling e Hegel fazem da
mesma unidade — que colocam como princípio da razão — o fundamento da filosofia. Mas foi
justamente essa unidade que permitiu aos Românticos elaborar uma teoria do A. pela qual o próprio A.,
mesmo voltando-se para coisas ou criaturas finitas, vê ou colhe, nelas, as expressões ou os símbolos do
Infinito (isto é, do Absoluto ou de Deus). Pela unidade de finito e Infinito, a aspiração ao Infinito pode ser
satisfeita ainda no mundo finito, p. ex., no A. à mulher. A., poesia, unidade de finito e Infinito e
sentimento dessa unidade vêm a ser sinônimos para os românticos. Friedrich Schlegel talvez seja quem
melhor expressou esses conceitos. "A fonte e a alma de todas as emoções é o A.; e, na poesia romântica, o
espírito do A. deve sempre estar presente; invisível e visível... As paixões galantes de que não se pode
fugir na poesia moderna, do epigrama à tragédia, são o grau mínimo desse Espírito, ou melhor, conforme
o caso, a sua letra extrínseca, ou absolutamente nada, ou algo de não amável e desprovido de A. Não, o
que nos comove nos sons da música é o Sopro divino. Ele não se deixa tomar à força nem agarrar
mecanicamente, mas deixa-se atrair amoravelmente pela beleza mortal para nela velar-se: também as
palavras mágicas da poesia podem ser penetradas e animadas por sua força. Mas, na poesia onde o Sopro
não está ou não pode estar em toda parte, ele não está em absoluto. Ele é uma Substância infinita que não
anui com pessoas, ocasiões, situações e tendências individuais nem por elas se interessa: para o
verdadeiro poeta, todas essas coisas, mesmo que a sua alma lhes esteja intimamente afeta, são apenas o
indício do Altíssimo, do Infinito, são o hieróglifo do único e eterno A. e da sagrada plenitude de Vida da
natureza plasmadora" {Prosaischen Jugendschriften, ed. Minor, II, p. 371). A poesia torna-se, assim, um
análogo do A. e o A., como anseio do Infinito, isto é, de Deus, do Universo, do Eterno, pode satisfazer-se
e encontrar a paz no finito, nas criaturas do mundo. Em Discípulos de Sais, de Novalis, Jacinto, que
partira à procura da deusa velada Isis, acaba encontrando, sob o véu da deusa, Florinha de rosa, isto é, a
menina amada que ele abandonara para sair em busca de Sais. O sentimento, em particular o A., revela o
último mistério do Universo. Hegel exprimiu com as fórmulas mais rigorosas e pregnantes esse conceito
de A. Já num texto juvenil de inspiração romântica, cujos pressupostos são justamente Schleiermacher e
Schlegel (NOHL, Hegels
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45
AMOR
theologischeJugendschr,, pp. 379 ss., trad. in DE NEGRI, Princ. diHegel, pp. 18 ss.), o "verdadeiro A." é
identificado com a "verdadeira unificação", que só ocorre "entre seres vivos que são iguais em poder" e
que, em tudo e por tudo, estão vivos um para o outro, isto é, de nenhum lado estão mortos um para o
outro. O A. é um sentimento infinito pelo qual "o vivo sente o vivo". Os amantes "são um todo vivo". São
reciprocamente indepedentes só na medida em que "podem morrer". O A. é superior a todas as oposições
e a todas as multiplicidades. Essas notas românticas voltam nas obras maduras de Hegel. "O A.", diz ele,
"exprime em geral a consciência da minha unidade com um outro, de tal modo que eu, para mim, não
estou isolado, mas a minha autoconsciência só se afirma como renúncia ao meu ser por si e através do
saber-se como unidade de mim com o outro e do outro comigo" (Fil. do dir., § 158, adendo). "A
verdadeira essência do A.", diz ainda Hegel em Lições de estética, "consiste em abandonar a consciência
de si, em esquecer-se em outro si mesmo e, todavia, em reencontrar-se e possuir-se verdadeiramente nesse
esquecimento" ( Vorles. über dieÀsthetik, ed. Glockner, II, p. 149). O A. é "identificação do sujeito com
outra pessoa"; é "o sentimento pelo qual dois seres não existem senão em unidade perfeita e põem nessa
identidade toda a sua alma e o mundo inteiro" (ibid., p. 178). "Esta renúncia a si mesmo para identificarse com outro, esse abandono no qual o sujeito reencontra, porém, a plenitude do seu ser, constitui o
caráter infinito do A." (ibid., p. 179). Desse ponto de vista, Hegel diz também que a morte de Cristo é "o
A. mais alto", no sentido de que ela exprime "a identidade do divino e do humano"; e assim é "a intuição
da unidade no seu grau absoluto, a mais alta intuição do A." (Phil. derReligion, ed. Glockner, II, p. 304).
Essa noção romântica, que vê no A. a totalidade da vida e do universo na forma de um "sentimento
infinito" que é fim para si mesmo, encontra-se em toda a tradição literária do Romantismo, especialmente
na narrativa, a começar por Lucinda, de Schlegel. Essa noção também impregnou os costumes e a vida
dos povos ocidentais até, pode-se dizer, os dias atuais, em que o adjetivo "romântico" ainda parece o mais
adequado para definir a natureza dos sentimentos exaltados e tendentes a infinitizar-se, em que o aspecto
espiritual e o aspecto sensual se complicam e se limitam reciprocamente, dando lugar a vicissitudes
interiores, cujas mínimas nuanças se tem prazer de acompanhar, exagerando-lhes a importância e o valor. Também faz parte
do A. romântico, na medida em que o seu objeto é o infinito, ou melhor, a infinita unidade e identidade, a
insistência no A. como aspiração, desejo ou anseio, que, em vez de achar satisfação no ato sexual, teme
ser, diminuído ou enfraquecido por esse ato e tende a evitá-lo. A "distância" é considerada pelos
Românticos como um meio que favorece os sonhos voluptuosos; por isso, via de regra o A. romântico
arrefece em presença do objeto amado.
Mas a concepção romântica do A. encontra-se também em filosofias e tendências diferentes do
Romantismo ou que, pelo menos, não compartilham de todos os seus caracteres. Schopenhauer distingue
nitidamente o A. sexual (êpcoç) e o A. puro (à7á7rn). O A. sexual é simplesmente a emoção de que se
serve o "gênio da espécie" para favorecer a obra obscura e problemática da propagação da espécie
{Metafísica do A. sexual). Mas o "gênio da espécie" não é senão a cega, maligna e desesperada "vontade
de viver", que constitui a substância do universo, o seu "númeno". O A. sexual não é, portanto, nada mais
do que a manifestação, em forma fenomênica, isto é, sob a aparência da diversidade e da multiplicidade
dos seres vivos, da única força que rege o mundo. Quanto ao A. puro, não é senão compaixão, e a
compaixão é o conhecimento da dor alheia. Mas a dor alheia é também a dor do mundo, a dor da própria
vontade de vida dividida em si mesma e lutando contra si mesma nas suas manifestações fenomênicas:
além das quais, o A. como compaixão é a percepção da unidade fundamental {Die Welt, I, § 67). Desse
modo, conserva-se na teoria de Schopenhauer a noção romântica do A. como sentimento da unidade
cósmica. E permanece também na análise de um discípulo seu, Eduard von Hartmann, que a torna mais
explícita, afirmando que o A. é a identificação entre amante e amado, uma espécie de ampliação do
egoísmo por meio da absorção de um eu por outro eu, donde o sentido mais profundo do A. consiste em
tratar o objeto amado como se fosse, na sua essência, idêntico ao eu que ama. Se essa unidade e
identidade não existissem, afirma Hartmann, o próprio A. seria uma ilusão; mas Hartmann crê que não se
trata de uma ilusão, porque a identidade que o A. tem em vista, ou realiza ao menos em parte, é a
identidade do Princípio Inconsciente,
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da Força Infinita que rege o mundo (Phánome-nologie des sittliche Bewusstseins, 1879, p. 793). Pode-se
dizer, em geral, que todas as teorias que reduzem o A. a uma força única e total, ou segundo as quais, de
algum modo, ele deriva de força semelhante, participam, de alguma forma, da noção romântica do A.
como unidade e identidade. Sob esse aspecto, deve-se reconhecer um fundo romântico até na doutrina de
Freud, segundo a qual o A. é a especificação e a sublimação de uma força instintiva originária, que é a
libido. A libido não é o impulso sexual específico (isto é, dirigido para o indivíduo do outro sexo), mas
simplesmente a tendência à produção e à reprodução de sensações voluptuosas relativas às chamadas
"zonas erógenas", que se manifesta desde os primeiros instantes da vida humana. O impulso sexual
específico é uma formação tardia e complexa, que, por outro lado, nunca se completa, como demonstram
as perversões sexuais, tão variadas e numerosas. Essas perversões, portanto, segundo Freud, não são
desvios de um impulso primitivo normal, mas modos de comportamento que remontam aos primeiros
instantes da vida, que escaparam ao desenvolvimento normal e fixaram-se na forma de uma fase primitiva
(v. PSICANÁLISE). Da libido desenvolvem-se, segundo Freud, as formas superiores do A., mediante a
inibição e a sublimação. A inibição tem a função de manter a libido nos limites compatíveis com a
conservação da espécie; dela derivam as emoções morais, em primeiro lugar as da vergonha, do pudor,
etc, que tendem a imobilizar e a conter as manifestações da libido. Na inibição da libido e de seus
conteúdos objetivos enraízam-se as neuroses. A sublimação, ao contrário, dá-se quando a libido se separa
do seu conteúdo primitivo, isto é, da sensação voluptuosa e dos objetos que a esta se vinculam, para
concentrar-se em outros objetos que serão, desse modo, amados por si mesmos, independentemente da
sua capacidade de produzir sensações voluptuosas. Na sublimação da libido inibida assentam, segundo
Freud, todos os progressos da vida social, a arte, a ciência e a civilização em geral, ao menos na medida
em que tais progressos dependem de fatores psíquicos. Para Freud, todas as formas superiores do A. são
apenas sublimações da libido inibida. Desse modo, a teoria freudiana do A. parece apresentar ao homem
uma única alternativa, entre o primitivismo sexual e o ascetismo total, já que as formas superiores do
A., e, em geral, da atividade humana, só poderiam produzir-se à custa da inibição e da sublimação da
libido. Esta alternativa parece falsa na linha dos fatos e muito inquietante do ponto de vista moral. Mas
talvez ainda mais grave seja o fato de que a doutrina de Freud não contém nenhum elemento apto a
explicar a escolha que está presente em todas as formas do A. e que está totalmente ausente nos
comportamentos instintivos, que são cegos e anônimos. Entretanto, o próprio Freud insiste no valor da
escolha em sua crítica do A. universal. "Algumas pessoas", diz Freud, "tornam-se independentes da
aquiescência dos seus objetos transferindo o valor principal do fato de serem amadas para seu próprio ato
de amar; protegem-se da perda do objeto amado dirigindo seu A. não a objetos individuais, mas a todos os
homens igualmente, e evitam as incertezas e as desilusões do A. genital desistindo do objetivo sexual
deste e transformando o instinto em um impulso de intenção inibida. O estado que elas induzem em si
mesmas com esse processo — uma atitude de ternura imutável e nãçydesviável — tem pouca semelhança
superficial com as tempestuosas vicissitudes do A. genital, mas deriva deste" (Civilization and its
Discontents, p. 69). As objeções que Freud faz a esse tipo de A. são duas: ele não discrimina seus objetos,
o que se resolve em injustiça para com os próprios objetos; em segundo lugar, nem todos os homens são
dignos de A. "Se amo alguém", diz Freud, "ele deve ser digno desse A. de um modo ou de outro: ou por
ser tão semelhante a mim em algum aspecto importante que posso amar-me a mim mesmo nele, ou por
ser muito mais perfeito do que eu, de sorte que posso amar nele o meu ideal de mim mesmo, ou por ser
filho de meu amigo, com o qual quero compartilhar afetos e dores. Mas, se não há nenhum motivo
específico para amá-lo, amá-lo será bastante difícil para mim e será uma injustiça para aqueles que são
dignos do meu A., já que estarei pondo estes últimos no mesmo nível dele. Além disso, o A. que poderei
dar-lhe, como cumprimento do preceito de A. universal, será somente uma pequeníssima parte do A. que,
por todas as leis da razão, estou autorizado a dar a mim mesmo. Em conclusão, o mandamento de amar o
próximo como a nós mesmos é a mais forte defesa contra a agressividade humana e exemplo superlativo
da atitude antipsicológica do super-ego cultural. Mas é um mandamento impossível de respeitar: uma
inflação tão gran-
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de de A. só poderia diminuir-lhe o valor e não seria um remédio para o mal" (Md., pp. 139-141). Essas
considerações pressupõem, obviamente, que o A. implica uma escolha motivada pelo valor reconhecido
no objeto amado ou a ele atribuído; mas justamente esse elemento de escolha não tem lugar na doutrina
de Freud, que se funda totalmente no princípio do caráter instintivo da libido, de que deriva todo A.
A crítica de Freud ao "A. universal" é importante, e em alguns aspectos decisiva para a orientação
contemporânea em torno do problema do A. Todavia, Freud dirigiu essa crítica contra um alvo errado, o
preceito evangélico do A. ao próximo: o verdadeiro alvo dessa crítica é a noção moderna, de origem
positivista, do A. universal. A origem dessa noção pode ser encontrada em Feuerbach, no qual tem estreita
conexão com a noção romântica de A., em particular com a de Hegel. Feuerbach parte do pressuposto de
que o objeto ao qual um sujeito se refere essencial e necessariamente outro não é senão a natureza
objetiva do próprio sujeito e que, portanto, no objeto o homem contempla-se a si mesmo e torna-se
consciente de si: a consciência do objeto não é senão a auto-consciência do homem ( Wesen des
Christentum, 1841; trad. fr., p. 26). Esta é a mesma noção da unidade entre subjetivo e objetivo, entre o eu
e o outro, transferida do Infinito (para onde os Românticos a levaram) para o homem, na sua finitude. Não
obstante essa transferência, a noção continua a mesma; na verdade, o A. é entendido por Feuerbach,
romanticamente, como unidade e identidade: "a unidade de Deus e homem, de espírito e natureza". O A.
"não tem plural". A própria encarnação, para Feuerbach como para Hegel, é somente "o puro, absoluto A.,
sem acréscimo, sem distinção entre A. divino e humano" (ibid., p. 82). Com base nessa noção, Feuerbach
delineou a extensão progressiva do A. ao objeto sexual ao A. à criança, ao filho, do filho ao pai, e
finalmente à família, ao clã, à tribo, etc, extensão esta que seria devida à multiplicação das ações
recíprocas e, por isso, da dependência recíproca das instituições e dos interesses vitais. O último termo
dessa extensão progressiva seria "a humanidade em seu conjunto", que, como tal, é o objeto mais alto do
A. e o ideal moral por excelência. A ética positivista, especialmente com Comte e Spencer, baseou-se no
A. estendido a toda a humanidade; nele também se baseou a ética do neo-criticismo alemão, da forma
como se encontra, p. ex., expressa em Cohen.
Nessas concepções, os termos "humanidade" e "A." passam a ser sinônimos, porque significam a unidade
dos seres humanos e, às vezes, até mesmo a unidade cósmica segundo o conceito romântico. Desse ponto
de vista, as formas do A. são classificadas conforme a maior ou menor extensão do círculo de objetos a
que o A. se estende. Assim o A. à pátria seria inferior ao A. à humanidade; o A. à família, inferior ao A. à
pátria; o A. a si mesmo, inferior ao que se sente por um amigo. Scheler mostrou {Natureza e forma da
simpatia, 1923) o caráter fictício dessa hierarquia que pretende reduzir as variedades autônomas do A. a
uma única forma, que teria graus diversos segundo a extensão do círculo humano que constitui seu objeto.
Suas observações a esse respeito coincidem substancialmente com as já acenadas por Freud: o valor do A.
diminui, não cresce, à medida que o A. se estende a um número maior de objetos: já que, em geral, o A.
ao que está próximo tem mais valor do que o A. ao que está distante, pelo menos quando dirigido a um
ser vivo; e Nietzsche errou quando contrapôs (em Assim falou Zaratustrd) o A. ao distante ao A. ao
próximo. Scheler negou o próprio pressuposto da doutrina do A. universal: a noção romântica do A. como
unidade ou identificação. O A. e, em geral, a simpatia em todas as suas formas (v. SIMPATIA) implicam e,
ao mesmo tempo, fundamentam a diversidade das pessoas. O sentido do A. consiste justamente em não
considerar e em não tratar o outro como se fosse idêntico a si. "O A. verdadeiro", diz Scheler (Sympathie,
I, cap. IV, 3), "consiste em compreender suficientemente uma outra individualidade mo-dalmente
diferente da minha, em poder colocar-me em seu lugar, mesmo considerando-a diferente de mim e mesmo
afirmando, com calor emocional e sem reserva, a sua própria realidade e o seu próprio modo de ser." O A.
dirige-se necessariamente ao núcleo válido das coisas, ao valor, tende a realizar o valor mais elevado
possível (e isto já é um valor positivo) ou a suprimir um valor inferior. Pode voltar-se para a natureza,
para a pessoa humana e para Deus, naquilo que têm de próprio, isto é, de diferente daquele que ama.
Scheler reconhece, com Freud, que "o A. sexual representa um fator primordial e fundamental, no sentido
de que a força e a vivacidade de todas as outras variedades de A.vital e de vida instintiva derivam desse
A." (ibid., II, cap. VI, § 5). No entanto, não se reduz ao instinto sexual porque implica escolhas, que,
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por princípio, se orientam para as qualidades vitais, que chamamos de mais "nobres". Mas se o A. sexual
domina a esfera vital, existem outras formas de A. correspondentes à esfera espiritual e à esfera religiosa;
essas formas são variedades qualitativamente diferentes, qualidades primordiais e irredutíveis umas às
outras, que fazem pensar numa pré-formação, na estrutura psíquica do homem, das relações elementares
que existem entre os homens iibid?). Entre essas formas não está, porém, o A. à humanidade. A
humanidade pode ser amada como indivíduo único e absoluto somente por Deus; por isso, o chamado A.
à humanidade é somente o A. ao homem médio de certa época, isto é, aos valores correntes nessa época,
que interessam aos defensores dessa forma de amor. Esta,, segundo Scheler, outra coisa não é senão
ressentimento, ou seja, ódio pelos valores positivos implícitos em "terra natal", "povo", "pátria", "Deus",
ódio que, substituindo esses portadores de valores especificamente superiores por humanidade, procura
iludir-se e iludir os outros sobre o A. iibid?).
Na filosofia contemporânea, as análises de Scheler são a primeira tentativa de desvincular a noção de A.
do ideal romântico da absoluta unidade. Pode-se vislumbrar, todavia, a sugestão e a ação desse ideal em
duas doutrinas contemporâneas, aparentemente heterogêneas: a doutrina do A. místico de Bergson e a
doutrina do A. sexual de Sartre. Segundo Bergson, a fórmula do misticismo é esta: "Deus é A. e objeto de
A." iPeux sources, III; trad. it. p. 275). Embora se possa duvidar da exatidão da primeira parte dessa
fórmula, porque dificilmente se pode encontrar nos místicos a tese de que Deus ame o homem (o que
Deus oferece ao homem que o ama é a salvação, a bem-aventurança e a participação na sua "glória"), o
que Bergson pretende dizer é que o arrebatamento místico se realiza como uma unidade entre o homem e
Deus. "Não há mais separação completa entre quem ama e quem é amado: Deus está presente e a alegria é
sem limites" iibid., p. 252). Por essa unidade, o A. do homem por Deus é o A. de Deus por todos os
homens. "Através de Deus, com Deus, ele ama toda a humanidade com A. divino." Mas esse A. não é a
fraternidade do ideal racional nem a intensificação de uma simpatia inata do homem pelo homem: é "o
prosseguimento de um instinto" que está na raiz da sensibilidade e da razão, assim como de todas as
outras coisas; e identifica-se com o A. de
Deus por sua obra, A. que criou todas as coisas e é capaz de revelar, a quem saiba interrogá-lo, o mistério
da criação. A esse A. cabe aperfeiçoar a criação da espécie humana iibid., IV, pp. 356-57) e devolver ao
universo a sua função essencial, que é a de ser "uma máquina destinada a criar deuses". O caráter
spinoziano, romântico e panteísta dessas observações é muito evidente e patenteia a noção que
pressupõem: a do A. como unidade que é identidade.
Se o "amor sagrado" de Bergson é de cunho romântico, não menos romântico é o "amor profano" de
Sartre. O pressuposto da análise de Sartre é que o A. é a tentativa ou, mais exatamente, o projeto de
realizar a unidade ou a assimilação entre o eu e o outro. Essa exigência de unidade ou de assimilação é,
por parte do eu, a exigência de que ele seja para o outro uma totalidade, um mundo, um fim absoluto. O
A. é, fundamentalmente, um querer ser amado; e querer ser amado significa "querer situar-se além de
todo o sistema de valores posto pelos outros, como condição de toda valorização e como fundamento
objetivo de todos os valores" iUêtre et le néant, p. 436). A vontade de ser amado é, assim, a vontade de
valer para o outro como o próprio infinito. "O olhar do outro não me permeia mais de finitude, não
imobiliza mais o meu ser naquilo que sou simplesmente; não poderei ser olhado como feio, como
pequeno, como vil, porque estes caracteres representam necessariamente uma limitação de fato do meu
ser e uma apreensão da minha finitude enquanto finitude" iibid., p. 437). Mas, para que o outro possa
considerar-me assim, é preciso que ele possa querer, isto é, que seja livre: por isso, a posse física, a posse
do outro como coisa, é, no A., insuficiente e frustrante. É preciso que o outro seja livre para querer amarme e para ver em mim o infinito. O que quer dizer: é preciso que se mantenha "como pura subjetividade,
como o absoluto pelo qual o mundo vem ao ser" iibid., p. 455). Mas aí estão, precisamente, o conflito e o
fracasso inevitáveis do A., pois, por um lado, o outro exige de mim a mesma coisa que eu exijo dele —
ser amado e valer para mim como a totalidade infinita do mundo — e, por outro, justamente por querer
isso, por amar-me, "frustra-me radicalmente com o seu próprio A.: eu exigia que ele assumisse o meu ser
como objeto privilegiado, mantendo-se como pura subjetividade em relação a mim, mas, desde que me
ama, em vez disso reconhece-me como sujeito e
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mergulha na sua objetividade diante da minha subjetividade" iibid., p. 444). Em outros termos, cada um,
no A., quer ser para o outro o objeto absoluto, o mundo, a totalidade infinita, mas para isso é necessário
que o outro permaneça subjetividade livre e igualmente absoluta. Mas, como ambos querem exatamente a
mesma coisa, o único resultado do A. é um conflito necessário e um fracasso inevitável. Há, todavia,
outro caminho para realizar a assimilação de um ser com o outro, que é exatamente o contrário do que foi
descrito: em vez de projetar absorver o outro conservando-lhe a alte-ridade, posso projetar fazer-me
absorver pelo outro e perder-me na sua subjetividade para desembaraçar-me da minha. Nesse caso, em
vez de procurar existir para o outro como ob-jeto-limite, como mundo ou totalidade infinita, procurarei
fazer-me tratar como um objeto entre os outros, como um instrumento a ser utilizado, em uma palavra,
como uma coisa. Ter-se-á, então, a atitude masoquista. Mas o próprio masoquismo é e deve ser um
fracasso, pois, por mais que se queira, nunca se virá a ser um simples instrumento inanimado, uma coisa
humilde, ridícula ou obscena; será necessário, precisamente, querer isso, isto é, valer, para essa finalidade,
como subjetividade livre iibid., pp. 346-347). Não há, portanto, salvação no A.: o conflito e o fracasso
são-lhe intrinsecamente necessários. Por outro lado, Sartre vê conflito análogo também no simples desejo
sexual, cujo "ideal impossível" assim define: "Possuir a transcendência do outro como pura
transcendência e no entanto como corpo-, reduzir o outro à sua simples facticidade, pois ele ainda está no
meio do meu mundo, mas fazer que essa facticidade seja uma representação perpétua da sua
transcendência nadificante" iibid., pp. 463-464). E, como o A. pode tender para o masoquismo como
solução ilusória do seu conflito, assim também o desejo sexual tende para o sadismo, isto é, para a nãoreciprocidade das relações sexuais, para o gozo de ser "potência possessiva e livre em face de uma
liberdade aprisionada pela carne" iibid., p. 469). Não há dúvida de que a análise de Sartre, tão rica de
reparos e referências, representa um exame sem preconceitos de certas formas que o A. pode assumir e
assume e dos conflitos em que desembocam. Mas trata-se das formas do A. romântico e das suas
degenerações. O A. de que fala Sartre é o projeto da fusão absoluta entre dois infinitos; e dois infinitos só
podem excluir-se e contradizer-se. Querer ser amado significa, para Sartre, querer ser a totalidade do ser, o
fundamento dos valores, o todo e o infinito: isto é, o mundo ou Deus mesmo. E o outro, o amado, deveria
ser um sujeito igualmente absoluto e infinito, capaz de tornar absoluto e infinito quem o ama. São
evidentes os pressupostos românticos dessa colocação. A unidade absoluta e infinita que o Romantismo
clássico postulava ingenuamente como uma realidade garantida do A. torna-se, em Sartre, um projeto
inevitavelmente destinado ao fracasso. O Romantismo de Sartre é frustrado e consciente de sua falência.
No entanto, está patente na filosofia contemporânea a tendência anti-romântica a privar o A. do caráter de
infinitude, isto é, da natureza "cósmica" ou "divina", e a circunscrevê-lo em limites mais restritos e
demarcáveis. Russell evidenciou a fragilidade do A. romântico, que pretende ser a totalidade da vida, mas
caminha rapidamente em direção à exaustão e ao malogro. "O A.", disse ele, "é o que dá valor intrínseco a
um matrimônio e, como a arte e o pensamento, é uma das coisas supremas que tornam a vida digna de ser
vivida. Mas, embora não haja bom casamento sem A., os melhores casamentos têm um objetivo que vai
além do A. O A. recíproco de duas pessoas é demasiado circunscrito, demasiado separado da comunidade
para ser, por si mesmo, o objetivo principal da vida. Não é, em si mesmo, fonte suficiente de atividade,
não oferece perspectivas suficientes para constituir uma existência em que se possa encontrar uma
satisfação fundamental. Cedo ou tarde, torna-se retrospectivo, é um túmulo de alegrias mortas, não uma
fonte de vida nova. Esse mal é inseparável de qualquer finalidade atingível numa única emoção suprema.
Os únicos fins adequados são os que têm incidência no futuro, que nunca podem ser plenamente
alcançados, mas estão em constante 'crescendo' e são infinitos, como a infinitude da busca humana. Só
quando o A. está ligado a algum fim infinito dessa espécie pode ter a seriedade e a profundidade de que é
capaz" iPrinciples of Social Reconstruction, p. 192). Com isto, o A. não é negado, mas reconduzido aos
limites que o definem. "O homem", diz ainda Russell, "que nunca viu as coisas belas em companhia da
mulher amada não conheceu plenamente o mágico poder que tais coisas possuem. E mais: o A. é capaz de
romper o duro cerne do eu, porque é uma espécie de colaboração biológi-
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ca, na qual as emoções de um são necessárias à satisfação dos propósitos instintivos do outro" CA
conquista da felicidade, trad. it., p. 42). Nesse sentido, porém, não requer o sacrifício das pessoas que se
amam, mas constitui enriquecimento e realização da sua personalidade. Não requer nem mesmo o
emudecimento do espírito de ambas as partes, mas, antes, o respeito à autonomia recíproca e a fidelidade
aos compromissos assumidos. Por isso, é indispensável a realização da igualdade de condição moral e
jurídica entre os sexos, bem como a transformação e a liberalização das regras morais que ora restringem
e inibem com demasiada rigidez as relações sexuais. Por outro lado, porém, "a relação sexual sem A. tem
valor mínimo e deve ser considerada uma primeira experiência, capaz de dar uma noção aproximada do
A." (Marriage and Morais, cap. IX; trad. it. p. 118).
Um olhar de conjunto nas teorias mencionadas mostra a recorrência de duas noções fundamentais do A.,
sendo possível vincular cada uma dessas teorias a uma ou a outra. A primeira é a do A. como relação que
não anula a realidade individual e a autonomia dos seres entre os quais se estabelece, mas tende a reforçálas, por meio de um intercâmbio, controlado emotivamente, de serviços e cuidados de todo tipo,
intercâmbio no qual cada um procura o bem do outro como seu próprio. Nesse sentido, A. tende à
reciprocidade e é sempre recíproco na sua forma bem-sucedida, que sempre poderá ser chamada de união
(de interesses, de intentos, de propósitos, de necessidades, bem como de emoções correlativas), mas
nunca de "unidade", no sentido próprio desse termo. Nesse sentido, o A. é uma relação finita entre entes
finitos, suscetível da maior variedade de modos, em conformidade com a variedade de interesses,
propósitos, necessidades e relativas funções emotivas, que podem constituir sua base objetiva. "Relação
finita" significa relação não necessariamente determinada por forças inelutáveis, mas condicionada por
elementos e situações aptas a explicar suas modalidades particulares. Significa também relação sujeita ao
êxito como ao malogro e, ainda nos casos mais favoráveis, suscetível de êxitos só parciais e de
estabilidade relativa. Nesse caso, obviamente, o A. nunca é "tudo" e não constitui a solução de todos os
problemas humanos. Cada tipo ou espécie de A., e, em cada tipo ou espécie, cada caso será delimitado e
definido, na
relação que o constitui, por interesses, necessidades, aspirações, preocupações, etc, cuja comparticipação
constituirá a base ou o motivo do A. Especificamente, o A. poderá ser definido como o controle emotivo
de tais tipos ou modos de comparticipação e dos comportamentos correspondentes. O valor desse controle
emotivo pode ser evidenciado por algumas observações. P. ex., a fidelidade no A. não tem valor se não
deriva do controle emotivo, mas de uma fria noção de dever; e, por outro lado, certas infidelidades não
ofendem necessariamente o A. Nesses limites, em que o A. é um fenômeno humano, para cuja descrição
termos como "unidade", "todo", "infinito", "absoluto" são descabidos, o A. perde em substância cósmica
tanto quanto ganha em importância humana; e o seu significado, objetivamente constatável, para a
formação, a conservação e o equilíbrio da personalidade humana, torna-se fundamental. A noção de A.
nesse sentido é a ilustrada por Platão, Aristóteles, S. Tomás, Descartes, Leibniz, Scheler, Russell.
A segunda teoria recorrente sobre o A. é a que vê nele uma unidade absoluta ou infinita, ou seja,
consciência, desejo ou projeto de tal unidade. Desse ponto de vista, o A. deixa de ser um fenômeno
humano para tornar-se um fenômeno cósmico ou, melhor ainda, a natureza do Princípio ou da Realidade
Suprema. O êxito ou o malogro do A. humano passa a ser indiferente; aliás, o A. humano, como aspiração
à identidade absoluta e como tentativa por parte do finito de identificar-se com o Infinito, está
previamente condenado ao insucesso e reduzido a uma aspiração unilateral, pela qual a reciprocidade é
decepcionante, que se contenta em imaginar a vaga forma de um ideal fugaz. São duas as conseqüências
desse conceito de A. A primeira é a infinitização das vicis-situdes amorosas que, consideradas como
formas ou manifestações do Infinito, assumem um significado e um alcance desproporcional e grotesco,
sem relação com a importância real que têm para a personalidade humana e para as suas relações com os
outros. A segunda é que todo tipo ou forma de A. humano destina-se ao fracasso; e o próprio êxito de tal
A., verificável na reciprocidade, na possibilidade da comparticipação, é assumido como sinal desse
fracasso. Essas duas atitudes podem ser facilmente encontradas na literatura romântica sobre o A. É a
noção defendida por Spinoza, Hegel, Feuerbach, Bergson, Sartre.
AMORAL, AMORALISMO
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ANALISE
AMORAL, AMORALISMO (in. Amoral, amo-ralism; fr. Amoral, amoralisme, ai. Amoralisch,
Amoralismus-, it. Amorale, amoralismó). O adjetivo "A." designa propriamente o que é indiferente às
valorizações morais.- nesse sentido, um homem A. é um homem sobre cuja conduta os juízos sobre o bem
e sobre o mal não têm nenhuma influência e que, por isso, se comporta independentemente deles. O termo
"amoralismó" designa, porém, uma profissão de amoralidade e, daí, a pretensão de prescindir dos valores
da moral corrente e de substituir esses valores por outros; nesse sentido, foi empregado freqüentemente
para designar a atitude de Nietzsche (v. TRANSMUTAÇÃO DOS VALORES).
AMOR DE SI (gr. (piA-Ccrnía; in. Self-love, fr. Amourdesoi; ai. Eigenliebe, it. Amor di se). Esta
expressão não deve ser confundida nem com "amor próprio", que significa vaidade, ou, no melhor dos
casos, sentido de altivez ou de orgulho, nem com egoísmo (v.). Aristóteles distinguiu a filãucia, que é uma
virtude, do egoísmo vulgar de quem ama a si mesmo, querendo atribuir-se a maior parte dos lucros, dos
prazeres e das honras. "O filaucioso", disse ele, "é sobretudo aquele que se apropria do belo e do bem, faz
deles seus senhores e obedece-lhes em tudo" (Et. nic, IX, 8,1.168 a, 28). Em outras palavras, quem ama á
si mesmo no verdadeiro sentido não pretende a parte maior do prazer, das honras ou do lucro, mas a parte
maior do bem e do belo, isto é, o exercício da virtude. Em sentido análogo, S. Tomás afirma que o homem
ama a si mesmo quando ama a sua natureza espiritual, não a corpórea, e que em tal sentido deve amar a si
mesmo depois de Deus, mas antes de qualquer outro ser; de modo que, por ex., não pode tolerar incorrer
em pecado para livrar o próximo do pecado (S. Th., II, II, q. 26, a. 4). Na Idade Moderna, Malebranche
(em Première lettre au R. P. Lamié) retomou a distinção entre amor próprio e A. considerando o primeiro
como fonte de todos os desre-gramentos humanos e o segundo, ao contrário, como o princípio de todos os
esforços para o cumprimento do dever. Essa distinção foi retomada por Vauvenargues (De 1'esprit
humain, 24): "Com o amor de si mesmo pode-se procurar a própria felicidade fora de si. Pode-se amar
qualquer coisa fora de si mais do que a própria existência e não se é o único objeto para si mesmo. O
amor próprio, ao contrário, subordina tudo às próprias comodidades e ao próprio
bem-estar, e tem em si mesmo o único objeto e o único fim; de modo que, enquanto as emoções que vêm
do A. nos dão às coisas, o amor próprio quer que as coisas se dêem a nós e faz de si mesmo o centro de
tudo". Kant, mesmo considerando o amor de si uma espécie de egoísmo (entendido, porém, no sentido
mais geral de desejo da felicidade), distinguia-o como benevolência para consigo (ou filãucia) levada ao
extremo pela complacência para consigo (ou arrogantia) e considerava-o suscetível de harmonizar-se
com a lei moral e tornar-se "amor racional de si" (Crít. R. Prática, livro I, cap. III, A129). As análises de
Scheler insistiram no caráter não-egoístico do A. de si: "Amor orientado para os valores e, por seu
intermédio, para os objetos portadores deles, sem preocupar-se em saber a quem pertencem esses valores,
se a 'mim' ou a 'outros' ". (Sympathie, II, cap. 1, § 1)
AMOR FATI. Expressão usada por Nietzsche como "fórmula para a grandeza do homem" e que
significa: "Não querer nada de diferente do que é, nem no futuro, nem no passado, nem por toda a
eternidade. Não só suportar o que é necessário, mas amá-lo". Essa fórmula exprime a atitude própria do
super-homem e a natureza do "espírito dionisíaco", enquanto aceitação integral e entusiástica da vida em
todos os seus aspectos, mesmo nos mais desconcertantes, tristes e cruéis (Ecce Homo, passim; Wille
zurMacht, ed. Króner, I, § 282) (v. DESTINO).
AMOR PRÓPRIO. V. AMOR DE si; EGOÍSMO.
ANAGÓGICO (gr. òvocytOYiKÓÇ; in. Anago-gic; fr. Anagogique, ai. Anagoge, it. Anagogico). Um dos
significados da Escritura (como distin-guidos, p. ex., por HUGO DE SÃO VÍTOR, De scripturis, III), mais
precisamente o que consiste em proceder das coisas visíveis às invisíveis e, em geral, das criaturas à sua
Causa primeira (v. ALEGORIA).
ANAGÓGICO, ARGUMENTO. V. ABSURDO
ANÁLISE (gr. àvakvaiç, lat. Analysis-, in. Analysis, fr. Analyse, ai. Analyse, it. Analisí). Em geral, a
descrição ou a interpretação de uma situação ou de um objeto qualquer nos termos dos elementos mais
simples pertencentes à situação ou ao objeto em questão. A finalidade desse processo é resolver a situação
ou o objeto nos seus elementos, de modo que um processo analítico é considerado bem-sucedi-do quando
tal resolução é realizada. Esse processo foi empregado por Aristóteles na lógica da demonstração
(apodítica), com a finalidade
ANALISE
52
ANÁLISE
de resolver a demonstração no silogismo, o silogismo nas figuras, as figuras nas proposições (An.pr, I, 32,
47 a 10). Na lógica do séc. XVII, a diferença entre A. e síntese começou a ser exposta como a diferença
entre dois métodos de ensino. "A ordem didática", dizia Jungius, "pode ser sintética, isto é, compositiva,
ou analítica, isto é, resolutiva". A ordem sintética vai "dos princípios ao principiado, dos constituintes ao
constituído, das partes ao todo, do simples ao composto" e é empregada pelo lógico, pelo gramático, pelo
arquiteto e também pelo físico, quando passa das plantas aos animais ou dos seres menos perfeitos aos
mais perfeitos. A ordem analítica procede por via oposta e é própria do físico e do ético, na medida em
que este último passa, por exemplo, da consideração do fim à consideração da ação honesta (Lógica
hamburgensis, 1638, IV, cap. 18). A partir de Descartes, a A. e a síntese deixaram de ser consideradas dois
métodos de ensino e passaram a ser dois processos diferentes de demonstração. Diz Descartes: "A
maneira de demonstrar é dupla: uma demonstra por meio da A. ou resolução, a outra por meio da síntese
ou composição. A A. demonstra o verdadeiro caminho pelo qual a coisa foi metodicamente inventada e
permite ver como os efeitos dependem da causa... A síntese, ao contrário, como se examinasse as causas a
partir de seus efeitos (ainda que a prova que ela contém vá não raro das causas aos efeitos), na verdade
demonstra com clareza o que está contido nas suas conclusões e utiliza uma longa série de definições,
postulados, axiomas, teoremas, problemas" (Rép. aux II Ob.). O próprio Descartes nota que os antigos
geômetras utilizaram, de preferência, a síntese (como, de fato, fizeram PAPOS, VII, 1 ss., e PROCLO, Com.
ao I livro de Euclides, p. 211, Friedlein), enquanto ele preferiu a A., porque esse caminho "parece o mais
verdadeiro e o mais adequado ao ensino". Hobbes repetia, substancialmente, essas considerações
(Decorp., VI, § 1-2) e a Lógica de Port-Royal chamava a A. de "método de invenção" e a síntese de
"método de composição" ou "método de doutrina" (Log., IV, 2). Esse ponto de vista sancionava a
superioridade do processo analítico na filosofia moderna. Essa superioridade também é pressuposta por
Leibniz, que define a A. do ponto de vista lógico-lingüístico: "A. é isto: resolva-se qualquer termo dado
em suas partes formais, isto é, dê-se a sua definição; sejam essas partes, por sua vez, resolvidas em partes,
isto é, dê-se a
definição dos termos da definição, e assim por diante, até as partes simples, ou seja, aos termos
indefiníveis" (De arte combinatoria, Op., ed. Erdmann, p. 23 a-b). Com outras palavras, Newton dizia a
mesma coisa: "Pelo caminho da A. podemos ir dos compostos aos ingredientes e dos movimentos às
forças que os produzem; e, em geral, dos efeitos às suas causas e das causas particulares às gerais, até que
o raciocínio termine nas mais gerais" (Opticks, 1704, III, 1, q. 31; ed. Dover, p. 404). Wolff contrapunha,
no mesmo sentido, o método analítico e o método sintético: "Chama-se analítico o método pelo qual as
verdades são dispostas na ordem em que foram encontradas ou ao menos em que poderiam ser
encontradas. Chama-se sintético o método pelo qual as verdades são dispostas de tal modo que cada uma
possa ser mais facilmente entendida e demonstrada a partir da outra" (Log., § 885). Não é diferente o
significado que Kant deu à oposição dos dois métodos. Mais particularmente, em De mundi sensibilis
atque intellegibilis forma et ratione, I, § 1, nota, ele distinguiu dois significados de A.: um qualitativo,
que é "o regresso a rationato ad rationem", e outro quantitativo (que declara utilizar), que é "o regresso
do todo às suas partes possíveis, mediadas, ou seja, às partes das partes, de tal modo que a A. não é a
divisão, mas a subdivisão do composto dado". Kant valeu-se desse procedimento em todas as suas obras
principais, em cada uma das quais a parte positiva fundamental é constituída de uma "Analítica". Segundo
Kant, é analítico o procedimento próprio da "lógica geral", porquanto "resolve toda a obra formal do
intelecto e da razão nos seus elementos e expõe esses elementos como princípios de toda valorização
lógica de nosso conhecimento" (Crít. R. Pura, Lóg. transe, intr., 3). O mesmo procedimento também é
próprio da lógica transcendental, que isola o intelecto, isto é, a parte do conhecimento que tem origem só
no intelecto (conhecimento a priorí), mais precisamente da Analítica transcental, que é "a resolução de
todo o nosso conhecimento apriori nos elementos do conhecimento puro intelectual". O procedimento
analítico também foi usado por Kant em Crítica da Razão Prática, com o fim de isolar os princípios
práticos, isto é, morais; e em Crítica do Juízo, a fim de determinar os fundamentos do juízo estético e do
juízo teleológico: trata-se, em todos os casos, de determinar os elementos verdadeiros ou efetivos
ANALISE 53
ANALISE
que condicionam essas atividades, em contraste com os elementos aparentes ou fictícios (ou "dialéticos").
Naturalmente, o método analítico nada tem a ver com os juízos analíticos. "O método analítico, enquanto
oposto ao sintético, é coisa bem diferente de um complexo de juízos analíticos: quer dizer somente que se
parte daquilo que é objeto da questão, como dado, para remontar às condições que o tornam possível"
{Prol, § 5, nota). Hegel fixou de modo análogo o caráter fundamental do procedimento analítico quando
escreveu: "Mesmo quando o conhecimento analítico procede por relações, que não são matéria
exteriormente dada, mas determinações do pensamento, ainda assim continua analítico, porquanto, para
ele, essas relações são dados" (Wissenschaft der Logik, III, III, II, A a; trad. it., p. 295). Pode-se afirmar
que o reconhecimento de dados é o caráter fundamental do procedimento analítico, o que mais
profundamente o distingue do sintético (v. FILOSOFIA).
Na filosofia e, em geral, na cultura moderna e contemporânea, a tendência analítica, isto é, a tendência a
reconhecer a A. como método de investigação, disseminou-se e mostrou ser muito fértil. Essa tendência
coincide substancialmente com a tendência empirista (no sentido metodológico do empirismo [v.]) a
restringir a investigação aos "fatos observáveis" e às relações entre tais fatoá tendência que implica, em
cada caso, a exigência de indicar o método ou o procedimento mediante o qual o fato pode ser
efetivamente observado. Nesse sentido, o procedimento analítico leva à eliminação de realidades ou de
conceitos "em si", isto é, absolutos ou independentes de qualquer observação ou verificação e
pressupostos como realidades ou verdades "últimas". Sob esse aspecto, a física relativista e a mecânica
quântica podem ser consideradas resultados do processo analítico. Quando Einstein observou que, para
falar de "fatos simultâneos", é necessário oferecer um método para observar a simulta-neidade de tais
fatos (dando, assim, a chave da teoria da relatividade), só fez levar a bom termo a A. da noção de "fatos
simultâneos". E, quando Niels Bohr e seus alunos evidenciaram o fato de que toda observação física é
acompanhada por um efeito do instrumento observador sobre o objeto observado, só fizeram levar a bom
termo a A. de "observação física"; e dessa análise nasceu toda a mecânica quântica. Analogamente, a
renúncia a postular um meio de transmissão não observável dos fenômenos
electromagnéticos (o chamado "éter") pode ser considerada resultado da consolidação do procedimento
analítico. Em matemática, o mesmo procedimento prevaleceu quando se renunciou a discutir o que são os
pontos, as retas, os números, em si, e passou-se à A. das relações intercorrentes entre esses termos e dos
postulados que as exprimem. Desse ponto de vista, a A. estendeu-se e consolidou-se em detrimento
daquilo que se chama "metafísica", isto é, do domínio das realidades absolutas e das verdades necessárias.
No campo das ciências históricas, Dilthey contrapôs ao método metafísico e apriorístico, empregado, p.
ex., por Hegel, o método analítico e descritivo próprio da psicologia; daí falar-se hoje de "A. histórica",
que visa compreender um fato histórico nos seus elementos. Fala-se também de "A. sociológica", no
sentido de um método voltado para a resolução da realidade social nos comportamentos, nas atitudes e
nas instituições, que constituem seus elementos observáveis.
No domínio da filosofia contemporânea, a A. assume várias formas, segundo os instrumentos com que é
feita ou segundo os objetos ou campos de experiência para os quais esteja voltada. Na filosofia de
Bergson, a A. tem como alvo a "consciência", isto é, a experiência interior, e tende a encontrar os dados
últimos, isto é, imediatos, de tal experiência. Na filosofia de Dewey, a A. está voltada para a experiência
humana em seu caráter total e amorfo e tende a resolvê-la em operações naturais. Na filosofia de Husserl,
a A. volta-se para o mundo da consciência como intencionalidade (v.) e é "análise intencional",
direcionada para a determinação das estruturas da consciência e as "formas" essenciais dos seus
conteúdos objetivos. Na filosofia de Heidegger, a A. está voltada para a existência, isto é, para as
situações mais comuns e repetíveis em que o homem se encontra no mundo. No empirismo lógico, a A. é
A. da linguagem e tende a eliminar as confusões mediante a determinação e a verificação do significado
ou modo de uso dos signos. Essas tendências analíticas da filosofia contemporânea são mais ou menos
opostas à metafísica tradicional e tendem a conferir à pesquisa filosófica um método rigoroso para
confirmação e a verificação de seus resultados. Ao mesmo tempo, todas elas condescendem, em maior ou
menor grau, com certas inflexibilidades metafísicas: ao se falar, p. ex., de "dados últimos", como
Bergson, de "formas ou essências necessárias", como
ANALÍTICA
54
ANALITICIDADE
Husserl, de "estruturas necessárias", como Heidegger, de "proposições atômicas" ou de "fatos atômicos",
como o empirismo lógico, etc. Pode-se dizer, contudo, que a tendência das filosofias analíticas e da
diretriz analítica das ciências consiste na progressiva eliminação de "pontos finais", isto é, de elementos
ou estruturas que, por sua substancialidade e necessidade, bloqueiem o curso ulterior da A. e a imobilizem
em resultados assumidos como definitivos e, portanto, subraídos a toda verificação ulterior. Essa
tendência visa, portanto, determinar e utilizar técnicas de verificação passíveis de correção ou retificação.
Desse ponto de vista, a A. é o equivalente atualizado do empirismo tradicional e a ela se contrapõe a
metafísica no sentido clássico do termo, como ciência ou pretensa ciência daquilo que, sendo
"necessariamente" e "em si", não tem necessidade de ser analisado, isto é, descrito, interpretado ou
compreendido mediante procedimentos verificáveis.
ANALÍTICA (in. Analytics; fr. Analitique, ai. Analitik, it. Analítica). Em geral, uma disciplina ou uma
parte de disciplina cujo método fundamental é a analise (v.). Aristóteles chamou de A. a parte da lógica
que visa resolver qualquer raciocínio nas figuras fundamentais do silogismo {Primeiros analíticos) e
qualquer prova nos próprios silogismos e nos primeiros princípios, que constituem suas premissas
evidentes {Segundos analíticos). Kant chamou de "A. transcendental" a primeira parte da "doutrina dos
elementos" na Crítica da Razão Pura e na Crítica da Razão Prática (enquanto a segunda parte é a
Dialética), entendendo por A. a determinação das condições a priori do conhecimento e da ação moral. A
Crítica do Juízo contém, além disso, uma A. do belo, uma A. do sublime e uma A. do juízo teleológico,
que determinam as condições a priori: respectivamente, as primeiras duas do juízo estético, a outra do
juízo sobre a finalidade da natureza. Heidegger fala de uma "A. ontológica do ser", isto é, de uma análise
da existência como ser no mundo, como aproximação e preparação à ontologia, isto é, à determinação do
significado do ser em geral (Sein und Zeit, § 5).
ANALÍTICA, PSICOLOGIA. V. PSICOLOGIA, e.
ANALITICIDADE (in. Analyticity, fr. Ana-lyticité, ai. Analytizitát; it. Analiticita). Validade das
proposições, que não depende dos fatos. Esse conceito é moderno e nasce com a distinção estabelecida
por Hume, entre relações de idéias e coisas de fato, e com a distinção estabelecida por Leibniz, entre verdades de razão e
verdades de fato (v. EXPERIÊNCIA; FATO). Foram estabelecidos os seguintes fundamentos da A.:
l
g
Certa operação do espírito. É o que faz Hume, ao afirmar que as proposições concernentes às idéias
"podem ser descobertas com uma simples operação do pensamento" ilnq. Cone. Underst, IV, 1). A
característica desta operação é não depender dos fatos, mas trata-se de uma característica negativa que
pouco diz sobre o fundamento da analiticidade.
2
Q
Certa relação de implicação entre sujeito e predicado. É o que faz Kant, ao definir o juízo analítico
como o juízo em que "o predicado B pertence ao sujeito A como algo que está contido (implicitamente)
nesse conceito A" (Crít. R. Pura, intr., IV). Sobre o caráter dessa implicação, porém, nada se diz; e o
famoso exemplo, aduzido por Kant, da proposição "os corpos são extensos", que seria analítica em face
da proposição "os corpos são pesados", que seria sintética, não esclarece por certo esse conceito, já que
não se vê por que a extensão deve estar contida implicitamente no conceito de corpo, e não o peso.
3
S
Tautologia. Nesse sentido, Wittgenstein considerou as proposições analíticas como tautologias. "A
tautologia", disse ele, "não tem condições de verdade porque é incondicionalmente verdadeira"
(Tractatus, 4.461). Mas, por outro lado, ela não é uma "representação da realidade" porque "permite todas
as situações possíveis" Çibid, 4.462). Essa definição tem grande difusão na filosofia contemporânea.
Carnap exprimiu-a dizendo que "um enunciado é chamado analítico quando é uma conseqüência da classe
nula de enunciados (e, assim, uma conseqüência de cada enunciado)" (Logische Syntax derSprache, § 14).
Isso significa que um enunciado é analítico quando a sua negação é contraditória: caráter aceito por
outros autores para definir a A. e que faz das verdades analíticas "verdades necessárias" (REICHENBACH,
The Theory of Probability, 1949, § 4, p. 20; LEWIS, Analysis o/Knowledge and Valuation, 1950, p. 89,
etc). A verdade analítica da tautologia deriva do fato de que ela exaure o nível das possibilidades e,
portanto, é evidente pela simples forma do enunciado. Carnap exprimiu esse caráter com o conceito de
"descrição de estado" (State-description), pelo qual se entende "a descrição completa de um possível
estado do
ANALOGIA
55
ANALOGIA
universo dos indivíduos relativamente a todas as propriedades e relações expressas pelos predicados do
sistema" (Meaning andNecessity, § 2). A descrição de estado representa os "mundos possíveis" de
Leibniz: um enunciado é analítico quando é válido para todos os mundos possíveis. Os lógicos, todavia,
tendem hoje a fazer a distinção entre verdade lógica e verdade analítica. P. ex., a proposição "nenhum
homem não casado é casado" é uma tautologia e, portanto, uma verdade lógica; mas a proposição
"nenhum solteiro é casado" não é mais uma tautologia, mas ainda é uma proposição analítica, fundada na
sinonímia entre "solteiro" e "não casado". (Cf. QUINE, From a LogicalPoint ofView, 1953, cap. II).
4
e
Sinonímia. Esta pode ser estabelecida: a) mediante definições, como se costuma fazer na matemática e
em todas as linguagens artificiais; b) mediante o critério da intercambiabi lidade, com que Leibniz define
a própria identidade (v.); nesse caso, chamam-se sinônimos os termos intercambiáveis num mesmo
contexto, sem que se altere a verdade do próprio contexto; c) mediante regras semânticas, como também
ocorre nas linguagens artificiais. É de se notar que a dificuldade de se estabelecer, com esses
procedimentos, o significado exato de sinonímia e, portantp, o de A. levou alguns lógicos modernos a
negar a existência de distinção nítida entre A. e sinteticidade (MORTON WHITE, The Analytic and the
Synthetic. an Untenable Dualism, em SIDNEY HOOK, ed. John Dewey, Nova York, 1950; W. V. O. QUINE,
From a Logical Point of View, Cambridge, 1953, cap. II).
ANALOGIA (gr. àvaÀoyía; lat. Analogia-, in. Analogy, fr. Analogie, ai. Analogie, it. Analogia). Esse
termo tem dois significados fundamentais: ls
o sentido próprio e restrito, extraído do uso matemático
(equivalente a proporção) de igualdade de relações; 2- o sentido de extensão provável do conhecimento
mediante o uso de semelhanças genéricas que se podem aduzir entre situações diversas. No primeiro
significado, o termo foi empregado por Platão e por Aristóteles e é até hoje empregado pela lógica e pela
ciência. No segundo significado, o termo foi e é empregado na filosofia moderna e contemporânea. O uso
medieval do termo é intermediário, entre um e outro significado.
1
Q
Platão usou esse termo para indicar a igualdade das relações entre as quatro formas — duas a duas —
de conhecimento, que distinguiu na República (VII, 14, 534 a 6), ou seja,
entre a ciência e a dianóia, que pertencem à esfera da inteligência (que tem por objeto o ser), e entre a
crença e a conjectura, que pertencem à esfera da opinião (que tem por objeto o vir-a-ser). "O ser está para
o vir-a-ser", diz Platão, "assim como a inteligência para a opinião; e a inteligência está para a opinião
assim como a ciência está para a crença e a dianóia para a conjectura". Aristóteles usa essa palavra no
mesmo sentido de igualdade de relações. Assim, ele diz que as coisas em ato não são todas iguais entre si,
mas são iguais por A., no sentido que todas têm a mesma relação com os termos que servem,
respectivamente, de potências. "Não é necessário", diz Aristóteles, "pedir a definição de tudo, mas
observar também a A., isto é, ver que o construir está para a habilidade de construir na mesma relação em
que o estado de vigília está para o dormir, o ver para o ficar de olhos fechados, a elaboração do material
para o próprio material e a coisa formada para a informe" (Met., 9, 6, 1.047 b 35 ss.). Do mesmo modo,
Aristóteles afirma que os elementos e os princípios das coisas não são os mesmos, mas só análogos, no
sentido de que são as mesmas as relações que têm entre si. P. ex., "no caso da cor, a forma será o branco;
a privação, o negro; a matéria, a superfície; no caso da noite e do dia, a forma será a luz, a privação será a
escuridão e a matéria será o ar" (ibid., 12, 4,1.070 b 18). Obviamente, o branco, o negro e a superfície não
são, respectivamente, o mesmo que luz, escuridão e ar, mas é idêntica a relação entre essas duas tríades de
coisas (como entre muitíssimas outras tríades): relação que é expressa com os princípios de forma,
privação e matéria. Nesse sentido, isto é, como igualdade de relações em todos os casos em que se acham
realizados, tais princípios são chamados de analógicos. Fora da metafísica, a mais célebre aplicação do
conceito de A. é a que, em ética, Aristóteles faz em relação à justiça distributiva. Esta consiste em dar a
cada um segundo os seus méritos e, por isso, é constituída por uma proporção na qual as recompensas
estão entre si assim como os méritos respectivos das pessoas a quem são atribuídos. Trata-se, nota
Aristóteles, de uma proporção geométrica não contínua, já que nunca ocorre que a pessoa a quem se
atribui alguma coisa e a coisa que se lhe atribui constituam um termo numericamente uno (Et. nic, V, 5,
1.131 a 31). Aristóteles depois fez uso freqüente do conceito de analogia nos seus livros de história natu-
ANALOGIA
56
ANALOGIA
ral, dizendo que são análogos os órgãos "que têm a mesma função" (Depart. an., I, 5 645 b 6). Esse
conceito deveria revelar-se de fundamental importância na biologia do séc. XIX, quando, com Cuvier,
serviu de fundamento e de ponto de partida para a anatomia comparada.
Nesse significado, sem alusão à noção de probabilidade, mas à de proporção, esse termo é hoje
empregado em lógica. As "A. formais" são condicionadas pelo caráter transitivo das relações cuja
igualdade estabelecem. P. ex., diz-se que, se "xé antepassado de y e yé antepassado de z, x é antepassado
de z"; ou então: se "x é parte de ye yé parte de z, xé parte de z". A conclusão é exata, mas não o seria se,
em lugar das relações "antepassado de" ou "parte de", fossem usadas, p. ex., "pai de", "ama" ou "odeia",
etc. Não se pode dizer, com efeito, "x é pai de y e yé pai de z, logo x é pai de JZ". A A. vale só para as
chamadas "relações transitivas", cujo princípio pode ser assim expresso: as asserções de que xestá em
relação transitiva com y e que y está em relação transitiva com z implicam a asserção de que x está em
relação transitiva com z (cf. RUSSELL, Intr. to Math. Philosophy, 1918, cap. VI; STRAWSON, Intr.
toLogicalTheory, II, 2, 11).
O uso do termo no sentido de extensão provável do conhecimento foi iniciado pela Escolástica, embora
tal significado tenha permanecido estranho à própria Escolástica. Com efeito, essa palavra teve uso
metafísico-teológi-co para distinguir e, ao mesmo tempo, vincular o ser de Deus e o ser das criaturas, que
tinham sido contrapostos pela Escolástica árabe e sobretudo por Avicena, respectivamente como o ser
necessário, que não pode não ser, e o ser possível, que pode ser e por isso precisa do ser necessário para
existir. Assim, Guilherme de Alvérnia diz que o ser das coisas criadas e o ser de Deus não são idênticos
nem diferentes, mas análogos: de algum modo se assemelham e se correspondem, sem ter o mesmo
significado {De Trin., 7). S. Tomás distingue, com mais precisão, o ser das criaturas, separável da sua
essência e, portanto, criado, do ser de Deus, idêntico à essência e, portanto, necessário. Esses dois
significados do ser não são unívocos, isto é, idênticos, nem equívocos, isto é, simplesmente diferentes; são
análogos, ou seja, semelhantes, mas de proporções diversas. Só Deus tem o ser por essência; as criaturas
o têm por particiação; elas, enquanto são, são semelhantes a Deus,
que é o primeiro princípio universal do ser, mas Deus não é semelhante a elas: esta relação é a A. (5. Th.,
I, q, 4, a. 3). A relação analógica estende-se a todos os predicados atribuídos, ao mesmo tempo, a Deus e
às criaturas. P. ex., o termo "sábio", quando se refere ao homem, significa uma perfeição diferente da
essência e da existência do homem, ao passo que, quando se refere a Deus, quer dizer uma perfeição
idêntica à sua essência e ao seu ser; além disso, quando se refere ao homem, dá a entender o que quer
significar, ao passo que, quando se refere a Deus, deixa fora de si a coisa significada, que transcende os
limites do entendimento humano iibid., I, q. 13, a. 5). O significado diferente que um termo pode assumir
segundo a sua atribuição a esta ou àquela realidade foi depois chamado, pelos escolásticos, A. de
atribuição. Esse tipo de A. verifica-se não só a propósito da atribuição de um mesmo termo a Deus e às
criaturas, mas em muitos outros casos, como p. ex., quando se diz que um medicamento saudável e que
um animal é saudável, na medida em que o medicamento é a causa da sanidade que está no animal (ibid.,
I, q. 13, a. 5). A A. de proporcionalidade refere-se, porém, só à analogicidade de significado entre o ser
de Deus e o ser das criaturas, tornando-se tema de discussões polêmicas na Escolástica do séc. XIII e da
primeira metade do séc. XIV. A A. de proporcionalidade é freqüentemente atribuída a Aristóteles pelos
tomistas (assim como pelo próprio S. Tomás), mas na verdade, ainda que Aristóteles tivesse começado a
reconhecer vários sentidos do ser, fizera-o só para reconduzi-los a modos e especificações do único
sentido de substância, isto é, do ser enquanto ser, do ser na sua necessidade, que é o objeto da metafísica.
Aristóteles, por isso, não distinguia nem podia distinguir o ser de Deus do ser das outras coisas: p. ex.,
Deus e a mente são substâncias precisamente no mesmo sentido {Et. nic, I, 6, 1.096 a 24). O maior crítico
e opositor do tomismo neste ponto foi Duns Scot, que, reportando-se exatamente a Aristóteles, considerou
que a noção de ser é comum a todas as coisas existentes, logo tanto às criaturas quanto a Deus.
Considerou-a, por isso, unívoca pelo motivo fundamental de que, se assim não fora, seria impossível
conhecer algo de Deus e determinar qualquer atributo Seu, remontando, por via causai, das criaturas {Op.
Ox., I, d. 3, q. 3, n. 9). Desse modo, também restabeleceu a unidade da ciência do ser, isto é, da metafísica
— que,
ANALOGIA
57
ANALOGIA
para o tomismo, dividia-se em ciência do ser criado (metafísica) e em ciência do ser necessário (teologia)
— e, portanto, reduziu a teologia a ciência pratica (isto é, não dirigida para o conhecimento do homem,
mas para a sua orientação com vistas à salvação.
2
e
O segundo significado desse termo, como extensão provável do conhecimento mediante a passagem de
uma proposição que exprime certa situação para uma outra proposição que exprime uma situação
genericamente semelhante, ou como extenso da validade de uma proposição de certa situação para uma
situação genericamente semelhante, era conhecido pelos antigos com o nome de "procedimento por
semelhança" (ôvà 7iapapoA,fjç ou Sià ó(iOlóxn-coç). Aristóteles diz: "A probabilidade também aparece
no procedimento por semelhança quando se diz o contrário do contrário: p. ex., se é preciso fazer o bem
aos amigos, pode-se dizer, por semelhança, que é preciso fazer o mal aos inimigos" (Top., I, 10, 104 a 28;
cf. El. sof, 173 b 38; 176 a 33, etc.) Esse procedimento, obviamente, nada tem que ver com a A.: a relação
é diferente (assim como "fazer o mal" é diferente de "fazer o bem") e entre as duas situações, portanto,
não há igualdade de relações, mas só uma semelhança genérica. Aristóteles aconselha a usar esse
procedimento para questões polêmicas (Top., VIII, 1, 156 b 25). Euclides de Mégara já havia contestado
sua validade lógica. Ele "repudiava o procedimento por semelhança dizendo que ele vale de coisas
semelhantes ou de coisas dessemelhantes. Se de coisas semelhantes, é melhor tratar das próprias coisas do
que das que lhes são semelhantes; se de coisas dessemelhantes, é inútil a comparação" (DIÓG. L., II, 107)
Os epicuristas entendiam que a indução era um raciocínio por analogia e, portanto, defendiam a sua
validade subordinadamente ao postulado da uniformidade da natureza. Diz Filodemo: "Quando nós
julgamos: 'Já que os homens que estão ao nosso alcance são mortais, todos os homens são mortais', o
método analógico só será válido se supusermos que os homems que não estão em condições de se
mostrarem a nós são, sob todos os aspectos, semelhantes aos que estão ao nosso alcance, de tal modo que
se deve pressupor que eles também são mortais. Sem esse pressuposto, o método da A. não é válido" (De
signis, II, 25). Na filosofia moderna, a primeira defesa da A. é provavelmente a de Locke, que, no IV livro
de Ensaio, inclui a A. entre os graus
do assentimento; mais precisamente, considera-a como probabilidade concernente a coisas que
transcendem a experiência. A A. é a única ajuda de que dispomos, segundo Locke, para alcançar um
conhecimento provável dos "seres materiais finitos fora de nós", dos seres que, de qualquer modo, não
nos sejam perceptíveis, ou enfim da maior parte das operações da natureza que se escondem da
experiência humana direta (Ensaio, IV, 16). Leibniz concordou com Locke, ao ver na A. "a grande regra
da probabilidade", na medida em que aquilo que não pode ser comprovado pela experiência pode parecer
provável se está mais ou menos de acordo com a verdade estabelecida. Leibniz acrescenta alguns
exemplos do uso que os cientistas fizeram da A. e recorda que Huygens, fundando-se precisamente nela,
julgou que o estado dos outros planetas é muito semelhante ao da Terra, salvo pela diferença produzida
por suas diferentes distâncias do Sol (Nouv. ess,, IV, 16, 12). Na realidade, os cientistas dos sécs. XVII e
XVIII utilizaram muito a A.; e não foi sem razão que Kant utilizou esse termo para exprimir alguns
princípios regulativos fundamentais da ciência do seu tempo. Entendeu, em geral, por A. uma forma de
prova teorética (v. PROVA) e definiu-a como "a identidade da relação entre princípios e conseqüências
(entre causas e efeitos) enquanto tem lugar, não obstante, a diferença específica das coisas ou das
qualidades em si (quer dizer: consideradas fora daquela relação), que contêm o princípio de
conseqüências semelhantes" (Crít. do Juízo, % 90). Enumerou quatro "A. da experiência", enunciando-as
do seguinte modo: à) princípio da permanência da substância, que assim se exprime: "Em toda mudança
dos fenômenos a substância permanece e a sua quantidade na natureza não aumenta nem diminui"; ti)
princípio da série temporal segundo a lei da causalidade, que assim se exprime: "Todas as mudanças
ocorrem segundo a lei do nexo de causa e efeito"; c) princípio da simultaneidade segundo a lei da ação
recíproca, que assim se exprime: "Todas as substâncias, enquanto podem ser percebidas no espaço como
simultâneas, estão entre si em ação recíproca universal". Kant esclareceu do seguinte modo o sentido em
que esses princípios são chamados de analogias. Em matemática, as A. são fórmulas que exprimem a
igualdade de duas relações quantitativas e são sempre constitutivas, isto é, quando são dados três
membros da proporção, é dado também o quarto,
ANALOGIA
58
ANALOGIA
que, portanto, pode ser construído. Em filosofia, porém, a A. é a igualdade entre duas relações não
quantitativas, mas qualitativas: o que quer dizer que, dados três termos da proporção, o quarto termo não
é, por isso, dado,- mas só é dada certa relação com eles. Essa relação é uma regra para procurá-lo na
experiência e um sinal para descobri-lo. De modo que o princípio da permanência da substância, o
princípio de causalidade e o princípio de reciprocidade de ação não fazem parte verdadeiramente da
constituição dos objetos de experiência, mas valem somente para descobri-los e para situá-los na ordem
universal da natureza. Esses princípios são, é bem verdade, apriori, e portanto certos de forma
indubitável, mas, ao mesmo tempo, são desprovidos de evidência intuitiva, ao passo que os "axiomas da
intuição" (v. Axio-MA) e as "antecipações da percepção" (v. ANTECIPAÇÕES) são princípios constitutivos
porque ensinam "como os fenômenos, tanto com respeito à sua realidade percebida, quanto com respeito
à sua intuição, podem ser produzidos segundo as regras de uma síntese matemática" {Crít. R. Pura, Anal.
dos princ, III, 3). Como se vê, permanece neste uso kantiano o significado da A. como igualdade entre
relações, mas tais relações são ditas "qualitativas" no sentido de que, com elas, não são dados os objetos,
mas só as relações que permitem descobri-los e organizá-los em unidades. E, com efeito, os princípios da
permanência da substância, de causalidade e de reciprocidade não levam a conhecer nada, mas servem
para descobrir os objetos cognoscíveis e organizá-los, segundo os seus nexos, na unidade da experiência.
Nesse sentido, a A. é um instrumento, aliás, um dos instrumentos fundamentais para estender o
conhecimento dos fenômenos naturais, usando como guia as suas conexões determinantes. A lógica e a
metodologia da ciência do séc. XK não confiaram na A., considerando-a, geralmente, como uma extensão
da generalização indutiva além dos limites dentro dos quais ela oferece garantia de verdade. Stuart Mill
considerou o raciocínio por A. "uma inferência de que o que é verdade em certo caso também é verdade
em um caso de algum modo semelhante, mas não exatamente paralelo, isto é, não semelhante em todas as
circunstâncias materiais. Um objeto tem a propriedade b, outro não tem a propriedade b, mas é
semelhante ao primeiro em uma propriedade a não ligada a b, a A. levará à conclusão de que esse objeto
também tem a propriedade b. P. ex., diz-se que os planetas são habitados porque a Terra é habitada". Esse
modo de argumentar pode, segundo Stuart Mill, aumentar só em grau não determinável, mas em todo
caso muito modesto, a probabilidade da conclusão; mas em compensação, pode dar lugar a muitas
falácias {Logic, V, 5, 6).
Mas a lógica e a metodologia atuais são muito menos céticas em relação à A. talvez porque a remetam ao
significado ls
, isto é, à igualdade de relações. P. ex., um dos procedimentos analógicos consiste na criação
de símbolos que tenham semelhança maior ou menor com as situações reais, e cujas relações reproduzam
as relações inerentes aos elementos de tais situações. Tais símbolos são, às vezes, modelos mecânicos,
quer dizer, desenhos, esquemas ou máquinas que reproduzem as relações existentes entre elementos reais;
tais são, p. ex., os modelos do sistema solar, da estrutura do átomo, do sistema nervoso, etc. Outras vezes,
tais modelos são obtidos através do chamado processo de extrapolação, que consiste em levar ao limite o
comportamento de um conjunto de casos ordenados numa série na qual se suponham eliminadas,
gradualmente, as influências perturbadoras. Fala-se, p. ex., em velocidade infinita ou em velocidade zero,
ou massas reduzidas a um ponto geométrico, em alavancas perfeitas, em gases ideais, etc. Todo modelo é
um exemplo de A., no sentido le
, por ser próprio de um modelo reproduzir, entre os seus elementos, as
mesmas relações dos elementos da situação real. Mas os físicos também falam hoje de A. como de
condição ou de elemento integrante das hipóteses e das teorias científicas. Segundo essa orientação, a A.
faz parte da constituição de uma hipótese na medida em que "as proposições de uma hipótese devem ser
análogas a algumas leis conhecidas": nesse sentido, a A. não é só um auxílio à formulação de uma teoria,
mas é parte integrante dela. "Considerar a A. como um auxílio à invenção das teorias é tão absurdo quanto
considerar a melodia um auxílio para a composição de uma sonata. Se, para compor música, só fosse
necessário obedecer às leis da harmonia e aos princípios formais de desenvolvimento, todos seríamos
grandes compositores; mas é a ausência do sentido melódico que nos impede de atingir excelência
musical simplesmente comprando um manual de música" (N. R. CAMPBELL, Physics; The Elements,
1920, p. 130). A A. cor-
ANALYSIS SITUS
59
ANARQUISMO
responderia, portanto, em física ao que é o sentido musical em música: garantiria a adequação de uma
hipótese científica às uniformi-dades expressas ou formuladas nas leis.
ANALYSIS SITUS. V. TOPOLOGIA.
ANAMNESE (gr. àv<XLivr|(TiÇ; in. Reminis-cense, fr. Réminiscence, ai. Reminiszens-, it. Anamnest). O
mito da A. é exposto por Platão em Ménon, como antítese e correção do "princípio erístico" de que não é
possível ao homem indagar o que sabe nem o que não sabe, pois seria inútil indagar o que se sabe e
impossível indagar quando não se sabe o que indagar. A este discurso, que "pode tornar-nos preguiçosos e
agrada muito aos fracos", Platão opôs o mito segundo o qual a alma é imortal e, portanto, nasce e renasce
muitas vezes, de tal modo que viu tudo neste mundo e noutro, pelo que pode, em certas ocasiões, recordar
o que sabia antes. "E como toda a natureza é congênere e a alma apreendeu tudo, nada impede que quem
se recorde uma só coisa (que é aquilo que se chama de 'aprender') encontre em si todo o resto, se tiver
coragem e não se cansar na busca, já que buscar e aprender não são mais que reminiscência" (Men., 80 e81 e). Croce chamou de A. o processo do conhecimento histórico, já que seu sujeito, o Espírito Absoluto,
não tem outra coisa a fazer senão recordar ou rememorar aquilo quê está nele; e as fontes da história
(documentos e ruínas) só têm a função de fazer rememorar. (Teoria e storia delia stortografia, 1917, pp.
12 ss.; La storia come pensiero e come azione, 1938, p. 6).
ANANQUISMO (in. Anankism). Termo empregado por Peirce para indicar o princípio da necessidade
absoluta na evolução do mundo (Chance Love and Logic, II, 5; trad. it., p. 201).
ANAPODÍTICO (gr. ccvoOTÓSeuccoç; lat. In-dimostrativus; in. Anapodeictic; fr. Anapodicti-que, ai.
Anapodiktisch; it. Anapoditticó). Literalmente: não demonstrável. Aristóteles assim chamou as premissas
primeiras do silogismo que ele dizia também serem imediatas (Et. nic, VI, 12, 1.143 b 12; An.post., I, 2,
72 b 27, etc). Mas a teoria dos raciocínios anapodíticos foi desenvolvida pelos estóicos precisamente por
oposição â teoria silogística de Aristóteles. Enquanto os silogismos ou raciocínios apodíticos extraem uma
conclusão não evidente de premissas evidentes, os raciocínios anapodíticos têm uma conclusão evidente e
são a base de todos os outros raciocínios que possam ser reduzidos a eles (SEXTO EMPÍRICO, Pirr. hyp., II,
156; cf. CÍCERO, Top., 56-57). Os estóicos enumeravam cinco tipos fundamentais de raciocínios
anapodíticos e julgavam que a eles poderiam ser reduzidos todos os outros raciocínios; daí Sexto
Empírico dizer que, afastados esses, toda a dialética cairia por terra. Eis como se exemplificavam esses
tipos fundamentais: 1Q
Se é dia, há luz. Mas é dia. Logo há luz. 2Q
Se é dia, há luz. Mas não há luz. Logo
não é dia. 3a
Se não é dia, é noite. Mas é dia. Logo não é noite. 4a
Ou é dia ou é noite. Mas é dia. Logo
não é noite. 5S
Ou é dia ou é noite. Mas não é noite. Logo é dia (Pirr. hyp., II, 157-58; DiÓG. L., VII, 80).
Adotando esses raciocínios como fundamento da dialética, da própria arte de raciocinar, os estóicos
reduziam ao raciocínio A. hipotético ou disjuntivo, que é sempre de dois termos, qualquer outra espécie
de raciocínio, negando implicitamente que tivesse valor autônomo o raciocínio demonstrativo de três
termos, isto é, o silogismo aristotélico.
Como sinônimo do termo, Leibniz usou as-silogístico, para indicar um tipo de raciocínio não silogístico.
"É preciso saber", disse ele, "que há conseqüências assilogísticas boas, que não poderiam ser
demonstradas a rigor com um silogismo sem trocar um pouco os termos; e essa mesma mudança dos
termos faz que a conseqüência seja assilogística". P. ex.: "Jesus Cristo é Deus, logo a mãe de Jesus Cristo
é a mãe de Deus"; ou então: "Se Davi é o pai de Salomão, Salomão é filho de Davi" (Nouv. ess., IV, 17,
4).
ANARQUISMO (in. Anarchism; fr. Anarchis-me, ai. Anarchismus, it. Anarchismó). Doutrina segundo a
qual o indivíduo é a única realidade, que deve ser absolutamente livre e que qualquer restrição que lhe
seja imposta é ilegítima; de onde, a ilegitimidade do Estado. Costuma-se atribuir a Proudhon (1809-65) o
nascimento do A. Sua principal preocupação foi mostrar que a justiça não pode ser imposta ao indivíduo,
mas é uma faculdade do eu individual que, sem sair do seu foro interior, sente a dignidade da pessoa do
próximo como a sua própria e, portanto, adapta-se à realidade coletiva mesmo conservando a sua
individualidade (A Justiça na revolução e na Igreja, 1858). Proudhon desejaria que o Estado fosse
reduzido à reunião de vários grupos formados, cada um, para o exercício de uma função específica e
depois reunidos sob uma lei comum e um interesse idêntico (Justice, I, p. 481). Esse ideal pressupõe a
abolição da propriedade privada
ANFIBOLIA
60
ANGÚSTIA
que, num texto célebre (O que é a propriedade?, 1840), ele definia "um furto". No domínio da filosofia, o
maior teórico do A. foi Max Stirner (pseudônimo de Kaspar Schmidt, 1806-56), autor de uma obra
intitulada O único e a sua pmpriedade(1845). A tese fundamental de Stirner é que o indivíduo é a única
realidade e o único valor, logo é a medida de tudo. Subordiná-lo a Deus, à humanidade, ao Estado, ao
espírito, a um ideal qualquer, seja embora o do próprio homem, é impossível, pois o que é diferente do eu
individual e se lhe contrapõe, é um fantasma do qual ele acaba escravo. Desse ponto de vista, a única
forma de convivência social é a associação desprovida de qualquer hierarquia, da qual o indivíduo
participa para multiplicar a sua força, mas que para ele é apenas um meio. Essa forma de associação pode
nascer tão-somente da dissolução da sociedade atual, que, para o homem, é o estado de natureza, e pode
ser somente o resultado de uma insurreição que consiga abolir todas as constituições estatais. No caráter
revolucionário do A. depois insistiram os anarquistas russos, dos quais o maior foi Mikhail Bakunin
(1814-96), autor de numerosos livros entre os quais um intitulado Deus e o Estado (1871), em que afirma
a necessidade de destruir todas as leis, instituições e crenças existentes. A tese anarquista da contraposição
nítida e radical entre todas as ordens políticas e sociais existentes, consideradas como o próprio mal, e a
nova ordem libertária futura, considerada como o bem total, foi rea-presentada por G. Landauer {Die
Revolution, 1923). (Sobre ele cf. K. MANNHEIM, Ideologia und Utopie, 1929, IV, § 1; trad. it., p. 194 ss.).
ANFIBOLIA (gr. àuxpifJoXía; lat. Amphibolia; in. Amphiboly, fr. Amphibolie, ai. Amphibolie, it.
Anfibolid). Em Aristóteles {El. sof, 4, 166 a), é um dos sofismas in dictione, mais precisamente a falácia
(v.) que provém do fato de que uma frase torna-se ambígua pela construção gramatical defeituosa. Mais
genericamente, o termo A. foi entendido como uma palavra que significa duas ou mais coisas (SEXTO
EMPÍRICO, Pirr. hyp., II, 256). Em Kant, o termo A. é usado na expressão "A. dos conceitos de reflexão"
para indicar a confusão entre o uso empírico-intelectual e o uso transcendental dos conceitos de reflexão
como "unidade" e "multiplicidade", "matéria", "forma" e semelhantes {Crítica R. Pura, An. dosprinc,
Apênd.) G. P.
ANFIBOLOGIA. V. ANFIBOLIA.
ANGÚSTIA (in. Dead; fr. Angoisse, ai. Angst; it. Angoscià). No seu significado filosófico, isto
é, como atitude do homem em face de sua situação no mundo, esse termo foi introduzido por Kierkegaard
em Conceito de angústia (1844). A raiz da A. é a existência como possibilidade (v. EXISTÊNCIA). Ao
contrário do temor e de outros estados análogos, que sempre se referem a algo determinado, a A. não se
refere a nada preciso: é o sentimento puro da possibilidade. O homem no mundo vive de possibilidade, já
que a possibilidade é a dimensão do futuro e o homem vive continuamente debruçado sobre o futuro. Mas
as possibilidades que se apresentam ao homem não têm nenhuma garantia de realização. Só por piedosa
ilusão elas se lhe apresentam como possibilidades agradáveis, felizes ou vitoriosas: na realidade, como
possibilidades humanas, não oferecem garantia alguma e ocultam sempre a alternativa imanente do
insucesso, do fracasso e da morte. "No possível tudo é possível", diz Kierkegaard, o que quer dizer que
uma possibilidade favorável não tem maior segurança do que a possibilidade mais desastrosa e horrível.
Logo, o homem que se dá conta disso, reconhece a inutilidade da habilidade e diante de si só tem dois
caminhos: o suicídio ou a fé, isto é, o recurso a "Aquele a quem tudo é possível". A A. é, segundo
Kierkegaard, parte essencial da espiritualidade própria do homem, de sorte que, se o homem fosse anjo ou
animal, não conheceria a A.: e, como efeito, logra mascará-la ou escondê-la o homem cuja espiritualidade
é demasiado débil. Enquanto reflexão sobre a própria condição humana, a espiritualidade do homem está
ligada à A., isto é, ao sentimento da ameaça imanente em toda possibilidade humana como tal. — Na
filosofia contemporânea, Heidegger centrou na A. a sua análise existencial (v. EMOÇÃO). A A. é a situação
afetiva fundamental, "que pode manter aberta a contínua e radical ameaça que vem do ser mais próprio e
isolado do homem": isto é, a ameaça da morte. Na A., o homem "sente-se em presença do nada, da
impossibilidade possível da sua existência". Nesse sentido, a A. constitui essencialmente o que Heidegger
chama de "o ser para a morte", isto é, a aceitação da morte como "a possibilidade absolutamente própria,
incondicional e insuperável do homem" {Sein und Zeit, § 53). Mas nem por isso a A. é o medo da morte
ou dos perigos que podem provocá-la. Diz Heidegger: "O medo tem assento no ente de que se cuida
dentro do mundo. A A., porém, brota do próprio Ser-aí. O medo chega
ANGÚSTIA
61
ANJOS
repentino do intramundano. A A. ergue-se do ser-no-mundo enquanto lançado ser-para-a-morte" Çibid., §
68 b). A A. não é nem mesmo o pensamento da morte ou a espera e a preparação da morte. Viver para a
morte, angustiar-se, significa compreender a impossibilidade da existência enquanto tal. E compreender
tal impossibilidade significa compreender que todas as possibilidades da existência, consistentes em
antecipações ou projetos que pretendem transcender a realidade de fato, só fazem reincidir na realidade de
fato. Por isso, o verdadeiro significado da A. é o destino, isto é, a escolha da situação de fato como
herança de que não se pode fugir e o reconhecimento da impossibilidade ou nulidade de qualquer outra
escolha que não a aceitação da situação em que já se está. Em outros termos, a A. como compreensão
existencial possibilita ao homem transformar a necessidade em virtude: aceitar como um ato de escolha a
situação de fato, que é o seu destino e que, sem a A., procuraria inutilmente transcender. A coincidência
de necessidade de liberdade parece, assim, ser o significado da A. heideggeriana Cibid, § 74). Nesse
sentido, Heidegger diz que a A. "liberta o homem das possibilidades nulas e torna-o livre para as
autênticas" iibid., § 68 b).
Todavia, não foi SQ a filosofia existencialista que considerou a A. 'como revelação emocional da situação
humana no mundo. Uma rica literatura psicológica esclareceu o caráter onipresente da A., que é diferente
do medo, do temor e de outros estados emocionais de caráter episódico que se referem a situações
particulares. A A. parece, ao contrário, um ingrediente constante da. situação humana do mundo, seja qual
for a explicação dada à sua origem. Freud inicialmente fê-la remontar ao ato do nascimento, isto é, ao ato
"em que se acham reunidas todas as sensações penosas, todas as tendências e as sensações corpóreas, cujo
conjunto se tornou o protótipo do efeito produzido por um perigo grave" (Einführung in die
Psychoanalyse, 1917, III, 25; trad. fr., p. 424). Em seguida, mais genericamente, considerou a A. como a
"reação do Ego ao perigo", ou melhor, "à própria essência do perigo"; essa situação é também definida
por Freud como "uma situação de impotência". Diz Freud: "Estou na expectativa de que se verifique uma
situação de impotência; ou então a situação presente me lembra um acontecimento traumático já vivido.
Assim, antecipo esse trauma, comporto-me como se já estivesse
aqui, enquanto houver tempo para afastá-lo. Portanto, a A. é, de um lado, expectativa do trauma e, de
outro, uma repetição atenuada deste" (Hemmung, Symptom undAngst, 1926, cap. XI, B; trad. it., p. 106).
Por outro lado, o estudo das pessoas nas quais a A. se manifesta nas formas mais acentuadas (p. ex., nas
que sofreram lesões cerebrais) levou alguns cientistas (p. ex., GOLDSTEIN, DerAufbaudesOrganismus,
1934) a definir a A. como "a impossibilidade de pôr-se em relação com o mundo" e de "realizar uma
tarefa correspondente à essência do organismo", considerando-a assim como o caso-limite das "reações de
catástrofe" que acompanham o conflito do organismo com o mundo.
ANIMISMÓ (in. Animism, fr. Animisme, ai. Animismus-, it. Animismó). Termo usado por Tylor
{Primitive Culture, I, 1934, pp. 428-429) para indicar a crença difundida entre os povos primitivos de que
as coisas naturais são todas animadas; daí a tendência a explicar os acontecimentos pela ação de forças ou
princípios animados. No A. assim entendido Tylor vê a forma primitiva da metafísica e da religião. Essa
doutrina partia do pressuposto de que a primeira e fundamental preocupação do homem primitivo era
explicar, de algum modo, os fatos que o circundam. A observação sociológica, porém, demonstrou que
isso não é verdade e que o primitivo se interessa antes de mais nada pela caça, pela pesca, pelos eventos e
pelas festividades da tribo, e que esses interesses não estão vinculadas ao A., mas à magia (v.). A doutrina
segundo a qual foi do comportamento mágico que nasceu a religião e é em torno dele que gira a cultura
primitiva foi chamada pré-animismo. (Cf. MARRET, The Threshold of Religion, 1909; G. FRAZER, The
Golden Bough, 1911-14; MALINOWSKI, Magic Science and Religion, 1925).
ANJOS (gr. õtyyEXoi; lat. Angeli; in. Angels, fr. Anges; ai. Engel; it. Angeli). Foi esse o nome que a
teologia cristã deu às "criaturas incorpóreas" que funcionam como intermediárias entre Deus e as
criaturas corpóreas, admitidas pelo neo-platonismo (v. DEUS). A fonte da angelologia medieval é o texto
do Pseudo-Dionísio, o Areopagita, Sobre a hierarquia celeste (séc. V). A hierarquia celeste é constituída
por nove ordens de A. agrupadas em disposições ternárias. A primeira é a dos Serafins, dos Querubins e
dos Tronos; a segunda é a das Dominações, das Virtudes e das Potestades; a terceira, a dos Prin-cipados,
dos Arcanjos e dos Anjos. Essa doutri-
ANOÉTICO
62
ANTIGOS E MODERNOS
na foi aceita por S. Tomás (S. Th., I, q. 108, a. 2) e adotada por Dante no Paraíso.
ANOÉTICO (in. Anoetic, fr. Anoétique, ai. Anoetik, it. Anoeticó). Adjetivo que se usa às vezes para
designar as funções diferentes do intelecto, p. ex., a sensibilidade, as emoções, etc.
ANOMALIA (in. Anomaly, fr. Anomalie, ai. Anomalie, it. Anomalia). Em geral, todo fato ou elemento
que se afasta do modelo uniforme, constantemente verificado, de certo gênero de fatos ou elementos: p.
ex., um corpo vivo apresenta uma A. se a estrutura de algum órgão seu se distancia da encontrável em
corpos do mesmo gênero. Um fato anômalo é um fato que contradiz a previsão provável, fundada em
uniformidades recorrentes (v. ANORMALIDADE).
ANOMIA (in. Anomy fr. Anomie, ai. Ano-mie, it. Anomid). Termo moderno usado sobretudo por
sociólogos (p. ex., Durkheim), para indicar a ausência ou a deficiência de organização social e, portanto,
de regras que assegurem a uniformidade dos acontecimentos sociais.
ANORMALIDADE (in. Abnormality, fr. Anor-malité, ai. Unregelmüssigkeit; it. Anormalitâ). O que é
contrário a uma norma e, por isso, se subtrai, em certa medida, à função ou ao fim que a norma tende a
garantir ou a atingir. Esse termo tem significado diferente de anomalia (v.), já que esta nem sempre
constitui uma A. A anomalia é uma variante imprevista, um caso que se afasta da uniformidade
reconhecida. Pode ou não ser uma A. P. ex., um órgão anômalo é anormal só quando não é capaz de
realizar a função que lhe seria própria.
ANTECEDENTE (in. Antecedent; fr. Antecedent; ai. Antezedens, it. Antecedente). Em Lógica, o
primeiro termo de uma conseqüência (v.). _ G. P.
ANTECIPAÇÃO (gr. 7tpóX.T|V|n.ç; lat. Antici-patio, in. Anticipation-, fr. Anticipation; ai. Antizipation; it. Anticipazione). Com esse termo, os lógicos estóicos e epicuristas designavam os conceitos
gerais (de gênero e espécie) na medida em que, por meio deles, os dados da experiência eram
"antecipados" pela mente (DIÓG. L., VII, 1, 54). Na filosofia moderna, na esteira da polêmica epicurista
contra o papel atribuído pelos estóicos às A. no conhecimento, Francis Bacon e outros filósofos usam A.
em sentido depreciativo, para indicar uma hipótese gratuita, não confirmada pela experiência (Nov. Org.,
I, 26). Em Kant, Antizipationem der Wahmehmung ("A. da percepção") designa o segundo grupo de
princípios sintéticos apriori
do intelecto, dependente da regra apriori, segundo a qual "em todos os fenômenos o real objeto da
sensação tem uma qualidade intensiva, isto é, um grau" (v. CONCEITO). G. P.
ANTEPREDICAMENTAIS (lat. Antepraedi-camenta; in. Antepredicament; fr. Antepredicament; ai.
Antepradicament; it. Antipredica-mentt). Na Idade Média, com o nome de A. designava-se a Isagoge as
categorias áe Porfírio. Além disso, a mesma palavra também designava, naturalmente, as quinque vocês
(ou categorias da Lógica) tratadas na Isagoge. gênero (v.), espécie (v.), diferença (v.), próprio (v.),
acidente (v.). Husserl chamou de evidência an-tepredicativa a evidência com que os objetos se dão, com
as várias modalidades de seu ser, no mundo da vida (v.): evidência que serve de fundamento para o juízo
predicativo ou apo-fântico {Erfahrung und Urteil, 1939, intr.).
ANTÍFASE (gr. àvxícpocaiç). Em Aristóteles CAn.post., 72 a 12-14, e passim), significa contradição, isto
é, "oposição (entre dois enunciados) que exclui qualquer, caminho intermediário". Em Aristóteles,
também, silogismo por A. é o que conclui com uma contradição; na Lógica estóica, é o raciocínio que
conclui com um dilema, como "é dia ou não é dia" (mas, em Aristóteles, "se é dia, então não é dia").
G. P. ANTIGOS E MODERNOS (in. Ancients and modems, fr. Anciens et modernes, it. Antichi e
modernt). A disputa sobre a superioridade dos A. ou dos modernos nasceu na Itália com Pensiere diversi
(1620) de Alessandra Tassoni, desenvolveu-se sobretudo na França e na Inglaterra e versou
substancialmente sobre o conceito da história como progresso. A noção de progresso, aliás, origina-se
precisamente dessa polêmica e, em particular, do Diálogo dos mortos (1683) de Fontenelle. Esse
conceito, elaborado nessas discussões, fora já expresso por Giordano Bruno com a afirmação de que
"somos mais velhos e temos mais idade do que nossos predecessores", porque através do tempo o juízo
amadurece {Cena delle ceneri, in "Op. It.", 31-32); conceito este que Bacon exprimira com veritas filia
temporis, extraído de Aulo Gélio (Noct.Att., XII, 11): "A Antigüidade", dizia Bacon, "foi 'antiga' e mais
velha em relação a nós, mas em relação ao mundo, nova e mais jovem; e assim como de um ancião
podemos esperar muito mais conhecimento das coisas humanas e maior maturidade de juízo do que de
um jovem — pela experiência e pelo grande número de coisas que viu, ouviu e pensou —,
ANTI-HISTORICISMO 63 ANTINOMIAS
também da nossa época (se tivesse consciência das suas forças e quisesse experimentar e compreender)
seria justo esperar maiores coisas que dos tempos A., sendo esta para o mundo a maioridade, ajudada e
enriquecida por infinitos experimentos e observações" (Nov. Org., I, 84). Esse conceito, repetido por
Fontenelle, constituiu o primeiro núcleo da noção de progresso (v.). (Sobre a disputa dos A. e dos
modernos,cf. RIGAULT, Histoire de Ia querelle des anciens e des modemes, 1856; J. B. BURY, The Idea of
Progress, 1932, cap. IV).
ANTI-fflSTORICISMO (in. Antibistoricisni; fr. Antihistoricisme, ai. Antihistorismus; it. An-tistoricismd).
Termo empregado principalmente por Croce para designar o Iluminismo, que, como "racionalismo
abstrato", teria considerado "a realidade dividida em supra-história e história, num mundo de idéias ou de
valores e num mundo inferior que as reflete ou as refletiu até agora de modo fugidio e imperfeito e ao
qual convirá uma vez por todas impô-los, fazendo suceder à história imperfeita, ou à história pura e
simples, uma realidade racional perfeita" (Lastoria, p. 51). Desse ponto de vista, são "anti-históricas"
todas as doutrinas que distinguem o que é do que deve ser, isto é, que não admitem a identificação
hegeliana entre realidade e racionalidade. — Na verdade, o Iluminismo não é "anti-historicismo", mas
"anti-tradicionalismo", pois constituiu a primeira e mais radical condenação da tradição como portadora e
garantia de verdade (v. ILUMINISMO; TRADIÇÃO).
ANTXLOGIA ( gr. òvTvloTÍa; in. Antilogy, fr. Antilogie, ai. Antilogie, it. Antilogid). Contradição (v.). Às
vezes esse termo eqüivale a discussão, ou à arte da discussão porque esta consiste em contrapor um
argumento a outro argumento. Antilógicos foi o título de uma obra de Protágoras (DIÓG. L., III, 37).
ANTILOGISMO (in. Antilogism, fr. Antilo-gisme, ai. Antilogismus; it. Antilogismó). Termo cunhado com
palavras gregas (àvxí "anti, contra" e Aóyoç, "razão"'), introduzido para indicar atitudes filosóficas de
hostilidade à razão discursiva. G. P.
ANTIMETAFÍSICO (in. Antimetaphisio, fr. Antimétaphysique, ai. Antimetaphysik, it. Anti-metafisicó).
Termo usado pelos modernos para indicar uma atitude ou uma orientação de pensamento contrária às
afirmações da metafísica clássica e que se recusa a admitir a validade de uma averiguação que ultrapasse
os limites da
experiência ou que, de algum modo, desemboque em afirmações não verificáveis em termos de
experiência (v. METAFÍSICA). Mais especificamente, a crítica antimetafísica dirige-se (a exemplo de
Hume) contra os dois conceitos fundamentais, substância e causa, ou então contra interpretações que
possibilitem sua aplicação a objetos que transcendam os limites da experiência.
ANTINOMIAS (in. Antinomies, fr. Antino-mies, ai. Antinomien; it. Antinomié). Com esse termo ou com
o termo paradoxos são chamadas as contradições propiciadas pelo uso da noção absoluta de todos em
matemática e em lógica. Nesse sentido, as A. não eram desconhecidas na Antigüidade, porque fizeram
parte dos raciocínios insolúveis ou conversíveis de que se compraziam megáricos e estóicos e que às
vezes também foram chamados de dilemas (v. DILEMA). Tais raciocínios são tratados na Escolástica
tardia, nas coleções de Insolubilia ou de Obrigatória; o mais famoso é o do mentiroso, que Cícero já
recordava: "Se dizes que mentes, ou estás dizendo a verdade e então estás mentindo, ou estás dizendo
mentira e então dizes a verdade" (Acad, TV, 29, 96). Esse paradoxo era discutido no séc. XIV por Ockham
(Summa log., III, III, 38). Na lógica contemporânea, a primeira contradição desse gênero foi evidenciada
por Burali Forti em 1897 e se referia à série dos números ordinais: se a série de todos os números ordinais
tem um número ordinal, que seja p. ex. co, CO também será um número ordinal, de tal modo que a série
de todos os números ordinais terá o número co + 1, maior do que co, e co não será o número ordinal de
todos os ordinais ("Uma questão sobre os números transfinitos", em Rend dei Circolo Matemático
diPalermo, 1897). Mas o mais famoso paradoxo, o que chamou mais a atenção, foi o de Russell, referente
à classe de todas as classes que não são membros de si mesmas. Há classes que não são membros de si
mesmas, como p. ex. a classe dos homens: esta, não sendo homem, não é membro de si mesma. Há,
porém, classes que são membros de si mesmas, como a "classe dos conceitos", que é também um
conceito. Ora, a classe de todas as classes que não são membros de si mesmas é ou não é membro de si
mesma? Se é, contém um membro que é membro de si mesmo e, portanto, não é mais a classe de todas as
classes que não contêm a si mesmas como membro. Se não, será uma das classes que não contêm a si
mes-
ANTINOMIAS
64
ANTINOMIAS
mas como membro e deve, por isso, pertencer à classe de tais classes. Esse paradoxo publicado por
Russel em 1902 deu depois lugar à reorganização feita por Whitehead e Russel na lógica matemática
(Principia mathematica, 1910-13)- Outros paradoxos são os de Kõning (1905), de Richard (1906), de
Grelling (1908), de Jourdain (1913); mas, como notou Russell, pode haver um número indefinido de
paradoxos com a mesma característica, a auto-referên-cia ou a reflexividade. Em cada um deles se diz
alguma coisa de todos os casos de um dado gênero e, do que se diz, nasce um novo caso que é e não é da
mesma espécie daqueles aos quais o todos se refere. Portanto, a solução óbvia das A. é a que apresenta
regras capazes de impedir a referência auto-reflexiva de onde nascem as A. Tal é o princípio adotado por
Russell: "Tudo o que implica o todo de uma coleção não deve ser termo da coleção", ou inversamente:
"Se, admitindo que certa coleção tem um total, ela teria membros definíveis somente em termo daquele
total, então a dita coleção não tem total" (MathematicalLogic as Based on the Theory of Types, 1908), em
Logic and Knowledge, p. 63)- A mesma exigência era apresentada por Poincaré, na forma da exclusão das
definições impredicativas (v.), isto é, das definições que implicam um círculo vicioso.
Todavia, essa simples exigência negativa, sobre a qual todos os lógicos estão de acordo, não é suficiente
porque não fornece um critério exato para distinguir o uso legítimo do ilegítimo da palavra todos. E, sobre
qual possa ser esse critério, os lógicos não estão de acordo. Contudo, é possível distinguir dois tipos de
soluções que podem ser atribuídas, respectivamente, a Russell e a Frege.
1
Q
A primeira solução consiste em distinguir vários graus ou tipos de conceitos e em limitar a
predicabilidade de um tipo em relação ao outro. A teoria dos tipos de Russell responde a essa exigência.
Segundo essa teoria, devem-se distinguir: conceitos de tipo zero, que são os conceitos individuais, isto é,
os nomes próprios; conceitos de tipo um, que são propriedades de indivíduos (p. ex., branco, vermelho,
grande, etc); conceitos de tipo dois, que são propriedades de propriedades, e assim por diante. Isso posto,
a regra para evitar a A. é a seguinte: um conceito nunca pode servir de predicado numa proposição cujo
sujeito seja de tipo igual ou maior do que o próprio conceito. Essa teoria foi exposta por Russell no
apêndice de Principies of Mathematics, de 1903.
Em seguida, nessa teoria dos tipos, o próprio Russell inseriu uma teoria dos graus, dando lugar à chamada
teoria ramificada dos tipos, que ele expôs em 1908 (no artigo já citado) e que está na base dos Principia
mathematica. Segundo essa teoria, são de grau zero ou elementares as funções proposicionais (v.) ou
predicados que não contêm nenhuma variável aparente (entendendo-se por variável aparente a que se
repete numa função independente dela, não no sentido de ter o mesmo valor para cada valor da variável,
mas no sentido de que os valores particulares desta não mudam a natureza da função). São de grau um as
funções proposicionais apresentadas de uma variável aparente cuja classe de variação é um conjunto de
objetos individuais. São de grau dois as apresentadas de uma variável aparente que está no lugar de uma
função proposicional de grau um; e assim por diante. Isto posto, estabelece-se a regra segundo a qual não
podem ser tratadas no mesmo plano proposições que podem ser extraídas de funções de grau diferente. P.
ex., a A. do mentiroso depende do fato de a frase "eu minto" ser interpretada no sentido de "Qualquer que
seja a minha presente afirmação x, x é uma mentira", e de se identificar essa frase, que chamamos y, com
a afirmação x. Mas na realidade y é de grau diferente de x porque x é a variável aparente contida em y-.
por isso, não pode ser identificada com y. Em outras palavras, quando se diz "eu minto", não se entende
que a própria frase "eu minto" seja uma mentira, mas que é mentira alguma outra frase a que ela se refere.
Russell, porém, para tornar possível, em matemática, o tipo de asserção impropriamente expressa com a
frase (que dá lugar às A.) "todas as propriedades de x", introduzia o axioma das classes ou axioma de
redutibilidade. Dizia: "Seja (p xuma função de qualquer ordem de um argumento x, que pode ser um
indivíduo ou uma função de qualquer ordem. Se (p é da ordem imediatamente superior a x, escrevemos a
função na forma (p\x; nesse caso, chamaremos (p de função predicativa. Assim, a função predicativa de
um indivíduo é uma função de primeira ordem. Para argumentos de tipo mais alto, as funções predicativas
tomam o lugar que as funções de primeira ordem têm em relação aos indivíduos. Concluímos então que
toda função é equivalente, para todos os seus valores, a alguma função predicativa do mesmo argumento"
(.Mathematica!Logic, 81-82). Russell acreditava
ANTINOMIAS
65
ANTINOMIAS KANTIANAS
ter salvo desse modo o conceito de classe da A. e, ao mesmo tempo, tê-lo tornado ainda utilizável em sua
função fundamental, que seria a de reduzir a ordem das funções proposicionais. Mas esse axioma suscitou
muitas críticas, que mostraram especialmente que seu efeito era restaurar a possibilidade das definições
impredicativas que a teoria dos graus tendia a eliminar (cf. sobre tais críticas A. CHURCH, Introduction to
Mathematical Logic, § 59, n. 588). O mesmo Russell, na introdução à 2S
edição de Principia
mathematica (1925), recomendava o abandono do axioma da redutibilidade.
Ramsey propôs então dividir as A. em duas categorias: as antinomias lógicas (em sentido estrito), que são
as exemplificadas pela A. de Russell e que não fazem referência à verdade ou à falsidade das expressões;
e as A. sintáticas, exemplificadas pela A. do mentiroso, que nascem da referência semântica e podem,
portanto, ser chamadas de semânticas ou episte-mológicas{Foundations ofMathematics, 1931). Ramsey
observou que as antinomias da segunda espécie não comparecem nos sistemas logísticos, mas só nos
textos que os acompanham e que, portanto, podem ser desprezadas pela lógica, na medida em que esta
tem como objeto a construção de sistemas simbólicos. Quanto às A. lógicas, porém, Ramsey observou
que basta a teoria simples dos tipos, cuja regra fundamental Carnap, seguindo a sugestão de Ramsey,
assim formulou: "Um predicado pertence sempre a um tipo diferente do de seus argumentos (isto é,
pertence a um tipo de nível mais alto); por isso, um enunciado nunca pode ter a forma T(F)'" {The
Logical Syntax of Language, § 60 a). Essa regra basta para evitar as definições impredicativas(v.): de
modo que a teoria dos tipos simples é hoje a mais comumente aceita pelos lógicos, no que concerne às A.
lógicas.
2
a
A segunda solução fundamental das A. diz respeito às A. sintáticas, isto é, semântico-epistemológicas,
que são aquelas nas quais comparecem reiteradamente os conceitos de verdadeiro e falso. Essa solução
consiste em considerar essas A. como proposições indeci-díveis, isto é, como proposições sobre cuja
verdade ou falsidade a estrutura da língua em que são formuladas não permite decidir nem num sentido
nem noutro. Mediante a ampliação da língua considerada, tais proposições podem tornar-se suscetíveis de
decisão, mas essa ampliação pode dar ensejo a outras proposições indecisas.
Uma solução desse gênero já fora apresentada por Ockham, quando, na análise do paradoxo do
mentiroso, reconhecera o caráter indecidível dos enunciados auto-reflexivos. Assim, dizia Ockham, não é
legítimo dizer que A signifique "A significa o falso". Certamente é possível que A signifique o falso, mas
justamente porque é possível, e só por isso, A não significa nem o verdadeiro nem o falso {Summa log.,
III, III, 38).
Esse ponto de vista foi consolidado pelo chamado teorema de Gõdel, segundo o qual é impossível provar
a não-contradição de um sistema logístico com os meios de expressão contidos no mesmo sistema ("Über
formal Unentscheidbare Sãtze der Principia Mathematica und verwandter Systeme", in Monatsch. Math.
Phys, 193D- Isto posto, pode-se entender como nascem A. sintáticas quando os predicados verdadeiro e
falso, referentes a uma linguagem determinada S, são usados dentro dessa mesma linguagem. Por outro
lado, a contradição pode ser evitada usando-se os predicados "verdadeiro (em Si)" e "falso (em SO",
numa sintaxe de Si não formulada na própria Si, mas em outra linguagem S2 (CARNAP, Logical Syntax of
Language, § 60 b). Vale dizer que a afirmação "eu minto" pode ser verdadeira em nível de certa
linguagem e falsa em nível de outra linguagem; isto é, ela permanece indecisa enquanto não se determinar
o nível da linguagem a que se refere. Soluções substancialmente semelhantes a estas foram propostas por
Quine {Mathematical Logic, 1940, cap VII; cf. From a Logical Point of View, VII, 3) e por Church
{Introduction to Mathematical Logic, § 57).
ANTINOMIAS KANTIANAS (in. Kantian antinomies, fr. Antinomies kantiennes, ai. Kants
Antinomien-, it. Antinomie kantiané). A palavra A. significa propriamente "conflito de leis"
(QuiNTiLiANO, Inst. or., VII, 7, 1), mas foi estendida por Kant para indicar o conflito em que a razão se
encontra consigo mesma em virtude dos seus próprios procedimentos. Kant falou das A. no campo da
cosmologia racional, isto é, da doutrina que tem por objeto a idéia do mundo. Esta idéia, como todas da
razão pura (v. IDÉIA), nasce da tentativa — ilegítima, segundo Kant — de aplicar as categorias a si
mesmas, isto é, do uso reflexivo àas categorias. A idéia do mundo é, de fato, a "unidade incondicionada
das condições objetivas da possibilidade dos objetos em geral". As "condições objetivas, etc." são as
categorias e os princípios delas derivados; e a
ANTINOMIAS KANTIAN AS
66
ANTINOMIAS KANTIANAS
unidade é ainda uma categoria. As A. que surgem desse modo são, segundo Kant, naturais ou inevitáveis;
naturais porque a idéia de mundo que lhes dá origem, embora desprovida de validade empírica e,
portanto, cognoscitiva, é formada pela razão com um procedimento natural que consiste em aplicar às
categorias as próprias categorias, que só deveriam ser aplicadas aos fenômenos; inevitáveis porque, uma
vez formada a idéia de mundo como a totalidade absoluta, incondicionada, de todos os fenômenos e das
suas condições, não se pode absolutamente evitar chegar a proposições contraditórias. Kant enumera
quatro A. que correspondem aos quatro grupos de categorias: segundo a qualidade, a quantidade, a
relação e a modalidade. São elas:
I
a
Antinomia. Tese. o mundo tem um início no tempo e no espaço, está fechado dentro de limites.
Antítese, o mundo não tem nem início no tempo nem limite no espaço, mas é infinito tanto no tempo
quanto no espaço.
2
a
Antinomia. Tese. toda substância composta consta de partes simples e nada existe além do simples ou
do que resulta composto do simples. Antítese, não existe no mundo coisa alguma composta de parte
simples e não existe em lugar algum nada de simples.
3
a
Antinomia. Tese. a causalidade segundo leis da natureza não é a única causalidade pela qual possam ser
explicados os fenômenos do mundo. É necessário admitir, para a explicação destes, também uma
causalidade da liberdade. Antítese, não há nenhuma liberdade, mas tudo no mundo acontece unicamente
segundo as leis da natureza.
4
a
Antinomia. Tese. no mundo há alguma coisa que, como sua parte ou como sua causa, é um ser
absolutamente necessário. Antítese: em nenhum lugar existe um ser absolutamente necessário, nem no
mundo nem fora do mundo, como sua causa.
Tanto a tese quanto a antítese de cada uma dessas A. é demonstrável com argumentos logicamente
irrepreensíveis: entre uma e outra é, pois, impossível decidir. O conflito, portanto, permanece e demonstra
a ilegitimidade da noção que lhes deu origem, isto é, da idéia de mundo. Esta, estando além de toda
experiência possível, permanece incognoscível e não pode fornecer nenhum critério capaz de decidir por
uma ou por outra das teses em conflito. A ilegitimidade da noção de mundo é evidenciada pelo fato de a
tese das A. apresentar um conceito dele demasiado pequeno para o intelecto, ao passo que a antítese apresenta um conceito demasiado
grande para o mesmo intelecto. Assim, se o mundo teve princípio, regredindo-se empiricamente na série
dos tempos, seria preciso chegar a um momento em que esse regresso se detém; o que é um conceito de
mundo demasiado pequeno para o intelecto. Se, ao contrário, o mundo não teve princípio, o regresso na
série do tempo nunca pode esgotar a eternidade; o que é um conceito demasiado grande para o intelecto.
O mesmo se diga para a finitude ou a infinitude espacial, para a divisibilidade ou a indivisibilidade, etc.
Em todo caso, chega-se a uma noção do mundo que: ou restringe em limites estreitos a possibilidade de o
intelecto ir de um termo a outro na série dos eventos, ou estende esses limites a tal ponto que torna
insignificante essa mesma possibilidade. Logo, a solução da A. só pode consistir em não assumir a idéia
do mundo como realidade, mas como uma regra que leva o intelecto a regredir na série dos fenômenos
sem nunca poder parar em algo incondicionado (Crítica R. Pura, Antinomias, seção 8). A essas A. da
razão pura Kant acrescentou uma A. da razão prática (Crít. R. Prática, I, livro II, cap. II, § 1), que
consiste no conflito criado pelo conceito de sumo bem: "Ou o desejo da felicidade deve ser a causa móbil
para o máximo de virtude ou o máximo de virtude deve ser a causa eficiente da felicidade"; e uma A. do
juízo teleológico (Crít. do Juízo, § 70), que é formada pela tese: "Toda produção das coisas materiais é
possível segundo leis puramente mecânicas", pela antítese: "Alguns produtos da natureza não são
possíveis segundo leis puramente mecânicas". He-gel interpretava as A. kantianas como se Kant tivesse
querido retirar a contradição do mundo em si mesmo e atribuí-la à razão. E acrescentava: "É sentir ternura
demais pelo mundo querer afastar dele a contradição e transportá-la para o espírito, para a razão,
deixando-a aí, sem solução. Na verdade, é o espírito que tem força suficiente para suportar a contradição,
mas é também o espírito que lhe dá solução" (Wiss. derLogik, I, seção II, cap. II, C, nota 2). Na realidade,
o método dialético (v. DIALÉTICA), que é o método próprio da razão, segundo Hegel, procede exatamente
passando da tese à antítese, e, portanto, exige sempre a contradição; mas é uma contradição que sempre
se resolve na síntese, por isso nunca é uma antinomia.
As A. kantianas foram discutidas e interpretadas de várias maneiras, mas não deram
ANTOPERÍSTASE
67
ANTROPOLOGIA
origem a estudos aprofundados sobre a sua consistência lógica. Entre os próprios neokantianos, nem
todos reconheceram sua validade; Renouvier, p. ex., aceitava sem reservas as teses e rejeitava as antíteses,
reconhecendo assim a finitude do mundo no espaço e no tempo (Essais de critique générale, I, p. 282).
No entanto, o resultado alcançado pela discussão kantiana das antinomias é importante. Consiste em ter
posto de lado a idéia tradicional do mundo como totalidade absoluta e em ter ensinado o uso crítico do
conceito de mundo (v.).
ANTTPERÍSTASE (gr. àvnitepíoTacriç; lat. Antiperistasis). Um dos modos tradicionais de explicar o
movimento dos projéteis; já que a natureza não permite o vácuo, quando um corpo sai velozmente do
lugar em que estava, o ar se precipita para esse lugar e empurra o próprio corpo, que passa assim a outro
lugar; e assim por diante, por toda a extensão do movimento. A essa explicação Aristóteles objetava que
não se leva em conta o fato de existir um corpo que não é movido por outro: o céu (Fís., VIII, 10, 267 a
12). Essa noção foi criticada pelos que elaboraram a teoria do impulso (v.): p. ex., Buridan (Quaest. super
physicam, VIII, q. 12. Cf. ainda BOVILLO, De nihilo, em Opera, 1510, f. 72 v.).
ANTÍTESE (gr. «VCÍGecriÇ; in. Antithesis-, fr. Antithèse, ai. Antithesis; it. Antitesi). 1. Contraposição:
Aristóteles diz que a contradição é uma A. que não tem termo médio (An.post., I, 2, 72 a 10).
2. Um dos dois termos da contraposição, aquele que se opõe à tese. Nesse sentido, Kant chamou de A. o
segundo membro da antinomia (v.) e Hegel chamou de A. o segundo membro do procedimento dialético,
mais precisamente "momento dialético" ou "negativo racional".
ANT1TÉTICA (ai. AntithetiM). Kant entendeu com esse termo "um conflito de conhecimentos
aparentemente dogmáticos (thesis cum antithesi), sem que se atribua a nenhum deles um direito
predominante ao assentimento". A A. se oporia assim à Tética (v.). Em particular, a A. transcendental é
"uma investigação em torno da antinomia da razão pura, as suas causas e o seu resultado" iCrít. R. Pura,
Dialética, livro II, cap. II, secç. II).
ANTTnPIA (gr. òvxiTwría; lat. Antitypia-, in. Antitypy, it. Antitipià). Termo de origem epi-curista
(SEXTO EMPÍRICO, Adv. math., I, 21) empregado por Leibniz para indicar o atributo da matéria pelo qual
"ela está no espaço" e pelo
qual, portanto, um corpo é impenetrável para o outro (Op., ed. Erdmann, pp. 463, 691).
ANTROPOLOGIA (in. Anthropology, fr. An-thropologie, ai. Anthropologie, it. Antropologia).
Exposição sistemática dos conhecimentos que se têm a respeito do homem. Nesse sentido geral, a A. fez e
faz parte da filosofia, mas, como disciplina específica e relativamente autônoma, só nasceu em tempos
modernos. Kant distinguiu a A. fisiológica, que seria aquilo que a natureza faz do homem, da A.
pragmática, que seria aquilo que o homem faz como ser livre, ou então o que pode e deve fazer de si
mesmo {Antr., pref.). Essa distinção permaneceu e hoje se fala de A. física, que considera o homem do
ponto de vista biológico, isto é, em sua estrutura somática, em suas relações com o ambiente, em suas
classificações raciais, etc, e de A. cultural, que considera o homem nas características que derivam das
suas relações sociais. A A. física costuma, por sua vez, ser dividida em paleontologia humana e
somatologia. A paleontologia humana trata da origem e da evolução da espécie humana, especialmente a
partir do que é revelado pelos fósseis. A somatologia trata de todos os aspectos físicos do homem. A
arqueologia e a etnologia correspondem, no campo cultural, às duas ciências precedentes; e a lingüística
tem como objeto não só a análise e a classificação das línguas, mas a compreensão, através das línguas,
da psicologia individual e de grupo (cf. R. LINTON, ed., The Science of Man in the World Crisis, 1945,
1952). Segundo Lévi-Strauss, a A. distingue-se da sociologia na medida em que tende a ser uma ciência
social do observado, ao passo que a sociologia tende a ser a ciência social do observador (Anthr.
structurale, 1958, cap. XVII).
Os filósofos sublinharam muitas vezes a importância da A. como ciência filosófica, isto é, como
determinação daquilo que o homem deve ser, em face do que é. Humboldt, p. ex., queria que a A., embora
procurasse determinar as condições naturais do homem (temperamento, raça, nacionalidade, etc.) visasse
descobrir, através dessas condições, o próprio ideal da humanidade, a forma incondicionada à qual
nenhum indivíduo está completamente adequado, mas que permanece o objetivo a que todos os
indivíduos tendem (Schriften, I, pp. 388 ss.). Nesse sentido a A. foi entendida por Scheler (O lugar do
homem no cosmos, 1928), que por isso a coloca em situação intermediária entre a ciên-
ANTROPOMORFISMO
68
APARÊNCIA
cia positiva e a metafísica. — Mais especificamente, a tarefa da A. filosófica deveria ser considerar o
homem não simplesmente como natureza, como vida, como vontade, como espírito, etc, mas como
homem, isto é, relacionar o complexo de condições ou de elementos que o constituem com seu modo de
existência específico. Tal é a exigência feita, p. ex., por Biswanger (Ausgewahlte Vortrãge undAusàtze, I,
p. 176). Nesse sentido, o Ensaio sobre o homem (1944) de Cassirer é um estudo de A. filosófica centrado
no conceito de homem como animal symbolicum, isto é, como animal que fala e cria o universo simbólico
da língua, do mito e da religião.
ANTROPOMORFISMO (in. Anthropomor-phism; fr. Anthropomorphisme, ai. Anthropo-morphismus, it.
Antropomorfismó). Indica-se com este nome a tendência a interpretar todo tipo ou espécie de realidade em
termos de comportamento humano ou por semelhança ou analogia com esse comportamento. "Crenças
antropomórficas" ou "antropomorfismos" são chamadas, em geral, as interpretações de Deus em termos
de conduta humana. Uma crítica desse A. já foi feita por Xenófanes de Colofonte. "Os homens", disse ele,
"crêem que os deuses tiveram nascimento e que têm voz e corpo semelhantes aos deles" (Fr. 14, Diels);
por isso, os etíopes fazem os seus deuses de nariz chato e negros; os trácios dizem que têm olhos azuis e
cabelos vermelhos; até os bois, os cavalos, os leões, se pudessem, imaginariam os seus deuses à sua
semelhança (Fr. 16, 15). Mas o A. não pertence só ao domínio das crenças religiosas. Toda a ciência
moderna foi-se for-rriando através da libertação progressiva do A. e do esforço de não considerar as
operações da natureza segundo a sua semelhança com as do homem, mas jtixta própria principia.
ANTROPOSOFIA (in. Anthroposophy, fr. Anthroposophie, ai. Anthroposophie, it. Antro-posofid). Esse
termo foi criado por J. P. V. Troxler, para indicar a doutrina natural do conhecimento humano (Naturlehre
der menschlichen Er-kenntnis, 1828), e retomado por R. Steiner, quando, em 1913, separou-se do
movimento teosófico e quis ressaltar a importância da doutrina a respeito da natura e do destino do
homem. Cf. STEINER, DieRátselderPhilosophie,2vols., 1924-26 (v. TEOSOFIA).
APAGÓGICO, RACIOCÍNIO. V. ABDUÇÃO; REDUÇÃO.
APARÊNCIA (gr. tò (paivóuevov; lat. Appa-rentia; in. Appearance, fr. Apparence, ai. Erscheinung; it. Apparenzã). Na história da filosofia, esse termo teve dois significados diametralmente
opostos. 1Q
ocultação da realidade; 2e
manifestação ou revelação da realidade. Conforme o 1Q
significado,
a A. vela ou obscurece a realidade das coisas, de tal modo que esta só pode ser conhecida quando se
transpõe a A. e se prescinde dela. Pelo 2- significado, a A. é o que manifesta ou revela a realidade, de tal
modo que esta encontra na A. a sua verdade, a sua revelação. Com base no ls
significado, conhecer
significa libertar-se das A.; pelo 2- significado, conhecer significa confiar na A., deixá-la aparecer. No
primeiro caso, a relação entre A. e verdade é de contradição e oposição; no segundo, é de semelhança ou
identidade. Essas duas concepções de A. intricaram-se de várias formas na história da filosofia ocidental.
De um lado, esta nasceu do esforço de atingir saber mais sólido transpondo os limites das A., isto é, das
opiniões, dos sentidos, das crenças populares ou míticas. De outro, procurou, com igual constância, ter
em conta a A. ("salvar os fenômenos"), reconhecendo assim que nela se manifesta, em alguma medida, a
própria realidade.
O contraste entre A. e realidade foi estabelecido pela primeira vez, de modo nítido e incisivo, por
Parmênides de Eléia, que contrapôs "a via da verdade e da persuasão", que tem por objeto o ser, a sua
unidade, inevitabilidade e necessidade, à "via da opinião", que tem por objeto o não-ser, isto é, o mundo
sensível no seu devir. Mas o mundo da opinião e o mundo da A. coincidem, segundo Parmênides:
"Também isto aprenderás: como, verossimilmente, são as coisas aparentes para quem as examine em tudo
e por tudo" (Fr. 1, 31, Diels). A mesma coincidência entre A. e opinião, opinião e sensação, é pressuposta
por Platão, que interpreta o princípio expresso por Protágoras, da homo-mensura, como se significasse
"tal como as coisas aparecem para mim, tais são para mim" e, portanto, como se identificasse
conhecimento e sensação (Teet., 152 a). Por outro lado, o mundo da opinião é, segundo a República, o
mundo sensível dividido nos seus dois segmentos de sombras e imagens refletidas e de coisas e seres
vivos (Rep., VI, 510). Segundo Platão, desse mundo das A. sensíveis só se pode ter conhecimento
verossímil ou provável, dada a sua natureza incerta e fugaz: conhecimento que não difere em grau, mas
em qualidade, do conhecimento científico ou racional que tem por obje-
APARÊNCIA
69
APARÊNCIA
to o ser (Tim., 29). O mesmo Platão, porém, afirmando que o objeto da opinião está para o objeto do
conhecimento como a imagem está para o modelo (Rep., VI, 510 a), admitiu uma relação de semelhança
ou de correspondência entre A. e realidade. Mas o passo decisivo foi dado por Aristóteles, que reconheceu
a neutralidade da A. sensível; esta, tanto como sensação quanto como imagem, pode ser tão verdadeira
quanto falsa. Certamente erram os que consideram verdade tudo o que aparece, pois deveriam admitir
também a realidade dos sonhos; e, quanto ao futuro, não poderiam estabelecer nenhuma diferença entre a
opinião do perito (p. ex., do médico que faz um prognóstico) e a opinião do ignorante (Met., IV, 5,1.010 b
1 ss.). A A. não contém, portanto, nenhuma garantia de verdade e só o juízo intelectual a respeito dela
pode certificá-la ou refutá-la. Mas, por outro lado, ela é o ponto de partida da própria pesquisa científica
que, como demonstra o que os matemáticos fazem em relação às A. astronômicas, deve partir das A.
físicas e, portanto, da observação das coisas vivas e das suas partes para passar depois à consideração das
razões e das causas (Depart. an., I, 1, 639 b 7). Em outros termos, a A. é o ponto de partida para a busca
da verdade, que, porém, só é reconhecida em sua necessidade mediante o Uso dos princípios do intelecto.
No último período da filosofia grega, a noção de A. torna-se proeminente. De um lado, os céticos fazem
da A. o critério da verdade e da conduta, julgando impossível passar além dela e julgar sobre ela (SEXTO
EMPÍRICO, Pirr. hyp., I, 21-24; II, 18-21). Do outro lado, os neoplatônicos são levados a considerar todo o
mundo sensível como A., isto é, manifestação do mundo inteligível, e este último como A. ou imagem de
Deus: pensamento que será herdado por Scotus Erigena: "Tudo o que se entende e se sente nada mais é do
que a aparição do aparente, a manifestação do oculto" (De divis. nat., III, 4). Desse ponto de vista, "o
mundo é uma teofania, toda obra da criação manifesta a essência de Deus, que, portanto, se torna aparente
e visível nela e por ela" (ibid., I, 10; V, 23).
Acompanhando essas duas vias encontra-se o que se poderia chamar de revalorização da A. no mundo
moderno. Seguindo a primeira, está o que se poderia chamar de revalorização empirista. Já na Escolástica
do séc. XIV, Pedro Aureolo, partindo da negação de qualquer realidade universal e no intuito de eliminar
a species
como intermediária do conhecimento intelectual, afirmava que "as próprias coisas são vistas pela mente e
o que se vê não é uma forma especular qualquer, mas a própria coisa no seu ser-que-aparece (esse
apparens) e este ser aparente é o que chamamos do conceito ou representação objetiva" (In Sent., I, d. 9,
a. l). A distinção entre o sentido e o intelecto não depende, portanto, da natureza do objeto apreendido,
mas do modo de apreender. Ao sentido e à imaginação as coisas aparecem sob as condições da
quantidade, ao passo que o intelecto abstrai do que é quantitativo e material (ibid., I, d. 35, a. 1). Mas é só
no mundo moderno, a partir do séc. XVII, que a filosofia reconhece explicitamente o caráter real da A.
Hobbes talvez seja o primeiro a reconhecer isso de maneira bem clara. "De todos os fenômenos que nos
circundam", diz ele, "o mais maravilhoso é justamente o aparecer. É certo que entre os corpos naturais
alguns possuem em si os exemplares de todas as coisas e outros, de nenhuma. Conseqüentemente, se os
fenômenos são os princípios para conhecer as outras coisas, é preciso dizer que a sensação é o princípio
para conhecer os próprios princípios e que dela deriva toda a ciência. Para indagar as causas da sensação
não se pode, portanto, partir de outro fenômeno que não seja a própria sensação" (De corp., 25, § 1).
Assim, Hobbes identifica A. real com sensação e assume-a como ponto de partida para a indagação das
coisas não criadas pelo homem (assim como as definições são o ponto de partida para a indagação das
coisas criadas pelo homem, isto é, dos entes matemáticos e políticos). Com essas palavras, Hobbes
formulava o fundamento do empirismo moderno. Ao mesmo tempo em que ressaltava o caráter relativo e
subjetivo das A. sensíveis, assumiu-as como único fundamento do conhecimento humano. Locke observa
que, se os nossos sentidos fossem modificados e se tornassem mais rápidos e agudos, a A. das coisas
mudaria completamente; mas então ela se tornaria incompatível com o nosso ser ou pelo menos com as
necessidades da nossa vida (Ensaio, II, 23, 12). "A. sensíveis" são as idéias de que fala Berkeley
(Principies, 33) e as impressões de que fala Hume (Treatise, II, 5). "Fenômenos ou aparições" são,
segundo Leibniz, todos os dados de que dispõe o sujeito pensante; a distinção entre A. reais e A. ilusórias
só é feita considerando-se, de um lado, a vivacidade, a multiplicidade e a coerência das próprias A., e,
APARÊNCIA
70
APARÊNCIA
de outro, a possibilidade de predizer os fenômenos futuros a partir dos fenômenos passados e presentes
(Op., ed. Erdmann, pp. 443-444).
Com isso, a A. perdeu o caráter enganoso e abre-se o caminho da distinção kantiana entre a A.
(Erscheinung) e a ilusão (Scheiri). As A. são os fenômenos como objetos da intuição sensível e, em geral,
da experiência; os fenômenos são realidade, aliás as únicas realidades que o homem pode conhecer e de
que pode falar. "Eu não digo", afirma Kant, "que os corpos parecem simplesmente seres externos ou que
minha alma parece simplesmente dada na minha autoconsciência, quando afirmo que as qualidades do
espaço e do tempo — segundo as quais, como condição da sua existência, coloco aqueles e esta — estão
no meu modo de intuir e não nesses objetos. Seria um erro meu se transformasse em mera ilusão (Schein)
aquilo que devo considerar como fenômeno" (Crít. R. Pura, Estética transcendental, Observações ger., 3).
A afirmação: "Os sentidos representam para nós os objetos como aparecem, o intelecto como são" é
interpretada por Kant no sentido de que o intelecto representa os objetos na conexão universal dos
fenômenos (o que não significa que eles sejam independentes da relação com a experiência possível e,
portanto, das "A. sensíveis") (ibid., Anal. dos princ, cap. III). Por isso, a A. fenomênica tem esse nome
para ressaltar as suas conexões com as condições subjetivas do conhecer e para distingui-la do hipotético
conhecimento numênico, de tal forma que se possa estabelecer com clareza os seus limites (v.
FENÔMENO).
Por outro lado, a própria negação do caráter ilusório da A. foi utilizada, na filosofia moderna, para
reafirmar o caráter absoluto do conhecimento humano. Assim, Hegel vê na A. fenomênica a própria
essência. A. e essência não se opõem, mas se identificam: a A. é a essência que existe na sua imediação.
"Aparecer", diz ele, "é a determinação por meio da qual a essência não é ser, mas essência; e o aparecer
desenvolvido é o fenômeno. A essência não está, portanto, atrás ou além do fenômeno; mas, justamente
porque a essência é o que existe, a existência é o fenômeno" (Ene, § 131). É verdade que, como
determinação "imediata", a A. está destinada, segundo Hegel, a ser absorvida ou superada por outras
determinações, refletidas ou mediatas, no desenvolvimento dialético da Idéia absoluta; mas também é
verdade que
toda a doutrina de Hegel é sustentada pelo pensamento de que não há realidade tão recôndita que, de
algum modo, deixe de manifestar-se e aparecer. Na filosofia contemporânea, esse ponto de vista teve a
melhor expressão na obra de Heidegger. "Como significado da expressão 'fenômeno' deve-se estabelecer
o seguinte: o que se manifesta em si mesmo, o revelado... Definimos esse manifestar-se como aparecer
(Scheinerí). Também em grego a expressão phainomenon tem esse significado: o que tem o aspecto de
aparente, A. ... Só porque alguma coisa, em virtude do seu sentido, pretende em geral manifestar-se, isto
é, ser fenômeno, é possível que ela se manifeste como algo que não é, que tenha o aspecto de...
Reservamos para o termo 'fenômeno' o significado positivo e original de 'phainomenon' e distinguimos
fenômeno da A., considerando esta última como uma modificação particular de fenômeno" (Sein und
Zeit, § 7 A). Isto, porém, não quer dizer que a filosofia contemporânea tenha identificado ser com A.
Antes, propôs de outra forma o problema de sua relação, passando a considerar essa relação de modo
objetivo ou ontológico, isto é, sem referência a qualquer subjetivação idealista. Não é por acaso que a
última obra importante em que se debateu de forma tradicional o problema da relação entre A. e realidade
pertence a um idealista: F. H. Bradley (Aparência e realidade, 1893). Sobretudo por influência da
colocação fenomenológica (v. FENOMENOLOGIA), a consideração da relação entre aparecer e ser deixou
completamente de ser feita, tanto no que se refere ao dualismo entre esses dois termos quanto no que se
refere aos outros dualismos com que em geral era interpretada, como entre sensação e pensamento, entre
subjetividade e objetividade, etc. A relação toda é feita no plano objetivo das experiências diferentes ou
dos graus diferentes de experiências. Um filósofo que baseie suas construções num grupo de experiências
ou em dado tipo de realidade, privilegiando-o e considerando-o fundamental, é levado a julgar menos
reais ou significantes, e de certo modo simplesmente "aparentes", as outras formas de experiência ou os
outros tipos de realidade. P. ex., quem privilegia a experiência interior ou consciência é levado a
considerar menos significante ou, de certo modo, só "aparente" a experiência externa ou sensível, e viceversa. Mas em todo caso, mesmo o que se declara aparente é admitido como A. de alguma coisa e, por
isso, dotada, já
APATIA 71 APERCEPÇÃO
como A., de um grau ou medida de realidade. De modo que a relação entre realidade e A. vem a
configurar-se como relação entre realidade e imagem, ou realidade e símbolo e, em todo caso, entre dois
graus ou determinações objetivas.
APATIA (gr. àróGeia; in. Apathy, fr. Apathie, ai. Apathie, it. Apatia). Esse termo significa propriamente
insensibilidade, mas no uso filosófico antigo designou o ideal moral dos cínicos e dos estóicos, isto é, a
indiferença em relação a todas as emoções, o desprezo por elas: indiferença e desprezo alcançados
mediante o exercício da virtude. Nesse sentido, para o qual a insensibilidade não é um dom inato e
natural, mas um ideal de vida difícil de alcançar, cínicos e estóicos viram na A. a própria felicidade
(DiÓG. L, VI, 1, 8-11). Kant viu na A. um ideal nobre, mas acrescentou que a natureza foi sábia quando
deu ao homem a simpatia, para guiá-lo provisoriamente — antes que nele a razão alcançasse a maturidade
—, como auxílio óu apoio sensível à lei moral e sucedâneo temporário da razão (Antr., § 75). As Idades
Moderna e Contemporânea, apesar da forte influência que a ética estóica sempre exerceu, não se mostram
propensas ao ideal da A., já que são levadas a reconhecer o valor positivo das emoções e a evitar, por isso,
a condenação sumária e total destas, que está compreendida na noção de apatia (v. EMOÇÃO).
APEIRON (gr. CMceipov). O infinito ou o indeterminado: segundo Anaximandro de Mileto, o princípio
e o elemento primordial das coisas. Não é uma mistura dos vários elementos corpóreos, em que estes
estejam compreendidos cada um com as suas qualidades determinadas, mas é matéria em que os
elementos ainda não estão distintos e que, por isso, além de infinita, é também indefinida e indeterminada
(Diels, A, 9). Essa determinação dupla de in-finitude no sentido de inexauribilidade e de indeterminação
permaneceu por muito tempo ligada ao conceito de infinito (v.).
APERCEPÇÃO (in. Apperception-, fr. Apper-ception; ai. Apperzeption; it. Appercezioné). O significado
específico dessa palavra foi esclarecido pela primeira vez por Leibniz como consciência das próprias
percepções. Diz Leibniz: "A percepção da luz ou da cor, p. ex., de que temos A. é composta por muitas
pequenas percepções de que não temos A.; um ruído que percebemos, mas ao qual não damos atenção,
torna-se aperceptível se sofrer um pequeno
aumento" (Nouv. ess., II, 9,4). Enquanto as percepções pertencem também aos animais e às plantas, a A. é
própria do homem porquanto suas percepções são acompanhadas pela "potência de refletir". Todavia,
quando ele é reduzido ao estado de letargia, a reflexão e a A. cessam (Jbid., II, 9, 14). — No mesmo
sentido, Wolff definiu a A. como a atividade pela qual percebemo-nos a nós mesmos como sujeitos
percipientes e, assim, nos distinguimos da coisa percebida (Log., § 13)- Ora, essa é, para Kant, a A.
empírica, que deve ser distinguida da A. pura. Com a primeira, "acompanho com a consciência cada uma
das representações"; com a segunda, "componho-as todas, uma com a outra, e sou consciente da sua
síntese". A A. pura ou "transcendental" é o "eu penso", que "deve poder acompanhar todas as minhas
representações, pois de outro modo seria preciso imaginar em mim alguma coisa que não pudesse ser
pensada, o que significa que a representação seria impossível ou, ao menos para mim, não existiria
absolutamente" (Crít. R. Pura, Anal. dos conceitos, § 16). A característica fundamental da A. pura é a
objetividade, ela é o fundamento da constituição unitária dos objetos e das relações que estes têm entre si.
De fato, a unidade de um objeto singular e dos objetos entre si não é constituída pela relação subjetiva
entre as representações, isto é, pela relação que as representações encontram na A. empírica (ou
consciência intuitiva), mas pela relação objetiva cuja possibilidade é a A. pura ou consciência discursiva
(reflexiva). Com efeito, com base na A. empírica só se poderia dizer: "Cada vez que levanto um corpo,
sinto a impressão de peso" e, assim, estabelecer uma relação puramente subjetiva, ainda que constante,
entre o soerguimento de um corpo e a impressão de peso (isto é, entre duas representações). Isso não
autorizaria a dizer objetivamente: "O corpo é pesado". Essa afirmação pode ser enunciada só porque o
vínculo entre o corpo e o peso é estabelecido objetivamente pela A. pura iibid., § 19). Nesse sentido, a A.
pura é "o princípio da unidade sintética", que condiciona todas as outras sínteses, isto é, todos os outros
conhecimentos, porque todo conhecimento é, segundo Kant, uma síntese entre um dado sensível e uma
forma a priori. A A. é o princípio originário do conhecimento na medida em que é a condição do uso
empírico das categorias. Kant insistiu no caráter puramente formal da A. pura, entendendo que ela não é
uma realidade psicológica
APERCEPÇÃO
72
APETITE
ou de outra natureza, mas uma possibilidade, a da unificação da experiência, considerada como
"espontaneidade" ou atividade subjetiva, isto é, da inteligência (ibid., § 25). Em outras palavras, ela é só
"a consciência pura da atividade que constitui o pensamento" (Antr., § 7). Da interpretação da A. pura, em
sentido realista, ou seja, do seu entendimento não como condição ou possibilidade do conhecimento, mas
como atividade criadora do próprio conhecimento, Fichte inferiu a noção do eu como Auto-consciência
absoluta, criadora do seu mundo, com a qual se inicia o Idealismo romântico (v. IDEALISMO; Eu). Em
sentido psicológico-me-tafísico, o conceito de A. também foi entendido por Maine de Biran, que chamou
de "A. interna imediata" a consciência que o eu tem de si mesmo como "causa produtora" no ato de
distinguir-se do efeito sensível que a sua ação determina (CEuvres inédites, ed. Naville, I, p. 9; III, pp.
409-410).
Um novo conceito de A. foi dado por Herbart como fundamento para entender o mecanismo da vida
representativa. A A. foi entendida por Herbart como a relação entre massas diferentes de representações,
que faz que uma massa se aproprie da outra do mesmo modo como as novas percepções do sentido
externo são acolhidas e elaboradas pelas representações homogêneas mais antigas. Esse fenômeno pelo
qual uma massa representativa, chamada de apercipiente, acolhe e assimila em si uma ou mais
representações homogêneas, chamadas de aperceptivas, é o fenômeno da A., que Herbart identificou com
o sentido interno (Psychol. ais Wissenschaft, II, § 125). Essa noção foi muito usada em psicologia e
pedagogia no séc. XIX, sobretudo para esclarecer o fenômeno do aprendizado e para identificar as
condições psicológicas que o facilitam. Wundt insistiu no caráter ativo da A. como o ato pelo qual um
conteúdo psíquico é levado à compreensão mais clara e falou também de uma "psicologia da A.", que
deveria contrapor-se à psicologia dominante, associacionista, precisamente pelo maior destaque dado à
atividade diretiva e ordenadora da A. (Physiologische Psychologie, II, p. 454). Wundt falou também, em
Psicologia dos povos, de uma "A. animadora" como de uma função psicológica específica, consistente em
crer vivas todas as coisas, função que estaria na base do mito e, portanto, também da religião e da arte. —
Esse termo caiu em desuso na filosofia contemporânea.
APETITE (gr. õpei^iç,; lat. Appetitio, appetitus; in. Appetite, fr. Appétit; ai. Begierde, it. Appe-tizioné).
Em geral, o princípio que impele um ser vivo à ação, com vistas à satisfação de uma necessidade ou
desejo ou à realização de um fim. Assim Aristóteles entendeu o A., que ele colocou, junto com sentido e
com intelecto, entre as partes diretivas da alma (Et. nic, VI, 2, 1.139 a 17). "O que no pensamento",
acrescenta ele, "é afirmação e negação, no A. é perseguir e evitar". O A. é o princípio de ação último;
pois, se é verdade que os móveis da ação parecem dois, o A. e o intelecto prático, é também verdade que
este último induz à ação só na medida em que seu princípio é apetecível (De an., III, 10, 433 a 21). Ao A.
pertencem o desejo, a irascibilidade e a vontade (ibid., II, 3, 414 b 2). O A., todavia, às vezes pode ser
justo e às vezes não; pode visar ao bem aparente ou ao bem real; portanto, A. diferentes podem ser às
vezes contrários, como acontece quando o desejo e a razão se combatem. O A. como princípio de ação
pode, portanto^ ser controlado pela escolha racional ou pelos sentidos, embora a natureza superior tenda a
dominar (Dean., III, 10-11, 433 ss.). Com base nessas últimas considerações aristotélicas, os escolásticos
distinguiram um apetite sensível e um apetite intelectivo; S. Tomás afirma que são duas potências
diferentes da alma, uma passiva e a outra ativa (S. Th., I, q. 80, a. 2). A exemplo de Gregório de Nissa (De
bom. opif., 8) e de João Damasceno (Defideorth., II, 12), os escolásticos admitiram também a diferença
entre apetite irascível e apetite concupiscível: o concupiscível inclina a perseguir o bem sensível e a evitar
o que é sensivelmente nocivo; o irascível é aquilo pelo qual se resiste às ações nocivas e se reage em face
a tudo o que é difícil (cf. S. TOMÁS, S. Th., q. I, 81, a. 2).
Essas observações permaneceram praticamente inalteradas durante séculos. Hobbes diz que o A. e a fuga
diferem do prazer e da dor assim como o futuro difere do presente; são ambos prazer e dor, mas não
presentes, porém previstos ou esperados (De hom., 11,1). Spinoza ligou o A. ao esforço (conatus) da
mente em perseverar no próprio ser por prazo infinito: "Esse esforço", diz ele, "chama-se vontade quando
se atribui só à mente; chama-se A. quando se refere ao mesmo tempo à mente e ao corpo; o A. é, por isso,
a própria essência do homem, de cuja natureza derivam necesariamente as coisas que servem à sua
conservação e que,
APOCATÁSTASE
73
APOFÁTICO
portanto, está destinado a cumprir" (Et., III, 9, escól.). Leibniz viu no A. a ação do princípio interno da
mônada que opera a mudança ou a passagem de uma percepção a outra (Monad., § 15). Kant definiu o A.
como "a determinação espontânea da força própria de um sujeito, que acontece por meio da representação
de uma coisa futura considerada como efeito da força mesma" (Antr., § 73). O A. constitui, por isso, o
que, na Crítica da Razão Prática, se chama "faculdade inferior de desejar", que pressupõe sempre, como
motivo determinante, um objeto empírico: diferentemente da faculdade "superior" de desejar, que é
determinada pela simples representação da lei (Crít. R. Prática, livro I, cap. I, § 3, escól. I).
Na filosofia moderna e contemporânea, esse termo caiu em desuso e foi substituído por outros como
"tendência" ou "vontade", aos quais se referem às vezes as determinações que a filosofia antiga atribuíra
ao apetite.
APOCATÁSTASE (gr. ÒKOKaxáaxacnç,; lat. Restitutio, in. Apocatastasis-, fr. Apocatastasis, ai.
Apokatastasis; it. Apocatastasi). É a teoria própria dos Padres orientais: prevê a restituição final do
mundo e de todos os seres nele contidos à condição perfeita e feliz que tinham na origem. Trata-se,
portanto, de uma noção diferente da de movimento cíclico, própria dos antigos (pitagóricos,'
Anaximandro, estóicos, etc), que interpreta a vida do mundo como a recorrência de um ciclo sempre
idêntico, que se repete infinitas vezes (v. CICLO DO MUNDO). Segundo Orígenes, o mundo sensível
formou-se com a queda das substâncias intelectuais que habitavam no mundo inteligível, queda devida a
um ato livre de rebelião a Deus, do qual participaram todos os seres supra-sensíveis, com a única exceção
do Filho de Deus. Dessa queda e da degeneração que se lhe seguiu, os seres se reerguerão expiando, com
uma série de vidas sucessivas, em vários mundos, seu pecado inicial e serão, por fim, restituídos à sua
condição primitiva (Lnjohann., I, 16, 20). Orígenes admite, assim, pluralidade sucessiva de mundos, mas
corrige o Estoicismo no sentido de que esses mundos não são repetição uns dos outros. A liberdade de que
os homens são dotados impede essa repetição (Contra Cels., IV, 67-68). Conceito análogo é expresso por
Gregório de Nissa, que interpreta a sucessão dos mundos como o teatro da reeducação progresiva dos
seres à condição de bem-aventurança original. Gregório afirma decididamente o caráter universal da A.:
"Até mesmo o inventor do mal (isto é, o demônio) unirá sua voz ao hino de gratidão ao Salvador" (De
hom. opif., 26). Na idade Moderna, doutrina análoga foi sustentada por Renouvier em Nova monadologia
(1899): retoma-se aqui a tese de Orígenes da pluralidade dos mundos sucessivos e da passagem de um
mundo ao outro, determinada pelo uso que o homem faz da liberdade em cada um deles; é corrigida sò no
sentido de que "o fim alcançado torna a reunir-se com o princípio, não na indistinção das almas, mas na
humanidade perfeita, que é a sociedade humana perfeita". A doutrina da A. distingue-se da concepção
clássica dos ciclos do mundo em dois pontos principais: ls
os mundos que se sucedem não são a repetição
idêntica um do outro, porque através deles se realiza progressivamente a recuperação do estado perfeito
original; 2Q
a sucessão dos mundos não é sem princípio nem fim, já que começa com a queda das
inteligências celestes e termina com a A.
APODÍTICA (lat. Apodictica; ai. Apodiktik, it. Apoditticd). Parte da lógica que tem por objeto a
demonstração. Esse nome foi usado por alguns lógicos do séc. XVII, como p. ex. Jungius. "Entre as
partes especiais da lógica", dizia ele, "precede por dignidade a que tem por objeto a verdade necessária,
isto é, a verdade propriamente dita, e que nos conduz através da apodixe, isto é, a demonstração à ciência,
de modo que é justamente chamada de apodítica ou epistemônica" (Lógica hamburgensis, 1638, IV, cap.
I, § 1). Esse nome depois foi raramente usado (cf., p. ex., BOUTERWEK, Ideen zu einer Apodiktik, 1799).
APODIXE. V. DEMONSTRAÇÃO.
APOFANSE. V. ENUNCIADO.
APOFÂNTICA (in. Apophantic). Termo empregado por Hamilton para indicar a doutrina do juízo
(Lectures on Logic, I, 1866, p. 225).
APOFÂNTICO (gr. àrcoqxxvTiKÓÇ; in. Apophantic; fr. Apophantique, ai. Apophantiscb, it.
Apofanticó). Declarativo ou revelativo. Aristóteles chamou de A. o enunciado que pode ser considerado
verdadeiro ou falso e considerou que esse tipo de enunciado é o único objeto da lógica: da qual, portanto,
são excluídas as orações, as ordens, etc, cujo estudo pertence à retórica ou à poética (De interpr., 4, 17 a
2). Esse significado permaneceu fixo no uso filosófico.
APOFÁTICA, TEOLOGIA. V. TEOLOGIA NEGATIVA.
APOFÁTICO (gr. àTrcxpaxiKÓÇ; in. Apophatic; fr. Apophatique, ai. Apophatiscb, it. Apofaticd).
APOLÍNEO-DIONISÍACO
74
APORÉTICA
Negativo, isto é, segundo Aristóteles, que "separa uma coisa da outra", quer dizer, nega a pertinência de
um predicado a um sujeito (An. pr., 1,1, 24 a 19). G. P.
APOLÍNEO-DIONISÍACO (in. Apollonian-dionysian; fr. Apollinien-dionysiaque, ai. Apol-linischdionysisch; it. Apollineo-dionisiacó). A antítese entre apolíneo e dionisíaco foi expressa por Schelling
como a antítese entre a forma e a ordem, de um lado, e o obscuro impulso criador, do outro. Esses dois
aspectos devem ser reconhecidos em cada momento poético (Phil. der Offenbarung, 24, em Werke, II, 4,
p. 25). Hegel, por sua vez, referia-se a essa antítese: "O verdadeiro é um triunfo báquico, onde não há
ninguém que não esteja ébrio; e, como esse momento resolve todos os momentos que tendem a separarse, ele é também uma transparente e simples tranqüilidade" (Phãnomen. desGeistes, intr., III, 2; trad., it.
p. 40). Retomada por Richard Wagner (Die Kunst und die Revolution, 1849), essa antítese foi
popularizada por Nietzsche, que dela se valeu em Nascimento da tragédia (1871), para explicar a arte e a
vida da Grécia antiga. O espírito apolíneo domina as artes plásticas, que são harmonia de formas; o
espírito dionisíaco domina a música, que é, ao contrário, desprovida de forma porque é embriaguez e
exaltação entusiástica. Foi só graças ao espírito dionisíaco que os gregos conseguiram suportar a
existência. Sob a influência da verdade contemplada, o homem grego via em toda a parte o aspecto
horrível e absurdo da existência: a arte veio em seu socorro, transfigurando o horrível e o absurdo em
imagens ideais, por meio das quais a vida se tornou aceitável (Geburt der Tragõdie, § 7). Essa
transfiguração foi realizada pelo espírito dionisíaco, modulado e disciplinado pelo espírito apolíneo, e deu
lugar à tragédia e à comédia. Mais tarde, Nietzsche viu no espírito dionisíaco o próprio fundamento da
arte enquanto "corresponde aos estados de vigor animal" (WillezurMacht., § 361, ed. Krõner, 802). O
estado apolíneo não é senão o resultado extremo da embriaguez dionisíaca, uma espécie de simplificação
e concentração da própria embriaguez. O estilo clássico representa esse estado e é a forma mais elevada
do sentimento de potência. A exemplo de Nietzsche, Spengler chamou de apolínea "a alma da cultura
antiga que escolheu o corpo individual, presente e sensível, como tipo ideal de extensão". Apolíneos são
"a estática mecânica, os cultos materiais dos deuses do Olimpo, as cidades gregas politicamente isoladas, a sorte de Édipo e o símbolo fálico" (Untergang des Abendlandes, I, 3, 2, § 6). Essa
caracterização, assim como a correspondente do faustismo (v.) é perfeitamente arbitrária e fantástica.
APOLOGÉTICA (in. Apologetics; fr. Apolo-gétique, ai. Apologetik, it. Apologeticà). Disciplina que tem
por objeto a defesa (apologia) de determinado sistema de crenças. Esse termo se refere, mais
freqüentemente, à defesa das crenças religiosas: p. ex., "A. cristã".
APOLOGISTAS (in. Apologists, fr. Apologistes; ai. Apologeten; it. Apologisti). Assim se chamam os
Padres da Igreja do séc. II, que escreveram em defesa (apologia) do Cristianismo contra os ataques e as
perseguições que lhe eram movidos. A primeira apologia de que se tem notícia (mas da qual resta apenas
um fragmento) é a defesa apresentada ao imperador Adriano, por volta de 124, por Quadrado, discípulo
dos Apóstolos. O principal dos Padres A. é Justino. Outros autores de apologias são Taciano, Atená-goras,
Teófilo, Hérmias. Com os Padres A. começa a atividade filosófica cristã. A tese comum que defendem é
de que o Cristianismo é a única filosofia segura e útil e resultado último a que a razão deve chegar. Os
filósofos pagãos conheceram sementes de verdade que não puderam entender plenamente: os Cristãos
conhecem a verdade inteira porque Cristo é o logos, isto é, a razão mesma da qual participa todo o gênero
humano. A apologética desses Padres constitui, portanto, a primeira tentativa de inserir o Cristianismo na
história da filosofia clássica.
APONIA (gr. ànovía; in. Aponia; fr. Aponie, ai. Aponie, it. Aponia). A ausência de dor como prazer
estável e, portanto, eticamente aceitável, na ética de Epicuro (Fr. 2, Usener).
APOREMA (gr. à7tópT|ua; in. Aporem; fr. Aporème, ai. Aporem; it. Aporemd). Em Aristóteles (Top.,
VIII, 11, 162 a), é definido como um raciocínio dialético que conclui com uma contradição e que não
permite, portanto, estabelecer por qual dos dois ramos da própria contradição se deva optar.
APORÉTICA (in. Aporetic; fr. Aporétique, ai. Aporetik, it. Aporeticd). Assim Nicolau Hartmann chamou
(de aporia = dúvida) o estágio da pesquisa filosófica que consiste em pôr em evidência os problemas, isto
é, todos os aspectos dos fenômenos que não foram compreendidos e que, por isso, constituem aporias
naturais (Systematische Philosophie, § 5).
APORIA
75 APRENDIZADO ou APRENDIZAGEM
APORIA (gr. cmopía; in. Aporia; fr. Aporte, ai. Aporte, it. Aporia). Esse termo é usado no sentido de
dúvida racional, isto é, de dificuldade inerente a um raciocínio, e não no de estado subjetivo de incerteza.
É, portanto, a dúvida objetiva, a dificuldade efetiva de um raciocínio ou da conclusão a que leva um
raciocínio. P. ex., "As A. de Zenâo de Eléia sobre o movimento", "As A. do infinito", etc.
A POSTERIORI. V. A PRIORI.
APREENSÃO (lat. Apprehensio; in. Appre-hension; fr. Appréhension; ai. Apprehenzion; it.
Appreensioné). Termo introduzido pela Esco-lástica do séc. XIV para designar o ato com que se apreende
ou se toma como objeto um termo qualquer (conceito, proposição ou qualidade sensível), distinguindo-se
de assentimento(v.), com que se julga a seu respeito, isto é, afirma-se ou nega-se. Ockham diz: "Entre os
atos do intelecto, um é o apreensivo, que se refere a tudo o que é promovido pelo ato da potência
intelectiva, e o outro pode ser chamado de judicativo, pois com ele o intelecto não somente apreende o
objeto, mas também assente nele ou dissente dele" (In Sent., prol., q. 1, 0). O ato apreensivo pode
consistir na formação de uma proposição ou no conhecimento de um complexo já formado (Quodl., V, q.
6). Essa palavra também é empregada por Wolff (Log, § 33) e Kant a utilizou na primeira edição da
Crítica da Razão Pura (Dedução dos conceitos puros do intelecto), ao falar de uma "síntese da A.", que
consistiria em recolher o múltiplo da representação de tal modo que dele surja "a unidade da intuição". As
vezes, no uso moderno, A. vem contraposto à compreensão como conhecimento primitivo ou simples que
não contém nenhuma explicação ou valorização do objeto apreendido.
APRENDIZADO ou APRENDIZAGEM (gr. Há9r|0iÇ; in. Learning; fr. Apprendre, ai. Erler-nung; it.
Apprendimentó). Aquisição de uma técnica qualquer, simbólica, emotiva ou de comportamento, ou seja,
mudança nas respostas de um organismo ao ambiente, que melhore tais respostas com vistas à
conservação e ao desenvolvimento do próprio organismo. Esse é Q conceito que a psicologia moderna dá
de A., apesar da variedade de teorias que apresenta. Esse conceito, além disso, não é senão a
generalização de uma noção antiqüíssima de A., considerado como forma de associação. Foi Platão o
primeiro a ilustrar essa noção com sua teoria da anamnese: "Sendo toda a natureza congênita e tendo a
alma aprendido tudo, nada
impede que quem se lembre de uma só coisa — que é o que se chama aprender — encontre em si mesmo
todo o resto, se tiver constância e não desistir da procura, porque procurar e aprender nada mais são do
que reminiscência" (Men., 81 d). O A. é, segundo Platão, devido à associação das coisas entre si, pela
qual a alma pode, após haver captado uma coisa, captar também a outra que a esta se encontra vinculada.
Não foi substancialmente diferente a teoria proposta por Herbart: o A. é apercepção (v.). A apercepção,
para Herbart, é o fenômeno pelo qual uma "massa de representações" acolhe em si uma nova
representação que pode, de algum modo, ligar-se àquelas (Psychol. ais Wissenschaft, 1824, II, 125 ss.).
Teoria semelhante foi exposta e ilustrada por Wundt (GrundrissderPsychologie, 1896, p. 249 ss.), e de
Wundt passou a toda a psicologia psicofísica.
Na psicologia contemporânea, o mesmo conceito de A. como associação foi ilustrado e posto em novas
bases por Thorndike, que formulou sua doutrina com base na observação de organismos animais, mas
cujas conclusões logo foram estendidas ao homem. Segundo Thorndike, o A. é um processo de tentativas
e erros ijrial and Error), guiado pela operação de prêmio e punição. As primeiras reações a uma situação
problemática são dadas ao acaso. Quando uma dessas reações obtém êxito, é escolhida nas tentativas
seguintes, logrando enfim eliminar as outras. Thorndike formulou a chamada lei do efeito, segundo a qual
a resposta a um estímulo é reforçada se seguida por um prêmio. Segundo Thorndike, esses dois fatores, a
repetição da reação adivinhada e o prêmio, bastam para explicar todos os processos do A. e, portanto, toda
a conduta do homem (cf. AnimalIntelligence. ExperimentalStudies, 1911; The Psychology o/Wants,
Interests and Altitudes, 1935, esp. p. 24). Mais recentemente, as mesmas idéias foram generalizadas por
Hull, que insistiu nos móveis do A., vendo neles um estado de necessidade. Um estímulo condicionado
pode permanecer ligado a uma resposta que o segue só se esta produzir uma diminuição da necessidade
(Principies of Behavior, 1943).
Se essa doutrina é ou não suficiente para explicar o A. humano, é coisa em que os psicólogos não estão de
acordo (cf. a discussão respectiva em E. R. HILGARD, Theories of Learning, 1948). A dúvida diz respeito
ao problema de saber se o A. consiste simplesmente em dar respostas adivinhadas ou se também implica a
APRESENTAÇÃO
76
A PRIORI, A POSTERIORI
escolha inteligente de tais respostas com base em determinados porquês. Parece difícil excluir do
processo humano do A. as opções inteligentes guiadas pelas relações expressas pelos sinais "se", "mas",
"como", "apesar de", etc. Desse ponto de vista, o fato de o homem entender a relação entre os sinais e as
respostas é um elemento do A. irredutível à pura lei do efeito (cf. M. WERTHEIMER, Productive Thinking,
1945). APRESENTAÇÃO (in. Appresentation; fr. Appresentation; ai. Darstellung; it. Appresentazioné). Termo utilizado por Husserl para designar a experiência indireta que o eu tem dos outros eus. A
A. "nos dá o que, nos outros, nos é inacessível no original"; por ela, "uma outra mônada constitui-se em
minha". É uma "apercepção por analogia" (Méditations carté-siennes, 1931, §§ 50 ss.).
A PRIORI, A POSTERIORI. Com esses dois termos foram designados os elementos das três distinções
seguintes: 1Q
a distinção entre a demonstração que vai da causa ao efeito e a que vai do efeito à causa; 2Q
a distinção entre os conhecimentos que podem ser obtidos com a razão pura e os conhecimentos que
podem ser obidos com a experiência; 3B
a distinção entre tautologias e verdades empíricas.
1
Q
A primeira distinção, que remonta à Escolástica, liga-se à distinção aristotélica entre "o que é anterior e
mais conhecido para nós" e "o que é anterior e mais conhecido por natureza", distinção que Aristóteles
assim esclarecia: "Dizendo anterior e mais conhecido em relação a nós, pretendo referir-me ao que está
mais perto da sensação; dizendo, porém, anterior e mais conhecido absolutamente, pretendo referir-me ao
que está mais longe da sensação". E como os objetos mais distantes da sensação são os mais universais,
ao passo que os mais próximos dela são os singulares, aquilo que é primeiro absolutamente, ou por
natureza, é precisamente o universal (An. post., 1, 2, 72 a 1 ss.). A partir de Alfarabi, a filosofia árabe
havia formulado a distinção entre a demonstração propterquide a demonstração quia, que Alberto da
Saxônia depois chamou, respectivamente, de demonstrações a priori e demonstrações a posteriori. "A
demonstração é dupla", diz Alberto; "uma é a que vai das causas ao efeito e chama-se demonstração a
priori, ou demostração propter quid, ou demonstração perfeita, e dá a conhecer a razão pela qual o efeito
existe. A outra é a demostração que vai dos efeitos às causas e chama-se demonstração
aposteriori, ou demonstração quia, ou demonstração não perfeita, e dá a conhecer as causas pelas quais o
efeito existe" (An. post., I, q. 9). Com esse sentido, ambos os termos são usados durante toda a Escolástica
e até o séc. XVII, para indicar duas espécies de demonstração.
2- A partir do séc. XVII, por obra de Locke e do empirismo inglês, os dois termos adquirem significado
mais geral: a priori passa a designar os conhecimentos que podem ser obtidos mediante o exercício da
razão pura e a posteriori, ao contrário, os que podem ser obtidos pela experiência. Hume e Leibniz estão
de acordo em contrapor, nesse sentido, a priori e aposteriori. Diz Hume: "Ouso afirmar, como proposição
geral que não admite exceção, que o conhecimento da relação de causa e efeito não é, em nenhum caso,
alcançado pelo raciocínio a priori, mas surge inteiramente da experiência, quando descobrimos que
certos objetos particulares estão constantemente unidos a outros" (Inq. Cone. Underst, IV, 1). E Leibniz
contrapõe constantemente o "conhecimento a priori" ao "conhecimento por experiência" (Nouv. ess., III,
3, S 15; Monad., § 76) e "a filosofia experimental, que procede aposteriori", à razão pura", que "justifica
apriori' (Op., ed. Erdmann, p. 778 b). Wolff exprimia, com sua costumeira clareza, o uso dominante em
seu tempo dizendo: "O que aprendemos com a experiência, dizemos conhecer aposteriori; o que sabemos
pelo raciocínio dizemos conhecer apriori' (Psychol. emp., §§ 5, 434 ss.).
A noção kantiana de a priori, como conhecimento independente da experiência, mas não precedente (no
sentido cronológico) à própria experiência, é, sob certo aspecto, a mesma de Leibniz e dos wolffianos.
"Existem", dizia Leibniz, "idéias que não nos vêm dos sentidos e que encontramos em nós sem formá-las,
ainda que os sentidos nos dêem ocasião de apercebê-las" (Nouv. ess., I, 1, § 1). Kant deu mais rigor a essa
noção, distinguindo os conhecimentos apriori puros, que, além de não dependerem absolutamente de
nenhuma experiência, são desprovidos de qualquer elemento empírico. P. ex., acrescentava ele, a
proposição "Toda mudança tem sua causa" é uma proposição apriori, mas não é pura, porque mudança é
um conceito que só pode ser extraído da experiência (Crít. R. Pura, intr., 1). Mas a originalidade da noção
kantiana está na função atribuída a a priori, que não constitui um campo ou domínio de conhecimentos à
parte, mas a condição de todo
A PRIORI, A POSTERIOR! 77 ÁRABE,
FILOSOFIA
conhecimento objetivo. A priori é a forma do conhecimento, assim como aposteriorié o conteúdo. Em a
priori fundam-se os conhecimentos da matemática e da física pura; mas o a priori por si mesmo não é
conhecimento, mas a função que condiciona universalmente qualquer conhecimento, tanto sensível
quanto intelectual. Os juízos sintéticos a priori são, com efeito, possíveis, em virtude das formas a priori
da sensibilidade e do intelecto. O a priori é, para Kant, o elemento formal, isto é, ao mesmo tempo o que
condiciona e fundamenta todos os graus do conhecimento; e não só do conhecimento, já que também no
domínio da vontade e do sentimento subsistem elementos a priori, como demonstram a Crítica da Razão
Prática e a Crítica do Juízo. A noção kantiana de a priori foi adotada ou pressuposta por boa parte da
filosofia moderna. O Idealismo romântico corrigiu-a no sentido de admitir que todo o saber é apriorístico,
isto é, inteiramente produzido pela atividade produtiva do Eu. Assim pensaram Fichte e Schelling. Hegel
julgava que o pensamento é essencialmente a negação de um existente imediato, logo, de tudo o que é a
posteriori ou se baseia na experiência. O a priori é, ao contrário, a reflexão e a mediação da imediação,
isto é, a universalidade, o "estar o pensamento em si mesmo" {Ene, § 12). Mais freqüentemente, na
filosofia moderna, o apriori conserva o significado kantiano. E a tal significado se vincula, apesar de
todas as diferenças, a noção de a priori material de Husserl. Essa noção está ligada à das ontologias
regionais, pois, segundo Husserl, "por conhecimentos sintéticos a priori deveriam ser entendidos os
axiomas regionais, de tal modo que haveria tantas classes irredutíveis de conhecimentos sintéticos
apriori, quantas são as regiões" (Ideen, I, § 16). Ora, regiões do ser são, p. ex., os conceitos de objeto
material, consciência, animalidade, sociedade, etc; e os axiomas relativos a cada uma de tais regiões
implicam a referência ao seu conteúdo específico e são, por isso, materiais.
3
a
Na filosofia contemporânea, a existência de um a priori no sentido kantiano ou hegeliano é quase
sempre negada. Diz, p. ex., Reichenbach: "Não existe nada de semelhante à auto-evidên-cia sintética; as
únicas fontes admissíveis do conhecimento são a percepção sensível e a auto-evidência analítica das
tautologias" ( The Theory of Probability, p. 372). Às vezes, defendeu-se uma "concepção pragmática" do
apriori, pela
qual ele consistiria sobretudo nos conceitos definitórios e nas estipulações convencionais de que se vale a
ciência (cf. C. I. LEWIS, "A Pragmatic Conception of the 'a priori'", em Readings in Philosophical
Analysis, 1949, pp. 286 ss.). Mas, o mais das vezes, por a priori entende-se simplesmente o enunciado
tauto-lógico ou analítico e por a posteriori a verdade empírica (v. ANALITICIDADE).
APROPTOSIA (gr. àTtpojtTüXJÍcc). Segundo os estóicos, a liberdade em relação à precipitação, isto é,
a capacidade de deter o assenti-mento ou de negá-lo (DiÓG. L. VII, 1, 46).
APROSPTOSIA (gr. à7ipoaJEt<Daía). A liberdade do erro (cf. ALESSANDRO DE AFRODISIA, De an., 150,
35).
APTIDÃO (in. Aptitude, fr. Aptitude, ai. Eignung; it. Attitudiné). Esse termo indica a presença de
determinados caracteres que, em seu conjunto, tornam o indivíduo capaz de realizar determinada tarefa.
Na determinação das A. baseia-se a orientação profissional, isto é, a seleção e a preparação do indivíduo
para este ou aquele trabalho, em conformidade com as suas habilidades.
AQUILES (gr. 'A%tAÀ£ÚÇ; lat. Achilles-, in. Achilles; fr. Achillee, ai. Achilleus; it. Achillé). Com esse
nome indicava-se o segundo dos quatro argumentos de Zenão de Eléia contra o movimento. Aristóteles
exprimiu-o assim: "O mais lento na corrida nunca será alcançado pelo mais veloz, pois aquele que
persegue deverá começar por alcançar o ponto de que o fugitivo partiu, de tal modo que o mais lento
sempre terá vantagem" (Fís., VI, 9, 239 b 14). O pressuposto deste, como dos outros argumentos, é a
infinita divisibilidade do espaço. V. DICOTOMIA, FLECHA, ESTÁDIO.
ÁRABE, FILOSOFIA (in. Arabicphilosophy, fr. Philosophie árabe, ai. Arabische Philosophie, it.
Filosofia arabd). Por esse nome entende-se a filosofia dos árabes do séc. VIII ao XII, que tem seus
representantes principais em Al Kindi (séc. IX), Alfarabi (séc. IX), Avicena (séc. XI), Al Gazali (séc. XI),
Averróis (séc. XII). Assim como a filosofia do mundo cristão na mesma época, a filosofia árabe é uma
Escolástica (v.), isto é, a utilização da filosofia grega, em especial a aristotélica, com o fim de entender ou
de demonstrar as verdades religiosas do Corão. A filosofia grega tornou-se conhecida entre os árabes a
partir do califado de Haroun-el-Raschid, durante o qual começaram a ser traduzidas para o árabe as obras
de Aristóteles e de outros auto-
ÁRABE, FILOSOFIA
78
ARBÍTRIO
res gregos, já traduzidas para o siríaco. Entre as obras que exerceram maior influência no pensamento
árabe, além dos textos de Aristóteles, houve uma Teologia atribuída a Aristóteles, que é uma miscelânea
de trechos extraídos das Enneadesâe Plotino, e o Liber de causis, que é a tradução dos Elementos de
teologia de Proclo. Foram também traduzidas para o árabe as obras de Euclides, Ptolomeu e Galeno, os
comentários aristotélicos de Alexandre de Afrodisia e alguns Diálogos de Platão. Os fundamentos
filosóficos que os árabes elaboraram e que, de certo modo, representam as características da sua filosofia,
são os seguintes: 1Q
A noção de Deus como o "Ser necessário", isto é, tal que não pode não existir, e do
mundo como algo cuja necessidade deriva de Deus. Uma vez produzidos por uma Causa primeira
necessária, todos os eventos do mundo são, por sua vez, necessários. Os árabes admitem uma cadeia
causai ininterrupta que vai de Deus, como Primeiro Motor, às Inteligências celestes e aos céus e, enfim,
aos acontecimentos terrestres e ao homem. Justificam, por isso, a astrologia, explicando suas deficiências
pelo imperfeito grau de observação.
2
a Doutrina do intelecto agente ou ativo como substância de natureza divina, separada da alma humana;
doutrina que Averróis modificou no sentido de considerar separado do homem e divino também o
intelecto passivo ou potencial que Al Kindi e Alfarabi consideravam próprio do homem. Ao homem
pertence, segundo Averróis, só uma espécie de reprodução ou de imagem do verdadeiro intelecto. O único
intelecto divino multiplica-se nas várias almas humanas como a luz do sol se multiplica distribuindo-se
nos vários objetos que ilumina. Essa doutrina, que punha em dúvida a imortalidade da alma humana, na
medida em que separava dela e atribuía a Deus a sua parte mais elevada e imaterial, foi chamada de
doutrina da unidade do intelecto.
3
Q
Tendência própria do aristotelismo e, em particular, de Averróis a pôr a filosofia acima da religião,
atribuindo-lhe o fim da contemplação e reservando à religião o domínio da ação. Essa tendência foi
interpretada pelos escolásticos latinos como a "doutrina das duas verdades", isto é, da independência entre
verdade filosófica e verdade religiosa, que poderiam ser até mesmo contrastantes. Obviamente, esse ponto
de vista era a negação da própria Escolástica ocidental, que visava justificar filosoficamente as verdades
religiosas.
4
S
Com Al Gazali (séc. XI), a filosofia A. apresenta a reação do espírito religioso contra a filosofia: Al
Gazali afirma, contra Alfarabi e Avicena, a liberdade da natureza divina e o caráter arbitrário da criação.
À sua obra Destruição dos filósofos, Averróis respondeu com Destruição das destruições de Al Gazali.
A filosofia A., além de ter importância por si mesma, ao acompanhar o auge do florescimento do império
árabe no Mediterrâneo, exerceu notável influência sobre a Escolástica latina. Em primeiro lugar, forneceu
a essa Escolástica boa parte de seu material, que lhe chegou através das traduções latinas das traduções
árabes das traduções siríacas das obras de autores gregos. Em segundo lugar, ofereceu-lhe um constante
ponto de referência polêmico, levando-a a organizar-se como filosofia da liberdade em face da filosofia
da necessidade do mundo muçulmano. O próprio aristotelismo, na sua primeira manifestação ao mundo
ocidental, foi identificado com a sua interpretação A.; e só por obra de Alberto Magno e de S. Tomás foi
depois adotado às exigências da* Escolástica cristã (v. ESCOLÁSTICA).
A-RACIONAL (gr. akoyoc;, lat. Alogus, in. Arational; fr. Alogique, ai. Alogisch; it. Ara-zionalè). O que
é desprovido de razão ou não se pode exprimir ou explicar racionalmente: o mesmo que irracional. Esse é
o uso clássico do termo (PLATÃO, Górg., 501 a; O Banq., 202 a; Teet., 205 e; Sof, 238 c, etc.;
ARISTÓTELES., Et. nic, X, 2, 1.172 b 10). O termo grego (assim como o latino) serve também para
designar as grandezas incomensuráveis que chamamos irracionais (ARISTÓTELES, An.post., I, 10, 76 b 9;
EUCLIDES, El., X, def. 10; etc). O uso moderno tentou, raramente e sem êxito, distinguir A. de irracional.
ARBÍTRIO (lat. Arbitrium; in. Free will; fr. Arbitre, ai. Willkur, it. Arbítrio). O princípio da ação nos
animais e no homem. A. é, por isso, termo mais geral do que vontade (v.), que só pode ser atribuída ao
homem. Diz Kant "É A. simplesmente animal {arbitrium brutum) o que só pode ser determinado por
estímulos sensíveis, ou seja, patologicamente. Mas o que é independente de estímulos sensíveis e,
portanto, pode ser determinado por motivos que não são representados a não ser pela razão, chama-se
livre A. {arbitrium liberum) e tudo o que a ele se liga como princípio ou como conseqüência é chamado
prático" {Crít. R. Pura, Doutrina transcendental do método; O cânone da r. pura,
ARCANO
79
ARITMÉTICA
seção I). O A. implica, assim, uma possibilidade de escolha, que, todavia, ainda não é liberdade. Para livre
A., v. LIBERDADE.
ARCANO. V. ARQUEU.
ARCHÉ. V. PRINCÍPIO.
ARCÔNTICO (ai. Archontisch). Assim Hus-serl denominou o caráter dominante e unificador de uma
experiência vivida, na medida em que normalmente esta não tem apenas um, mas muitos caracteres
interligados de maneiras diversas (Jdeen, I, § 117) (v. VIVÊNCIA).
ARETOLOGIA (in. Aretology, fr. Arétologie, ai. Arétologie, it. Aretologiá). Raramente usado: a doutrina
das virtudes.
ARGUMENTO (gr. AÓ70Ç; lat. Argumentum; in. Argument; fr. Argument; ai. Argument; it.
Argomentó). 1. Num primeiro significado, A. é qualquer razão, prova, demonstração, indício, motivo
capaz de captar o assentimento e de induzir à persuasão ou à convicção. A. comuns ou típicos ou
esquemas de A. são os lugares (TÓJKH, loci) que constituem o objeto dos Tópicos de Aristóteles. Cícero,
com efeito, definia os lugares como as sedes das quais provêm os A., que são "as razões que dão fé de
uma coisa duvidosa" (Top., 2, 7). O significado gene-ralíssimo da palavra A. também é esclarecido pela
definição de S. Tomás: "A. é o que convence (arguif) a mente a assentir em alguma coisa" (De ver., q. 14,
a. 2, bb. 14), e pela de Pedro Hispano, que retoma a expressão de Cícero: "A. é uma razão que dá fé de
uma coisa duvidosa" (Summ. log., 5.02). No mesmo sentido, essa palavra é usada por Locke na definição
da probabilidade, que existe quando "existem A. ou provas capazes de fazer uma proposição passar por
verdadeira ou de ser aceita como verdadeira" (Ensaio, IV, 15, 3). E Hume, por sua vez, dividia os A. em
demonstrações (puramente conceituais), provas (empíricas) e probabilidades (Inq. Cone. Underst., VI,
nota). Nesse sentido, A. é qualquer coisa que "dá fé" segundo a excelente expressão de Cícero, isto é, que
de algum modo produza um grau qualquer de persuasão.
2. No segundo significado entende-se por A. o tema ou o objeto (in. subject-matter, ai. Aufgabé), o
assunto de um discurso qualquer, aquilo em torno de que o discurso versa ou pode versar. A esse segundo
significado do termo vincula-se o seu uso em lógica e matemática para indicar os valores das variáveis
independentes de uma função. Nesse sentido, A. é o que preenche o espaço vazio de uma função
ou aquilo a que uma função deve ser aplicada para que tenha determinado valor. Essa palavra foi usada
pela primeira vez nesse sentido por G. FREGE (Funktion undBegriff, 189D (v. FUNÇÃO).
ARISTOCRACIA. V. GOVERNO, FORMAS DE.
ARISTOTELISMO (in. Aristotelianism; fr. Aristotélisme, ai. Aristotelismus, it. Aristotelismó). Por esse
termo entendem-se alguns fundamentos da doutrina de Aristóteles que passaram à tradição filosófica ou
que inspiraram as escolas ou os movimentos que se reportam mais diretamente ao próprio Aristóteles,
como a escola peripatética, o A. árabe, o A. cristão medieval, o A. do Renascimento e várias outras
tendências do mundo medieval e moderno. Tais fundamentos podem ser resumidos da seguinte forma:
1
Q
Importância atribuída por Aristóteles à natureza e o valor e a dignidade das indagações a ela dirigidas.
Enquanto Platão pensava que tais indagações só poderiam atingir um grau de probabilidade muito inferior
ao conhecimento científico (Tim., 29 c), Aristóteles considerava que nada há na natureza tão insignificante
que não valha a pena ser estudado, já que, em todos os casos, o verdadeiro objeto da pesquisa é a
substância das coisas (v. SUBSTÂNCIA).
2
Q
Conceito de metafísica como filosofia primeira e teoria da substância, assim como fundamento da
enciclopédica completa das ciências (v. METAFÍSICA).
3
fi Doutrina das quatro causas (formal, material, eficiente, final) doutrina do movimento, como passagem
da potência ao ato, que permitiram a interpretação de toda a realidade natural (v. os verbetes
correspondentes).
4
a
Teologia com seu conceito do Primeiro Motor e do Ato Puro (v. DEUS).
5° Doutrina da essência substancial ou necessária como base da teoria do conhecimento e da lógica (v.
ALMA; ESSÊNCIA,- SER).
6
S
Importância atribuída à lógica, cujo primeiro expositor sistemático é Aristóteles, como instrumento de
todo conhecimento científico (v. CONCEITO; LÓGICA; SILOGISMO; TÓPICA; etc).
As várias correntes do A. só se reportaram, habitualmente, a alguns desses fundamentos; isso explica por
que o A. ora apareceu como metafísica teológica (na Escolástica medieval), ora como naturalismo (no
Renascimento), ora como espiritualismo (em algumas interpretações modernas,j>. ex., as de Ravaisson e
Brentano).
ARITMÉTICA (in. Arithmetic; fr. Arithmé-tique, ai. Arithmetik, it. Aritmética). Teoria ma-
ARQUEOLÓGICA, HISTÓRIA
80
ARQUITETÔNICA
temática dos números naturais, isto é, dos números inteiros positivos. Entendem-se co-mumente por leis
da A. as seguintes proposições ou regras:
^a+b^b+a (lei comutativa da adição);
2
a
ab = ba (lei comutativa da multiplicação);
3
a
a + {b + c) = {a + b) + c (lei associativa da adição);
4
a
a{bç) = {ab)c {lei associativa da multiplicação);
5
a
a{b + c) = ab + ac (lei distributiva).
A formalização da A., isto é, a redução da A. a um sistema lógico fundado em poucos axio-mas, foi
efetuada pela primeira vez por Peano, que se valeu de alguns conceitos de Dedekind. Peano pressupôs
como primitivas as noções de zero, de conjunto de números naturais e de sucessão enunciada com a
expressão o sucessivo de. Mostrou que todas as proposições da A. podiam derivar dos cinco axiomas
seguintes:
I
a
Oé um número natural;
2
Q
se x é um número natural, o número sucessivo também é um número natural;
3
S
se x e y são números naturais e se o sucessivo de x é idêntico ao sucessivo de y, então xe y são
idênticos;
4
S
se x é um número natural, o número sucessivo de x é diferente de O,
5
Q
se 0 pertence a um conjunto «eseo sucessivo de um número natural qualquer pertence também a esse
conjunto, o conjunto dos números naturais é uma parte de a.
Com a expressão aritmetização da matemática entende-se, às vezes, a exigência surgida em meados do
séc. XIX, no campo das matemáticas, principalmente por obra de Weierstrass, de conferir unidade e rigor
lógico à análise matemática, fundando-a numa teoria dos números reais. Essa teoria foi depois
desenvolvida por Cantor (1845-1918) e Dedekind (1831-1916).
Cf. as memórias de lógica matemática de Peano, ora coligidas em Opere scelte, Roma, 1958. Cf. também
B. RUSSELL, Intmduction to Mathematical Philosophy, 1918 (v. MATEMÁTICA; NÚMERO).
ARQUEOLÓGICA, HISTÓRIA (in. Archeo-logical history, fr. Histoire archéologique, ai.
Archâologische Geschichte, it. Storia archeo-logicd). Na segunda das Considerações inatuais {Sobre a
utilidade e o inconveniente dos estudos históricos para a vida, 1873), Nietzsche distingue três espécies de
história: "A história pertence a quem vive segundo três relações:
pertence-lhe porque ele é ativo e porque aspira; porque conserva e venera; porque tem necessidade de
libertação. A essa trindade de relações correspondem três espécies de história, sendo possível distinguir o
estudo da história do ponto de vista monumental, do ponto de vista arqueológico e do ponto de vista
crítico". A história monumental é a que considera os grandes eventos e as grandes manifestações do
passado e os projeta como possibilidades para o futuro. A história A. considera, ao contrário, o que no
passado foi a vida de cada dia e nela enraíza a mediocridade do presente. A história crítica serve, porém,
para romper com o passado e para renovar-se (v. HISTÓRIA).
ARQUÉTIPO (lat. Archetypus-, in. Archetype, ai. Archetyp, Urbild; it. Archetipó). Modelo ou o
exemplar originário ou original de uma série qualquer. As idéias de Platão foram consideradas A.
enquanto modelos das coisas sensíveis e, mais freqüentemente, as idéias existentes na mente de Deus,
como modelos das coisas criadas (PLOTINO, Enn., V, 1, 4; PROCLO, InRep., II, 296). Mas Locke {Ensaio,
II, 31, § 1) empregou a palavra A. para dizer somente modelo: "Chamo adequadas as idéias que
representam perfeitamente os A. dos quais a mente supõe que elas tenham sido extraídas, que ela entende
sejam representadas por aquelas idéias, e a que ela as refere". A., nesse caso, são as forças naturais, as
idéias simples ou as idéias complexas assumidas como modelos para medir a adequação das outras idéias
(v. ECTIPO).
ARQUEU. Segundo Teofrasto Paracelso, é a força que move os elementos, isto é, o espírito animador da
natureza. Como todas as coisas são compostas de três elementos (enxofre, sal, mercúrio), assim todas as
forças que as animam são constituídas pelos seus arcanjos, isto é, pela atividade inconsciente do A.
{Meteor., pp. 79 ss.).
ARQUITETÔNICA (gr. àp%ueKTOVtKn Té^vn; in. Architectonic; fr. Architectonique; ai.
Architektonik, it. Architettonicd). Em geral a parte de construir, na medida em que supõe a capacidade de
subordinar os meios ao fim e o fim menos importante ao mais importante. Nesse sentido, essa palavra é
usada por Aristóteles {Et. nic, I, 1, 1.094 a 26), que fala também {Et. eud., I, 6, 1.217 a) de uma
"inteligência A. e prática", isto é, construtiva e operativa; Essa palavra foi usada pela primeira vez como
nome de uma disciplina filosófica por Lambert, que a usou como título de uma obra sua {Arquitetônica,
ARQUITETÔNICA, BELEZA 81
ARTE
1771) e entendeu-a como "a teoria dos elementos simples e primitivos no conhecimento filosófico e
matemático". Kant retomou essa palavra para indicar "a arte do sistema", ao qual dedicou um capítulo (o
III) na segunda parte principal de Crítica da Razão Pura. Como sistema, entendeu "a unidade de
conhecimentos múltiplos reunidos sob uma única idéia", isto é, organização finalista que cresce de dentro,
como o organismo vivo. Na esteira de Kant, C. S. Peirce fala de arquitetura das teorias científicas e
filosóficas cujas regras procura definir (Chance, Love and Logic, II, 1).
ARQUITETÔNICA, BELEZA. V GRAÇA
ARQUITETURA. V. ARQUITETÔNICA.
ARREPENDIMENTO (lat. Paenitentia; in. Repentance, fr. Repentir, ai. Reue, it. Pentimentó). O
angustiante reconhecimento da própria culpa. Esta é a definição em que os filósofos concordam, ainda
que a expressem com palavras diferentes (S. TOMÁS, S. Th., III, q. 85, a. 1; DESCARTES, Pass. deVâme,
III, 191; SPINOZA, Et., III; Definição das paixões, TI; HEGEL, Werke, ed. Glockner, X, p. 372, etc). Os
filósofos também estão de acordo em admitir o valor moral do arrependimento. Spinoza, embora julgue
que o A. "não é uma virtude, isto é, não deriva da razão" e que, portanto, quem se arrepende é duplamente
miserando e impotente (uma vez porque agiu mal e depois porque se aflige com isso), reconhece que
aquele que está submetido ao A. pode, todavia, voltar a viver segundo a razão muito mais facilmente do
que os outros (Et., IV, 54). Montaigne, que dedicou ao A. um de seus ensaios mais notáveis (Essais, III,
2), observara, porém, que o A. não deve transformar-se no desejo "de ser outro". "Não cabe propriamente
A. pelas coisas que não estão em nosso poder, assim como não cabem as saudades. Imagino infinitas
naturezas mais elevadas e mais ponderadas do que a minha; mas com isso não melhoro as minhas
faculdades, assim como o meu braço e o meu espírito não ficam mais vigorosos só porque eu os conceba
diferentemente do que são" (ibid., ed. Rat., III, p. 28).
Em sentido análogo exprime-se Kierkegaard, que viu no A. o ponto culminante da vida ética e, ao mesmo
tempo, o sinal do seu conflito interno. O a. é inerente à escolha que, na vida ética, o homem faz de si
msmo. "Escolher a si mesmo é idêntico a arrepender-se de si mesmo... Até o místico se arrepende, mas
fora de si e não dentro de si; arrepende-se metafisicamente e não eticamente. Arrepender-se esteticamente é repugnante, porque é afetação; arrepender-se
metafisicamente é coisa inútil e fora de lugar, pois não foi o indivíduo que criou o mundo e não lhe cabe
incomodar-se tanto com a vaidade do mundo" (Entweder-Oder, em Werke, II, p. 223; Furcht undZittem,
em Werke, III, p. 143). Cf. M. SCHELER, Reue und Wiedergeburt, em Vom Ewigen im Menschen, A- ed.,
1954).
ARS MAGNA. V. COMBINATÓRIA, ARTE.
ARTE (gr. xé%vr|; lat. Ars-, in. Art; fr. Art; ai. Kunst; it. Arte). Em seu significado mais geral, todo
conjunto de regras capazes de dirigir uma atividade humana qualquer. Era nesse sentido que Platão falava
da A. e, por isso, não estabeleceu distinção entre A. e ciência. A., para Platão, é a arte do raciocínio (Fed.,
90 b), como a própria filosofia no seu grau mais alto, isto é, a dialética (Fed., 266 d); A. é a poesia,
embora lhe seja indispensável a inspiração delirante (ibid., 245 a); A. é a política e a guerra (Prol, 322 a);
A. é a medicina e A. é respeito e justiça, sem os quais os homens não podem viver juntos nas cidades
(Ibid., 322 c, d). O domínio global do conhecimento é dividido em duas A., a judicativa (KpraKií ou
TVCOOTIKIÍ) e a dispositiva ou imperativa (èmtaKXiKií ou èmoiaTiKií), das quais a primeira consiste
simplesmente em conhecer e a segunda em dirigir determinada atividade com base no conhecimento (Pol,
260 a, b; 292 c). Desse modo, para Platão a A. compreende todas as atividades humanas ordenadas
(inclusive a ciência) e distingue-se, no seu complexo, da natureza (Rep., 381 a). — Aristóteles restringiu
notavelmente o conceito de A. Em primeiro lugar, retirou do âmbito da A. a esfera da ciência, que é a do
necessário, isto é, do que não pode ser diferente do que é. Em segundo lugar, dividiu o que não pertence à
ciência, isto é, o possível (que "pode ser de um modo ou de outro") no que pertence à ação e no que
pertence à produção. Somente o possível que é objeto de produção é objeto da A. Nesse sentido, diz-se
que a arquitetura é uma A.; e a A. se define como o hábito, acompanhado pela razão, de produzir alguma
coisa (Et. nic, VI, 3-4). O âmbito da A. vem, assim, a restringir-se muito. São A. a retórica e a poética,
mas não é A. a analítica (lógica), cujo objeto é necessário. São A. as manuais ou mecânicas, como é A. a
medicina, ao passo que a física ou a matemática não são A. Esse é, pelo menos, o ponto de vista do
Aristóteles maduro, já que as páginas com que se abre a Metafísica parecem estabelecer
ARTE
82
ARTEFATO
uma distinção puramente de grau entre a A. e a ciência, colocando a A. como intermediária entre a
experiência e a ciência. Mesmo aquelas páginas se concluem, porém, com a afirmação de que a sabedoria
é antes conhecimento teórico do que A. produtiva (Met., 1,1, 982 a 1 ss.). Essa distinção aristotélica não
foi, porém, adotada em todo o seu rigor pelo mundo antigo e medieval. Os estóicos ampliaram de novo a
noção de A., afirmando que "a A. é um conjunto de compreensões", entendendo por compreensão o
assentimento ou uma representação compreensiva (SEXTO EMPÍRICO, Pirr. hyp., III, 241, Adv. dogm., V,
182); na verdade, essa definição não permite distinguir A. de ciência. E Plotino, que, por sua vez, faz tal
distinção porque quer conservar o caráter contemplativo da ciência, distingue as A. com base em sua
relação com a natureza. Distingue, portanto, a arquitetura e as A. análogas, cuja finalidade é a fabricação
de um objeto, das A. que se limitam a ajudar a natureza, como a medicina e a agricultura, e das A.
práticas, como a retórica e a música, que tendem a agir sobre os homens, tornando-os melhores ou piores
(Enn., IV, 4, 31). A partir do séc. I foram denominadas "A. liberais" (isto é, dignas do homem livre), em
contraste com as A. manuais, nove disciplinas, algumas das quais Aristóteles teria denominado ciências, e
não artes. Essas disciplinas foram enumeradas por Varrão: gramática, retórica, lógica, aritmética,
geometria, astronomia, música, arquitetura e medicina. Mais tarde, no séc. V, Marciano Capela, em
Núpcias de Mercúrio e da filologia, reduzia a sete as A. liberais (gramática, retórica, lógica, aritmética,
geometria, astronomia e música), eliminando as que lhe pareciam desnecessárias a um ser puramente
espiritual (que não tem corpo), isto é, a arquitetura e a medicina, e estabelecendo assim o curriculum de
estudos que deveria permanecer inalterado por muitos séculos (v. CULTURA). S. Tomás estabelecia a
distinção entre A. liberali e A. servili com o fundamento de que as primeiras destinam-se ao trabalho da
razão, as segundas "aos trabalhos exercidos com o corpo, que são de certo modo servis, porquanto o
corpo está submetido servilmente à alma e o homem é livre segundo a alma" (S. Th., II, 1, q. 57, a. 3, ad
3). Contudo, a palavra A. continuou designando, por longo tempo, não só as A. liberais mas também as A.
mecânicas, isto é, os ofícios, assim como ocorre ainda hoje, pois entendemos por A. ou artesão um ofício
ou
quem o pratica. Kant resumiu as características tradicionais desse conceito ao fazer a distinção entre A. e
natureza, de um lado, e entre A. e ciência, do outro; e distinguiu, na própria A., a A. mecânica e a A.
estética. Sobre esse último ponto, diz: "Quando, conformando-se ao conhecimento de um objeto possível,
a A. cumpre somente as operações necessárias para realizá-lo, diz-se que ela é A. mecânica; se, porém,
tem por fim imediato o sentimento do prazer, é A. estética. Esta é A. aprazível ou bela A. É aprazível
quando sua finalidade é fazer que o prazer acompanhe as representações enquanto simples sensações; é
bela quando o seu fim é conjugar o prazer às representações como formas de conhecimento" (Crít. do
Juízo, § 44). Em outros termos, a bela A. é uma espécie de representação cujo fim está em si mesma e,
portanto, proporciona prazer desinteressado, ao passo que as A. aprazíveis visam somente a fruição. A
essa concepção de A. remetem-se ainda hoje os que vêem nela a libertação das restrições impostas pela
jecnocracia (MARCUSE, One Dimensional Man,"í964, pp. 238 ss.), ou pelo menos um meio de corrigi-las,
fazendo valer, nesse sistema, a expressão da personalidade individual (GALBRAITH, The New Industrial
State, 1967, p. XXX).
Embora ainda hoje a palavra A. designe qualquer tipo de atividade ordenada, o uso culto tende a
privilegiar o significado de bela A. Dispomos, de fato, de um termo para indicar os procedimentos
ordenados (isto é, organizados por regras) de qualquer atividade humana: é a palavra técnica. A técnica,
em seu significado mais amplo, designa todos os procedimentos normativos que regulam os
comportamentos em todos os campos. Técnica é, por isso, a palavra que dá continuidade ao significado
original (platônico) do termo arte. Por outro lado, os problemas relativos às belas A. e a seu objeto
específico cabem hoje ao domínio da estética (v.).
ARTEFATO (in. Artifact; fr. Artefact; ai. Artefakt; it. Artefattó). Objeto produzido, no todo ou em parte,
pela arte ou por qualquer atividade humana, na medida em que se distingue do objeto natural, produzido
pelo acaso. Por isso, a presença de A. num estrato geológico normalmente é considerada pelos
antropólogos como sinal de presença do homem na idade correspondente: a natureza e a complexidade
dos A. são formadas como base para distinguir os tipos de cultura a que pertencem.
ARTÍFICE INTERNO
Para ser reconhecido como tal, o A. deve manifestar a intenção, preexistente à sua construção, de utilizálo com finalidade determinada, ou seja, deve constituir a realização de um projeto (v.)
ARTÍFICE INTERNO. Esse foi o nome que Giordano Bruno deu, em De Ia causa, principio e uno, ao
intelecto universal, que é "faculdade e parte potencial íntima mais real e própria da alma do mundo",
porque "forma a matéria e a figura desde dentro".
ÁRVORE DE PORFÍRIO (lat. Arbor Por-phyriana-, in. Tree of Porphyry, fr. Arbre de Porphyre, ai.
Baum des Potphyrius, it. Albero di Porftrio). Célebre esquema ou modelo de definição por dicotomias
sucessivas, que desce do gênero mais geral às espécies ínfimas (substância: corpórea, incorpórea;
substância corpórea [corpo]: animado, inanimado; corpo animado: sensível, insensível; corpo animado
sensível [animal]: racional, irracional; animal racional: mortal, imortal; animal racional mortal [homem]:
Sócrates, Platão, etc). Embora tal "árvore" não se encontre propriamente nos manuscritos de Porfírio, foi
construída com base no texto porfiriano {Isag., 4, 20) e se acha em todos os tratados medievais de lógica
(cf., p. ex., PEDRO HISPANO, Summ. log., 2, 10), de onde passou para os textos modernos de lógica
tradicional.
ASCESE (gr. acucncnç: in. Ascesis-, fr. Ascèse, ai. Askese, it. Ascest). Essa palavra significa
propriamente exercício e, na origem, indicou o treinamento dos atletas e as suas regras de vida. Com os
pitagóricos, os cínicos e os estóicos, essa palavra começou a ser aplicada à vida moral na medida em que
a realização da virtude implica limitação dos desejos e renúncia. O sentido de renúncia e de mortificação
tornou-se, daí, predominante; na Idade Média, A. significou mortificação da carne e purgação dos
vínculos com o corpo. A revolta contra o ideal ascético iniciou-se no Renascimento, com a revalorização
dos aspectos corpóreos e sensíveis do homem. Kant considera a moral ascética como "exercício firme,
corajoso e destemido da virtude" e a contrapõe à A. monãstica, "que, por temor supersticioso ou por
horror hipócrita a si mesma, costuma mortificar e desprezar o próprio corpo", castigando-se, em vez de
arrepender-se moralmente, isto é, de tomar a resolução de corrigir-se {Met. der Sitten, II, § 53).
Schopenhauer deu significado metafísico à A., na qual viu "o horror do homem pelo ser, cuja expressão é
seu próprio fenômeno, pela vonASPECTO
tade de viver, pelo cerne e essência de um mundo que se reconhece cheio de dor" {Die Welt, I, § 68), e por
isso o único instrumento de liberação de que o homem dispõe.
ASCETISMO (in. Asceticisni; fr. Ascétisme, ai. Asketismus-, it. Ascetismó). A prática da ascese.
ASETDADE ou ASSEIDADE (lat. Aseitas; in. Aseity, fr. Aséité, ai. Aseitát; it. Aseitã). Qualidade ou
caráter do ser que tem em si mesmo a causa e o princípio do próprio ser, ou seja, Deus. Abaliedade é a
qualidade contrária, isto é, a do ser que tem causa em outro ser. Vocábulos usados na Escolástica tardia. ^
ASNO DE BURIDAN (in. Buridan's Ass-, fr. Âne de Buridan; ai. Esel des Buridan; it. Asino
diBuridanó). Jean Buridan, mestre e reitor da Universidade de Paris na primeira metade do séc. XIV, foi
discípulo de Ockham e é importante por algumas observações que antecipam o princípio de inércia da
mecânica moderna (v. IMPULSO). O caso do A., que, posto entre dois feixes iguais de feno, morreria de
fome antes de resolver qual dos dois comeria, não se encontra em suas obras. Encontram-se nela, porém,
suas premissas. Buridan julga que a vontade segue, necessariamente, o juízo do intelecto; p. ex., a decisão
é pelo bem maior, se o intelecto assim julgar. Mas quando o intelecto julga que dois bens são iguais, a
vontade não pode decidir-se nem por um nem pelo outro: a escolha não acontece {In Eth., III, q. 1). Esse é
o caso do asno. Mas Buridan julga que o homem pode não morrer de fome como o A., já que pode
suspender ou impedir o juízo do intelecto {ibid., III, q. D). A origem do caso (embora não referido ao A.)
acha-se em Aristóteles: "Diz-se que quem está muito sedento ou esfaimado, se se acha a igual distância do
alimento e da bebida, necessariamente fica imóvel onde se acha" {De cael, II, 13, 295 b 33). Nem mesmo
Dante refere o caso ao A.: "Que entre dois alimentos, distantes e móveis — de modo que antes se morria
de fome — o homem livre levasse um deles à boca" {Par., IV, 1-3). Na realidade, a discussão em torno do
caso do A. de Buridan foi peculiar a um período (a última Escolástica) no qual se acentuou o caráter
arbitrário da escolha voluntária e entendeu-se a liberdade do homem como "arbitrário de indiferença" (v.
LIBERDADE).
ASPECTO (in. Aspect; fr. Aspect; ai. Aspekt; it. Aspettó). Ponto de vista ou ângulo visual de que pode
ser considerado um fato ou uma observação. Objetivamente, o lado que o fato ou a situação apresenta.
ASPIRAÇÃO
84
ASSERÇÃO
ASPIRAÇÃO (in. Aspiration; fr. Aspiration; ai. Sehnsucht; it. Aspirazioné). Atitude que se assume em
face do ideal (v.), isto é, em face de uma perfeição em cuja realização não se tem confiança. A A. não é de
per si ativa e operante e pode permanecer no estado de veleidade suspirosa.
ASSENTIMENTO (gr. OD^axáGeaiç; lat. Assensus, in. Assent; fr. Assentiment; ai. Beifall ou
Zustimmung; it. Assensó). Termo correlativo de apreensão (v.), que designa o ato com que se julga do
objeto apreendido, isto é, assente-se a ele, dissente-se dele ou duvida-se dele. Os primeiros a elaborar a
teoria do A. foram os estóicos. O A. é a reação da alma à ação da coisa externa, que lhe é imprimida pela
representação. "Assim como é necessário que o prato da balança se abaixe quando sobre ele são
colocados pesos, também é necessário que a alma adira à evidência" (CÍCERO, Acad., III, 12, 37). Receber
a representação é coisa involuntária, já que ver branco depende da cor branca que se tem à frente, e assim
por diante. Mas assentir à representação está naquele que acolhe a representação. O A. é, pois, voluntário.
É parte integrante da representação cataléptica (v. CATA-LÉPTICA, REPRESENTAÇÃO), segundo a qual
"onde se tira o A., tira-se também a compreensão" (SEXTO EMPÍRICO, Adv. math., VIII, 397-398). Na
filosofia cristã, a noção de A. serviu para definir a fé. João Damasceno definiu a fé como "A. não
acompanhado por indagação" (non inquisitivus assensus, De fide orth., IV, 12). Referindo-se a esse
conceito, S. Tomás define a fé como "pensar com assentimento". Diz: "O intelecto pode aderir a uma
coisa de dois modos. No primeiro modo, porque é movido a assentir pelo próprio objeto, porque é
conhecido por si mesmo, como ocorre com os primeiros princípios de que temos inteligência, ou porque é
conhecido através de outro, como ocorre com as conclusões de que temos ciência. No segundo modo, o
intelecto adere a alguma coisa não porque tenha sido suficientemente movido pelo próprio objeto, mas
por escolha voluntária que o inclina mais para um lado do que para outro. Ora, se isso acontecer
juntamente com a dúvida e com o temor de que o outro lado seja verdadeiro, ter-se-á a opinião; se
acontecer, porém, com certeza e sem aquele temor, ter-se-á a fé" (S. Th., II, 2, q. 1, a. 4). Na última fase
da Escolástica, a doutrina do A. foi elaborada por Ockham. Segundo ele, o ato do A. acompanha o ato do
aprendizado. "Quem
quer que aprenda uma proposição (In Sent., prol., q. 1, 55) assente, dissente ou duvida." A teoria do A. é,
substancialmente, a teoria do erro. Segundo Ockham, quando uma proposição é empírica ou
racionalmente evidente, o A. é garantido pela sua evidência, ao passo que, quando falta essa evidência, o
A. é mais ou menos voluntário e vê-se diante da possibilidade do erro (ibid., II. q. 25). Doutrina análoga
encontra-se em Descartes. Para julgar, requer-se, em primeiro lugar, o intelecto, já que não se pode julgar
sobre aquilo de que não se tem apreensão; em segundo lugar, a vontade, pela qual se adere ao que foi
percebido (Princ.phil, I, § 34). E na maior amplitude da vontade, isto é, na possibilidade de que o A.
também seja dado ao que não é apreendido de modo evidente, baseia-se a possibilidade do erro (ibid., §
35). Locke elabora a doutrina do A. relacio-nando-a com os graus de probabilidade. "A crença, A. ou
opinião consiste em admitir ou aceitar como verdadeira uma proposição com base em argumentos ou
provas que nos convencem sem nos dar conhecimento certo da sua verdade" (Ensaio, IV, 15, 3). A própria
fé é uma espécie de A., aliás "um A. fundado na razão mais alta" (ibid., 14). De modo semelhante,
Rosmini considerou o A. como um ato livre, que se segue ao conhecimento, isto é, à simples apreensão da
coisa (Ciência moral, ed. nac. 1941, p. 109). A Gramática do assentimento (1870) de Newmann
distinguiu o A. real, destinado às coisas, do A. nocional, destinado às proposições. O A. nocional é o que
se chama de profissão, opinião, presunção, especulação; o A. real é a crença. O A. nocional a uma
proposição dogmática é um ato teológico; o A. real à mesma proposição é um ato religioso. As duas
coisas não se contradizem, mas só o A. real leva ao credo dogmático os sentimentos e as imaginações que
condicionam a sua validade religiosa. Essas idéias de Newmann, retomadas e desenvolvidas por OlléLaprune e por Blondel, deram à filosofia da ação (v.).
ASSERÇÃO (gr. cmócpavotç, A,óyo àno-(pocvxiKÓÇ; lat. Oratio enunciativa; in. Statement; fr.
Assertion; ai. Behauptung; it. Asserzioné). Frase de sentido completo que afirma ou nega, podendo ser
verdadeira ou falsa. Aristóteles distinguiu a A., nesse sentido, da súplica, da ordem, etc, considerando que
só ela é objeto da lógica, ao passo que as outras formas de expressão são objeto da retórica ou da poética
(De interpr., A\l a 2-9). Disse que a A. é "uma frase que significa que alguma coisa inere ou
ASSILOGÍSTICO
85
ASSUNÇÃO
não em alguma coisa, segundo as divisões do tempo" e que a afirmação e a negação são as duas formas
fundamentais (ibid., 17 a 23). Boécio traduziu a expressão de Aristóteles por Oratio enunciativa (P.L.,
64s
, col. 314, 399), considerando-a praticamente equivalente ao enuntia-tum dos estóicos. Na realidade,
os dois termos são equivalentes, se não forem consideradas as diferenças do contexto em que se
encontrem (v. ENUNCIADO; PROPOSIÇÃO).
Na lógica matemática contemporânea, Russell, com base em Frege e acompanhado por muitos outros
lógicos, introduziu um símbolo especial C—'), a ser anteposto ao símbolo da asserçâo. A lógica terminista
medieval julgava, porém, que as expressões "é verdade que 'p'" e 'p' (onde 'p' é sinal de uma proposição)
devem ser consideradas sinônimas. Contudo, a A. implica que se acredita ou se assente na proposição (v.)
expressa; como tal, às vezes é distinguida de enunciado (v.). Cf. ASSENTIMENTO. G. P.
ASSILOGÍSTICO. V. ANAPODÍTICO.
ASSOCIAÇÃO DE IDÉIAS (in. Association ofideas; fr. Association des idées; ai. Ideenas-soziation; it.
Associazione delle ideê). Com essa expressão, indica-se a conexão recíproca dos elementos da
consciência, conexão pela qual tais elementos, quaisquer que sejam, evocam-se uns aos outros, segundo
uniformidades ou leis reconhecíveis. A semelhança, a continuidade e o contraste constituem as
uniformidades ou leis fundamentais da A., que já haviam sido reconhecidas por Platão (Fed., 76 a) e por
Aristóteles (De memória et reminiscentia, II, 451 b 18-20). Em seguida, o fenômeno não atraiu mais a
atenção dos filósofos até a Idade Moderna. Hobbes, em Leviathan, dedica um capítulo (o III) à A. das
imagens, mas foi Locke quem criou a expressão "A. de idéias" e introduziu o fenômeno a ela relativo
como princípio de explicação da vida da consciência. A importância que a A. adquire em Locke deriva do
pressuposto atomístico da sua filosofia: tudo o que a consciência é, nas suas várias manifestações, é pela
combinação variada dos elementos simples fornecidos pela experiência, isto é, das idéias. "Algumas das
nossas idéias têm entre si correspondência e conexão natural, e a tarefa e a excelência da nossa razão
estão em rastreá-las e mantê-las juntas na união e na correspondência que se fundam em serem elas
naturais. Mas, afora isso, há outra A. de idéias que se deve ao acaso e ao hábito" (Ensaio, II, 33, § 5). A
tais combinações acidentais ou habituais de idéias
devem-se alguns fenômenos aberrantes, como a loucura, as simpatias ou antipatias irracionais, as
superstições, etc. Mas nas associações naturais baseiam-se todas as operações do espírito humano: o
conhecimento nos seus vários graus, a imaginação, a vontade, etc. Para Locke, todavia, a A. de idéias
assume formas diferentíssimas. Hume reduziu-as a três princípios apenas: a semelhança, a contigüidade
no tempo e no espaço e causa e efeito (Inq. Cone. Underst, III). Abandonado em filosofia, depois de Kant,
como princípio explicativo de toda a vida espiritual, a A. permaneceu o princípio explicativo da
psicologia científica desde a metade do séc. XIX até os princípios deste século. No período
contemporâneo a psicologia da forma ou ges-taltismo (v.) impugnou o próprio pressuposto atomista em
que se fundava a teoria da associação.
ASSOCIACIONISMO (in. Associationism; fr. Associationnisme, ai. Associazionstheorie, it. Associazionismó). Doutrina filosófica e psicológica cujo princípio explicativo da vida espiritual é a
associação de idéias (v.). O pressuposto do A. é o atomismo psicológico, isto é, a resolução de cada
evento psíquico em elementos simples que são as sensações, as impressões, ou, genericamente, as idéias.
O fundador do A. é Hume, mas um de seus maiores divulgadores foi o médico inglês David Hartley
(1705-57), segundo quem a associação de idéias é, para o homem, o que a gravitação é para os planetas: a
força que determina a organização e o desenvolvimento do todo. O A. encontrou outras manifestações
importantes na obra de J. Mill (1773-1836), que o utilizou na análise dos problemas morais, explicando
pela associação entre o prazer próprio e o alheio a transição da conduta egoísta à conduta altruísta, e de
Stuart Mill (1806-73), que o utilizou no estudo de problemas morais e lógicos. Mas, depois de Stuart
Mill, o A. deixou de ser uma doutrina filosófica viva e permaneceu tão-somente como hipótese
operacional no domínio da psicologia científica, de onde foi excluída só nos últimos decênios por obra da
psicologia da forma (v. PSICOLOGIA).
ASSUNÇÃO (gr. Xf\\\nç, lat. Sumptio-, in. As-sumption, sumption; fr. Assomption; ai. Vorder-satz; it.
Assunzioné). A proposição que se escolhe como premissa do raciocínio; ou então o ato de escolher uma
proposição com essa finalidade (cf. CÍCERO, De divin., II, 53, 108).
Mais precisamente, a proposição que se escolhe como primeira premissa do silogismo e
ASTROLOGIA
86
ATANATISMÓ
que às vezes é também chamada lema (v.) (cf. HAMILTON, Lectures on Logic, I, p. 283).
A A. não implica necessariamente a verdade da premissa que se assume. Pode-se assumir uma proposição
verdadeira ou uma hipótese ou ainda uma proposição falsa com o fim de refutá-la. O termo é equivalente
a posição (v.).
ASTROLOGIA (gr. àotpoA,oyía; lat. Astrologia-, in. Astrology, fr. Astrologie, ai. Astrologie, it.
Astrologia). Crença na influência dos movimentos dos astros sobre o destino dos homens e ciência, ou
pretensa ciência fundada nessa crença. A A. liga-se ao nascimento da astronomia no mundo oriental e
acompanhou a astronomia na primeira parte da sua história. Segundo F. Cumont, foram os caldeus os
primeiros a conceber a idéia de uma necessidade inflexível que regula o universo e a substituir por essa
idéia a idéia do mundo dirigido por deuses, em conformidade com suas paixões. A idéia lhes foi sugerida
pela regularidade dos movimentos dos corpos celestes (CUMONT, OrientalReligions in Roman Paganism,
trad. in., p. 179). Essa crença levou a estabelecer uma correspondência entre o macrocosmo (mundo) e o
microcosmo (homem): correspondência pela qual os eventos de um se refletiriam nos eventos do outro e
seria possível, a partir do conhecimento dos primeiros, predizer de algum modo os segundos. A A.
difundiu-se no Ocidente no período greco-romano. Assim como os antigos caldeus, a filosofia árabe a
justificou com base na necessidade universal que une todos os eventos do mundo e que, partindo de Deus,
como Primeiro Motor, vai até aos eventos humanos. Essa cadeia necessária passa pelos eventos celestes:
os terrestres e os humanos não são determinados diretamente por Deus, mas são determinados por Ele
através dos eventos celestes, isto é, os movimentos dos astros. De modo que tais movimentos são os que
determinam imediatamente os eventos do mundo sublunar e, portanto, do mundo humano; o seu
conhecimento torna possível a previsão destes últimos. As crenças astrológicas eram comuns na Idade
Média, apesar das condenações eclesiásticas: o próprio Dante compartilhava delas (Conv., II, 14; Purg.,
XXX, 109 ss.). No Renascimento, foram defendidas e justificadas por homens como Paracelso, Bruno,
Campanella. Este último dedicou uma obra à A., Astro-logicorum Libri VII, 1629, e dela se valeu para
confirmar seu vaticínio do iminente retorno do mundo à unidade religiosa e política {Atheismus
triumphatus, 1627). Outros filósofos foram hostis à astrologia, embora admitindo a validade da magia.
Assim, p. ex., Pico delia Mirandola, que escreveu as Disputationes adversus astro-logos, em que acusa a
A. de tomar os homens escravos e miseráveis; o mesmo fez Jean Baptiste van Helmont, que negou a
influência dos astros nos acontecimentos humanos (De vita longa, 15, 12).
A A. perdeu fundamento científico com a ciência moderna, que, para afirmar qualquer relação causai,
exige que tal relação se verifique de modo uniforme em um número de casos suficientemente grande. A
relação causai entre os movimentos dos astros e os eventos humanos poderia, portanto, ser reconhecida
como tal só com base em observações repetidas e repetíveis que evidenciassem todos os seus elos
intermediários, de tal modo que o seu funcionamento fosse entendido. Nada de semelhante se verificou na
A., que ainda se baseia em antigos textos e tradições, em simbolis-mos não passíveis de verificação e em
crenças mágicas ou teosóficas. Por outro lado, as crenças astrológicas estão entre as mais difundidas até
mesmo no mundo contemporâneo, tão permeado de espírito científico: talvez o espírito contemporâneo
encontre nelas uma compensação para a falta de segurança característica da sua situação e, nas predições
astrológicas, um meio de delimitar, embora de modo arbitrário e fantástico, as previsões em torno de seu
destino próximo ou remoto.
ASTUCIA DA RAZÃO (in. Astuteness ofthe rason; fr. Astuce de Ia raison-, ai. List der Ver-nunft; it.
Astuzia delia ragionê). Esse foi o nome que Hegel deu ao fato de a Idéia Universal fazer que, na história,
as paixões dos homens atuem como instrumentos seus, gastando-as e consumindo-as para os próprios
fins. "A Idéia paga o tributo da existência e da caducidade não de seu bolso, mas com as paixões dos
indivíduos. César devia cumprir o que era necessário para derrubar a liberdade decrépita; a sua pessoa
pereceu na luta, mas o que era necessário ficou: a liberdade segundo a idéia jazia mais profunda do que o
acontecer externo" (Phil. der Gescbichte, ed. Lasson, pp. 83-84; trad. it., p. 98).
ATANATISMÓ (in. Athanatism- fr. Athana-tisme, ai. Athanatismus-, it. Atanatismó). Assim foi chamada
por alguns autores do séc. XIX a doutrina da imortalidade da alma.
ATARAXIA
87
ATEÍSMO
ATARAXIA (gr. crcapaÇía; in. Ataraxia; fr. Ataraxie, ai. Ataraxie, it. Atarassià). Termo usado
primeiramente por Demócrito (Fr. 191), depois pelos epicuristas e pelos estóicos, para designar o ideal da
imperturbabilidade ou da serenidade da alma, em decorrência do domínio sobre as paixões ou da
extirpação destas (v. APATIA). Analogamente, "o objetivo do ceticismo é a A. nas coisas opináveis e a
moderação nas coisas que são por necessidade" (SEXTO EMPÍRICO, Pirr. hyp., I, 25).
ATEÍSMO (gr. â6eÓTnç; lat. Atheismus; in. Atbeism; fr. Athéisme, ai. Atheismus; it. Ateismó). É, em
geral, a negação da causalidade de Deus. O reconhecimento da existência de Deus pode ser acompanhado
pelo ateísmo se não incluir também o reconhecimento da causalidade específica de Deus. A primeira
análise do A. que a história da filosofia recorda é a de Platão, no X livro das Leis. Platão considera três
formas de A.: I
2
negação da divindade; 2- crença de que a divindade existe, mas que não cuida das coisas
humanas; 3Q
crença de que a divindade pode tornar-se propícia com doações e oferendas. A primeira
forma é o materialismo, que defende que a natureza precede a alma, isto é, que a matéria "dura e mole,
pesada e leve" precede "a opinião, a previsão, o intelecto, a arte e a lei". Esse é o erro de todos os
filósofos da natureza que consideram a água, o ar e o fogo como princípios da coisas e os chamam
"natureza" por entenderem que são a origem delas (Leis, X, 891 c, 892 b). Para refutar o materialismo só
resta demonstrar que a alma precede a natureza; e Platão demonstra que o próprio movimento dos corpos
celestes pressupõe um Primeiro Motor imaterial (v. DEUS, PROVAS DE). A segunda forma de A., que
consiste em julgar que a divindade não se ocupa das coisas humanas, é refutada por Platão com o
argumento de que isso eqüivaleria a admitir que a divindade é preguiçosa e indolente, e a considerá-la
inferior ao mortal mais comum, que sempre quer aperfeiçoar a sua obra, por menor que seja. Enfim, a
maior aberração é a dos maus que crêem poder tornar a divindade propícia com donativos e oferendas.
Esses põem a divindade no mesmo nível dos cães que, amansados com presentes, permitem que os
rebanhos sejam roubados, e abaixo dos homens comuns, que não traem a justiça aceitando presentes
ilicitamente oferecidos. Platão é tão severo com essa última forma de A. que, para evitá-la, desejaria
impedir qualquer forma de sacrifício privado e
admitir só os realizados em altares públicos e com ritual estabelecido (Leis, X, 909 d).
A análise de Platão eqüivale a dizer que a única forma de A. filosófico é ó materialismo naturalista, para o
qual o corpo precede a alma; as outras formas são mais preconceitos vulgares do que crenças filosóficas
(embora a primeira delas, o indiferentismo dos deuses, viesse a ser adotada pelos epicuristas). Um olhar
para o curso posterior da filosofia ocidental mostra que, ao lado do materialismo, podem ser considerados
como formas de A. filosófico o ceticismo, o pessimismo e o panteísmo.
1
Q
Na Idade Moderna, a coincidência entre materialismo e A. foi afirmada por Berkeley, que,
precisamente por força dessa coincidência, foi induzido a sustentar a irrealidade da matéria (v.
IMATERIALISMO). Se se admitir que a matéria é real, a existência de Deus será inútil, porque a própria
matéria vem a ser a causa de todas as coisas e das idéias que estão em nós. A existência da matéria é o
principal fundamento do A., do fatalismo e da própria idolatria (Princ. ofHum. Knowledge, §§ 92-94).
Efetivamente se poderia dizer que um dos fundamentos do A. é a causalidade da matéria e não a sua
realidade. O materialismo setecentista de La Mettrie e de Holbach, assim como o oitocentis-ta de L.
Buchner, Ernst Heckel e Félix Le Dantec, tem esse fundamento. Deus é eliminado como princípio causai
de explicação, porque se admite a matéria como tal.
2
a
A segunda forma de A. filosófico é a cé-tica, cuja primeira manifestação se encontra no neo-acadêmico
Carnéades de Cirene (214-129 a.C). Este não só demonstra a debilidade das provas aduzidas sobre a
existência da divindade, como também mostra as dificuldades inerentes ao conceito de divindade. P. ex.,
diz Carnéades: "Se os deuses existem, são vivos; se vivos, sentem... Se sentem, recebem prazer ou dor. E
se recebem dor, são passíveis de perturbação e de mudanças para pior; logo são mortais" (SEXTO
EMPÍRICO, Adv. math., IX, 139-140). Ponto de vista análogo é o elaborado na Idade Moderna por Hume,
em Diálogos sobre a religião natural. Hume julga impossível uma prova apriorida existência de Deus, já
que a existência é sempre matéria de fato. Quanto às provas a posteriori, ele rejeita a validade das provas
cosmológicas, considerando ilegítimo perguntar-se a causa de um conjunto de indivíduos. "Se se mostra a
causa de cada indivíduo em um conjunto que compreende vinte indivíduos, é
ATEÍSMO
88
ATENÇÃO
absurdo perguntar depois a causa de todo o conjunto, que já foi dada com as causas particulares. Isto quer
dizer que não tem sentido perguntar a causa do mundo na sua totalidade. Valor maior tem a prova físicoteológica, mas esta pode permitir somente remontar a uma causa proporcional ao efeito; e, como o efeito,
isto é, o mundo, é imperfeito e finito, a causa deveria ser igualmente imperfeita e finita. Mas se a
divindade for considerada imperfeita e finita, não há motivo para considerá-la única. Se uma cidade pode
ser construída por muitos homens, por que o universo não poderia ter sido criado por muitas divindades
ou demônios"? ( Works, II, 1827, p. 413). Por fim, a disputa entre teísmo e A. torna-se uma questão de
palavras: "O teísta admite que a inteligência original é muito diferente da razão humana. O ateu admite
que o princípio original da ordem tem alguma analogia remota com a própria razão. Quereis então,
senhores, ficar discutindo o grau de analogia e entrar numa controvérsia que não admite significado
preciso nem, portanto, qualquer conclusão?" (Ibid., 535.) Esse tipo de ceticismo, porém, não é uma forma
de A. professado como muitas vezes ocorre com o materialismo: tende, como se vê, a eliminar a
dramaticidade da polêmica sobre o A. e a demonstrar que, afinal, ela é insignificante.
3
S
A terceira forma de A. é o panteísmo (v.). Também aqui não se trata de um A. professado, mas da
acusação freqüentemente feita aos que identificam Deus com o mundo. Durante muito tempo, Spinoza foi
acusado de A. por ter dito Deus sive natura, na verdade, como notava Hegel, dever-se-ia falar, com mais
exatidão, de acosmismo (v.). Fichte também foi acusado de A. em conseqüência de um artigo publicado
em 1798 no Jornal Filosófico delena, "Do fundamento da nossa crença no governo divino do mundo", no
qual se identificava Deus com a ordem moral do mundo. Por causa da polêmica que se seguiu a esse
artigo, Fichte foi obrigado a demitir-se da Universidade de Iena. Fichte, como Spinoza, rejeitava a
acusação de A.; e como quer que se julgue a questão, é certo que panteísmo não é A. professado.
4
Q
A. professado, em algumas de suas formas, é o pessimismo. A desordem, o mal, a infelicidade do
mundo são, segundo Schopen-hauer, obstáculos insuperáveis tanto para a afirmação do Deus pessoal,
como quer o teísmo, quanto para a identificação do mundo com Deus, feita pelo panteísmo (Selected
Essays, trad. in.
Belfort-Bax, p. 71). Teísmo e panteísmo pressupõem o otimismo que não só é desmentido pelo fatos, pois
vivemos no pior dos mundos possíveis, mas é também pernicioso, porque não faz mais do que atar os
homens à impiedosa e cruel vontade de viver (Pie Welt, II, cap. 46). Na filosofia contemporânea, a
doutrina de Sartre representa um A. pessimista atualizado pelas novas diretrizes da especulação. O
fundamento desse pessimismo não são o mal ou a dor como tais, mas a ambigüidade radical, a incerteza
da existência humana lançada no mundo e dependente só da sua liberdade absoluta, que a condena ao
fracasso. Segundo Sartre, não há Deus, mas há o ser que projeta ser Deus, isto é, o homem: projeto que é,
ao mesmo tempo, ato de liberdade humana e destino que a condena à falência. (Lêtre et le néant, pp. 653
ss.)
ATENÇÃO (in. Attention; fr. Attention, ai. Aufmerksamkeit; it. Attenzioné). Noção relativamente recente
(séc. XVII), com a qual se entende em geral o ato pelo qual o espírito toma posse de forma clara e vivida
de um dos seus possíveis objetos, ou a ■ apresentação clara e vivida de um desses possíveis objetos ao
espírito. A noção de A. encontra-se em Descartes, que a entende como o ato pelo qual o espírito toma em
consideração um único objeto durante algum tempo (Pass. de l'âme, I, § 43). Locke chama de "A." a
atenção passiva com que o espírito é atraído por certas idéias, ao passo que chama de "reflexão" a A. ativa
pela qual ele escolhe certas idéias como objetos privilegiados (Ensaio, II, I, § 8). Diz ele: "Quando
tomamos nota das idéias que se nos apresentam por si e elas são, por assim dizer, registradas na memória,
trata-se da A." (ibid., II, 19, § 1). Leibniz, no entanto, dá sentido ativo à A..- "Damos A. aos objetos que
distinguimos e preferimos aos outros". E como formas da A. enumera a consideração, a contemplação, o
estudo, a meditação (Nouv. ess., II, 19, § 1). Ela constitui a passagem das pequenas percepções à
apercepção (ibid., pref.). A A. conserva esse mesmo caráter ativo em Wolff (Psycbol. emp., § 237) e em
Kant (Antr., I, § 3), que a define como "o esforço de tornar-se consciente das próprias representações".
A partir da segunda metade do séc. XIX, com o surgimento da psicologia científica, a A., considerada
como uma das condições da vida psíquica, é incluída no âmbito dessa ciência. Seu conceito continua
sendo o mesmo que fora formulado pelos filósofos; os psicólogos distinguem a A. espontânea, passiva ou
involuntária,
ATITUDE
89
ATIVIDADE
em que o objeto se impõe à consciência, e a A. ativa, voluntária ou controlada, em que o sujeito escolhe o
objeto da sua atenção. A psicologia contemporânea considera a A. como adaptação ativa a uma situação,
como orientação seletiva em face dos objetos a serem percebidos (cf., p. ex., D. O. HEBB, The
Organization of Behaviour, 1949, p. 4). Com essa noção de A., que se ajusta ao esquema geral
predominante nas ciências antropológicas, segundo o qual toda atividade do homem é a sua resposta a
determinado complexo de estímulos (situações ou problemas), a A. saiu do domínio da pura interioridade
e foi reconhecida como uma forma de comportamento (v.).
ATITUDE (in. Attitude, fr. Attitude, ai. Eins-tellung; it. Atteggiamentó). Termo amplamente empregado
hoje em dia em filosofia, sociologia e psicologia para indicar, em geral, a orientação seletiva e ativa do
homem em face de uma situação ou de um problema qualquer. Dewey considera essa palavra um
sinônimo de hábito (v.) e de disposição (v.); em particular, parece-lhe que ela designa "um caso especial
de predisposição, a disposição que espera prorrom-per através de uma porta aberta" (Human Nature
andConduct, 1922, p. 41). Lewis, analogamente, diz que na A. o que está presente é captado em seu
significado prático e antecipatório, como um indício do que está além, no futuro (An Analysis
ofKnowledge and Valuation, p. 438). Stevenson utilizou amplamente esse termo para fazer a distinção
entre "significado descritivo" e "significado emotivo" das palavras: ter-se-ia o primeiro quando a resposta
ao estímulo é um conjunto de processos mentais cognoscitivos e o segundo, quando a resposta ao
estímulo é um determinado impulso para a ação. Stevenson chama de A. o impulso para a ação que, não
se sabe por que, é qualificada de "emotiva", mas acha difícil demais definir precisamente a A. e, por isso,
assume-a no significado mais genérico de disposição para a ação (Ethics and Lan-guage, 1950, p. 60).
Uma delimitação não mais exata de significado, de resto concordante com os comentários acima citados,
é dada por Richards, que considera as atitudes como "atividades imagísticas e incipientes, ou tendências
para a ação" {Princ. ofLíterary Criticism, 1924; 14a
. ed, 1955, p. 112).
Por outro lado, essa palavra foi usada com o mesmo significado fundamental de disposição por Jaspers,
em Psicologia das visões do mundo (1925). "As A. são disposições gerais, suscetíveis, ao menos em parte, de pesquisa objetiva, assim como as formas transcendentais no sentido kantiano.
São as direções do sujeito e utilizam determinada rede de formas transcendentais" (Psychologie, intr., §
4). Mais precisamente, a A. pode ser definida como o projeto de opções porvindouras em face de certo
tipo de situação (ou problema), ou como um projeto de comportamento que permita efetuar opções de
valor constante diante de determinada situação. Nesse caso, dizer, p. ex., que ".xrtem uma A. contrária ao
casamento" quer dizer que x projeta não se casar; por isso, em geral, a A. de x para S é um projeto de x
referente ao comportamento que terá em face de situações em que Sé possível (cf. ABBAGNANO, Problemi
di sociologia, 1959, cap. V).
ATITUDE NATURAL (ai. Naturlicher Eins-tellung). Husserl chamou assim a A. que consiste em
assumir como existente o mundo comum em que vivemos, formado de coisas, bens, valores, ideais,
pessoas, etc, tal como se oferece a nós. A filosofia fenomenológica pretende sair dessa A. por meio da
dúvida radical, que consiste em suspender a A. natural, isto é, em obstar a qualquer juízo sobre a
existência do mundo e de tudo o que está nele. Só essa nova A. seria o ponto de partida da pesquisa
filosófica ildeen, I, § 27 ss.). (v. EPOCHÉ; SUSPENSÃO
DO ASSENTIMENTO).
ATIVIDADE (in. Activity, fr. Activité, ai. Tãtigkeit ou Aktivitãt; it. Attivita). Esse termo tem dois
significados correspondentes aos dois significados da palavra ação. De um lado, é empregado para
indicar um complexo mais ou menos homogêneo de ações voluntárias (com referência ao 2° significado
da palavra ação), como quando se diz "x desenvolveu intensa A. política". De outro, é usado para indicar
o modo de ser daquilo que age ou tem em seu poder a ação, como quando se diz "O espírito é ativo no
conhecer", para dizer que não é simplesmente receptivo ou passivo. O contrário de A., nesse segundo
sentido, é "passividade", ao passo que o contrário de A. no primeiro sentido é "inércia" ou "inação".
O uso filosófico coincide com o uso da linguagem comum e, portanto, também é dúplice. Todavia,
sobretudo no uso moderno, prevalece o segundo significado. Malebranche (Re-cherchedela vérité, II, 7),
alguns ideólogos franceses e Galluppi (Filosofia delia volontà, I, 6, § 60) utilizam o termo A. para
designar o modo de agir da vontade; mas, ainda nesse caso, o
ATMSMO
90
ATO
significado do termo é o segundo, não o primeiro. Quanto a esse segundo significado, pode-se talvez
remontar a Locke, que distingue a "passividade" do espírito, pela qual ele recebe todas as idéias simples,
da A. pela qual ele "realiza por conta própria numerosos atos" nos quais "exerce poder sobre as idéias
simples" {Ensaio, II, 12, 1). Leibniz (Nouv. ess., II, 21) e Kant usam para esse fim e com o mesmo
significado a palavra espontaneidade (v.), embora em Antropologia (I, § 72
) Kant use a palavra "A.": "No
que concerne ao estado das representações, o meu espírito pode ser ativo, e então demonstra poder
{facultas), ou passivo, e então possui sensibilidade (receptivitas). Um conhecimento encerra em si ambas
as coisas, e a possibilidade de tê-lo é chamada de poder cognoscitivo da parte mais excelente, isto é, da A.
do espírito em ligar as representações ou em separá-las umas das outras". A noção de A., como
espontaneidade pura ou absoluta no sentido de poder criativo, está no cerne da filosofia de Fichte. "A A.
do eu consiste no ilimitado pôr-se", diz Fichte {Wissenschaftslehre, 1794, II, § 4), e, pondo-se a si mesmo,
o eu também põe, ao mesmo tempo, o mundo extenso como seu próprio limite e condição. A partir de
Fichte, a filosofia moderna teve como um de seus temas prediletos "a A. criadora do espírito"; em
algumas, como o atualismo de Gentile, constitui o tema dominante. É claro que, nessas formas extremas,
a noção de atividade perde significado: este deriva da relação com a noção de passividade, enquanto
designa a possibilidade e o poder de ação em face de limites ou condições determinadas, ao passo que,
onde a A. é infinita, não subsistem limites ou condições e a distinção entre A. e passividade não tem
sentido. ATTVISMO (in. Activism; fr. Activisme, ai. Activismus; it. Attivismó). O significado desse termo
deve ser distinguido do de atualismo (v.): este último indica a teoria metafísica segundo a qual a realidade
é ato ou atividade, ao passo que o termo em questão indica a atitude (às vezes racionalizada em teoria
filosófica) que assume como princípio a subordinação de todos os valores, inclusive a verdade, às
exigências da ação, isto é, ao êxito ou ao sucesso da ação (quase sempre, a ação política). O A. vincula-se,
por isso, ao uso deliberado dos mitos (v.), que são construções teoréticas sem nenhuma garantia de
verdade e, em alguns casos, decididamente falsas, mas que são, ou se acreditam, aptas a dirigir a ação
para o êxito. A.,
nesse sentido, é a doutrina de Georges Sorel {Réflexions sur Ia violence, 1908), para quem uma filosofia
social (em particular a que prenuncia a "greve geral") é um mito para unir e inspirar os trabalhadores na
sua luta contra a sociedade capitalista. Nesse sentido, foram formas de A. o fascismo, o nazismo e o
stalinismo (cf. K. MANNHEIM, Ideologie und Utopie, 1929, III, § 2; trad. it., p. 141).
ATLÂNTIDA (gr. 'AxtaxvTíç,; in. Atlantis-, fr. Atlantide, ai. Atlantis; it. Atlantidé). Segundo Timeu, de
Platão, um sacerdote da deusa egípcia Sais teria narrado a Sólon a história da ilha Atlântida, situada além
das Colunas de Hércules, história que se referia ao período anterior ao dilúvio universal. Nessa ilha havia
uma grande monarquia que dominava a Líbia até o Egito e a Europa até a Etrúria. Essa monarquia
procurou vencer e sujeitar também a então cidade de Atenas, que, todavia, combateu sozinha e conseguiu
vencer os invasores, garantindo a liberdade de todos os que habitavam aquém das Colunas de Hércules.
Mais tarde, a A. afundou no mar e desapareceu, tornando impraticável e inexplorável o mar em que estava
situada ( Tim., 24 ss.). A Nova Atlântida é uma obra póstuma de Bacon, publicada em 1627. É a descrição
de uma sociedade em que a ciência, posta a serviço das necessidades humanas, descobriu ou vai
descobrindo as técnicas para fazer o homem dominar o universo. A Nova A. é, portanto, um paraíso da
técnica, onde são levadas à perfeição as invenções e as descobertas de todo o mundo; tem o aspecto de
um enorme laboratório experimental, em que os habitantes procuram "estender os confins do império
humano a todas as coisas possíveis". Os deuses tute-lares da ilha são os grandes inventores de todos os
países e as relíquias sagradas são os modelos das mais raras e importantes invenções.
ATO (gr. èvépYEioc, èvteAixeia; lat. Actus; in. Act; fr. Acte, ai. Akte, it. Atto). Esse termo tem dois
significados: le
de ação, no sentido restrito e específico desta palavra, como operação que emana do
homem ou de um poder específico dele (v. AÇÃO, 2). Dizemos, com efeito, "A. voluntário", "A.
responsável" ou "A. do intelecto", "A. moral", etc.; mas não dizemos "A. dos ácidos sobre os metais" ou
"A. destrutivo do DDT", etc, usando, nesses casos, a palavra "ação"; 2a
de realidade que se realizou ou se
vai realizando, do ser que alcançou ou está alcançando a sua forma plena e final, em contraposição
ATO
91
ATOMISMO
com o que é simplesmente potencial ou possível.
No segundo sentido, essa palavra faz referência explícita à metafísica de Aristóteles e à sua distinção
entre potência e ato. O A. é a própria existência do objeto: está para a potência "assim como construir está
para saber construir, como estar acordado está para dormir, como olhar está para estar de olhos fechados
podendo enxergar, e assim como o objeto extraído da matéria e elaborado à perfeição está para a matéria
bruta e para o objeto ainda nào acabado" (Met., IX, 6,1.048 a 37). Alguns A. são movimentos, outros são
ações: são ações os movimentos que têm fim em si mesmos, p. ex.: ver, entender ou pensar, ao passo que
aprender, caminhar, construir tem finalidade fora de si mesmos, na coisa que se aprende, no ponto a que
se quer chegar, no objeto que se constrói. A ação perfeita, que tem seu fim em si mesma é chamada por
Aristóteles A. final ou enteléquia (v.). Enquanto o movimento é o processo que leva gradualmente ao A. o
que antes estava em potência, a enteléquia é o termo final (telos) do movimento, a sua perfeita realização.
Como tal é também a realização completa, portanto, a forma perfeita do que vem a ser, a espécie e a
substância. O A. precede a potência tanto em relação ao tempo quanto em relação à substância,'pois,
embora a semente venha antes da planta, na realidade ela só pode provir de uma planta. Aquilo que no
devir é último é, substancialmente, primeiro: a galinha é anterior ao ovo (Jbid., IX, 8, 1.049 b 10 ss.). Tais
distinções dominaram por muitos séculos o pensamento ocidental e passaram a fazer parte da linguagem
comum. S. Tomás repropõe essas distinções com sua costumeira clareza a propósito da diferença entre A.
e ação, dizendo: "O A. é duplo, isto é, primeiro e segundo. O A. primeiro é a forma e a integridade da
coisa (forma et integritas rei); o A. segundo é a operação (operatio)" (S. Th., I, q. 48, a. 5; Contra Gent.,
II, 59). Em outros termos, toda realidade como tal é A. e, portanto, a ação também é A.; p. ex., uma
operação da vontade ou do intelecto, embora não se trate, nesse caso, de um objeto existente.
Na conceçâo aristotélica, a distinção entre matéria e A. determina a ordenação hierárquica de toda a
realidade, que vai de um limite inferior extremo, que é a matéria-prima (v.), pura potencialidade
indeterminada, até Deus, que é puro A., sem mescla de potencialidade. Deus é
o Primeiro Motor imóvel dos céus; e, como o movimento dos céus é contínuo, seu motor não só deve ser
eternamente ativo, mas deve ser, por natureza, atividade, absolutamente desprovido de potência. E, como
a potência é matéria, ele é também desprovido de matéria, A. puro (Met., XII, 6, 1.071 b 22). A noção de
A. puro continuou sendo fundamental para a elaboração da idéia de Deus no pensamento ocidental. A ela
recorrem algumas modernas "filosofias do A.", como a de Gentile, que pretende realizar a rigorosa e total
imanência de toda a realidade no sujeito pensante, isto é, no pensamento emato
(Teoriageneraledellospiritocome attopuro, 1916); ou a de Louis Lavelle (LActe, 1937), na qual Deus é
definido como A. participante e a existência do homem como A. participado.
ATO, PSICOLOGIA DO (in. Psychology of the act; fr. Psychologie de Vacte; ai. Akte Psychologie, it.
Psicologia delVattó). Psicologia proposta por Franz Brentano em sua obra Psicologia do ponto de vista
empírico (1874), voltada para a consideração do A. intencional que apresenta determinado conteúdo, em
vez de considerar o próprio conteúdo; p. ex., sentir, imaginar ou querer, em vez das sensações, das
imagens ou das coisas desejadas (v. INTENÇÃO).
ATO FUNDANTE (ai. Begründender Akf). Expressão usada por Husserl (Ideen, I, § 7) para indicar o
procedimento que serve para garantir a validade de uma ciência. Para o naturalista, o A. fundante é
experimentar, que fixa um existente empírico; para o geômetra, que não estuda a realidade, mas
possibilidades ideais, o A. fundante é a visão da essência.
ATÔMICO (in. Atomic, fr. Atomique, ai. Atomik, it. Atômico). Elementar, não redutível a partes
constitutivas mais simples. Fato A.: traduziu-se por essa expressão o que Wittgenstein chamara "estado de
coisas" (Sachverhalte), isto é, o fato enquanto elemento último do mundo (Tractatus, 1922, 2).
Proposição A.: proposição elementar, isto é, a que "afirma a existência de um fato A." (jbid., 4,21).
Corresponde àpropositio categórica da lógica escolástica: é uma proposição imediatamente verdadeira ou
falsa (precisamente como imagem de um fato A.), não decomponível em outras proposições mais simples.
G. P.-N.A.
ATOMISMO (in. Atomism; fr. Atomisme, ai. Atomismiis-, it. Atomismo). Entendem-se por essa palavra
três doutrinas diversas, que têm finalidades diferentes: I
a
o A. filosófico ou naturalis-
ATOMÍSTICO
92
ÁTOMO
mo atomista; 2a
a teoria atômica; 3a
a concepção atomística da realidade psíquica ou social ou da
linguagem.
I
a O A. filosófico é o de Demócrito e Leucipo, dos epicuristas e de Gassendi. É uma filosofia da natureza
que não tem maiores bases experimentais do que a física aristotélica (v. ÁTOMO).
2
a
A teoria atômica (in. Atomic theory, fr. Théorie atomique, ai. Atomtheorie, it. Teoria atômica) é a que
foi formulada na ciência moderna pela primeira vez por Dalton; exprime o modelo que a ciência foi
pouco a pouco fazendo do átomo (v.).
3
a
A concepção atomística (in. Atomistic idea, fr. Idée atomistique, ai. Atomistisches Denken; it.
Concezione atomisticd) consiste em propor, para explicar a vida da consciência, da sociedade ou da
linguagem, uma hipótese análoga à do A. filosófico ou da teoria atômica, afirmando que a consciência, a
sociedade ou a linguagem são constituídas de elementos simples irredutíveis, cujas diferentes
combinações explicam todas as suas modalidades. Assim fazem o associacionismo (v.), para a vida da
consciência, e o individualismo (v.), para a vida da sociedade. Fala-se, portanto, de um A. associa-cionista
(p. ex., dele falavam JAMES, Psycbology, 1,1890, p. 604, e KATZ, Gestaltpsychologie, cap. I). A expressão
"A. social" é usada freqüentemente para designar as doutrinas individualistas que consideram a sociedade
resolúvel inteiramente nos indivíduos que a compõem. Finalmente, a expressão "A. lógico" foi
empregada por Russell em 1918 para indicar a sua filosofia. "O motivo de dar à minha doutrina o nome
de A. lógico é que os átomos aos quais desejo chegar como resíduos últimos da análise são átomos
lógicos, e não átomos físicos" ("ThePhil. of Logical Atomism", in TheMonist, 1918, agora em Logic
andKnowledge, Londres, 1956). Já no livro Método científico em filosofia (1914), falara em "proposição
atômica", entendendo a proposição que exprime um fato, isto é, que afirma que uma coisa tem certa
qualidade ou que certas coisas têm certas relações; e chamara de "atômico" o fato expresso pela
proposição atômica. Tais conceitos também constituem os fundamentos do Tractatus logicophilosophicus (1922) de Wittgenstein. ATOMÍSTICO. V. ATOMISMO. ÁTOMO (gr. CXTOUOV; in.
Atom; fr. Atome, ai. Atom; it. Atomó). A noção de Á. ofereceu à filosofia ocidental uma das mais
importantes
alternativas de especulação e de pesquisa. Foi o instrumento principal da explicação mecânica das coisas
e, em geral, do mundo (v. MECANISMO). Leucipo e Demócrito elaboraram a seguinte noção do séc. V a.C:
o Á. é um elemento corpóreo, invisível pela sua pequenez e não divisível. Os Á. diferem só pela forma e
pela grandeza; unindo-se e desunindo-se no vácuo, determinam o nascimento e a morte das coisas, e
dispondo-se diferentemente determinam a sua diversidade. Aristóteles (Mel, I, 4, 985 b 15 ss.) comparouos às letras do alfabeto, que diferem entre si pela forma e dão lugar a palavras e a discursos diferentes,
dispondo-se e combinan-do-se diferentemente. As qualidades dos corpos dependem, portanto, da
configuração, da ordem ou do movimento dos Á. Por isso, nem todas as qualidades sensíveis são
objetivas e pertencem realmente às coisas que as provocam em nós. São objetivas as qualidades próprias
dos Á.: forma, dureza, número, movimento; mas o frio, o calor, os sabores, as cores, os odores são
somente aparências sensíveis, provocadas por configurações ou combinações especiais de A., mas não
pertencentes aos próprios Á. (DEMÓCRITO, Fr. 5, Diels). O movimento dos Á. é determinado por leis
imutáveis: "Nada, diz Leucipo (Fr. 2), "ocorre sem razão, mas tudo ocorre por uma razão e por
necessidade". O movimento originário dos Á., fazendo-os girar e chocar-se em todas as direções, produz
um vórtice que leva as partes mais pesadas para o centro e impele as outras para a periferia. Seu peso, que
os faz tender para o centro, é, pois, um efeito do seu movimento vorticoso. Desse modo, formam-se
infinitos mundos que, incessantemente, se geram e se dissolvem.
Esses fundamentos, próprios do velho ato-mismo, permaneceram inalterados nas outras formas de
atomismo. A física de Epicuro representa uma repetição da física de Demócrito: na verdade, não tem
muita importância a variante de Epicuro, segundo a qual os Á. caem em linha reta e que se encontram e
produzem vórtices, quando, sem causa, se desviam da trajetória retilínea (CÍCERO, Definibus, 1,18; De
nat. deor, I, 69). A noção de Á. não é utilizada durante toda a Idade Média, quando a única teoria aceita é
a aristotélica, das quatro causas (v. FÍSICA). Nos primórdios da Idade Moderna, embora essa noção retorne
ocasionalmente — p. ex., em Nicolau de Cusa e em Giordano Bruno (De minimo, I, 2) —, só é utilizada
como instrumento de uma teoria sistemática por Pierre
ÁTOMO
93 ATO MONOTÉTICO e POLITÉTICO
Gassendi. Este, porém, admitindo que os Á. são criados por Deus, por Ele dotados de movimento e por
Ele guiados e ordenados mediante uma espécie de alma do mundo, retira da física epicurista seu caráter
materialista e mecânico, transformando-a em física espiritualista e finalista (Syntagma Philosophiae
Epicuri, 1658). Entre-mentes, Descartes dera ensejo ao mecanicismo não-atomístico e considerara
impossível a própria noção de Á. "Se os átomos existissem, deveriam necessariamente ser estendidos e,
nesse caso, por menores que os imaginássemos, sempre poderíamos dividi-los com o pensamento em
duas ou mais partes menores e, assim, considerá-los divisíveis" iPrinc. phil., II, 20). Foi provavelmente
baseado nessa consideração que Leibniz aceitou a noção de um Á. não mais físico, mas psíquico, isto é,
da mônada (v.).
A ciência moderna, embora mecanicista, não se vale, em princípio, do átomo. É verdade que, no final de
Óptica (1704), Newton aduzia um complexo de razões, isto é, de experiências, para admitir que "todos os
corpos são compostos de partículas duras"; e formulava a hipótese de que "Deus, no princípio, tenha dado
à matéria a forma de partículas sólidas, dotadas de massa, duras, impenetráveis e móveis, com dimensões,
configurações, propriedades e proporções com o espaço adequadas a cada fim para o qual as formou"
(Optics, III, 1, q. 3D; mas é também verdade que essas e semelhantes especulações não pertenciam à
ciência, mas à esfera das opiniões particulares do cientista. Na realidade, a hipótese atômica ingressa na
ciência só no início do séc. XIX, por meio da química. A lei das proporções múltiplas, formulada por John
Dalton, exprimia o fato de que, quando uma substância se combina com quantidades diferentes de outra
substância, estas quantidades estão entre si como números simples, isto é, comportam-se como se fossem
partes indivisíveis. Mas as partes indivisíveis outra coisa não são senão átomos. Portanto, a hipótese da
composição atômica da matéria como explicação da lei das proporções múltiplas era proposta pela
primeira vez por Dalton em 1808. Embora suscitasse, imediatamente, uma oposição acirrada por aparecer
como o retorno de uma antiga doutrina metafísica, portanto, como uma invasão do campo da metafísica
por parte da ciência, na realidade essa era uma hipótese aventada para explicar um fato bem verificado. E
mais do que hipótese, essa noção mostrou-se realidade quando, em 1811, a teoria de Avogadro
(sobre a uniformidade do número das partículas contidas em dado volume de gás) permitia estabelecer o
peso dos A. relativamente ao Á. do hidrogênio, assumido como unidade: o que conferia aos A. realidade
física (mensurável). A noção de Á. devia sofrer transformação radical a partir da segunda metade do séc.
XIX, com o estudo dos fenômenos dos gases rarefeitos e das emanações radioativas. O A., indivisível
para a química, não era mais indivisível para a física. Por volta de 1904, Thompson concebia o primeiro
modelo de Á., imaginando-o constituído por uma pequena bola com carga elétrica positiva, em cujo
interior houvesse certo número de elétrons. Mas algumas experiências de Rutherford demonstravam que a
matéria é bem menos compacta do que levaria a supor o modelo atômico de Thompson. Por isso,
Rutherford, por volta de 1911, imaginava a estrutura do A. como um sistema solar em miniatura,
constituído por um núcleo central com carga elétrica positiva (comparável ao Sol) e por vários elétrons
que giram em torno dele (comparáveis aos planetas). Uma inovação ulterior do modelo do Á. foi feita por
Bohr, que, tendo em mente a descoberta do quantum de ação, imaginou que o elétron percorre, em torno
do núcleo, determinado número de elipses e pode saltar de uma elipse para outra, libertando nesse salto
um quantum de energia. A descoberta do princípio de indeterminação (v.) demonstrava, porém, que não é
possível observar por inteiro a trajetória de um elétron e que, por isso, a própria noção de trajetória não
tem significado físico (nada que não seja observável ou mensurável tem significado físico). Mas, então, o
próprio modelo de Á. de Bohr perdia significado físico e deixava de ter a pretensão de ser a imagem exata
do Á. A partir de 1927, isto é, da data em que Heisenberg descobriu o princípio de indeterminação, a
ciência praticamente abandonou qualquer tentativa de descrever o Á. ou de defini-lo de um modo
qualquer. No estado atual das coisas, o adjetivo "atômico" permanece somente para designar a escala em
que certos fenômenos podem ser observados e medidos.
ATO MONOTÉTICO e POLITÉTICO (ai Monothetischer, Polythetischer Akt\ it. Atto mo-notetico,
politeticó). Foram esses os nomes dados por Husserl, respectivamente, à consciência que se constitui na
sua singularidade, transformando os elementos múltiplos em unidade objetiva, e aos mesmos elementos
múlti-
ÁTOMO PRIMEVO
94
AUMENTO e DIMINUIÇÃO
pios, ligados sinteticamente na consciência "plural" (Ideen, I, § 119).
ÁTOMO PRIMEVO (in. Primeval atom, it. Átomo primevo). Hipótese cosmogônica que apresenta o
universo como resultado da desintegração radioativa de um átomo (G. LEMAÍTRE, The Primeval Atom, An
Essay on Cosmogony, 1950) (v. COSMOLOGIA).
ATRIBUTIVA, PROPOSIÇÃO (in. Attributi-veproposition; fr. Proposition attributive, ai. Attri-butáre
Satz; it. Proposizione attributivd). Proposição que atribui ao sujeito uma qualidade, uma condição, uma
atividade ou uma passividade; p. ex., "A água ferve a 100°C" (B. ERDMAN, Logik, I, §§ 48, 307).
ATRIBUTTVA e RETRIBUTIVA, JUSTIÇA (lat. Justitia attributixjiistitia expletrix). Grócio distinguiu
duas espécies de justiça que correspondem, respectivamente, ao direito imperfeito e ao direito perfeito. A
justiça A., que concerne ao direito imperfeito, consiste em dar a outra pessoa aquilo que ela não tem
direito de pretender: portanto, atribui-se alguma coisa que a pessoa antes não possuía. A justiça retributiva concerne ao direito perfeito e consiste em dar ao outro o que este tem o direito de pretender, vale
dizer, a devida recompensa (De jure belli acpacis, I, 1, 8).
ATRIBUTO (lat. Attributum; in. Attribute, fr. Attribut; ai. Attribut; it. Attributó). O termo latino
corresponde, provavelmente, ao que Aristóteles chamava de "acidente por si" (An.post, I, 22, 83 b 19;
Mel, V, 30,1.025 a 30): indica um caráter ou uma determinação que, embora não pertença à substância do
objeto, como decorre da definição, tem causa nessa substância, (v. ACIDENTE). Na Escolástica, esse termo
foi usado quase exclusivamente para indicar os A. de Deus, como bondade, onipotência, justiça,
infinitude, etc, que também são chamados nomesâe Deus (cf. S. TOMÁS, S. Tb., I, q. 33). Esse uso terminológico foi modificado por Descartes com a extensão do termo às qualidades permanentes da substância
finita. Com efeito, Descartes entende por A. as qualidades que "inerem à substância". Por isso, "em Deus
dizemos que não há propriamente modos ou qualidades, mas somente A., porque nenhuma variação se
deve conceber n'Ele. E mesmo nas coisas criadas, o que nelas não se comporta nunca de modo diferente,
como a existência e a duração, não deve ser, na coisa que existe e dura, chamada qualidade ou modo, mas
Á." (Princ. phil., I, § 56). Essa terminologia foi totalmente adotada
por Spinoza, com a única correção de que, desde que não existem substâncias finitas, os atributos podem
ser somente de Deus. "Por A., entendo o que o intelecto percebe da substância como constituindo a
essência dela" (Et., I, 4). Deus ou a substância consta de infinitos A., cada um dos quais exprime a sua
essência infinita e eterna e por isso existe a sua essência infinita e eterna e por isso existe necessariamente
(ibid., I, 11): de tais A. infinitos, porém, conhecemos só dois, quais sejam, o pensamento e a extensão
(ibid., II, 1-2). Por sua imutabilidade e conexão com a substância divina, os atributos são, por sua vez,
eternos e infinitos e é por seu intermédio que os seres finitos (os modos da substância) se originam de
Deus com absoluta necessidade (ibid., I, 21-23).
Na filosofia moderna e contemporânea, a palavra A. é usada raramente, salvo no seu significado lógicogramatical de predicado.
ATUA1ISMO (in. Actualism; fr. Actualisme, ai. Aktualitàtstheorie, it. Attualismo). Toda doutrina que
reconheça como substância ou princípio do ser um ato ou uma atividade. Toda doutrina desse gênero é
uma forma de idealismo, mais precisamente de idealismo romântico. A. é, portanto, a doutrina de Fichte,
que reconhece como princípio a atividade do Eu infinito. A. também é a doutrina de Hegel, para quem a
Idéia é atualidade perfeita de consciência. Na Itália, o termo A. restringiu-se a indicar o idealismo de
Gentile, porquanto reduz toda realidade ao ato do pensamento ou ao "pensamento em ato", ou
"pensamento pensante" (Teoria generale dello spirito come atto puro, 1916). Nesse sentido, Gentile
falava em "atualidade" ou "atuosidade" do espírito; e do espírito como "autoposição", "autocriação" ou
"autóctise". Esse termo deve ser distinguido de ativismo (v.).
ATUANTE (ai. Fungieren). Vocábulo usado por Husserl nas últimas obras para indicar o eu, "sujeito
transcendental" ou "pólo egológico" que "atua para a constituição do mundo", ou seja, age como princípio
constitutivo do "mundo da vida" mesmo antes que a reflexão fenomeno-lógica o reconheça como tal
(Krisis, § 54). Nas obras inéditas, fala também, com sentido análogo, de "intencionalidade atuante" (cf. E.
FINK, em Revue Internationale de Philosophie, 1939, p. 266; G. BRAND, Weltlch undZeit, 1955, § 6).
AUMENTO e DIMINUIÇÃO (gr. aü^noiç rai (p6íatç; lat. Auctio et diminutio, in. Increaseand
diminution; fr. Augmentation etdiminution, ai. Vermehrung und Veringerung; it. Aumento e
AURAVTTALIS
95
AUTOCONSCIÊNCIA
diminuzioné). Segundo Aristóteles, uma das quatro espécies de mudança, mais precisamente a mudança
segundo a categoria da quantidade, também ela redutível, como todas as demais, à mudança de lugar
{Fís., IV, 4, 211 a).
AURAVTTALIS. Termo empregado porJean Baptiste van Helmont (1577-1644), para indicar a força que
move, anima e ordena os elementos corpóreos.
AUSÊNCIA. V. NADA.
AUTARQUIA ou AUTARCIA (gr. cràrápKeta; in. Self-sufficiency, fr. Autarchie, ai. Autarkie, it.
Autarchia). A condição de auto-suficiência do sábio, para quem ser virtuoso basta para ser feliz, segundo
os cínicos (DIÓG. L., VII, 11) e os estóicos {ibid., VII, 1, 65).
AUT AUT. É o título de uma das primeiras obras de Kierkegaard (1843), título que exprime a alternativa
que se oferece à existência humana, de duas formas de vida, ou, como diz Kierkegaard, de dois "estados
fundamentais da vida": a vida estética e a vida moral. Entre esses dois estados, assim como entre eles e o
estado religioso, que Kierkegaard analisou em Temor e tremor (1843), não há passagem nem
possibilidade de conciliação, mas abismo e salto. Kirkegaard contrapôs o aut aut, isto é, a forma da
alternativa, à forma da dialética de Hegel, na qual há sempre conciliação, síntese e harmonia entre os
opostos (v. 'DIALÉTICA).
AUTÊNTICO (in. Authentic, fr. Authentique, ai. Authentiscb, it. Autentico). Termo empregado por
Jaspers (ao lado do termo inautêntico, simétrico e oposto) para indicar o ser que é próprio do homem, em
contraposição à perda de si mesmo ou de sua própria natureza, que é a inautenticidade. "O A", diz
Jaspers, "é o mais profundo, em contraposição ao mais superficial; p. ex., o que toca o fundo de toda
existência psíquica contra o que lhe aflora à epiderme, o que dura contra o que é momentâneo, o que
cresceu e se desenvolveu com a própria pessoa contra o que a pessoa acolheu ou imitou"
{PsychologiederWeltanschauungen, 1925, intr., § 3, 1). Heidegger expressou em outros termos a mesma
oposição: "Precisamente porque o Ser-aí (isto é, o homem) é essencialmente a sua possibilidade, esse ente
pode, no seu ser, escolher-se e conquistar-se ou perder-se, ou seja, não se conquistar ou conquistar-se só
aparentemente" (Sein undZeit, 1927, § 9). A possibilidade própria do Ser-aí é a morte: por isso, "O Ser-aí
é autenticamente ele mesmo só no isolamento originário da decisão tácita e votada à
angústia" {ibid., % 64). Por outro lado, a existência inautêntica é caracterizada pela tagarelice, pela
curiosidade e pelo equívoco, que constituem o modo de ser cotidiano, impessoal do homem e
representam, portanto, uma decadência do ser em relação a si mesmo {ibid., % 38). Deve-se, porém,
advertir que a distinção e a oposição entre autenticidade e inautenticidade não implicam nenhuma
valorização preferencial. A inautenticidade faz parte da estrutura do ser tanto quanto a autenticidade. "O
estado de decadência do Ser-aí não deve ser entendido como uma queda de um 'estado original' mais puro
e mais alto. De algo semelhante não só não temos nenhuma experimentação ôntica, como nem mesmo o
caminho de uma possível interpretação ontológica" {ibid., % 38). Com sentido análogo ao de Jaspers e de
Heidegger, as duas palavras têm sido usadas com freqüência na filosofia contemporânea.
AUTISMO (in. Autism; fr. Autisme, ai. Autis-mus-, it. Autismo). Termo criado por Bleuler {Lehrbuch der
Psychiatrie, 1923) para indicar a atitude que consiste na absorção do indivíduo em si mesmo, com a
conseqüente perda de qualquer interesse pelas coisas e pelos outros. E um egocentrismo (v.) patológico.
AUTOCENTRAUDADE (in. Self-centrality, fr. Autocentralitê, ai. Selbstcentralitü; it. Auto-centralitâ).
Expressão empregada por Dilthey em Construção do mundo histórico. "Assim como o indivíduo, cada
sistema cultural, cada comunidade tem em si o seu centro. Nele estão ligadas a um todo único a
interpretação da realidade, a valorização e a produção dos bens" {Gesam. Schrift., VII, p. 154). A A. das
estruturas históricas revela-se eminentemente nas épocas, cada uma das quais é um horizonte fechado, no
sentido de que as pessoas que nela vivem têm em comum a medida do seu agir, do seu sentir e do seu
entender.
AUTOCONSCIÊNCIA (in. Self-consciousness, fr. Autoconscience, ai. Selbstbewusstsein; it. Autocoscienzd). Esse termo tem significado e história diferentes de consciência (v.). Na realidade, não
significa "consciência de si", no sentido de cognição (intuição, percepção, etc.) que o homem tenha de
seus atos ou de suas manifestações, percepções, idéias, etc, tampouco significando retorno à realidade
"interior", de natureza privilegiada; é a consciência que tem de si um Princípio infinito, condição de toda
realidade. Esse termo também nada tem a ver com conhecimento de si (v.), que designa o conhe-
AUTOCONSCIÊNCIA
96
AUTOCONSCIÊNCIA
cimento mediato que o homem tem de si como de um ente finito entre os outros.
Nesse sentido, pode-se dizer que a história desse termo começa com Kant, que o usou como alternativa
para o termo consciência (v.). O próprio Kant resumiu, em uma nota da Antropologia (§ 4), a sua doutrina
a esse respeito. "Se nós representarmos a ação (espontaneidade) interna pela qual é possível um conceito
(um pensamento), isto é, a reflexão, e a sensibilidade (receptividade), pela qual é possível uma percepção
(perceptió) ou uma intuição empírica, isto é, a apreensão, providas ambas de consciência, a consciência
de si mesmo (apperceptio) poderá ser dividida em consciência da reflexão e em consciência da apreensão.
A primeira é consciência do intelecto; a segunda, do sentido interno; aquela é chamada de apercepção
pura (e, falsamente, de sentido íntimo) e esta é chamada de apercepção empírica. Em psicologia,
indagamo-nos sobre nós mesmos segundo as representações do nosso sentido interno; em lógica, segundo
aquilo que a consciência intelectual nos oferece. Assim, o eu nos aparece duplo (o que pode ser
contraditório): 1Q
o eu como sujeito do pensamento (na lógica), ao qual se refere a apercepção pura (o eu
que só reflete) e do qual nada se pode dizer exceto que é uma representação de todo simples; 2a
o eu como
objeto da apercepção e, portanto, do sentido interno, que inclui uma multiplicidade de determinações que
possibilitam a experiência interna." A A. não é, portanto, a consciência (empírica de si), mas a
consciência puramente lógica que o eu tem de si como sujeito de pensamento, na reflexão filosófica.
Sobre o eu de que se tem consciência na apercepção pura, Kant falou na primeira edição da Crítica da
Razão Pura como "eu estável e permanente que constitui o correlato de todas as nossas representações",
ao passo que, na segunda edição da obra, ele se tornou pura função formal, desprovida de realidade
própria, mas ainda condição de todo conhecimento, aliás, "princípio supremo do conhecimento" enquanto
possibilidade da síntese objetiva na qual consiste a inteligência. Precisamente por sua natureza funcional
ou formal, o eu puro, ou A. transcendental, não é um eu "infinito" e não tem poder criativo: pode ordenar
ou unificar o material, mas esse material deve ser-lhe dado e, portanto, deve ser um material sensível.
Fichte transforma esse conceito funcional kantiano em conceito substancial: faz dele um Eu infinito,
absoluto e criador, considerando, portanto, a A. como autoprodução ou autocriação. A A. torna-se, assim,
o princípio não só do conhecimento, mas da própria realidade; e princípio não no sentido de condição,
mas de força ou atividade produtiva. Autoproduzindo-se, o Eu produz, ao mesmo tempo, o não-eu, isto é,
o mundo, o objeto, a natureza. Diz Fichte: "Não se pode pensar absolutamente em nada sem pensar ao
mesmo tempo no próprio Eu como consciente de si mesmo; não se pode nunca abstrair da própria A." (
Wissenschaftslehre, 1794, § 1, 7). Mas tal A. é, na realidade, o princípio criador do mundo: "O Eu de cada
um é, ele próprio, a única Substância suprema", diz Fichte criticando Spinoza (Ibid., § 3, D 6); "A
essência da filosofia crítica consiste no fato de que um Eu absoluto é colocado como absolutamente
incondicionado e não determinável por nada mais alto".
Essa noção de A. torna-se o fundamento do Idealismo romântico. Diz Schelling: "A A. da qual nós
partimos é ato ijno e absoluto; e com esse ato uno é posto nâd só o próprio Eu com todas as suas
determinações, mas também qualquer outra coisa que, em geral, é posta no lugar do Eu... O ato da A. é
ideal e real ao mesmo tempo e absolutamente. Graças a ele, o que foi posto realmente torna-se também
real idealmente e o que se põe idealmente é posto também realmente" (.System des transzendentalen
Ideal, 1800. seção III, advertência). Quanto a Hegel, já em Propedêutica filosófica (Doutrina do conceito,
§ 22), dizia: "Como A. o Eu olha para si mesmo, e a expressão dela na sua pureza é Eu = Eu, ou: Eu sou
Eu"; e na Enciclopédia (§ 424): "A verdade da consciência é a A., e esta é o fundamento daquela; de
modo que, na existência, a consciência de um outro objeto é A.; eu sei o objeto como meu (ele é minha
representação) e, por isso, sei-me a mim mesmo nele". Na sua forma mais elevada, a A. é "A. universal",
isto é, razão absoluta. "A A., ou seja, a certeza de que suas determinações são tão objetivas —
determinações da essência das coisas — quanto seus próprios pensamentos, é a razão; esta, enquanto tem
tal identidade, é não só a substância absoluta, mas também a verdade como saber" (Ene, § 439): isto é, a
razão como substância ou realidade última do mundo.
A A. como autocriação e, por isso, criação da realidade total, permanece como noção dominante do
Idealismo romântico, não só na sua forma clássica (aqui mencionada), mas tam-
AUTOCONSERVAÇAO 97
AUTONOMIA
bém nas suas formas recorrentes na filosofia contemporânea, quais sejam, o idealismo anglo-saxão e o
idealismo italiano (v. IDEALISMO). Fora do Idealismo, essa noção não pode ser utilizada e nem apresenta
problemas, já que os problemas filosóficos, psicológicos e sociológicos inerentes à consciência de si
obviamente só surgem quando por tal consciência se entendem situações, condições ou estados de fato
limitados e determináveis, e não uma autocriação absoluta, que é a autocriação do mundo.
AUTOCONSERVAÇAO (lat. Sui consetvatio, in. Self-preservation; fr. Conservation de soi; ai.
Selbsterhaltung, it. Autoconservazioné). É o bem supremo a que tendem todos os seres da natureza,
segundo Telésio (Zterer. nat., LX, 2). Herbart chama A. à reação de um ente à ação de um outro ente: na
alma o ato de A. é uma representação (Allgemeine Metaphysik, 1878, II, § 234).
AUTÓCTISE. V. ATUALISMO.
AUTODETERMINAÇÃO. V. LIBERDADE.
AUTO-EVTDÊNCIA(in. Self-evidence, ai. Sel-bstevidenz; it. Autoevidenzd). Termo empregado às vezes
para indicar o cogito cartesiano como evidência ou manifestação imediata do eu à consciência (v.).
AUTOLÓGICO, HETEROLÓGICO (in. Au-tological, heterological; fr. Autologique, hétéro-logique, ai.
Autologisçh, heterologisch; it. Antológico, eterologico). A. é o adjetivo que denota uma propriedade que
ele mesmo possui: como polissílabo, comum, significante, etc. Hetero-lógico é, ao contrário, o adjetivo
que denota uma qualidade que ele não possui: como vivo, inútil, ambíguo, etc. A questão de saber se o
adjetivo heterológico é, por sua vez, A. ou heterológico dá origem a uma das antinomias lógicas, que foi
exposta por K. Grelling (Bemer-kungen zu den Paradoxien von Russell und Burali-Forti, em
Abhandlungen der Frieschen Schule, 1908) (v. ANTINOMIAS).
AUTÔMATO (gr. aÜTÓLtottoV; lat. Automa-ton-, in. Automaton; fr. Automate, it. Automd). O que se
move por si, em geral, uma coisa ina-nimadâ que se move por si ou, mais especificamente, um aparelho
mecânico que realiza algumas das operações consideradas próprias do animal ou do homem.
Tem-se notícia de A. fabulosos, construídos pelos antigos. No séc. XVIII, um mecânico francês construiu
um A. que tocava flauta. Samuel Butler, em textos romanceados (Darwin entre as máquinas, 1863;
Lucubratio ebria, 1865; Erewhon, 1872), falava de máquinas que tinham
poderes humanos e entravam em conflito com o homem. O inglês Charles Babbage (1792-1871) projetou
uma máquina calculadora que, contudo, nunca foi construída.
Um A. lógico, ou seja, uma máquina capaz de combinar proposições e delas tirar conclusões, foi
construído por Stanley Jevons em 1869. Em 1881, John Venn construiu um diagrama que podia ser
empregado para ilustrar as relações entre os valores de verdade das proposições. Em 1885, Allan
Marquand projetou uma máquina análoga à de Jevons e em 1947, em Harvard, T. A. Kalin e W. Burkhart
construíram uma calculadora elétrica para a solução de problemas elaborados com base na álgebra de
Boole, cujo objeto são variáveis que podem assumir só dois valores {verdadeiro ou falso, indicados,
respectivamente, com 1 e 0), podendo, por isso, ser aplicada em todos os casos em que se tenha escolha
entre duas alternativas.
A teoria dos A. em sentido moderno, ou seja, das máquinas calculadoras, foi desenvolvida por A. M.
Turing em 1936. Em geral, as calculadoras executam o programa com base no qual foram projetadas, mas
realizam as operações com rapidez e segurança muito maiores do que as do homem. Por isso, essas
calculadoras são "poupadoras de tempo". O biólogo inglês R. W. Ashby distinguiu-as dos "amplificadores
da inteligência", que, em certo grau, têm aquilo que, no homem, se chama de "iniciativa". Entre estes,
estão em fase de execução ou de estudo os A. que jogam e os A. que aprendem. Von Neumann também
falou de A. que se reproduzem ( Theory of Self-Reproducing Automata, 1966). Para as teorias relativas a
esses A., ver CIBERNÉTICA.
AUTÔNIMO. V. Uso.
AUTONOMIA (in. Autonomy, fr. Autonomie, ai. Autonomie, it. Autonomia). Termo introduzido por Kant
para designar a independência da vontade em relação a qualquer desejo ou objeto de desejo e a sua
capacidade de determinar-se em conformidade com uma lei própria, que é a da razão. Kant contrapõe a A.
à heteronomia, em que a vontade é determinada pelos objetos da faculdade de desejar. Os ideais morais
de felicidade ou perfeição supõem a heteronomia da vontade porque supõem que ela seja determinada
pelo desejo de alcançá-los e não por uma lei sua. A independência da vontade em relação a qualquer
objeto desejado é a liberdade no sentido negativo, ao passo que a sua legislação própria (como "razão
prática") é a liberdade no sentido positivo. "A lei moral
AUTO-OBSERVAÇÃO
98
AUTORIDADE
não exprime nada mais do que a A. da razão pura prática, isto é, da liberdade" iCrít. R. Prática, I, § 8).
Em virtude de tal A., "todo ser racional deve considerar-se fundador de uma legislação universal"
iGrundlegungzurMet. der Sitten, II, B A 77). Esse ficou sendo o conceito clássico da A. Mais
genericamente, fala-se hoje, p. ex., de "princípio autônomo" no sentido de um princípio que tenha em si,
ou ponha por si mesmo, a sua validade ou a regra da sua ação. AUTO-OBSERVAÇÃO, AUTOREFLEXÃO,
AUTOSCOPIA. V. INTROSPECÇÀO.
AUTO-REFERÊNCIA(in. Self-referencé). Com esse termo, equivalente a reflexividade (v.), em
Principia Mathematica (intr., cap. II, p. 64). de Whitehead e Russell, indica-se a característica comum das
antinomias lógicas no sentido de que elas nascem do procedimento pelo qual um conceito ou nome é
aplicado a si mesmo (v. ANTINOMIA).
AUTORIDADE (lat. Auctoritas; in. Authority, fr. Autorité, ai. Autoritát; it. Aurotitâ). 1. Qualquer poder
exercido sobre um homem ou grupo humano por outro homem ou grupo. Esse termo é generalíssimo e
não se refere somente ao poder político. Além de "A. do Estado" existe a "A. dos partidos" ou a "A. da
Igreja", bem como a "A. do cientista xT a quem se atribui, p. ex., o predomínio temporário de certa
doutrina. Em geral, A. é, portanto, qualquer poder de controle das opiniões e dos comportamentos
individuais ou coletivos, a quem quer que pertença esse poder.
O problema filosófico da A. diz respeito à sua justificação, isto é, ao fundamento sobre o qual pode
apoiar-se sua validade. Podem-se distinguir as seguintes doutrinas fundamentais: I
a
o fundamento da A. é
a natureza; 2- o fundamento da A. é a divindade; 3a
o fundamento da A. são os homens, isto é, o consenso
daqueles mesmos sobre os quais ela é exercida.
\- A teoria segundo a qual a A. foi estabelecida pela natureza é a aristocrática, comum a Platão e a
Aristóteles. Segundo essa teoria, a A. deve pertencer aos melhores e é a natureza quem se incumbe de
decidir quem são os melhores. Platão, de fato, divide os homens em duas classes: os que são capazes de
se tornarem filósofos e os que não o são (Rep., VI, 484 b). Os primeiros são movidos naturalmente por
uma tendência irresistível à verdade iibid., 485 c); os segundos são "naturezas vis e iliberais" que nada
têm em comum com a filosofia iibid., 486 b). A divisão entre os que estão destinados a possuir
e a exercer a A. e os que estão destinados a submeter-se-lhe é, portanto, feita pela natureza; a educação
dos filósofos não faz senão salvaguardar e desenvolver o que a natureza dispôs. Essa desigualdade radical
dos homens como fundamento natural da A. é também a doutrina de Aristóteles. "A própria natureza
ofereceu um critério discriminativo fazendo que dentro de um mesmo gênero de pessoas se
estabelecessem as diferenças entre os jovens e os velhos; e, entre estes, a uns incumbe obedecer, a outros
mandar..." iPol, 1.333 a). Mas a diferença entre jovens e velhos é temporária; os jovens ficarão velhos e,
por sua vez, comandarão. A diferença substancial e fundamental é entre o pequeno número de cidadãos
dotados de virtudes políticas, sendo, portanto, justo que se alternem no governo, e a maioria dos cidadãos
comuns, desprovidos daquelas virtudes e destinados a obedecer iibid., II, 2, 1.261 a). O teorema
fundamental dessa concepção de A. é, portanto, a divisão natural dos cidadãos em duas classes, das quais
só uma possui^ como apanágio natural o direito de exercer'a A. Desse ponto de vista, o critério de
distinção das duas classes tem pouca importância: o importante é a distinção. Todos os aristocratismos
têm em comum esse teorema e essa concepção da autoridade: encontram-se, p. ex., no racismo, bem
como em Tónnies, segundo o qual há três espécies de dignidade ou A.: "A dignidade da idade, a
dignidade da força, a dignidade da sabedoria ou do espírito, que se encontram unidas na dignidade do pai
quando protege, exige e dirige" iGemeinschaft und Gesellschaft, 1887, I, 5).
2
a
A segunda teoria fundamental é a de que a A. se baseia na divindade. Essa é a doutrina exposta no
capítulo XIII da Epístola aos romanos de S. Paulo: "Toda alma esteja sujeita às potestades superiores,
porque não há potestade que não venha de Deus; e as potestades que há foram ordenadas por Deus. Por
isso, quem resiste à potestade resiste à ordenação de Deus; e os que resistem trarão sobre si mesmos a
condenação. Porque os magistrados não são terror para as boas obras, mas para as más. Queres tu, pois,
não temer a potestade? Faze o bem, e terás o seu louvor. Porque ela é ministra de Deus para teu bem.
Mas, se fizeres o mal, teme, porque ela não traz em vão a espada. Pois é ministra de Deus, vingadora para
o castigo daquele que pratica o mal. Por isso, é necessário que lhe estejais sujeitos, não somente por causa
do castigo, mas também por obriga-
AUTORIDADE
99
AUTORIDADE
ção de consciência" (Ad rom., XIII, 1-5). Esse documento foi fundamental para a concepção cristã de A.,
que foi defendida por S. Agostinho (Deciv. Dei, V, 19; cf. V, 21), Isidoro de Sevilha (Sent., III, 48) e
Gregório Magno, que insiste no caráter sagrado do poder temporal, a ponto de considerar o soberano
como representante de Deus na Terra. Substancialmente, a mesma tese foi adotada por S. Tomás: "De
Deus, como do primeiro dominante, deriva todo domínio" (De regimineprincipium, III, 1). Essa
concepção coincide com a primeira num caráter negativo, isto é, em tornar a A. totalmente independente
do consenso dos súditos. Mas distingue-se da primeira num caráter fundamental: justifica toda A. que seja
exercida defacto. Enquanto a primeira não exige que a classe destinada a mandar mande sempre de fato (e
para Platão, com efeito, a questão não se formula assim), a segunda, ao contrário, implica que toda A. que
de fato seja exercida, tendo sido disposta ou estabelecida por Deus, é sempre plenamente legítima. Este é
o teorema típico da concepção em tela: teorema que permite reconhecê-la mesmo nas formas mais ou
menos conscientemente mistificadas. Quando, p. ex., Hegel afirma que o Estado é "a realização da
liberdade" ou "o ingresso de Deus no mundo" (Fil. do dir., § 258, adendo), estabelece uma coincidência
entre aquela que, para ele, é a mais elevada e a realidade histórica do Estado, isto é, justifica qualquer
poder de fato, segundo a máxima de sua filosofia: "Entender o que é é tarefa da razão, porque o que é é
razão" (ibid., pref.). Segundo esse ponto de vista, A. e força coincidem: quem possui força para im-por-se
não pode deixar de gozar de uma A. válida, já que toda força é desejada por Deus ou é divina.
3
a
A terceira concepção de A. opõe-se precisamente a esse teorema. A A. não consiste na posse de uma
força, mas no direito de exercê-la; tal direito deriva do consenso daqueles sobre quem ela é exercida. Essa
doutrina nasceu com os estóicos e seu primeiro grande expositor foi Cícero. Seu pressuposto fundamental
é a negação da desigualdade entre os homens. Todos os homens receberam da natureza a razão, isto é, a
verdadeira lei que comanda e proíbe retamente; por isso, todos são livres e iguais por natureza (CÍCERO,
Deleg., 1,10, 28; 12, 33). Assim sendo, só dos próprios homens, da sua vontade concorde podem originarse o fundamento e o princípio da autoridade. "Quando os
povos mantêm íntegro o seu direito, nada há de melhor, de mais livre, de mais feliz, uma vez que são
senhores das leis, dos juízos, da guerra, da paz, dos tratados, da vida e do patrimônio de cada um" (Resp.,
I, 32, 48). Cícero achava que só um estado assim pode ser chamado legitimamente de república, isto é,
"coisa do povo" (ibid., I, 32, 48). Mas às vezes o reconhecimento de que a fonte da A. está no povo une-se
ao reconhecimento do caráter absoluto da própria A. Isso acontece no Digesto, em que Ulpiano diz: "O
que agradou ao príncipe tem valor de lei", mas acrescenta imediatamente: "porquanto foi com a lei regia,
com que se regulamentou o poder dele, que o povo lhe conferiu toda a sua A. e todo o seu poder" (Dig., I,
4, 1). Um dos teoremas típicos desse ponto de vista é o caráter de lei que se reconhece nos costumes: de
fato, se as leis não têm outro fundamento senão o juízo do povo, as leis que o próprio povo aprovou,
mesmo sem escrever, têm o mesmo valor das que foram escritas (ibid., I, 3, 32). Os grandes juristas do
Digesto admitiam, portanto, que a única fonte da A. era o povo romano (R. W.-A. J. CARLYLE, History
ofMediaeval Política! Theory in the West, II, I, 7; trad. it., pp. 369 ss.). Foi essa a forma assumida, na
Idade Média, pela doutrina do fundamento humano da autoridade. Diz Dante: "O povo romano, por
direito e não por usurpação, assumiu a tarefa do monarca, que se chama império, sobre todos os mortais"
(DeMon., II, 3). Do mesmo modo, Ockham afirmava que "o império romano foi certamente instituído por
Deus, mas através dos homens, isto é, por intermédio dos romanos" (Dialogus inter magistrum et discipulutn, III, tract. II, lib. I, cap. 27, em GOLDAST, Monarchia, II, p. 899). A própria A. papal, segundo
Ockham, é limitada pelas exigências dos direitos e da liberdade daqueles sobre os quais se estende e é,
portanto, a A. de um principado ministrativus, não dominativus (De impera-torum etpontificumpotestate,
VI). E, à pergunta sobre quais seriam os direitos e as liberdades que a própria A. papal deve respeitar,
Ockham responde que são os mesmos que cabem também aos infiéis, tanto antes quanto depois da
encarnação de Cristo, já que os fiéis não devem nem deverão estar em condições piores do que aquelas
em que estiveram os infiéis tanto antes quanto depois da encarnação de Cristo (ibid., DC). Marsílio de
Pádua afirmava claramente a tese geral implícita em tais idéias. "O legislador, isto é, a primeira e efetiva
causa eficiente da lei, é
AUTORIDADE
100
AXIOCÊNTRICO
o povo ou o conjunto de cidadãos, ou ainda a parte predominante deles, que comanda e decide, por sua
escolha ou vontade em assembléia geral e em termos precisos, que certos atos humanos devem ser
praticados e outros não, com penalidades ou punições físicas". (Defensorpacis, I, 12, 3). Nicolau de Cusa
afirmava, não menos explicitamente, com referência à A. eclesiástica: "Como todos os homens são
naturalmente livres, qualquer A. que afaste os súditos da prática do mal e limite sua liberdade com o
temor de sanções deriva só da harmonia e do consentimento dos súditos, quer resida na lei escrita, quer na
viva, representada por aquele que governa" (De concordantia catholica, II, 14). No mundo moderno, o
predomínio do contratualismo (v.) e do jusna-turalismo (v.) determinam o predomínio dessa doutrina. E,
embora hoje contratualismo e jusnaturalismo não possam ser invocados como justificações suficientes do
Estado (v.) e do direito (v.), a tese da origem humana da A. não é posta em dúvida. A própria doutrina de
Kelsen, ao atribuir a A. à ordenação jurídica, não é mais do que uma especificação da tese tradicional. Diz
Kelsen: "O indivíduo que é ou tem A. deve ter recebido o direito de promulgar ordens obrigatórias, de
modo que outros indivíduos sejam obrigados a obedecer. Tal direito ou poder pode ser conferido a um
indivíduo somente por uma ordenação normativa. A A. é, portanto, origina-riamente a característica de
um ordenamento normativo" (General Tbeory ofLaw and State, 1945, II, cap. VI, C, h; trad. it., p. 389).
Mas além desse ponto de vista formal está o problema das formas ou dos modos com que o consenso que
funda a A. pode ser exercido ou expresso, além do problema dos limites ou da extensão que ele pode ou
deve ter em cada campo. É claro, p. ex., que, em política, a A. deve ter tarefas e extensão maiores do que
no campo da pesquisa científica e que, portanto, em política o consenso que a valida deve ter limites e
extensão e ser exercido e expresso com formas e características diferentes das assumidas no campo
científico. O reconhecimento que exprime aceitação ou consenso está na base de toda A.: as modalidades,
as formas e os limites institucionais ou não desse reconhecimento podem ser muito diferentes e
constituem problemas fundamentais de política geral e especial.
2. Na filosofia medieval, auctoritas é uma opinião particularmente inspirada pela graça
divina e, portanto, capaz de guiar e corrigir o trabalho de indagação racional. Auctoritas pode ser a
decisão de um concilio, uma máxima bíblica, a sententia de um Padre da Igreja. O recurso à A. é uma das
características típicas da filosofia escolástica, pois o filósofo, individualmente, quer sentir-se sempre
apoiado e sustentado pela responsabilidade coletiva da tradição eclesiástica. Não faltaram, porém, nem
mesmo na Escolástica, rebeliões contra a A. nesse sentido: como a de Abelardo, que afirmou que a A. só
tem valor enquanto a razão estiver oculta, mas que passa a ser inútil quando a razão tem como verificar
por si mesma a verdade (Theol. cbrist, III, ed. Migne, col. 1.226). A filosofia moderna caracteriza-se pelo
abandono do princípio de A., ao menos como princípio explicitamente assumido para a disciplina e a
orientação da pesquisa. De qualquer forma, a A. em filosofia representa a voz da tradição religiosa, moral,
política ou mesmo filosófica; e mesmo quando não se apoia na força das instituições políticas que nela se
fundam, essa voz age sobre a pesquisa filosófica tanto de forma explícita, com o prestígio que confere às
teses que apoia, quanto de forma sub-reptícia e disfarçada, impedindo e limitando a indagação e
prescrevendo ignorância e tabus.
AUTO-SUFICIÊNCIA. V. AUTARQUIA.
AVERROÍSMO (in. Averroism; fr. Averroisme, ai. Averroismus-, it. Averroismó). Doutrina de Averróis
(Ibn-Rosch, 1126-98), como foi entendida e interpretada pelos escolásticos medievais e pelos aristotélicos
do Renascimento. Resumia-se nos seguintes fundamentos: I
a eternidade e necessidade do mundo: tese
contrária ao dogma da criação; 2a
separação do intelecto ativo e passivo da alma humana e sua atribuição
a Deus; essa tese, atribuindo à alma humana só uma espécie de imagem do intelecto, despojava-a de sua
parte mais alta e imortal; 3a
doutrina da dupla verdade, isto é, de uma verdade de razão, que se pode
extrair das obras de Aristóteles, o filósofo por excelência, e de uma verdade de fé: ambas podem opor-se.
A principal personalidade do A. latino foi Sigiero de Brabante, nascido por volta de 1235 e falecido entre
1281 e 1284.
AXIAL, ÉPOCA. V. ÉPOCA.
AXIOCÊNTRICO (in. Value-centric). Termo introduzido recentemente na filosofia americana para
designar a doutrina que afirma a prioridade do valor sobre a realidade, do dever ser sobre o ser, no sentido
de que também o juízo
AXIOLOGIA
101
AXIOMA
existencial implica a distinção de valor entre verdade e falsidade. (Cf. E. G. SPAULDING, The
NewRationalism, 1918, pp. 206 ss.; W. M. URBAN, The Intelligible World, 1929, pp. 61 ss.).
AXIOLOGIA (in. Axiology, fr. Axiologie, ai. Axiologie, it. Axiologid). A "teoria dos valores" já fora, há
alguns decênios, reconhecida como parte importante da filosofia ou mesmo como a totalidade da filosofia
pela chamada "filosofia dos valores" e por tendências congêneres (v. VALOR) quando, no início de nosso
século, a expressão "axiologia" começou a ser empregada em seu lugar. Os primeiros textos em que esse
termo aparece são: P. LAPIE, Logique de Ia volonté, 1902, p. 385; E. VON HARTMANN, Grundriss der
Axiologie, 1908; W. M. URBAN, Valuation, 1909. Esse termo teve grande aceitação, ao contrário de
timologia, proposto para a mesma ciência (KREIBIG, Psychologische Grundlegungeines Systems der
Werttheorie, 1902, p. 194).
AXIOMA (gr. à^ícofxa; lat. Axioma; in. Axiom; fr. Axiome, ai. Axiom; it. Assioma). Originaria-mente,
essa palavra significava dignidade ou valor (os escolásticos e Viço usavam-na por dignidade) e foi
empregada pelos estóicos para indicar o enunciado declarativo que Aristóteles chamava de apofântico
(DIÓG. L., VII, 65). Os matemáticos usaram-na para designar os princípios indemonstrávéis, mas
evidentes, da sua ciência. Aristóteles fez a primeira análise dessa noção, entendendo por A. "as
proposições primeiras de que parte a demonstração" (os chamados A. comuns) e, em cada caso, os
"princípios que devem ser necessariamente possuídos por quem queira aprender qualquer coisa" (An.
post., I, 10, 76 b 14; I, 2, 72 a 15). Como tal, o A. é completamente diferente da hipótese e do postulado
(v.). O princípio de contradição é, ele próprio, um A., aliás, "o princípio de todos os A." (Met., IV, 3,
1.105 a 20 ss.). Esse significado da palavra como princípio que se mostra evidente de imediato, pelos seus
próprios termos, manteve-se constante por toda a Antigüidade e a Idade Moderna. "Os princípios
imediatos", diz S. Tomás (In IPost, Lição 5), "não são conhecidos mediante algum termo intermediário,
mas por meio do conhecimento dos seus próprios termos. Dado que se saiba o que é o todo e o que é a
parte, reconhece-se que 'o todo é maior do que a parte', já que, em todas as proposições dessa espécie, o
predicado está compreendido na noção de sujeito". A verdade do A. é, em outros termos, manifestada pela
simples
intuição dos termos que entram na sua composição. Na verdade, o exemplo escolhido por S. Tomás
presta-se sobretudo a revelar o caráter fictício da evidência intuitiva de que dependeria a validade do
axioma. A pouca distância cronológica de S. Tomás, Ockham verificava que o princípio "a parte é maior
do que o todo" não vale quando se trata de todos que compreendem infinitas partes e que não se pode
dizer que no universo inteiro haja mais partes do que numa fava, se numa fava há infinitas partes (Quodl,
I, q. 9; Cent. theol., concl. 17, C). Após as pesquisas de Cantor e de Dedekind, sabemos hoje que esse
pretenso A. é, simplesmente, a definição dos conjuntos finitos (v. INFINITO). Por muitos séculos procurouse justificar de um modo ou de outro a validade absoluta dos A., mas essa validade não foi posta em
dúvida. Bacon julgava possível obter A. por via de dedução ou de indução (Nov. Org., 1,19), ao passo que
Descartes julgava-os verdades eternas, que residem em nossa mente (Princ.phil., I, 49); ambos, porém,
acreditaram que eram verdades imutáveis. Locke considerou os A. como proposições, experimentos,
experiências imediatas (Ensaio, IV, 7, 3 ss.) e Leibniz, ao contrário, considerou-os princípios inatos na
forma de disposições originárias que a experiência torna explícitas (Nouv. ess., I, 1, 5); mas ambos lhes
atribuíram o caráter de verdades evidentes. Os empiristas não duvidaram de sua evidência mais do que os
racionalistas; Stuart Mill afirma que eles são "verdades experimentais, generalizações da observação"
(Logic, II, 5, § b). Para Kant, os A. também são evidentes, mas apriori; define-os como "princípios
sintéticos apriori, na medida em que são imediatamente certos". Para Kant, a certeza imediata, isto é, a
evidência, é a característica dos A. A matemática possui A. porque procede mediante a construção de
conceitos. A filosofia, porém, que não constrói seus conceitos, não possui A. Os próprios A. da intuição,
que Kant pôs entre os princípios do intelecto puro, não são realmente A. segundo o próprio Kant, mas
simplesmente contêm "o princípio da possibilidade dos A. em geral" (Crít. R. Pura, Doutrina transe, do
mét., Disciplina da razão pura, I).
Foi no mundo contemporâneo que a noção de A. sofreu a transformação mais radical. A característica que
o definia, ou seja, a imediação da sua verdade, a certeza, a evidência, foi negada. Esse resultado deve-se
ao desenvolvimento do formalismo matemático e lógico, isto é, à
AXIOMA
102
AXIOMÁTICA
obra de Peano, Russell, Frege e Hilbert. Segundo o ponto de vista formalista, que é o mais difundido
atualmente, os A. da matemática não são nem verdadeiros nem falsos, mas são assumidos por convenção,
com base em motivos de oportunidade, como fundamentos ou premissas do discurso matemático
(HILBERT, "Axiomatischen Denken", em Math. Annalen, 1918). Desse modo, os A. não se distinguem
mais dos postulados e as duas palavras são hoje usadas indiferentemente. A escolha dos A. de certo modo
é livre e, nesse sentido, diz-se que os A. são "convencionais" ou "assumidos por convenção". Mas, na
realidade, essa escolha é limitada por exigências ou condições precisas que podem ser resumidas do
seguinte modo: ls
Os A. devem ser coerentes, sob pena de o sistema que deles depende tornar-se
contraditório. Sistema contraditório é o que permite a dedução de qualquer coisa e a demonstração de
qualquer proposição, bem como a sua negação. Como a prova da não-contradição não pode ser obtida
dentro de um sistema (v. AXIOMÁTICA), é costume lançar mão do sistema da redução a uma teoria
anterior, cuja coerência pareça bem confirmada, como, p. ex., a aritmética clássica ou a geometria
euclidiana. Esse procedimento sem dúvida não eqüivale a uma demonstração de nâo-contradiçào, mas
fornece um indício importante. Outro procedimento é a realização, isto é, a referência do sistema a um
modelo real, com base no pressuposto de que aquilo que é real deve ser possível, portanto nãocontraditório.
2- Um sistema de A. deve ser completo no sentido de que, de duas proposições contraditórias formuladas
corretamente nos termos do sistema, uma deve poder ser demonstrada. O que significa que, em presença
de uma proposição qualquer do sistema, pode-se sempre demonstrá-la ou refutá-la e, portanto, decidir
sobre a sua verdade ou falsidade em relação ao sistema dos postulados. Nesse caso, o sistema chama-se
decidível.
3
Q
A terceira característica de um sistema de A. é a sua independência, isto é, a sua irredu-tibilidade
recíproca. Tal condição não é tão indispensável como a da coerência, mas é oportuna para evitar que as
proposições primitivas sejam excessivamente numerosas.
4
B
Enfim, o menor número possível e a simplicidade dos A. são condições desejáveis que conferem
elegância lógica a um sistema de axiomas.
AXIOMAS DA INTUIÇÃO (in. Axioms ofin-tuition; fr. Axiomes de 1'intuition; ai. Axiomen der
Anschauung; it. Assiomi delVintuizioné). Kant indicou com essa expressão os princípios sintéticos do
intelecto puro que derivam da aplicação das categorias à experiência e que exprimem a possibilidade das
proposições da matemática e da física pura. Todos os princípios do intelecto puro têm a função de
eliminar o caráter subjetivo da percepção dos fenômenos, reconduzindo essa percepção à conexão
necessária dos próprios fenômenos, que é própria da experiência objetivamente válida. Em particular, os
A. da intuição, que correspondem às categorias da quantidade, porque consistem na aplicação dessas
categorias, transformam o fato subjetivo de só podermos perceber a quantidade espacial ou temporal (p.
ex., uma linha ou um lapso de tempo) percebendo, sucessivamente, as suas partes, no princípio
objetivamente válido de que "toda quantidade é composta de partes": nas palavras de Kant, de que "todas
as intuições são quantidades extensivas"; e justificam assim a aplicação da matemática ao mundo da
experiência (Crít. R. Pura, Anal. dos princ, cap. II).
AXIOMÁTICA (in. Axiomatics; fr. Axio-matique, ai. Axiomatik, it. Assiomaticà). A A. pode ser
considerada resultado da aritmetização da análise que ocorreu na matemática a partir da segunda metade
do séc. XIX, provocada sobretudo por Weierstrass. A primeira tentativa de axiomatização da geometria
foi feita por Pasch, em 1882. Para a axiomatização da matemática também contribuíram o formalismo de
Peano, Russell, Frege e, especialmente, a obra de Hilbert. Mas a A. não se limita hoje ao domínio da
matemática: em física, é estudada como objetivo final ou, pelo menos, como formulação última e mais
satisfatória; qualquer disciplina que atinja certo grau de rigor tende a assumir a forma axiomática. O
significado da A. pode ser resumido brevemente nos pontos seguintes:
l
s
Axiomatizar uma teoria significa, em primeiro lugar, considerar, em lugar de objetos ou de classes de
objetos providos de caracteres intuitivos, símbolos oportunos, cujas regras de uso sejam fixadas pelas
relações enumeradas pelos axiomas. Como tais símbolos são desprovidos de qualquer referência intuitiva,
a teoria formal assim obtida é passível de múltiplas interpretações, que se chamam modelos. Mas o
modelo, aqui, não é um arquétipo preexistente à teoria, e mesmo a teoria concreta original, que forneceu
os dados para o esquema lógico
AXIOMATICA
103
AXIOMATICA
da A., não é senão um desses modelos. A característica da A. é prestar-se a interpretações ou a realizações
diferentes, das quais constitui a estrutura lógica comum.
2° O método A. é um poderoso instrumento de generalização lógica. Um dos modos de generalização
desse método consiste em destruir, sucessivamente, alguns axiomas de certa teoria dedutiva, conservando
os outros e, assim, construindo teorias cada vez mais abstratas. O sistema gerado pela A. assim restringida
é coerente se o sistema inicial o for e constitui uma generalização deste.
3
a
A A. torna indispensável distinguir três modos pelos quais é possível diferenciar uma teoria dedutiva da
outra. Consideremos o caso da geometria euclidiana. Em primeiro lugar, se modificarmos um dos seus
postulados, obteremos outras geometrias denominadas próximas ou aparentadas; nesse sentido, fala-se de
pluralidade de geometrias. Em segundo lugar, podemos efetuar a reconstrução lógica de qualquer uma
dessas geometrias de vários modos, isto é, segundo A. diferentes; e essas A. serão equivalentes entre si.
Enfim, se escolhermos uma dessas A., na maioria das vezes será possível encontrar interpretações
diferentes para ela: haverá vários modelos dela, que serão chamados isomorfos. Haverá assim: d) uma
pluralidade de geometrias; ti) uma pluralidade de A. para uma mesma geometria; c) uma pluralidade de
modelos para uma mesma A.
4
S
A característica fundamental da A. é a escolha e a clara enunciação das proposições primitivas de uma
teoria, isto é, dos axiomas que introduzem os termos indefiníveis e estabelecem as regras de uso indemonstráveis. A escolha das noções primitivas é parte fundamental da
constituição de uma axiomática. Hoje está claro, porém, que as próprias noções de "primitivo",
"indefinível" e "indemonstrável" são relativas, no sentido de que um termo indefinível ou uma proposição
indemonstrável, dentro de um sistema, podem ser definíveis ou demonstráveis se as bases do sistema
forem modificadas. P. ex., na geometria euclidiana não se pode demonstrar o postulado das paralelas, mas
se renunciarmos a demonstrar o teorema de que a soma dos ângulos de um triângulo é igual a dois retos,
poderemos assumir essa proposição como um axioma e demonstrar a unicidade da paralela. Além disso,
muitas vezes os termos não definidos são implicitamente definidos pelo conjunto dos postulados
previamente escolhidos (definição por postulados). Diz-se que a escolha dos postulados é livre, mas na
realidade deve obedecer a determinadas condições que a limitam notavelmente; para essas condições, v.
AXIOMA.
5
a
Já se disse (v. AXIOMA) que o limite fundamental para a escolha dos axiomas é a sua coerência ou
compatibilidade. Todavia, um teorema de Godel (1931) estabeleceu que uma aritmética não contraditória
comporta enunciados não decididos e, entre esses enunciados, está a não-contradição do sistema
aritmético. Em outros termos, se permanecermos no âmbito de um sistema, não será possível estabelecer
a não-contradição desse mesmo sistema. Esse é um dos limites da A., além dos que foram evidenciados
pela corrente intuicionista dos matemáticos (v. MATEMÁTICA).
B
B. Na lógica medieval, todos os silogismos indicados por uma palavra mnemônica que comece por B
(Baralipton, Baroco, Bocardó) são redutíveis ao primeiro modo da primeira figura {Barbara). (Cf. PEDRO
HISPANO, Summ. log., 4.20)
BANAUSIA(gr. Poevccuoía). Essa palavra, que em grego significa arte mecânica ou trabalho manual em
geral, implica uma valorização desse tipo de atividade como coisa grosseira e vulgar. Heródoto (II, 155
ss.) já observava que tanto os gregos quanto os bárbaros estão de acordo ao considerarem inferiores os
cidadãos que aprendem um ofício e os seus descendentes, e ao considerarem superiores as pessoas que se
mantêm afastadas dos trabalhos manuais e, sobretudo, as que se dedicam à guerra. Xenofonte (Econom.,
IV, 203), por sua vez, afirma que "as chamadas artes mecânicas trazem em si um estigma social e estão
desonrando as nossas cidades". E, em Gôrgias (512 b), Cálicles diz que, embora o construtor de máquinas
bélicas possa ser útil, "desprezá-lo-ás bem como à sua arte, chamá-lo-ás ofensivamente banausos e não
desejarias dar tua filha como esposa a seu filho nem desejarias que teu filho se casasse com uma de suas
filhas". Aristóteles diz explicitamente (Pol., III, 4, 1.277 ss.) que o poder senhorial é próprio de quem não
sabe fazer as coisas necessárias, mas sabe usá-las melhor do que os que se lhe submetem. O saber fazê-las
é próprio dos servos, isto é, "da gente destinada a obedecer" e é coisa tão humilde que "não deve ser
aprendida nem pelo político nem pelo bom cidadão, a não ser que lhes proporcione uma vantagem
pessoal". Essa noção de B., na sociedade antiga, permitia a divisão da própria sociedade em duas classes:
os que extraíam os meios de vida do trabalho manual e eram destinados a obedecer e os que se haviam libertado da escravidão do trabalho manual e eram destinados a mandar.
Com algumas exceções, essa concepção durou por toda a Idade Média e foi só com o Renascimento que
se começou a introduzir no mundo moderno o conceito de dignidade do trabalho manual (v. TRABALHO).
BARALIPTON. Palavra mnemônica usada pelos escolásticos para iridicar o quinto modo da primeira
figura do silogismo, mais precisamente o que consiste em duas premissas universais afirmativas e em
uma conclusão particular afirmativa, como no exemplo: "Todo animal é substância; todo homem é
animal; logo, algumas substâncias são homens" (PEDRO HISPANO, Summ. log., 4.08).
BARBARA.. Palavra mnemônica usada pelos escolásticos para indicar o primeiro dos nove modos do
silogismo de primeira figura, o qual consta de duas premissas universais afirmativas e de uma conclusão
também universal afirmativa, como no exemplo: "Todo animal é substância; todo homem é animal; logo,
todo homem é substância" (PEDRO HISPANO, Summ. log., 4.07; Lógica de Port-Royal, III, 5).
BARBARI. Palavra mnemônica usada na Lógica de Port-Royal para indicar o quinto modo do silogismo
de primeira figura (isto é, o Baraliptori), com a modificação de assumir por premissa maior a proposição
em que entra o predicado da conclusão. O exemplo é o seguinte: "Todos os milagres da natureza são
comuns; tudo o que é comum não nos maravilha; logo, há coisas que não nos maravilham, que são
milagres da natureza" (ARNAULD, Log., III, 8).
BARBÁRIE. Esse foi o nome que Viço deu ao estado primitivo, selvagem, do qual o gênero humano foi
saindo pouco a pouco para chegar à ordem do mundo propriamente humano,
BAROCO
105
BELO
■ pelo temor à divindade. Deu o nome de "retorno da B." à Idade Média. (Scienza nuova, dignidade, 56;
Carta a De Angelis, Opere, ed. Utet, p. 159).
BAROCO. Palavra mnemônica usada pelos escolásticos para indicar o quarto dos quatro modos do
silogismo de segunda figura, mais precisamente o que consiste numa premissa universal afirmativa, numa
premissa particular negativa e numa conclusão particular negativa, como no exemplo: "Todo homem é
animal; algumas pedras não são animais; logo, algumas pedras não são homens" (PEDRO HISPANO,
Summ. log., 4.11).
Dessa palavra teve origem a palavra "barroco", usada para designar a forma de arte ou, em geral, o
espírito próprio do séc. XVII. "Parece indubitável", disse Croce, "que essa palavra está ligada a um
daqueles vocábulos artificialmente compostos e mnemônicos, com que foram designadas as figuras do
silogismo na lógica medieval. Entre esses vocábulos (Barbara, Celarent, etc), dois (pelo menos na Itália)
chamaram mais a atenção do que os outros e tornaram-se quase proverbiais: o primeiro, Barbara, por ser
o primeiro, e o outro, sabe-se lá por quê, Baroco, que designava o quarto modo da segunda figura. Digo
não sei por quê, por não ser ele mais. estranho do que os outros, nem mais estranho o modo de silogismo
que indicava: talvez para tanto haja contribuído a aliteração com Barbara " (Storia delVetà barocca in
Itália, 1925; 2a
ed., 1946, pp. 20-21). Embora essa etimologia tenha sido comumente aceita, na verdade é
totalmente desprovida de documentação e os únicos documentos disponíveis indicam que a palavra
barroco derivou de barocchio, que, em Floren-ça, era uma forma de trapaça ou escroqueria. Tal derivação
é mencionada em uma carta de Magliabechi, de 1688 (cf. FRANCO VENTURI, "La parola Barocco", em
Rivista Storica Italiana, 1959, pp • 128-130).
BEATTTUDE. V. BEM-AVENTURANÇA. BEHAVIORISMO (in. Behaviorism, fr. Com-portamentisme,
ai. Behaviorismus-, it. Bebavio-rismo, comportamentismó). Corrente da psicologia contemporânea que
tende a restringir a psicologia ao estudo do comportamento (v.), eliminando qualquer referência à
"consciência^, ao "espírito" e, em geral, ao que não pode ser observado e descrito em termos objetivos.
Pavlov pode ser considerado seu fundador, pois foi o autor da teoria dos reflexos condicionados e o
primeiro a fazer pesquisas psicológicas que prescindiam de qualquer referência ao "estados subjetivos" ou "estados interiores". Em 1903, Pavlov
perguntava: "para compreender os novos fenômenos, por acaso deveremos penetrar no ser interior do
animal, imaginar ao nosso modo as sensações, os sentimentos e os desejos deles? Para o experimentador
científico, parece-me que a resposta a essa última pergunta só pode ser um não categórico" (Reflexos
condicionados, 1950, p. 17). No laboratório de Pavlov (como ele mesmo conta [ibid., p. 1291), foi
proibido, até sob pena de multa, o uso de expressões psicológicas como "o cão adivinhava, queria,
desejava, etc"; e Pavlov não hesitava em definir como "desesperada", do ponto de vista científico, a
situação da psicologia como ciência dos estados subjetivos (ibid., p. 97). Todavia, o primeiro a enunciar
claramente o programa do B. foi J. B. Watson em um livro intitulado O comportamento — Introdução à
psicologia comparada, publicado em 1914. Foi Watson quem deu o nome de B. a essa escola e sua
pretensão fundamental era limitar a pesquisa psicológica às reações objetivamente observáveis. A força
do B. consiste precisamente na exigência metodológica que impôs: não é possível falar cientificamente
daquilo que escapa a qualquer possibilidade de observação objetiva e de controle. O B. foi muitas vezes
interpretado, pelos que o questionam, como a negação da "consciência", do "espírito" ou dos "estados
interiores", etc. Na realidade ele é simplesmente a negação da introspecção como instrumento legítimo de
investigação: negação que já fora feita por Comte (v. INTROSPECÇÃO). Além disso, é o reconhecimento
deliberado do comportamento como objeto próprio da indagação psicológica. Nas suas primeiras
manifestações, o B. estava ligado à corrente mecanicista, para a qual o estímulo externo é a causa do
comportamento, no sentido de torná-lo infali-velmente previsível; o próprio Pavlov ressaltava essa
infalibilidade (ibid, p. 133). Mas esse pressuposto, de natureza ideológica, hoje foi abandonado pelo B.,
que permeou profundamente a indagação antropológica moderna (psicologia, sociologia, etc) (v.
PSICOLOGIA).
BELO (gr. TÒ KaXóv; lat. Pulchrum; in. Beau-tiful; fr. Beau; ai. Schõn; it. Bello). A noção de B.
coincide com a noção de objeto estético só a partir do séc. XVIII (v. ESTÉTICA); antes da descoberta da
noção de gosto, o B. não era mencionado entre os objetos produzíveise, por isso, a noção correspondente
não se incluía
BELO
106
BELO
naquilo que os antigos chamavam de poética, isto é, ciência ou arte da produção. Podem ser distinguidos
cinco conceitos fundamentais de B., defendidos e ilustrados tanto dentro quanto fora da estética: 1Q
o B.
como manifestação do bem; 2Q
o B. como manifestação do verdadeiro; 3g
o B. como simetria; 4Q
o B.
como perfeição sensível; 5Q
o B. como perfeição expressiva.
I
a O B. como manifestação do bem é a teoria platônica do belo. Segundo Platão, só à beleza, entre todas
as substâncias perfeitas, "coube o privilégio de ser a mais evidente e a mais amável" (Fed., 250 e). Por
isso, na beleza e no amor que ela suscita, o homem encontra o ponto de partida para a recordação ou a
contemplação das substâncias ideais (ibid., 251 a). A repetição dessa doutrina do B. no neoplatonismo
assume caráter teológico ou místico porque o bem ou as essências ideais de que falava Platão são
hipostatizadas e unificadas por Plotino no Uno, isto é, em Deus; o Uno e Deus são definidos como "o
Bem". "É o Bem", diz Plotino, "que dá beleza a todas as coisas", de modo que o B., em sua pureza, é o
próprio bem e todas as outras belezas são adquiridas, mescladas e não primitivas: porque vêm dele (Enn.,
1, 6, 7). Essa forma mística ou teológica nem sempre reveste a doutrina do B. como manifestação do bem,
mas é óbvio que semelhante doutrina é explícita ou implicitamente pressuposta cada vez que se propõe a
função da arte no aperfeiçoamento moral.
2
S
A doutrina do B. como manifestação da verdade é própria do Romantismo. "O B.", dizia Hegel,
"define-se como a aparição sensível da Idéia." Isso significa que beleza e verdade são a mesma coisa e
que se distinguem só porque, enquanto na verdade a Idéia tem manifestação objetiva e universal, no B.
ela tem manifestação sensível (Vorlesungen über die Àsthetik, ed. Glockner, I, p. 160). Raramente, fora de
Hegel, esse ponto de vista foi apresentado com tanta decisão, mas reaparece em quase todas as formas da
estética romântica, constituindo, indubitavelmente, uma definição típica do belo.
3
9
A doutrina do B. como simetria foi apresentada pela primeira vez por Aristóteles: o B. é constituído
pela ordem, pela simetria e por uma grandeza capaz de ser abarcada, em seu conjunto, por um só olhar
(Poet, 7, 1.450 b 35 ss.). Essa doutrina foi aceita pelos estóicos, citados por Cícero: "Assim como no
corpo existe uma harmonia de feições bem proporcionadas,
unida a um belo colorido, que se chama beleza, também para a alma a uniformidade e a coerência das
opiniões e dos juízos, unida a certa firmeza e imutabilidade, que é conseqüência da virtude ou contém a
própria essência da virtude, chama-se beleza" (Tusc, IV, 13, 31). Essa doutrina fixou-se por longo tempo
na tradição. Foi adotada pelos escolásticos (p. ex., S. TOMÁS, S. Tb., I, q. 39, aa. 8) e por muitos escritores
e artistas do Renascimento, quando quiseram ilustrar o que procuravam fazer com a sua arte: p. ex.,
Leonardo em Trattato delia pittura.
4
S
É com a doutrina do B. como perfeição sj^nsívelxrjjejiasce a ^stétiçaV'lPerfeição jseij-sível" significa,
por um lado, "representação sensível perfeita" e, por outro, "prazer que acompanha a atividade sensível".
No primeiro sentido, é concebida principalmente pelos analistas alemães e, em particular, por Baumgarten
(Aesthetica, 1750, §§ 14-18). No segundo sentido, foi utilizada sobretudo pelos analistas ingleses, em
primeiro lugar por Hume (Essay Moral and Political, 1741) e por Burke (A Philosophical Inquiry into the
Origin ofOurldeas ofthe Sublime and Beautiful, 1756), preocupados ambos em determinar os caracteres
que fazem do prazer sensível aquilo que se costuma chamar de "beleza". Kant unificou essas duas
definições complementares de B. e insistiu naquilo que até hoje é considerado seu caráter fundamental,
isto é, o desinteresse. Conseqüentemente, definia o B. como "o que agrada universalmente e sem
conceitos" (Crít. do Juízo, § 6) e insistia na independência entre prazer do B. e qualquer interesse, tanto
sensível quanto racional. "Cada um chama de agradável o que o satisfaz; de Belo, o que lhe agrada; de
bom o que aprecia ou aprova, aquilo a que confere um valor objetivo. O prazer também vale para os
animais , irracionais; a beleza, só para os homens, em sua qualidade de seres animais mas racionais, e não
só por serem racionais, mas por serem, ao mesmo tempo, animais. O bom tem valor para todo ser racional
em geral" (Crít. dojuizo, § 5). Kant distinguiu além disso o B. livre (pulchritudo vaga) e o B. aderente
(pulchritudo adhaerens). O primeiro não pressupõe um conceito daquilo que o objeto deve ser; p. ex., as
flores são belezas naturais livres. O segundo pressupõe esse conceito; p. ex., a beleza de um cavalo, de
uma igreja, etc. pressupõe o conceito da finalidade a que tais objetos são destinados (ibid., §16).
BEM
107
BEM
Com a doutrina de Kant, o conceito de B. foi reconhecido numa esfera específica, tornou-se um valor, ou
melhor, uma classe de valores, fundamental. Juntamente com o Verdadeiro e com o Bem, entrou na
constituição de uma nova espécie de trindade ideal, correspondente às três formas de atividade
reconhecidas como próprias do homem.- intelecto, sentimento e vontade. Embora essa tripartição tenha
sido considerada durante muito tempo como um dado de fato originário, testemunhado pela "consciência"
ou pela "experiência interior", na realidade é uma noção historicamente derivada, que, na segunda metade
do séc. XVIII, nasceu da inserção da "faculdade do sentimento" entre as outras faculdades (reconhecidas
desde o tempo de Aristóteles): a teorética e a prática (v. GOSTO; SENTIMENTO).
5
a
Como perfeição expressiva ou comple-titude da expressão, o B. é, implícita ou explicitamente, definido
por todas as teorias que consideram a arte como expressão (v. ESTÉTICA, 3). Croce disse: "Parece-nos
lícito e oportuno definir a beleza como expressão bem-sucedida, ou melhor, como expressão pura e
simples, pois a expressão, quando não é bem-sucedida, não è expressão" {Estética, 4
a
ed., 1912, p. 92). E,
conquanto, na obra de Croce, a teoria da arte como expressão se combine ou se confunda com a de arte
como conhecimento, a definição de beleza dada por Croce pode ser adotada em qualquer teoria da arte
como expressão.
BEM (gr. àyaQóv; lat. Bonum, in. Good; fr. Bien-, ai. Gut; it. Bené). Em geral, tudo o que possui valor,
preço, dignidade, a qualquer título. Na verdade, B. é a palavra tradicional para indicar o que, na
linguagem moderna, se chama valor (v.). Um B. é um livro, um cavalo, um alimento, qualquer coisa que
se possa vender ou comprar; um B. também é beleza, dignidade ou virtude humana, bem como uma ação
virtuosa, um comportamento aprovável. Em correspondência com essa extrema variedade de significados,
o adjetivo bom tem uma idêntica variedade de aplicações. Podemos falar de "uma boa chave de fenda" ou
de "um bom automóvel" como também de "uma boa ação" ou de "uma pessoa boa". Dizemos também
"um bom prato", para indicar algo que corresponde ao nosso paladar, ou "um bom quadro", para indicar
um quadro bem-feito.
Dessa esfera do significado geral, pela qual a palavra se refere a tudo o que tem um valor qualquer, podese recortar a esfera do significado
específico, em que a palavra se refere particularmente ao domínio da moralidade, isto é, dos mores, da
conduta, dos comportamentos humanos intersubjetivos, designando, assim, o valor específico de tais
comportamentos. Nesse segundo significado, isto é, como B. moral, o B. é objeto da ética e o registro dos
seus diferentes significados históricos é encontrado no verbete Ética (v). Por ora, deveremos tratar da
noção de B. só no primeiro sentido, isto é, na sua acepção mais geral. Podemos, então, distinguir dois
pontos de vista fundamentais, que apresentam intersecção na história da filosofia: I
a
a teoria metafísica,
segundo a qual o B. é a realidade, mais precisamente a realidade perfeita ou suprema, e é desejado como
tal; 2e
a teoria subjetivista, segundo a qual o B. é o que é desejado ou o que agrada, e é tal só n esse
aspecto.
1° O modelo de todas as teorias metafísicas é a teoria de Platão, segundo a qual o B. é o que confere
verdade aos objetos cognoscí-veis, que confere ao homem o poder de conhecê-los, que confere luz e
beleza às coisas, etc.; em uma palavra, é fonte de todo ser, no homem e fora do homem {Rep., VI, 508 e
509 b). Platão compara o B. ao Sol, que dá aos objetos não só a possibilidade de serem vistos como
também a de serem gerados, de crescerem e de nutrir-se; e, assim como o Sol que, mesmo sendo a causa
dessas coisas, não é nenhuma delas, também o B. como fonte da verdade, do belo, da cognoscibilidade,
etc. e, em geral, do ser, não é nenhuma dessas coisas e está além delas {ibid., 509 b). Analogamente,
Plotino vê no B. a primeira Hipóstase, isto é, a origem da realidade, o próprio Deus, considerando-o como
causa, ao mesmo tempo, do ser, da ciência (Enn., VI, 7, 16) e, em geral, de tudo o que é ou vale um título
qualquer {ibid., V, 4, 1). Essas noções tornaram-se correntes na filosofia medieval, que identificou,
segundo o exemplo neopla-tônico, o B. com Deus mesmo, de modo que só pode ser considerado "bom" o
que é, de algum modo, semelhante a Deus (S. TOMÁS. S. Th., I. q. 6, a. 4).
O teorema característico dessa concepção de B. é o que afirma a identidade do que é B. com o que existe.
"Bonum e ens são a mesma coisa na realidade", diz S. Tomás, "embora possam distinguir-se um do outro
racionalmente. O B., com efeito, é o ente como objeto de desejo, o que não é o ente" {S. Th., 1, q. 5, a. 1).
Por isso, "todo ente, como ente, é bom" {ibid., I, q. 5, a. 3). De fato, todo ente como tal está em
BEM
108
BEM
ato e enquanto está em ato é perfeito: mas o que é perfeito é também apetecível e é bom. Esse teorema
revela a natureza da concepção metafísica do B., cujo princípio é que o B. é apetecível só como realidade
perfeita ou perfeição real. Pode-se, por isso, reconhecer uma teoria metafísica do B. precisamente por essa
característica, que subordina a apetecibilidade à realidade e, por fim, considera o próprio B. como a
realidade suprema. Assim faz Hegel, p. ex., quando afirma que "a realidade efetiva coincide em si com o
B." (Philosophische Propa-deutik, III, § 83), ou que o B. é "a liberdade realizada, o objetivo final
absoluto do mundo" (Fil. do dir., § 129). Todas as formas de idealismo e de espiritualismo constituem
outras tantas doutrinas metafísicas do B., já que todas identificam o B. com a realidade e, em última
instância, com a realidade suprema; é o que fazem, p. ex., Rosmini, que identifica ser e bem (Principi
dela scienza morale, ed. nac, p. 78), e Gentile, que identifica o B. com o espírito em ato: "O B. ou valor
moral outra coisa não é senão a realidade espiritual em sua idealidade, como produção de si mesma ou
liberdade" (.Lógica, 1, p. 110). Algumas filosofias contemporâneas que preferem falar de valor em vez de
B., considerando o valor como uma realidade absoluta e última, inscrevem-se na mesma concepção
tradicional de bem.
2
9
Por outro lado, a teoria subjetivista do B. é o inverso simétrico da teoria metafísica. Para ela, o B. não é
desejado por ser perfeição e realidade, mas é perfeição e realidade por ser desejado. Ser desejado ou
apetecido é o que define o B. Foi assim que Aristóteles o definiu várias vezes (Et. nic, I, 1, 1.094 a 3).
Todavia, nesse autor, a doutrina não deixa de ter conexões ou misturas com a doutrina oposta. Quando
precisa determinar os critérios de preferência entre os vários bens, recorre à noção metafísica de
perfeição, isto é, à noção que fundamenta a teoria oposta de B. Assim, p. ex., ele diz que o que é B. em
absoluto é mais desejável do que aquilo que é um B. para alguém, como p. ex. curar-se é preferível a
sofrer uma operação cirúrgica; que o que é um B. por natureza (p. ex., a justiça) é preferível ao que é um
B. por aquisição (p. ex., o homem justo). Além disso, "mais desejável é o que pertence a um objeto
melhor e mais digno, de tal modo que o que pertence à divindade é preferível ao que pertence ao homem,
e o que tange à alma é preferível ao que tange ao corpo" (Top., III, 1,
116 b 17). Assim, Aristóteles delineia um sistema de preferências que parece orientar-se para o caráter de
perfeição que os bens possuem objetivamente e que, portanto, mal se concilia com a definição do B.
como objeto de desejo.
Essa definição é validada pela primeira vez, em todo o seu rigor, pelos estóicos. Estes consideraram o B.
exclusivamente como objeto de escolha obrigatória ou preferencial; portanto, foram também os primeiros
a introduzir na ética a noção de valor (v.). "Assim como é próprio do calor aquecer, e não esfriar, também
é próprio do B. ajudar, e não prejudicar", diziam eles (DIÓG. L., VII, 103). B., em sentido absoluto, é
somente o que se conforma à razão, que tem, por isso, um valor em si; mas são também B., embora de
modo subordinado ou mediato, as coisas que fazem apelo à escolha e enquanto tais têm valor, como o
talento, a arte, a vida, a saúde, a força, a beleza, etc. (ibid., 104-5; cf. CÍCERO, De finibus, III, 6, 20). Essa
tábua de valores prescindia completamente da perfeição objetiva a que se referiam as tábuas de valores da
concepção clássica grega.
Obliterada durante toda a Idade Média, a concepção subjetivista de B. volta, no Renascimento, com as
alusões à ética do móbil, que se repetem nesse período (v. ÉTICA), mas foi afirmada na sua forma mais
nítida por Hobbes. "O homem chama de bom o objeto de seu apetite ou de seu desejo, de mau o objeto de
seu ódio ou de sua aversão, de vilo objeto de seu desprezo. As palavras 'bom', 'mau', 'vil' são sempre
entendidas em relação a quem as emprega, porque nada há de absoluto e simplesmente tal, e não há
nenhuma norma comum para o B. e para o mal que derive da natureza das coisas" (Leviath., I, 6). Spinoza
aceitou com entusiasmo esse ponto de vista. "Nós não nos propomos, não queremos, não desejamos, não
ansiámos por uma coisa porque a julguemos boa, mas, ao contrário, julgamo-la boa pelo fato de a
propormos, querermos, desejarmos e ansiarmos" (Et., III, 9, escól.). E, no prefácio ao IV Livro, reitera:
"O B. e o mal não indicam nada positivo que esteja nas coisas consideradas em si, mas são nada mais do
que modos de pensar ou noções que formamos, ao confrontar as coisas. Realmente, uma mesma coisa
pode ser, ao mesmo tempo, boa, má e até indiferente". Por sua vez, Locke afirmou que "chamamos de B.
o que é capaz de produzir prazer em nós e de mal o que é capaz de produzir sofrimento" (Ensaio, II, 21,
43); definições que encontram
BEM
109
BEM-AVENTURANÇA
concordância em Leibniz: "O B. divide-se em honesto, agradável e útil, mas, no fundo, creio que deve ser
agradável por si mesmo ou servir a algo que nos dê sentimento de prazer: o B. é agradável ou útil e
mesmo a honestidade consiste em um prazer do espírito" (Nouv. ess., II, 20, 2). Kant aceitou essas
observações, acres-centando-lhes um elemento importante, isto é, a exigência de uma referência
conceituai. "O B." diz ele, "é o que, por intermédio da razão, agrada pelo seu conceito puro. Dizemos que
alguma coisa é boa para (útil) quando ela agrada só como um meio; aquela que, ao contrário, agrada por
si mesma, dizemos que é boa em si. Em ambas, estão sempre contidos o conceito de finalidade e a relação
entre razão e vontade (pelo menos possível); conseqüentemente, o prazer está ligado à existência de um
objeto ou de uma ação, vale dizer, a um interesse" (Crít. dojuízo, § 4). A presença do conceito, isto é, do
fim a que a coisa tende ou da norma a que deve adequar-se, é o que distingue o bom do agradável. Kant
nota que um alimento agradável, para ser considerado "bom", deve agradar também à razão, isto é, deve
ser considerado bom em relação ao objetivo da nutrição, da saúde física. Todavia, o agradável e o bom
estão ligados pelo fato de dependerem ambos do interesse pelo seu objeto; além disso, "o que é B
absolutamente sob tddos os aspectos, o B. moral, inclui o mais alto interesse, pois o B. é o objeto da
vontade, isto é, de uma faculdade de desejar determinada pela razão. Mas querer alguma coisa e ter prazer
por sua existência, isto é, sentir interesse por ela, são a mesma coisa" (ibid., fim). Nesse sentido, o B. é
aquilo que se aprecia, que se aprova e a que se atribui "um valor objetivo" (ibid., § 5). Assim, no seio da
própria teoria subjetivista, Kant valida a exigência objetivista que constituía a força da teoria metafísica.
O B., para Kant, só é B. em relação ao homem, isto é, em face do interesse que o homem tem por sua
existência. Mas isso não o torna exclusivamente subjetivo, isto é, não o identifica pura e simplesmente
com o prazer porque ao reconhecimento do B. está vinculada a valorização conceituai de sua eficiência
em relação a certos fins e é isto que constitui o B. como "um valor objetivo".
Depois de Kant, a noção de valor tende a suplantar a de B. nas discussões morais, e pode ser considerada
como sucessora do conceito subjetivo de B., dotada que é de suas mesmas conexões sistemáticas. Em seu
lugar, porém,
renascerá, com forma pouco alterada, a alternativa entre uma concepção objetivista e uma concepção
subjetivista: alternativa que ainda hoje constitui um dos temas fundamentais da discussão moral (v.
VALOR).
BEM-AVENTURANÇA (gr. naicapía; lat. Beatitudo; in. Béatitude, fr. Béatitude-, ai. Seligbeit; it.
Beatitudiné). O significado desse termo pode distinguir-se do de felicidade (v-
.), de que é sinônimo,
porque designa um estado de satisfação completa, perfeitamente independente das vicissitudes do mundo.
Aristóteles, que às vezes usa esse termo e o termo felicidade indiferentemente, vincula a B. à
contemplação e comensura-a com o grau da atividade contemplativa nos vários seres vivos. Assim, a vida
dos deuses é bem-aventurada porque contemplativa. Aos homens cabe uma espécie de semelhança com
essa vida porque se elevam só vez por outra à contemplação; os animais não são absolutamente bemaventurados porque carecem de atividade contemplativa (Et. nic, X, 8, 1.178 b 9 ss.). Entre os homens,
naturalmente, o sábio é o mais bem-aventurado (ibid, I, 11, 1.101 b 24). Na filosofia pós-aristotélica e
sobretudo na estóica, a B. do sábio tornou-se tema comum de exercício (cf. De vita beata de Sêneca), e no
neoplatonismo de Plotino a crítica da felicidade, como é entendida por estóicos e aristotélicos (Enn., I, 4),
é acompanhada pelo conceito de que a B. é inativa porque indiferente a toda realidade externa. "Os seres
bem-aventurados estão imóveis em si e basta-lhes ser o que são: não se arriscam a ocupar-se com nada,
pois isso os faria sair do seu estado; mas essa é a felicidade deles, pois, sem agir, realizam grandes coisas
e não fazem pouco permanecendo imóveis em si mesmos" (ibid., II, 2,1). A partir do neoplatonismo,
pode-se dizer que o conceito de B. se foi distinguindo cada vez mais do de felicidade, ligando-se
estreitamente à vida contemplativa, ao abandono da ação e à atitude de reflexão interior e de retorno para
si mesmo. A tradição cristã agiu no mesmo sentido, vinculando a B. a uma condição ou estado, tão
independente das lides mundanas quanto dependente da disposição interna da alma. A doutrina
aristotélica da felicidade, própria da vida contemplativa, serviu de modelo aos escolásticos para a
elaboração do conceito de béatitude. S. Tomás diz que a B. é "a última perfeição do homem", isto é, a
atividade da sua faculdade mais elevada, o intelecto na contemplação da realidade superior,
BEM SUPREMO ou SUMO BEM
110
BIOLOGISMO
isto é, de Deus e dos anjos. "Na vida contemplativa, o homem comunica-se com as realidades superiores,
ou seja, com Deus e com os anjos, às quais se assemelha também na B." Portanto, o homem só obterá a B.
perfeita na vida futura, que será inteiramente contemplativa. Na vida terrena, ele pode obter uma B.
imperfeita, em primeiro lugar por meio da contemplação e em segundo lugar por meio da atividade do
intelecto prático que organiza as ações e as paixões humanas, isto é, com a virtude {S. Th., II, I, q. 3, a. 5).
Na Idade Moderna, o conceito de B. e o de felicidade foram-se distinguindo cada vez mais, referindo-se o
primeiro à esfera religiosa e contemplativa e o segundo à esfera moral e prática. Pode-se dizer que o único
filósofo que não une os dois significados por simples confusão é Spinoza, para quem a B. "é a satisfação
íntima que nasce da cognição intuitiva de Deus" {Et., IV, ap. 4), identificando-a com a liberdade e com o
amor do homem por Deus, que é o mesmo amor com que Deus se ama a si mesmo {ibid., V, 36, escól.).
Mas como a intuição de Deus ou o amor por Deus significam, para Spinoza, o conhecimento da ordem
necessária das coisas do mundo {ibid., V, 31-33), o caráter místico-religioso ou contemplativo da B.
identifica-se com o caráter mundano e prático da felicidade. O mesmo significado está na obra de Fichte,
Introdução ávida bem-aven-turada{1806). Aqui a B. é definida, tradicionalmente, como a união com
Deus: mas Fichte preocupa-se em abolir o significado contemplativo tradicional, não a considerando
resultado de um "sonho devoto", mas da própria moralidade operante {Werke, V, p. 474).
No pensamento moderno, essa noção e as palavras beatitude e beato deixaram de ter um uso propriamente
filosófico. Além de ter acepções religiosas pejorativas, é considerada útil por alguns psicólogos, que a
empregam para indicar certos estados patológicos de alegria, caracterizados pelo completo esquecimento
da realidade (PIERRE JANET, De 1'angoisseàl'êxtase, III, cap. II).
BEM SUPREMO ou SUMO BEM (gr. xàya-8ÓV; lat. Summum honum; in. Supreme good; fr.
Souverain bien; ai. Das hôchste Gut; it. Bene sommó). Noção introduzida por Aristóteles, para indicar o
que é desejado por si mesmo e não em vista de outro B. É necessário que haja um B. supremo para evitar
o processo ao infinito {Et. nic, I, 2, 1.094 a 18). Para Aristóteles, o B. supremo é a felicidade. Os
escolásticos empregam essa expressão para indicar Deus mesmo (S. TOMÁS, S. Th., I, q. 6, a. 1). Kant considerou o
adjetivo "sumo" equívoco, pois ele pode significar tanto supremo {supremuni) como perfeito
{consummaturrí).O B. supremoé a condição primeira e originária de todo B.: é, por isso, a virtude. Mas o
B. perfeito é o que não é parte de um B. maior da mesma espécie; nesse sentido, a virtude não pode ser
chamada de "B. perfeito", que é a união de virtude e felicidade {Crit. R. Prática, Dialética, cap. II).
BENEVOLÊNCIA. V. BONDADE.
BENTHAMISMO. V. UTILITARISMO.
BERGSONISMO. V. ESPIRITUALISMO.
BERKELIANISMO. V. IMATERIALISMO.
BICONDICIONAL (in. Biconditional; fr. Biconditionnel; it. Bicondizionalé). Por esse nome ou pelo de
"equivalência material" entende-se comumente, na lógica contemporânea, o conectivo "se e somente se",
simbolizado às vezes com o sinal = (cf. QUINE, Methods qf Logic, § 3). B. eqüivale, obviamente, à
conjunção das duas condicionais: "se p, então d' e "se q, então p".
BIOGÉNETICA, LEI (ai. Biogenetisches Grundgesetz). Foi assim que o biólogo alemão Ernst Haeckel
(1834-1919) chamou ao paralelismo entre o desenvolvimento do embrião individual e o desenvolvimento
da espécie a que ele pertence. No que tange ao homem, "a ontogênese, ou seja, o desenvolvimento do
indivíduo, é uma breve e rápida repetição (reca-pitulação) da filogênese ou evolução da espécie a que ele
pertence" (Natürliche Schõpfungs-geschichte, 1868; trad. it., pp. 178-189).
BIOLOGISMO (in. Biologisni; fr. Biologis-me, ai. Biologismus-, it. Biologismó). 1. Interpretação do
mundo físico ou do mundo humano por analogia com o organismo (v. ORGANICISMO).
2. O mesmo que vitalismo (v.).
3. A metafísica de Hans Driesch (1867-1941), enquanto "filosofia do orgânico". Driesch divide a filosofia
em "doutrina da ordem", que tem por objeto todo o mundo inorgânico, e "doutrina da vida", que tem por
objeto o mundo orgânico. O pressuposto dessa subdivisão é que o organismo não é redutível às formas ou
manifestações da ordem inorgânica; ou, em outras palavras, não é uma máquina. O que ele tem a mais em
relação à máquina é a enteléquia, concebida por Driesch como uma espécie de mônada no sentido
leibniziano, que determina todo o desenvolvimento de um ser vivo. A enteléquia é supra-individual e
suprapessoal: o
BIOSFERA
111
BUDISMO
nascimento de um homem é justamente a manifestação de uma enteléquia, manifestação que termina com
a morte. Os indivíduos são, portanto, partes da vida suprapessoal da enteléquia (Philosophie des
Organischen, 1908-9; Ordnungs-lehre, 1925).
BIOSFERA (fr. Biosphèré). Foi esse o nome dado por Le Roy à vida em sua totalidade, na medida em
que está para os indivíduos assim como o pensamento está para as idéias que produz: é a força ou o
princípio criador deles (Uexigence idéalistique et lefait de 1'évolution, 1927). Com a aparição do homem
na Terra, começa o reino da noosfera, isto é, o reino do progresso espiritual que o homem realiza em
todos os campos mediante o poder inventivo do pensamento intuitivo (La pensée intuitive, 1929-30).
BIRANISMO. V. ESPIRITUALISMO.
BOA VONTADE. V. VONTADE.
BOCARDO. Palavra mnemônica usada pelos escolásticos para indicar o quinto dos seis modos do
silogismo de terceira figura, mais precisamente o que consiste em uma premissa particular negativa, uma
premissa universal afirmativa e uma conclusão particular negativa, como no exemplo: "Alguns homens
não são pedras; todo homem é animal; logo, alguns animais não são pedras" (PEDRO HISPANO, Summ.
log, 4.15).
BOM. V. BEM.
BOM SENSO (in. Good sense, fr. Bon sens; it. Buon senso). Essa expressão, que não deve ser
confundida com senso comum (v.), foi usada por Descartes como sinônimo de razão, na frase que abre o
Discurso do método. "A faculdade de bem julgar e de distinguir o verdadeiro do falso, propriamente
chamada de B. senso ou razão, é, por natureza, igual em todos os homens". Hoje, não se poderia mais
admitir essa sinonímia. Por um lado, a razão passou cada vez mais a designar técnicas específicas (v.
RAZÃO) e, por outro, o B. senso continuou designando certo desequilíbrio e certa moderação no juízo dos
problemas comuns da vida e no comportamento cotidiano. Muitas vezes, porém, o que parece
extravagante ou paradoxal para o B. senso tem mais valor do que aquilo que se lhe conforma, porque o B.
senso tem como referência apenas o sistema estabelecido de crenças e de opiniões, só podendo julgar a
partir dos valores que esse sistema inclui. É muito freqüente que a ciência e a filosofia prescindam do B.
senso, ainda que nunca ou quase nunca possam deixar de lado as pequenas ações
cotidianas, entre as quais o B. senso estaria em seu elemento.
BONDADE (lat. Bonitas; in. Goodness, fr. Bonté, ai. Gütigheit; it. Bontã). Em sentido lato, excelência de
um objeto qualquer (coisa ou pessoa). Diz, p. ex., S. Tomás: "A B. que em Deus está de modo simples e
uniforme, nas criaturas está de modo múltiplo e dividido" (S. Th., 1, q. 47, a. 1). As discussões dos sécs.
XVII e XVIII a propósito da B. de Deus como móvel da criação (cf. LEIBNIZ, Théod., II, §§ 116 ss.)
fundaram-se num significado mais restrito do termo, que foi expresso claramente por Baumgar-ten: "A B.
(benignidade) é a determinação da vontade de fazer bem aos outros. O benefício é a ação útil ao outro,
sugerida pela B." (Met., § 903). Nesse sentido, a B. identifica-se com o que Aristóteles chamava de
benevolência (eúvoía) (Et. nic, VIII, 2, 1.155 b 33). Os dois significados desse termo estão vivos no uso
comum.
BOVARISMO (fr. Bovarismé). Termo derivado do nome da famosa heroína de Flaubert (Madame
Bovary, 1857), para indicar a atitude de quem cria para si mesmo uma personalidade fictícia e procura
viver em conformidade com ela, chocando-se contra a sua própria natureza e contra os fatos. O termo foi
criado por Jules de Gaultier (Le bovarismé, 1902).
BRAQUILOGIA (gr. Ppax'uÀ,OYÍa). No Pro-tãgorasáe Platão, Sócrates contrapõe a sua exigência de
respostas breves e sucintas à tendência de Protágoras de fazer longos discursos, obviamente porque só
através da troca de frases concisas é possível a discussão em forma de diálogo (Prot., 334 c-335 a).
BRUTISMO (fr. Brutismé). Termo empregado por St.-Simon para indicar a concepção me-canicista dos
fenômenos; por isso, é equivalente a mecanicismo (v.).
BUDISMO (in. Buddhism-, fr. Bouddhisme, ai. Buddhismus-, it. Buddismó). Doutrina religiosa e
filosófica que se originou dos ensinamentos de Gautama Buda (563-480 a.C. aprox.) e que foi depois
desenvolvida em grande número de diferentes tendências na índia, na China e no Japão. Os principais
textos do B. são os escritos em língua páli, chamados de Tipitaka e divididos em três grupos ou cestos: l
s
o Sutta-pitaka, que compreende os Sutra, isto é, discursos ou ensinamentos atribuídos a Buda; 2fi o
Vinayapitaka, que compreende as regras da disciplina monástica; 3a Abhidhammapitaka, que é o "cesto"
da metafísica, isto é, a seção doutrinai da coleção.
BUDISMO
112
BUDISMO
O B. é o maior exemplo de religião perfeitamente ateia. Sua doutrina fundamental resume-se nas quatro
verdades nobres-. I
a
a vida é dor; 2a
a causa da dor é o desejo; 3a
obtém-se a cessação da dor com a
cessação do desejo; 4a existe um caminho óctuplo que conduz à cessação da dor. O caminho óctuplo
consiste: l9
na justa visão; 2- na justa resolução; 3a
na justa linguagem; 4
a
na justa conduta; 5a
no justo
viver; 6a
no justo esforço; 1° na justa mentalidade; 8a
na justa concentração.
Segundo o B., o homem está sujeito à lei do incessante fluir da vida (dharmd), que o leva de desejo em
desejo, de dor em dor, de encarnação em encarnação. Enquanto o homem não se libertar do desejo, estará
submetido ao ciclo de renascimentos isamsará). A libertação do desejo, obtida por meio das regras morais
acima e da disciplina ascética (que o B. compartilhava com o bramanismo e com a prática ioga), obtém-se
somente com a dissolução da ilusão produzida pelo desejo (e que é o karrná), com a eliminação do
próprio desejo e a destruição do apego à vida, que é o nirvana.
As numerosíssimas escolas, seitas e tendências filosófico-religiosas que se originaram do B. costumam
ser agrupadas em duas grandes categorias, chamadas, respectivamente, de pequeno veículo ihinayaná) e
grande veículo (mahayanà). O pequeno veículo foi o que permaneceu mais estritamente fiel ao
ensinamento dos textos páli. A salvação está reservada ao monge, isto é, ao que seguiu a via da meditação
e alcançou o nirvana. As escolas do pequeno veículo difundiram-se sobretudo na índia, na Birmânia, no
Sião, no Camboja e no Laos. Segundo o grande veículo, a salvação pode ser obtida por qualquer fiel,
através da piedade e da caridade para com as outras criaturas, pelo que o nirvana deixa de ser libertação
individual para tornar-se libertação do gênero humano e, em geral, do mundo. O grande veículo difundiuse sobretudo no Tibete, na China e no Japão.
(Cf. DAS GUPTA, A History of Indian Philosophy, I, 1922, pp. 78 ss.; G. Tucci, Storia delia filosofia
indiana, 1957, pp. 64 ss.; S. RADHAKRISHNAN, History of Philosophy Eastern and Western, I, 1952.)
c
C. 1. Na lógica medieval, todos os silogismos indicados com palavras mnemônicas que começam por C
são redutíveis ao segundo modo da primeira figura (Celarenf) (cf. PEDRO HISPANO, Summ. log., 4. 20).
2. Na notação de Lukasiewicz, usa-se para indicar o condicional ou a implicação lógica, mais comumente
simbolizado por "c" (A. CHURCH, Introduction to Mathematical Logic, n
Q
91).
CÁLCULO (in. Calculus-, fr. Calcul; ai. Be-rechnung, it. Calcolõ). Entende-se hoje por esse termo
qualquer método ou procedimento dedutivo, isto é, que seja capaz de efetuar infe-rências sem recorrer a
dados de fato. C. são, p. ex., os procedimentos da matemática e da lógica. Esse significado'genérico do
termo já fora proposto por Hobbes, que definia a própria razão como um cálculo. "A razão, dizia ele, não
é senão um C, isto é, uma adição ou subtração das conseqüências dos nomes gerais reunidos para definir e
exprimir os nossos pensamentos" (Leviath., I, 5). Leibniz chamou de "C. filosófico" a ciência universal ou
característica universal (v.) em que ele via o instrumento da invenção conceituai (Op., ed. Erdmann, pp.
82 ss.). Carnap faz a distinção entre C. e sistema semântico, no sentido de que, "enquanto os enunciados
de um sistema semântico são interpretados, afirmam alguma coisa e por isso são verdadeiros ou falsos, no
cálculo os enunciados são considerados do ponto de vista puramente formal". Para sublinhar essa
distinção, às vezes os elementos do C. são chamados de fórmulas e os elementos do sistema semântico, de
proposições {Foundations of Logic andMa-thematics, § 9).
Carnap também observou que os cálculos podem tomar o nome dos sinais ou das expressões que neles
aparecem; nesse sentido, diz-se cálculo dos enunciados ou dos predicados ou então, como ocorre mais freqüentemente, os cálculos podem tirar seu nome dos objetos por eles
designados, ou seja, a que se referem {Introduction to Semantics, 2
a
ed., 1959, p- 230). Nesse segundo
sentido, o C. proposicional é o estudo formal dos conec-tivos lógicos (v. CoNEcnvos) e os seus teoremas
são constituídos pelas fórmulas que podem derivar das fórmulas primitivas com a aplicação sucessiva das
regras primitivas de infe-rência. O C. funcional, por sua vez, tem como objeto as funções proposicionais
(v. FUNÇÃO) e, além dos conectivos, utiliza o quantificador universal (v. OPERADOR). O C. das classes ou
álgebra das classes trata de classes ou conjuntos determinados por funções proposicionais ou predicados
e dá lugar a fórmulas que são expressões nas quais se reitera o símbolo = ou * (desigual). A álgebra das
classes é isomórfica com o C. funcional porque coincide com ele no seu significado (v. ÁLGEBRA DA
LÓGICA). Enfim, a álgebra das relações é o estudo formal das relações (v.).
CÁLCULO COMBEVATÓRIO. V. COMBINA-TÓRIA, ARTE.
CÁLCULO HEDONÍSTICO (in. Hedonic Calculus). Foi esse o nome que Bentham deu ao quadro
completo dos móveis da ação humana, que serviriam de guia para qualquer legislação futura. O quadro
compreende a determinação da medida da dor e do prazer em geral; em segundo lugar, uma classificação
das várias espécies de prazer e de dor; em terceiro lugar, uma classificação das diversas sensibilidades
dos indivíduos ao prazer e à dor. Pelo primeiro aspecto, o prazer e a dor são considerados como entidades
passíveis de serem pesadas e medidas, estando, portanto, sujeitas a um C. rigoroso. Esse C. versará sobre
a intensidade, a duração, a certeza, a proximidade, a fecundidade
CALENDES
114
CÂNON
e a pureza do prazer {Principies of Moral and Legislation, 1789) (v. DEONTOLOGIA).
CALENDES. Palavra mnemônica usada pela Lógica de Port-Royal para indicar o sexto modo do
silogismo de primeira figura (isto é, Ce-lantes), com a diferença de assumir como premissa maior a
proposição em que entra o predicado da conclusão. P. ex.: "Todos os males da vida são males passageiros;
todos os males passageiros não devem ser temidos; logo, nenhum dos males temíveis é um mal desta
vida" (ARNAULD, Log., III, 8).
CALVO, ARGUMENTO DO. V. MONTÃO, ARGUMENTO DO.
CAMESTRES. Palavra mnemônica usada pelos escolásticos para indicar o segundo dos quatro modos do
silogismo de segunda figura, mais precisamente o que consiste em uma premissa universal afirmativa,
uma premissa universal negativa e uma conclusão universal negativa, como p. ex.: "Todo homem é
animal; nenhuma pedra é animal; logo, nenhuma pedra é homem" (PEDRO HISPANO, Summ. log., 4, 11).
CAMPO (in. Field; fr. Champ, ai. Feld; it. Campo). Conjunto de condições que possibilitam um evento;
ou limites de validade ou de aplicabilidade de um instrumento cognoscitivo. Dizia Kant: "Os conceitos
têm um C. próprio na medida em que se referem a objetos, prescindindo da possibilidade do
conhecimento dos próprios objetos, e o C. é determinado unicamente pela relação que o objeto tem com a
nossa faculdade de conhecer em geral" {Crít. do Juízo, intr. § 11). Em física, C. significa "distribuição
contínua de algumas condições predominantes, através de um contínuo" onde a palavra "condição" indica
uma grandeza qualquer, que pode variar segundo o problema de que se trata. Quando a condição é
adequadamente descrita para cada ponto do espaço por um número simples (isto é, por um escalar), temse o que se conhece por campo escalar. P. ex., a temperatura é a condição de um C. e por isso a
distribuição da temperatura por meio do volume é um exemplo físico de C. escalar (D'ABRO, New
Physics, capítulo X). Analogamente, em psicologia, p. ex., na psicologia da forma, onde o conceito foi
assim ilustrado: "O que determina a impressão de cor que experimentamos em um ponto circunscrito do
C. visual é o estado excitável global do C. visual; o que determina a impressão de um peso que
levantamos não é somente a tensão do grupo
muscular imediatamente ligado ao levantamento do peso, mas também o tônus de todo o resto da
musculatura" (KATZ, Gestaltpsychologie, 3; trad. it., pp. 29-30). Mais precisa e genericamente, K. LEWIN
definiu o C, entendido como o "espaço vital" de um organismo, como "a totalidade dos eventos
possíveis", da qual derivaria o comportamento do próprio organismo {Principies ofTopological
Psychology, 1- ed., 1936, p. 14). Dewey emprega a palavra em sentido genérico: "É sempre em algum C.
que se verifica a observação deste ou daquele objeto. Tal observação é feita com o fim de descobrir o que
aquele C. representa em relação a alguma resposta ativa de adaptação com que dar prosseguimento a um
comportamento" {Logic, Intr., trad. it., p. 111).
Essa noção é usada com mais precisão em lógica, entendendo-se por C. de uma relação o conjunto do
dominante e do dominante inverso da relação; isto é, dos termos que estão em dada relação com este ou
aquele termo {dominantes) ou dos termos com que este ou aquele termo se acha em* dada relação
{dominantes inversos) (v. RELAÇÃO). Esse conceito também foi usado na teoria do significado (cf. A. P.
USHENKO, The Field Theory of Meaning, 1958) e em lingüística, em que o C. foi entendido como a rede
de associações que interligam um termo a muitos outros termos (ULMANN, Semantics, 1962, IX, 1).
CANCELAMENTO (ai. Durchstreichung). Em Ideen (I, § 106) Husserl chama de C. a negação de uma
crença ou a tomada de posição contra ela.
CÂNON (gr. KOCVIÚV; in. Canon; fr. Canon; ai. Kanon; it. Cânone). Critério ou regra de escolhas para
um campo qualquer de conhecimento ou de ação. É provável que esse termo tenha sido introduzido pelo
escultor Policleto, que deu esse título a uma obra na qual descrevia a simetria do corpo e indicava as
regras e as proporções que o escultor deve respeitar (40, A, 3 Diels). Epicuro chamou de canônica a
ciência do critério; para ele, critério é a sensação no domínio do conhecimento e o prazer no domínio
prático (DIÓG. L., X, 30). Esse termo foi retomado pelos matemáticos do séc. XVIII e Leibniz o emprega
para designar "as fórmulas gerais que dão o que se .pede" {Mathematische Schriften, VIII, 217), p. ex., a
fórmula que dá dois números cuja soma e subtração se conhecem, ou a que dá as raízes de uma equação.
Stuart Mill chama de C. as regras que exprimem
CAOS
115
CARÁTER
os quatro métodos da pesquisa experimental, isto é, concordância, diferença, resíduos e variações
concomitantes (Logic, II, 8, § 1 ss.). Kant entende por C. o uso legítimo de uma faculdade humana em
geral; por isso, considera a lógica geral como um C. para o intelecto e a razão no que tange à forma (já
que prescinde de qualquer conteúdo); considera a analítica transcendental como "o C. do intelecto puro" e
chama de "C. da razão pura" o conjunto de princípios a priori do uso legítimo de certas faculdades
cognoscitivas em geral. Onde não é possível o uso legítimo de uma faculdade, não há C; por isso, a
dialética transcendental, isto é, o uso especulativo da razão, não tem um C. ou pelo menos não tem um C.
teorético, mas pode ter apenas um para uso prático (Crít. R. Pura, Doutr. do método, cap. II). Por outro
lado, ele fala de C. do juízo moral, assim expresso: "Deve-se poder querer que a máxima da nossa ação se
torne lei universal" (Grund-legung zur Met. der Sitten, II). Na filosofia moderna e na filosofia
contemporânea, emprega-se mais freqüentemente o termo critério (v.). No entanto, às vezes C. também é
empregado no sentido tradicional. Dewey chama de C. os princípios lógicos de identidade, contradição e
terceiro excluído (Logic, cap. XVII).
CAOS (gr. %ácoç); Propriamente: abismo hiante. Estado de completa desordem anterior à formação do
mundo e a partir do qual se inicia tal formação, segundo os mitólogos. Diz Hesíodo: "Antes de todos os
seres houve o C, depois a Terra de largo seio" (Teog., V, 116). Aristóteles combateu essa noção (Fís., IV,
208 b 31 ss.) porque admitia a eternidade do mundo. Kant utilizou-a para indicar o estado original da
matéria, de que os mundos depois se originaram (Allgemeine Naturgeschichte oder Theorie desHimmels,
1755, Pref).
CARACTERES (ai. Charakters). Assim Ave-narius (Kritik der reinen Erfahrung, 1888-90) chamou um
dos dois fatores de que se compõe o mundo da experiência, mais precisamente aquele que consiste nas
determinações emotivas, existenciais, práticas e, em geral, valo-rativas dos elementos que constituem o
outro fator da própria experiência. Assim, são C. o prazer, a dor, o ser, a aparência, o certo, o incerto, etc,
ao passo que as sensações (sons, cores, etc.) são elementos.
CARACTERISMAS (ai. Charakterismen). Para Kant, são "designações dos conceitos por
meio de sinais sensíveis concomitantes" como as palavras, os gestos, os signos algébricos, etc. (Crít. do
Juízo, § 59).
CARACTERÍSTICA (lat. Characteristicá). Leibniz preferiu dar o nome de C. ou C. universal àquilo
que, anteriormente (1666), chamara de "arte combinatória", isto é, "a arte de formar e de ordenar os
caracteres de modo que se refiram aos pensamentos, isto é, de modo que tenham entre si a mesma relação
que existe entre os próprios pensamentos^. Os caracteres não são senão sinais escritos, desenhados ou
esculpidos. Os fundamentos da arte combinatória são expressos pelo próprio Leibniz no livro
Fundamenta calculi, ratiocinatoris (Op., ed. Erdmann, pp. 92 ss.) do seguinte modo: Todos os
pensamentos humanos podem ser reduzidos a poucas noções primitivas; se tais noções forem expressas
com caracteres, isto é, com símbolos, é possível formar os símbolos das noções derivadas e, assim, passar
a deduzir tudo o que está implícito nas noções primitivas e nas definições. Desse modo, será possível
proceder com certeza matemática tanto à aquisição de novos conhecimentos quanto ao controle dos já
possuídos e também será possível determinar antecipadamente que experiências ou novas noções são
necessárias a ulteriores desenvolvimentos do conhecimento. A C. deveria, portanto, formar um cálculo
lógico, provido de símbolos e regras próprias. Kant comparava a C. universal de Leibniz ao tesouro
escondido de que fala uma fábula de Fedro: os filhos, a quem o pai confiara a existência do tesouro no
leito de morte, remexem a terra e fertilizam-na, sendo esse o único tesouro que encontram (Nova
dilucidatio principiorum metaphysicae, 1755, prop. II). Todavia, a idéia de Leibniz e as várias tentativas
de realizá-la constituem o precedente histórico imediato da moderna lógica simbólica.
CARACTEROLOGIA (fr. Caractérologie, ai. Charakterologie ou Charakterkunde, it. Carat-terologid).
Termo que entrou em uso na segunda metade do século passado para indicar a ciência do temperamento
ou do caráter. Cf.
CARÁTER; ETOLOGIA.
CARÁTER (gr. %otpaKttíp, rjOoç lat. Character, in. Character, fr. Caractère, ai. Charakter, it.
Caratteré). Propriamente o sinal, ou o conjunto de sinais, que distingue um objeto e permite reconhecê-lo
facilmente entre os outros. Em particular, o modo de ser ou de comportar-se habitual e constante de uma
pessoa, à medida
CARÁTER
116
CARÁTER
que individualiza e distingue a própria pessoa. Nesse sentido, dizemos que "Uma pessoa tem um C. bem
marcado" ou "bem definido", no sentido de que o seu modo de agir revela orientações habituais e
constantes. Em sentido oposto, falamos de "falta de C." ou "C. fraco", "mau C." ou "C. inconstante",
comportamento habitualmente devido mais a opções causais e caprichosas do que a uma orientação
determinada e constante.
Os antigos possuíam essa noção. Heráclito diz que o C. (r|0oç, ethos) de um homem é o seu destino (Fr.
119, Diels). E o aristotélico Teofrasto deixou-nos, no texto intitulado Os caracteres, a descrição de trinta
tipos de C. morais (importuno, vaidoso, descontente, fanfarrão, etc), descritos precisamente com base em
suas manifestações habituais. Esquecida durante a Idade Média, quando essa palavra serviu sobretudo
para designar a indestrutibilidade da ordenação sacerdotal (S. TOMÁS, S. Th., III, q. 65, a. 1 ss.), essa
noção foi retomada no séc. XVII por La Bruyère (Les caracteres, 1687) e voltou a ser usada. Kant
utilizou-a na tentativa de conciliar a causalidade natural e a causalidade livre. Cada causa eficiente deve
ter um caráter, isto é, "uma lei da sua causalidade, sem a qual não seria causa". Um objeto do mundo
sensível tem, em primeiro lugar, um C. empírico, pelo qual os seus atos, como fenômenos, estão
vinculados causalmente aos outros fenômenos, em conformidade com as leis naturais. Mas o mesmo
objeto também pode ter um C. inteligível, "pelo qual ele é a causa daqueles atos como fenômenos, mas,
por si mesmo, não está sujeito a nenhuma condição sensível e não é fenômeno". Sobre o caráter
inteligível pode-se dizer "que dá início por si mesmo aos seus efeitos no mundo, sem que a ação comece
nele mesmo"; e com essa distinção, Kant acredita ter conciliado liberdade e natureza (Crít. R. Pura,
Antinomias da razão pura, § 3). Com menos metafísica (e mais clareza), em Antropologia, ele distingue
um C. físico, que é o sinal distintivo do homem como ser natural, e um C. moral, que é o sinal do homem
como ser racional, provido de liberdade. O C. físico diz "o que se pode fazer do homem; o C. moral diz o
que o homem é capaz de fazer de si mesmo" (Antr., II, a). Schopenhauer utilizou a distinção kantiana
entre C. empírico e C. inteligível para negar a liberdade: tudo o que o homem faz seria a manifestação de
um C. inteligível inato e imutável (Die Welt, I, § 55; Neue Paralipomena, § 220).
A distinção kantiana de dois C, um natural e imutável e outro moral e livre, é totalmente abandonada na
antropologia contemporânea, que, todavia, dá grande destaque à noção de caráter. Mas na interpretação
dessa noção, pode-se dizer que a antropologia contemporânea assume um ou outro dos dois conceitos em
que Kant distinguira essa noção, isto é, ou entende o C. como uma formação natural e inevitável que o
homem traz consigo e não pode modificar, ou o entende como uma formação devida às escolhas do
homem e, portanto, livre e modificável. Faremos menção apenas a algumas das principais posições, quer
num sentido, quer no outro. A teoria dos tipos psicológicos de Jung pertence à primeira tendência porque
considera o C. como uma orientação predominantemente inconsciente, devida a disposições orgânicas ou
ao fundamento instintivo. O C. de um homem é a direção em que ocorre o encontro entre esse homem e o
mundo, ou entre esse homem e a sociedade: é o complexo de atitudes ou disposições para agir ou reagir
em certa direção. Ora, no encontro entre o homem e o mundo, são possíveis duas atitudes fundamentais:
ou o homem procura dominar o mundo, isto é, os objetos externos, assumindo uma atitude ativa, positiva,
criadora, ou então procura simplesmente defender-se dele, fechando-se em si o mais possível; a primeira
atitude é a extrovertida, que produz abertura, socialidade, isto é, freqüência de relações com os outros; a
segunda é a introvertida, que indica fechamento, timidez e, em todo caso, relutância em relacionar-se com
os outros e com as coisas {Tipospsicológicos, 1913). Essa classificação de Jung ficou célebre e é comumente empregada mesmo sem referência às suas bases teóricas. A mesma noção de C. como dado
irredutível, estrutura originária e congênita, não modificável pelas escolhas do indivíduo, é compartilhada
por Le Senne, para quem o C. é "o sistema invariável das necessidades que se encontram, por assim dizer,
no limite entre o orgânico e o mental" {Traité de caractérologie, p. 1). Só que, para Le Senne, o C. não
constitui a totalidade do homem: é só um dos elementos da sua personalidade e esta compreende, além do
C, também elementos livremente adquiridos, que podem contribuir para especificar o próprio C. em um
sentido ou em outro. O C. é, portanto, um limite objetivo, intrínseco à própria personalidade, da escolha
que a personalidade pode fazer livremente de
CARÁTER
117
CARDEAIS, VIRTUDES
si mesma; mas como limite é algo de congênito e, em si mesmo, de imutável. Portanto, para Le Senne, a
determinação devida ao C. não é necessitante, apesar de originária e relativamente imutável. Embora
nesse ponto Le Senne se apoie num fundamento estabelecido por Adler (de que falaremos adiante), para
ele a noção de C. é uma determinação ou complexo de determinações originárias e imodificáveis, isto é,
continua presa a um significado que não distingue C. de temperamento (v.). Esse conceito de C. faz da
liberdade e do determinismo na personalidade humana duas forças distintas e reciprocamente autônomas:
uma reside no eu e a outra no C. (ou no temperamento), reproduzindo, em linguagem diferente, o
dualismo kantiano de C. inteligível e C. empírico.
A doutrina de Adler, porém, fugiu a esse dualismo. Para Adler, o C. é a manifestação objetiva, verificável
através da experiência social, da própria personalidade humana. Não só o C. é um "conceito social', no
sentido de que só se pode falar de C. referindo-se à conexão de um homem com o seu ambiente, mas
também os traços ou as disposições que constituem o C. são verificáveis apenas socialmente. As
manifestações do C. "são semelhantes a uma linha diretiva que adere ao homem como um esquema e lhe
permite, sem muita reflexão, exprimir a sua personalidade original em cada situação"
{Menschenkenntniss, 1926, II, 1; trad. it., pp. 150 ss.). Essas manifestações não exprimem nenhuma força
ou substrato inato, mas são adquiridas, ainda que muito cedo. Substancialmente, o C. é o modo como o
homem toma posição diante do mundo natural e social; e Adler baseia sua avaliação em dois pontos de
referência: a vontade de poder e o sentimento social, que, com sua ação recíproca, constituiriam os
aspectos básicos do caráter. "Trata-se", diz ele, "de um jogo de forças, cuja forma de manifestação
exterior caracteriza o que nós chamamos de C." (Ibid., 1926, II, 1; trad. it., p. 176). Scheler, por sua vez,
faz uma distinção radical entre pessoa e C. A pessoa é o sujeito dos atos intencionais e, portanto, é o
correlato de um mundo, mais precisamente do mundo em que ela vive. O C, ao contrário, é a constante
hipotética x que se assume para explicar as ações particulares de uma pessoa. Portanto, se um homem age
de forma não correspondente às deduções que tínhamos extraído da imagem hipoteticamente assumida do
seu caráter, devemos estar dispostos a mudar essa
imagem. Mas a pessoa não pode mudar: portanto, não pode ser afetada pelas mudanças de C, assim como
não é afetada pela doença psíquica que somente a oculta (Formalismus, pp. 501 ss.). Essa separação
nítida entre C. e pessoa, que, em Scheler, se deve ao primado metafísico que ele atribui à pessoa, não
encontra equivalência na antropologia contemporânea, cujos traços, mais comuns e importantes no que se
refere à doutrina do C, podem ser assim recapitulados: I
a
o C. é a manifestação objetiva da personalidade
humana ou é essa mesma personalidade no seu aspecto objetivo, da forma como é apreendida pela
experiência humana comum ou pelas técnicas de investigação da personalidade (v. PERSONALIDADE); 2S
o
C. distingue-se do temperamento (v.) porque não é um dado puramente orgânico como este último e
porque não é um elemento imutável e necessitante, mas resultado das opções feitas por um indivíduo,
consistindo nas constantes observáveis das suas opções; 3Q
tais opções não são absolutamente livres nem
necessárias, mas condicionadas por elementos orgânicos, ambientais, sociais etc; e, em suas constantes
observáveis, delineiam um projeto de comportamento no qual coincidem o C. e a personalidade do
homem.
CARÁTER POÉTICO (it. Carattere poético). Segundo Viço, os primeiros homens conceberam as
coisas inicialmente mediante "C. fantásticos de substâncias animadas e mudas", isto é, atos ou corpos que
tivessem alguma relação com as idéias, e depois com "C. divinos e heróicos", mais tarde explicados com
palavras vulgares iScienza nuova, 1744, passim): nessas locuções obviamente a palavra "caráter" está por
sinal ou símbolo.
CARDEAIS, VIRTUDES (lat. Cardinales virtudes; in. Cardinal virtues; fr. Vertues cardinales; ai.
Kardinaltugenden; it. Virtú car-dinali). Assim foram chamadas por Sto. Am-brósio (Deoff. ministr., I, 34;
De Par, III, 18; De sacr., III, 2) as quatro virtudes de que fala Platão em República e que estão entre as
que Aristóteles chamava de virtudes morais ou éticas, a saber: prudência, justiça, temperança e fortaleza.
S. Tomás procurou mostrar a oportunidade desse qualificativo, demonstrando que só as virtudes morais
podem ser chamadas de C. ou principais, pois só elas exigem a disciplina dos desejos irectitudo
appetitus). na qual consiste a virtude perfeita; por isso, devem ser assim denominadas as virtudes morais
às quais
CARIDADE
118
CASAMENTO
todas as outras se reduzem, isto é, as quatro acima referidas {S. Th., II, 1, q. 51) (v. VIRTUDE).
CARIDADE (gr. àr{ám\; lat. Caritas; in. Charity, fr. Charité, ai. Nüchstenliebe, it. Ca-rita). É a virtude
cristã fundamental porque consiste na realização do preceito cristão fundamental: "Ama o próximo como
a ti mesmo". S. Paulo foi quem mais insistiu na superioridade da C. em relação às outras virtudes cristãs,
quais sejam a fé e a esperança. "A C. tudo suporta, em tudo tem fé, tudo sustenta... Agora existem a fé, a
esperança e a C, essas três coisas; mas a C. é a maior de todas" {Cor., I, 13, 7, 13). Para S. Paulo, a C. é,
substancialmente, o vínculo que mantém ligados os membros da comunidade cristã e faz dessa
comunidade o próprio "corpo de Cristo". Em seguida, a filosofia cristã viu na C. sobretudo a ligação entre
o homem e Deus. S. Tomás define a C. como "a amizade com Deus" e diz: "Essa sociedade do homem
com Deus, que é quase uma conversa familiar com Ele, começa na vida presente por meio da graça e se
aperfeiçoa no futuro por meio da glória; uma e outra são mantidas pela fé e pela esperança" {S. Th., II, 1,
q. 65, a. 5). Sobre o conceito do amor cristão, v. AMOR. Na linguagem comum, essa palavra às vezes é
empregada no lugar de beneficência, isto é, para indicar a atitude de quem quer o bem do outro e se
comporta generosamente para com ele. Mas a linguagem comum também conhece e usa o significado
correto desse termo, ao dizer, p. ex., que "E preciso um pouco de C." a quem julga com demasiada
severidade o seu próximo: nesse caso, obviamente, C. significa amor ou compreensão (v. AMOR).
CARNE (gr. aápí,; lat. Cara, in. Flesh; fr. Chair, ai. Fleisch; it. Carne). Na terminologia do Novo
Testamento, especialmente em S. Paulo, é algo diferente do corpo. A C. ou carnali-dade é a aversão ou a
resistência à lei de Deus, e por isso o pecado ou a orientação para o pecado (p. ex., S. PAULO, AáRom.,
VII, 14; VIII, 3, 8, etc. Cf. BULTMANN, Theologie des N. T, 1948, p. 223). O mesmo sentido conservou-se
na linguagem comum e na pregação moralista. Esse termo foi usado em sentido diferente por MerleauPonty {Le visible et Vinvisible, 1964), ao falar da "C. do mundo" como da substância viva comum ao
corpo do homem e às coisas do mundo, que constitui, ao mesmo tempo, o objeto e o sujeito das
experiências humanas.
CARTESIANISMO. Conjunto dos fundamentos tradicionalmente considerados como típicos da doutrina
de Descartes e aos quais se faz habitualmente referência tanto no sentido de aceitar quanto de refutar.
Podem ser resumidos do seguinte modo: 1Q
caráter originário do cogito como auto-evidência do sujeito
pensante e princípio de todas as outras evidências; 2-presença das idéias no pensamento, como únicos
objetos passíveis de conhecimento imediato; 3a
caráter universal e absoluto da razão que, partindo do
cogito e valendo-se das idéias, pode chegar a descobrir todas as verdades possíveis; 4Q
função
subordinada, em relação à razão, da experiência (isto é, da observação e do experimento), que só é útil
para decidir nos casos em que a razão apresenta alternativas equivalentes; 5e
dualismo de substância
pensante e substância extensa, pelo qual cada uma delas se comporta segundo lei própria: a liberdade é a
lei da substância espiritual; o mecanismo é a lei da substância extensa.
Em sentido estrito, o C. teve representantes na Holanda (Henrique Régio, 1598-1679; Pierre Daniel Huét,
1630-1721; Gilberto Voêtius, 1589-1676), entre os Padres do Oratório e os Jan-senistas (Antoine Arnauld,
1612-94; Pierre Ni-cole, 1625-95), através dos quais deu origem à lógica de Port-Royal, e entre os
ocasionalistas (Arnold Geulingx, 1624-69; N. Malebranche, 1638-1715) (v. OCASIONALISMO;
ESCOLÁSTICA). Em sentido mais lato, podem ser consideradas como desenvolvimentos do C. da doutrinas
de Spinoza, de Leibniz e mesmo de Locke, que dele extraíram um ou outro fundamento. Na filosofia
moderna e contemporânea, permaneceram como características do C. sobretudo o 1Q
, o 2S
e o 4e
fundamentos.
CASAMENTO (gr. yáLioç; lat. Matrimo-nium-, in. Marriage, fr. Mariage, ai. Ehe, it. Matrimônio).
Qualquer projeto de vida em comum entre pessoas de sexos diferentes. Esta é a definição generalizada,
que leva em contra a variedade de formas assumidas pelo C. em grupos sociais diferentes, bem como os
diversos conceitos existentes sobre o assunto. Os conceitos existentes podem ser agrupados do seguinte
modo:
1
Q
) C. como instituição natural. Foi concebido desse modo por Platão, que viu na "sociedade conjugai o
princípio e a origem de todos os Estados" {Leis, IV, 721 a), e por Aristóteles, que considerou a família
como algo "anterior e mais necessário que o Estado" {Et. nic, 8, 12,
CASA DOS PLANETAS
119 CATALEPTICA, REPRESENTAÇÃO
1162 a 18 e ss.); contudo, tanto Platão quanto Aristóteles achavam indispensável que o Estado interviesse
para regulamentar as modalidades do C. Neste caso, o fim exclusivo do C. é a procriação e a educação da
prole.
2
9
) C. como instituição contratual. É dessa forma que foi entendido pelo direito romano e pelo direito
canônico. Nesse caso, mesmo considerando que seu fim é a procriação e a educação da prole, deste se
distingue a forma, ou essência, do C, considerado como associação ou comunhão de vida (consortium
omnis vitae, DIÓG. XXI, 23, 2), ou então como "alguma conjunção indissolúvel de almas", como diz S.
Tomás {S. Th., III, 1. 29, a. 2), cuja condição indispensável é o consentimento, expresso nas formas
estabelecidas pela lei civil ou religiosa. Kant insistia no aspecto contratual do C, defi-nindo-o como
"união de duas pessoas de sexo diferente para a posse recíproca de suas faculdades sexuais durante toda a
vida"; considerou-o como fonte de um direito real, além de pessoal, no sentido de que cada uma das duas
pessoas é adquirida pela outra como coisa, mas viu na reciprocidade dessa aquisição o resgate da
personalidade dos dois cônjuges (Met. der Sitten, I, § 24-25). Hegel, ao contrário, insistia na unidade
ético-sentimental do C: "O C. não é essencialmente união meramente natural, bestial, nem puro contrato
civil, mas união moral do sentimento, do amor e da confiança mútua, que transforma duas pessoas em
uma" {Philosophische Propãdeutik, I, § 51; Ene, §519; Fil dodir, § 162).
3
Q
) C. como instituição social. Esse é o ponto de vista dos antropólogos e sociólogos que encontraram nos
diversos grupos humanos todas as formas possíveis de C: de um homem e uma mulher, de um homem e
várias mulheres, de vários homens e várias mulheres (cf., p. ex., W. N. STEPHENS, The Family in CrossCultural Perspective, 1963). Desse ponto de vista, Lévi-Strauss considerou as regras do C. como uma
espécie de linguagem, um tipo de comunicação, mais especificamente a comunicação das mulheres no
seio de um grupo {Structures élémentaires de Ia parente, 1949; cf. Anthropologie structurale, 1958, pp.
69 ss.).
CASAS DOS PLANETAS (lat. Domus pla-netarum). C. dos planetas é o nome que os astrólogos (cf.
Pico DEIXA MIRANDOLA, Adv. astrol. divin., VI, III) dão às doze posições em que os planetas se
encontram, segundo
as quais exercem diferentes influências sobre a vida humana.
CASUALISMO (in. Casualism-, fr. Casualis-me, it. Casualismó). Doutrina segundo a qual o acaso não é
somente expressão da ignorância humana a respeito das causas de certos acontecimentos, mas uma
condição ou situação objetiva de indeterminação nas próprias coisas. Peirce chamou essa doutrina de
tiquismo {Chance, Love and Logic, II, 3; Coll. Pap., GAl ss.), de Tt3xT|, que na realidade significa sorte.
Um C. radical é o sustentado por Wittgenstein. "Fora da lógica tudo é acaso", diz ele {Tractatus, 6.3).
Deve-se lembrar que a lógica trata somente de tautologiasCy.), que nada significam.
CASUÍSTICA (in. Casuistry, fr. Casuistique, ai. Kasuistik, it. Casistica). Análise e classificação dos
"casos de consciência", isto é, dos problemas que nascem da aplicação das normas morais ou religiosas à
vida humana. Na Antigüidade, os cínicos e os estóicos tiveram uma casuística. Houve e há uma C. cristã,
que, a partir de Pascal, muitas vezes foi acusada (Pro-vinciales, 1657) de moralidade relaxada e comodista. A exigência de uma C. moral foi encarada por Kant, que esclareceu o seu conceito da seguinte
forma: "A ética, pela ampla margem que concede aos deveres imperfeitos, conduz inevitavelmente a
questões que levam o juízo a ter de decidir como a norma deve ser aplicada aos casos particulares ou que
norma particular (subordinada) fornecer por sua vez (desse modo, podemos sempre perguntar qual é o
princípio de aplicação dessas normas, segundo os casos que se apresentam); e assim, a ética desemboca
na C". A C. não é ciência nem parte de ciência, pois nesse caso seria dogmática, mas é "um exercício que
ensina como a verdade deve ser procurada" {Met. der Sitten, II, Intr., 18, nota).
CATALEPTICA, REPRESENTAÇÃO (gr cpavxaoía Kara^.r|7rnKTÍ; lat. Fantasia com-prehensiva; ai.
Kataleptische Vorstellung, it. Rappre-sentazione catalettica). Critério da verdade, segundo os estóicos,
que chamaram de C, ou seja, compreensiva, a representação evidente ou que torna evidente o objeto que a
produz. Segundo um testemunho de Cícero {Acad., II, 144), Zenão atribuía o significado da representação
C. à sua capacidade de apreender ou compreender o objeto: por isso, comparava a mão aberta à
representação pura e simples; a mão que faz o gesto de agarrar, ao assentimen-to; a mão em punho, à
compreensão C; as duas
CATARSE
120
CATÁSTROFE
mãos estreitadas, uma sobre a outra, à ciência. Entretanto, segundo Diógenes Laércio (VII, 46) e Sexto
Empírico (Adv. math., VII, 28), a representação C. é a que provém do real subjacente e é impressa e
marcada por ele de tal modo que é conforme com ele. Em outros termos, a representação C. é o ato do
intelecto que apreende o objeto ou é o ato do objeto que se imprime no intelecto; em ambos os casos,
garante a presença do objeto e a conformidade da representação com ele. Os céticos, de Arcesilau em
diante, puseram em dúvida o critério da representação C, negando que se pudesse ter certeza da verdade
de uma representação qualquer (SEXTO EMPÍRICO, Adv. math., VII, 162-64).
CATARSE (gr. KÓ0ap(Tiç). Libertação do que é estranho à essência ou à natureza de uma coisa e que,
por isso, a perturba ou corrompe. Esse termo, de origem médica, significa "purgação". Platão define a C.
como "a discriminação que conserva o melhor e rejeita o pior" (Sof, 226 d). E lembra a existência de
livros de Museu e Orfeu, segundo os quais "os adeptos celebram sacrifícios persuadindo cidadãos e
cidades inteiras de que existem absolvições e purificações dos atos injustos, por meio de sacrifícios e
jogos aprazíveis, tanto para os vivos como para os mortos". Empédocles chamou de Purificações
(Ká0apu.ot) um dos seus poemas que, precisamente, se inspirava no orfismo. Em Platão, esse termo tem
acepção moral e metafísica. Designa, em primeiro lugar, a libertação em relação aos prazeres (Fed., 67 a,
69 c); em segundo lugar, a libertação da alma em relação ao corpo, no sentido de que a alma se separa ou
se retira das atividades físicas e realiza, já em vida, a separação total, que é a morte (Ibid., 67 c). Plotino
insistirá neste último aspecto; para ele a virtude purifica a alma dos desejos e de todas as outras emoções,
no sentido de que separa a alma do corpo e faz que a alma se recolha em si mesma e se torne impassível
(Enn., I, 2, 5).
Aristóteles utilizou amplamente esse termo em seu significado médico, nas obras sobre história natural,
como purificação ou purgação. Mas foi o primeiro que o usou para designar também um fenômeno
estético, qual seja, uma espécie de libertação ou serenidade que a poesia e, em particular, o drama e a
música provocam no homem. "A tragédia", disse ele, "é imitação elevada e completa da ação, que tem
certa extensão, pela linguagem e diversas espécies de adornos distribuídos em suas várias
partes; imitação realizada por atores e não em forma narrativa e que, suscitando o terror e a piedade,
chega à purificação de tais afetos" (Poet., 1449 b, 24 ss.). É muito curioso que Aristóteles, apesar de
examinar todos os elementos da tragédia, não se demore na explicação do que é C; isso quer dizer que, aí,
utiliza a palavra no sentido geral de serenidade e calma, embora não de ausência total de emoções;
sentido que se coaduna com o que ele diz sobre a música, em Política. Nessa obra, observa que algumas
pessoas, fortemente abaladas por emoções como piedade, medo e entusiasmo, ao ouvirem cantos sacros
que impressionam a alma, "encontram-se nas condições de quem foi curado ou purificado".
Todas as outras emoções também podem sofrer "purificação e agradável alívio". E "as músicas mais aptas
a produzir purificação transmitem uma alegria inocente aos homens" (Pol., VIII, 7, 1.342 a 17). Das
muitas interpretações sobre a C. estética, prevalece a de Goethe (Nachlese zu Aristot. Poetik, 1826), para
quem ela consistiria no equilíbrio das emoções que a arte trágica induz no espectador, depois de ter
suscitado nele essas mesmas emoções, e portanto, na sensação de serenidade e pacificação que ela
proporciona. Se bem que haja algo de semelhante em Aristóteles, é preciso observar que, para ele, o
significado da C. estética não é diferente do da C. médica ou moral: uma espécie de tratamento das
afecções (físicas ou espirituais) que não as anula mas as reduz a dimensões em que são compatíveis com a
razão.
Na cultura moderna, o termo C. foi usado quase exclusivamente como referência à função libertadora da
arte. Freud às vezes chamou de C. o processo de sublimação da libido (v. AMOR), pelo qual a libido se
separa do seu conteúdo primitivo, ou seja, da sensação voluptuosa e dos objetos a ela ligados, para
concentrar-se em outros objetos que serão amados por si mesmos. Segundo Freud, a esse processo de C.
("sublimação") são devidos todos os progressos da vida social, a arte, a ciência e a civilização em geral,
pelo menos na medida em que dependem de fatores psíquicos (v. PSICANÁLISE).
CATASSILOGISMO (lat. Catasyllogismus). Contrademonstração. Esse termo é empregado por João de
Salisbury (Metalogicus, IV, 5) com referência ao verbo contrademonstrar usado por Aristóteles (An. pr.,
II, 19, 66 a 25).
CATÁSTROFE (in. Catastrophe-, fr. Catas-trophe, ai. Katastrophe, it. Catástrofe). Qual-
CATECISMO
121
CATEGORIA
quer teoria que procure explicar o desenvolvimento de uma realidade mediante reviravoltas radicais e
totais que ocorreriam periodicamente. Assim, Cuvier (Discours sur les révolutions áu globe, 1812)
explicava a extinção das espécies animais fósseis através de C. gerais que, periodicamente, teriam
destruído as espécies vivas de cada espécie geológica, permitindo que Deus criasse novas espécies. Em
1833, o geólogo inglês Lyell, em Principies of Geology, propunha a tese, depois universalmente aceita, de
que o estado atual da Terra não se deve a uma série de C, mas à ação lenta, gradual e insensível das causas
que agem continuamente sob nossos olhos. No domínio político, a teoria da C. foi adotada por Sorel
(Réflexions sur Ia violence, 1906), que concebia a passagem do capitalismo para o socialismo como uma
C, cuja reviravolta escapa a qualquer descrição. É verdade que Sorel acrescenta não ser indispensável que
tal C. se realize (não se realizou nem mesmo a que era esperada pelos primeiros cristãos), mas basta que
ela valha como um "mito". Cf. ATIVISMO; MITO.
CATECISMO (in. Catechism; fr. Catéchisme, ai. Katechismus; it. Catechismó). Kant dividiu o método
de questionário (ou erotético) em catequético, em que só se recorre à memória de quem é interrogado, e
dialogístico ou socrático, com que s& recorre ao que está contido na razão do interrogado e por isso é
passível de explicitaçâo ou desenvolvimento (Met. der Sitten, II, Intr., § 18, nota). Contudo, Kant
considera indispensável um C. moral que deveria ter precedido o C. religioso, do qual seria independente
(Ibid., § 51). O positivismo oito-centista mostrou certa predileção por C. filosóficos e filosófico-políticos.
St. Simon compilou um (C. dos industriais, 1823-24) e Augusto Comte escreveu um que ficou muito
famoso (C positivista, 1852). Isso aconteceu porque o positivismo muitas vezes se apresentou como
religião "científica", que deveria suplantar a religião tradicional.
CATEGOREMÁTICO (lat. Categoremata-in. Categorematio, fr. Catégorématique, ai. Kategorematisch; it. Categorematicó). Na gramática e na lógica medieval são assim chamadas as partes do
discurso significantes por si mesmas, como o sujeito ou o predicado, enquanto as outras são chamadas de
sincategoremãticas (v.). E provável que essa expressão derive da distinção, feita pelos estóicos, entre
"discurso perfeito", que tem sentido completo (p. ex.,
"Sócrates escreve"), e discurso imperfeito, que carece de algo (p. ex., "Escreve" que dá origem à pergunta
"Quem?") (DIÓG. L., VII, 63). Na forma que depois se tornou lugar-comum na lógica medieval, essa
distinção pode ser vista pela primeira vez no tratado anônimo do séc. XII, De generibus et speciebus,
editado por Cousin (CEuvres inédites d'Abélard, p. 531). Ela é constantemente repetida na lógica
posterior (cf. PEDRO HISPANO, Summ. Log., 1.05).
CATEGORIA (gr. KaTT|70pía; lat. Praedica-mentum; in. Category, fr. Catégorie, ai. Katego-rie, it.
Categoria). Em geral, qualquer noção que sirva como regra para a investigação ou para a sua expressão
lingüística em qualquer campo. Historicamente, o primeiro significado atribuído às C. é realista: elas são
consideradas determinações da realidade e, em segundo lugar, noções que servem para indagar e para
compreender a própria realidade. Foi essa a concepção de Platão, que as chamou de "gêneros supremos" e
enumerou cinco desses gêneros, a saber: o ser, o movimento, o repouso, a identidade e a alteridade (5b/,
254 ss.). Assim como alguns desses gêneros estão interligados e outros não, também as partes do
discurso, isto é, as palavras, se interligam, e quando essa mescla corresponde à real, o discurso é
verdadeiro; caso contrário é falso ilbid., 263 ss.). Essa correspondência entre a realidade e o discurso,
através das determinações categoriais, é também a base da teoria da Aristóteles. Este, porém, parte de um
ponto de vista lingüístico: as C. são os modos em que o ser se predica das coisas nas proposições,
portanto os predicados fundamentais das coisas. Enumera dez categorias, exemplificando como segue: ls
Substância, p. ex.: homem ou cavalo; 2S Quantidade, p. ex.: dois côvados; 3a Qualidade, p. ex..- branco;
4
2 Relação, p. ex.: maior; 52 Lugar, p. ex.: no liceu; 6Q Tempo, p. ex.: ontem; 7a Posição, p. ex.: está
sentado; 8a Ter, p. ex.: usa sapatos; 9a Agir, p. ex.: cortar; 10s
Sofrer, p. ex.: ser cortado (Top., I, 9, 103 b 20
ss.; Cal, 1 b 25 ss.). A relação entre as C. e o ser é assim explicada: "Porquanto a predicaçâo afirma às
vezes o que uma coisa é, às vezes a sua qualidade, às vezes a sua quantidade, às vezes a sua relação, às
vezes aquilo que faz ou o que sofre e às vezes o lugar onde está ou o tempo, segue-se que tudo isso são
modos do ser" (Met., V, 7, 1017 a 23 ss.). Esse conceito de C. como determinação pertencente ao próprio
ser e do qual o pensamento deve servir-se para conhe-
CATEGORIA
122
CATEGORIA
cê-lo e exprimi-lo em palavras durou muito tempo; e por muito tempo as escolas filosóficas ou os
filósofos só discordaram quanto ao número ou a distinção das categorias. Assim, os estóicos reduziramnas a quatro: substância, qualidade, modo de ser e relação (SIMPLÍCIO, In Cat., f. 16 d). Plotino retornou
aos cinco gêneros supremos de Platão (Enn., VI, 1, 25). Na Idade Média, a única alternativa à doutrina do
fundamento real das C. é o seu caráter puramente verbal, defendido pelo nominalismo. Ockham afirma
claramente que as C. não passam de signos das coisas, signos simples com os quais podem ser
constituídos "complexos" verdadeiros ou falsos (De corpore Christi, 15; In Sent., I, d. 30, q. 2,1).
Portanto, a distinção das C. não implica uma distinção paralela entre os objetos reais, já que nem sempre a
conceitos ou a palavras distintas correspondem coisas distintas. As C. de substância, qualidade e
quantidade, embora distintas como conceitos, significam a mesma coisa (Quodl., V, q. 23). Essa negação
radical da realidade das C. deriva da negação total que o nominalismo medieval fazia de qualquer
realidade universal. Esse ponto de vista eqüivale a considerar as C. como simples nomes que se referem a
classes de objetos.
A doutrina de Kant nada tem a ver com esse nominalismo, embora também negue o realismo da
concepção clássica. Para Kant as C. são os modos pelos quais se manifesta a atividade do intelecto, que
consiste, essencialmente, "em ordenar diversas representações sob uma representação comum", isto é, em
julgar. Elas são, portanto, as formas do juízo, isto é, as formas em que o juízo se explica,
independentemente do seu conteúdo empírico. Por isso, as C. podem ser extraídas das classes do juízo,
enumeradas pela lógica formal. "Desse modo", diz Kant, "surgem tantos conceitos puros do intelecto, que
se aplicam a priori ao objetos da intuição em geral, quantas eram as funções lógicas em todos os juízos
possíveis no quadro precedente (isto é, na classificação dos juízos); porque as chamadas funções esgotam
completamente o inelecto e põem à prova o seu poder" (Crít. R. Pura, Anal. dos conceitos, § 10). As C.
são os conceitos primitivos do intelecto puro e condicionam todo o conhecimento intelectual e a própria
experiência; mas elas não se aplicam às coisas em si, e o conhecimento que delas se vale (isto é, todo o
conhecimento humano) não pode estender-se, portanto, a
tais "coisas em si" ou "númenos". As categorias são, todavia, condições da validade objetiva do
conhecimento, isto é, do juízo em que o conhecimento se concretiza. Com efeito, um juízo é uma conexão
entre representações, mas tal conexão não é subjetiva, logo não vale só para o sujeito isolado que a efetua,
mas é feita em conformidade com uma categoria, isto é, segundo um modo, uma regra que é igual para
todos os sujeitos e que, portanto, confere necessidade e objetividade àquilo a que se ligou na percepção
(Prol, § 22). A doutrina de Kant sobre as C. pode, por isso, ser reduzida a dois pontos fundamentais: 1Q
as
C. dizem respeito à relação sujeito-objeto e, por isso, não se aplicam a uma eventual "coisa em si" que
esteja fora dessa relação; 2Q
as C. constituem as determinações dessa relação e são, portanto, válidas para
qualquer ser pensante finito. Kant enumerava doze C, correspondentes às doze classes de juizos: lâ
C. de
quantidade, unidade, multiplicidade, totalidade; 2a
C. de qualidade. realidade, negação, limitação; 3a
C.
de relação-, inerência e subsistência (substância e acidente), causalidade e dependência (causa e efeito),
comunhão (ação recíproca); 4a
C. de modalidade. possibilidade-impossibilidade, exis-tência-inexistência,
necessidade-contingência. O conceito kantiano das C. continuou prevalecendo na filosofia moderna e
contemporânea, se bem que mesmo os filósofos mais estritamente kantianos não tenham entrado num
acordo sobre o "quadro" das categorias. Em geral, os neocriticistas procuraram simplificar e unificar esse
quadro; Renouvier, p. ex., considerou fundamental a C. relação (já que a consciência é relação) e
considerou as outras (número, extensão, duração, qualidade, devir, força, finalidade, personalidade) como
determinações e especificações dela (Essai de critique générale, I, 1854, pp. 86 ss.). E Cohen considerou
como C. fundamental a do sistema, porque a unidade do objeto, em que se funda a unidade da natureza, é
uma unidade sistemática (Logik, p. 339). Mas, embora não tenha havido filósofo de inspiração kantiana
que não tenha desejado criar seu quadro de C, o conceito kantiano permaneceu inalterado para toda a
parcela da filosofia moderna que se inspira em Kant. Todavia, esse conceito não é o único na filosofia
moderna e contemporânea. O conceito tradicional de C. como "determinação do ser" foi retomado pelo
idealismo romântico e, em especial, por Hegel. Este considera as C.
CATEGORIA
123
CATEGORIA
como "determinações do pensamento" e atribui a Fichte o mérito de haver afirmado a exigência da sua
"dedução", isto é, da demonstração da sua necessidade {Ene, § 43). Mas na verdade, para Hegel, as
determinações do pensamento são, simultaneamente, as determinações da realidade (pela identidade, por
ele formulada, entre realidade e razão) e, habitualmente, chama essas determinações de "momentos", e
não de C. A única C. que ele reconhece verdadeiramente como tal é a própria realidade-pensamento, isto
é, a autoconsciencia, o eu ou a razão. Em Fenomenologia (I, cap. V, § 2), diz: "O eu é a única
essencialidade pura do ente ou a C. simples. AC, que de outro modo tinha o significado de ser a
essencialidade do ente, essencialidade indeterminada do ente em geral ou do ente contra a consciência,
agora é essencialidade ou simples unidade do ente, considerado apenas como realidade pensante: ou seja,
a C. consiste no fato de autoconsciencia e ser serem a mesma coisa". Quer dizer: a C. não deve ser
considerada como uma determinação do ser em geral, mas como a consciência e, portanto, a própria
realidade. Essa teoria do eu e da consciência ou do espírito como única C. permaneceu lugar-comum de
todas as formas de idealismo romântico. Sime-tricamente oposta à de Hegel é a doutrina de Heidegger,
para quem a C. não é a determinação da autoconsciencia ou ao eu, mas do ser das coisas. Heidegger faz a
distinção entre os existenciais (Existentialen), que são as determinações do ser e da realidade humana, do
ser-aí (Daseiri), e as outras C, que são "determinações do ser dos entes não conformes ao ser-aí": isto é,
determinações do ser das coisas (Sein und Zeit, § 9).
Na filosofia contemporânea, encontra-se tanto a retomada da concepção clássica e da concepção kantiana
da C, quanto novas generalizações sobre seu significado: 1- A concepção clássica da C. como
"determinação do ser" é retomada por N. Hartmann, que considera as C. como as estruturas necessárias
do ser em si. Tais estruturas produzem a estratificação do mundo numa série de planos. Existem as C.
fundamentais, que pertencem a todos os planos do ser, e que são as C. modais; há as C. bipolares
(qualidade-quantidade; contínuo-des-contínuo; forma-matéria, etc.) e, em terceiro lugar, as C. do real, que
determinam os caracteres da realidade efetiva e que se dividem em quatro grupos, correspondentes ao
princípio
do valor, ao princípio da crença, ao princípio da planificação e ao princípio da dependência (Aufbau der
realen Welt, 1940). 2
a A concepção kantiana de C. como condição do objeto e o encaminhamento para a
concepção instrumental da C. unem-se na doutrina de Husserl. Para ele, a noção de C. vincula-se à de
região ontológica e designa o conceito que serve para definir uma região em geral ou o que entra na
definição de uma região particular (p. ex., "a natureza física"). Os conceitos que entram na definição de
uma região em geral — e por isso são empregados nos axiomas lógicos — são chamados por Husserl de
"C. lógicas", ou "C. da região". São os conceitos de propriedade, qualidade, relação de coisas, relação,
conjunto, número, etc. Têm afinidade com essas categorias as chamadas "C. do significado", inerentes à
essência da proposição. C. lógicas e C. do significado são analíticas. Já os conceitos que entram na
constituição dos axiomas regionais são chamados por Husserl de C. sintéticas. "Os conceitos
fundamentais sintéticos ou C", diz Husserl, "são os conceitos regionais fundamentais (referem-se por
essência a uma região determinada e aos seus princípios sintéticos), de tal modo que há tantos grupos
distintos de C. quantas são as regiões" (ldeen, I, § 16). Para Husserl, as C. têm sempre caráter objetivo, já
que as regiões ontológicas, cujos axiomas servem para exprimir, são as formas da objetividade: ou da
objetividade em geral ou de uma objetividade específica. Também existem, portanto, "C. do substrato"
(Ibid., § 14), que se diferenciam das precedentes C. "sintáticas" (isto é, derivadas) porque se referem a
substratos inderiváveis, isto é, de natureza concreta e individual: a essência material e o "este aqui", que,
no fundo, é o indivíduo (Ibid., § 16). Nessa concepção husserliana de C, prevalecem os traços realistas,
embora o objeto ou as regiões ontológicas de que Husserl fala ainda sejam objetos da intencionalidade da
consciência. 3Q
Em algumas outras correntes da filosofia contemporânea, como p. ex. no empirismo
lógico, as C. são consideradas regras convencionais que regem o uso dos conceitos. Assim, p. ex., Ryle
chama de "tipo ou categoria lógica de um conceito o conjunto de modos nos quais, por convenção, é lícito
utilizar o termo respectivo" (Concept qf Mind, Intr., trad. it., p. 4). Essa é, certamente, a noção menos
dogmática e mais geral de C. que a filosofia propôs até hoje, mas ainda contém certo dogmatismo, pois
limita as
CATEGORIAL
124
CAUSALIDADE
C. às já estabelecidas pelo uso lingüístico comum, negando implicitamente a validade de qualquer nova
proposta. Contudo, cientistas, filósofos e pesquisadores em geral sempre exerceram o direito de propor
novas C, isto é, novos instrumentos conceituais de investigação e de expressão lingüística. Donde a
necessidade de formular a noção de categoria exatamente como a de tal instrumento: noção que, além de
tudo, tem a vantagem de caracterizar igualmente bem a função efetiva de todos os conceitos de C.
historicamente propostos.
CATEGORIAL (in. Categorial; fr. Catégo-rial; ai. Kategorial; it. Categorialé). Que concerne às
categorias ou se refere às categorias, portanto diferente de categórico (v.), que significa certa espécie de
juízos. Assim, Hartmann deu o nome de "análise C." à análise dos estratos do ser determinados pelas
categorias (Der Aufbau der realen Welt, 1940). E fala-se de "erro C." para indicar a troca de uma
categoria por outra (p. ex., RYLE, Concept ofMind, I, § 2).
CATEGÓRICO (gr. KaTTiTopiKÓÇ; in. Cate-gorical; fr. Catégorique, ai. Kategorisch; it. Categórico).
Em geral, uma proposição ou um raciocínio não limitado por condições. Começou-se a chamar de C. o
silogismo aristotélico (SEXTO EMPÍRICO, Pirr. hyp., II, 163) depois que os estóicos elaboraram a teoria do
raciocínio hipotético (v. ANAPODÍTICO). É muito provável que os estóicos considerassem que a teoria
aristotélica do silogismo houvesse sido absorvida por sua teoria dos raciocínios hipotéticos, assim como
consideravam absorvida em sua teoria dos axiomas ou proposições a teoria aristotélica da interpretação
(v.). Mas a lógica posterior (especialmente dos aristotélicos) simplesmente acrescentou as determinações
es-tóicas às aristotélicas, falando, assim, de uma proposição C. e de uma proposição hipotética, de
silogismo C. e de silogismo hipotético. Essa terminologia foi introduzida por Marciano Capela {De
nuptiis, § 404 ss.) e por Boécio na tradição latina. Diz Boécio: "Os gregos chamam de proposições C. as
que são pronunciadas sem nenhuma condição, ao passo que são condicionais as do tipo 'se é dia, há luz',
que os gregos chamam de "hipotéticas". Correspondentemente, o silogismo C. ou "predicativo" é o
formado por proposições C, enquanto aquele que consta de proposições hipotéticas é chamado de
hipotético, isto é, condicional (Desyll. hipot., I, em P. L. 64, col. 833).
Essa terminologia conservou-se durante toda a tradição lógica do ocidente e foi aceita por Kant (Crít. R.
Pura, Analítica dos conceitos, § 9), que, por sua vez, ampliou a distinção, apli-cando-a aos imperativos,
isto é, às máximas da vontade. Chamou de C. o imperativo da moralidade, que não está sujeita a nenhuma
condição e, portanto, tem uma "necessidade incondicio-nada e verdadeiramente objetiva", valendo,
conseqüentemente, para todos os seres racionais, quaisquer que sejam os seus seus desejos
(GrundlegungzurMet. derSitten, II) (v. IMPERATIVO).
CATENOTEÍSMO (in. Kathenotheism). Termo inventado pelo historiador das religiões Max Müller,
para indicar a doutrina de que há um só Deus por sua vez, isto é, o monoteísmo dos Vedas, segundo o
qual o mundo é governado por um único Deus de cada vez, enquanto as outras divindades esperam o seu
turno.
CAUSA EXEMPLAR. A idéia, em Deus, das coisas que ele pretende criar (v. IDÉIA).
CAUSA INSTRUMENTAL (lat. Causa ins-trumentalis). Acréscimo às quatro causas de Aristóteles (v.
CAUSALIDADE) feito pelo médico Galeno, que, contudo, admitia a superioridade da C final sobre todas as
outras; designa o que é C. em virtude de alguma outra coisa, como o ar, que pode ser C. do calor porque é
aquecido pelo fogo (cf. S. TOMÁS, S. Th., I, q. 45, a 5).
CAUSALIDADE (gr. critía, aixtov; lat. Cau-sality, fr. Causalité, ai. Causalitàt; it. Causalitã). Em seu
significado mais geral, a conexão entre duas coisas, em virtude da qual a segunda é univocamente
previsível a partir da primeira. Historicamente, essa noção assumiu duas formas fundamentais: I
a A forma
de conexão racional, pela qual a causa é a razão do seu efeito e este, por isso, é a dedutível dela. Nessa
concepção, a ação da causa é freqüentemente descrita como a de uma força que gera ou produz
indefectivelmente o efeito. 2- A forma de uma conexão empírica ou temporal, pela qual o efeito não é
dedutível da causa, mas é previsível com base nela pela constância e uniformidade da relação de
sucessão. Essa concepção elimina a idéia de força da relação causai. A ambas essas formas são comuns as
noções de previsibilidade unívoca, infalível, do efeito a partir da causa e, portanto, também a de
necessidade da relação causai.
I
a Pode-se dizer que a primeira forma da noção de causa começa com Platão, que considera a causa como
o princípio pelo qual uma
CAUSALIDADE
125
CAUSALIDADE
coisa é, ou torna-se, o que é. Nesse sentido, afirma que a verdadeira causa de uma coisa é aquilo que, para
a coisa, é "o melhor", isto é, a idéia ou o estado perfeito da própria coisa; p. ex,, a causa do dois é a
dualidade; do grande, a grandeza; do belo, a beleza. De modo geral, o bem é a causa daquilo que existe de
bom nas coisas e das próprias coisas (Fed., 97 c ss., espec. 101 c). Ao lado dessas causas "primeiras" ou
"divinas", Platão admitiu depois as con-causas, que são as limitações encontradas pela obra criadora do
demiurgo e que constituem os elementos de necessidade do próprio mundo (Tim., 69 a). Mas a primeira e
verdadeira análise da noção de causa encontra-se em Aristóteles. Este afirma, pela primeira vez (Fís., I, 1,
184 a 10), que conhecimento e ciência consistem em dar-se conta das causas e nada mais são além disso.
Mas, ao mesmo tempo, nota que, se perguntar a causa significa perguntar o porquê de uma coisa, esse
porquê pode ser diferente e há, portanto, várias espécies de causas. Num primeiro sentido, é causa aquilo
de que uma coisa é feita e que permanece na coisa, como, p. ex., o bronze é causa da estátua e a prata é
causa da taça. Num segundo sentido, a causa é a forma ou o modelo, isto é, a essência necessária ou
substância (v.) de uma coisa. Nesse sentido; é causa do homem a natureza racional que o define. Num
terceiro sentido, é causa aquilo que dá início à mudança ou ao repouso: p. ex., o autor de uma decisão é a
causa dela, o pai é causa do filho e, em geral, o que produz a mudança é causa da mudança. Num quarto
sentido, a causa é o fim e, p. ex., a saúde é a causa de se passear (Ibid., II, 3, 194 b 16; Mel, V, 2, 1013 ab). Causa material, causa formal, causa eficiente e causa final são, portanto, todas as causas possíveis,
segundo Aristóteles. Três teoremas fundamentais esclarecem essa teoria aristotélica da causa. São: I
a a
contemporaneidade da causa atual e de seu efeito, como, p. ex., da ação construtora do arquiteto e da
casa; essa contemporaneidade não se verifica na causa potencial; 29
a hierarquia das causas, pela qual é
preciso procurar sempre a causa mais alta: p. ex., o homem constrói porque é construtor, mas é construtor
pela arte de construir; essa arte é por isso a causa mais alta; 3S
a homogeneidade da causa e do efeito, pela
qual os gêneros são causa dos gêneros, as coisas particulares das coisas particulares, o escultor da estátua,
as coisas atuais
das coisas atuais, as coisas possíveis das coisas possíveis (Fís., II, 3, 195 b 16 ss.).
Mas a advertência fundamental é que as quatro causas não estão no mesmo plano: há uma causa primeira
e fundamental, um porquê privilegiado, que é dado pela essência racional da coisa, pela substância (De
part. an., I, 1, 639 b 14). A substância é a essência necessária, eternamente atual, princípio de realidade,
portanto também do devir enquanto passagem da potência ao ato. Da substância depende a necessidade
causai. "Nas coisas artificiais", diz Aristóteles, "sendo a causa essa tal coisa, é preciso, necessariamente,
que essas outras coisas sejam feitas ou existam. Assim também na natureza, se o homem é isto, fará estas
coisas, e se faz estas coisas, acontecer-lhe-ão outras" (Fís., II, 9, 200 a 35). Em outros termos, a
necessidade pela qual uma causa qualquer (das que Aristóteles distingue) age é a própria necessidade pela
qual uma substância (p. ex., o homem como animal racional) é o que é. A necessidade causai é, portanto,
a própria necessidade do ser enquanto ser, do ser substancial: a necessidade pela qual o que é não pode ser
diferente do que é. A essa necessidade escapa somente o que é acidental ou causai (v. ACASO).
A doutrina de Aristóteles demonstra a estreita conexão entre a noção de causa e a de substância. A causa é
o princípio de inteligibilidade porque compreender a causa significa compreender a organização interna
de uma substância, isto é, a razão pela qual uma substância qualquer (p. ex., o homem, Deus ou a pedra) é
o que é e não pode ser ou agir diferentemente. P. ex., se o homem é "animal racional", o que ele é ou faz
depende da sua substância assim definida, que opera como força irresistível para produzir as
determinações do seu ser e do seu agir.
Os estóicos entenderam a causa como força produtiva, isto é, como "aquilo por cuja ação nasce um
efeito". Segundo Sexto Empírico (Pirr. hyp., III, 14-15), eles distinguiram as causas sinéticas, concausais
e cooperantes. As sintéticas são as causas propriamente ditas que, "quando presentes, está presente o
efeito; quando retiradas ou diminuídas, retira-se ou diminui também o efeito". As concausais são as
causas que se reforçam mutuamente na produção de um efeito, como no caso de dois bois que puxam o
arado. A cooperante é a causa que produz uma pequena força, em virtude da qual o efeito se produz com
facilidade:
CAUSALIDADE
126
CAUSALIDADE
como quando um terceiro vem somar-se a outros dois que carregam um peso com dificuldade, ajudando a
sustentá-lo. Mas, para os estóicos, a causa por excelência é a sintética e, nesse sentido, Deus é causa e
constitui o princípio ativo do mundo (DIÓG. L., VII, 134; SÊNECA, Ep., 65, 2). A filosofia medieval em
pouco ou nada inovou o conceito da estrutura causai (porque substancial) do mundo. Sua principal
contribuição é a elaboração do conceito de causa primeira, em um sentido diferente do aristotélico, isto é,
não como tipo de causa fundamental, mas como primeiro elo da cadeia causai. A elaboração desse
conceito fora obra da Escolástica árabe e, em particular, de Avi-cena. Em lugar da estrutura substancial do
universo, cuja C. constituiria a necessidade intrínseca, Avicena põe a ordenação hierárquica das causas,
que remontam à Causa Primeira. Diz S. Tomás (S. Th., II, 1, q. 19, a. 4): "Em todas as causas ordenadas, o
efeito depende mais da causa primeira do que da causa segunda, porque a causa segunda só age em
virtude da causa primeira". O teorema fundamental que rege essa concatenaçào universal causai e o seu
caráter hierárquico é o que S. Tomás exprime dizendo: "Quanto mais alta é uma causa, tanto mais amplo
o seu poder causai" (Ibid., I, q. 65, a. 3): teorema de franca origem neoplatônica, já que os neoplatônicos
tinham reconhecido, juntamente com o caráter universal da necessidade causai, a hierarquia das causas a
partir da causa primeira (PROCLO, Inst. theol, 11). Um produto dessa doutrina pode ser visto no ocasionalismo (v.), segundo o qual a única e verdadeira causa é Deus, e as chamadas causas segundas ou
finitas são apenas ocasiões de que Deus se serve para realizar os seus decretos (MALEBRANCHE,
Recherche de Ia vérité, VI, 2, 3). O conceito aristotélico-árabe de uma ordem necessária no mundo, no
qual todos os eventos encontram seu lugar e sua concatenaçào causai, é defendido, no Renascimento,
pelos aristoté-licos como pressuposto essencial do seu naturalismo. Assim, Pomponazzi pretende remeter
até os acontecimentos mais extraordinários e miraculosos à ordem necessária da natureza e, para isso,
utiliza o determinismo astrológico dos árabes (De incantationibus, 10). A noção de uma ordem causai do
mundo (às vezes remetida a Deus como primeira causa), segundo o conceito neoplatônico e medieval,
forma ainda o pressuposto e o fundamento dos primórdios da organização da ciência, com Copérnico, Kepler e Galileu. Essas bases são expressas em termos mecanicistas por Hobbes e, em termos
teológicos, por Spinoza, mas são sempre as mesmas. Hobbes julga que a relação causai se reduz à ação de
um corpo sobre o outro e que, portanto, a causa é o que gera ou destrói certo estado de coisas em um
corpo (De corp., IX, 1). A causa perfeita, isto é, aquela a que segue infalivelmente o efeito, é o agregado
de todos "os acidentes ativos" que existirem: com ela, o efeito já está dado (Ibid., IX, 3). A concantençào
dos movimentos constitui a ordenação causai do mundo. Por sua vez, Spinoza, ao ver em Deus a única
substância, também vê nele a única causa da qual todas as coisas e todos os eventos do mundo (os
"modos" da Substância) derivam com necessidade geométrica (Et, I, 29). A necessidade causai que, para
Hobbes, é uma concantenação dos movimentos, para Spinoza é uma concatenaçào de razões, isto é, de
verdades que constituem uma cadeia ininterrupta. Além disso, para Hobbes o caráter mecânico da C. não
diminm' sua natureza racional, já que, aliás, Hobbes Vê no mecanismo a única explicação racional do
mundo, no corpo e no movimento os dois únicos princípios de explicação, não reconhecendo outras
realidades fora deles. Isso acontece porque para ele, assim como para Spinoza, prevalece a identificação,
aceita por Descartes, entre causa e razão. A causa é o que dá a razão do efeito, demonstra ou justifica sua
existência ou suas determinações. É assim que Descartes a concebe quando, definindo como analítico o
método que emprega, afirma que ele "demonstra como os efeitos dependem das causas" (Secon-des
repouses). Isso significa que a causa é o que permite deduzir o efeito. E o significado daquele "princípio
de razão suficiente" formulado por Leibniz como base das verdades de fato é que explicar por meio da
causa é "dar a razão" daquilo que existe. "Nada acontece", disse Leibniz (Théod., § 44), "sem que haja
uma causa ou pelo menos uma razão determinante, isto é, algo que possa servir para dar a razão a priori
de por que algo existe ao invés de não existir e de por que existe desse modo e não de outro". Sem dúvida,
esse ponto de vista não constituía uma novidade na história da noção de causa; a preeminência,
reconhecida por Aristóteles, da substância como essência racional (logos) ou forma significava,
precisamente, a exigência de que a causa constituísse a razão da coisa ou, em outras palavras, que
tornasse
CAUSALIDADE
127
CAUSALIDADE
cognoscível apriori, isto é, deduttvel, a existência e os caracteres da própria coisa. Quando Leibniz diz
que a natureza de uma "substância individual" basta "para compreender e para permitir a dedução de
todos os predicados do sujeito ao qual é atribuída" (Discours de mé-taphysique, § 8), está considerando
essa natureza como a razão ou a causa dos caracteres e da existência da substância individual, que podem
ser conhecidos apriori, isto é, deduzidos a partir dela. Nessas observações de Leibniz exprime-se com
toda a clareza a exigência que Aristóteles já havia proposto: de que a causa, e em particular a "causa
primeira" (no sentido aristotélico, não no medieval), constitua o princípio da dedução de todos os seus
efeitos possíveis (v. FUNDAMENTO).
Esse conceito persiste na filosofia moderna, sendo compartilhado tanto pelas doutrinas idealistas ou
aprioristas quanto pelas doutrinas materialistas e mecanicistas. Fichte identifica a C. com a atividade
criativa do eu infinito que se explica e se realiza segundo uma necessidade racional absoluta
(Wissenschaftslehre, 1794, § 4, C-D). Hegel considera a C. como a própria substância "enquanto refletida
em si" (Ene, § 153), isto é, mergulhada em sua necessidade. "A causa perde-se no seu outro, o efeito; a
atividade da substância causai perde-se no seu operar", diz ele (Wissenschaftder Logik, III, 2, 1 B). Mas a
substância causai é a própria razão, isto é, a realidade em sua essência descerrada. Nessas notas, a C. é
identificada com a racionalidade substancial do mundo ou é considerada uma parte, um momento ou uma
manifestação dessa racionalidade. Serve ora para definir a natureza da racionalidade, ora para ser definida
por ela. Hegel, tomando como ponto de partida o étimo da palavra Ursache (causa), vê nela a "coisa
originária" (Ene, § 153), isto é, a coisa que é a origem ou o princípio das outras ou de que as outras
derivam, ou seja, derivam racionalmente, de tal modo que constituem, junto com ela, o sistema total da
razão. Aqui, o sentido atribuído à C. é o de racionalidade pura e o sentido atribuído à racionalidade é o de
dedutibilidade necessária. A relação causai é uma relação de dedução. Da causa deve-se poder deduzir o
efeito, e se deduz efetivamente.
Mais ou menos no mesmo período, os cientistas elaboravam, com base na explicação mecânica do
mundo, um conceito de C. análogo ao de Hegel, isto é, coincidente com ele na sua natureza de relação de
dedutibilidade. O astrônomo Laplace assim exprimia o ideal da explicação causai na sua Teoria analítica das probabilidades, de
1812. "Nós devemos considerar o estado presente do universo como efeito do seu estado anterior e como
causa do que se seguirá. Uma inteligência que, em dado instante, conhecesse todas as forças de que a
natureza é animada e a situação respectiva dos seres que a compõem, se fosse bastante vasta para
submeter esses dados ao cálculo, abarcaria na mesma fórmula os movimentos dos maiores corpos do
universo e os do átimo mais leve: nada seria incerto para ela e o futuro, assim como o passado, estaria
diante de seus olhos". Tais palavras permaneceram como a insígnia da ciência do século XLX e exprimem
claramente o estreito nexo que a interpretação racionalista da C. estabeleceu, a partir de Descartes, entre a
C. e a previsão infalível, e entre a previsão infalível e a dedução apriori. Elas exprimem, de fato, um ideal
de saber que possa prever qualquer acontecimento futuro, seja ele pequeno ou grande, deduzindo-o por
meio de leis imutáveis e necessárias. Alguns decênios mais tarde, Claude Bernard, em sua Introdução ao
estudo da medicina experimental (1865), obedecendo ao mesmo ideal, excluía a possibilidade de que a
ciência, mesmo na sua exigência radical de crítica, viesse a duvidar do princípio causai, por ele chamado
de princípio do determinismo absoluto. "O princípio absoluto das ciências experimentais", dizia
(Introduction, I, 2, 7), "é um determinismo necessário e consciente nas condições dos fenômenos. Se
ocorre um fenômeno natural, seja ele qual for, um experimentador nunca poderá admitir que haja uma
variação na expressão desse fenômeno, sem que, ao mesmo tempo, tenham sobrevin-do condições novas
em sua manifestação: além disso, ele tem a certeza a priori de que essas variações são determinadas por
relações rigorosas e matemáticas. A experiência mostra-nos somente a forma dos fenômenos, mas a
relação de um efeito com uma causa determinada é necessária e independente da experiência, e
forçosamente matemática e absoluta". Mas. apesar dessas afirmações tão decididas de um dos maiores
cientistas e metodologistas da ciência do séc. XIX, a própria ciência seguiu outro curso, no que se refere à
elaboração e ao uso da noção de causalidade. Os progressos do cálculo das probabilidades, de algumas
teorias físicas (especialmente a teoria cinética dos gases), e da mecânica quântica foram destinando
CAUSALIDADE
128
CAUSALIDADE
um espaço cada vez maior à noção de probabilidade; finalmente, a mecânica quântica tende a substituir a
noção de C, que parecia indispensável aos cientistas e metodologistas do século passado, pela de
probabilidade. Pode-se dizer que a última manifestação filosófica da teoria clássica da C. é a doutrina de
Nicolai Hartmann, que, embora considerando a realidade dividida em planos estratificados, cada um dos
quais obedece a um seu determinismo próprio, modela cada tipo ou forma de determinismo sobre a C.
necessária da física oitocentista, entendida, na sua forma mais rigorosa, como negação de qualquer
possibilidade ou liberdade (Môg-lichkeit und Wirklichkeit, 1938).
2- A segunda forma que a noção de C. assumiu na história é a que a reduz substancialmente à relação de
previsibilidade certa. As críticas que, de raro em raro, a noção de C. encontrou na filosofia antiga tendem
a reduzir essa noção à de sucessão ou de conexão cronológica constante, base de previsibilidade dos
eventos. Assim, o filósofo árabe Al Gazali (séc. XI), no intuito de reservar o poder causai só para Deus,
negando-o nas coisas, observou que o vínculo verificável entre as coisas é certo nexo temporal e que, p.
ex., dizemos que a combustão é causada pelo fogo unicamente porque ocorre junto com o fogo
(AVERRÓIS, Destructio destructionum, I, dúv. 3). Com outro intuito, Ockham, no séc. XIV, antecipava a
crítica de Hume afirmando que o conhecimento de uma coisa nào traz consigo, a nenhum título, o
conhecimento de uma coisa diferente, de tal modo que "uma proposição como 'o calor esquenta' de forma
alguma pode ser demonstrada por silogismo, mas o seu conhecimento só pode ser obtido por experiência,
pois se não se experimentar que, em presença de calor, segue-se o calor em uma outra coisa, não se pode
saber que calor produz calor mais do que se sabe que brancura produz brancura" (Summa log., III, 2, 38).
Aqui se antecipa claramente o ponto fundamental da crítica de Hume, isto é, a não-dedutibilidade do
efeito a partir da causa. Hume começa negando justamente que entre causa e efeito haja tal relação.
"Nós nos iludimos", diz Hume, "crendo que, se fôssemos trazidos de repente a este mundo, poderíamos
imediatamente deduzir que uma bola de bilhar pode comunicar movimento a uma outra". Mas na
realidade, mesmo supondo que nasça em mim, por acaso, o pensamento de que o movimento da segunda
bola é resultado do choque entre as duas, eu poderia conceber a possibilidade de outros mil acontecimentos
diferentes, como p. ex. que ambas as bolas permanecessem paradas ou que a primeira voltasse para trás
em linha reta ou escapasse por um dos lados, em uma direção qualquer. Todas essas suposições são
coerentes e concebíveis; e aquela que a experiência demonstra ser verdadeira não é mais coerente nem
concebível do que as outras. A conclusão é: "todos os nossos raciocínios apriori não poderão demonstrar
nenhum direito a essa preferência"; e "seria inútil tentar predizer qualquer acontecimento, ou inferir
alguma causa ou efeito, sem o auxílio da observação e da experiência" (Inq. Cone. Underst, IV, 1). A
observação e a experiência, porém, com a repetição de certos acontecimentos similares, isto é, com as
uniformidades que revelam, dão origem ao hábito de crer que tais uniformidades se verificarão também
no futuro e que, portanto, possibilitam a previsão sobre a qual se baseia a vida cotidiana. Mas essa
previsão, segundo Hume, não é justificada por nada. Mesmo depois da experiência vivida, a conexão
entre causa e efeito continua arbitrária (já que causa e efeito continuam sendo dois acontecimentos
distintos), de tal modo que continua sendo arbitrária a previsão baseada nesse nexo. "O pão que eu comia
antes me alimentava; isto é, um corpo com certas qualidades sensíveis era dotado de forças secretas
naquele tempo; mas então será lícito concluir que um outro pão deve nutrir-me também em outro tempo e
que qualidades sensíveis semelhantes devam ser sempre acompanhadas por idênticas forças secretas? A
conseqüência não parece absolutamente necessária" ilbid., IV, 2). A conclusão de Hume é que a relação
causai é injustificável e que a crença nela só pode ser explicada pelo instinto, isto é, pela necessidade de
viver que a requer. Essa análise de Hume propôs o problema da C. na forma que este mantém ainda na
filosofia contemporânea. O critério usado por Hume, para demonstrar a insuficiência da teoria clássica, é
o da previsibilidade. A relação causai deve tornar previsível o efeito, mas nenhuma dedução a priori pode
tornar previsível um efeito qualquer; por isso, a dedução é incapaz de fundamentar a relação causai. A
repetição, empiri-camente observável, de conexão entre dois eventos é, então, o único fundamento para
afirmar uma relação causai, e o modo como ela possibilita essa asserçâo é o problema que hoje
CAUSALIDADE
129
CAUSALIDADE
está na base de todas as noções de C, condicionamento, indução, probabilidade, etc. Kant acreditou ter
respondido à dúvida de Hume sobre o valor da C. transformando-a numa categoria (v.), isto é, num
conceito apriori do intelecto, aplicável a um conteúdo empírico e determinante da conexão e da
ordenação objetiva desse conteúdo. Mas, na verdade, essa solução só podia postular, em forma de
conceito apriorie, portanto, de "princípio puro do intelecto" (a segunda analogia da experiência), a
solução do problema proposto por Hume sem abolir sua dificuldade. Quando Kant diz que a natureza
nunca poderá desmentir o princípio de causa porque, para ser natureza, deve ser pensada como natureza e
a causalidade é uma condição do pensamento (Crít. R. Pura, § 26; Prol, § 36), não faz senão dizer que a
natureza, para ser natureza, deve ser organizada pelas relações causais, isto é, apenas dá uma definição de
natureza que já inclui essa relação. Portanto, a solução kantiana, embora obviamente sugerida pela
exigência de salvar ou garantir a validade da ciência newtoniana fundada na noção de causa, tem caráter
de solução verbal e de dogmatismo camuflado. Para enfraquecer esse dogmatismo, porém, contribuíram
no séc. XLX, o reconhecimento do caráter antropomór-fico do conceito de c^usa e, a partir do final do
séc. XIX, as limitações crescentes que o uso desse conceito foi encontrando no pensamento científico.
Quanto ao primeiro ponto, limitar-nos-emos a citar a opinião de Nietzsche, para quem a noção de causa
não é senão a transcrição simbólica da vontade de potência, isto é, do sentimento interno de força ou de
expressão jubilosa. "Fisiologicamente", diz Nietzsche, "a idéia de causa é o nosso sentimento de potência,
naquilo que se chama vontade; e a idéia de efeito é o preconceito de crer que o sentimento de potência
seja a própria potência motora. A condição que acompanha um evento e que já é um efeito desse evento é
projetada como 'razão suficiente' deste". Na realidade, para Nietzsche toda a concepção mecânica do
mundo não passa de linguagem simbólica para exprimir "a luta e a vitória de certas quantidades de
vontade" (Wille zur Macht, ed. 1901, § 296). Essa conexão da noção de C. enquanto força produtiva com
a experiência interna do homem, ou seja, essa transcrição ou concep-tualização antropomórfica, foi
sustentada no séc. XIX por numerosos filósofos, conquanto criticada e rejeitada por Hume (Inq. Cone.
Underst., VII, 1). Por isso, procurou-se "purificar" a noção de C. de suas referências antropo-mórficas e a
tentativa mais importante nesse sentido foi feita por Comte. Ele achava que a própria idéia de causa como
força produtiva ou agente era própria de um estado ultrapassado da ciência, isto é, do estado metafísico, e
considerava própria do estado positivo a noção de causa como "relação invariável de sucessão e
semelhança entre os fatos". Segundo Comte, essa noção bastava para tornar possível a tarefa essencial da
ciência, que é a de prever os fenômenos para poder utilizá-los: a relação constante, uma vez reconhecida e
formulada em uma lei, possibilita prever um fenômeno quando se verifica aquele ao qual ele está ligado;
e a previsão, por sua vez, possibilita agir sobre os próprios fenômenos (Cours dephil. positive, I, cap. I, §
2). Esse conceito da previsão como tarefa fundamental da ciência, que Comte hauria em Bacon, mas que,
a partir dele prevaleceu na especificação moderna, deveria predominar como critério de validade e
eficácia da ciência, portanto, do alcance e do significado do princípio de causalidade. E as noções de C. e
de previsão foram unidas por Comte e assim permaneceram depois dela. Mach, que parte dessa conjunção
entre as duas noções, quer substituir o conceito tradicional de causalidade pelo conceito matemático de
função, isto é, de "interdependência dos fenômenos ou, mais exatamente, interdependência dos caracteres
distintivos dos fenômenos" (Analyse der Empfindungen, 9~ ed., 1922, p. 74). Todavia, nem Comte nem
Mach põem em dúvida o caráter necessitante da C. e o determinismo rigoroso que ela comporta no
mundo dos fenômenos naturais. Logo, não põem em dúvida a previsibilidade certa e infalível dos fatos
naturais cujas relações causais são conhecidas. Foi só a ciência contemporânea que pôs em dúvida essas
duas coisas, provocando, assim, a crise definitiva da noção de causalidade.
Na segunda metade do séc. XIX, a formulação matemática da teoria cinética dos gases, devida a Maxwell
e a Boltzmann, serviu para interpretar estaticamente o segundo princípio da termodinâmica, segundo o
qual o calor passa somente de um corpo de temperatura mais alta para outro corpo de temperatura mais
baixa. A teoria cinética interpretava esse fato como um caso de probabilidade estatística; pela primeira
vez, a noção de probabilidade, que até então ficara limitada ao domínio da matemáti-
CAUSALIDADE
130
CAUSA SUI
ca, era utilizada no domínio da física. Todavia a teoria cinética dos gases não representava ainda uma
infração ao princípio de C, predominante em todo o restante da física. Foi só com o progresso da física
subatômica e com a descoberta, devida a Heisenberg, do princípio de indeterminação (1927), que o
princípio de C. sofreu um golpe decisivo. A impossibilidade, estabelecida por esse princípio, de medir
com precisão uma grandeza, sem prejuízo da precisão na medida de uma outra grandeza coligada, torna
impossível predizer com certeza o comportamento futuro de uma partícula subatômica e só autoriza
previsões prováveis do comportamento de tais partículas, com base em verificações estatísticas. Em
conseqüência disso, a física tende hoje a considerar as mesmas relações de previsibilidade no campo dos
objetos macroscópicos, que deram origem ao princípio de C, como casos particulares de previsões
prováveis. Heisenberg escrevia em 1930: "Nossa descrição habitual da natureza e, particularmente, o
pensamento de uma C. rigorosa nos eventos da natureza repousam na admissão de que é possível
observar o fenômeno sem influenciá-lo de modo sensível... Na física atômica, porém, toda observação
geralmente está ligada a uma perturbação finita e, até certo ponto, incontrolável, o que era de esperar
desde o princípio na física das menores unidades existentes. Como, por outro lado, toda descrição
espácio-temporal de um evento físico está ligada a uma observação do evento, segue-se que a descrição
espácio-temporal de eventos, por um lado, e a lei causai clássica, por outro, representam dois aspectos
complementares, mutuamente excludentes, dos acontecimentos físicos" (Die physikalischen Prinzipien
der Quantumtheorie, IV, § 3). Em 1932, Von Neu-mann assim resumira a questão: "Em física
macroscópica, não há nenhuma experiência que prove o princípio de C, porque a ordem causai aparente
do mundo macroscópico não tem outra origem senão a lei dos grandes números e isto de modo totalmente
independente do fato de os processos elementares (que são os verdadeiros processos físicos) seguirem ou
não leis de C. ... É só em escala atômica, nos processos elementares, que a questão da C. pode realmente
ser discutida; mas, nessa escala, no estado atual de nossos conhecimentos, tudo está contra ela, porque a
única teoria formal que se ajusta mais ou menos à experiência é a mecânica quântica, e esta está em pleno
conflito
lógico com a C. ... Não há hoje nenhuma razão que permita afirmar a existência da C. na natureza e
nenhuma experiência pode dar-nos a prova dela" (Les fondements mathematiques dela
mécaniquequantique, trad. fr., 1947, pp. 143 ss., 223-224, etc). Alguns anos mais tarde, Reinchenbach
(Theory oj' Probability, 1949, p. 10) afirmou: "O desenvolvimento histórico da física leva ao resultado de
que o conceito de probabilidade é fundamental em todas as asserções sobre a realidade e que, a rigor, não
é possível uma única asserção sobre a realidade, cuja validade possa ser afirmada com algo mais do que
probabilidade". Esses progressos da ciência tornaram as inúteis discussões dos filósofos sobre o
fundamento, o alcance e os limites do princípio de causa. Esse princípio não é mais usado, nem na sua
forma clássica nem na sua forma moderna: o conceito do saber ou da ciência como "conhecimento das
causas" entrou em crise e foi praticamente abandonado pela própria ciência. Vai-se formando uma nova
terminologia, na qual os termos condição e condicionamento (v:), definíveis por meio dos procedimentos
em uso nas várias disciplinas científicas, tomam o lugar do venerando e agora inservível conceito de
causa.
CAUSA SUI. 1. Liberdade como autodeterminação. Nesse sentido, essa noção remonta a Aristóteles (Et.
nic, III, I, 110 a) e foi constantemente empregada para definir a liberdade absoluta ou incondicionada (v.
LIBERDADE).
2. Plotino definira a Inteligência como "obra de sua própria atividade" (èocuToO èvÉpyrma) enquanto
"tem o ser de si mesma e por si mesma" (Enn., VI, 8, 16). Através do neoplato-nismo árabe e
especialmente de Avicena, sem contar a tradição da filosofia judaica, esse conceito chega a Spinoza, que
dá início à sua Ética com a definição: "Entendo por C. de si aquilo cuja essência implica a existência ou
aquilo cuja natureza só pode ser concebida como existente" (Et., I, def. 1). Trata-se de uma das muitas
expressões da necessidade da natureza divina, segundo o conceito de Deus (v.) no neoplatonismo árabe.
Hegel retomou a expressão de Spinoza e acrescentou que toda causa é "em si e por si causa sui", na
medida em que se reduz à C. infinita, que é a substância racional do mundo (Ene, § 153). Isso é o que o
próprio Spinoza pretendia dizer. Portanto, o uso dessa noção para designar a divindade é moderno e está
vinculado à orientação panteísta; também parece claro pela
CAVERNA, ÍDOLOS DA
131
CERTEZA
observação de Hegel ( J.c.) que C. suié equivalente a effectus sul
CAVERNA, ÍDOLOS DA. V. ÍDOLOS.
CAVERNA, MITO DA. Mito exposto por Platão no livro VII da República, segundo o qual a condição
dos homens no mundo é semelhante à de escravos presos numa C, que só conseguem enxergar projetadas
no fundo da C. as sombras das coisas e dos seres que estão fora. A filosofia é, em primeiro lugar, a saída
da C. e a observação das coisas reais e do princípio da sua vida e da sua cognoscibilidade, isto é, do Sol
(o bem [v.D; e, em segundo lugar, o retomo à C. e a participação nas obras e nos valores próprios do
mundo humano ÍRep., 519 c-d).
CAVILAÇÃO (lat. Cavillatio-, in. Cavil; it. Cavilló). Esse termo foi proposto por Cícero como tradução
da palavra grega sophisma, que depois foi traduzida por falácia (v.) (De orat.,
II, 54, 217; Cf. SÊNECA, Ep., 111; QUINTILIANO, IflSt.
or, IX, 1, 15). Nesse sentido, esse termo ainda foi recordado no séc. XVII (cf. JUNGIUS, Lógica
bamburgensis, 1638, VI, 1, 16).
CELANTES. Palavra mnemônica usada pelos escolásticos para indicar o sexto modo da primeira figura
do silogismo, mais precisamente o que consiste em uma premissa universal negativa, uma premissa
universal afirmativa e uma conclusão universal negativa, como no exemplo: "Nenhum animal é pedra;
todo homem é animal: logo, nenhuma pedra é homem" (PEDRO HISPANO, Summ. log., 4.08).
CELARENT. Palavra mnemônica usada pelos escolásticos para indicar o segundo modo da primeira
figura do silogismo, mais precisamente o que consiste em uma proposição universal negativa, uma
proposição universal afirmativa e uma conclusão universal negativa, como no exemplo: "Nenhum animal
é pedra; todo homem é animal: logo, nenhum homem é pedra" (PEDRO HISPANO, Summ. log., 4.07).
CERTEZA (gr. fíefiaicoTiíç; lat. Certitudo; in. Certitude, Certainty, fr. Certitude, ai. Gewis-sheit; it.
Certezzà). Essa palavra tem dois significados fundamentais: ls
segurança subjetiva da verdade de um
conhecimento; 2e
garantia que um conhecimento oferece da sua verdade. Esses dois significados ainda se
mantêm e para eles o inglês tem duas palavras diferentes: certitude, que se refere ao primeiro, e certainty,
ao segundo. Os dois significados nem sempre constituem alternativas excludentes, mas freqüentemente
são complementares. Todavia, no pensamento clássico prevalece o segundo significado, o objetivo, e a garantia a que se faz alusão é a solidez ou a estabilidade do
conhecimento verdadeiro. Segundo esse conceito, que Platão expressou do modo mais claro, a
estabilidade do conhecimento depende da estabilidade do seu objeto, de sorte que só podem ser
estavelmente conhecidas (isto é, com C.) as coisas estáveis, ao passo que as coisas instáveis, isto é,
mutáveis, só podem ser objeto de conhecimento provável (Tim., 29 b-c; Fil, 59 b). Nesse sentido, a C. é
apenas um atributo da verdade: é o caráter estável, ou seja, não sujeito a desmentidos, da própria verdade.
No mesmo sentido a C. foi entendida por Aristóteles (Mel, IV, 1008 a 16; 1011 b 13; etc.) e por Sexto
Empírico: este último associa a C. à verdade e à ciência (Pirr. hyp., I, 191; II. 214; Adv. math., VII, 151,
etc).
A noção subjetiva da C. e os problemas a ela inerentes nasceram com a importância atribuída pelo
Cristianismo à fé, quando foi reconhecida a possibilidade da segurança subjetiva do saber, não garantida
por um critério objetivo de verdade. Mas, obviamente, o reconhecimento dessa possibilidade não levava a
negar, mas a reconhecer a outra possibilidade, de garantia objetiva. Por isso, os dois conceitos de C. são
sempre esclarecidos juntos e de modo complementar, na tradição filosófica. S. Tomás distingue dois
modos de considerar a certeza. O primeiro consiste em considerar a causa dela e, sob esse aspecto, a fé é
mais certa do que a sabedoria, do que a ciência e do que o intelecto, porque se fundamenta na verdade
divina, ao passo que essas três coisas se baseiam na razão humana. No segundo modo, a C. pode ser
considerada sob o aspecto do objeto (subiectum) e, assim sendo, é mais certo o objeto que mais se adapta
ao intelecto humano e é menos certa a fé (S. Th., II, 2, q. 4, a. 8). Obviamente, a C. considerada na sua
causa é a C. subjetiva, isto é, a segurança subjetiva da verdade da crença, enquanto a C. considerada no
seu objeto é a C. objetiva; e, de fato, S. Tomás atribui a primeira C. à ação da vontade, não à da razão
ilbid, II, 2, q. 2, a. 1, ad 3S
). Com Descartes, a filosofia moderna identificou verdade com C: a primeira
regra cartesiana, "só aceitar por verdadeiro o que se reconhece evidentemente como tal", estabelece essa
identidade, cujo ato ou manifestação é o próprio cogito, na medida em que faz da C. que o eu tem da
própria existência o próprio princípio da verdade. Essa identidade também é evidente em Locke, que faz a
distin-
CERTEZA
132
CESARISMO
ção entre a "C. da verdade", que existe quando as palavras são unidas de tal modo que representem
exatamente a concordância ou a discordância das idéias que exprimem, e a "C. do conhecimento", que
consiste em procurar essa concordância ou discordância na proposição que a exprime {Ensaio, IV, 6, 3 )•
Aqui, como elemento da verdade, inclui-se a relação com a expressão lingüística, mas a C. é identificada
com a verdade. "Chamamos de conhecer", diz Locke "o estar certo da verdade de uma proposição" (ibid.,
IV, 6, 3). Esses reparos foram aceitos por Leibniz (Nouv. ess., IV, 3), que, no entanto, ainda distinguia da
"C. absoluta", que provavelmente compreende as duas espécies de C. reconhecidas por Locke, a C.
moral, à qual se pode chegar pelas provas da verdade da religião (Théod., Discours, § 5). Contra a
identidade entre verdadeiro e certo, estabelecida por Descartes (que Spinoza ratificava com o seu teorema
"quem tem uma idéia verdadeira sabe pelo mesmo de tê-la" (Et., II, 43), e analogamente à distinção feita
por Leibniz entre C. absoluta e C. moral, ergue-se a doutrina de Viço, que faz a distinção entre o
verdadeiro, identificado com o fato (porquanto se pode conhecer de verdade só o que se faz e cuja causa,
portanto, se conhece), e o certo, fundado na tradição e na autoridade e que, não sendo susceptível de
demonstração necessária, está no nível do provável. "Os homens que não sabem a verdade das coisas
esforçam-se por ater-se ao certo, porque, se não podem satisfazer o intelecto com a ciência, pelo menos
que a vontade repouse na consciência." (Scien-za nuova, 1744, dign. 9). Segundo Viço, a filosofia não
pode fundar-se, como pretendem os cartesianos, tão-somente no verdadeiro, mas também deve utilizar o
certo, que é constituído pelo conjunto dos conhecimentos fornecidos por aqueles que Viço chama de
"filólogos", isto é, historiadores, críticos e gramáticos que se ocuparam dos costumes, das leis e das
línguas dos povos (lbid., dig. 10). Mas, em geral, a identificação entre C. e verdade firmou-se na filosofia
moderna. Kant chamou de C. a crença objetivamente suficiente, isto é, suficientemente garantida como
verdadeira (Crít. R. Pura, Canôn da razão pura, seç. 3). Distinguiu, além disso, a C. empírica, que pode
ser originária, isto é, vinculada à própria experiência histórica, ou derivada de uma experiência alheia; e a
C. racional, que se distingue da empírica pela "consciência da necessidade" e, portanto, pode
ser chamada de apodítica (Logik, Intr., § IX) . O próprio Hegel aceitou a identificação de C. e
conhecimento e ilustrou os dois aspectos, subjetivo e objetivo, da C. sensível da seguinte maneira: "Na C.
sensível, um momento é posto como aquilo que, simples e imediatamente, é, assim como a essência: esse
é o objeto. O outro momento é posto como o inessencial e me-diato, que não é em si, mas mediante outra
coisa: esse é o eu, um saber que sabe o objeto só porque o objeto é um saber que pode ser ou também não
ser" (Phãnomen. des Geistes, I, A, I). Analogamente, os dois significados foram distinguidos e aceitos por
Husserl, que considerou o fenômeno da C. como originário, vinculado à própria atitude da crença, e por
isso chamou-o Urdoxa ou Urglaube (Ideen, I, § 104). A exemplo de Leibniz, falou-se também em "C.
moral" (OLLE-LAPRUNE, La certitude mo-rale, 1880), para indicar uma C. não garantida por um critério
objetivo ou racional, como é a C. da fé: mas a identificação estabelecida pela filosofia cartesiana entre Ç.
e verdade não foi mais abandonada. Heidegger reafirmou-a dizendo: "A C. se funda na verdade, ou seja,
pertencendo-lhe cooriginariamente". E distinguiu os dois significados que correspondem ao significado e
ao objetivo de C: "o estar certo como modo de ser do ser-aí" (isto é, do homem) e a C. do "ente do qual
ser-aí está certo", que é derivada da primeira (Sein und Zeit, % 52).
CESARE. Palavra mnemônica usada pelos escolásticos para indicar o primeiro dos quatro modos do
silogismo de segunda figura, mais precisamente o que consiste em uma premissa universal negativa, uma
premissa universal afirmativa e uma conclusão universal negativa, como no exemplo: "Nenhuma pedra é
animal; todo homem é animal: logo, nenhum homem é pedra" (PEDRO HISPANO, Summ. log., 4.11).
CESARISMO ( ai. Cüsarismus). Spengler deu esse nome à "espécie de governo que, apesar de todas as
formas de direito público, ainda está totalmente desprovido de forma na sua natureza interna. Isso se
verifica no fim de certos períodos, quando as instituições políticas fundamentais estão mortas, ainda que
minuciosamente conservadas nas suas aparências: nesses períodos, nada tem significado, exceto o poder
pessoal exercido pelo César. É o retomo de um mundo, que atingiu a sua forma, ao primitivo, ao que é
cosmicamente a-histórico" (Der Untergang des Abendlandes, II, 4, 2, § 14).
CÉU
133
CIBERNÉTICA
CÉU (gr. oúprxvóç; lat. Caelutn; in. Heaven; fr. Ciei; ai. Himmel; it. Cieló). Aristóteles distingue três
significados do termo: le
a substância da circunferência externa do mundo, isto é, o corpo natural que está
na extrema periferia do universo: nesse sentido, dá-se o nome de C. à região que se acredita ser a sede da
divindade; 2a
o corpo que ocupa o lugar mais próximo da circunferência externa do universo e no qual se
acham a Lua, o Sol e alguns astros, dos quais de fato dizemos que estão "no C"; 32
todo corpo que é
encerrado pela circunferência externa, isto é, o próprio mundo na sua totalidade (Decael., I, 9, 278 b 10).
Este último significado já fora atribuído à palavra por Platão (Tim., 28 c). A doutrina fundamental de
Aristóteles sobre o C. é a da incorruptibilidade. Aristóteles acreditava que o C. era formado por uma
substância diferente da das coisas sublunares, isto é, pelo éter(v.). O éter, que se move somente por
movimento circular, não pode sofrer geração nem corrupção. A geração e a corrupção dos corpos
acontecem pelo alternar-se dos dois movimentos opostos (do centro e para o centro), a que estão sujeitos
os elementos (água, ar, terra, fogo) que compõem os corpos sublunares; de modo que o C, que se move
por movimento circular, que não tem oposto, é incorruptível e ingenerável (De cael., II, 1 ss.). A doutrina
da incorruptibilidade dos C. dominou toda*a física antiga e medieval. Na Antigüidade, talvez tenha sido
posta em dúvida por Teofrasto (cf. STEINMETZ, DiePhysik des Theophrast, 1964, 158 ss.). Na Idade
Média, o primeiro a pô-la em dúvida é Ockham, que, no séc. XIV, nega a diversidade entre a matéria que
compõe os corpos celestes e a matéria que compõe os corpos sublunares e admite como única diferença
entre eles o fato de que a matéria dos corpos celestes não pode ser transformada pela ação de nenhum
agente criado, mas seria necessária, para esse fim, a ação direta de Deus (In Sent, II, q. 22 B). Mas essa
crítica de Ockham foi ignorada por seus próprios seguidores, sendo retomada só um século depois por
Nicolau de Cusa: este afirma que a geração e a corrupção, verificadas na Terra, provavelmente também se
verificam nos outros astros, porque não há diversidade de natureza entre estes e a Terra (De docta ignor.,
II, 12). Todavia, o fim dessa doutrina só foi marcado pela crítica feita por Galileu em Diálogos sobre os
dois sistemas máximos (1632).
CIBERNÉTICA (in. Cybernetics). Essa palavra significa propriamente arte do piloto, mas
foi usada pelo americano Wiener para designar "o estudo das comunicações e, em particular, das
comunicações que exercem controle efetivo, com vistas à construção das máquinas calculadoras" (C, or
Control and Communication inthe Animal and the Machine, 1947). Em sentido mais geral, a C. é
entendida hoje como o estudo de "todas as máquinas possíveis", independentemente do fato de que
algumas delas tenham ou não sido produzidas pelo homem ou pela natureza. E, nesse sentido, oferece o
esquema no qual todas as máquinas podem ser ordenadas, relacionadas e compreendidas (cf., p. ex., W.
Ross ASHBY, An Intro-duction to C, 1957). No entanto, as máquinas de que a C. cuida são os autômatos
(v.), ou seja, as que são capazes de realizar operações que, durante a execução, podem ser corrigidas, de
tal modo que cumpram melhor seu objetivo. Essa correção chama-se retroali-mentação (feedbacM).
Como essa é a característica fundamental das operações realizadas pelo homem ou por qualquer ser
inteligente, essas máquinas também são chamadas de inteligentes ou de cérebros eletrônicos, já que seu
funcionamento se deve às propriedades físicas do elétron. O esquema desse funcionamento pode ser
percebido nas operações mais simples feita por um ser humano. Se, ao ver um objeto em certa direção (ou
seja, ao receber dele uma mensagem visual), eu estendo o braço para pegá-lo e erro a direção ou a
distância, logo a informação desse erro retifica o movimento de meu braço e permite que eu o dirija
exatamente para o objeto: tanto a operação quanto a correção da operação, neste caso, são guiadas por
mensagens, ou seja, por informações recebidas ou transmitidas pelo sistema nervoso que dirige o
movimento do braço. Por isso, a teoria da informação é parte integrante da C. ou, de qualquer modo, está
estreitamente ligada a ela. Na C. também podem ser distinguidos os seguintes aspectos: 1Q
esquema geral
da informação; 2S
medida da quantidade de informações; 3a
condições que possibilitam a informação; 4a
objetivos da informação.
I
a O esquema de qualquer informação parece ser constituído, essencialmente, por três elementos: a
mensagem emitida, a transmissão e a mensagem recebida. Mas, na realidade, as coisas são bem mais
complicadas, porque a mensagem emitida (p. ex., uma frase pronunciada em italiano ou o conjunto de
pontos e linhas que constituem uma mensagem telegráfi-
CIBERNÉTICA
134
CIBERNÉTICA
ca) já é a expressão, a tradução ou, como também se diz, a codificação daquilo que quem emite {emissor)
pretende transmitir. Por outro lado, a mensagem recebida deve ser entendida, ou seja, retraduzida ou
descodificada, para ser registrada pelo receptor e guiar sua conduta. Assim, a mensagem telegráfica
transmitida por meio da comunicação de pontos e linhas deve ser descoficiada ou retraduzida em
palavras, a frase em italiano deve ser entendida segundo as regras e o vocabulário da língua italiana, ou a
mensagem não dará nenhuma informação a quem não sabe italiano. Em todas essas passagens, são
possíveis equívocos, erros de emissão, de transmissão, de codificação e de descodificação, bem como
perturbações várias, devidas à interferência de ruídos ou de outros fatores mecânicos.
2
Q
Foi esta última observação que deu ensejo à teoria matemática da informação com um teorema
proposto por C. E. Shannon, em 1948 (cf. SHANNON E WEAVER, The Mathematical Theory of
Communications, 1949). Shannon observou que uma mensagem enviada através de um canal qualquer
sofre deformações diversas durante a transmissão, razão pela qual, ao chegar, uma parte das informações
que continha já está perdida. Estabeleceu, assim, a analogia entre essa perda e a entropia (v.), função
matemática que, com base no segundo princípio da termodinâmica, exprime a degradação de energia que
se verifica em qualquer transformação do trabalho mecânico em calor, ao passo que a transformação
inversa (do calor em trabalho mecânico) nunca é completa. Com base nessa analogia, a quantidade de
informações transmitida pode ser calculada como entropia negativa, já que, na transmissão das
mensagens, assim como na transformação da energia, a entropia negativa decrescecontinuamente porque
a positiva (perda de informações ou degradação de energia) cresce continuamente. Com base nessa
analogia, o cálculo das probabilidades utilizado pela termodinâmica pode ser empregado como
instrumento muito oportuno para determinar as fórmulas com que a medida da quantidade de informações
pode ser expressa em cada caso, cujas variações dependem do número e da freqüência dos símbolos
utilizados, de sua possibilidade de combinação, da interferência dos fatores de perturbação na transmissão
dos símbolos e assim por diante. Neste último caso, tomam-se em consideração os símbolos chamados
redundantes, cuja finalidade é prever e corrigir os erros da transmissão antes que ocorram, de tal modo que
o funcionamento da transmissão seja corrigido antecipadamente pela previsão das perturbações, com o
processo da retroa-limentação. De modo geral, pode-se dizer que, quanto mais improvável é a mensagem,
maior é a informação que ela transmite. Por isso, tem-se a quantidade mínima de informação quando esta
permite apenas uma escolha entre duas possibilidades igualmente prováveis. Essa quantidade mínima foi
assumida como unidade de medida da informação e chamada de bit (abreviação da expressão inglesa
binary digit = cifra binaria).
3
S
O conceito e o cálculo da informação situam-se no domínio da probabilidade (v.). Isso quer dizer que a
informação só é possível num mundo que não é necessariamente ordenado nem necessariamente
desordenado. Num mundo necessariamente ordenado, tudo seria infalivelmente previsível e a informação
seria inútil. Num mundo necessariamente desordenado, ou seja, puro fruto do acaso, nenhuma ordem
seria possível e, portanto, nenhuma informação seria transmissível. A informação transmite determinada
ordem de símbolos e a medida da informação é a medida de uma ordem. Por exemplo, uma mensagem
telegráfica consiste em certa combinação de pontos e linhas que, para comunicar uma informação, tem
uma ordem determinada, escolhida entre as inúmeras ordens possibilitadas pelo alfabeto Morse. A medida
de informação é dada, como se viu, pela entropia negativa, ou seja, por uma função que exprime a
diminuição da entropia, que é a desordem (ou seja, a distribuição casual) dos elementos de um sistema
qualquer. Portanto, as condições da C, ou seja, do uso teórico e prático da teoria da informação, podem
ser recapituladas do seguinte modo:
a) A negação de qualquer tipo ou forma de necessidade em todas as situações em que a informação tem
lugar.
b) A negação de qualquer conhecimento absoluto, ou seja, total, definitivo e exaustivo; o reconhecimento
de que o conhecimento é um fato excepcional e improvável.
c) O reconhecimento do acaso, ou seja, da distribuição desordenada (equiprovável) dos elementos
(entropia) em todas as circunstâncias ou situações em que o homem ou qualquer organismo vivo ou
máquina possa encontrar-se.
CIBERNÉTICA
135
CIBERNÉTICA
d) A presença, em qualquer situação, de possibilidades diversas entre as quais é possível a escolha.
é) A possibilidade da escolha de construir modelos que selecionem as possibilidades alternativas, segundo
a ordem de sua freqüência estatística, e, por isso, orientar as escolhas seguintes.
/) A possibilidade de corrigir, modificar, generalizar ou particularizar tais modelos e criar outros novos, de
acordo com as mais diferentes exigências teóricas e práticas.
Essas condições da informação (e portanto da C, que a utiliza para os mais diversos objetivos) são,
implícitas ou explicitamente, admitidas por todos os cientistas que, em qualquer campo, se valem dessa
disciplina: constituem seu fundamento filosófico. São resumidas no seguinte trecho de F. C. Frick:
"Informação e ignorância, escolha, previsão e incerteza, tudo isso está intimamente correlacionado... Na
fronteira entre o conhecimento total e a ignorância completa, parece intuitivamente razoável falar de
graus de incerteza. Quanto mais ampla for a escolha, maior será o conjunto de alternativas que se abrem
diante de nós, mais incertos estaremos a respeito de como proceder e maior será a necessidade que
teremos de informações para; tomarmos uma decisão" (Information Theory, em Psychology ■. A Study
ofa Science, 2
a
ed., Sigmund Koch, 1959, pp. 614-15).
4P O quarto aspecto da C. é constituído pelos usos e objetivos que ela pode ter nos mais diversos campos
da atividade humana:
d) Em primeiro lugar, a C. é um poderoso instrumento para explicar e prever fenômenos. Um de seus
sucessos mais clamorosos foi visto no campo da genética (v.), em que possibilitou explicar a transmissão
dos caracteres hereditários por meio das várias combinações dos elementos de um alfabeto genético
constituído pelos ácidos desoxirribonucléicos, que compõem a hélice dupla do DNA (Watson e Crick,
1953). A teoria da evolução (v.), com bases darwi-nianas, considera que a própria evolução é um processo
de variações aleatórias e de sobrevivência seletiva: dois conceitos que, como se viu, são fundamentais na
teoria da informação. Em psicologia, antropologia e sociologia, esses conceitos são empregados para
explicar qualquer forma de organização e atualmente são generalizados numa teoria dos sistemas, aplicável a todos esses campos (cf., p. ex., W. BUCKLEY, Sociology andModem Systems Theory, 1967, e
relativa bibl.).
b) Em segundo lugar, a C. é utilizada para a construção de máquinas cada vez mais complexas, às quais
são confiadas operações e tarefas que, até pouco tempo, eram consideradas próprias do homem. Sobre os
limites e as possibilidades dessas máquinas, as opiniões de cientistas e filósofos são díspares. Há quem
considere que, em futuro mais ou menos próximo, elas poderão substituir o homem na solução de todos
os seus problemas, inclusive nas escolhas decisivas que dizem respeito ao futuro ou à sobrevivência do
gênero humano. Outros expressam dúvidas sobre essa possibilidade ilimitada, que entre outras coisas
parece ser desmentida pelo teorema de Gõdel (v. MATEMÁTICA), entre cujas implicações está a de que não
é possível construir uma máquina que resolva todos os problemas. Além disso, insiste-se na diferença
entre o homem e a máquina, em vista da presença, no homem, do fator consciência (v.). Raymond Ruyer,
por ex., afirmou que "sem consciência não há informação" e que, por isso, se o mundo físico e o mundo
das máquinas ficassem entregues a si mesmos, "espontaneamente tudo se tornaria desordem e essa seria a
prova de que nunca houve ordem verdadeira, ordem consistente, ou em outros termos, que nunca houve
informação" (La cybernétique et Vorigine de Vinformation, 1954). Também são muitos os que insistem,
com fundamentos vários (muitas vezes de natureza metafísica ou moral) na diferença entre o homem e a
máquina, mas, em geral, reconhece-se que as máquinas têm as mesmas limitações do homem, ainda que
em grau inferior, e que se distinguem do homem pela enorme "complexidade" do cérebro humano e pela
capacidade que tem este último de prever, em proporção correspondentemente maior, os acontecimentos
futuros. Wiener insistiu na exigência de uma simbiose entre o homem e a máquina, para a qual é
necessário que o homem tenha uma clara idéia dos objetivos que devem ser preestabelecidos na
programação e no uso das máquinas. De fato, obedecendo a um programa, uma máquina pode pôr em
atividade certas operações que, diante de circunstâncias imprevistas, podem voltar-se contra os interesses
e a própria vida do homem. Wiener observou que mesmo uma máquina que possa aprender e tomar
decisões
CICLO DO MUNDO
136
CIÊNCIA
com base em conhecimentos adquiridos não será obrigada a decidir no mesmo sentido que nós, nem a
tomar decisões que nos sejam aceitáveis: "Para quem não tem consciência disso, deixar suas
responsabilidades a cargo da máquina (que possa ou não aprender) significará confiar suas próprias
responsabilidades ao vento e vê-las de volta entre os turbilhões da tempestade" (The Human Use of
Human Beings, 1950, cap. XI; cf. também God & Go-lem, Inc., 1964). Os problemas da C. estão
intimamente ligados aos problemas da ontologia, da gnosiologia e da ética.
CICLO DO MUNDO (gr. KÚKÀOÇ; in. Cos-mic cycle, fr. Cycle cosmique, ai. Kosmic Cyklus; it. Ciclo
dei mondo). Doutrina segundo a qual o mundo retorna, depois de certo número de anos, ao caos
primitivo, do qual sairá de novo para recomeçar seu curso sempre igual. Essa doutrina foi sugerida aos
mais antigos filósofos pelos eventos cíclicos constatáveis: a alternância do dia e da noite, das estações,
das gerações animais, etc. A noção de C. cósmico encontra-se no orfismo, no pitagorismo, em
Anaximandro (Hyp., Refut., omn. haeres., I, 6, I), em Empédocles ( Fr. 17, Diels), em Heráclito (Fr. 5,
Diels) e nos estóicos; segundo estes, "quando, em seu desenvolvimento, os astros voltam ao mesmo signo
e à latitude e longitude em que cada um estava no princípio, acontece, no C. dos tempos, uma
conflagração e uma destruição total; depois, volta-se novamente, desde o começo, à mesma ordem
cósmica e de novo, movendo-se igualmente os astros, cada acontecimento ocorrido no C. precedente volta
a repetir-se sem nenhuma diferença. Haverá novamente Sócrates, novamente Platão e novamente cada um
dos homens com os mesmos amigos e concidadãos: crer-se-á nas mesmas coisas, os mesmos assuntos
serão discutidos e cada cidade, aldeia e campo também retornarão. Esse retorno universal não ocorrerá
uma vez só, muitas vezes até o infinito" (NEMÉ-Sio, De nat. bom., 38).
Na filosofia moderna, essa doutrina foi retomada por Nietzsche: para ele o eterno retorno é o sim que o
mundo diz a si mesmo, a vontade cósmica de reafirmar-se e de ser ela mesma, portanto, a expressão
cósmica daquele espírito dionisíaco, que exata a bendiz a vida. "O mundo se afirma por si também na sua
uniformidade que permanece a mesma no decurso dos anos, bendiz-se por si mesmo, porque é aquilo que
deve voltar eternamente, porque é o devir
que não conhece saciedade, tédio nem fadiga" (Wille zur Macht, ed. 1901, § 385). O. Spengler achava que
a própria história era uma sucessão de civilizações, que, como organismos vivos, nascem, crescem,
declinam e morrem; por isso, todos têm em comum o ritmo do seu C. orgânico (Der Untergang des
Abendlandes, I, 1932, pp. 23 ss.).
CIÊNCIA (gr. èmaxr\\ir\; lat. Scientia; in. Science, fr. Science, ai. Wissenschaft; it. Scien-zd).
Conhecimento que inclua, em qualquer forma ou medida, uma garantia da própria validade. A limitação
expressa pelas palavras "em qualquer forma ou medida" é aqui incluída para tornar a definição aplicável à
C. moderna, que não tem pretensões de absoluto. Mas, segundo o conceito tradicional, a C. inclui garantia
absoluta de validade, sendo, portanto, como conhecimento, o grau máximo da certeza. O oposto da C. é a
opinião (v.), caracterizada pela falta de garantia acerca de sua validade. As diferentes concepções de C.
podem ser distin-guidas conforme a garanna de validade que se lhes atribui. Essa garantia pode consistir:
l
s
na demonstração; 2
a
na descrição; 3S
na corrigi-bilidade.
l
s
A doutrina segundo a qual a C. prove a garantia de sua validade demonstrando suas afirmações, isto é,
interligando-as num sistema ou num organismo unitário no qual cada uma delas seja necessária e
nenhuma possa ser retirada, anexada ou mudada, é o ideal clássico da ciência. Platão comparava a
opinião (v.) às estátuas de Dédalo, que estão sempre em atitude de fuga: as opiniões "desertam da alma
humana, de modo que não terão grande valor enquanto alguém não conseguir atá-las com um raciocínio
causai". Mas, "uma vez atadas, tornam-se C. e permanecem fixas. Eis por que a C", conclui Platão, "é
mais válida do que a opinião legítima e difere desta pela seus nexos" (Men., 98 a). A doutrina da C. de
Aristóteles é muito mais rica e circunstanciada, mas obedece ao mesmo conceito. A C. é "conhecimento
demonstrativo". Por conhecimento demonstrativo entende-se o conhecimento "da causa de um objeto, isto
é, conhece-se por que o objeto não pode ser diferente do que é" (An.pr., I, 2, 71 b 9 ss.). Em conseqüência,
o objeto da C. é o necessário (v.); por isso a C. se distingue da opinião e não coincide com ela; se
coincidisse, "estaríamos convencidos de que um mesmo objeto pode comportar-se diferentemente de
como se comporta e estaríamos, ao mesmo
CIÊNCIA
137
CIÊNCIA
tempo, convencidos de que não pode comportar-se diferentemente" (An. post, I, 33, 89 a 38). Por isso,
Aristóteles exclui que possa haver C. do não necessário, ou seja da sensação (Ibid, 31, 87 b 27) e do
acidental {Mel, VI, 2, 1027, 20), ao mesmo tempo em que identifica o conhecimento científico com o
conhecimento da essência necessária ou substância (Ibid, VIII, 6, 1031 b 5). A mais perfeita realização
desse ideal da C. está em Elementos, de Euclides (séc. III a.C). Essa obra, que quis realizar a matemática
como C. perfeitamente dedutiva, sem nenhum recurso à experiência ou à indução, permaneceu por muitos
séculos (e sob certos aspectos permanece até hoje) como o próprio modelo da ciência.
Através de Elementos, de Euclides, a concepção da C. de Platão e Aristóteles foi transmitida com mais
eficácia do que através da descrição teórica de Aristóteles, da qual os antigos nunca se afastaram. Os
estóicos repetiram-na, afirmando que "a C. é a compreensão segura, certa e imutável fundada na razão"
(SEXTO EMPÍRICO, Adv. math., VII, 151), ou que ela "é uma compreensão segura ou um hábito imutável
de acolher representações, com base na razão" (DIÓG. L., VII, 47). S. Tomás repetia as idéias de
Aristóteles (S. Th., II, 1, q. 57, a. 2) e Duns Scot acentuava o caráter demonstrativo e necessário da C,
excluindo dela qualquer conhecimento desprovido desses caracteres, portanto, todo o domínio da fé (Op.
Ox., Prol., q. 1, m. 8). Mesmo a última Escolástica, com Ockham, mantinha em pé o ideal aristotélico da
C. (In Sent, III, q. 8).
O surgimento da C. moderna não pôs em crise esse ideal. De um lado, o necessitarismo dos aristotélicos é
compartilhado até por seus adversários; de outro, persiste a sugestão da matemática como C. perfeita pela
sua organização demonstrativa; e o próprio Galileu colocava as "demonstrações necessárias" ao lado da
"experiência sensata" como fundamento da C. (Opere, V, p. 316). O ideal geométrico da C. também
domina as filosofias de Descartes e Spinoza. Descartes queria organizar todo o saber humano pelo
modelo da aritmética e da geometria: as únicas C. que ele considerava "desprovidas de falsidade e de
incerteza", porque fundadas inteiramente na dedução (Re-gulae ad directionem ingenii, II). E Spinoza
chamava de C. intuitiva a extensão do método geométrico a todo o universo, extensão pela qual, "da idéia
adequada da essência formal de alguns atributos de Deus, procede-se ao conhecimento adequado da essência das coisas" (Et., II, 40, scol. 2e
). Kant rotulava esse velho ideal com um
novo termo, sistema (v.). "A unidade sistemática", dizia ele, "é o que antes de tudo faz de um
conhecimento comum uma C, isto é, de um simples agregado, um sistema"; e acrescentava que por
sistema é preciso entender "a unidade de conhecimentos múltiplos reunidos sob uma única idéia" (Crít.R.
Pura, Doutrina do método, cap. III; cf. Methaphy-sísche Anfangsgründe der Naturwissenschaft, Prefácio).
Esse conceito da C. como sistema, introduzido por Kant, tornou-se lugar comum da filosofia do séc. XIX
e a ele ainda recorrem as filosofias de caráter teológico ou metafísico. Isso aconteceu sobretudo por ter
sido adotado pelo Romantismo, que o repetiu à saciedade. Fichte dizia: "Uma C. deve ser uma unidade,
um todo... As proporções isoladas geralmente não são C, mas tornam-se C. só no todo, graças a seu lugar
no todo, à sua relação com o todo" (Ueber den Begriff der Wissenschafts-lehre, 1794, § 1). Schelling
repetia: "Admite-se, geralmente, que à filosofia convém uma forma peculiar dela, que se chama
sistemática. Pressupor tal forma não deduzida compete a outras C. que já pressupõem a C. da C, mas não
esta, que se propõe por objeto a possibilidade de semelhante C." (System des trans-zendentalen
Idealismus, 1800, I, cap. I; trad. it., p. 27). E Hegel afirmava peremptoriamente: "A verdadeira forma na
qual a verdade existe só pode ser o sistema científico dela. Colaborar para que a filosofia se aproxime da
forma da C. — isto é, da meta que, uma vez alcançada, per-mitir-lhe-á abandonar o nome de amor ao
saber para ser verdadeiro saber — eis o que me propus" (Phãnomen des Geistes, Prefácio, I, 1). Fichte,
Schelling e Hegel consideravam que o único saber sistemático, portanto a única C, i
era a filosofia. Mas, para muitos filósofos do séc. XIX, o conceito de sistema continuou caracterizando a
C. em geral, portanto também a ' C. da natureza. H. Cohen via no sistema a mais alta categoria
da natureza e da C. (Logik, 1902, p. 339). Husserl via o caráter essencial da C. na "unidade sistemática"
que nela encontram os conhecimentos isolados e os seus fundamentos (íogische Untersuchugen, 1900,1,
p. 15); e indicava no sistema o próprio ideal da filosofia, se esta quisesse organizar-se como "C. rigorosa"
(Philosophie ais strenge Wissenschaft, 1910-11; trad. it., p. 5). O ideal de C. como sistema continuou vivo
ainda muito tempo depois que as C.
CIÊNCIA 138
CIÊNCIA
naturais dele se afastaram e começaram a polemizar contra "o espírito de sistema".
Se hoje é possível considerar superado o ideal clássico de C. como sistema acabado de verdades
necessárias por evidência ou por demonstração, o mesmo não se pode dizer de todas as suas
características. Que a C. seja, ou tende a ser, um sistema, uma unidade, uma totalidade organizada, é
pretensão que as outras concepções da própria C. também têm. O que essa pretensão tem, em todos os
casos, de válido é a exigência de que as proposições que constituem o corpo lingüístico de uma C. sejam
compatíveis entre si, isto é, não contraditórias. Essa exigência, sem dúvida, é muito menos rigorosa do
que aquela para a qual tais proposições deveriam constituir uma unidade ou um sistema; aliás, a rigor, é
uma exigência totalmente diferente, pois a não-contradição não implica, em absoluto, a unidade
sistemática. Todavia, na linguagem científica ou filosófica corrente, muitas vezes a exigência sistemática
é reduzida à de compatibilidade.
2
e
A concepção descritiva da C. começou a formar-se com Bacon, Newton e os filósofos iluministas. Seu
fundamento é a distinção ba-coniana entre antecipação e interpretação da natureza: a interpretação
consiste em "conduzir os homens diante dos fatos particulares e das suas ordens" (Nov. Org., I, 26, 36).
Newton estabelecia o conceito descritivo da C, contrapondo o método da análise ao método da síntese.
Este último consiste "em assumir que as causas foram descobertas, em pô-las como princípios e em
explicar os fenômenos partindo de tais princípios e considerando como prova essa explicação". A análise,
ao contrário, consiste "em fazer experimentos e observações, em deles tirar conclusões gerais por meio da
indução e em não admitir, contra as conclusões, objeções que não derivem dos experimentos ou de outras
verdades seguras" (Opticks, III, 1, q. 3D- A filosofia do iluminis-mo exaltou e difundiu o ideal científico
de Newton. "Esse grande gênio", dizia D'Alem-bert, "viu que era tempo de banir da física as conjecturas e
as hipóteses vagas, ou pelo menos de tê-las apenas pelo que valem e de submeter essa C. somente às
experiências e à geometria" {Discours préliminaire de 1'Ency-clbpédie, em CEuvres, ed. Condorcet, p.
143). Ao mesmo tempo, D'Alembert declarava já ser inútil para a C. e para a filosofia o espírito de
sistema. "As ciências todas, fechadas, o máximo
possível, nos fatos e nas conseqüências que delas podem ser deduzidos, não fazem concessões à opinião,
a não ser quando a isso são obrigadas". A C. reduz-se, assim, à observação dos fatos e às inferências ou
aos cálculos fundados nos fatos. O positivismo oitocentista não fazia mais do que recorrer ao mesmo
conceito de ciência. Dizia Comte: "O caráter fundamental da filosofia positiva é considerar todos os
fenômenos como sujeitos a leis naturais invariáveis, cuja descoberta precisa e cuja redução ao menor
número possível constituem o objetivo de todos os nossos esforços, ao mesmo tempo em que julgamos
absolutamente inacessível e sem sentido a busca daquilo que se chama de causas, tanto primeiras como
finais" (Cours dephil. positive, I, § 4; vol. I, pp. 26-27). Mas o positivismo também insistiu no caráter da
C. que Bacon já evidenciara: o caráter ativo ou operacional, graças ao qual ela permite que o homem aja
sobre a natureza, e a domine através da previsão dos fatos, possibilitada por leis Qbid., II, § 2; p. 100). O
ideal descritivo da C. não implica, portanto, que a C. consiste no espelhamento ou na reprodução
fotográfica dos fatos. De um lado, o caráter antecipado do conhecimento científico, graças ao qual ela se
concretiza em previsões baseadas em relações verificadas entre os fatos, elimina o seu caráter fotográfico:
realmente, não se pode fotografar o futuro. Por outro lado, a mesma C. positivista evidenciou a orientação
ativa da descrição científica. As considerações de Clau-de Bernard a respeito são muito importantes: "A
simples constatação dos fatos", diz ele, "nunca chegará a constituir uma ciência. Podem-se multiplicar
fatos e observações, mas isso não levará à compreensão de nada. Para aprender, é preciso,
necessariamente, raciocinar sobre o que se observou, comparar os fatos e julgá-los com outros fatos que
servem de controle" (Intr. ã 1'étude de Ia médecine expérimentale, 1865, I, 1, § 4). Desse ponto de vista,
uma C. de observação será uma C. que raciocina sobre os fatos da observação natural, isto é, sobre os
fatos pura e simplesmente constatados, ao passo que uma C. experimental ou de experimento raciocinará
sobre os fatos obtidos nas condições que o experimentador criou e determinou ilbid., 1865, I, 1, § 4).
A doutrina de Mach sobre a C. não poderia ser chamada de descritiva, se por descrição se entender a
reprodução fotográfica dos objetos, mas pode ser chamada de descritiva no sentido
CIÊNCIA
139
CIÊNCIA
já esclarecido. Diz Mach: "Se excluirmos aquilo que não tem sentido pesquisar, veremos aparecer mais
nitidamente o que podemos realmente atingir por meio de cada C: todas as relações e os diferentes modos
de relação entre os elementos" (Erkenntniss und Irrtum, cap. I; trad. fr., p. 25). A inovação de Mach
consiste no seu conceito dos elementos, já que para ele estes são comuns tanto às coisas como à
consciência, diferindo na consciência e na coisa só na medida em que pertençam a conjuntos diferentes
(Ibid., cap. I; trad. fr., p. 25; cf. Die Analyse derEmpfindungen, 9
a
ed., 1922, p. 14). A função econômica
que Mach atribuiu à C, ou, mais precisamente, aos conceitos científicos, não suprime portanto o caráter
descritivo da C, reconhecível na tese de que a C. tem por objeto as relações entre os elementos.
Justamente por considerar as relações entre os fatos, a C. é uma descrição abreviadora e econômica dos
próprios fatos {Die Mechanik, trad. in., 1902, pp. 481 ss.). Do mesmo modo, Bergson reconhece o caráter
convencional e econômico da C. pelo fato de que ela, que tem como órgão a inteligência, não se detém
nas coisas, mas nas relações entre as coisas ou situações (Évol. créatr., 8
a
ed., 1911, pp. l6l, 356). O ideal
descritivo da C. reaparece também em escritores recentes. Dewey afirma: "Como na C. os significados
são determinados com base em sua relação recíproca como significados, as relações tornam-se os objetos
da indagação e diminui bastante a importância das qualidades, que só têm função na medida em que
ajudem a estabelecer relações" (Logik, VI, § 6; trad. it., p. 171). Ora, "relações" nada mais são do que o
outro nome de leis, já que a lei nada mais é do que a expressão de uma relação: de modo que o mesmo
conceito da C. pode ser encontrado em todos os escritores que reconhecem na formulação da lei a tarefa
da ciência. H. Dingler dizia: "A principal tarefa da C. consiste em chegar ao maior número possível de
leis" (Die Methode der Physik, 1937, I, § 9). E, mais recentemente, R. B. Braithwaite afirmou: "O
conceito fundamental da C. é o da lei científica e o objetivo fundamental de uma C. é estabelecer leis.
Para compreender o modo como uma C. opera e o modo como qual ela fornece explicações dos fatos que
investiga, é necessário compreender a natureza das leis científicas e o modo de estabelecê-las" (Scientific
Explana-tion, Cambridge, 1953, p. 2).
3
2
Uma terceira concepção é a que reconhece, como garantia única da validade da C, a sua
autocorrigibilidade. Trata-se de uma concepção das vanguardas mais críticas ou menos dogmáticas da
metodologia contemporânea e ainda não alcançou o desenvolvimento das outras duas concepções acima;
apesar disso, é significativa, seja por partir da desistência de qualquer pretensão à garantia absoluta, seja
por abrir novas perspectivas ao estudo analítico dos instrumentos de pesquisa de que as C. dispõem. O
pressuposto dessa concepção é o falibilismo (v.), que Peirce atribuía a qualquer conhecimento humano
(Coll. Pap., I, 13, 141-52). Mas essa tese foi expressa pela primeira vez por Morris R. Cohen: "Podemos
definir a C. como um Sistema autocorretivo. ..AC. convida à dúvida. Pode desenvolver-se ou progredir
não só porque é fragmentária, mas também porque nenhuma proposição sua é, em si mesma,
absolutamente certa, e assim o processo de correção pode atuar quando encontramos provas mais
adequadas. Mas é preciso notar que a dúvida e a correção são compatíveis com os cânones do método
científico, de tal modo que a correção é o seu elo de continuidade" (Stu-dies in Philosophy and Science,
1949, p. 50). M. Black, mais recentemente, adotou ponto de vista análogo: "Os princípios do método
científico devem, por sua vez, ser considerados provisórios e sujeitos a correções ulteriores, de tal modo
que uma definição de 'método científico' seria verificável em qualquer sentido do termo" (Problems of
Analysis, 1954; p. 23). Em termos aparentemente paradoxais, mas equivalentes, K. Popper afirmara, em
Lógica da descoberta científica (1935), que o instrumental da C. não está voltado para a verificação, mas
para a falsificação das proposições científicas. "Nosso método de pesquisa", dizia ele, "não visa defender
as nossas antecipações para provar que temos razão, mas, ao contrário, visa destruí-las. Usando todas as
armas do nosso arsenal lógico, matemático e técnico, tentamos provar que nossas antecipações são falsas,
para apresentar, no lugar delas, novas antecipações não justificadas e injustificáveis, novos 'preconceitos
apressados e prematuros' como escarnecia Bacon" (The Logic of Scientific Discovery, 2
a
ed., 1958, § 85,
p. 279). Com isso, Popper pretendeu assinalar o abandono do ideal clássico da C: "O velho ideal
científico da episteme, do conhecimento absolutamente certo e demonstra vel, revelou-se um mito. A
exigência de
CIÊNCIA, TEORIA DA
140
CIÊNCIAS, CLASSIFICAÇÃO DAS
objetividade científica torna inevitável que qualquer asserção científica seja sempre provisória". O
homem não pode conhecer, mas só conjecturar (Ibid, pp. 278, 280). Afirmar que os instrumentos de que a
C. dispõe se destinam a demonstrar a falsidade da C. é um outro modo de exprimir o conceito da
autocorribi-lidade da C: provar a falsidade de uma asserção significa, de fato, substituí-la por outra
asserção, cuja falsidade ainda não foi provada, corrigindo portanto a primeira. A noção da
autocorrigibilidade sem dúvida constitui a garantia menos dogmática que a C. pode exigir da sua própria
validade. Permite uma análise menos preconceituosa dos instrumentos de verificação e controle de que
cada C. dispõe.
CIÊNCIA, TEORIA DA (in. Science of science; fr. Doctrine de Ia science; ai. Wissens-chaftslebre, it.
Dottrina delia scienzd). Expressão com a qual Fichte designou "a C. das C. em geral", isto é, a C. que
expõe de modo sistemático o princípio fundamental em que se apoiam todas as outras ciências. "Qualquer
C. possível tem um princípio fundamental que nela não pode ser demonstrado, mas que já deve ter sido
verificado antes dela. Ora, onde deve ser demonstrado esse princípio fundamental? Sem dúvida na C. que
deve fundamentar todas as C. possíveis" (Über dem Begriff der Wissens-chaftslehre, 1794, § 2; trad. it.,
pp. 11-12). Fichte identificava a teoria da C. com a filosofia, vendo o seu princípio fundamental no Eu.
Essa expressão ainda é usada hoje, quase sempre com referência a Fichte. Todavia, B. Bolzano adotou-a
como título de uma obra para indicar a doutrina que expõe as regras de divisão do campo em cada C. e de
aprendizado do próprio saber (Wissenschaftslehre, 1837, I, § 6; cf. IV, § 392 ss.). Mas, para a disciplina
que considera as formas ou os procedimentos do conhecimento científico, têm sido usadas mais
freqüentemente as palavras epistemologia (v.) e metodologia (v.).
CIÊNCIA NOVA. Expressão com que G. B. Viço designou a sua principal obra, publicada pela primeira
vez em 1725 e, em novas edições, em 1730 e em 1744. O título completo Princípios de uma ciência nova
acerca da natureza comum das nações expressa a finalidade da obra. Viço propunha-se instaurar uma
ciência que tivesse como tarefa o estudo das leis próprias da história humana, do mesmo modo como a C.
natural estuda as leis do mundo natural. Viço quer ser o Bacon da história, propondo-se rastrear sua ordem e exprimi-la em leis. As
caracterizações fundamentais que ele dá da C. nova são as seguintes (cf. especialmente a C. N. de 1744, I,
Do método):
\- a C. nova é uma "teologia civil e racional da providência divina", isto é, a demonstração da ordem
providencial que se vai atualizando na sociedade humana, à medida que o homem se ergue da sua queda e
da sua miséria primitiva. Viço opõe essa teologia civil'(= social) à teologia física da tradição, que
demonstra a ação providencial de Deus na natureza;
2- a C. nova é uma "história das idéias humanas sobre a qual parece dever proceder a metafísica da mente
humana": é a determinação do desenvolvimento intelectual humano, desde as origens grosseiras até a
racionalidade reflexiva. Nesse sentido, também é uma "crítica filosófica que mostra a origem das idéias
humanas e a sua sucessão";
3
a
em terceiro lugar, a C. nova tende a descrever " uma história ideal eterna, sobre a qual transcorram, no
tempo, as histórias de todas as nações, nos seus surgimentos, progressos, estados, decadências e fins".
Como tal, a C. nova também é uma C. dos princípios da história universal e do direito natural universal;
4
a
a C. nova é, além disso, uma u
filosofia da autoridade', isto é, da tradição, pois é da tradição que extrai
as provas de fato (ou filológicas) que comprovam a ordem de sucessão das idades da história.
Sobre o conceito de história de Viço, v. HISTÓRIA.
CIÊNCIAS, CLASSIFICAÇÃO DAS (in Classification of sciences; fr. Classification des sciences; ai.
Klassifikation der Wissenschafte, it. Classificazione delle scienzé). Enquanto uma enciclopédia (v.) é a
tentativa de dar o quadro completo de todas as disciplinas científicas e de fixar de modo definitivo as suas
relações de coordenação e subordinação, uma classificação das C. tem só o intuito mais modesto de
dividir as C. em dois ou mais grupos, segundo a afinidade de seus objetos ou de seus instrumentos de
pesquisa. É óbvio que as enciclopédias das C. também podem ser consideradas simples classificações,
mas algumas classificações simples, feitas pelos filósofos do século XIX, foram muito mais eficazes
nesse trabalho científico. A mais famosa de todas é a proposta por Am-père, de C. do espírito, ou
noológicas, e C. da natureza, ou cosmo lógicas (Essai sur Ia philo-
CIÊNCIAS, CLASSIFICAÇÃO DAS 141
CINISMO
sopbie des sciences, 1834). Essa classificação foi amplamente aceita e, às vezes, reexpressa com outros
termos, p. ex., como distinção entre C. culturais e C. naturais (Du BOIS-REYMOND, Kulturgeschichte und
Naturnissenschaften, 1878). Para a sua difusão a maior contribuição foi de Dilthey, que, em Introdução
às ciências do espírito (1883), insistiu na diferença entre as ciências que visam conhecer casualmente o
objeto, que permanece externo, isto é, as C. naturais, e as que, ao contrário, visam compreender o objeto
(que é o homem) e a revivê-lo intrinsecamente, isto é, as C. do espírito. Win-delband, por sua vez, fazia
distinção entre C. nomotéticas, que procuram descobrir leis e dizem respeito à natureza, e C. idiogrãficas,
que têm em mira o indivíduo, em determinação histórica e como objeto a história (Geschichte und
Naturwissenschaften, 1894, e depois nos Prâludierí). Rickert exprimia a mesma diferença com mais
felicidade afirmando que as C. da natureza têm caráter generalizante, ao passo que as C. do espírito têm
caráter individua-lizante (Die Grenzen der naturwissenschaft-lichen Begriffsbildung, 1896-1902, pp. 236
ss.) (v. HISTORIOGRAFIA).
De outro ponto de vista, Comte distinguira duas espécies de C. naturais: as C. abstratas ou gerais, que
têm por objeto a descoberta das leis que regem as diferentes classes de fenômenos, e as C. concretas,
particulares, descritivas, que consistem na aplicação dessas leis à história efetiva dos diferentes seres
existentes (Cours dephil. positive, 1830, I, II, § 4). Spencer retomava essa distinção e, por sua vez, dividia
todas as C. em abstratas (lógica formal e matemática), abstrato-concretas (mecânica, física, química) e
concretas (astronomia, mineralogia, geologia, biologia, psicologia, sociologia) (The Classification of the
Sciences, 1864). E Wundt simplificava essa classificação, reduzindo-a a dois grupos apenas: o das C.
formais (lógica e matemática) e o das C. reais (C. da natureza e do espírito) (System der Philosophie,
1889). Pouco diferente desta é a classificação triádica de Ostwald em C. formais, C. físicas e C.
biológicas (Gundriss derNaturphilosophie, 1908). A distinção entre C. formais e C. reais ainda é
amplamente aceita. R. Carnap a repropôs com o fundamento de que as C. formais só conteriam asserções
analíticas e as C. reais, ou factuais, conteriam também asserções sintéticas (em Erkenntniss, 1934, n. 5;
agora em Readings in the Philosophy of Science, 1953, pp. 123 ss.).
Como nota Carnap, assim interpretada, essa classificação deixa intacta a unidade da C, pois "as C.
formais não têm absolutamente objeto: são sistemas de asserções auxiliares sem objeto e sem conteúdo"
(Ibid., p. 128).
Essas últimas palavras de Carnap explicam-se tendo em mente que hoje não se pode conferir caráter
absoluto ou rigoroso à distinção entre as várias C. As palavras seguintes de Von Mises exprimem bem o
ponto de vista mais corrente sobre o assunto: "Qualquer divisão e subdivisão das C. tem apenas
importância prática e provisória, não é sistematicamente necessária e definitiva, isto é, depende das
situações externas em que se realiza o trabalho científico e da fase atual de desenvolvimento de cada
disciplina. Os progressos mais decisivos muitas vezes se originaram do esclarecimento de problemas que
se encontram nos limites entre setores até então tratados separadamente" (Klei-nes Lehrbuch des
Positivismus, 1939, V, 7).
CIFRA (ai. Chiffré). Segundo Jaspers, é "a linguagem da transcendência", isto é, o símbolo mediante o
qual o ser transcendente pode estar presente na existência humana sem, contudo, adquirir caracteres
objetivos e sem fazer parte da existência subjetiva (Phil, III, p. 137). Uma coisa, uma pessoa, uma
doutrina, uma poesia podem valer como símbolos ou C. da transcendência; símbolos e C. são também as
situações-limite (v.).
CINEMATOGRÁFICO, MECANISMO (fr. Mécanisme cinématographiquè). Foi assim que Bergson
denominou o procedimento do pensamento em face do movimento: o pensamento faria "instantâneos"
imóveis do movimento, aos quais acrescentaria um movimento artificial externo. Esse procedimento seria
a base da "ilusão mecanicista" (Évol. créatr., cap. IV).
CINISMO (in. Cynicism; fr. Cynisme-, ai. Cynismus; it. Filosofia cinica). Doutrina de uma das escolas
socráticas, mais precisamente da que foi criada por Antístenes de Atenas (séc. IV a.C.) no Ginásio
Cinosargos. É provável que o nome da doutrina derive do nome do Ginásio, ou então, como dizem outros,
do seu ideal de vida nos moldes da simplicidade ( e do descaramento) da vida canina. A tese fundamental
do cinismo é que o único fim do homem é a felicidade e a felicidade consiste na virtude. Fora da virtude
não existem bens, de modo que foi característica dos cínicos o desprezo pela comodidade, pelas riquezas,
pelos prazeres, bem como o mais radical desprezo pelas
CÍRCULO
142
CIRENAISMO
convenções humanas e, em geral, por tudo o que afasta o homem da simplicidade natural de que os
animais dão exemplo. A palavra "cinismo" permaneceu na linguagem comum para designar um certo
descaramento.
CÍRCULO (gr. KÚKÀCP, 5tóM.r|Àoç A,<yyoç; lat. Circulus; in. Circle, fr. Cercle, ai. Zirkelbeweiss-, it.
Circoló). Segundo Aristóteles a demonstração em círculo ou recíproca consiste em deduzir da conclusão e
de uma das duas premissas de um silogismo (esta última assumida na relação de predicação inversa) a
outra conclusão do próprio silogismo {An. pr., II, 5, 57 b ss.). Aristóteles admite a plena validade desse
procedimento e estabelece seus limites e suas condições a propósito de cada figura do silogismo.
Portanto, nada tem a ver com o "C. vicioso" ou "petição de princípio", que ele enumera entre os sofismas
extra dictionem (isto é, que não dependem da expressão lingüística) e que consiste em assumir como
premissa a proposição que se quer provar {El. sof., 5, 167 a 36).
Somente os céticos identificaram ambas as coisas e julgaram que todo silogismo não só é um C, ou seja,
uma demonstração recíproca, como também é um C. vicioso, uma petição de princípio. Nesse sentido
usaram a palavra dialelo e o incluíram entre os tropos, isto é, entre os modos de suspender o juízo. Sexto
Empírico atribui este tropo àqueles que ele chama de "céticos mais recentes", isto é, os seguidores de
Agripa: "Existe dialelo quando aquilo que deve ser confirmação da coisa procurada precisa ser
encontrado pela coisa procurada" {Pirr. hyp., I, 169; cf. DIÓG. L., IX, 89). Por sua vez, Sexto Empírico
acredita que todo silogismo é um dialelo porque nele a premissa maior, p. ex., "Todos os homens são
mortais", pressupõe a conclusão "Sócrates é mortal" {Pirr. hyp., II, 195 ss.). Essa crítica negligencia um
ponto capital da lógica de Aristóteles, isto é, que as premissas do silogismo não são estabelecidas por
indução, mas exprimem a causa ou a substância necessária das coisas. P. ex., quando se diz "Todos os
homens são mortais", não se exprime a observação de que Fulano, Beltrano e Sicrano são mortais, mas
sim um caráter que pertence à substância ou essência necessária do homem e por isso é a causa ou razão
de ser da conclusão.
Em geral, o C. é considerado sinal da incapacidade de demonstrar. Hegel observou, porém, que "a
filosofia forma um C." porque, em
cada uma de suas partes, deve partir de algo não demonstrado, que é por sua vez o resultado de alguma
outra de suas partes {Fil. do dir, § 2, Zusatz). Por sua vez, Rosmini {Lógica, 1854, p. 274 n) falou de um
"C. sólido", pelo qual o conhecimento da parte supõe o do todo, e vice-versa. E Gentile, remontando a tais
exemplos, disse que o dialelo ou C, da forma como Empírico o mostrou no silogismo, é a característica
própria do "pensamento pensado", isto é, do pensamento como objeto de si mesmo. "Esse dialelo", diz
ele, "que foi sempre o pesadelo do pensamento, será — aliás é — a morte do pensamento pensante; mas é
a vida, a própria lei fundamental do pensamento pensado, sem o qual é impossível conceber o
pensamento pensante" (Log, I, parte II, VI, § 3).
CÍRCULO DE VIENA (in. Vienna Circle, fr. Cercle de Vienne, ai. Wiener Kreis, it. Circolo di Vienna).
Tem esse nome o grupo de filósofos e cientistas que se reuniu em torno de Moritz Schlick, professor da
Universidade de Viena, nos anos que vão de 1929 a 1937; grupo que compreendia, entre outros, Kurt
Gôdel, Philip Franc, Friedrich Waissmann, Otto Neurath e Rudolf Carnap. Ao C. de Viena vinculava-se o
grupo de Berlim, em torno de Hans Reichen-bach e Richard von Mises. A revista Erkennt-niss, publicada
de 1930 a 1937 e dirigida por Carnap e Reichenbach, foi o órgão desta corrente. Quando o grupo se
dissolveu, com o início das perseguições raciais (1938), seus membros foram quase todos para os Estados
Unidos, onde continuaram em atividade profícua. Um dos inspiradores do C. de Viena foi Wittgenstein.
Para as idéias defendidas pelo C. de Viena, cuja diretriz foi antimetafísica e empirista, v. EMPIRISMO
LÓGICO. Para outros dados, v. BARONE, // neopo-sitivismo lógico, Turim, 1953.
CIRENAÍSMO. Filosofia dos cirenaicos, uma das escolas socráticas, mais precisamente a fundada por
Aristipo de Cirene (séc. VI a.C), da qual fizeram parte Teodoro, o Ateu, He-gédias, o Advogado da Morte,
e outros. O interesse dos cirenaicos, assim como o dos cínicos, era predominantemente moral. Colocavam
o critério da verdade na sensação e o critério do bem no prazer. A finalidade do homem é o prazer, não
sendo a felicidade mais do que "o sistema dos prazeres" passados, presentes e futuros. A conclusão dessa
atitude é o conselho de pensar no dia de hoje, aliás, no instante em que cada um atua ou pensa, dada a
incerteza
CIVILIZAÇÃO
143
CIVILIZAÇÃO
radical do futuro. Hegésias extraía conseqüências pessimistas desse ponto de vista, afirmando que, para o
sábio, a vida é indiferente. Cf. as fontes recolhidas em G. GIANNANTONI, / Ci-renaici, Florença, 1958.
CIVILIZAÇÃO (in. Civilization; fr. Civi-lisation; ai. Zivilisation; it. Civiltã). No uso comum, esse
termo designa as formas mais elevadas da vida de um povo, isto é, a religião, a arte, a ciência, etc,
consideradas como indicadores do grau de formação humana ou espiritual alcançada pelo povo. Como
subordem, fala-se de "C. da técnica", em cuja expressão a especificação implica que não se trata da "C."
sem adjetivos. Está claro que essa noção baseia-se na preferência atribuída a certos valores. Em primeiro
lugar, privilegiam-se certas formas de atividade ou de experiência humana; em segundo lugar,
privilegiam-se os grupos humanos nos quais tais formas de experiência e de atividade são mais
favorecidas. Assim, não há dúvida de que, do ponto de vista da noção acima exposta, a única e verdadeira
forma de C. é a do ocidente cristão, pois foi só entre os povos do ocidente cristão que a religião, a arte e o
"saber desinteressado" da ciência gozaram de maior favorecimento, com exceção de períodos
relativamente breves.
O historicismo relativista e, em particular, a obra de Spengler abalaram o complexo de certezas em que
essa noção se apoiava. Spengler, embora tenha visto na civilização a forma mais elevada e madura de
determinada cultura, viu também nela o princípio do seu fim, e mostrou que não há uma cultura só, e que
todas nascem, crescem e morrem como organismos vivos. A sua obra deve-se a generalização do conceito
de cultura e, portanto, também de C, que seria determinada fase da própria cultura. Com isso, a noção de
C. baseada em determinada hierarquia de valores entrou em crise. Começou-se a usar a palavra C. no
plural. É o que faz, p. ex., Toynbee, que a contrapôs a "sociedade primitiva", para indicar as sociedades
que constituíram ou constituem mundos culturais relativamente autônomos. Toynbee enumera diferenças
puramente extrínsecas entre C. e sociedade primitivas. O número das C. conhecidas é pequeno; Toynbee
enumera 21. O número de sociedades primitivas conhecidas é grande; em 1915 L. T. Hobhouse e outros
enumeraram 650. As sociedades primitivas são restritas quanto ao número dos seus membros e à extensão
geográfica e têm vida breve, muitas
vezes violentamente truncada. As C, ao contrário, são grandes e duradouras; para resumir, as duas
espécies estão entre si como os elefantes estão para os coelhos (TOYNBEE, Study ofHis-tory, I, C, III, a).
Na realidade, a palavra C, assim como a palavra cultura, deve ser ainda mais generalizada em seu
significado; e, assim como a cultura foi definida como um "sistema historicamente derivado de projetos
de vida explícitos e implícitos, que tendem a ser partilhados por todos os membros de um grupo ou por
aqueles especialmente qualificados" (R. LINTON, The Science of Man, Nova York, 1952,1- ed., p. 98),
também a C. deve ser definida como o aspecto tecnológi-co-simbólico de determinada cultura. Nesse
sentido genérico, os dois termos, C. e cultura, podem ser aplicados aos povos e aos grupos humanos mais
díspares. A C. constitui, como se pode dizer, o arsenal, isto é, o conjunto dos instrumentos de que uma
cultura dispõe para conservar-se, enfrentar os imprevistos de situações novas e perigosas, superar a crise,
renovar-se e progredir. Se uma cultura pode ser entendida (segundo o esquema de Toynbee) como a
"resposta" dada por um grupo de homens ao "desafio" representado pelas condições da realidade
biológica física e social em que se encontram, pode-se dizer que uma "C." é o conjunto de armas que uma
cultura forja para enfrentar o "desafio". Essas armas são constituídas, em primeiro lugar, pelas técnicas,
desde o mais simples e elementar trabalho manual até as formas mais complexas das ciências e das artes;
e, em segundo lugar, pelas formas simbólicas, isto é, pelo conhecimento, pela arte, pela moralidade, pela
religião, pela filosofia, etc, que condicionam e ao mesmo tempo são condicionadas por essas técnicas. O
entrelaçamento e a combinação das técnicas e formas simbólicas (ou espirituais) que, por sua vez, podem
ser consideradas outras técnicas, constitui a base das instituições econômicas, jurídicas, políticas,
religiosas, educacionais etc, nas quais comumente se pensa quando se fala de C. Na realidade, o uso
científico (isto é, objetivo e neutro) dessa palavra (uso indispensável para o estudo e a compreensão de
tantas C. díspares de que temos memória histórica e das tantas e diferentes fases que cada uma delas
atravessou e atravessa) exige que estejam incluídas no conceito de C. só as características gerais e formais
dos instrumentos que ele designa, prescindindo de qualquer referência a
CLAREZA e DISTINÇÃO
144
CLASSE1
um sistema de valores (como poderiam ser os da C. cristã ou ocidental e da C. islâmica, etc). É preciso,
então, em primeiro lugar, não perder de vista a eficiência das armas que uma C. põe à disposição da
cultura a que pertence, em vista da sua conservação e do seu progresso. E é claro que, em face das
mudanças incessantes nas condições que uma cultura deve enfrentar e em face da imprevisibilidade
dessas mudanças, as possibilidades de sucesso dos instrumentos técnico-simbólicos, que constituem
determinada civilização ou uma de suas fases, não dependem da configuração particular que assumiram
nessa fase (ainda que essa configuração tenha permitido grande êxito), mas sim de sua capacidade de
autocorreção, isto é, da sua capacidade de adaptação a circunstâncias sempre novas e variáveis. Isso
significa que as possibilidades de sucesso de tais instrumentos dependem essencialmente das regras
metodológicas que prescrevem e dirigem sua adaptação a circunstâncias ou a fatos diversos e díspares,
permitindo, cada vez, estruturá-los de modo oportuno em vista de tais circunstâncias ou fatos, de tal
forma que sua eficácia permaneça e aumente. Desse ponto de vista, a presença ativa e atuante, em todos
os campos, da metodologia da pesquisa científica — no sentido mais lato, que inclui a consciência das
limitações ou das insuficiências dessa metodologia em cada fase histórica — é o índice objetivo que
mede o grau de C, isto é, o poder do arsenal de que uma cultura dispõe para a sua própria conservação e o
seu progresso (v. CULTURA).
CLAREZA e DISTINÇÃO (in. Clearness and distinctness; fr. Clarté et distinction-, ai. Klarheit und
Deutlichkeit; it. Chiarezza e dis-tinzionè). Os dois graus da evidência, no sentido subjetivo em que foi
entendida a partir de Descartes. Diz Descartes: "Chamo de clara a percepção presente e manifesta ao
espírito de quem lhe presta atenção, assim como dizemos que são claras as coisas que temos diante do
olho que as olha". Chama-se, porém, distinta a percepção que, "sendo clara, é tão desligada e separada de
todas as outras que não contém absolutamente em si nada além do que é claro" (Princ. phil, I, 45). Essa
distinção cartesiana não é muito precisa, ao menos no que se refere ao conceito de distinção; Locke, que a
reproduz, não a torna mais precisa {Ensaio, II, 29, § 4). Mas Leibniz tornou-a mais precisa, ao considerar
clara a noção que permite discernir a coisa representada e obscura a que não o
permite, como quando nos lembramos de uma flor ou de um animal que vimos, mas não o suficiente para
distingui-lo dos outros e para reconhecê-los. A distinção é um grau muito superior de evidência e, além do
mais, um grau que pertence especificamente à evidência racional. Com efeito, uma noção é confusa
quando não permite que se distingam suas notas constitutivas; p. ex., os odores, os sabores, as cores,
embora possam ser claramente reconhecidos, não podem ser descritos e definidos com base em seus
traços constitutivos; tanto é verdade que não podemos explicar o que é uma cor a um cego. Ao contrário,
as noções distintas são aquelas para cujos traços podemos ter a definição nominal, isto é, a enumeração
das suas notas suficientes. Assim, o conhecimento que um químico tem do ouro é distinto. O
conhecimento distinto é indefinível só quando vem antes, ou seja, não é derivável dos outros (Op., ed.
Erdmann, p. 79). A distinção assim estabelecida por Leibniz é muito importante porque é a própria
distinção entre o conhecimento sensível e o conhecimento racional. O conhecimento sensível pode chegar
à C, mas é sempre confuso; o conhecimento racional é o conhecimento distinto. A filosofia alemã, de
Leibniz a Kant, conservou essa distinção e o próprio Kant a aceita embora não a julgue suficiente para
estabelecer a diferença entre o conhecimento sensível e o conhecimento racional. Diz ele: "A consciência
das próprias representações, quando basta para diferenciar um objeto dos outros, chama-se clareza.
Aquela pela qual se esclarece a composição das representações chama-se distinção. Só esta última pode
fazer que uma soma de representações se torne um conhecimento no qual seja pensada a ordem da
multiplicidade" (Antr., I, § 6).
Essa doutrina da diferença entre C. e distinção como graus da evidência não conservou a mesma
importância na filosofia contemporânea, que retornou ao antigo conceito objetivista da evidência. Todavia
Husserl ainda utiliza o conceito de C. para definir a consciência à qual o objeto é dado "puramente em si
mesmo, exatamente como é em si mesmo... No caso da plena obscuridade, pólo oposto da plena C, nada
chegou a ser dado, e a consciência é obscura, não mais vidente nem oferente em sentido próprio" (Ideen,
I, § 67).
CIASSE1
(in. Class, fr. Classe, ai. Klasse, it. Classe). Em sentido sociológico, corresponde
CLASSE1
145
CLASSE1
ao que os antigos chamavam de "parte da cidade" e designa um grupo de cidadãos definido pela natureza
da função que exercem na vida social e pela parcela de vantagens que extraem de tal função. Platão
admitia três C, ou melhor, três partes da sua cidade ideal: a dos governantes ou filósofos, a dos guerreiros
e a dos agricultores e artífices; confiava à primeira a tarefa de distribuir os indivíduos entre as classes
(Rep., III, 412 b ss.)- Aristóteles enumera oito C: agricultores, operários mecânicos, comerciantes, servos
agrícolas, guerreiros, juizes, ricos e magistrados (Pol, IV, 4, 1290 b 37). Mas, levando-se em conta o que
ele diz sobre o trabalho manual (v. BANAUSIA), pode-se afirmar que, na realidade, para Aristóteles as C.
são duas, além da dos escravos, que constituem os "instrumentos animados" (v. SERVO E PATRÃO), OU
seja: os que são forçados ao trabalho manual e os que se libertaram de tal necessidade. "A melhor
constituição", diz Aristóteles, "jamais admitirá no rol dos cidadãos um operário mecânico. Mas se este já
é cidadão, então deveremos atribuir as virtudes de cidadão não a todos indistintamente, como se bastasse
a condição de homem livre, mas só aos que não estão forçados aos trabalhos necessários à vida cotidiana"
(Ibid, III, 5, 1278 a 8).
A noção de C. ficou muito acentuada no séc. XVIII, por obra da Revolução Francesa e de todo o
movimento cultural que a promoveu e a acompanhou. Em filosofia, porém, ela só ganha destaque graças a
Hegel, que considerava a divisão das C. como um ajustamento necessário da sociedade civil, devido a
bens privados, ou seja, ao capital, à aptidão dos indivíduos que, em parte, é condicionada pelo capital, a
circunstâncias contingentes devidas à diversidade das disposições e das necessidades físicas e espirituais
(Fil. do dir., § 200). Hegel atribuiu às C. a função mediadora entre o governo e o povo; sua determinação
exige nelas tanto o sentido e o sentimento de Estado e governo, quanto o dos interesses dos grupos
particulares e dos indivíduos (Ibid., § 302). O conceito de C, assim elaborado por Hegel, foi usado por
Marx como fundamento da sua doutrina da luta de classes. Na verdade, os economistas ingleses Malthus
e Ricardo já tinham reconhecido a possibilidade de oposições entre as C, como conseqüência do
funcionamento das leis econômicas. Desses economistas, Marx aceita o conceito do fundamento
econômico da luta de C. e, de Hegel, o caráter necessário (isto é, historicamente necessário, para qualquer sociedade não comunista) da divisão em classes. Numa carta de
1852, resumia seu pensamento da seguinte forma: "ls
A existência das C. está simplesmente ligada a
determinadas fases históricas do desenvolvimento produtivo; 2- a luta de classes conduz inevitavelmente
à ditadura do proletariado; 3Q
essa ditadura não constitui senão a passagem para a abolição de todas as C.
e para a sociedade sem classes" (Marx-Engels Correspondence, p. 57). Para Marx, a C. tem aquela
espécie de unidade substancial sólida que Hegel atribuía ao espírito de um povo (Volksgeist), isto é, ela
age na história como uma unidade e subordina o indivíduo, que conta apenas como membro da sua C, da
qual derivam seus modos de pensar e de viver, seus sentimentos e suas ilusões.
Essa rigidez do conceito de C. foi mantida pela ideologia comunista e, mais que um conceito científico, é
um instrumento de luta política. Trata-se de um conceito que foi, ele mesmo, condicionado por uma
situação histórica particular: a fase de formação do industrialismo, que parece dividir a humanidade em
duas C. hostis, entre as quais o conflito é inevitável: a dos capitalistas, ou seja, dos proprietários dos
meios de produção, e a dos proletários, obrigados a vender aos primeiros sua força de trabalho. As
análises contemporâneas mostraram uma estrutura mais complexa e elástica da classe. Dahrendorf, p. ex.,
definiu as C. com base nas relações de autoridade e não nas de trabalho; desse ponto de vista, as C. não
são nem exclusiva nem predominantemente agrupamentos econômicos, mas estratificações sociais que,
por sua vez, podem conter uma pluralidade de estratos. "Cada vez mais, as relações sociais da indústria,
inclusive os conflitos de trabalho, deixam de dominar a sociedade como um todo, para ficarem confinadas
na esfera industrial, com suas formas e seus problemas. Na sociedade pós-capitalista, indústrias e
conflitos de trabalho estão institucionalmente isolados, ou seja, confinados nos limites de seu próprio
reino e não exercem influência sobre as outras esferas da sociedade" (Class and Class Con-flíct in
IndustrialSociety, Londres, 1959, p. 268). O sociólogo polonês Stanislav Ossowski identificou a
existência de estratificações sociais mesmo nas sociedades comunistas contemporâneas: "Estamos bem
distantes das C. concebidas como grupos que nascem das organizações de C. espontaneamente criadas.
Em
CLASSE2
146
CLASSE, CONSCIÊNCIA DE
situações em que as autoridades políticas podem, aberta e efetivamente, mudar a estrutura de C, em que
os privilégios, essencialíssi-mos para a definição do status social, inclusive no que se refere a uma
porcentagem maior da renda nacional, são conferidos por decisão das autoridades políticas, em que
grande parte ou mesmo a maioria da população está incluída num tipo de estratificáção que pode ser
encontrado em hierarquias burocráticas, o conceito oitocentista de C. passa a ser mais ou menos
anacrônico e os conflitos de C. dão lugar a outras formas de antagonismo social" (Class Structure in the
Social Consciousness, Londres, 1963, p. 184). Desse ponto de vista, o conceito de C. não está mais
ancorado exclusivamente na propriedade dos meios de produção e deve rever os elementos fundamentais
da complexa organização que pode diferir, como de fato difere, de uma sociedade para outra e de um
momento histórico para outro (cf. T. B. BOTTOMORE, Classes in Modem Society, Londres, 1965).
CLASSE2
(in. Class;-fr. Classe, ai. Klasse, it. Classe). Embora o conceito de "C." já estivesse presente no
pensamento lógico medieval, esse termo só começou a ser usado no séc. XLX, sobretudo por obra dos
lógicos ingleses, como Hamilton, Jevons, Venn, etc, preocupados com o problema da quantificação da
Lógica. Pode-se definir uma classe enumerando os membros que a compõem (definição extensiva) ou
indicando a propriedade comum de todos os seus membros (definição intensiva), como quando se fala do
"gênero humano" ou dos "habitantes de Londres". Russell considerou fundamental a definição intensiva
porque a extensiva pode ser reduzida a ela, sem que ocorra o inverso. Portanto, reduziu a C. a uma função
propo-sicional (v.), ou seja, a um predicado ou a um atributo. Nesse sentido, usou o conceito dos
Principia Mathematica (cf. também Intro-duction to MathematicalPhilosophy, 1919, cap. XVII). Quanto
às relações entre o conceito de C. e o de conjunto, ver este último termo.
CLASSE, CONSCIÊNCIA DE (in Consciousness of class; fr. Conscience de classe, ai.
Klassenbewusstsein; it. Conscienza di classe). Esse foi um conceito em que Hegel insistiu; segundo ele, o
fato de um indivíduo pertencer a uma classe é determinado não só pelas circunstâncias objetivas, mas
também pela vontade do indivíduo, de tal modo que o fato de pertencer a essa classe "pela consciência
subjetiva
tem o aspecto de ser obra da própria vontade" (PU. do dir., § 206). Hegel acrescenta que, para o homem,
"ser alguma coisa" significa "pertencer a uma classe determinada", porque o homem sem classe seria um
simples indivíduo isolado e não participaria da universalidade real própria da classe. Portanto, para o
indivíduo, reconhecer-se como pertencente a uma classe não é uma degradação, mas a aquisição de sua
"realidade e objetividade ética", ou seja, o reconhecimento da unidade, realizada no indivíduo, entre
universalidade e particularidade (Ibid., § 207 e Zusatz). Para Marx, esse conceito tinha bem menos
importância, já que tudo o que é "consciência" pertence à superestrutura (v.), que é determinada pelas
relações de trabalho e produção. Contudo, Marx afirmou que, se entre os indivíduos "houver apenas
contato local, se a identidade de seus interesses não os levar a criar uma comunidade, uma associação
nacional, uma organização política, eles não constituirão uma classe" (Der 18 Brumaire des Louis
Bonaparte, nova ed., 1946, p. 104). Esse conceito foi posto em primeiro plano na interpretação do
marxismo feita por Georg Luc-kács, no livro História e consciência de classe (1922), que atribui à
consciência de C. o título de sujeito da história, ou seja, de princípio ou força que faz a história. Segundo
Luckács, a consciência de C. autêntica é "a realização racional e adequada que deve ser adjudicada a uma
situação típica, no processo de produção". Por isso, distingue-se da falsa consciência, que é uma reação
inadequada a tal situação, que ignora suas contradições. A consciência de C. é o ponto de partida da
vocação de uma C. para o domínio, ou seja, para a organização de uma sociedade conforme com os seus
interesses (Histoire et conscience de classe, 1960, pp. 72 ss.). A consciência de C. identifica-se com a
"compreensão total da história", na qual se funda a possibilidade real de evolução da própria história em
direção a uma sociedade nova. Rejeitada pelo marxismo oficial, que a acusava de "idealismo", essa
doutrina continua sendo discutida pelo pensamento marxista ocidental. Mas com a crise que o conceito de
C. sofreu nos estudos sociológicos contemporâneos (v. CLASSE), a consciência de C, considerada como
"consciência das contradições entre interesses econômicos e sociais opostos", é entendida apenas como
um dos muitos elementos que compõem a noção de C. (cf., p. ex., TOURAINE, La société postindustrielle, 1969).
CIASSE ELEITA 147
COERÊNCIA
CIASSE ELEITA. V. ELITE.
CLÁSSICO (lat. Classicus; in. Classiq fr. Classique, ai. Klassische, it. Clássico). No latim tardio, esse
adjetivo designava o que é excelente em sua classe ou o que pertence a uma classe excelente
(especialmente à classe militar). Aulo Gélio (Noct. Att., XIX, 8,15) contrapunha o escritor C. ao escritor
"proletário" (pro-letarius). Mas a difusão dessa palavra para designar um modo ou estilo excelente — e
próprio dos antigos —, na arte e na vida, é devida ao Romantismo, que gostava de definir-se e entender-se
sempre em relação ao "classi-cismo". Segundo Hegel, o caráter clássico é definido como a união total do
conteúdo ideal com a forma sensível. O ideal da arte encontra na arte C. a sua realização perfeita: a forma
sensível foi transfigurada, subtraída à finitude, e inteiramente conformada à infinitude do Conceito, isto é,
do Espírito Autoconsciente. E isso acontece porque, na arte C, a Idéia infinita encontrou a forma ideal em
que exprimir-se, isto é, a figura humana. Todavia, o defeito da arte C. é o de ser arte, arte na sua
completitude, mas nada mais. Em face dela, a arte romântico-cristâ está em nível superior, pois nela a
unidade da natureza divina com a natureza humana (isto é, do infinito e do finito) torna-se autoconsciente
e, por isso, não se exprime mais de forma externa, mas:sua expressão é interiorizada e espiritualizada. Na
arte romântica, a beleza já não é física e exterior, mas puramente espiritual, porque é a beleza da
interioridade como tal, da subjetividade inifinita em si mesma (Vorlesungen über die Àsthetik, ed.
Glockner, II, pp. 109 ss.). Dessas idéias de Hegel, repetidas de forma pouco diferente por numerosos
escritores do período romântico, nasceu o ideal convencional do classicismo como medida, equilíbrio,
serenidade e harmonia, contra o qual a distinção de Nietzsche entre espírito apolíneo e espírito dionisíaco
(v. APOLÍNEO) representou a primeira reação. Cf. os artigos de Tatarkiewicz e outros na Revue
Internationale de Philosophie, 1958, 1 (n. 43).
CLASSIFICAÇÃO (in. Classification; fr. Classification; ai. Klassification; it. Classifica-zionè).
Operação de repartir um conjunto de objetos (quaisquer que sejam) em classes coordenadas ou
subordinadas, utilizando critérios oportunamente escolhidos. Como o conceito de classe é generalíssimo e
compreende todo e qualquer conceito sob o aspecto da extensão, a operação de C. é igualmente generalíssima e pode compreender qualquer procedimento de divisão, distinção, ordenação, coordenação,
hierarquização, etc. Por esse caráter generalíssimo que o torna pouco individualizável, já não recebe dos
lógicos contemporâneos a atenção que recebia dos lógicos do séc. XLX (cf., p. ex., STUART MILL, Logic,
1, 7; IV, 7).
CLASSIFICAÇÃO DAS CIÊNCIAS. V. CiÊN CIAS, CLASSIFICAÇÃO DAS.
CLASSIFICAÇÃO DOS JUÍZOS. V. Juízos, CLASSIFICAÇÃO DOS.
CLAVIS ÁUREA. Assim se chamou o método de interpretação das Sagradas Escrituras defendido por
Flacius e pelos outros autores das Centúrias de Magdeburgo (1559-73), método que consistia
principalmente em explicar cada trecho isolado através sentido total da Escritura.
CLAVIS UNTVERSALIS. Esse termo foi usado entre os sécs. XVI e XVII para indicar a técnica de
memória e invenção, cujo precedente mais ilustre é a Ars magna de Lúlio, e a sua conseqüência mais
importante em Característica universal de Leibniz (cf. PAOLO ROSSI, Clavis universalis, 1960) (v.
CARACTERÍSTICA;
COMBINATÓRIA, ARTE; MNEMÔNICA).
CLINAMEN. V. DECLINAÇÃO.
COERÊNCIA (in. Coherence, fr. Cohérence, ai. Zusammenhang; it. Coerenzà). 1. Ordem, conexão,
harmonia de um sistema de conhecimento. Nesse sentido, Kant atribuía aos conhecimentos a priori a
função de dar ordem e C. às representações sensíveis (Crít. R. Pura, I
a ed., Intr., § 1). Nesse sentido, a C.
foi assumida por alguns idealistas ingleses como critério da verdade. Segundo Bradley, p. ex., a realidade
é uma Consciência absoluta que abarca, na forma de C. harmoniosa, toda a multiplicidade dispersa e
contraditória da aparência sensível (Appearance and Reality, 2- ed., 1902, pp. 143 ss.). A C, nesse
sentido, é muito mais do que a simples compatibilidade (v.) entre os elementos de um sistema: implica,
com efeito, não só a ausência de contradição, mas a presença de conexões positivas que estabeleçam
harmonia entre os elementos do sistema. Nessa acepção, esse termo não tem significado lógico.
2. O mesmo que compatibilidade. Esse significado é assumido com freqüência por esse termo em italiano
e francês, já que nessas línguas o termo compatibilidade não se presta a exprimir o caráter do sistema
desprovido de
CO-ESPÉCIE
148
COGITO
contradição, mas designa o caráter de nâo-con-tradição recíproca dos enunciados.
CO-ESPÉCIE (in. Conspecies). Termo adotado por Hamilton para indicar as espécies coordenadas do
mesmo gênero, que são diferentes mas não contraditórias e, portanto, constituem noções discretas ou
disjuntas, chamadas às vezes de díspares (v.) (Lectures on Logic, I, p. 209).
COEXISTÊNCIA (in. Coexistence, fr. Coexis-tence, ai. Mitsein ou Mitdasein; it. Coesistenzà). No
existencialismo contemporâneo, entende-se por esse termo o modo específico pelo qual o homem está
com os outros homens no mundo: modo que é diferente daquele pelo qual ele se vê estar, no mundo, com
as outras coisas. Esse significado específico do termo deve-se a Hei-degger, que distinguiu a presença das
coisas como meios ou instrumentos utilizáveis pela co-presença (.Mitdasein) ou o ser-com dos outros com
o Eu. A estreita conexão da C. com a existência faz que não possa haver compreensão de si sem a
compreensão dos outros. "Na compreensão do ser, própria do ser-aí", diz Hei-degger, "está implícita a
compreensão dos outros, e isso porque o ser do ser-aí é coexistência" (Sein und Zeit, § 26).
COGITO. Abrevia-se nessa palavra a expressão cartesiana " cogito ergo sum" (Discours, IV; Méd., II, 6),
que exprime a auto-evidência existencial do sujeito pensante, isto é, a certeza que o sujeito pensante tem
da sua existência enquanto tal. Trata-se de uma tendência de pensamento que reaparece várias vezes na
história, ainda que com fins diversos. S. Agostinho valeu-se dele para refutar o ceticismo acadêmico, isto
é, para demonstrar que não se pode permanecer firme na dúvida ou na suspensão do assentimento. Quem
duvida da verdade tem certeza de que duvida, logo de que vive e pensa; portanto, na própria dúvida está a
certeza que a leva à verdade (Contra Acad., III, 11; De Trin., X, 10; Solil, II, 1). De S. Agostinho, o
mesmo tipo de pensamento passa para alguns escolásticos; p. ex., em S. Tomás: "Ninguém pode pensar
com assentimento (isto é, crer) que não é; já que, porquanto pensa alguma coisa, percebe que é" (Dever.,
q. 10, a. 12, ad. "0. Na mesma época de Descartes, esse princípio é retomado por Campanella (Mel, I, 2,
1). Embora esse tipo de pensamento tenha servido a fins diferentes (S. Agostinho utiliza-o para
demonstrar a transcendência da Verdade — que é Deus mesmo — e a sua presença na alma humana; Campanella utiliza-o para demonstrar a prioridade de uma "noção inata de si" sobre qualquer outra
espécie de conhecimento; e Descartes para justificar o seu método da evidência) e seu significado preciso
seja, portanto, diferente em um ou outro filósofo, poucas vezes se duvidou de sua validade geral. Para
toda filosofia que recorra à consciência (v.) como instrumento da indagação filosófica, o C. deve mostrarse indubitável, pois na realidade não é senão a formulação do postulado metodológico de tal filosofia.
Mas mesmo as filosofias que não reconhecem tal postulado fazem uso do C. e consideram-no válido.
Assim fazem, p. ex., Locke, que vê nele "o mais alto grau de certeza" (Ensaio, IV, 9, 3), e Kant, que vê
nele a própria apercepção pura (v.) ou consciência reflexiva. Na filosofia contemporânea, Hus-serl
assume explicitamente o C. como ponto de partida da sua filosofia (Ideen, I, § 46; Cart. Med., § 1) e
recorre a ele continuamente ao longo de suas análises, considerando-o como a própria estrutura da
experiência vivida (Er-lebniss) ou consciência. O próprio Heidegger não põe em dúvida a validade do C,
embora reprove em Kant o fato de, com ele, ter restringido o eu a um "sujeito lógico", isolado, "sujeito
que acompanha as representações de uma forma ontologicamente de todo indeterminada" (Sein und Zeit,
§ 64).
Diante de aceitação tão ampla, as críticas foram muito escassas. Pode-se pensar na crítica de Viço, mas é
fácil de ver que ela, na verdade, é uma crítica do Cogito. Viço nega que a "consciência" do próprio ser
possa constituir a sua "ciência", ou pelo menos o princípio dessa ciência. A ciência, de fato, é
conhecimento de causa e o C. cartesiano seria princípio de ciência só no caso de a consciência ser a causa
da existência (De antiquissima italorum sapientia, I, 3). Mas com isso Viço não nega que o C. constituía
uma certeza válida, apenas se preocupa em corrigi-lo afirmando que Descartes não deveria ter dito
"penso, logo existo" (Prima risposta alGiornale dei letterati, § 3). A crítica de Kierkegaard visa mais ao
alcance do que à validade do C. cartesiano: "O princípio de Descartes 'penso, logo sou', à luz da lógica, é
um jogo de palavras, pois aquele 'sou' outra coisa não significa, do ponto de vista lógico, senão 'sou
pensante' ou 'penso'" (Diário, V, A, 30). Em outros termos, segundo Kierkegaard, a proposição cartesiana
é puramente tautológica, já que seu pressuposto
COGITO
149
COISA
é a identidade da existência com o pensamento. Uma tatulogia, porém, ainda é uma proposição válida.
Em 1868, Peirce respondia negativamente à pergunta "temos autoconsciência intuitiva?", na qual a
palavra autoconsciência estava por conhecimento da própria existência. Peirce não contestava validade do
C, mas, com provas psicológicas e históricas, acreditava poder concluir que "não há necessidade de supor
uma autoconsciência intuitiva, desde que a autoconsciência pode facilmente ser resultado de inferência"
(Coll. Pap., 5.263). A rigor, nem mesmo essa é uma crítica ao cogito. A crítica mais simples e decisiva
essa noção pode ser considerada a de Nietzsche: '"Pensa-se, logo há alguma coisa que pensa': eis a que se
reduz a argumentação de Descartes. Mas isso significa somente considerar verdadeira apriori a nossa
crença na idéia de substância. Dizer que, quando se pensa, é preciso que haja alguma coisa 'que pense' é
apenas a formulação do hábito gramatical de acrescentar um agente à ação. Em resumo, aqui não se faz
mais do que formular um postulado lógico-metafísico, em vez de contentar-se em constatá-lo... Se
reduzirmos a proposição a isto: 'Pensa-se, logo há pensamentos', daí resultará uma simples tautologia e a
'realidade do pensamento' não é questionada de tal modo que se é levado a reconhecer a 'aparência' do
pensamento. Mas Descartes queria que o pensamento não fosse uma realidade aparente, mas fosse um 'em
si'" iWille zur Macht, ed. 1901, § 260). Essas considerações de Nietzsche constituem uma crítica ao
princípio do cogito que muitos filósofos contemporâneos aceitariam. Com efeito, Carnap refere-se a ela
explicitamente, repetindo-a. "A existência do eu", diz ele, "não é um estado de fato primitivo do dado. Do
C. não resulta o sum; de sou consciente não se segue que sou, mas apenas que há uma experiência
consciente (Erlebniss). O eu não pertence à expressão das experiências fundamentais vividas, mas
constitui-se mais tarde, essencialmente com o fim de delimitar seu âmbito pelo âmbito do outro... Em
lugar da expressão de Descartes, seria necessário colocar esta outra: 'Esta experiência é consciente; logo,
há uma experiência consciente'; mas certamente isso seria pura tautologia" (Derlogiscbe Aujbau der Welt,
1928, § 163). No entanto essa crítica está longe de ser compartilhada pelos próprios empiristas lógicos e
Ayer, p. ex., reafirma, substancialmente, a validade do princípio
cartesiano como verdade lógica, mesmo limitando seu alcance. "Se alguém pretende saber que existe ou
que é consciente, sua pretensão deve ser válida simplesmente porque o seu ser válida é uma condição do
seu ser feita" (JProblem of Knowledge, 1956, p. 53). A posição de Nietzsche sobre esse ponto era mais
radical e, provavelmente, mais correta (v. CONSCIÊNCIA).
COINCIDENTIA OPPOSITORUM. Expressão usada pela primeira vez por Nicolau de Cusa para
exprimir a transcendência e a infi-nitude de Deus, que seria a coincidência do máximo e do mínimo, do
tudo e do nada, do criar e do criado, da complicação e da explicação, num sentido que não pode ser
entendido nem apreendido pelo homem (De docta ignor., I, 4; De coniecturis, II, 1). No mesmo sentido,
essa expressão foi utilizada por Reuchlin (De arte cabalistica, 1517) e por Giordano Bruno, que com ela
define o universo, que ele identifica com Deus. O universo "compreende todas as oposições no seu ser,
em unidade e conveniência" (Delia causa [v.]).
COISA (rcpáyua; lat. Res; in. Thing; fr. Chose, ai. Ding; it. Cosa). Tanto no discurso comum quando no
filosófico, esse termo tem dois significados fundamentais: 1B
genérico, designando qualquer objeto ou
termo, real ou irreal, mental ou físico, etc, de que, de um modo qualquer, se possa tratar; 2- específico,
denotando os objetos naturais enquanto tais.
l
e
No primeiro significado, a palavra é um dos termos mais freqüentes da linguagem comum e também é
amplamente empregada pelos filósofos. "C" pode ser o termo de um ato de pensamento ou de
conhecimento, de imaginação ou de vontade, de construção ou de destruição, etc. Pode-se falar de uma C.
que existe na realidade como também de uma C. que está na imaginação, no coração, nos sentidos, etc.
Assim, pode-se dizer que, nessa acepção, C. significa um termo qualquer de um ato humano qualquer ou,
mais exatamente, qualquer objeto com que, de qualquer modo, se deva tratar. É o significado contido na
palavra grega pragma.
2° No seu significado mais restrito, a C. é o objeto natural também chamado de "corpo" ou "substância
corpórea". O uso do termo nesse segundo significado é até certo ponto recente. Pode talvez remontar a
Descartes, que, porém, ao lado da expressão "C. corpóreas" (choses
COISA
150
COISA
corporelles), emprega também "C. que pensa" (chose quipense), mostrando, assim, que entende a palavra
no significado tradicional de substância (Méd., II, passirrí). Locke preferiu a palavra "substância" ("As
idéias das substâncias são as combinações de idéias simples das quais se supõe que representem C.
particulares e distintas, subsistentes por si mesmas", Ensaio, II, 12, § 6). E só com Berkeley pode-se dizer
que o termo C. tenha suplantado definitivamente o termo substância: "As idéias impressas nos sentidos
pelo autor da natureza", diz ele, "são chamadas C. reais e as suscitadas pela imaginação, sendo menos
regulares, vividas e constantes, são mais propriamente chamadas idéias ou imagens das C, que elas
copiam ou representam" {Principies, I, § 33). A partir daí, esse termo C. passou a ser bastante freqüente
para indicar o corpo ou o objeto natural em geral. Kant estende-o ainda mais, distinguindo as coisas tais
como aparecem para nós, isto é, submetidas às condições da nossa sensibilidade (espaço e tempo), e as C.
em geral, ou C. em si (v.) (Crít. R. Pura, % 8). Mas também fixa o significado desse termo em seu
tratamento sobre o esquematismo transcendental, onde faz da coisalidade ou realidade (Sachheit,
Realitãi) o esquema fundamental da categoria de qualidade, no sentido de que "C. em geral é o que
corresponde a uma sensação em geral" (Ibid., Esquematismo dos conceitos puros). A partir daí, a história
da noção de C. pode ser dividida em duas correntes fundamentais, segundo se lhe atribua ou negue um
significado específico. Podemos, portanto, distinguir:
d) A corrente para a qual o ser da C. se resolve no ser em geral. Assim, para o idealismo empírico, para o
qual o ser é representação ou idéia, a C. é representação ou idéia, ou um complexo de representações ou
de idéias. Essa doutrina, que é a de Berkeley, foi reproduzida inúmeras vezes na filosofia moderna e
contemporânea. Para o idealismo absoluto ou romântico, para o qual a realidade é a própria razão, a C. é
um conceito da razão; e de fato Hegel a considera como uma categoria lógica (Ene, §§ 125
ss.;Wissenschaft derLogik, ed. Glockner, I, pp. 602 ss.) O significado autônomo dessa noção não é
resgatado pela modificação da tese do empirismo clássico, proposta por Stuart Mill. Segundo eles, as C.
são "possibilidades de sensações" (Examination of Hamiltorís Phil., pp. 190 ss.), mas isso não delimita
especificamente
o modo de ser das C. Isso tampouco é feito pela concepção de Mach, que define as C. como complexos
de sensações (Analyse der Empfindungen, 9
a
ed., 1922, p. 14), ainda que as "sensações" de que fala Mach
não sejam determinações subjetivas, mas elementos neutros que entram na composição tanto das C.
quanto da mente. Esse ponto de vista foi reproduzido por Russell, para quem "uma C. é uma seqüência
determinada de aparências, em ligação contínua umas com as outras, segundo certas leis causais"
(Scientific Method in Phil, 1926, IV, trad. fr., p. 86).
A conexão do modo de ser das C. com a ação humana sobre a qual, como veremos logo, baseia-se a
noção positiva de C, é elucidada por Bergson, que, no entanto, a utiliza só com o fim de negar a realidade
das coisas. "Não há C, há somente ações", disse (Évol. créatr., 11-ed., 1911, p. 270). As C. são criações da
inteligência enquanto função prática que solidifica o devir, substituindo pela estabilidade fictícia de "C."
ou de "estados" a continuidade e fluidez da consciência (Ibid., pp. 269 ss. 296). Nessa doutrina, as C. se
reduzem a ações e a ação à duração real da consciência; tem-se, embora com certa consciência dos
problemas inerentes, a costumeira redução da C. a um estado subjetivo. E o significado de tal redução da
C. a elementos subjetivos, ainda que qualificados (sensações, representações, idéias, ações, etc), é
simplesmente isto: que não existem coisas.
b) Corrente para a qual o ser da C. tem significado específico. Foi Husserl quem ressaltou esse
significado, do ponto de vista fenome-nológico, afirmando que existe "uma diferença fundamental entre o
ser como experiência vivida e o ser como C." e que, portanto, "uma C. não pode ser dada em nenhuma
percepção possível ou outra modalidade de consciência em geral" (Ideen, I, § 42). O modo de ser
específico da C. consiste no fato de que ela é dada em um número indefinido de aparições, mas
permanece transcendente como uma unidade que está além dessas aparições, e que, todavia, se manifesta
em um núcleo de elementos bem determinados, circundados por um horizonte de outros elementos mais
indeterminados (Ibid., § 44). O ser da C. se contrapõe, assim, ao das experiências vividas ou da
consciência (v.). Essa contraposição é pressuposta por todas as tentativas da filosofia contemporânea de
determinar de maneira específica o ser da coisa. E é
COISA
151
COISA-EM-SI
significativo que tais tentativas tenham partido de dois pontos de vista independentes e aparentemente
contrastantes, o naturalismo instru-mentalista, de um lado, e a filosofia existencialista, de outro.
Mead mostrou a ligação entre a noção de C. e o "mundo da ação". As C. se inserem numa fase bem
determinada desse mundo, isto é, na que se situa entre o início de uma ação e a sua consumação final. Em
outros termos, é na fase da manipulação que comparece ou se constitui a C. física, que, no entanto, é
universal no sentido de pertencer à experiência de todos (Mind, Self and Society, pp. 184-85). Dewey, por
sua vez, mostrou a estreita conexão do modo de ser das C. com a investigação. "As C", disse ele, "existem
como objetos para nós na medida em que tenham sido preliminarmente determinadas como resultados de
investigações. Quando são usadas na preparação de novas investigações sobre novas situações
problemáticas, são conhecidas como objetos só em virtude de indagações anteriores que justificam a sua
assertividade. Na nova situação, os objetos são meios para alcançar o conhecimento de alguma outra C."
{Logic, VI; trad. it., p. 175). Dewey afirmou nitidamente o caráter instrumental das C. e, em geral, de
todos os objetos de conhecimento. Tanto as "C. imediatas" quanto os objetos da ciência física
"construídos por uma ordem matemático-mecânica" são "meios para garantir ou para evitar determinados
objetos imediatos" (Experience and Natu-re, p. 141). Essas determinações de Mead e Dewey são
apresentadas como resultados de análises empíricas. Heidegger apresenta suas determinações como
resultados de uma análise existencial: a noção de C. é esclarecida por ele como um elemento da existência
humana enquanto "ser-no-mundo". Ser no mundo significa ocupar-se com alguma C. e a C. é sempre um
instrumento (Zeug), um meio para... Enquanto tal, o modo de ser da C. é o da instrumentalidade, e "a
instrumentalidade é a determinação ontológico-categorial do ente como ele é em sf. Quer dizer: a
instrumentalidade não se acrescenta como uma qualidade secundária ou extrínseca à realidade da C, mas
a constitui, é essa mesma realidade. O modo de ser da C. é o da instrumentalidade, do ser instrumento ou
instrumento para... Desse ponto de vista, "a natureza não pode ser entendida como simples presença, nem
mesmo como força natural. A floresta é plantação, a
montanha é pedreira, a corrente é força hidráulica, o vento é vento em popa. A descoberta do mundo
ambiente e a descoberta da natureza ocorrem ao mesmo tempo". Pode-se certamente procurar ver o que é
a natureza, e deixar de lado a instrumentalidade das C. Mas, nesse caso, a natureza permanece
incompreensível "como o que tece e acontece, o que se precipita sobre nós e nos empolga" (Sein und Zeit,
§ 15). Sem dúvida, Heidegger conseguiu determinar, ainda melhor do que o instrumentalismo americano,
o modo de ser instrumental das coisas, a categoria da instrumentalidade que o define. Por sua vez, Lewis
pôs em evidência as implicações lógicas que semelhante conceito da C. traz em si. "Atribuir uma
qualidade objetiva a uma C", disse ele, "significa implicitamente a previsão de que, se eu agir de certa
maneira, ocorrerá certa experiência especificável: se eu morder esta maçã, seu sabor será doce; se eu a
comer, será digerida e não me envenenará, etc. Essas e outras tantas proposições hipotéticas constituem o
meu conhecimento da maçã que tenho em mãos" (Mind and the World-Order, cap. V, ed. Dover, p. 140).
As expressões da forma Se... então referem-se a possibilidades que transcendem a experiência atual e que
são próprias do homem como ser ativo. "O significado do conhecimento", disse ainda Lewis a esse
propósito, "depende do significado de uma possibilidade que não é atual. Possibilidade e impossibilidade,
logo necessidade e contingência, compatibilidade e incompatibilidade, e várias outras noções
fundamentais, exigem que deva haver proposições 'Se... então', cuja verdade ou falsidade é independente
da condição afirmada na oração antecedente" (Ibid., 142 n) (v. IMPLICAÇÃO). O horizonte lógico do
conceito de C, elaborado pela filosofia contemporânea, é, portanto, o da possibilidade, expresso pelas
proposições condicionais. Isso é confirmado pelos resultados das pesquisas experimentais realizadas pela
psicologia transacional, que levam a ver na C. certa "classe de possibilidades" que constitui uma prognose
generalizada, com base na experiência passada, dos usos ou comportamentos possíveis de um objeto
(Explorations in Transactional Psychology, org. F. P. Kilpatrick, 1961, cap. 21; trad. it., p. 495-96).
COISA-EM-SI (in. Thing in itself; fr. Chose en soi; ai. Ding an sich; it. Cosa in sê). O que a C. é,
independentemente da sua relação com o homem, para o qual é um objeto de conheci-
COISA-EM-SI
152
COISA-EM-SI
mento. Nem a expressão, nem a noção são próprias e originárias de Kant, como comu-mente se crê, mas
representam "a convicção dominante de toda a filosofia do séc. XVIU" (CASSIRER, Erkenntnissprvblem,
VII, 3; trad. it., II, pp. 470 ss.). A origem dessa noção pode estar em Descartes, que, em Princípios de
filosofia (II, 3), assim se exprime: "Será suficiente observar que as percepções dos sentidos referem-se
apenas à união do corpo humano com o espírito e que, enquanto de ordinário nos mostram aquilo que nos
possa prejudicar ou ajudar nos corpos externos, não nos ensinam absolutamente, mas só ocasional e
acidentalmente, o que tais corpos são em si mesmos". Essa distinção entre as "C.-em-si mesmas" e as "C.
em relação a nós", isto é, como objetos de nossas faculdades sensíveis, torna-se lugar-comum na filosofia
do Iluminismo. D'Alembert iÉlém. de pbiL, § 19), Condillac (Logique, 5), Bonnet (Essai analytique, §
242) repetem-na quase com as mesmas palavras, e Maupertuis {Lettres, IV) a expressa em termos tais que
Scho-penhauer teve a impressão de que Kant o plagiara. "Desde que estejamos convencidos", diz
Maupertuis, "de que entre nossas percepções e os objetos externos não subsiste nenhuma semelhança nem
nenhuma relação necessária, deveremos admitir também que tais percepções não passam de simples
aparência. A extensão, que costumamos considerar como o fundamento de todas as outras propriedades, e
que parece constituir sua verdade íntima, em si mesma nada mais é do que fenômeno" (Cf.
SCHOPENHAUER, Die Welt, II, p. 57).
Nesse ponto, como em muitos outros, Kant não fez senão inspirar-se na orientação geral do Iluminismo.
Todavia, em sua doutrina, como, aliás no Iluminismo, o conceito de C.-em-si não permanece um simples
lembrete da limitação do conhecimento humano e uma advertência para afastar o homem das
especulações metafísicas. Aclara-se, mais precisamente, como um instrumento técnico para circunscrever
os limites do conhecimento humano. Do começo ao fim de Crítica da Razão Pura, Kant repete que o
conhecimento humano é conhecimento de fenômenos, não de C.-em-si, já que ele não se baseia na
intuição intelectual (para a qual ter as C. presentes significaria criá-las), mas na intuição sensível, para a
qual as coisas são dadas sob certas condições (espaço e tempo). De acordo com essa diretriz fundamental,
Kant, após haver estabelecido a possibilidade
do conceito de C.-em-si (ou númeno), passa a distinguir uma doutrina positiva e uma doutrina negativa
dos númenos. "O conceito de um númeno, isto é, de uma C. que deve ser pensada não como objeto dos
sentidos, mas como coi-sa-em-si (unicamente para o intelecto puro), não é em nada contraditório, já que
não se pode afirmar que a sensibilidade seja o único modo de intuição". Isso posto, se entendermos por
númeno "o objeto de uma intuição não sensível", isto é, criadora ou divina, teremos o conceito de númeno
em sentido positivo. Mas na realidade esse conceito é vazio, porque nosso intelecto não pode estender-se
além da experiência senão problematicamente, isto é, não com a intuição nem com o conceito de uma
intuição possível. Portanto, "o conceito de número é só um conceito-limite CGrezbegriff), para
circunscrever as pretensões da sensibilidade, portanto de uso puramente negativo" {Crít. R. Pura,
Analítica dos princípios, cap. III). Essa função puramente negativa da C.-em-si permaneceu como um dos
princípios da doutrina kantiana do conhecimento, porque garante, nela, o caráter finito (isto é, nãocriativo) do conhecimento humano.
Entretanto, a filosofia pós-kantiana assinala a rápida destruição desse conceito. Já as Cartas sobre a
filosofia kantiana (1786-87) de Rei-nhold, que faziam uma exposição do criticismo que, durante muito
tempo, serviu de modelo para a interpretação do próprio criticismo, reduzindo o fenômeno a
representação, tornavam dúbia ou problemática a função da C.-em-si; depois, esta era explicitamente
negada, por Schulze e Maimon, com base em sua incog-noscibilidade. Mas quem começou a extrair
conseqüências dessa negação foi Fichte: este viu que, eliminada a condição limitativa, constituída pela C.-
em-si, o conhecimento humano tornava-se criador não só da forma, mas também do conteúdo da
realidade que constitui seu objeto, transformando-se naquela "intuição intelectual" que Kant atribuía
somente a Deus, fazendo do sujeito dela, isto é, do Eu, um princípio infinito (.Wissenschaftslehre, 1794, §
4). Essas transformações marcam a transição do criticismo, que é filosofia de tipo iluminista, ao
romantismo (v.), que é uma filosofia do inifinito. O romantismo assinalava o crepúsculo definitivo da
doutrina da C.-em-si, que fora a insígnia do iluminismo porque servira para exprimir a limitação
fundamental do conhecimento humano. A noção de incognoscível (v.), que o
COISAL, ENUNCIADO
153
CÔMICO
positivismo evolucionista às vezes comparou com a C.-em-si, na realidade é completamente diferente.
Em primeiro lugar, tem função oposta à da C.-em-si: serve para oferecer à metafísica e à religião um
domínio de competência específica, em vez de restringir as pretensões do conhecimento científico. Em
segundo lugar, o Incognoscível é mais definido positivamente pela esfera de problemas que a ciência não
resolve do que negativamente pelos limites intrínsecos da própria ciência. A filosofia contemporânea, que
restabeleceu e continua restabelecendo a doutrina do limite do conhecimento, entende que ele é
demarcado pelo alcance dos métodos ou dos critérios que presidem à validade do conhecimento; portanto,
já não precisa da iluminista "C.-em-si" para impor moderação às pretensões cognitivas do homem.
COISAL, ENUNCIADO (in. Thing-senten-cé). Na semiótica contemporânea, um enunciado que não
designa signos, mas coisas. Língua C: uma língua constituída inteiramente de enunciado C. (MORRIS,
Foundations ofthe Theory ofSigns, 1938, § 5). Predicados C: termos que designam propriedades
observáveis, isto é, que podem ser determinadas pela observação direta (CARNAP, "Testability and
Meaning", 1936-37, em Readings in the Phü. of Science, 1953, pp. 69 ss.).
COLETIVISMO (ih. Collectivism; fr. Colec-tívisme, ai. Kollektivismus, it. Collettivismó). 1. Termo
criado na segunda metade do séc. XIX para indicar o socialismo não estatista, em oposição ao estatista.
Nesse sentido, foram coleti-vistas o socialismo reformista anterior à guerra e é coletivista o trabalhismo
inglês na medida em que deseja uma sociedade sem desequilíbrios de classe, portanto coletivizada, mas
não controlada pela força por uma elite privilegiada que goze de um nível de vida radicalmente diferente
do resto da população.
2. Em sentido mais amplo, entende-se por C. toda doutrina política que se oponha ao individualismo e
que, em particular, defenda a abolição da propriedade privada e a coleti-vização dos meios de produção.
Nesse sentido, são coletivistas tanto o socialismo quanto o comunismo em todas as suas formas.
COLIGAÇÃO (in. Colligation; fr. Colligation, ai. Kolligation; it. Colligazioné). Operação descritiva
citada por Whewell iNovum Orga-num renovatum, 1840, III, caps. 1 e 4) para explicar o modo como é
possível reunir certo número de detalhes em uma só proposição. Stuart
Mill (.Logic, III, 2, 4) retomou essa noção, vincu-lando-a à de indução. "A asserçâo de que os planetas se
movem em elipse foi um modo de representar fatos observados, portanto uma C; a asserçâo de que eles
são atraídos para o Sol é a asserçâo de um novo fato, inferido por indução". Essa palavra caiu em desuso
na lógica contemporânea.
COMBEVATÓRIA, ARTE (lat. Ars combi-natorid). Com o nome de ars combinatoria Leibniz designa
o projeto, ou melhor, o ideal de uma ciência que, partindo de uma cha-racteristica universalis (v.
CARACTERÍSTICA), ou seja, de uma linguagem simbólica que atribuísse um sinal a cada idéia primitiva e
combinasse de todos os modos possíveis esses sinais primitivos, obtendo assim todas as idéias possíveis.
Esse projeto, derivado em parte das idéias expostas por R. Lúlio em Ars magna, já havia seduzido muitos
pensadores dos sécs. XVI e XVII (entre outros, Agripa de Nettesheim, A. Kircher, P. Gassendi, G. Dalgarno) e também foi cultivado por continua-dores de Leibniz, como Wolff e Lambert.
COMEÇO (lat. Inceptio; in. Beginning; fr. Début; ai. Anfang, it. Cominciamentó). Propriamente, o início
de uma coisa no tempo: que pode coincidir ou não com o princípio (v.) ou com a origem (v.) da própria
coisa. Essa distinção é importante em alguns casos: p. ex., segundo S. Tomás, a criação é matéria de fé
enquanto C. do mundo no tempo, mas não enquanto produção do nada por parte de Deus (5. Th., I, q. 46,
a. 2). Hegel afirmou que o C. da filosofia é relativo, no sentido de que o que aparece como C. é, de outro
ponto de vista, resultado (Fil. do dir., % 2, Zusatz). De qualquer modo, segundo Hegel, o Absoluto
encontra-se mais no resultado do que no C. porque este, "da forma como era expresso antes e agora, é
apenas universal", e o universal, nesse sentido, é só o abstrato que não pode valer como concretitude e
totalidade; p. ex., as palavras "todos os animais", que exprimem o universal de que trata a zoologia, não
podem valer como toda a zoologia (Phànomen. des Geistes, Intr., II, 1). Apesar disso, a filosofia muitas
vezes procurou o C. absoluto para fazê-lo coincidir com o seu próprio "princípio", donde a procura do
"primeiro princípio" do filosofar.
CÔMICO (gr. TE^OÍOV; lat. Comicus; in. Comia, fr. Comique, ai. Komisch; it. Cômico). O que provoca o
riso, ou a possibilidade de provocá-lo, através da resolução imprevista de
CÔMICO
154
COMPAIXÃO
uma tensão ou de um conflito. A definição mais antiga do C. é de Aristóteles, que o considerou "algo de
errado e feio, que não causa dor nem dano" (Poet., 5,1449 a 32 ss.). O "errado" como caráter do C.
significa o caráter imprevisto, porque irracional, da solução apresentada pelo C. para um conflito ou uma
situação de tensão. Essas idéias permaneceram substancialmente inalteradas na história da filosofia.
Hobbes insistiu no caráter inesperado do C. e vinculou-o à consciência da própria superioridade (De
bom., XII, § 7). Kant reduziu o C. à tensão e, portanto, à sua solução inesperada: "Em tudo o que é capaz
de provocar uma explosão de riso, deve haver algo de absurdo (em que, portanto, o intelecto por si
mesmo não pode achar nenhum prazer). O riso é uma afeição que deriva de uma espera tensa que, de
repente, se resolve em nada. É precisamente essa resolução, que por certo nada tem de jubiloso para o
intelecto, que alegra indiretamente, por um instante e com muita vivacidade" (Crít. do Juízo, § 54). O
Iluminismo viu no C. e no riso que o exprime um corretivo contra o fanatismo, considerando-o a
manifestação do "bom humor" que Shaftesbury considerava o melhor modo de corrigir o fanatismo
(Letteron Enthusiasm, II). Hegel, ao contrário, considerava-o expressão da posse satisfeita da verdade, da
segurança que se sente por estar acima das contradições e por não estar numa situação cruel ou infeliz.
Em outros termos, identificava-o com a felicidade segura, que pode até suportar o fracasso de seus
projetos. E nisso ele o distinguia do simples risível, em que via "a contradição pela qual a ação se destrói
por si e o objetivo se anula realizando-se" ( Vorlesungen über die Àsthetik, ed. Glockner, III, p. 534). Essa
noção hegeliana de C, no entanto, é uma idealização romântica do fenômeno, mais do que uma análise
objetiva, é a exageração do sentimento de superioridade que Aristóteles já observara no C, quando
considerou a comédia como "imitação de homens ignóbeis" (Poet., 5, 1448, 32). A noção tradicional do
C. é reafirmada pela análise de Bergson (Le rire, 1900), que até hoje é considerada a mais rica e precisa.
Ele nota que o C. é obtido quando um corpo humano faz pensar em um mecanismo simples, quando o
corpo prevalece sobre a alma, quando a forma sobrepuja a substância e a letra o espírito, ou quando a
pessoa dá a impressão de coisa; todos estes são casos em que o C. está na frustração de uma expectativa
através de uma solução
imprevista ou, como teria dito Aristóteles, errada. O mesmo se pode dizer do C. das situações ou das
expressões, que existe quando uma situação pode ser interpretada de dois modos diferentes ou pela
equivocidade das expressões verbais; por isso, é sempre um erro, uma solução irracional dada a uma
expectativa de solução. Bergson também atribui ao C. um poder educativo e corretivo. "O rígido, o já
feito, o mecanismo em oposição ao ágil, ao que é perenemente mutável, ao vivo, a distração em oposição
à previsão, enfim o automatismo em oposição à atividade livre, eis o que o riso destaca e gostaria de
corrigir" (Ibid., cap. II, no fim).
COMO SE (ai. Ais ob). Expressão que se repete muitas vezes nas obras de Kant para indicar o caráter
hipotético ou simplesmente regulador de certas afirmações. P. ex., as coi-sas-em-si podem ser pensadas
por analogia "como se fossem substâncias, causas, etc." (.Crít. R. Pura, Dialética, V, d). O imperativo
categórico manda agir "como se o ser racional fosse um membro legislador no reino dos fins"
(Grundlegung zurMet. derSitten, II). Devemos tratar as máximas da liberdade "como se fossem leis da
natureza" (Ibid., III). A faculdade do juízo considera os objetos naturais "como se a finalidade da natureza
fosse intencional" (Crít. do Juízo, § 68). O como se kantiano não é mera ficção: é simplesmente a
interpretação, em termos de operações ou comportamentos, de proposições cujos sentidos literal e
metafísico estão além da refutaçâo e da confirmação, sendo, por isso, inexistentes. Vaihinger, em
Filosofia do como se (1911), interpretou-o como ficção, sua tese é que todos os conceitos, categorias,
princípios e hipóteses utilizados pelas ciências e pela filosofia são ficções (v.) desprovidas de validade
teórica, muitas vezes intimamente contraditórias, que são aceitas e mantidas só enquanto são úteis. Outro
kantiano, Paul Natorp, restringiu o como se ao domínio da arte, que representaria as coisas como se o que
é ainda devesse ser, ou como se o que deve ser fosse na realidade (De Religion innerhalb der Gren-zen
der Humanitüt, 1894).
COMPAIXÃO (gr. EÀ£OÇ; lat. Commiseratio, in. Pity, fr. Compassion; ai. Mitleid; it. Compas-sioné).
Participação no sofrimento alheio como algo diferente desse mesmo sofrimento. Essa última limitação é
importante porque a C. não consiste em sentir o mesmo sofrimento que a provoca. A emoção provocada
pela dor de
COMPAIXÃO
155
COMPATIBILIDADE
outra pessoa pode chamar-se C. só se for um sentimento de solidariedade mais ou menos ativa, mas que
nada tem a ver com a identidade de estados emocionais entre quem sente C. e quem é comiserado.
Aristóteles definiu a C. como "a dor causada pela visão de algum mal destrutivo ou penoso que atinge
alguém que não mereça e que pode vir a atingir-nos ou a alguém que nos seja caro" {Ret., II, 8, 1385 b).
Essa definição é repetida quase literalmente por Hobbes (Leviath., I, 6), Descartes (Pass. deVâme, III, §
185) e por Spinoza (Et, III, 22 scol.). Segundo Adam Smith, a C. é um caso típico da simpatia que
constitui a estrutura de todos os sentimentos morais (Theory of Moral Sentiments, III, 1). Para
Schopenhauer, a C. é a própria essência do amor e da solidariedade entre os homens, porque amor e
solidariedade explicam-se somente a partir do caráter essencialmente doloroso da vida (Die Welt, I, §§ 66-
67).
Em oposição a essa tradição, há uma outra que vê na C. um elemento negativo da vida moral. Essa
segunda tradição inicia-se com os estóicos (STOBEO, Ecl., II, 6, 180) e passa por Spinoza. Este considera
que "no homem que vive segundo a razão a C. é, por si mesma, ruim e inútil", porque nada mais é que
dor; por isso "o homem que vive segundo a razão esforça-se o máximo possível para não ser tocado pela
C", bem como tampouco pelo ódio, pelo riso ou pelo desprezo, porque sabe que tudo deriva da
necessidade da natureza divina (Et., IV, 50, corol. scol.). Essa apreciação encontra expressão extrema nas
invectivas de Nietzsche contra a C: "Esse instinto depressivo e contagioso debilita os outros instintos que
querem conservar e aumentar o valor da vida; é uma espécie de multiplicador e de conservador de todas
as misérias, por isso um dos instrumentos principais da decadência do homem" (Anti-cristo, Ap. 7). O
traço comum dessas condenações da C. é considerá-la como miséria ou dor em si mesma; aliás, segundo a
expressão de Nietzsche, como algo que conserva ou multiplica a miséria e a dor. Scheler apontou o
equívoco desse pressuposto que, na verdade, confunde a C. (que é simpatia e participação emotiva) com o
contágio emotivo. Pelo contrário, observa Scheler, "a C. está ausente sempre que houver contágio do
sofrimento, pois então o sofrimento não será mais de outro, mas meu, e eu acredito poder subtrair-me a
ele evitando o quadro ou o aspecto do sofrimento em geral"
(Sympathie, cap. II, § 3). Foi justamente essa advertência fundamental que tivemos em mente ao
caracterizarmos a C. no princípio desse verbete.
COMPARATIVO (in. Comparative, fr. Compare, ai. Vergleichend; it. Comparativo). Os lógicos
tradicionais chamam de questão comparativa aquela em que se pergunta se algo é menor ou maior, melhor
ou pior, etc, do que outra coisa; p. ex.: "Se a justiça é preferível à força" (JUNGIUS, Lógica, V, 2, 42). A
Lógica de Port-Royal denominou C. as proposições que instituem um confronto desse tipo (ARNAULD,
Log., II, 10, 3); essa expressão persiste na lógica tradicional (cf. B. ERDMANN, Logik, I, § 40, 229).
COMPATIBILIDADE (in. Consistency. fr. Compatibilitê, ai. Widerspruchslosigkeit; it. Compatibilitã).
Ausência de contradição como condição de validade dos sistemas dedutivos. "Toda verdade", dizia
Aristóteles, "deve estar de acordo consigo mesma sob todos os aspectos" (An.pr., I, 32, 47 a 8). Todavia,
foi só na matemática moderna, a partir de Hilbert, que a C. interna de um sistema dedutivo passou a ser o
único critério de validade do próprio sistema. Segundo esse ponto de vista, diz-se que há C. no sistema
em que não há nenhum teorema cuja negação seja um teorema; ou no qual nem todos os enunciados são
teoremas. Essa segunda fórmula é ainda mais geral (cf. A. CHURCH, Intro-duction to Mathematical Logic,
1959, § 17). Desse ponto de vista, a demonstração da C. torna-se a própria demonstração da validade de
uni sistema bem como da existência (v.) das entidades a que ele faz a referência. Segundo Hilbert, a
demonstração da C. não deveria fazer referência a um número infinito de propriedades estruturais das
fórmulas ou a um número infinito de operações conformes. Nesse sentido, a demonstração deveria ser
finitista, porque só assim seria absoluta. Mas justamente a não-possibilidade da demonstração absoluta da
C. dos sistemas dedutivos foi provada pelo teorema de Gõdel (193D- O teorema de Gõdel não exclui que
se possa provar a C. de um sistema dedutivo tomado como modelo, mas, por sua vez, a validade do
modelo não poderá ser demonstrada. A C. "absoluta" foi, portanto, expulsa do domínio da matemática
pelo teorema de Gõdel, que estabelece, por isso mesmo, os limites do chamado formalismo. Realmente,
nenhum sistema formalista pode oferecer a garantia da sua própria absoluta compatibilidade.
COMPLEMENTARIDADE
156
COMPOSSÍVEL
Cf. W. V. O. QUINE, Methods of Logic, 1950; J. LADRIÈRE, Les limitations internes des forma-lismes,
1957; E. NAGEL—J. R. NEWMANN, GõdeVs Proof, 1958 (v. MATEMÁTICA, PROVA).
COMPLEMENTARIDADE (in. Complementa-rity, fr. Complémentarité, ai. Komplementarheit; it.
Complementaritã). Com expressão extraída da geometria (chamam-se complementares dois ângulos cuja
soma é igual a um ângulo reto) denominam-se complementares dois conceitos opostos que se corrigem
reciprocamente e se integram na descrição de um fenômeno. Assim, p. ex., chamam-se complementares
os conceitos de onda e de corpúsculo para a descrição dos fenômenos ópticos na moderna mecânica
quântica. O princípio de C. formulado por Bohr exprime a incompatibilidade da mecânica quântica com a
concepção clássica da causalidade (v.). Exprime-se assim: "Uma descrição espãcio-temporal rigorosa e
uma seqüência causai rigorosa de processos individuais não podem ser realizadas simultaneamente; ou
uma ou outra deve ser sacrificada" (D'ABRO, New Physics, p. 951).
COMPLEXO (gr. cr\)U7t£7iA£7|xévov; lat. Com-plexum; in. Complex, fr. Complexe, ai. Komplex, it.
Complessó). Os estóicos, que introduziram esse termo, entenderam por ele as proposições compostas, isto
é, constituídas ou por uma só proposição tomada duas vezes (p. ex.: "se é dia, é dia"), ou por proposições
diferentes unidas por um ou mais conectivos (p. ex.: "É dia e há luz", "Se há dia, há luz", etc.) (SEXTO
EMPÍRICO, Adv. math., VIII, 93; DIÓG. L., VII, 72). Na lógica medieval, esse termo era generalizado e
entendeu-se com ele ou um termo composto por palavras diferentes, como "homem branco", "animal
racional", etc, ou a proposição simples composta do nome e do verbo (p. ex., "o homem corre", etc).
Nesse caso, o oposto de complexo, indicado pelo termo incomplexum (isto é, "simples") é o termo isolado
ou qualquer termo da proposição, mesmo se composto por dois ou mais termos (como, p. ex., o sujeito
"homem branco" na proposição "o homem branco corre") (OCKHAM, Expositio super artem veterem, foi.
40 b). Essas noções repetem-se com poucas diferenças em Vicente de Beauvais (Speculum doctrinale, 4)
e em Armando de Beauvoir (De declaratione difficilium termi-norum, I, 1). Cf. TOMÁS, S. Th., II, 2, q, 1,
a. 2. COMPLICAÇÃO, EXPLICAÇÃO (lat Com-plicatio, Explicatio). Termos empregados por
Nicolau de Cusa para indicar a relação entre
o ser e as suas manifestações, na medida em que estas estão contidas no ser e o ser se desdobra ou se
manifesta nelas. Nicolau de Cusa diz que a unidade infinita é "a reunião (compli-catió) de todas as
coisas", que o movimento é "o desdobramento (explicatio) do repouso" e que Deus "é a reunião
(complicatió) e o desdobramento (explicatio) de todas as coisas; por ser reunião (complicatió) delas, todas
as coisas estão nele ao passo que, por ser o desdobramento (explicatio), ele é em todas as coisas o que
elas são" (De docta ignor, II, 3).
COMPORTAMENTO (in. Behavior, fr. Comportement; ai. Verhaltem; it. Comportamento). Toda
resposta de um organismo vivo a estímulos, que seja: 1B
objetivamente observável por um meio qualquer;
2- uniforme. O termo C. foi introduzido por Watson por volta de 1914 e hoje é de uso corrente no
significado ora exposto. Inicialmente, serviu para dar ênfase à exigência de que a psicologia e, em geral,
qualquer consideração científica das atividades humanas ou animais assumissem como objeto elementos
observáveis objetivamente, isto é, não acessíveis somente à "intuição interna" ou à "consciência".
Atualmente, esse termo é de uso geral. Deve ser distinguido: l9
de ação, porque, ao contrário desta, o C:
d) não é uma manifestação de um princípio particular, p. ex., da vontade ou da atividade prática, mas de
todo o organismo animal; b) é constituído unicamente por elementos observáveis e passíveis de descrição
em termos objetivos; c) é uniforme, isto é, constitui a reação habitual e constante do organismo a uma
situação determinada; 2S
de atitude, que é o C. especificamente humano e inclui, portanto, elementos
antecipatórios e normativos (projeto, previsão, escolha etc); 3B
de conduta, à qual pode faltar o caráter de
uniformidade.
COMPOSIÇÃO (in. Composition- fr. Composition-, ai. Komposition; it. Composizioné). Para os lógicos
medievais (p. ex., PEDRO HISPANO, Summ. log., 7.25), compositio designa o paralogismo ou falácia (v.)
derivada do uso sintático que torne a frase ambígua. É, pois, uma espécie de anfibolia (v.).
G. P.
COMPOSSÍVEL (fr. Compossible, ai. Kom-possibel; it. Compossibilé). Leibniz designou com esse
termo o possível que se coaduna com as condições de existência do universo real, isto é, a possibilidade
real. O possível é o que é concebível enquanto desprovido de contradição; o C. é o que pode ser real. "É
ver-
COMPREENDER
157
COMPREENDER
dade que o que não é, não foi e não será, não é absolutamente possível, se possível for tomado como
compossível... Pode ser que Deodoro, Abelardo, Wicleff e Hobbes tenham tido essa idéia na cabeça sem
esclarecê-la bem" (Op., ed. Erdmann, p. 719). V. POSSÍVEL.
COMPREENDER (lat. Intelligere, in. Un-derstanding; fr. Comprendre, ai. Verstehen; it. Comprenderé).
A noção do C. como atividade cognoscitiva específica, diferente do conhecimento racional e de suas
técnicas explicativas, pode ser considerada em duas fases históricas diferentes, a primeira na filosofia
medieval ou na escolástica em geral, a segunda na filosofia contemporânea.
1. Toda a Escolástica se funda no problema de "C." a verdade revelada. Mas sobre o valor desse C. os
próprios escolásticos não estavam de acordo. Alguns identificaram o C. com o conhecimento racional e
com a sua técnica demonstrativa e, sob esse aspecto, a compreen-sibilidade dos dogmas mostrou-se como
a possibilidade de demonstrá-los, isto é, de equipará-los a verdades racionais. Anselmo e Abelardo
parecem estar de acordo em entender assim o intelligere que julgam indispensável à própria fé. É óbvio
que, nesse caso, o intelligere não é absolutamente um C. no sentido específico do termo. Uma esfera
específica do intelligere como compreender, em sua diferença do conhecimento demonstrativo foi, porém,
delineada por S. Tomás na tentativa de determinar o papel da razão em face da fé. Esse papel consiste: l9
em demonstrar os preâmbulos da fé; 2° em esclarecer, mediante similitudes, as verdades da fé; 3Q
em
rebater as objeções que se fazem contra tais verdades {In Boet. De Trin., a. 3). Obviamente, a segunda e a
terceira parte dessa tarefa, que não são de natureza demonstrativa, constituem a esfera do compreender. E
com efeito, segundo S. Tomás, as verdades fundamentais de fé, a Trindade, a Encarnação, a Criação, são
compreensíveis nesse sentido: não são demonstráveis (nesse caso seriam verdades de razão), mas podem
ser esclarecidas por meio de analogias e, especialmente, sustentadas contra as objeções. Essa posição
tomista constitui a melhor e a mais difundida solução do problema do C. que nasceu na Escolástica. Era
também defendida no séc. XVIII por Leibniz contra as objeções de Bayle e de Toland. Segundo Leibniz,
o dogma é "incompreensível" só no sentido de que não se pode demonstrar, mas pode-se dizer que ele
concorda com a razão no sentido de "que se pode mostrar, quando necessário, que não há contradição
entre o dogma e a razão, refutando as objeções daqueles que pretendem que o próprio dogma é um
absurdo" (Théod., § 60). 2. Na filosofia contemporânea, a distinção entre a esfera do C. e a do conhecer
racional nasceu da exigência de distinguir o procedimento explicativo das ciências morais ou históricas
do procedimento das ciências naturais. Essa exigência nasceu da dificuldade de aplicar a técnica causai,
própria da ciência natural do séc. XIX, ao domínio dos eventos humanos, como são os fatos históricos, e,
em geral, ao homem e às relações inter-humanas. Com base nessa técnica, considera-se "racionalmente
explicado" aquilo cuja gênese causai necessária pode ser mostrada, isto é, aquilo cuja ocorrência se pode
demonstrar necessária ou infalivel-mente previsível quando se dá a causa (v.). O caráter necessário da
gênese causai, na medida em que se conforma a uma lei imutável, e o caráter de uniformidade mecânica
que os eventos casualmente explicáveis assumem por efeito de tal lei tornam bastante difícil transferir
esse tipo de explicação para o mundo do homem, assim como tornam difícil explicar os fatos históricos e,
em geral, qualquer fato que consista em uma relação com o homem. A aplicação da técnica causai a tais
fatos implicaria a sua redução a casos de uniformidade mecânica, devidos à ação de leis necessitantes. De
tal modo que, quando nos últimos decênios do séc. XIX as ciências históricas, ou, como então se dizia, as
"ciências do espírito", que haviam atingido suficiente solidez metodológica e grande riqueza de
resultados, começaram a propor-se o problema do método e procuraram esclarecê-lo criticamente, surgiu
com clareza a exigência de vincular esse método a técnicas e procedimentos diferentes dos usados nas
ciências naturais. Nesse sentido, o "C." como procedimento próprio das ciências do espírito, foi
contraposto ao "explicar", baseado na causalidade e próprio das ciências naturais.
O primeiro a formular claramente essa distinção foi Dilthey, em sua Introdução às ciências do espírito
(1883). Dilthey observou que as nossas relações com a realidade humana são de todo diferentes das
nossas relações com a natureza. A realidade humana, tal como aparece no mundo histórico-social, é tal
que podemos compreendê-la de dentro, porque podemos representá-la sobre o fundamento
COMPREENDER
158
COMPREENDER
dos nossos próprios estados. A natureza, ao contrário, é muda e permanece sempre como algo de externo.
Portanto, nas ciências do espírito, que têm por objeto a realidade humana, o sujeito não se encontra diante
de uma realidade estranha, mas diante de si mesmo, porque homem é quem indaga e homem é que é
indagado. "O C", diz Dilthey, "é a descoberta do eu no tu... O sujeito do saber é, aqui, idêntico ao seu
objeto e este é o mesmo em todos os graus de sua objetivação" {Gesammelte Schrif-ten, VII, p. 191).
Desse ponto de vista, Dilthey apontou como instrumento próprio do C. a Erlebnis, ou experiência vivida
ou revivescente que permite apreender a realidade histórica na sua individualidade viva e nos seus
caracteres específicos. Depois de Dilthey, na corrente do historicismo alemão que continua a sua obra, o
C. permanece como o órgão do conhecimento histórico e, em geral, do conhecimento interpessoal,
enquanto não suscetível de explicação causai. Todavia, sobre a própria natureza do C. não há acordo.
Rickert entende por C. o apreender "o sentido de um objeto, isto é, a relação do próprio objeto com um
valor determinado" (Die Grenzen der naturwissenschaftlichen Begriffsbildung, 1896-1902). Simmel
considera o C. como algo que vise a reproduzir a vida psíquica de uma outra personalidade e, portanto,
como o ato de projeção mediante o qual o sujeito cognoscente atribui um estado representativo ou
volitivo seu a uma outra personalidade {Die Probleme der Geschichtsphilosophie, 1892, p. 17). Por sua
vez, Max Weber, embora insistisse na diferença entre explicação histórica e explicação causai, quis
preencher ou diminuir o abismo que se estava formando entre os dois procedimentos, afirmando que a
própria explicação histórica é causai, mas uma explicação causai específica, que visa a reconhecer o nexo
particular e singular entre determinados fenômenos e não a sua dependência de uma lei universal. "Nossa
necessidade causai", escreve ele, "pode encontrar na análise da atitude humana uma satisfação
qualitativamente diferente, que implica, ao mesmo tempo, uma entonação qualitativamente diferente do
conceito de racionalidade. Para a sua interpretação, podemos propor-nos, pelo menos como fundamento,
o objetivo, não só de tornar a atitude penetrável e possível em relação ao nosso saber nomológico, como
também de compreendê-la, isto é, descobrir um motivo concreto que possa ser revivido interiormente e
que verificamos com um grau diferente de precisão, segundo o material das fontes" {Gesammelte Aufsãtze zur
Wissenschaftslehre, 1951, p. 67). Todavia, o conceito de causalidade individual, em que Weber insistia, é
pouco sólido, já que a causa, enquanto aquilo que torna o efeito infa-livelmente previsível, tem com o
próprio efeito uma relação necessária e constante, por isso essencialmente uniforme e universal. A
exigência, apresentada por Weber, de eliminar ou diminuir o contraste entre explicação científica e
compreensão histórica ou inter-humana, pôde ser satisfeita só depois que a própria ciência abandonou o
conceito clássico de causalidade. Entrementes, a exigência de uma técnica cog-noscitiva que fosse
diferente da técnica explicativa e causai era freqüentemente reconhecida pela sociologia. Znaniecki
invocava um "coeficiente humanístico" na pesquisa sociológica e ressaltava a importância da experiência
vicariante como fonte de dados sociológicos {Method of Sociology, 1934, p. 167). Sorokin reputava
inaplicável o método causai de interpretação dos fenômenos culturais {Social and Cultural Dynamic,
1937, p. 26). E Maclver, por sua vez, reconhecia a inaplicabilidade da fórmula causai da mecânica
clássica à conduta humana {Social Causation, 1942, p. 263).
Os filósofos, por sua vez, não encontrando lugar para o C. entre as atividades racionais que pareciam
monopolizados pelas técnicas da explicação causai, acabaram vinculando-o à vida emotiva. Assim
fizeram, principalmente, Scheler e Heidegger, aos quais se devem, contudo, as mais importantes
determinações da noção do C. Para Scheler, essa noção serve para fundar as relações humanas — que são,
de resto, aquelas pelas quais o eu reconhece o outro eu —, não a partir de uma inferência ou da projeção
que o eu faça de suas experiências interiores no outro, mas a partir dos fenômenos expressivos. Assim,
Scheler afirma que "a existência das experiências interiores, dos sentimentos íntimos dos outros, é-nos
revelada pelos fenômenos de expressão: ou seja, não adquirimos consciência dela em decorrência do
raciocínio, mas de modo imediato, através de uma 'percepção' originária e primitiva. Percebemos o pudor
de alguém no seu rubor, a alegria no seu riso" {Sympathie, I, cap. II). Portanto, não é verdade que
conheçamos em primeiro lugar o corpo dos outros e que só a partir dele infiramos a existência de outros
espíritos. Só o médico e o naturalista conhecem tão-somente
COMPREENDER
159
COMPREENSÃO2
o corpo, porque abstraem, artificialmente, os fenômenos de expressão, que são a manifestação primária e
imediata dos outros espíritos, mas são esses fenômenos que estão na base da compreensão emotiva. Esta,
segundo Scheler, deve ser distinguida da fusão emotiva porque implica a alteridade dos sentimentos. P.
ex., o sofrimento do meu próximo e a minha compreensão simpática são dois fatos diferentes e é
justamente essa diferença que estabelece a possibilidade de compreensão: nada tem a ver com ela o fato
de eu e o meu vizinho padecermos o mesmo mal. As análises de Scheler contribuíram para fixar os
seguintes pontos: 1Q
o C. não implica a identidade das pessoas entre as quais ocorre a identidade dos
estados de alma ou dos sentimentos; implica, antes, a alteridade entre as pessoas e entre os seus
respectivos estados; 2- a compreensão funda-se na relação simbólica que existe entre as experiências
internas e a sua expressão: relação que constitui uma espécie de "gramática universal", válida para todas
as linguagens expressivas, e que fornece o critério último da compreensão inter-humana. Como Scheler,
Heidgger vincula o fenômeno da compreensão sobretudo à esfera emotiva, mas acrescenta à análise desse
fenômeno uma observação de importância fundamental, ligando-o jt noção de possibilidade. Heidegger,
com efeiffo, considera a compreensão essencial à existência humana (ao ser-aí), já que ela significa que a
existência é, essencialmente, possibilidade de ser, existência possível. "Usamos freqüentemente a
expressão 'C. alguma coisa' no sentido de 'ser capaz de encarar alguma coisa', 'ser capaz de', 'poder
alguma coisa'... Na compreensão, está posto, essencialmente, o modo de ser do ser-aí enquanto puder ser.
O ser-aí não é uma simples presença que, adicionalmente, possua o requisito de poder algo, mas, ao
contrário, é primariamente um ser possível". Portanto, "a compreensão tem em si a estrutura existencial
que nós chamamos projeto" {Sein und Zeit, % 31). Como possibilidade e projeto, a existência humana
possui uma transparência, a existência humana possui uma transparência para si mesma, que Heidegger
chama de visão e que é a primeira manifestação da compreensão. A intuição e o pensamento são, por sua
vez, dois derivados distantes da própria compreensão ilbid., § 31). Está bem claro que a referência do C. à
vida emocional, feita por Scheler e Heidegger, era motivada pelo fato de a vida racional parecerlhes ocupada por técnicas que pouco ou nada tinham que ver com o compreender. Os resultados obtidos
por Scheler e Heidegger, contudo, são muito importantes: os primeiros negativamente, permitindo
subtrair o C. à esfera do imediato e do inexprimível, e os segundos positivamente, porque vinculam o C. à
noção de possibilidade. Na análise de Heidegger, o C. não só foi generalizado, porque se tornou aplicável
às coisas, além de às pessoas, como também, por isso mesmo, deixou de ser antagônico ao conceito de
explicação. Compreensão e explicação podem ser identificadas pela noção de possibilidade e ser
entendidas como declaração da "possibilidade de...", onde o que ficou pendente pode ser preenchido, nos
diversos campos de indagação, por diversas espécies de projetos e de previsões. Mas essa aproximação
entre explicação e compreensão e essa sua unificação no conceito de "possibilidade de..." eram
sancionadas pelos próprios progressos das ciências naturais, que abandonavam a noção clássica de
causalidade e, portanto, se desligavam da técnica explicativa causai. A física relativista e a teoria quântica
davam o passo decisivo para a eliminação da antítese entre explicação e compreensão. Como nota
Carnap, na mecânica quântica "C. uma expressão, um enunciado, uma teoria significa a capacidade de
usá-la para a descrição de fatos conhecidos ou para a previsão de fatos novos" (Foun-dations of Logic
and Mathematics, 1939, § 25). A "capacidade de" é, portanto, o que exprime o significado da
compreensão na própria física. Mas a possibilidade da previsão provável também é tudo aquilo a que se
reduz hoje a explicação científica (v. EXPLICAÇÃO). Desse modo, a diferença radical que parecia
solidamente estabelecida pela metodologia científica do séc. XIX, entre ciência do espírito e ciência da
natureza, acabou por desaparecer. O que esses dois grupos de disciplinas procuram fazer, em relação a
seus respectivos objetos, é no fundo a mesma coisa: determinar as possibilidades de descrever ou de
antecipar (projeto, uso, fruição) que seus objetos comportam.
COMPREENSÃO1
(in. Understanding; fr. Compréhension; ai. Verstehen-, it. Compren-sionè). O ato ou
a capacidade de compreender (v.).
COMPREENSÃO2
(in. Compréhension; fr. Compréhension; ai. Inhalt; it. Comprensione). 1. A lógica de
Port-Royal introduziu a distinção entre C. e extensão do conceito: distinção gros-
COMPREENSÃO2
160
COMPROMISSO
so modo idêntica à que será expressa por Stuart Mill com a díade conotação-denotação ou pela lógica
moderna com a díade intensão-exten-são. Dizia Arnauld: "Nas idéias universais, é importante distinguir
bem duas coisas, a C. e a extensão. Chamo de C. da idéia os atributos que ela inclui em si e que não
podem ser retirados sem destruí-la; assim, a C. da idéia de triângulo contém extensão, figura, três linhas,
três ângulos e a igualdade desses três ângulos a dois retos, etc. Chamo de extensão da idéia os sujeitos aos
quais essa idéia convém que também se chamam inferiores de um termo geral que, em relação a eles, é
chamado superior; assim, a idéia do triângulo, em geral, estende-se a todas as diversas espécies dos
triângulos" (Log., I, 6). Essa distinção encontrava alguns precedentes na lógica medieval, mas foi
expressa de modo aproximado só a partir do séc. XVI (p. ex., por CAJETANUS, In Potphyrii Praed., ed.
1579,1,2, p. 37; cf. HAMILTON, Lectures on Logic, I, 1866, p. 141). À própria distinção vinculava-se a
determinação da relação inversa que há entre C. e extensão assim definidas: à medida que a C. se
empobrece, isto é, torna-se mais geral, a extensão se enriquece, isto é, o conceito se aplica a mais coisas;
e vice-versa. Essas distinções e observações foram retomadas pela lógica, especialmente alemã, do séc.
XIX (cf., p. ex., LOTZE, Logik, 1843, § 15), permaneceram constantes e por vezes foram expressas
mediante o par sinônimo conotação-denotação, especialmente por escritores ingleses. A parte a tentativa
de distinguir C. de conotação (v.) como esfera de todas as notas possíveis, além das expressamente
conotadas pela definição, a noção de C. permaneceu constante na lógica do séc. XIX.
2. Às vezes, na lógica contemporânea, a C. é assumida como análoga da denotação ou extensão, e não da
conotação ou intensão. Assim, Lewis define a C. de um termo como "a classificação de todas as coisas
coerentemente pen-sáveis, às quais o termo se aplique corretamente", onde por "coerentemente
pensáveis" se entendem todas as coisas cuja asserçâo da existência não implique, explícita ou
implicitamente, uma contradição. Nesse significado, o termo se distinguiria de denotação ou extensão
porque essa é a classe de todas as coisas reais ou existentes às quais o termo se aplica corretamente. A
denotação estaria, portanto, incluída na C; mas não vice-versa. A C. de "quadrado" inclui não só os
quadrados existentes
(que são denotados), mas todos os quadrados possíveis ou imagináveis, salvo os redondos (Analysis of
Knowledge and Valuation, 1950, pp. 39-41).
COMPROMETIMENTO. V. COMPROMISSO.
COMPROMISSO (in. Commitment; fr. En-gagement; ai. Verbindlichkeit; it. Impegnó). Escolha
fundamental que dirija a conduta ou o procedimento de investigação num campo qualquer. Essa noção foi
empregada pelos lógicos para indicar a escolha preliminar da espécie de entidade a que se referem os
cálculos lógicos, ou seja, das variáveis que se repetem nesses cálculos. Diz Quine: "Comprometemo-nos
com uma ontologia que contém números quando dizemos que há números primos maiores que um
milhão; comprometemo-nos com uma ontologia que contém centauros quando dizemos que existem
centauros; e comprometemo-nos com uma ontologia que contém Pégaso quando dizemos que Pégaso
existe" (From a Logical Point of View, I). Mesmo objetando contra o uso do, termo "ontologia", Carnap
manteve esse conceito: "A escolha de certa estrutura lingüística e, em particular, a decisão de usar certos
tipos de variáveis são decisões práticas tanto quanto a escolha de um instrumento; dependem
principalmente dos objetivos para os quais se pretende usar o instrumento — nesse caso, a linguagem —
e de suas propriedades" (Meaning and Necessity, § 10). Um compromisso nesse sentido é a base de
qualquer determinação do significado de existência (v.): a diferença entre as várias correntes da
matemática (v.) pode ser reduzida à diferença entre os compromissos ontológicos que lhes servem de
fundamento.
Na filosofia existencialista, esse termo foi usado para indicar o fato de que qualquer esclarecimento que o
homem possa obter sobre as determinações da existência é um compromisso (uma decisão ou uma
escolha) com tal determinação. Nesse sentido, Heidegger disse que o ser do homem é aquilo em que o
homem está está sempre envolvido, que está sempre conclamando o homem para uma decisão ou para
uma escolha (Sein und Zeit, § 9). Jaspers contrapôs ao "descompromisso" da arte perante a vida real o
compromisso da filosofia, que atua dentro da vida (Pbil., I, p. 338). Sartre viu no engajamento o
nascimento do projeto fundamental que é a expressão da liberdade humana: "Meu projeto último e inicial
é sempre o esboço de uma solução do problema do ser.
COMUM, SENSO
161
COMUNICAÇÃO
Mas essa solução não é primeiro conhecida e depois realizada: nós somos essa solução, fazemo-la existir
com o nosso engajamento e só podemos atingi-la vivendo-a" {L'être et le néant, p. 540).
COMUM, SENSO. V. SENSO COMUM.
COMUNICAÇÃO (in. Communication; fr. Communication; ai. Kommunikation; it. Co-municazioné).
Filósofos e sociólogos utilizam hoje esse termo para designar o caráter específico das relações humanas
que são ou podem ser relações de participação recíproca ou de compreensão. Portanto, esse termo vem a
ser sinônimo de "coexistência" ou de "vida com os outros" e indica o conjunto dos modos específicos que
a coexistência humana pode assumir, contanto que se trate de modos "humanos", isto é, nos quais reste
certa possibilidade de participação e de compreensão. Nesse sentido, a C. nada tem em comum com a
coordenação e com a unidade. As peças de uma máquina, observou Dewey, estão estreitamente
coordenadas e formam uma unidade, mas não formam uma comunidade. Os homens formam uma
comunidade porque se comunicam, isto é, porque podem participar reciprocamente dos seus modos de
ser, que assim adquirem novos e imprevisíveis significados. Essa participação diz que uma relaçãp de C.
não é um simples contato físico ou um embate de forças. A relação entre o predador e sua presa, p. ex.,
não é uma relação de C, ainda que às vezes isso possa ocorrer entre os homens. A comunicação enquanto
característica específica das relações humanas delimita a esfera dessas relações àquelas em que pode estar
presente certo grau de livre participação. O destaque do conceito de C. na filosofia contemporânea devese: 1Q
ao abandono da noção de Autoconsciência infinita, Espírito Absoluto ou Superalma: noção que,
implicando a identidade de todos os homens, torna, obviamente, inútil o próprio conceito de C. interhumana; 2S
ao reconhecimento de que as relações inter-humanas implicam a alte-ridade entre os homens e
são relações possíveis-, 3
a
ao reconhecimento de que tais relações não se acrescentam, num segundo
momento, à realidade já constituída das pessoas, mas entram a constituí-la como tal.
Nesses termos, o conceito de C. faz parte de filosofias díspares. Segundo Heidegger, o conceito de C.
deve ser entendido "em sentido ontologicamente lato", isto é, como "C. existencial". "Nessa última
constitui-se a articulação do
ser-com que compreende. Ela realiza a partilha da situação emotiva comum e da compreensão do sercom. C. não é a transferência de experiências vividas (não importa quais, p. ex., opiniões e desejos) do
interior de um sujeito para o interior de outro sujeito. A co-presença está já essencialmente revelada na
situação emotiva comum e na compreensão comum" (Sein und Zeit, § 34). Em outros termos, para
Heidegger, C. é já coexistência porque a co-participação emotiva e a compreensão dos homens entre si
fazem parte da própria realidade do homem, o ser do ser-aí. Jaspers, que está substancialmente de acordo
com Heidegger, a partir daí passa a opor-se às ciências empíricas (psicologia, antropologia, sociologia)
que pretendem analisar as relações de comunicação. Segundo Jaspers, o defeito delas é que devem
limitar-se à consideração das relações humanas e não das possíveis, ao passo que a C. é, precisamente,
possibilidade de relações. Nesse sentido, só pode ser esclarecida pela filosofia (Phil, II, cap. III). Dewey,
ao contrário, que compartilha com Heidegger e Jaspers o ponto de vista de que a C. constitui
essencialmente a realidade humana, considera-a como uma forma especial de ação recíproca da natureza e
acredita, portanto, que pode e deve ser estudada pela pesquisa empírica (Experience and Nature, cap. V).
Se na filosofia oitocentista, com o predomínio das concepções absolutistas (o próprio positivismo falava
da Humanidade como de um todo), eliminava-se a noção de C, na filosofia dos sécs. XVII e XVIII essa
noção fora elaborada, mas para responder a um problema diferente: o da "C. das substâncias", isto é, da
substância alma com a substância corpo, e reciprocamente, problema este nascido com o cartesianismo,
que distinguira pela primeira vez, de modo nítido, as duas espécies de substância. O próprio Descartes
admitira como válida a noção corrente de ação recíproca entre as duas substâncias, que, na sua opinião,
tocavam-se na glândula pineal (Pass. de Vâme, I, 32). Por outro lado, os ocasionalistas consideraram
impossível a ação de uma substância finita sobre a outra, porque nenhuma substância finita pode agir, isto
é, ser causa; e assim julgaram que Deus mesmo intervém para estabelecer a relação entre a alma e o
corpo, entre os vários corpos ou entre as várias almas, aproveitando a ocasião que se oferece com a
mudança ocorrida numa substância para produzir mudanças nas
COMUNIDADE
162
COMUNISMO
outras substâncias. Era essa a teoria das causas ocasionais, sustentada, entre outros, por Male-branche
(Recherche de Ia vérité, III, II, 3). Leibniz considerou a primeira teoria impossível e a segunda,
miraculosa; entendeu a C. como harmonia preestabelecida (v.), estendendo-a até entender a relação entre
todas as partes do universo, isto é, entre todas as mônadas que o compõem: a harmonia é preestabelecida
por Deus de tal modo que a cada estado de uma mônada corresponde um estado das outras mônadas {Op.,
ed. Gerhardt, IV, pp. 500-501). Obviamente, a teoria de Leibniz não é a solução do problema da C; tem,
de resto, o objetivo de tornar inútil a própria C, assegurando a relação preordenada das mônadas entre si.
O próprio Leibniz nota que sua doutrina faz da alma uma espécie de máquina imaterial (Ibid., p. 548).
Esse traço revela quanto essa doutrina está distante da noção contemporânea de C, que, como dissemos,
nunca é automática e não pode subsistir entre os autômatos ou entre as peças de um autômato.
COMUNIDADE (in. Community, fr. Com-munauté, ai. Gemeinschaft; it. Comunitã). 1. Kant deu esse
nome à terceira categoria da relação, a da ação recíproca, e também à terceira analogia da experiência (ou
princípio da C.) assim expressa: "Todas as substâncias, na medida em que podem ser percebidas no
espaço como simultâneas, estão entre si em ação recíproca universal." Observava a respeito: "A palavra
Gemeinschaft tem duplo significado, podendo indicar tanto communio quanto commercium. Aqui
utilizamos o segundo sentido, como comunhão dinâmica sem a qual nem a comunhão espacial
{communio spatii) poderia ser conhecida empiricamente" (Crít. R. Pura, Analítica dos Princípios, 3a
analogia). Nessa aplicação, esse termo não teve êxito.
2. Contudo, a partir do Romantismo (esp. Schleiermacher), esse termo foi usado para indicar a forma da
vida social caracterizada por um vínculo orgânico, intrínseco e perfeito entre os seus membros. Nesse
sentido, C. foi contraposta a sociedade numa obra de FERDINANDO TÒNNIES, C. e Sociedade, publicada
em 1887. "Tudo o que é confiança, intimidade e vida exclusivamente em conjunto", dizia Tónnies,
"compreende-se como vida em comunidade. A sociedade é o que é público, é o mundo; ao contrário,
encontramo-nos em comunidade com as pessoas que nos são caras desde o nascimento, ligados a elas no
bem e no mal. Na
sociedade, entra-se como em terra estranha. Costuma-se prevenir o adolescente contra a má sociedade,
mas a expressão 'má C soa como contradição" (.Gemeinschaft und Gesellschaft, I, 1). Assim expresso,
esse conceito inclui óbvias conotações de valor, pelas quais se presta pouco ao uso objetivo, pois parece
claro que não existe nenhuma C. pura e nenhuma sociedade pura, e que a necessidade de fazer uma
distinção nesse sentido não é sugerida pela observação, mas pela aspiração a um ideal. Portanto, ao ser
utilizado pelos sociólogos posteriores (entre os quais Simmel, Cooley, Weber, Dur-kheim, e outros), esse
significado foi sofrendo transformações, até assumir o uso corrente na sociologia contemporânea, de
distinção entre relações sociais de tipo local e relações de tipo cosmopolita, distinção esta puramente
descritiva entre comportamentos vinculados à C. restrita em que se vive e comportamentos orientados ou
abertos para uma sociedade mais ampla (R. K. MERTON, Social Theory and Social Structure, 1957, pp.
393 ss(.).
COMUNISMO (in. Communism-, fr. Com-munisme, ai. Kommunismus, it. Comunismo). Ideologia
política que tem como programa o Manifesto Comunista publicado por Marx e Engels em 1847,
desenvolvido nas obras de Marx e Engels, bem como de Lênin e Stálin. Tal ideologia pode ser resumida
nos seguintes pontos fundamentais: ls
a personalidade humana depende da sociedade historicamente
determinada a que pertence, e nada é fora e independentemente da própria sociedade; 2
a
a estrutura de
uma sociedade historicamente determinada depende das relações de produção e de trabalho próprias dessa
sociedade, que determinam todas as suas manifestações: moralidade, religião, filosofia, etc, além das
formas de sua organização política. Esses dois pontos constituem a doutrina do materialismo histórico
(v.); 3Q
a luta de classes tem caráter permanente e necessário em toda e qualquer sociedade capitalista,
isto é, em qualquer sociedade cujos meios de produção sejam propriedade privada; 4S
depois de alcançar
o ponto máximo de concentração de riqueza em poucas mãos e de empobrecimento e nivelamento de
todos os trabalhadores, a sociedade capitalista passa, necessária e inevitavelmente, para a sociedade
socialista, que possui e exerce diretamente os meios de produção e é, por isso, sem classes; 5e
existe um
período de transição entre a sociedade capitalista e a sociedade co-
COMUNS, NOÇÕES
163
CONCAUSA
munista, durante o qual o proletariado assumirá o poder e o exercerá, assim como os capitalistas fizeram,
em seu próprio proveito. Esse será o período da ditadura do proletariado.
O C. russo deu destaque sobretudo ao último desses aspectos, que, nas obras de Marx e Engels, aparecia
como secundário. E, dando-lhe destaque, transformou-o no sentido de entender a ditadura do proletariado
como ditadura do partido comunista, confiando ao próprio partido a função de vanguarda do proletariado.
Desse modo, o partido torna-se o instrumento fundamental para a realização da sociedade nova e pretende
comandar, controlar e dirigir qualquer ação que tenha essa finalidade. Essa preeminência do partido, já
teorizada por Lênin, foi levada ao extremo por Stálin, que afirmou a necessidade da "parti-darização" da
ciência, da arte, da filosofia e, em geral, de todas as atividades intelectuais, o que significa simplesmente
subordinar essas atividades aos interesses do partido, na forma como são interpretadas e impostas por
seus dirigentes.
COMUNS, NOÇÕES (gr. Koívoa evvotai; lat. Notiones communes). Os estóicos denominam com essa
expressão os conceitos universais ou antecipações (v.) que se formam no homem naturalmente, ,isto é,
não como produtos da instrução (AÉCIÔ, Plac, IV, 11). Essa expressão foi utilizada em Elementos, de
Euclides, para designar os princípios evidentes, que depois foram chamados de axiomas (v. AXIOMA).
COMUTATIVO (lat. Commutativus; in. Commutative, fr. Commutatif, ai. 1Q Auglei-chend; 2
a
Kommutatiu, it. Commutativo). 1. Os escolásticos chamaram de C, pela igualdade das coisas trocadas
(commutationes), a espécie de justiça que Aristóteles chamava de "corretiva" (TÒ 8top0oyuKòv
ÔIKOCÍOV): ao contrário da justiça distributiva, que dá a cada um segundo seus méritos, serve para
equiparar as vantagens e as desvantagens em todas as relações de permuta entre os homens, tanto
voluntárias quanto involuntárias (Et. nic, V, 4, 1131 b 25) (v. JUSTIÇA).
2. Denomina-se propriedade C. ou lei C. o axioma (ou postulado) pelo qual x ou y = y ou x Essa lei serve
de fundamento da soma e da multiplicação em aritmética e da teoria dos números reais. A teoria das
matrizes, do inglês Arthur Cayley (1821-95), foi chamada de álgebra "não C", e utilizada pela mecânica
quân-tica, porque não obedece à lei C. e considera
como unidade fileiras de números (como seriam, p. ex., os inscritos nos quadrados de um tabuleiro de
xadrez).
CONAÇÃO (lat. Conatus). Indica-se com esse nome, no Renascimento, a hormé estóica (DIÓG. L. VII,
85), isto é, o instinto (v.) ou a tendência de todo ser à própria conservação. Esse conceito ganhou forma
clássica com Spinoza, para quem "o esforço de conservar-se é a própria essência da coisa" (Et., IV, 22,
cor.). "Recebe o nome de vontade quando se refere só à mente; quando se refere à mente e ao corpo ao
mesmo tempo chama-se apetite, que, por isso, é a própria essência do homem" (Ibid., III, 9, scol.). Viço
empregava essa palavra no mesmo sentido: "A natureza começou a existir por um ato de C; em outros
termos, a C. é a natureza (como também diz a Escolástica) infieri, prestes a chegar à existência" (De
antiquissima italorum sapientia, 4, § 1). Hobbes deu um novo conceito desse termo: entendeu por C. o
movimento instantâneo, isto é, "o movimento num espaço e num tempo menores do que qualquer espaço
ou tempo dados" (De corp., 15, § 2). Leibniz, numa primeira fase, entendeu C. no mesmo sentido: "A
conação (conatus) está para o movimento como ponto está para o espaço, isto é, como a unidade para o
infinito: é o início ou o fim do movimento" (Hypothesisphysicanova, 1671, Op., ed. Gerhardt, IV, p. 229).
Mas, depois, identificou a C. com a força ativa, isto é, com a energia à qual ele reduziu a própria matéria:
"A força ativa, que também costuma ser chamada simplesmente de força, não deve ser concebida como a
simples potência vulgar do aprendizado, isto é, como uma receptividade de ação, mas implica um
conatus, isto é, uma tendência à ação, de sorte que, se não houver impedimento, o resultado será a ação"
(Mathematische Schriften, ed. Gerhardt, VI, p. 100). O mesmo conceito acha-se emWolff (Cosm., § 149)
(v. ESFORÇO).
CONATURALIDADE (in. Connature). Substantivo criado por Spencer por analogia com os adjetivos
"conato" e "conatural". Segundo Spencer (Psychology, II, § 289), uma das três idéias (ao lado de
coextensão e coexistência) implícitas no raciocínio quantitativo, mais precisamente a da identidade das
coisas quanto à espécie, ao passo que coextensão significa identidade na quantidade de espaço ocupada e
coexistência significa identidade no tempo de apresentação à consciência.
CONCAUSA (gr. cruvauía). Platão indicou com esse termo a causa natural que concorre
CONCEITO
164
CONCEITO
com a causa ideal na formação das coisas do mundo {Tim., 68 e).
CONCEITO (gr. tayyoç; lat. Conceptus; in. Concept; fr. Concept; ai. Begriff; it. Conceito). Em geral,
todo processo que torne possível a descrição, a classificação e a previsão dos objetos cognoscíveis. Assim
entendido, esse termo tem significado generalíssimo e pode incluir qualquer espécie de sinal ou
procedimento semântico, seja qual for o objeto a que se refere, abstrato ou concreto, próximo ou distante,
universal ou individual, etc. Pode-se ter um C. de mesa tanto quanto do número 3, de homem tanto quanto
de Deus, de gênero e espécie (os chamados universais [v.]) tanto quanto de uma realidade individual,
como p. ex. de um período histórico ou de uma instituição histórica (o "Renascimento" ou o
"Feudalismo"). Embora o C. seja normalmente indicado por um nome não é o nome, já que diferentes
nomes podem exprimir o mesmo C. ou diferentes conceitos podem ser indicados, por equívoco, pelo
mesmo nome. O C, além disso, não é um elemento simples ou indivisível, mas pode ser constituído por
um conjunto de técnicas simbólicas extremamente complexas, como é o caso das teorias científicas que
também podem ser chamadas de C. (o C. da relatividade, o C. de evolução, etc). O C. tampouco se refere
necessariamente a coisas ou fatos reais, já que pode haver C. de coisas inexistentes ou passadas, cuja
existência não é verificável nem tem um sentido específico. Enfim, o alegado caráter de universalidade
subjetiva ou validade intersubjetiva do C. na realidade é simplesmente a sua comunicabi-lidade de signo
lingüístico: a função primeira e fundamental do C. é a mesma da linguagem, isto é, a comunicação.
A noção de C. dá origem a dois problemas fundamentais: um sobre a natureza do C. e outro sobre a
função do C. Esses dois problemas podem coincidir, mas não coincidem necessariamente.
A) O problema da natureza do C. recebeu duas soluções fundamentais: 1- o C. é a essência das coisas,
mais precisamente a sua essência necessária, pela qual não podem ser de modo diferente daquilo que são;
2- o C. é um signo.
I
a A concepção do C. como essência pertence ao período clássico da filosofia grega, em que o C. é
assumido como o que se subtrai à diversidade e à mudança de pontos de vista ou
de opiniões, porque se refere às características que, sendo constitutivas do próprio objeto, não são
alteradas pela mudança de perspectiva. Nos primórdios da filosofia grega, o C. apareceu como o termo
conclusivo de uma indagação, prescindindo, na medida do possível, da mutabilidade das aparências e
visando àquilo que o objeto é "realmente", isto é, à sua "substância" ou "essência". Para os gregos, essa
busca pareceu ser a tarefa própria do homem enquanto animal racional, isto é, tarefa própria da razão;
com efeito, C. e razão são designados pelos gregos com o mesmo termo, logos. Aristóteles atribui a
Sócrates o mérito de haver descoberto "o raciocínio indutivo e a definição do universal, duas coisas que
se referem ao princípio da ciência" {Met., XIII, 4, 1.078 b). Esse mesmo mérito é atribuído a Sócrates por
Xenofonte {Mem., IV, 6, 1): Sócrates mostrou como o raciocínio indutivo leva à definição do C; e o C.
exprime a essência ou a natureza de uma coisa, o que a coisa verdadeiramente é. Platão faz do universal
socrático,a própria realidade. O belo, o bem, o justo sãó substâncias, isto é, realidades no sentido forte do
termo, realidades absolutas. Platão emprega os mesmos termos (substância, espécie, forma ou
simplesmente entes) para indicar as realidades últimas como "em si mesmas" e como são "em nós" (isto é,
como C). A mente humana contém "a verdade dos entes" {Men., 86 a-b); ela encontra já como suas as
substâncias que constituem a estrutura fundamental da realidade {Fed., 76 d-e). Aristóteles, nesse ponto,
só faz reproduzir e articular numa doutrina bem mais complexa o ponto de vista de Platão. O C. {logos) é
o que circunscreve ou define a substância ou a essência necessária de uma coisa {Dean., II, 1, 412 b 16);
por isso, ele é independente do gerar-se e corromper-se das coisas e não pode ser produzido ou destruído
por tais processos {Met, VII, 15,1.039 b 23). Em outros termos, para Aristóteles, o C. é idêntico à
substância, que é a estrutura necessária do ser, aquilo pelo qual todo ser não pode ser diferente do que é
(v. SUBSTÂNCIA). Essas determinações são típicas da concepção do C. como essência. Com relação a elas,
o caráter da universalidade aparece como secundário e derivado: por universal, diz Aristóteles, entendo "o
que é inerente ao sujeito em qualquer caso e por si, na medida em que um sujeito é o que é" {An.post., I,
4, 73 b 25 ss.). Ora, "o que é inerente ao sujeito em qualquer caso e por si, etc." nada mais é do que a
CONCEITO
165
CONCEITO
essência necessária do próprio sujeito, aquilo que ele não pode não ser; de sorte que, para Aristóteles, a
universalidade é a substancia-lidade ou necessidade do conceito. Por isso, Aristóteles diz que pode haver
também C. de indivíduo (do stnolon, ou composto de matéria e forma), mas não do indivíduo considerado
em sua matéria, que é indeterminada, logo indefinível, e que, p. ex., o C. de homem é a alma (Mel, VII,
11, 1.037 a 26); distingue C. comuns de C. próprios (De an., II, 3, 414 b 25) e fala de "C. materiais", tais
como as emoções, que são definidas por meio dos movimentos do corpo que as suscitam {Ibid., I, 1, 403 a
25). No âmbito dessa identificação do C. com a essência, não constitui inovação decisiva dizer que o C.
deriva das sensações, como o faz Epicuro, já que essa derivação, pelo caráter necessariamente verídico
das sensações, garante a realidade do C. (DIÓG. L., X, 32). Por outro lado, a querela medieval sobre os
universais (v.) — por essa palavra entendem-se os C. de gênero e de espécie — na realidade é a disputa
entre as duas concepções fundamentais do C: a platônico-aristotélica e a estóica; o realismo representa a
primeira dessas concepções e o nominalismo, a segunda. Não causa estranheza o fato de que a
Escolástica, que, do ponto de vista lógico e.gnosiológico, nasceu e desenvolveu-se sob ó signo do
neoplatonismo agostiniano e do aristotelismo, tenha escolhido predominantemente a solução realista do
problema dos universais, afirmando a realidade do C. como elemento constitutivo ou essencial da própria
realidade. S. Tomás diz: "Como todo conhecimento é perfeito na medida em que há semelhança entre o
conhecedor e o conhecido, é preciso que no sentido haja a semelhança da coisa sensível quanto aos seus
acidentes, mas que no intelecto haja semelhança da coisa entendida quanto à sua essência' {Contra Gent,
IV, 11). O C. "penetra no interior da coisa" (Ibid., IV, 11), colhe a essência ou a substância dela, já que
não é senão essa substância abstraia da própria coisa. Através da interpretação da substância aristotélica,
como essência necessária, Duns Scot reafirma a mesma tese: o C. tem por objeto uma "natureza comum",
que é o quod quid erat esse de Aristóteles. Ela "não é tão universal quanto o C, nem tão individual quanto
a coisa, mas está na base de um e de outra"(Qf>. Ox., II, d. 3, q. 1, n. 7). Esse realismo não sofre
alterações importantes nem mesmo na filosofia moderna. A identidade entre C.
e realidade, talvez pressuposta por Descartes, foi explicitada por Spinoza: "O círculo existente na natureza
e a idéia do círculo existente, que também está em Deus, são uma só e a mesma coisa, que se manifesta
por diversos atributos" (Et., II, 7, scol.). Um realismo do C, limitado todavia à realidade fenomênica (que
é, de resto, a única acessível ao homem), é a própria doutrina de Kant. De fato, se os C. empíricos se
referem às coisas só mediante uma sensação, os C. puros ou categorias constituem as próprias coisas
enquanto percebidas, isto é, aparentes na experiência. Os C. puros ou categorias são, com efeito, ao
mesmo tempo, "formas do intelecto" e "condição dos objetos fenomê-nicos". Constituem os próprios
objetos feno-mênicos, isto é, os objetos de toda experiência possível (Crít. R. Pura, Analítica dos
conceitos, § 10). A doutrina fundamental do kantismo é, precisamente, o caráter constitutivo dos C. puros,
caráter no qual se funda o próprio caráter representativo dos C. empíricos (ibid., § 16, nota). Sem dúvida,
para Kant o C. não é toda a realidade e não é criador da realidade: constitui a ordem necessária, pela qual
a realidade se revela à indagação científica como submetida a leis imutáveis. Mas justamente por isso
constitui a estrutura óssea, ou a ossatura necessária, da realidade empírica, isto é, da única realidade que o
homem pode indagar e conhecer. Desse ponto de vista, todo o arsenal do criticis-mo parece estar voltado
para a reiteração da tese clássica, platônico-aristotélica, sobre a natureza do C: sua identidade com a
substância necessária da realidade. E essa mesma tese, sem as limitações do fenomenismo kantiano,
encontra-se no Idealismo romântico, que, porém, acentua a função criativa do C. e o identifica com o
Princípio racional infinito, criador e organizador da própria realidade. É um lugar-comum da filosofia
hegeliana que o C. não é uma representação subjetiva pura, mas a própria essência das coisas, o seu "em
si". "A natureza daquilo que é, é ser, no próprio ser, o próprio C.", diz Hegel; "e nisso está, em geral, a
necessidade lógica" (Phànomen. des Geistes, Pref., § 3). A Idéia absoluta ou infinita, a Razão
autoconsciente que é a substância do mundo, outra coisa não é senão "o C. como C." (Ene, § 213). "O C",
diz ainda Hegel — "não aquilo que se costuma ouvir chamar por esse nome, sendo apenas uma
determinação intelectualista abstrata — é unicamente o que tem realidade, de tal maneira que ele mesmo
se dê a realida-
CONCEITO
166
CONCEITO
de" (Fil. do dir., § 1). Na concepção hegeliana, a estrutura necessária da realidade é devir e progresso,
tendo-se posto como Razão infinita e criadora. Por maior que possa parecer, a distância entre essa
concepção e a clássica não é tão grande, do ponto de vista da teoria do C: para Hegel, assim como para
Aristóteles, o C. é a essência necessária da realidade, o que faz que ela não possa ser diferente do que é.
Na filosofia contemporânea o idealismo retomou a interpretação hegeliana do C. como realidade
necessária ou necessidade real. Croce, p. ex., entende-o como desenvolvimento, devir e sistema, atividade
racional e concreta, espírito ou razão {Lógica come scienza dei conceito puro, 1908).
A fenomenologia de Husserl pode ser considerada um retorno à forma clássica assumida pela
interpretação do C. em Aristóteles. Husserl integra a polêmica do logicismo moderno contra o
psicologismo, que vê no C. uma formação psíquica (v.). Formação psíquica é, p. ex., a representação de
número que varia de momento a momento e de um indivíduo para outro; mas o C. de número é sempre o
mesmo, e é uma entidade intemporal. Os C. devem, pois, ser considerados idênticos às essências, sendo
melhor falar de essências (que são objetos) do que de C. e, sob o aspecto subjetivo, de "visão das
essências", como ato análogo ao perceber sensível (Jdeen, I, §§ 22-23). Assim, na última formulação
histórica da interpretação do C. como realidade necessária, o próprio termo C. é abandonado por
impróprio, analogamente ao que acontece nos desenvolvimentos da segunda interpretação de conceito.
2- Na segunda interpretação, o C. é um signo do objeto (qualquer que seja) e se acha em relação de
significação com ele. Por essa interpretação, encontrada pela primeira vez nos estóicos, a doutrina do C. é
uma teoria dos signos. Não pode haver signo, segundo os estóicos, nem das coisas evidentes nem das
absolutamente obscuras; pode haver signo apenas das coisas obscuras de momento e obscuras pela
própria natureza. A essas duas espécies de coisas correspondem duas espécies de signos: ls
os signos
rememorativos, que se referem às coisas obscuras de momento; 2- os signos indicativos, que se referem
às coisas obscuras por natureza. Tem-se um signo rememorativo, p. ex., quando se diz: "Se há fumaça, há
fogo", quando ainda não se vê fogo. Um signo indicativo é, p. ex., um movimento do corpo, que expresse
um estado de alma. Por signo entende-se também "uma proposição que, sendo antecedente em uma conexão verdadeira, é descobridora da
conseqüente". Em outros termos, tem-se um signo quando se tem uma proposição condicional do tipo
"Se... então", que satisfaça a duas condições: I
a
deve começar pelo verdadeiro e terminar no verdadeiro,
isto é, tanto o antecedente como o conseqüente devem ser verdadeiros; 2- deve ser descobridora, isto é,
deve dizer alguma coisa não imediatamente evidente. P. ex., "Se é dia, há luz", dito quando é dia, ainda
não é um signo, mas é signo a proposição: "Se esta mulher tem leite, então deu à luz", onde o antecedente
é descobridor do conseqüente {Pirr. hyp., II, 97 ss.; Adv. dogm., II, 141 ss.). Essa doutrina estóica dos
signos (sobre ela, v. SIGNIFICADO) permaneceu como modelo da segunda alternativa fundamental que a
doutrina do C. encontrou. Transmitida por Boécio à Escolástica latina, sua etapa seguinte é a lógica de
Abelardo (século XII), que, acentuando o caráter predicativo do C, negou que ele pudesse <ser
considerado uma coisa Crês) ou um nome (vox) — já que nem a coisa nem o nome (que é também uma
coisa) podem ser predicados de outra coisa — e considerou o C. como um sermo (discurso).
Diferentemente da vox o sermo implica a referência semântica a uma realidade significada, referência que
a Escolástica posterior chamará de suppositio. A realidade significada não é, segundo Abelardo, nem uma
substância universal nem uma classe de coisas singulares, mas o estado comum no qual convém um
grupo de coisas. Nesse sentido, Abelardo diz que "a causa comum" do universal "homem" é o status de
homem que não é nem uma coisa, nem uma substância, mas aquilo em que todos os homens convém
enquanto tais (Pbilosophische Schriften, ed. Geyer, pp. 19-20). Essa doutrina depois foi retomada pela
lógica terminista, cuja formulação escolástica está em Summulae logicales de Pedro Hispano (meados do
séc. XIII). Nas Summulae, a função desse termo, tanto universal quanto particular, é definida' através da
noção de suposição (v.), segundo a qual os termos estão no lugar da coisa suposta, de tal sorte que, p. ex.,
na proposição "o homem corre", o termo "homem" está por Só-: crates, Platão, etc. (Summ. log, 6.03). A
Escolástica do séc. XIV marca o abandono definitivo do formalismo ou realismo que prevalecera em S.
Tomás e Duns Scot e um retorno da teoria estóica do conceito. Este é chamado intentfà
CONCEITO
167
CONCEITO
animae, como qualquer outro ato ou elemento de conhecimento (já que o conhecimento sempre se refere
a alguma coisa diferente de si mesmo) e é definido como "signo predicável de muitas coisas". Segundo
Ockham, o C. possui, além disso, outro caráter fundamental: é um signo natural. Diz ele: "O universal é
duplo. Um é o universal natural, que é um signo predicável de muitas coisas, do mesmo modo como
fumaça naturalmente significa fogo, gemido do inferno, dor, e riso, alegria interior. Esse universal é só
uma intenção da alma, pois nenhuma substância fora da alma e nenhum acidente fora da alma é um
universal semelhante... O outro é o universal instituído arbitrariamente {per voluntariam institutionem);
nesse sentido, o nome preferido, apesar de ser uma qualidade numericamente una, é universal porque é
um signo instituído arbitrariamente para significar muitas coisas" {Summ. log., I, Í 14). A função lógica do
C. é a da suposição, pela qual, em todos os complexos em que entra, o C. está no lugar das coisas
significadas; quanto à realidade que o C. possui na alma como intentio animae, Ockham não se mostra
interessado em decidir, parecendo mais inclinado à doutrina extrema de que, na alma, o C. não tem
nenhuma realidade, mas existe nela somente obiective, isto, é, a título de representação ou de imagem {In
Sent., I, d. 2, q. 8 E). A doutrina de Ockham é típica da posição em-pirista em relação à natureza do C,
posição que tem sempre dois pontos básicos: 1Q
a natureza sígnica do C; 2- a sua conexão causai com as
coisas, cujo produto natural seria o homem. Essa doutrina se encontra em Locke {Ensaio, III, 3, §§ 6-9),
em Berkeley {Principies of Human Knowledge, Intr., §§ 12 ss.) e em Hume (Treatise, I, 1, 7). Hume
invoca o hábito para explicar a gênese psicológica do C. {Ibid., I, 1, 7); James Mill invoca a lei da
associação psicológica {Analysis of the Phenomena of the Human Mind, 2
a
ed., 1869,1, pp. 78 ss.), assim
como Stuart Mill {Examination ofPhil. of Hamilton, p. 393).
É próprio do empirismo assumir a explicação psicológica da gênese do C. como justificação da sua
validade, ou seja, considerar demonstrada a validade do C. e a legitimidade do seu uso por haver
demonstrado o modo pelo qual ele se forma no homem pela ação da abstração (como julgava Locke) ou
da associação psicológica (como julgavam os empiristas da primeira metade do séc. XIX). Mas Kant já
insistira na diferença entre as duas coisas, distinguindo a "derivação fisiológica" dos C, tentada por Locke, da
"dedução" dos próprios C, isto é, da demonstração de sua validade {Crít. R. Pura, § 13). A distinção entre
validade lógica e realidade psicológica dos C. mantém-se em todas as escolas do neocriticismo alemão
contemporâneo (sobretudo na Escola de Marburgo a que pertencem Cohen, Natorp e Cassirer) e fora
reafirmada como indispensável às formulações do pensamento matemático e, em geral, do pensamento
científico por Bolzano na sua Doutrina da ciência (1837). A elaboração matemática da lógica levava a
insistir na natureza objetiva, não psicológica, do C, assim como na sua natureza simbólica. Esses dois
aspectos do C. são ressaltados por Frege. Num texto de 1890, ele afirmava que "o C. é algo de objetivo,
que não é construído por nós", e que, portanto, uma proposição como "O número 3 é um número primo" é
"algo completamente independente da circunstância de estarmos acordados ou dormindo, de vivermos ou
não, algo que vale e valerá objetivamente sempre, não importando se existem ou se existirão seres que
reconheçam ou não essa verdade" {Uber das Trãgheitsgesetz, 1890, em Aritmética e lógica, ed.
Geymonat, pp. 211-12). Sob esse aspecto, Frege definia o C. como "o significado de um predicado"
{Über Begriff und Gegenstand, 1892, § 2; ed. Geymonat, p. 199) e definia o significado como o objeto
designado pelo signo, distinguindo o significado do sentido, que denota "o modo como o objeto nos é
dado" {Über Sinn undBedeutung, 1892, § 1, ed. Geymonat, pp. 216 ss.). Essas observações de Frege são
muito importantes porque assinalam o início da resolução, ocorrida em grande parte da filosofia
contemporânea, da noção de C. na noção de significado. Husserl (que, todavia, sustentava um realismo
conceitualista) já considerava os C. como significados {Bedeutungen-, cf. Ideen, I, § 10). "Termos ou
significados", é como Dewey denomina os C, classificando-os sob esse título {Logic, cap. XVIII). E R.
Carnap, no mesmo sentido de Frege, identificando o C. com o objeto, entendia por C. "tudo aquilo sobre
o que é possível formular proposições" {Der logische Aufbau der Welt, 1928, § 5). Em 1942, Susan K.
Langer reconhecia formalmente a identificação ocorrida entre C. e significado, mostrando a convergência
de muitas correntes da filosofia contemporânea para o reconhecimento do simbolismo em ciência, arte,
filosofia
CONCEITO
168
CONCEITO
e em todas as formas culturais em geral (Phi-losophy in a New Key, 1942, cap. III). Quine indicou
exatamente o ponto crítico da transformação da noção de C. quando disse "significado é aquilo que a
essência se torna quando se divorcia do objeto de referência e se casa com a palavra" (From a Logical
Point of View, II, D.
Deve-se notar, contudo, que o termo C. ou significado refere-se com mais freqüência a conotação do que
a denotação. Assim, Carnap, nas últimas obras, entendeu por C. a propriedade, o atributo ou a função
(Jntroduction to Semantics, 1942; 2â
ed., 1959, § 37). Isso constitui uma exceção à terminologia proposta
por Frege, exceção esta recomendada pelos lógicos (cf. A. CHURCH, Introduction to Mathematical Logic,
§ 1, e n. 17). V. SIGNIFICADO.
E) A função C. pode ser concebida de duas maneiras fundamentais diferentes, isto é, como final e como
instrumental. Função final atribui ao C. a interpretação como essência, já que, por essa interpretação, o C.
não tem outra função senão exprimir ou revelar a substância das coisas. Desse ponto de vista, a função
identifica-se com a própria natureza do conceito. Quando, porém, se admite a teoria simbólica do C,
admite-se ipso facto também a sua instrumentalidade; e essa instrumentalidade pode ser aclarada e
descrita nos seus múltiplos aspectos. Os aspectos principais são os seguintes:
l
fi A primeira função atribuída ao C. é a de descrever os objetos da experiência para permitir o seu
reconhecimento. Era essa a função principal que epicuristas e estóicos atribuíam às antecipações (ou
prolepse). Segundo os epicuristas, a antecipação é "a compreensão, a opinião correta, o pensamento ou a
noção universal ínsita em nós como memória daquilo que, freqüentemente, nos apareceu como fora de
nós" (DIÓG. L., X, 33). Essa função descritiva ou recogitiva do C. muitas vezes é omitida por ser a mais
óbvia. Recentemente, G. Berg-mann chamou os C. de palavras-caracteres (Character-Words) para indicar
a sua função descritiva ou referencial (Philosopby of Science, 1957, p. 13).
2
e
A segunda função atribuída ao C. é a econômica. A essa função vincula-se o caráter classificador do C.
"A variedade das reações biologicamente importantes", disse E. Mach, "é muito menor do que a variedade
dos objetos existentes. Por isso, o homem foi levado a classificar os fatos nos conceitos. O mesmo
procedimento se reproduz quando, numa profissão, defrontam-se fatos que não oferecem mais interesses
biológicos imediatos" (Erkennt-niss und Irrtum, 1905, cap. VIII; trad. fr., p. 136). Sob esse aspecto, os C.
são "signos que resumem e indicam reações possíveis do organismo humano em face dos fatos"
(Mechanik, 1883, p. 510). É esse o caráter enfatizado por alguns filósofos para negar o caráter teórico dos
C. científicos em prol de uma forma superior ou privilegiada de conhecimento. Assim, ao C. (simples
esquema econômico com vistas à ação) Bergson contrapôs a intuição (Évol. créatr., 8
a
ed., 1911, p. 247
ss.). Por esse motivo, Croce chamou os C. científicos de pseudo-conceitos, reservando o nome de C. à
própria Razão (Lógica, cap. II).
3
S
A terceira função do C. é organizar os dados da experiência de modo que se estabeleçam entre eles
conexões de natureza lógica. Um C, sobretudo científico, via de regra não se limita a descrever e
classificar os dados empíricos, mas possibilita a sua inferência dedutiva (DUHEM, La thêoriephysique, pp.
163 ss.). É por esse aspecto que a formulação conceituai das teorias científicas tende à axiomatização: a
generalização e o rigor da axiomatização tendem a levar ao extremo o caráter logicamente organizativo
do conceito.
4
a
A quarta função do C, hoje considerada fundamental nas ciências físicas, é a previsão. Como já
reconheciam os estóicos, o objetivo de um signo geralmente é prever e a designação de antecipação, que
epicuristas e estóicos davam ao C, exprime justamente essa função. Por ela, o C. é um meio ou
procedimento antecipatório ou projetante. Para Dewey, antecipa ou projeta a solução de um problema
exatamente formulado (Logic, XX, § 1; trad. it., p. 516; cf. XXIII, § 1; p. 599). Para outros, a função
antecipatória do C. é o instrumento de que a ciência se serve "para predizer a experiência futura à luz da
experiência passada" (QUINE, From a Logical Point of View, II, 6).
As funções de organizar e prever são exercidas hoje pelos tipos fundamentais de C. científicos, que não
são nem descritivos nem classificatórios, ou seja, pelos modelos, pelos C. matemáticos e pelas
construções.
Os modelos constituem simplificações ou idealizações da experiência e são obtidos levando ao extremo
caracteres ou atributos próprios dos objetos empíricos. Nesse sentido, são
CONCETTO-CLASSE
169
CONCORDÂNCIA, MÉTODO DA
modelos os C. de velocidade instantânea, de sistema isolado, de gases perfeitos e, em geral, os modelos
mecânicos.
Os C. matemáticos são simplesmente ocasiões para introduzir procedimentos especiais de cálculo e, nesse
sentido, são instrumentos de previsão. O C. de "onda de probabilidade", pertencente à mecânica quântica,
é dessa espécie, assim como são também dessa espécie os C. de "campo tensorial", "espaço curvo", etc.
Enfim, as construções (v.) são C. de entida-ífesque não são dadas na experiência, que não se assemelham
nem mesmo com os objetos dados e cuja existência consiste simplesmente na possibilidade de serem
usadas como instrumentos de previsão no contexto de uma teoria. São exemplos de construções os C. de
campo, de elétron, de éter, etc. (P. W. BRIDGMANN, The Logic of Modem Physics, 1927, cap. II; M. K.
MUNITZ, Space Time and Creation, 1957, IV, 2).
CONCEITO-CLASSE (in. Class-concepi). Termo introduzido na Lógica por Russell {The Principies of
Mathematics): designa o C. mediante o qual se define uma classe (v.), ou, mais exatamente, a função
proposicional "F" cujas raízes formam a classe, de modo que seja condição necessária e suficiente para
que um indivíduo a seja um elemento de uma classe ("pertença à classe");definida mediante uma função
"F" tal que a proposição "Fa" seja verdadeira. G. P.
CONCEPÇÃO (in. Conception- fr. Concep-tion; ai. Konzeption; it. Concezioné). Esse termo designa
(assim como os correspondentes percepção e imaginação) tanto o ato do conceber quanto o objeto
concebido, mas, preferivel-mente, o ato de conceber e não o objeto, para o qual deve ser reservado o
termo conceito (v.). Hamilton já fazia essa observação {Lectures on Logic, I, p. 41), que às vezes é
repetida na filosofia contemporânea: "Tão logo um conceito é simbolizado para nós, nossa imaginação
reveste-o de uma C. privada e pessoal, que só podemos distinguir por um processo de abstração do
conceito público e comunicável" (SUSAN K. LANGER, Philosophy in a New Key, cap. III).
CONCEPTUAIISMO (in. Conceptualism- fr. Conceptualisme, ai. Conceptualismus; it. Concettualismó). Nome que os historiadores oito-centistas da filosofia medieval deram à corrente da
Escolástica medieval que os escolásticos chamavam de nominalismo (v.); isso para fazer a distinção entre
o nominalismo extremado de Roscelin, para quem o conceito universal é
uma simples vox ou flatus voeis, o nominalismo de Abelardo, para quem o próprio universal é um
discurso {sermó) predicável de muitas coisas, e do nominalismo posterior, que se inspira em Abelardo (v.
NOMINALISMO; UNIVERSAIS).
CONCLUSÃO (lat. Conclusio, in. Conclu-sion; fr. Conclusion; ai. Schluss-, it. Conclusio-nè). Enquanto
em Apuleio e em Boécio conclusio é o termo mediante o qual se designa a totalidade de um discurso
demonstrativo, nos lógicos medievais é usado como tradução do cruLutépaoLia aristotélico e da èmcpopá
estói-ca, isto é, para indicar a proposição final do próprio discurso demonstrativo (cf. PEDRO HISPANO:
"Est enim conclusio argumento vel ar-gumentis approbata propositio"; Summ. log,, 5.02). Na filosofia
moderna e contemporânea, manteve-a o mesmo sentido. Só nos filósofos alemães é que Schluss muitas
vezes é usado para indicar o silogismo todo. G. P.
CONCOMITÂNCIA (in. Concomitance, fr. Concomitance, ai. Konkomitanz-, it. Concomi-tanzd). Um
dos quatro métodos da pesquisa experimental enumerados por Stuart MUI, mais precisamente o das
"variações concomitantes", expresso pela seguinte regra: "Um fenômeno que varie de algum modo toda
vez que outro fenômeno variar de algum modo particular é a causa ou o efeito desse fenômeno, ou está
vinculado a ele por algum fato de causação" {Logic, III, 8, § 6). Mach reduziu a esse método todos os
procedimentos da ciência. "O método das variações consiste em estudar para cada elemento a variação
que se acha ligada à variação de cada um dos outros elementos. Pouco importa se tais variações se
produzam por si ou se nós as provocamos voluntariamente; as relações serão descobertas pela observação
e pela experiência" {Erkenntniss und Irrtum, cap. I; trad. fr., pp. 28-29) (v. CONCORDÂNCIA; DIFERENÇA;
RESÍDUOS).
CONCORDÂNCIA, MÉTODO DA (in. Me-thod of agreement; fr. Méthode de concordan-ce, ai.
Methode der Übereinstimmung, it. Método delia concordanzd). Um dos quatro métodos da pesquisa
experimental enumerados por Stuart MUI, mais precisamente o expresso pela seguinte regra: "Se dois ou
mais casos do fenômeno que se está investigando têm uma única circunstância em comum, a
circunstância única na qual todos os casos concordam é a causa, ou o efeito, do fenômeno dado" {Logic,
III, 8, § 1). Um caso do método da C. é a combinação dele com o de diferença, regido
CONCRECÃO
170
CONDIÇÃO
pela seguinte regra: "Se dois ou mais casos nos quais ocorre o fenômeno têm só uma circunstância em
comum, ao passo que dois ou mais casos nos quais ele não ocorre têm em comum apenas a ausência da
circunstância, a circunstância única na qual os dois conjuntos de casos diferem é o efeito ou a causa ou
uma parte indispensável da causa do fenômeno" Qbid.,
§ 4) (v. CONCOMITÂNCIA; DIFERENÇA; RESÍDUOS).
CONCRECÃO (in. Concretion). Palavra cunhada por Santayana para indicar o crescimento devido à
unificação de muitas coisas. Assim, as C. formadas por associação de semelhança são idéias ou essências
ou "C. de discurso"; ao passo que as C. constituídas pela associação de contigüidade são coisas (Cf.
especialmente Reason in Common Sense, 1905, pp. 161 ss.).
CONCRESCÊNCIA (in. Concrescencé). Whitehead viu na evolução emergente (ou criadora) um
"processo de C." para o qual contribuem igualmente o aspecto físico e o aspecto espiritual,
indissoluvelmente unidos e ambos ativos {Process and Reality, p. 151).
CONCRETO (in. Concrete, fr. Concret; ai. Konkret; it. Concreto). O contrário de abstrato (v.). Os
filósofos designam habitualmente com o termo elogioso de C. aquilo que se insere em seu critério de
realidade. Por isso, nem sempre o C. é o individual, o singular, a coisa ou o ser existente, como se poderia
crer e como talvez indique o uso comum do termo. Para Hegel, o C. é o Universal, a Razão, o Infinito, ao
passo que o abstrato é o indivíduo, o objeto singular, etc. "O abstrato é o finito, o C. é a Verdade, o Objeto
infinito", diz Hegel (Philosopbie der Religion, ed. Glokner, II, p. 226; cf. Geschichte der Philosopbie, ed.
Glockner, I, pp. 52 ss.). Assim, Croce falou de um "universal C." e Gentile, do "pensamento C". Para
Bergson, o C. é a duração real, isto é, a vida da consciência em sua imediação. Pode-se dizer que esse
termo não tem outra função além de qualificar com apreço a realidade, verdadeira ou suposta, que se
deseja privilegiar.
CONCUPISCÊNCIA (lat. Concupiscientia; in. Concupiscence, fr. Concupiscense, ai. Ge-lüste, it.
Concupiscenzd). Segundo S. Tomás (que remete à definição aristotélica do prazer, Ret, I, 11, 1.369 b 33),
é o desejo do prazer (de-lectatió). Pode-se experimentar prazer tanto por um bem espiritual, quanto por
um bem sensível; o primeiro pertence só à alma e o segundo, à alma e ao corpo juntamente: a C. designa
o desejo desta segunda espécie de prazer, isto é, o desejo sensível (5. Tb., II, 1, q. 30, a. 1).
CONCUPISCÍVEL. Uma das partes da alma, segundo Platão (v. FACULDADE).
CONCURSUS DEI. Nos últimos tempos da Escolástica, essa expressão designou a parte devida a Deus
na produção e no comportamento das substâncias finitas. A doutrina dominante na Escolástica, exposta
por S. Tomás, é de que a causa primeira, isto é, Deus, é mais eficiente do que as causas segundas, cujo
poder deriva somente dela (S. Th., II, 1, q. 19, a. 4). Mas na última fase da Escolástica, mais precisamente
no início do séc. XTV, procurou-se limitar o alcance da causalidade divina, para evitar que se atribuíssem
a Deus as imperfeições e os males do mundo. Assim, Durand de St.-Pourçains e Pedro Auréolo
consideravam que o concurso de Deus para com a criatura é apenas geral e mediato; que Deus cria as
substâncias e lhes dá a força de que têm necessidade, mas depois as deixa livres e limita-se a conservá-las
em seu ser, sem ajudá-las em suas ações. Depois de Descartes, tanto os oca-sionalistas quanto Spinoza e
Leibniz voltaram à noção tradicional da inteira e plena causalidade divina no mundo. Leibniz, em
particular, reex-pôs a seu modo a doutrina do concurso divino, distinguindo, além do concurso
extraordinário ou miraculoso, um concurso imediato e um concurso especial: o primeiro consiste no fato
de que o efeito não só depende de Deus, mas também que Deus concorre para produzi-lo tanto quanto a
causa segunda dele; e o segundo dirige-se não só à existência da coisa como também ao seu modo de
existir e às suas qualidades, já que aquilo que há de perfeito na coisa só pode provir de Deus (Op., ed.
Erdmann, p. 653).
CONDIÇÃO (in. Condition; fr. Condition; ai. Bedingung; it. Condizionè). Em geral, o que torna possível
a previsão provável de um evento. Essa noção formou-se na Idade Moderna, inicialmente através da
tentativa de isentar a noção de causa das suas implicações antropo-mórficas, depois pela exigência de
isentá-la de seu caráter necessitante. Claude Bernard, que ainda acreditava no caráter necessitante da
causa (v. CAUSALIDADE), dizia: "A obscura noção de causa deve ser confinada à origem das coisas: só
tem sentido quando se fala da causa primeira ou da causa final. Na ciência, deve ceder lugar à noção de
relação ou de condição" (Leçons sur les phénomènes de Ia vie, II, pp. 396 ss.).
CONDIÇÃO
171
CONDIÇÃO
Por outro lado, Stuart Mill, observando que a sucessão invariável em que consiste a causalidade
raramente se encontra entre um conseqüente e um único antecedente, mas, na maioria das vezes, entre um
conseqüente e a soma de diversos antecedentes, todos necessários "para produzir o conseqüente, isto é,
para serem seguramente seguidos por ele", acrescentava: "Nesses casos é coisa bastante comum pôr em
evidência um só dos antecedentes sob a denominação de causa, chamando os outros apenas de condições
{Logic, III, 10, 3). A C. seria, assim, o que não basta, por si só, para produzir o efeito, ou seja, não garante
a verificação do efeito. Isso corresponde ao uso da palavra C. na expressão conditio sine qua non (de
origem jurídica), em que a C. significa uma cláusula ou ressalva da qual depende toda a validade do ato
jurídico, embora, indubitavelmente, não seja a sua causa. Portanto, a essa palavra está vinculado o
significado de uma limitação de possibilidades, de tal modo que aquilo que esteja fora das possibilidades
assim limitadas elimine ou torne nâo-possível o objeto condicionado. Em relação a esse significado, essa
palavra é empregada por Kant. Embora a obra de Kant tenda a defender o princípio de causalidade
necessária como forma ou estrutura objetiva da natureza, nela se faz uso freqüente da noção de C. com
um significado não pertinente ao de causa, e que Kant não se deteve de propósito para elucidar. O uso
kantiano é indicado por expressões como as seguintes, que se encontram com freqüência em Crítica da
Razão Pura. "C. da possibilidade dos fenômenos", "C. subjetiva da sensibilidade", "C. formal de todos os
fenômenos em geral" (o tempo), "C. subjetivas do pensar" (as categorias), "C. apriori pelas quais é
possível a experiência" (as categorias), etc. Nestas e em expressões semelhantes, o importante é a
conexão entre "C." e "possibilidade". Às vezes Kant diz simplesmente "C"; outras vezes "C. da
possibilidade"; as duas expressões se eqüivalem. Isso significa que, segundo Kant, dizer que "x é a C. de
y" ou dizer que "x torna possível j" éa mesma coisa. O que torna possível uma coisa (p. ex., o
conhecimento, a experiência ou o fenômeno) é a C. dessa coisa. Na obra de Kant, a definição dessa
noção, certamente nunca dada de forma explícita, mas tampouco apenas implícita, constitui o ponto
decisivo de sua elaboração filosófica. Um passo ulterior na mesma direção foi dado por Max Weber, em
sua busca do significado
do princípio de causalidade para as ciências históricas (1905). Embora Weber empregue de preferência a
palavra causa e fale de explicação causai, o que ele diz se refere mais precisamente à noção de C. e serve
para unir essa noção à de "possibilidade objetiva" (v. POSSIBILIDADE), que, segundo ele, é indispensável
ao conhecimento histórico. "O juízo sobre a possibilidade objetiva", diz Weber, "por essência admite
gradações; é possível representar a relação lógica nele implícita com o auxílio dos princípios utilizados na
análise do cálculo das probabilidades. Os componentes causais, a cujo 'possível' efeito se refere o juízo,
podem ser concebidos como isolados em relação a todas as C. que, em geral, podem ser concebidas como
cooperantes com eles. Poder-se-ia perguntar então de que modo esse complexo de C, em conjunto com as
quais os componentes isolados estavam previsivelmente aptos a produzir a conseqüência possível,' se
comporta em relação às outras C. em conjunto com as quais não a teriam 'previsivelmente' produzido"
(Kritische studien aufdem Gebiet Kultur-wissenschaftlichen Logik, 1906; trad. in. em Methodology of
Social Science, pp. 181-82). O que Weber chama aqui "componente causai", que seria conceitualmente
isolado para formular um juízo de possibilidade objetiva, isto é, um juízo sobre o curso que os eventos
poderiam ter tomado se aquele componente causai tivesse intervindo, nada mais é do que uma C. de
possibilidade, no sentido kantiano do termo. Weber acrescenta: "Podemos enunciar juízos geralmente
válidos sobre o fato de que uma maneira de reagir idêntica, em certas características, por parte de pessoas
que enfrentam determinadas situações, é favorecida em grau maior ou menor e podemos estimar o grau
em que certo efeito é favorecido por certas C." (Ibid., p. 183). Nessas palavras exprime-se claramente o
conceito da C. como limitação de possibilidades objetivas e, portanto, como previsibilidade provável do
evento.
Os progressos da física, que marcaram a queda da noção de causa (v. CAUSALIDADE), exigem a
substituição do determinismo causai clássico pelo determinismo condicional. No campo biológico, é fácil
observar que só o conceito de C. é capaz de exprimir as relações funcionais consideradas por essa ciência:
p. ex., entre estímulo e resposta, que hoje não pode mais ser traduzida em termos de causalidade, isto é,
de previsão infalível, podendo ser expressa em ter-
CONDICIONADO
172
CONDICIONAL
mos de condicionalidade, isto é, de previsão provável (v. AÇÃO REFLEXA). Além disso, o conceito de C. é
muito usado em sociologia, em teoria da informação, em cibernética e, em geral, na teoria da organização
dos sistemas, pois permite conciliar a noção de ordem com certo grau de contingência ou de casualidade
nas relações entre os elementos que o compõem. Assim, Wiener escreveu: "Não é possível obter uma
idéia significante de organização num I mundo em que tudo é necessário e nada é contingente" (/ am a Mathematician, Nova York, 1956, p. 322). Nesse aspecto, W. Ross Ashby considerou
essencial a idéia de condicionalidade, segundo a qual no espaço de possibilidades de interação, dado por
um conjunto de elementos, cada organização real dos elementos é forçada a algum subconjunto de
interações. O inverso da organização é a independência dos elementos (em Principies ofSelfOrganization, org. H. von Foerster e G. W. Zopf, Nova York, 1962, p. 217). É essencial certo grau de
liberdade na relação recíproca das partes para qualquer organização ou sistema; e onde não houvesse
escolha entre um conjunto de alternativas tampouco haveria uma organização qualquer (J. ROTHSTEIN,
Communication, Organization and Science, 1958, p. 35). Assim, nas disciplinas mais díspares, o conceito
de C. está tomando o lugar do conceito de causa.
CONDICIONADO (in. Conditioned; fr. Conditionné, ai. Bedingt; it. Condizionató). Aquilo cuja
possibilidade depende de outra coisa. Pavlov deu o nome de reflexo C. ao reflexo produzido por um
estímulo artificial (v. AÇÃO REFLEXA).
Na discussão das antinomias da razão pura, Kant iCrít. R. Pura, Dialética transcendental, cap. II) usou
essa palavra como sinônimo de causado. Hamilton (Lectures on Metaphysics, 1859-1860) entendeu por C.
o relativo; nesse sentido, disse que "pensar é condicionar" porque o que se pensa ou se conhece é aquilo
que existe em relação às faculdades humanas, não absolutamente. Mansel atribui o mesmo significado a
essa palavra (Phil. ofthe Conditioned, 1866).
CONDICIONAL (in. Conditional; fr. Condi-tionnel; ai. Bedingt; it. Condizionalé). Uma relação entre
dois estados de coisas ou duas proposições, indicadas pelos conectivos Se... então. Essa relação foi
estudada pela primeira vez na escola de Mégara e interpretada de dois modos diferentes por Fílon e
Diodoro Cronos. Fílon
afirmava que a relação é verdadeira quando não começa com o verdadeiro e termina com o falso. A
condição apresentada por Diodoro para a validade do C. era, assim, bem mais restrita do que a imposta
por Fílon, já que, para este, uma proposição verdadeira provém de qualquer coisa (inclusive do falso). Por
exemplo, a relação, "Se é noite, é dia", visto ser dia, segundo Fílon é verdadeira porque começa pelo falso
(ou seja, tem antecedente falso) "é noite", mas acaba com o verdadeiro (ou seja, tem o conseqüente
verdadeiro) "é dia". Segundo Diodoro, porém, é falsa porque admite começar pelo verdadeiro, desde que
sobrevenha a noite, e terminar pelo falso "é dia" (SEXTO EMPÍRICO, Adv. math., VIII, 113, 117; CÍCERO,
Acad., IV, 143). Por isso, as interpretações de Fílon e de Diodoro correspondem, respectivamente, ao que
hoje se chama de implicação material e implicação formal (v. IMPLICAÇÃO), já que Fílon interpretava o C.
"se é dia, há luz" como se dissesse "ou não é dia ou há luz" enquanto Diodoro interpretava como se
dissesse "agora é dia, portanto deve haver luz", admitindo uma conexão causai entre o antecedente e o
conseqüente. Na realidade, Fílon admitia uma tábua de verdades idênticas à da implicação material. O C.
é verdadeiro em três casos e falso em um. É verdadeiro se começa com o verdadeiro e termina com o
verdadeiro: "Se é dia, há luz"; é verdadeiro se começa com o falso e termina com o falso: "Se a terra voa,
a terra tem asas"; é verdeiro se começa com o falso e termina com o verdadeiro: "Se a terra voa, a terra
existe". Só é falso quando começa com o verdadeiro e termina com o falso: "Se é dia, é noite", desde que
seja dia. E assim a relação "Se é dia discorro" é verdadeira segundo Fílon, desde que eu discorra, mas
falsa segundo Diodoro. A doutrina de Fílon foi substancialmente aceita pelos estóicos (DIOG. L., VII, 73)
e discutida pela lógica medieval (que utilizou a transcrição feita por Boécio) como doutrina da
conseqüência (v.).
Na lógica moderna, essa doutrina foi retomada por Frege (a partir de Begriffsschrift, 1879) e por Peirce a
partir de 1885; segundo este, a principal vantagem da interpretação de Fílon é permitir expressar da
mesma forma as proposições categóricas e as condicionais. Assim, por exemplo, a proposição "Todo
homem é racional" pode ser expressa do seguinte modo: "Para cada objeto x qualquer, é verdade
CONDILLACISMO 173
CONGRUÊNCIA
que ou x não é um homem ou x é racional" (PEIRCE, Coll. Pap., 3. 439-45).
Hoje, o conceito de C. é, na maioria das vezes, considerado equivalente ao de implicação (v.). Contudo,
Quine propôs uma distinção oportuna entre os dois conceitos: a implicação deveria ser entendida como
relação entre proposições; o C, como relação entre objetos ou estados de fato. Assim, dever-se-ia dizer:
'"Se chove' implica que 'a terra se molha'", enquanto o C. seria "Se chove, a terra se molha" (Methods of
Logic, 1952, § 7).
CONDILIACISMO. V SENSISMO.
CONDUTA (in. Conduct; fr. Conduite, ai. Betragen-, it. Condottd). Toda resposta do organismo vivo a
um estímulo que seja objetivamente observável, ainda que não tenha caráter de uniformidade no sentido
de que varia ou pode variar diante de determinada situação. Por essa falta de uniformidade, a C.
diferencia-se do comportamento (v.) e o uso desse termo é útil porque, de outro modo, não se distingui-ria
do comportamento.
CONECITVOS (in. Connectives-, fr. Connec-tifs; it. Conecttivi). Na lógica contemporânea, esse é o
nome dado aos símbolos impróprios (ou sincategoremáticos [v.]) que, combinados com uma ou mais
constantes, formam ou produzem uma nova constante. As constantes ou formas unidas pelos C. chamamse operan-dos. Um C. chama-se singular, binãrio, terciã-rio, etc, conforme o número dos seus operandos. Os C. são expressos por e, ou, não, se... então. Emprega-se comumente a justaposição dos operandos
para denotar a conjunção: assim "p.q" significa u
p e q". Emprega-se o sinal v para denotar a disjunção
inclusiva: assim "p v q" significa "poxx qou ambos". Emprega-se o sinal + para denotar a disjunção
exclusiva; assim "p+q" significa "poup', mas não ambos". Emprega-se o sinal ~ para indicar a negação:
assim "~p" significa "nãop". Para o C. se... então, v. CONDICIONAL, IMPLICAÇÃO. AS notações citadas são
as mais comuns, mas não as únicas. Para outros sistemas de símbolos, v. as notas ao § 5 de Introduction
to Mathematical Logic, 1959, de CHURCH.
CONFIGURACIONISMO (in. Configura-tionism). O mesmo que Gestaltismo (v. PERCEPÇÃO;
PSICOLOGIA, C).
CONFIRMABIODADE. V. TESTABILIDADE-, VERIFICABILIDADE.
CONFISSÃO (lat. Confessio; in. Confession; fr. Confession; ai. Beichte; it. Confessionè). Essa
palavra significa em geral: reconhecer uma coisa pelo que é (corresponde ao significado do verbo grego
è^O|J.oXo7ETv, usado na tradução grega da Bíblia). É empregada por S. Agostinho tanto para indicar o
reconhecimento de Deus como Deus (da verdade como verdade) quanto para indicar o reconhecimento
dos próprios pecados enquanto tais. S. Agostinho diz: "Ordenas-me louvar-te e confessar-te" dirigindo-se
a Deus (Conf, I, 6, 9-10); e diz também: "Há (a casa de minha alma) coisas que ofendem os teus olhos, eu
confesso e o sei" (Ibid., I, 5, 6). O significado indicado compreende os dois usos do termo distinguidos
pelos estudiosos (cf. M. PELLEGRINO, AS C. de S. Agostinho, Roma, 1956, 9-10). Além disso, permite
explicar: 1Q
a composição de Confissões, que só em parte contêm a exposição das vicissitudes biográficas
de S. Agostinho, mas que a partir do Livro X são puramente teóricas, isto é, dedicadas ao reconhecimento
da Verdade e das dificuldades que se interpõem a esse reconhecimento; 2B
a coincidência da atitude de
quem se confessa, isto é, reconhece em si mesmo a verdade, com a atitude do retorno para si mesmo e do
voltar-se para si mesmo, própria da indagação agostiniana e neoplatônica (v. CONSCIÊNCIA).
CONFIAGRAÇÃO (gr. ÈK7túpomç; lat. Con-flagrazione, in. Conflagration; fr. Conflagra-tion; ai.
Weltbrand; it. Conflagrazioné). Segundo Heráclito (DIOG. L., IX, 1,8) e os estóicos (STOBEO, Ecl, I, 304),
a catástrofe final que fecha um ciclo do mundo com sua destruição total pelo fogo.
CONFLITO (in. Conflict;fr. Conflict; ai. Wie-derstreit; it. Conflittõ). Contradição, oposição ou luta de
princípios, propostas ou atitudes. Kant chamou as antinomias (v.) de "C. de teses". Hume falara de um C.
entre a razão e o instinto: o instinto que leva a crer, a razão que põe em dúvida aquilo em que se crê
{Treatise, I, Introdução).
CONFUSÃO. V. DISTINÇÃO.
CONGRUÊNCIA (lat. Congruentia; in. Con-gruence, fr. Congruence, ai. Übereinstimmung; it.
Congruenzd). Adequação. P. ex., "recompensa côngrua", isto é, adequada ao trabalho ou ao mérito. Em
geometria, a C. é a coincidência das figuras por sobreposição ao mesmo plano. A definição da C. é
fundamental para a escolha da geometria. Reichenbach diz: "A escolha da geometria é arbitrária só
enquanto não se especificou a definição de congruência. Uma
CONGRUÍSMO
174
CONHECIMENTO
vez estabelecida tal definição, torna-se uma questão empírica o problema de saber qual geometria se
adapta ao espaço físico" (cf. A. Einstein-. Philosopher-Scientist, org. por P. A. Schilpp, 1949, p. 295).
Whitehead generalizou esse conceito: "A C", disse ele, "é um exemplo particular do fato fundamental do
reconhecimento na percepção. Nós reconhecemos: não simplesmente no sentido de comparar um fator
natural oferecido pela memória com um fator revelado pela sensação imediata, mas no sentido de que o
reconhecimento ocorre no presente, sem nenhuma intervenção da memória pura" {The Concept 0/Nature,
1920, cap. VI; trad. it., p. 113).
CONGRUÍSMO. É a doutrina contra-refor-mista da graça eficaz, isto é, adequada ao mérito.
CONHECIMENTO (gr. YVÜXTIÇ; lat. Cognitio, in. Knowledge, fr. Connaissance, ai. Erkennt-niss; it.
Conoscenzd). Em geral, uma técnica para a verificação de um objeto qualquer, ou a disponibilidade ou
posse de uma técnica semelhante. Por técnica de verificação deve-se entender qualquer procedimento que
possibilite a descrição, o cálculo ou a previsão controlável de um objeto; e por objeto deve-se entender
qualquer entidade, fato, coisa, realidade ou propriedade. Técnica, nesse sentido, é o uso normal de um
órgão do sentido tanto quanto a operação com instrumentos complicados de cálculo: ambos os
procedimentos permitem verificações controláveis. Não se deve presumir que tais verificações sejam
infalíveis e exaustivas, isto é, que subsista uma técnica de verificação que, uma vez empregada em
relação a um C. x, torne inútil seu emprego ulterior em relação ao mesmo C, sem que este perca algo de
sua validade. A controlabilidade dos procedimentos de verificação, sejam eles grosseiros ou refinados,
significa a repetibilidade de suas aplicações, de modo que um "C" permanece como tal só enquanto
subsistir a possibilidade da verificação. Contudo, as técnicas de verificação podem ter os mais diversos
graus de eficácia e podem, em última instância, ter eficácia mínima ou nula: nesse caso, perdem, de pleno
direito, a qualificação de conhecimento. "O C. de x " significa um procedimento capaz de fornecer
algumas informações controláveis sobre x, isto é, que permita descrevê-lo, calculá-lo ou prevê-lo em
certos limites. A disponibilidade ou a posse de uma técnica cognitiva
designa a participação pessoal dessa técnica. "Conheço x" significa (salvo limitações) que sou capaz de
pôr em prática procedimentos que possibilitem a descrição, o cáculo ou a previsão de x. Portanto o
significado pessoal ou subjetivo de C. deve ser considerado secundário e derivado: o significado primário
é objetivo e impessoal, como acima exposto. Esse significado primário também permite fazer facilmente
a distinção entre crença e C: a crença (v.) é o empenho na verdade de uma noção qualquer ainda que não
verificável; o C. é um procedimento de verificação ou a participação possível em tal procedimento.
Como procedimento de verificação, qualquer operação cognitiva visa a um objeto e tende a instaurar com
ele uma relação da qual venha a emergir uma característica efetiva deste. Portanto, as interpretações do C.
que foram dadas ao longo da história da filosofia podem ser consideradas interpretações dessa relação e,
como tal, resumir-se em duas alternativas fundamentais: I
a
essa relação é uma identidade ou semelhança
(entende-se por semelhança uma identidade fraca e parcial) e a operação cognitiva é um procedimento de
identificação com o objetivo ou de reprodução dele; 2a
a relação cognitiva é uma apresentação do objeto e
a operação cognitiva é um procedimento de transcendência.
I
a A primeira interpretação é a mais comum na filosofia ocidental. Pode, por sua vez, ser dividida em duas
fases diferentes: A) na primeira, a identidade ou a semelhança com o objeto é entendida como identidade
ou semelhança dos elementos do C. com os elementos do objeto: p. ex., dos conceitos ou das
representações com as coisas; B) na segunda fase, a identidade ou a semelhança restringe-se à ordem dos
respectivos elementos: nesse caso, a operação de conhecer não consiste em reproduzir o objeto, mas as
relações constitutivas do próprio objeto, isto é, a ordem dos elementos. Na primeira fase, o C. é
considerado itnagemou retrato do objeto; na segunda fase, tem com o objeto a mesma relação que um
mapa tem com a paisagem que representa.
Á) A primeira fase constitui a forma como a doutrina do C. surgiu no mundo antigo, ou seja, como
identificação. Os pré-socráticos exprimiram-se com o princípio de que "o semelhante conhece o
semelhante", pelo qual Empédocles afirmava que conhecemos a terra
CONHECIMENTO
175
CONHECIMENTO
com a terra, a água com a água, etc. (Fr. 105, Diels). Podem ser consideradas variantes desse princípio
tanto a afirmação de Heráclito, "o que se move conhece o que se move" (ARISTÓTELES, De an., I, 2, 405 a
27), quanto a de Ana-xágoras, segundo a qual "a alma conhece o contrário com o contrário" (TEOFR., De
sens., 27). Esta última na realidade parece aludir mais a uma condição do C. — que pressupõe a
diversidade como dirá Aristóteles (De an., II, J, 417 a 16) — do que ao próprio ato cognitivo, como indica
a justificação que lhe é dada: "o semelhante, com efeito, não pode sofrer a ação do semelhante". Mas
foram Platão e Aristóteles que estabeleceram em bases sólidas essa interpretação do conhecimento. O
encontro do semelhante com o semelhante, a homogeneidade, são os conceitos que Platão utiliza para
explicar os processos cognitivos (Tim., 45 c, 90 c-d): conhecer significa tornar o pensante semelhante ao
pensado. Conseqüentemente, os graus de C. modelam-se segundo os graus do ser: não se pode conhecer
com certeza, isto é, com "firmeza" o que não é firme, porque o C. só faz reproduzir o objeto; por isso "o
que é absolutamente é absolutamente cognoscível, enquanto o que não é de nenhum modo de nenhum
modo é cognoscível" (Rep., 47 a). Dessa maneira, Platão estabeleceu a correspondência entre ser e
ciência, que é o C. verdadeiro; entre não ser e ignorância; entre devir, que está entre o ser e o não ser, e
opinião, que está entre o C. e a ignorância. E distinguiu os seguintes graus do C: ls
suposição ou
conjectura, que tem por objeto sombras e imagens das coisas sensíveis; 2a
a opinião acreditada, mas não
verificada, que tem por objeto as coisas naturais, os seres vivos e, em geral, o mundo sensível; 3Q
razão
científica, que procede por via de hipóteses e tem por objeto os entes matemáticos; 4S
inteligência
filosófica, que procede dialeticamente e tem por objeto o mundo do ser (Ibid., VI, 509-10). Cada um
desses graus de C. é a cópia exata do seu respectivo objeto: de modo que não há dúvida de que, para
Platão, conhecer é estabelecer uma relação de identidade com o objeto em cada caso, ou uma relação que
se aproxime o máximo possível da identidade. De forma ainda mais rigorosa esse ponto de vista era
realizado por Aristóteles. Segundo ele, o C. em ato é idêntico ao objeto, se se tratar de C. sensível; é a
própria forma inteligível (ou substância) do objeto, se se tratar de C. intelegível (De an., II, 5, 417 a). Entende-se que a faculdade sensível e o intelecto potencial são simples possibilidades de conhecer, mas
quando essas possibilidades se realizam, a primeira pela ação das coisas externas, a segunda pela ação do
intelecto ativo, identificam-se com os respectivos objetos; p. ex., ouvir um som (sensação em ato)
identifica-se com o próprio som, assim como entender uma substância identifica-se com a própria
substância. Portanto, Aristóteles pode afirmar, em geral, que "a ciência em ato é idêntica ao seu objeto"
(Dean., III, 7, 431 a 1).
Essa doutrina aristotélica pode ser considerada a forma típica da interpretação do C. como identidade com
o objeto. Com exceção dos estóicos, tal interpretação domina o curso ulterior da filosofia grega. Para
Epicuro, o fluxo dos simulacros (eidold) que se destacam das coisas e se imprimem na alma serve
precisamente para garantir a semelhança das imagens com as coisas (Ep. aHerod., 51). E Plotino utiliza o
mesmo conceito para esclarecer a natureza do conhecimento. Tem-se C. quando a parte da alma com que
se conhece unifica-se com o objeto conhecido e forma um todo com ele. Se a alma e esse objeto
permanecem dois, o objeto permanece exterior à própria alma e o conhecimento dele permanece
inoperante. Só a unidade dos dois termos constitui o conhecimento verdadeiro (Enn., III, 8, 6). Na
filosofia cristã, permanece a mesma interpretação, que, aliás, serve de fundamento para as mais
características especulações teológicas e antropológicas. Segundo S. Agostinho, o homem pode conhecer
Deus porquanto ele mesmo é a imagem de Deus. Memória, inteligência e vontade, em sua unidade e
distinção recípocra, reproduzem no homem a trindade divina de Ser, Verdade e Amor (De Trin., X, 18).
Essa noção, com algumas variações secundárias, dominou toda a teologia medieval e também foi o
fundamento da antropologia. Mas dela derivava uma conseqüência importante pelo C. que o homem tem
das coisas inferiores a Deus. O reconhecimento da origem divina dos poderes humanos (enquanto
imagens dos poderes divinos) torna os poderes humanos relativamente independentes dos outros objetos
cognoscíveis e acentua a importância do sujeito cognoscente. Para Aristóteles, a faculdade sensível e o
intelecto potencial nada mais são que seus próprios objetos "em potência": não têm nenhuma
independência em face desse objetos. Mas S. Agostinho afirma, ao contrário, que "todo C. (notitid)
deriva, ao mesmo tempo, do cog-
CONHECIMENTO
176
CONHECIMENTO
noscente e do conhecido" (Jbid., XIX, 12), pondo no mesmo plano o objeto conhecido e o sujeito
eognoscente como condição do conhecimento, S. Tomás, embora sancionando explicitamente o princípio
de que todo C. ocorre per assimilationem {Contra Gent., II, 77) ou perunionem{In Sent., I, 3, D da coisa
conhecida e do objeto cognoscente, afirma que "o objeto conhecido está no cognoscente segundo a
natureza do próprio cognoscente" {De ver., q. 2, a. 1; S. Th., I, q. 83, a. 1); e assim no conhecer o peso do
sujeito vem contrabalançar o peso do objeto. Esse ponto de vista leva a atenuar a tese aristotélica,
segundo a qual o C. em ato é o próprio objeto. S. Tomás, comentando a afirmação aristotélica de que "a
alma são todas as coisas" {De an., III, 8.431 b 20) a atenua no sentido de que a alma não são as coisas,
mas as espécies das coisas. Mas a espécie outra coisa não é senão a forma das coisas. C, portanto, é
abstração: a forma abstraída da matéria individual, o universal abstraído do particular. Assim, para S.
Tomás, a espécie estabelece o limite da identidade entre o cognoscente e o conhecido; mas o conhecer
permanece como identidade. Por sua vez, S. Boaventura, apesar de continuar fiel ao princípio agostiniano
do lumen directivum que o homem haure diretamente de Deus e do qual derivam certeza e verdade,
admite que o material do C. é constituído por espécies que são imagens, similitudes ou "quase-pinturas"
das próprias coisas {In Sent., I, p. 17, a. 1, q. 4). Se, em seu último período, a Escolástica assinala o
predomínio de uma interpretação diferente do conhecer (v. mais adiante), o Renascimento conserva, em
geral, a interpretação do C. como identidade ou semelhança. Nicolau de Cusa diz explicitamente que o
intelecto não entende se não se assimila ao que deve entender {De mente, 3-; De ludo globi, 1; De
venatione sapientiae, 29) e Ficino diz que o C. é a união espiritual com alguma forma espiritual
{Theol.plat., III, 2). Os naturalistas não se exprimem de modo diferente: Bruno retoma o princípio présocrático de que todo semelhante se conhece pelo semelhante e Campanella afirma: "nós conhecemos o
que é porque nos tornamos semelhantes a ele" {Mel, I, 4, 1). O pitagorismo dos fundadores da nova
ciência, Leonardo, Copérnico, Kepler, Ga-lilei, tem pressuposto análogo: o procedimento matemático da
ciência justifica-se porque a própria natureza tem estrutura matemática: no sentido de que, como diz
Galilei, os caracteres em
que está escrito o livro da natureza são triângulos, círculos, etc. {Opere, VI, pág, 232).
Na filosofia moderna, a doutrina de que conhecer é uma operação de identificação assume três formas
principais, segundo se considere que essa operação é realizada mediante: d) a criação que o sujeito faz do
objeto; b) a consciência; c) a linguagem.
d) O idealismo romântico e as suas ramificações contemporâneas afirmaram a tese de que conhecer
significa pôr, isto é, produzir ou criar, o objeto: tese que permite reconhecer no próprio objeto a
manifestação ou a atividade do sujeito. Essa tese foi afirmada em primeiro lugar por Fichte. "A
representação em geral", disse ele, "é irreputavelmente um efeito do Não-eu. Mas no Eu não pode haver
absolutamente nada que seja um efeito; porque o Eu é aquilo que ele se põe e nada há nele que não seja
posto por ele mesmo. Portanto, o próprio Não-eu deve ser efeito do Eu, aliás do Eu absoluto, e assim não
temos uma ação sobre o Eu vinda de fora, mas uma ação do eu sobre si mesmo" {Wissenschaftslehre,
1794, III, § 5, 1). Desse ponto de vista, o Não-eu, isto é, o objeto, não é senão o próprio Eu, isto é, o
sujeito: a identidade com o objeto é, assim, garantida pela própria definição de conhecimento. Esta,
obviamente, é uma definição arbitrária que não tem efeitos sobre o êxito ou o malogro dos atos efetivos
de C. e não servem, por isso, nem para dirigir nem para esclarecer esses atos. Contudo, o princípio
afirmado por Fichte foi um dos que constituíram os pilares do movimento romântico (v. ROMANTISMO); e
aí tem origem um dos lugares-comuns mais perniciosos e enfadonhos, o do "poder criativo do espírito".
Schelling só fazia esclarecer seu significado quando afirmava: "No próprio fato do saber — quando eu sei
— o objetivo e o subjetivo estão tão unidos que não se pode dizer a qual dos dois cabe a prioridade. Não
há aí um primeiro e um segundo: ambos são contemporâneos e constituem um todo único {System des
transzendentalen Idealismus, Intr., §1). O conceito do conhecer como processo de unificação domina toda
a filosofia de Hegel. A protagonista dessa filosofia, a Idéia, é a consciência que se realiza, gradual e
necessariamente, como unidade com o objeto. Diz Hegel: "A Idéia é, em primeiro lugar, um dos extremos
de um silogismo, porquanto é o conceito que tem como fim, acima de tudo, a si mesmo como realidade
subjetiva. O outro extremo é o limite do subjetivo, o mundo obje-
CONHECIMENTO
177
CONHECIMENTO
tivo. Os dois extremos são idênticos no ser Idéia. Sua unidade é, em primeiro lugar, a do conceito, que
num deles é somente por si e, no outro, somente em si; em segundo lugar, a realidade é abstrata num
deles, ao passo que no outro está em sua exterioridade completa. Essa unidade coloca-se por meio do
conhecer" {Wissenchft der Logik, III, cap. II; trad. it., p. 282). Assim, conhecer é o processo que unifica o
mundo subjetivo com o mundo objetivo, ou melhor, que leva à consciência a unidade necessária de
ambos. Todas as formas do idealismo contemporâneo atêm-se a essa doutrina. Croce a introduz chamando
o conceito de "concreto": e por esse caráter dever-se-ia excluir que ele seja "universal e vazio", "universal
e inexistente" e admitir que ele compreende em si "o ato lógico universal" e o "pensamento da realidade",
que é a própria realidade {Lógica, 4
a
ed., 1920, p. 29). Gentile afirmava: "Conhecer é identificar, superar
a alteridade enquanto tal" {Teoria generale dello spirito, 2, $ 4). Por sua vez Bradley, mais criticamente,
considerava essa identificação como um ideal-limite irrealizável em nós, mas realizado na Consciência
absoluta, na qual C. e ser, verdade e realidade, coincidem {Appearance and Rea-Hty, p. 181).
b) O espiritualismo moderno, em todas as suas manifestações, considera o conhecer como uma relação
interna da consciência consigo mesma. Essa interpretação garante a identidade do conhecer com o objeto,
já que desse ponto de vista o objeto não é senão a própria consciência ou, pelo menos, um produto seu
ou / uma manifestação sua. Schopenhauer assim exprimia essa doutrina: "Ninguém nunca pode sair de si
para identificar-se imediatamente com coisas diferentes de si: tudo aquilo de que alguém tem C. seguro,
portanto imediato, encontra-se dentro da sua consciência" {Die Welt, D, cap. I). Consciência, sentido
íntimo, intros-pecção, intuição são os termos que, a partir do Romantismo, a filosofia moderna emprega
para indicar o C. caracterizado pela identidade com seu objeto, por isso privilegiado na sua certeza. A
consideração básica é que, se o sujeito não pode conhecer o que é diferente dele, o único í C. verdadeiro e
originário é o que ele tem de si mesmo. Com base nisso, Maine de Biran via no "sentido íntimo" o único
C. possível e interpretava os seus testemunhos como verdades metafísicas {Essais sur les fondements de
Ia psychologie, 1812). Outras vezes, a consciência,
também chamada de intuição, é interpretada como a revelação que Deus faz ao homem de um atributo
fundamental seu (p. ex., do ser, como afirma ROSMINI, Nuovo saggio, § 473) ou do seu próprio processo
criativo, como faz GIOBERTI {Intr. alio studio deliafil., II, p. 183). De modo análogo, a intuição de que
fala Bergson "como visão direta do espírito pelo espírito" {La pensée et le mouvant, p. 37) é um
procedimento privilegiado de C, no qual o ter: mo objetivo é idêntico a subjetivo. E quando Husserl quis
esclarecer o modo de ser privilegiado da consciência chamou de "percepção imanente" a percepção que a
consciência tem das próprias experiências vividas: porque o objeto dela pertence à mesma corrente de
consciência a que pertence a percepção (Ideen, I, § 38). Com base nisso, Husserl considera a percepção
imanente, isto é, a consciência como absoluta e necessária: nela "não há lugar para discordância,
aparência, possibilidade de ser outra coisa. Ela é uma esfera de posição absoluta" {Ibid., § 46). A
exemplificação dada até aqui pode bastar para esse ponto de vista, que tem grande difusão na filosofia
contemporânea e, apesar da variedade das suas expressões, é muito uniforme.
c) Paradoxalmente o positivismo lógico transportou para a linguagem, em que vê a operação cognitiva
propriamente dita, a doutrina do caráter identificador dessa operação. Wittgenstein afirma que "a
proposição pode ser verdadeira ou falsa enquanto é uma imagem {Bild) da realidade" {Tractatus, 4.06). E
prova que a proposição é uma imagem da realidade do seguinte modo: "Só conhecerei a situação por ela
representada se compreender a proposição. E compreendo a proposição sem que o seu sentido me seja
explicado" {Ibid., 4.021).
À primeira vista, acrescenta ele, "não parece que a proposição, p. ex. do modo como está impressa no
papel, seja uma imagem da realidade de que trata. Mas, à primeira vista, nem a notação musical parece
ser imagem da música, assim como nossa escrita fonética (com letras) não parece ser a imagem de nossa
língua falada. No entanto, esses símbolos demonstram ser, até no sentido comum do termo, imagens do
que representam" {Ibid., 4.011). A insistência na noção da imagem indica claramente que Wittgenstein
compartilha a velha interpretação do conhecer como operação de identificação. E de fato diz: "Deve haver
algo de idêntico na imagem e no objeto representado para que
CONHECIMENTO
178
CONHECIMENTO
aquela possa ser a imagem deste" (Ibid., 2.161). Mas esse algo é "a forma de figuração" (Jbid., 2.17). E a
forma de figuração é a "possibilidade de que as coisas estejam uma em relação à outra assim como os
elementos da imagem estão entre si" (Jbid., 2.151). O que parece remeter à interpretação B da relação
identificadora. B) A segunda fase da doutrina do C. como identificação nasce com a filosofia moderna,
mais precisamente com Descartes. O princípio cartesiano de que a idéia é o único objeto imediato do C, e
que, por isso, a existência da idéia no pensamento nada diz sobre a existência do objeto representado,
obviamente punha em crise a doutrina do conhecer como identificação com o objeto: nesse caso, o objeto
é claramente inalcançável. Descartes continuara a conceber a idéia como "quadro" ou "imagem" da coisa
(Méd., III, mas nele já aparece a tendência (cf. Regulae, V) de ver no C, mais do que a assimilação ou a
identidade da idéia com o objeto conhecido, a assimilação e a identidade da ordem das idéias com a
ordem dos objetos conhecidos. Malebranche, que admite que o homem vê diretamente em Deus as idéias
das coisas e, por isso, considera muito problemática a realidade das coisas, admite, todavia, essa realidade
como fundamento da ordem e da sucessão das idéias no homem; ordem e sucessão não teriam sentido,
pensa ele, se não coincidissem com a ordem e a sucessão das coisas a que se referem as idéias (Entretien
sur Ia métaphysique, I, 6-7). Spinoza, que admite três gêneros de C. (percepção sensível e imaginação;
razão com suas noções comuns e universais; a ciência intuitiva), considera que só os dois últimos
permitem distinguir o verdadeiro do falso, porque tiram a idéia do seu isolamento e a vinculam às outras
idéias, situando-a na ordem necessária que é a própria Substância divina (Et., II, 44). Locke, que define o
C. como "a percepção do acordo e da ligação, ou do desacordo e do contraste das idéias entre si" (Ensaio,
IV, 1, 2), exige, para que ele seja real, que "as idéias correspondam aos seus arquétipos" (Ibid., IV, 4, 8) e
por isso define a verdade como "a união ou a separação de signos, conforme as coisas significadas por
elas concordem ou discordem entre si" (Ibid., IV, 5, 2). Locke considera que essa referência a objetos
reais não é indispensável ao C. matemático e ao moral, mas que é indispensável ao "C. real", que tem por
objeto substâncias (Ibid., IV, 4, 12). Para Leibniz, ao lado do C. apriori, fundado em princípios constitutivos de intelecto, há um C. representativo que consiste na semelhança entre as
representações e a coisa (Nouv. ess., IV, 1, 1). Mas um e outro C. fazem da alma "um espelho vivo e
perpétuo do universo", porque ambos se baseiam na ligação que todas as coisas criadas têm entre si, de tal
modo que "cada substância simples tem relações que exprimem todas as outras relações" (Monad., 56).
Em todas essas observações, embora não se negue o caráter de semelhança ou de imagem dos elementos
cognitivos, o C. é entendido propriamente como identidade com a ordem objetiva. Seu objeto é
propriamente essa ordem e o conhecer é a operação que tende a identificar ou a identificar-se com ele, e
não com os elementos singulares entre os quais intercede. A propósito, a "revolução coperni-cana" de
Kant não consiste em inovar radicalmente esse conceito de C, mas em admitir que a ordem objetiva das
coisas tem como modelo as condições do C, e não vice-versa. As categorias são, na verdade, consideradas
por Kant como "conceitos que prescrevem leis apriori aos fenômenos e, portanto, à natureza como
conjunto de todos os fenômenos" (Crít. R. Pura, § 26). Os fenômenos, não sendo "coisas entre si
mesmas", mas "representações de coisas", para tanto precisam, ser pensados e, assim, estar submetidos às
condições do pensamento que são as categorias. Para Kant, a ordem objetiva da natureza, portanto, outra
coisa não é senão a ordem dos procedimentos formais do conhecer, na medida em que essa ordem se
incorporou em um conteúdo objetivo, que é o material sensível da intuição. Desse ponto de vista,
conhecer nào é uma operação de assimilação ou de identificação, mas de síntese; e como tal deve ser
considerada sob outro aspecto, do C. como transcendência. Pode-se considerar que essa fase da doutrina
do C. co-' mo assimilação, segundo a qual o objeto da assimilação é a ordem, situa-se entre a primeira e a
segunda interpretação principal do conhecer, ou seja, entre a interpretação do conhecer como assimilação
e a interpretação do conhecer como transcendência.
2
a
Para a segunda interpretação fundamental, o C. é uma operação de transcendência. Segundo essa
doutrina, conhecer significa virá presença do objeto, apontá-lo ou, com o termo preferido pela filosofia
contemporânea, trans* cenderem sua direção. O C. é então a operação em virtude da qual o próprio objeto
está
CONHECIMENTO 179
CONHECIMENTO
presente: ou presente, por assim dizer, em pessoa, ou presente em um signo que o torne tastreável,
descritível ou previsível. Essa interpretação não se funda em nenhum pressuposto de caráter assimilador
ou identificador: para ela, os procedimentos do conhecer não visam converter-se no próprio objeto do
conhecer, mas a tornar presente esse objeto como tal ou a estabelecer as condições que possibilitam sua
presença, isto é, permitem prevê-la. A presença do objeto ou a predição dessa presença constitui a função
efetiva do C., segundo essa interpretação.
É nos estóicos que essa interpretação aparece pela primeira vez. Eles chamavam de evidentes as coisas
que "vêm por si mesmas ao nosso C." como p. ex. ser dia; e chamavam de "obscuras" as coisas que
costumam escapar ao C. humano. Entre estas últimas, distinguiram as obscuras por natureza, que nunca se
nos tomam evidentes, e as obscuras momentaneamente, mas evidentes por natureza (p. ex., a cidade de
Atenas para quem mora nela). Estas duas últimas espécies de coisas são compreendidas por meio de
signos ou sinais: indicativos para as coisas obscuras por natureza (como, p. ex., o suor é assumido como
sinal dos poros invisíveis) e rememorativos para as coisas evidentes por natureza, mas momentaneamente
obscuras (assim como a fumaça é um sinal de fogo) (SEXTO EMPÍRICO, Adv. dogm., II, 141; Pirr. hyp., II,
97-102). São reconhecíveis, nessa empostação, duas teses fundamentais: I
a
o C. evidente consiste na
presença da coisa, pela qual a coisa "se manifesta por si" ou "se compreende por si", isto é, compreendese como coisa, portanto como diferente daquele que a compreende; 2- o C. não evidente ocorre por meio
de signos ou sinais que remetem à própria coisa sem que tenham qualquer identidade ou semelhança com
ela.
Essa doutrina dos estóicos ficou esquecida durante muitos séculos, negligenciada, como possibilidade
pela história da filosofia. Reaparece somente na Escolástica do séc. XIV, com os pensadores que criticam
a doutrina da spe-cies como intermediária do conhecimento. A species, como se viu, é uma tese típica da
doutrina da assimilação: na verdade é, ao mesmo tempo, ato do C. e o ato do objeto (como forma ou
substância deste último). Mas Duns Scot dis-tinguiria um C. "que abstrai da existência atual da coisa",
dando-lhe o nome de "abstrativo"', e um "C. da coisa enquanto existente e presente
em sua existência atual", dando-lhe o nome de intuitivo (Op. Ox., II, d. 3, q. 9, n. 6). Ora, o C. intuitivo
(que, por um lado, é conhecimento sensível e, por outro, é conhecimento intelectual, que tem por objeto a
substância ou natureza comum, p. ex., a natureza humana) não tem necessidade de espécies, porque nele
está diretamente presente a coisa em pessoa. Só o C. abstrativo, isto é, o C. intelectual do universal, tem
necessidade de espécies (Ibid., I, d. 3, q. 7, n. 2). É a essa doutrina que a Escolástica do séc. XVI faz
referência. Durand de St.-Pourçains afirma que a espécie é inútil porque o próprio objeto está presente ao
sentido, e, através do sentido, também ao intelecto (In Sent., II, d. 3, q. 6, n. 10); portanto, o C. universal é
somente C. confuso, pois quem tem o C. universal — p. ex., da rosa — conhece confu-sarnente o que é
intuído distintamente por quem vê a rosa que lhe está presente (Ibid., IV, d. 49, q. 2, 8). Para Pedro
Auréolo, o objeto do C. é a própria coisa externa que, graças ao intelecto, assume um ser intencional ou
objetivo que não é diferente da realidade individual da coisa (In Sent., I, d. 9, a. 1). Ockham, por sua vez,
transforma a teoria scotista do C. intuitivo em teoria da experiência e afirma a presença imediata da coisa
ao C. intuitivo. "Em nenhum C. intuitivo, sensível ou intelectivo", diz ele, "a coisa se constitui em ser
intermediário entre a própria coisa e o ato de conhecer; mas a coisa mesma, imediatamente e sem
intermediário entre ela e o ato, é vista e apreendida" (In Sent, I, d. 27. q. 3, I). O C. intuitivo perfeito, que
tem por objeto uma realidade atual ou presente, é a experiência (Ibid., II, q. 15, H); o imperfeito, que
concerne a um objeto passado, deriva sempre de uma experiência (Ibid., IV, q. 12, Q). Por sua vez, o C.
abstrativo, que prescinde da realidade ou da irrealidade do objeto, deriva do intuitivo e é uma intentioou
signum. Ockham reproduz assim a interpretação dos estóicos: quando a realidade não está presente ao C.
"em pessoa", anuncia-se ou manifesta-se no signo ou sinal. A validade do signo conceituai, que, ao
contrário do lingüístico, não é arbitrário ou convencional, mas natural, provém do fato de ser produzido
naturalmente, isto é, casualmente, pelo próprio objeto, de tal modo que sua capacidade de representar o
objeto nada mais é que essa conexão causai com ele (Quodl, IV, q. 3). Para ilustrar a função lógica do
signo, ou sinal, Ockham utiliza o conceito da supositio, que fora elaborado pela lógi-
CONHECIMENTO
180
CONHECIMENTO
ca do séc. XIII (V. SIGNO, SUPOSIÇÃO). NO séc. XVII, os pontos básicos dessa doutrina foram
reproduzidos por Hobbes, para quem a sensação, que é o fundamento de todo C, é o manifestar-se da
coisa através do movimento que ela imprime ao órgão do sentido {Leviath., 1,1; De corp., 25 § 2).
Berkeley substituía a causalidade da coisa externa, à qual esses filósofos atribuíam o C, pela causalidade
de Deus: teoria segundo a qual as coisas conhecidas são sinais pelos quais Deus fala aos sentidos ou à
inteligência do homem para instruí-lo sobre o que deve fazer {Principies of Knowledge, §§ 108-09) é uma
transição teológica dessa doutrina do conhecimento. Entrementes, com o cartesianismo e especialmente
com Locke, iam-se formando conceitos do C. como operação unificadora: unificadora de idéias, isto é, de
estados interiores à consciência, mas cuja interligação corresponde ou deve corresponder à das coisas (v.
I
a B). Eliminada por Berkeley a substância material e por Hume toda espécie de substância, a ligação
entre as idéias vinha exaurir a função da atividade cognoscitiva. Assim, Hume considera que toda
operação cognoscitiva é uma operação de conexão entre as idéias; operação de conexão é o raciocínio
pelo qual se mostra a ligação que as idéias têm entre si, independentemente de sua existência real;
operação de conexão entre as idéias é o C. da realidade de fato. No primeiro caso, a conexão é certa
porque não depende de nenhuma condição de fato; no segundo caso baseia-se na relação de causalidade.
Mas essa mesma relação não tem outro fundamento além da repetição de certa sucessão de
acontecimentos e o hábito que essa repetição determina no homem (lnq. Cone. Underst., IV, 1).
Esse conceito do C. como operação de conexão ou de interligação, que nada tem a ver com a
identificação ou a assimilação com o objeto, é chamado por Kant de operação de síntese. A síntese é, em
geral, "o ato de reunir diferentes representações e compreender sua multiplicidade em um C." (Crít. R.
Pura, § 10). Mas, para Kant, a síntese cognitiva não é somente uma operação de ligação entre
representações: é também uma operação de ligação dessas representações com o objeto por meio da
intuição. "Se um C. deve ter uma realidade objetiva", diz Kant, "isto é, referir-se a um objeto e nele ter
significado e sentido, o objeto deve poder ser dado de um modo qualquer. Sem isso, os conceitos são
vazios e, se com eles
se pensar, esse pensamento nada conhecerá, mas só estará brincando com as representações. Dar um
objeto — que não deva ser opinado indiretamente, mas representado imediatamente na intuição — nada
mais é que ligar sua representação com a experiência (seja esta real ou possível)" {Ibid., Analítica dos
princípios, cap. II. seç. II). Pensar um objeto e conhecer um objeto não são, pois, a mesma coisa. "O C.
compreende dois pontos: em primeiro lugar, um conceito pelo qual um objeto em geral é pensado (a
categoria) e, em segundo lugar, a intuição com que ele é dado" {Ibid., § 22). A intuição tem o privilégio
de referir-se imediatamente ao objeto e de, por meio dela, o objeto ser dado {Jbid., § 1). Por isso, não há
dúvida de que a operação de conhecer tende a tornar o objeto presente em sua realidade: um objeto,
entenda-se, que é fenômeno, já que a "coisa em si", por definição, é estranha a qualquer relação cognitiva.
O conceito de C. — isento da limitação relativista sugerida a Kant e a toda filosofia iluminista pela
colocação de Descartes e Locke —, mas como operação de referir-se ou relacionar-se com o objeto e,
portanto, também como processo pelo qual o objeto se oferece ou se apresenta em pessoa, foi adotado
pela fenomenologia contemporânea e pelas suas diversas correntes. "A cada ciência", diz Husserl,
"corresponde um campo objetivo como domínio das suas indagações; a todos os seus C, isto é, aos seus
enunciados corretos, correspondem determinadas intuições que constituem o fundamento de sua
legitimidade, porquanto nelas os objetos do campo se dão em pessoa e, ao menos parcialmente, como
originários" {Idem, I, § 1). Assim, a experiência, que abrange todo o C. natural, é uma operação intuitiva
através da qual um objeto específico, a coisa, é dada na sua realidade originária. Nesse sentido, a
experiência é um atofundante, não substituível por um simples imaginar. Por outra lado, o C. geométrico,
que não investiga realidades mas possibilidades ideais, tem como ato fundante a visão da essência: essa
visão, exatamente como a percepção empírica, torna atual e apresenta um objeto em pessoa: este, porém,
não é a coisa da experiência, mas a essência' -{Ibid., § 8). Considerando o C. de um ponto de vista mais
geral, pode-se dizer que "toda espécie de ser tem por essência seus modos de dar-se e, portanto, seu
método de C." {Ibid., § 79); e a pesquisa fenomenológica é, no projeto de
CONHECIMENTO
181
CONHECIMENTO
Husserl, a análise desse modos de ser como "modos de dar-se". Analogamente, para N. Hartmann o
conhecimento é um processo de transcendência cujo termo é o ser "em si" (Metaphysik der Erkenntnis,
1921, 4- ed., 1949, pp. 43 e ss.). Segundo essa análise, deixou de ter sentido contrapor atividade e
passividade no conhecimento (contraposição que, nascida de Kant, fora assumida como motivo polêmico
pelo Romantismo a partir Fichte). Não cabe mais distinguir no conhecimento o aspecto ativo, que Kant
chamava de "espontaneidade intelectual", do aspecto passivo, que para Kant era a sensibilidade. Não se
trata nem mesmo de reduzir todo o C. à atividade do eu, como fizera Fichte e, com ele, toda a filosofia
romântica, que considerou essa atividade "infinita", isto é, sem limites (e por isso criadora), e como tal a
exaltou. Hoje, parece fictício até mesmo a perspectiva histórica que prevaleceu no Romantismo e que
opunha a concepção "clássica" (antiga e medieval), para a qual a operação de conhecer seria dominada
pelo objeto diante do qual o sujeito é passivo, concepção moderna ou romântica, para a qual o C. seria
atividade do sujeito e manifestação de seu poder criador. Trata-se, realmente, de uma perspectiva típica do
Romantismo e de uma oposição teórica, que serviu a fins polêmicos. Nem a filosofia antiga nem as
modernas concepções objetivistas pretendem estabelecer ou pressupõem a "passividade" do sujeito
cognoscente. Ao sujeito cognoscente pertence com certeza a iniciativa do conhecer, aliás, é justamente
essa iniciativa que define a sua subjetividade. Mas isso não implica nem atividade nem passividade no
sentido estabelecido por Fichte. A iniciativa do sujeito visa tornar o objeto presente ou manifesto, para
tornar evidente a própria realidade, para manifestar os fatos. Aquilo que se chama abreviadamente
conhecer é um conjunto de operações, às vezes muito diferentes entre si, que, em campos diversos, visam
a fazer emergir, em suas características próprias, certos objetos específicos. Desse ponto de vista, o
"problema do C", tal como se configurou na segunda metade do séc. XIX, como colocação romântica ou
polêmica contra ela, como problema de atividade ou passividade do espírito ou de sua "categoria eterna",
que seria a atividade teorética, é um problema que se desfez sob a ação da fenomenologia, por um lado, e
da filosofia da ciência e do pragmatismo, por outro. No âmbito da fenomenologia, Heidegger fala de uma
anulação do problema do conhecimento. O conhecer não pode ser entendido como aquilo pelo que o seraí (isto é, o homem) "vai de dentro para fora de sua esfera interior, esfera na qual estaria, anteriormente,
encapsulado: ao contrário, o ser-aí, em conformidade com seu modo de ser fundamental, já está sempre
fora, junto ao ente que lhe vem ao encontro no mundo já descoberto" (Sem undZeit, § 13). Segundo
Heidegger, conhecer é um modo de ser do ser-no-mundo, isto é, do transcender do sujeito para o mundo.
Ele nunca é apenas um ver ou um contemplar. Diz Heidegger: "O ser no mundo, enquanto ocupar-se, é
tomado e obnu-bilado pelo mundo com que se ocupa" (Ibid., § 13). O conhecer é, em primeiro lugar, a
abstenção do ocupar-se, isto é, das atividades comuns da via cotidiana, como manusear, comerciar, etc.
Essa abstenção possibilita o simples "observar, que é, de quando em quando, o deter-se junto a um ente,
cujo ser é caracterizado pelo fato de estar presente, de estar aqui". Nessa abstenção de todo comércio e
utilização, realiza-se a percepção da simples presença. O perceber concretiza-se nas formas de interpelar e
discutir algo como algo. Com base nessa interpretação, entendida em sentido amplo, a percepção se torna
determinação. O percebido ou o determinado pode ser expresso em proposições, bem como manter-se e
preservar-se nessa qualidade de proposto. A retenção percep-tiva de uma proposição sobre... já é, em si
mesma, uma maneira de ser no mundo e não pode ser interpretada como um processo em virtude do qual
um sujeito receberia imagens de algo, imagens que seriam, em conseqüência, experimentadas como
"internas", de tal sorte que suscitariam o problema de sua concordância com a realidade "externa" {Ibid.,
§ 13). O "problema do C." e o "problema da realidade" (v. REALIDADE), do modo formulado pela filosofia
do séc. XIX, são, pois, eliminados por Heidegger. Todas as manifestações ou graus do conhecer (observar,
perceber, determinar, interpretar, discutir, negar e afirmar) pressupõem a relação do homem com o mundo
e só são possíveis com base nessa relação.
Essa convicção hoje é compartilhada por filósofos de procedência diferente, ainda que muitas vezes sob
terminologias diversas. O fundamento que a sugere é sempre o mesmo: o abandono do pressuposto de
que os "estados internos" (idéias, representações, etc.) são os objetos primários de conhecimento, e que só
a
CONHECIMENTO
182
CONHECIMENTO
partir deles podem (se é que podem) ser inferidos objetos de outra natureza. A renúncia a esse pressuposto
está explícita, p. ex., no pragmatismo de Dewey, para quem o C. é simplesmente o resultado de uma
operação de investigação ou, mais precisamente, é a asserção válida em que tal operação desemboca.
Desse ponto de vista, o objeto do C. não é uma entidade externa a ser alcançada ou inferida, mas é "o
grupo de distinções ou características conexas que emerge como constituinte definido de uma situação
resolvida e é confirmado na continuação da investigação" {Logic, cap. XXV, II; trad. it., p. 666). Visto
que, freqüentemente, são usados em certa investigação objetos constituídos em investigações precedentes,
estes últimos às vezes são entendidos como objetos existentes ou reais, independentemente da própria
investigação. Na realidade, são independentes da investigação em que ora entram, mas são objetos só em
virtude de uma outra investigação de que resultam. No entanto, segundo Dewey, esse simples equívoco é
a base da concepção "representativa" do conhecimento. "O ato de referir-se a um objeto, que é um objeto
conhecido só em virtude de operações totalmente independentes do próprio ato de referência, é
considerado, para fins de uma teoria do C, como constituinte por si mesmo de um caso de C.
representativo" {Logic, p. 667).
Essas idéias influenciaram e continuaram influenciando poderosamente a filosofia contemporânea e são a
base da dissolução do problema do C, que é uma de suas características. A dissolução desse problema
favoreceu a lógica por um lado, e a metodologia das ciências, por outro. Esta última, especialmente, é a
herdeira contemporânea de tudo o que ficou de válido em problemas que eram habitualmente tratados
pela teoria do conhecimento. A característica fundamental do objeto da metodologia das ciências hoje é o
caráter operacional e an-tecipatório dos seus procedimentos. Aqui aludiremos às primeiras identificações
históricas desses caracteres, remetendo seu estudo mais detalhado ao verbete METODOLOGIA. São
reconhecidos pela ciência só na medida em que o objetivo fundamental desta não é a descrição, mas a
previsão. Esse objetivo fora atribuído à ciência por F. Bacon; na filosofia moderna, é reafirmado por
Auguste Comte. Mas só mais tarde os próprios cientistas o reconheceram e o assumiram explicitamente.
Isso começou a ocorrer quando Mach retomou a tese de que o
objeto do C. é um grupo de sensações. "Uma cor", diz Mach, "é um objeto físico enquanto consideramos,
p. ex., sua dependência das fontes de luz (outras cores, calor, espaço, etc); mas se a consideramos em sua
dependência da retina, é um objeto psicológico, uma sensação. Nos dois campos, a diferença não está na
substância, mas na direção da investigação" {Ana-lyse der Empfindungen, 1900; 9a
ed., 1922, p. 14). Sob
esse prisma, não são os corpos que geram as sensações, mas são os complexos de sensações que formam
os corpos; estes não são mais do que símbolos para indicar tais complexos. Com isso, pode parecer que
Mach se inclina para a teoria representativa do conhecimento. Mas, na realidade em sua teoria do
conceito, é claramente reconhecido o caráter operacional do C. O conceito científico, segundo Mach, é
um signo que resume as reações possíveis do organismo humano a um complexo de fatos. Uma lei
natural, p. ex., é uma restrição das possibilidades de expectação, isto é, uma determinação da previsão
{Erkenntniss undlrrtum, 1905, cap. XXIII). Os mesmos conceitos haviam sido apresentados por Hertz em
Princípios da mecânica (1894), embora sem o abandono total da concepção pictórica do conhecimento.
"O problema mais direto e, em certo sentido, o mais importante que o nosso C. da natureza deve
capacitar-nos a resolver", dizia Hertz, "é a antecipação dos acontecimentos futuros, de tal modo que
possamos dispor as nossas atividades presentes de acordo com essa antecipação. Como base para a
solução desse problema, utilizamos o C. dos acontecimentos já ocorridos, que foi obtido pela observação
causai e pelo experimento preordenado. Ao fazermos inferências a partir do passado para o futuro
adotamos constantemente o seguinte procedimento: formamos imagens ou símbolos dos objetos externos
e a forma que damos a tais símbolos é tal que as conseqüências necessárias da imagem pensada são
sempre as imagens das conseqüências na natureza das coisas representadas" (Prinzipien derMe-chanik,
Intr.). O desenvolvimento posterior da ciência eliminou os resíduos de concepção representativa que ainda
permaneciam nas doutrinas de Mach e de Hertz. Em 1930, um dos fundadores da mecânica quântica,
Dirac, já po- ' dia afirmar: "O único objeto da física teórica é calcular resultados que possam ser
confrontados com experimentos e é absolutamente su-< pérfluo dar uma descrição satisfatória de todo o *
CONHECIMENTO, TEORIA DO
183
CONHECIMENTO DE SI
desenvolvimento do fenômeno" (ThePrincipies of Quantum Mechanics, 1930, p. 7). Nesse ponto, a teoria
do C. resolveu-se completamente na metodologia das ciências. Isso significa que, enquanto o problema do
conhecimento como problema de um objeto "externo" a ser alcançado a partir de algum dado "interno" foi
desaparecendo, propôs-se em seu lugar o problema da validade dos procedimentos efetivos, voltados para
a verificação e o controle dos objetos nos diferentes campos de investigação.
CONHECIMENTO, TEORIA DO (in Epis-temology, rar. Gnoseology, fr. Gnoséologie, rar.
Épistemologie, ai. Erkenntnistheorie, rar. Gnoséologie, it. Toeria delia conoscenza, gnoseo-logia [muito
usado], epistemologia [menos usado]). Em italiano, o termo mais usado é gnoseologia. Em alemão, o
termo Gnoséologie, cunhado pelo wolffiano Baumgarten, teve pouco sucesso, ao passo que o termo
Erkenntnistheorie, empregado pelo kantiano Reinhold (Versuch einer neuen Theorie des mensch-lichen
Vorstellungsvermõgens, 1789) foi comu-mente aceito. Em inglês, o termo Epistemology foi introduzido
por J. F. Ferrier (Institutes of Metaphysics, 1854) e é o único empregado co-mumente; Gnoseology é bem
raro. Em francês, emprega-se comumente Gnoséologie e, mais raramente, Épistemologie. Todos esses
nomes têm o mesmo significado: não indicam, como muitas vezes se crê ingenuamente, uma disciplina
filosófica geral, como a lógica, a ética ou a estética, mas um modo de tratar um problema nascido de um
pressuposto filosófico específico, no âmbito de determinada corrente filosófica, que é o idealismo (no
sentido le
, v. IDEALISMO). O problema cujo tratamento é tema específico da teoria do C. é a realidade das
coisas ou, em geral, do "mundo externo". A teoria do C. apóia-se em dois pressupostos: ls
o conhecimento
é uma "categoria" do espírito, uma "forma" da atividade humana ou do "sujeito", que pode ser indagada
em universal e em abstrato, isto é, prescindindo dos procedimentos cognoscitivos particulares de que o
homem dispõe fora e dentro da ciência; 2Q
o objeto imediato do conhecimento é, como acreditava
Descartes, apenas a idéia ou a representação; e a idéia é uma entidade mental, exista apenas "dentro" da
consciência ou do sujeito que a pensa. Trata-se, portanto, de verificar.- 1Q
se a essa idéia corresponde uma
coisa qualquer, ou entidade "externa", isto é, existente "fora" da consciência; 2e
no caso de uma resposta
negativa, existe alguma diferença, e qual, entre idéias irreais ou fantásticas e idéias reais. Esses são problemas já
discutidos por Berkeley e retomados por Fichte em Doutrina da ciência (1794), que constituem o tema
dominante de uma rica literatura filosófica, especialmente alemã, da segunda metade do século passado
aos primeiros decênios deste. Por origem e formulação, a teoria do C. é idealista. Mesmo as soluções
chamadas "realistas" são formas de idealismo, na medida em que as entidades que reconhecem como
"reais" são, muito freqüentemente, consciências ou conteúdos de consciência. A Escola de Marburgo (H.
Cohen, 1842-1918; P. Natorp, 1854-1924) identificava a teoria do C. com a lógica e reduzia a três as
disciplinas filosóficas fundamentais: lógica, ética e estética. O Problema do conhecimento na filosofia e
na ciência da época moderna (4 vols., 1906-50) de Ernest Cassirer (1874-1945) é a obra mais importante
dedicada ao problema do conhecimento nesse significado tradicional.
A teoria do C. começou a perder o primado e também o significado quando se começou a duvidar da
validade de um de seus pressupostos, isto é, que o dado primitivo do conhecimento e "interior" à
consciência ou ao sujeito e que, portanto, a consciência ou o sujeito devem ir para fora de si mesmos (o
que, em princípio,1
é impossível) para apreender o objeto. Kant, em "Refutação do Idealismo",
acrescentada à 2- ed., de Crítica da Razão Pura (1787), demonstrara a sua falta de fundamento. Os
analistas contemporâneos também rejeitam o primeiro pressuposto da teoria do C, isto é, que o
conhecimento é uma forma ou categoria universal que pode ser indagada como tal: assumem como objeto
de indagação os procedimentos efetivos ou a linguagem científica, e "conhecimento" em geral. Portanto, a
teoria do C. perdeu seu significado na filosofia contemporânea e foi substituída por outra disciplina, a
metodologia (v.), que é a análise das condições e dos limites de validade dos procedimentos de
investigação e dos instrumentos lingüísticos do saber científico.
CONHECIMENTO DE SI. O saber objetivo, isto é, não imediato nem privilegiado, que o homem pode
adquirir de si mesmo. Esse termo tem, portanto, um significado diferente de autoconsciência (v.), que é a
consciência absoluta ou infinita, e também de consciência (v.), que sempre implica uma relação imediata
e privilegiada do homem consigo mesmo; logo,
CONJECTURA
184
CONOTAÇÃO
um C. direto e infalível, embora incomunicável, de si. É como convite ao C. de si mesmo (e não à
consciência) que Platão interpreta o lema socrático "Conhece-te a ti mesmo"; em Car-tnides, é
interpretado como convite a "saber que se sabe", isto é, à determinação e ao inventário do que se sabe.
Nós mesmos não nos pomos a fazer o que não sabemos, mas procuramos as pessoas competentes e nos
confiamos a elas; tampouco permitimos que quem depende de nós faça o que não saiba fazer bem e de
que não tenha ciência" (Carm., 171 c). Kant afirmou que só podemos conhecer-nos a nós mesmos do
mesmo modo como conhecemos as outras coisas, isto é, só como fenômeno; segundo Kant, o C. de si
requer, como qualquer outra espécie de C, duas condições, a saber: le um elemento unificador a priori
que, nesse caso, é o eu penso ou apercepçâopura (v.); 2a um dado empírico múltiplo que é o do sentido
interno (Crít. R. Pura, § 24). Os que negam a realidade da consciência reconhecem que o C. de si não se
diversifica por modalidade e certeza do C. dos outros ou das outras coisas (RYLE, Concept ofMind, cap.
VI).
CONJECTURA (gr. eiraaíoc; lat. Conjectura; in. Conjecture, fr. Conjecture, ai. Konjek-tur, it.
Congetturã). Segundo Platão, o menor grau de conhecimento sensível, aquele que tem por objeto as
sombras e as imagens das coisas, assim como a opinião, no mesmo grau sensível, tem por objetos as
próprias coisas (Rep., VI, 510 a 511 e). Nicolau de Cusa retomou essa palavra para indicar a natureza de
todo o conhecimento humano, que, como C, seria um conhecimento por alteridade, isto é, que remete ao
que é outro, à verdade como tal, e só por essa razão está em relação com a verdade e dela participa. "AC.
é uma asserção positiva que participa por alteridade da verdade enquanto tal" (De conjecturis, I, 13).
CONJUNÇÃO (lat. Conjunctio; in. Con-junction-, fr. Conjonction; ai. Konjunktion; it. Congiunzioné).
Na Lógica escolástica, é uma propositio hypothetica formada de duas categorias unidas pelo sinal "et"
("Sócrates currit et Plato sedef). Na Lógica contemporânea, é uma proposição molecular formada por
duas (ou mais) proposições atômicas, unidas pelo sinal "v" ou "." ("p . q"). Em ambas as Lógicas, a
condição necessária e suficiente para a verdade de uma C. é que ambas as proposições componentes
sejam verdadeiras. G. P.
CONJUNTO (in. Set, Aggregate, fr. Ensemble, ai. Menge-, it. Insiemé). G. Cantor, fundador da teoria do
conjunto, definiu o C. como "coleção, em um todo único, de objetos definidos e distintos que se oferecem
a nossa intuição ou a nosso pensamento: objetos que são denominados elementos do C." (Beitrãge zur
Begrün-dung der Transfinite Mengenlehre, 1895, § 1). Essa noção (já implícita nos trabalhos precedentes
de Cantor, a partir de 1878) atribui aos conjuntos as seguintes características: I
a
existe C. toda vez que um
múltiplo pode ser pensado como uno, isto é, toda vez que um múltiplo pode ser agregado segundo uma
regra. 2a
O C. é internamente determinado, no sentido de que, em virtude da regra que o constitui e do
princípio do terceiro excluído, sempre se pode decidir se um objeto qualquer pertence ou não ao C. 3a
O
C. é uma multiplicidade coerente no sentido de que seus elementos podem estar juntos (Zusammenseiri)
sem contradição. Nesse sentido, a "totalidade de todos os objetos pensáveis" não é um C, porque
contraditória. A- A existência do C. é objetiva, isto é, independente do pensamento ou da língua que o
exprime. 5a
Como unidade o C. sempre pode constituir o elemento de um outro conjunto.
Baseado em tais caracteres, Cantor comparava o C. com a idéia de Platão, que também é a unidade
objetiva de uma multiplicidade (v. IDÉIA). Cantor utilizou a teoria dos C. como fundamento do conceito
de infinito atual (v. INFINITO); a partir dele, foi adotada como axio-matização da matemática.
Enquanto os lógicos em geral não estabeleceram diferença entre C. e classe (v.), exceto para ressaltar o
caráter abstrato da classe em vista do caráter concreto do C. (como faz, p. ex., QUINE, From a Logical
Point ofView, VI, 3), algumas correntes da axiomática moderna (Von Neumann, Gõdel) consideram que o
conceito de C. é mais restrito que o de classe, isto é, que existem classes que não são C. Sob esse ponto de
vista, enquanto os C. são entidades lógicas bem determinadas, as classes são extensões de predicados, isto
é, totalidades abertas que podem ser continuamente enriquecidas por operações abstrativas efetuadas no
mundo dos C. (Cf. BETH, Les fondements logiques des mathê-matiques, 1955, V.).
CONOTAÇÃO (lat. Connotatio; in. Conno-tation; fr. Connotation; it. Connotazionè). O adjetivo
connotativus aparece na lógica da Escolástica tardia, a propósito de uma distinção
CONOTAÇÃO
185
CONSCIÊNCIA2
dos nomes em absolutos e conotativos. Segundo Ockham, são absolutos os nomes que não significam
algo de modo primário e algo de modo secundário, como, p. ex., o nome "animal". São, porém,
conotativos, os nomes que significam algo de modo primário e algo de modo secundário, como, p. ex.: os
nomes relativos, pertencentes ao gênero quantidade, e também nomes como "um", "bem", "verdade",
"intelecto", "potência", etc. {Summalog., I, 10). Essa distinção tornou-se habitual na lógica posterior. Na
Idade Moderna, foi retomada por James Mill, em Análise dos fenômenos do espírito humano (1829), que
usava a palavra "conotar" todas as vezes em que o nome que indica diretamente uma coisa (que constitui,
por isso, o seu significado) também inclui referência a alguma outra coisa. O uso dessa palavra foi
radicalmente alterado por Stuart Mill, que a empregou para exprimir "o modo pelo qual um nome
concreto geral serve para designar os atributos que estão implícitos no seu significado".
Conseqüentemente, Mill distinguiu C. de denotação: "Sempre que os nomes dados aos objetos veiculam
alguma informação, isto é, sempre que têm um significado, o significado não reside naquilo que eles
denotam, mas naquilo que eles conotam. Os únicos nomes de objetos que não conotam nada são os nomes
próprios; estes, a rigor, não têm significado" {Logic, I, 2, § 5). Nesse sentido, os nomes dos atributos são
conotativos, porque a palavra "branco" não denota todos os objetos brancos, mas conota o atributo da
brancura. Nomes conotativos são também "o primeiro imperador de Roma" ou "o autor da Iliada", etc.
Esse conceito de C. correspondia àquele que a Lógica de Port-Royal designara com o termo compreensão
(v.). Ao par compreensão-extensão da lógica de Port-Royal corresponde, portanto, o par conotaçãodenotação da Lógica de Stuart Mill e ao par intensão-extensão (v.) da lógica leibniziana e contemporânea.
Algumas vezes, porém, tentou-se distinguir C. de compreensão, adotando ambos os termos. Assim, J. N.
Keynes {FormalLogic, I, 2) e Goblot {Traité de logique, § 72) definiram "C." de forma mais restrita,
como aquilo que está compreendido na definição convencional de um termo, e "compreensão" de modo
mais amplo, como compreensão total que inclua todas as determinações não excluídas pela própria
definição. Tal distinção, porém, não foi seguida, e o termo moderno "intenção" compreende ambos os
significados propostos para compreensão e conotação.
CONSCIÊNCIA1
(in. Awareness; it. Con-sapevolezzà). Em geral, a possibilidade de dar atenção aos
próprios modos de ser e às próprias ações, bem como de exprimi-los com a linguagem. Essa possibilidade
é a única base de fato sobre a qual foi edificada a noção filosófica de CONSCIÊNCIA2
. Platão e Aristóteles,
que não tiveram este segundo conceito, conheceram e descreveram o primeiro.
CONSCIÊNCIA2
(gr. cyuveíÔT|(Tiç; lat. Cons-cientia; in. Conscioussness^C teórica, Conscience = C.
moral; fr. Conscience, ai. Bewiisst-sein = C. teórica, Gewissen = C. moral; it. Coscienzd). O uso
filosófico desse termo tem pouco ou nada a ver com o significado comum (v. CONSCIÊNCIA1
), de estar
ciente dos próprios estados, percepções, idéias, sentimentos, volições, etc, quando se diz que um homem
"está consciente" ou "tem C", se não está dormindo, desmaiado, nem afastado, por outros acontecimentos,
da atenção a seus modos de ser e a suas ações. O significado que esse termo tem na filosofia moderna e
contemporânea, embora pressuponha genericamente essa acepção comum, é muito mais complexo: é o de
uma relação da alma consigo mesma, de uma relação intrínseca ao homem, "interior" ou "espiritual", pela
qual ele pode conhecer-se de modo imediato e privilegiado e por isso julgar-se de forma segura e
infalível. Trata-se, portanto, de uma noção em que o aspecto moral — a possibilidade de autojulgar-se —
tem conexões estreitas com o aspecto teórico, a possibilidade de conhecer-se de modo direto e infalível.
Mesmo do ponto de vista histórico, os dois aspectos desse significado foram-se determinando
paralelamente. Cristianismo e neoplato-nismo elaboraram paripassu a noção da relação puramente
privada do homem consigo mesmo, na qual o homem se desliga das coisas e dos outros e "retorna para si
mesmo", testemunhando de si para si e criando uma indagação puramente "interior", na qual possa
conhecer-se com absoluta verdade e certeza. A determinação histórica do conceito de C, portanto, é
correlativa à de esfera de interioridade, como um campo específico no qual seja possível realizar
indagações ou buscas que digam respeito à realidade última do homem e, com muita freqüência, ao que
nela se revela, ou seja, Deus mesmo ou um princípio divino. Portanto, o termo C, nesse sentido, significa
não
CONSCIÊNCIA2
186
CONSCIÊNCIA2
só a qualidade de estar ciente de seus próprios conteúdos psíquicos (percepções externas ou atos
autônomos do espírito, cf. CONSCIÊNCIA1
), mas a atitude de "retorno para si mesmo", de indagação
voltada para a esfera de interio-ridade. O uso filosófico da noção de C. supõe o reconhecimento da
realidade dessa esfera e da sua natureza privilegiada. É só por existir uma esfera de interioridade, que é
uma realidade privilegiada, de natureza superior ou, de qualquer forma, acessível ou mais indubitável
para o homem, que a C. constitui um instrumento importante de conhecimento e de orientação prática.
Ora, não parece que a filosofia clássica da Grécia tenha reconhecido a realidade privilegiada da
interioridade espiritual. A noção que, na filosofia de Platão, mais se aproxima da relação da alma consigo
mesma é a definição de opinião (ou pensamento em geral) como "diálogo interior da alma consigo
mesma" (Teet., 189 e; Sof, 263 e), mas o mais notável nessa definição é o fato de utilizar a linguagem para
definir o pensamento, mais precisamente a linguagem para perguntar e responder, isto é, como diálogo ou
comunicação. Portanto, o fato originário e privilegiado é a linguagem, não a interioridade da alma. Além
disso, quando em Filebo, Platão quer refutar a tese de que o bem consiste no prazer, argumentando que
isso reduziria a vida humana a uma vida de molusco fechado em sua casca, enumera os elementos ou os
aspectos da vida que, nesse caso, faltariam ao homem: lembrança do prazer fruido; opinião verdadeira,
que é saber que se está sentindo prazer; e raciocínio, que permite a previsão do prazer futuro (Fil., 21 c).
Assim, segundo Platão, o que constitui aquilo que chamamos de C. (no sentido de conhecimento dos
nossos estados) nada mais é que lembrança, opinião e raciocínio, isto é, o conjunto das atividades
cognitivas em geral. E é quase supérfluo observar que, quando Platão insiste no fato de que alguns
processos (em primeiro lugar o juízo, na medida em que se vale do "é" ou do "não é") não podem ser
atribuídos a outro órgão que não a alma, que indaga por si só sobre o que há de comum nas sensações
(Teet., 185 e ss.), não faz referência a uma esfera de interioridade, mas pretende insistir na independência
dos processos racionais em relação aos dados sensíveis. "A alma só, por si" é contraposta à alma que sofre
as impressões sensíveis e depende delas. Em Aristóteles, não
se encontra uma noção sequer de interioridade espiritual. Por um lado, ele atribui a C, como o estar ciente
das próprias percepções sensíveis, aos sentidos, de tal modo que, por ex., sentir que se vê pertence ao
sentido da visão, assim como sentir que se ouve, ao sentido da audição. Não é possível que o estar
cônscio de ver pertença a outro sentido que não o da visão, já que, nesse caso, haveria uma série infinita
de órgãos sensíveis: o sentir que se sente que se sente... que se vê (Dean., III, 2, 425 b 12). Por outro lado,
a noção de "pensamento do pensamento", com que ele define a vida de Deus, nada tem a ver com a
interioridade da consciência: exprime somente a exigência de que o pensamento, que, para o homem,
pode ter como objeto até as piores coisas, em Deus só tenha por objeto o que há de mais excelente, isto é,
o próprio pensamento (Met., XII, 9, 1074 b 30 e ss.).
O reconhecimento de uma realidade interior privilegiada só existe nas filosofias que assumem como tema
a oposição entre "interioridade" e "exterioridade", ou seja, que se chamam a si a tarefa de afastar o
homem das relações com as coisas e com os outros homens (isto é, com a natureza e com o mundo
histórico-social) para torná-lo um "sábio", para quem essa relação seja indiferente. Isso ocorre na filosofia
pós-aristotélica, a partir do Estoicismo. Sabemos que Crisipo já insistia na distinção entre o pensamento e
a C. (o~uveí8r|cn.ç) do pensamento (GALENO, Hipp. etPlat. dogm., V, 215). Essa distinção, com a qual
também começa o uso da palavra C. em sentido específico, passa a ser lugar-comum da pregação moral
do Estoicismo e depois se torna tema dominante e central da filosofia neoplatônica; esta acentuou a
separação entre o homem e o mundo, elaborando, portanto, como fazia o Cristianismo paralelamente, a
noção de testemunho interior privilegiado. Fílon utiliza a noção de C. (De virtutibus, 124; De special
legibus, II, 49) com o mesmo sentido moral que se observa em Eclesiastes (10, 20) e nas Epístolas de São
Paulo (Rom., 2, 15; 13, 15; II Cor, 4, 2; 5, 11). Nestas, significa testemunho moral autônomo,
manifestação direta da lei ou de alguma verdade ao homem. Mas a elaboração decisiva da noção de C. é
obra de Plotino. Nele, aparece claramente a diferença e, às vezes, a oposição entre o estar cônscio (v.
CONSCIÊNCIA1
), como certa qualidade dos conteúdos psíquicos, que Plotino chama de co-sensaçâo
(owaÍGÔricaç) ou co-
CONSCIÊNCIA2
187
CONSCIÊNCIA2
seqüência (rcap(XKota)ú6ricn.ç), e o "retorno para si mesmo" ou o "retorno para a interio-ridade" ou a
"reflexão sobre si mesmo", que constituem a C. propriamente dita (Enn., V, 3, 1; IV, 7,10). Embora o
mesmo termo (oúvecnç) às vezes seja empregado para as duas coisas (Enn., V, 8, 11, 23), Plotino deixa
evidente a oposição entre os dois sentidos: um é a percepção do que se sente ou se faz e o outro é o acesso
à realidade interior do homem. Afirma que há muitas atividades, visões e ações belíssimas que não são
acompanhadas pelo "estar cônscio"; p. ex., quem lê não está necessariamente cônscio de que está lendo,
sobretudo se lê com atenção; quem age com coragem não está cônscio de estar agindo corajosamente
enquanto realiza a ação; e assim por diante. Aliás, esse tipo de consciência pode enfraquecer a atividade
que acompanha: "Por si sós, essas atividades têm mais pureza, mais força e mais vida; de tal modo que é
sem estarem cônscios que aqueles que chegaram à sabedoria têm uma vida mais intensa, que não se
dispersa em sensações, mas recolhe-se inteiramente em si mesma" (Ibid., I, 4, 10). Precisamente esse
"recolher-se em si mesmo" é a C. como atitude ou condição do sábio que prescinde do exterior (das coisas
e dos outros homens) e só olha para o interior. Contra os estóicos que aconselham o recolhimento em si
mesmos (EPICTETO, Diss., III, 22, 38; I, 4, 18, etc), mas tomam as coisas exteriores como objeto de
vontade, Plotino diz que, depois de dirigir sua vontade para si mesmo, o sábio não pode buscar a
felicidade nas manifestações exteriores nem procurar nas coisas exteriores o objeto de sua vontade (Enn.,
I, 4, 11). O que ele deve fazer é "olhar para dentro", e o que é isso? Plotino diz o que é quando trata da
procura do Belo inteligível, atrás do qual está o próprio Bem, isto é, Deus. E preciso "retornar para si
mesmo" e tornar-se aquilo que se quer olhar. "Jamais jam olho verá o sol sem tornar-se semelhante ao sol,
nem uma alma verá o Belo sem ser bela. Portanto, quem quer contemplar Deus e o Belo deve começar
por tornar-se semelhante a Deus e belo" (Ibid., I, 6, 9). Nesse caso, a C. identifica-se com a própria
condição do sábio, "que extrai de si mesmo o que revela aos outros e olha para si mesmo, pois não
somente tende a unificar-se e a isolar-se das coisas externas, como está voltado para si mesmo e encontra
em si todas as co\sas"(Ibid., III, 8, 6).
Essa atitude de auto-ausculatação interior que, para a filosofia paga, era privilégio do sábio, na filosofia
cristã é acessível a qualquer homem como tal. S. Agostinho é quem traduz para termos cristãos, isto é,
universalistas, a atitude aristocrática do sábio. O homem espiritual de que falava S. Paulo (I Cor, II, 16) é
o verdadeiro protagonista de sua filosofia, cujo tema fundamental foi expresso pelas célebres palavras:
"Não saias de ti, retorna para ti mesmo, no interior do homem habita a verdade e, se achares mutável a tua
natureza, transcende-te a ti mesmo" (De vera rei, 39). S. Agostinho insiste justamente nessa
transcendência, que não se dirige ao exterior (as coisas, os homens), mas a Deus enquanto princípio,
norma e medida da própria realidade íntima do homem. Deus reflete-se no caráter auto-reflexivo da alma
humana que, nas três faculdades — memória, inteligência e vontade — reflete a Trindade divina.
Agostinho diz (De Trin., X, 18): "Lembro que tenho memória, inteligência e vontade; entendo que
entendo, quero e lembro e quero querer, lembrar e entender". De tal modo que não só a alma em seu todo,
mas cada aspecto ou faculdade da alma olha para si e define-se em sua relação puramente intrínseca
consigo. "A mente não conhece nada tão bem quanto aquilo que lhe é mais acessível (praestó) e nada está
tão próximo da mente quanto ela de si mesma" (Ibid., XIV, 7). Este estava destinado a ser um dos temas
mais repetidos da filosofia medieval e moderna: a certeza de sua própria existência que a alma, o
pensamento, a razão haurem na C. de si, dada a estrutura da C. como relação intrínseca, direta e
privilegiada que não pode ser perturbada, destruída ou falsificada por nada. Na Idade Média esse tema
reaparece sobretudo na tradição agostiniana: é repetido por Scotus Erigena (De divis. nat, IV, 9), S.
Anselmo (Mon., § 33) e outros. Contudo, sua importância é menor na corrente aristotélica, dado o seu
caráter objetivista. A análise que S. Tomás faz do termo C. visa a esclarecer sobretudo seu aspecto moral,
em relação com o conceito de sindérese (v.); fora desse significado, para S. Tomás a C. é o simples "estar
cônscio". "O nome C", diz ele, "significa a aplicação da ciência a alguma coisa; daí, conscire é como
simul scire. Qualquer ciência pode ser aplicada a alguma coisa, por isso a C. não indica um hábito ou uma
potência especial, mas o ato de aplicar um hábito ou uma noção a algum ato particular. Ora, uma noção
r
CONSCIÊNCIA2
188
CONSCIÊNCIA2
pode ser aplicada a um ato de dois modos: em primeiro lugar, para considerar se o ato é ou foi e, em
segundo lugar, para considerar se o ato é lícito ou não o é. No primeiro modo, dizemos ter C. de um ato
quando sabemos que esse ato foi ou não realizado; assim, no uso lingüístico comum se diz: 'Eu não tinha
C. desse fato', no sentido de que não sei se ele aconteceu ou não... No segundo modo, a ciência aplica-se a
um ato para dirigi-lo, como quando dizemos que a C. nos induz, nos obriga, ou para examinar o ato
realizado, como quando dizemos que a C. nos acusa, nos atormenta ao julgarmos que o ato realizado
discorda da ciência com a qual é examinado, ou então, que a C. nos defende ou nos desculpa ao julgarmos
que a ação se conforma à ciência" (De ver., q. 17, a. 1). O que há de notável nessa análise de S. Tomás é
que toda a noção de C, tanto no significado teórico de percepção de si quanto no significado prático de
sindérese, ou C. moral, reduz-se quanto à aplicação de conhecimentos objetivos ("ciência")- O caráter
privilegiado da relação intrínseca da mente consigo mesma, todavia, é reconhecido por S. Tomás: "Nossa
mente conhece-se a si mesma por si mesma enquanto conhece sua própria existência: com efeito,
enquanto percebe sua própria atividade, percebe sua própria existência" (Contra Gent., III, 46). Essa
certeza privilegiada, no entanto, limita-se ao simples fato da existência da alma, ao passo que a alma não
tem nenhum conhecimento privilegiado de si mesma no que se refere à sua essência e aos seus modos de
ser.
A relação da alma consigo mesma como condição da relação da alma com as coisas ou, em outros termos,
a C. imediata de si como condição da C. das outras coisas, é doutrina defendida, nos primórdios da Idade
Moderna, por Telésio e Campanella. Diz Telésio: "O sentido é a percepção das ações ou das coisas, dos
impulsos do ar, tanto quanto das próprias afeições, das próprias modificações e dos próprios movimentos;
sobretudo destes. O sentido percebe essas ações só quando percebe que é influenciado, modificado e
comovido por elas" (Derer. nat., VII, 3). Campanella chama de "conhecimento inato de si mesmo" (Met.,
VI, 8, a. l)ou "sapiência inata" (Teol, 1,11, a. 1) o conhecimento originário de si que todas as coisas
possuem e que serve de intermediário ou de condição para os conhecimentos que adquirem das outras
coisas. Mas só com Descartes a noção de C. é esclarecida com os caracteres pelos
quais deveria ser universalmente aceita na filosofia ocidental. O cogito ergo sum é a auto-evidência
existencial do pensamento, isto é, a garantia que o pensamento (como C.) tem de sua própria existência.
Diz Descartes: "Com o nome de pensamento entendo todas as coisas que acontecem em nós com C,
enquanto temos consciência delas. Assim não só entender, querer e imaginar, mas também sentir é o
mesmo que pensar. Pois se digo: vejo ou ando, logo sou, e pretendo falar da visão e do andar que se faz
com o corpo, a conclusão não é absolutamente certa; porque, como muitas vezes ocorre nos sonhos, posso
achar que estou vendo ou andando, mas não abri os olhos nem saí do lugar e talvez nem tenha corpo
algum. Mas se falo do próprio sentido, isto é, da C. de ver ou de andar, a conclusão é certa porque então
se refere à mente, que só sente ou pensa que vê ou anda" (Princ. phil, I, 9). As características
fundamentais da doutrina cartesiana podem ser recapituladas do seguinte modo: 1Q
a C. não é um evento
ou um grupo de eventos particulares, nem um aspecto particular ou uma atividade particular da alma, mas
é toda a vida espiritual do homem em todas as suas manifestações, desde sentir até raciocinar e querer; 22
sua esfera, portanto, é a mesma do eu como sujeito ou substância pensante; 3S
ela é auto-evidência
existencial do eu ou, se preferir, o eu é, para ela, a evidência de sua própria existência; 4S
a auto-evidência
existencial do eu é o modelo e o fundamento de qualquer outra evidência, isto é, de todo conhecimeto
válido; 5Q a auto-evidência do eu torna problemática qualquer outra evidência, ainda que, por fim, consiga
fundá-la. Esses pontos básicos serviram como ponto de partida para a filosofia moderna; e, entre eles,
aquele que, de certo modo, resume todos os outros, ou seja, o 2e
, determinou a corrente subjetivista dessa
filosofia. Contudo, não se deve esquecer que a fecundidade da «filosofia cartesiana não consistiu tanto na
única certeza que dava, isto é, no Cogito, mas nas muitas certezas que destruía, ou seja, no fato de que, do
ponto de vista do Cogito, muitas realidades até então não discutidas (e a primeira delas, a do "mundo
externo") adquiriram caráter problemático e deram início a novos tipos ou correntes de indagação. De
fato, mesmo o conceito de experiência elaborado por Locke coincide grosso modo com o de C. (Uma vez
que todo homem está cônscio de que pensa e uma vez que aquilo que se encontra em
CONSCIÊNCIA2
189
CONSCIÊNCIA2
seu espírito quando ele pensa são as idéias que o ocupam naquele momento, não há dúvida de que os
homens têm muitas idéias em seu espírito, etc.", Ensaio, n, 1,1.) É verdade que Locke restringe o uso da
palavra C. à certeza absoluta que o homem tem de sua própria existência ("Em todo ato de sensação,
raciocínio e pensamento, estamos cônscios, diante de nós mesmos, do nosso ser, e nesse ponto não
deixamos de haurir o mais alto grau de certeza", Ibid., IV, 9, 3), e que a relação entre a alma e as suas
próprias operações é o que ele chama de "reflexão" {Ibid, II, 1, 4), mas também é verdade que o que ele
chama de experiência em geral nada mais é que a C. no sentido cartesiano, pois a mesma relação com o
objeto externo inclui-se inteiramente na esfera da C, que, por isso, não atinge nada além de "idéias".
Dessa colocação nasce o problema do IV livro do Ensaia justificar a "realidade" do conhecimento depois
de tê-la definido como nada mais, nada menos que a percepção da concordância ou discordância entre as
idéias. "É evidente", diz Locke, "que o espírito não conhece as coisas imediatamente, mas só mediante a
intervenção das idéias que ele tem delas. Por isso, nosso conhecimento só é real quando há conformidade
entre nossas idéias e a realidade das coisas. Mas qual será o, critério? Como poderá a mente, desde que
nâo percebe nada além de suas próprias idéias, saber se estas concordam com as coisas?" Ubici., IV, 4, 3).
O fato mesmo de esse problema se apresentar (independente do modo como será resolvido) revela com
toda clareza o fundamento consciencialista da filosofia de Locke, fundamento para o qual a filosofia nada
mais é que a análise da C, não podendo ir nenhum passo além. É justamente essa expressão que Hume
emprega para negar qualquer "existência externa". Diz Hume: "Como nada está jamais presente na mente
além das percepções, e como as idéias derivam daquilo que antes esteve presente na mente, conclui-se
que nos é impossível representar ou formar a idéia de algo que seja especificamente diferente das idéias
ou das impressões. No entanto, se fixarmos o máximo possível nossa atenção fora de nós, se elevamos
nossa imaginação até os céus e até os limites extremos do universo, na verdade não daremos sequer um
passo além de nós mesmos, nem poderemos nunca imaginar espécie alguma de existência que não seja a
das percepções que se apresentam em nosso pequeno círculo" (Treatise, I, 2,
6). Essa impossibilidade de ultrapassar o círculo da C. é a primeira e mais importante conseqüência do
uso da noção de C. para delimitar a esfera de investigação filosófica.
As coisas não são diferentes para o racio-nalismo pós-cartesiano. Leibniz faz a distinção entre a C, que
ele identifica com a apercepção (v.), e percepção, de que se pode não estar claramente consciente
(Monad, § 14); mas considera toda a vida da mônada, isto é, da substância espiritual, como puramente
interior a ela e acessível só a partir do interior. As mônadas não têm janelas através das quais possa entrar
e sair algo Clbid., § 7); por isso "as mudanças naturais das mônadas vêm de um princípio interno, pois
uma causa externa não poderia influir em sua interioridade" {Ibid., § 11). Na vasta esfera das percepções
da mônada, a reflexão recorta a esfera mais restrita das apercepções, que constituem o eu. "Com o
conhecimento das verdades necessárias e com as suas abstrações, somos elevados aos atos reflexos que
nos fazem pensar no que se chama eu, e a considerar que isto ou aquilo está em nós; é assim que,
pensando em nós, pensamos no ser, na substância, no simples, no composto, na imateria-lidade e em Deus
mesmo, concebendo aquilo que é limitado em nós e sem limites nele. Esses atos reflexivos fornecem os
objetos principais dos nossos raciocínios" {Ibid., § 31). essas palavras de Leibniz exprimem a tarefa que,
a partir dele, toda a filosofia espiritualista assumiu.
Kant distinguiu a C. discursiva e a C. intuitiva, que são dois outros nomes para indicar, respectivamente, a
apercepção pura e a apercepção empírica (v. APERCEPÇÃO). A C. discursiva é "o eu da reflexão", que não
contém em si nenhum múltiplo e é sempre o mesmo em todos os juízos porque implica só o lado formal
da consciência. A C. intuitiva é, ao contrário, experiência interior, que inclui o material múltiplo da
intuição empírica interior (Antr., I, § 7, Anotação). Mas, embora C. pura ou discursiva e C. empírica
compreendam tudo o que o homem é ou pode atingir, Kant fez o esforço mais bem-sucedido para romper
aquilo que, na filosofia moderna, se pode chamar de círculo mágico da C. e para justificar a relação do
homem com o mundo. À observação de que "Tenho somente C. imediata do que está em mim, isto é, da
minha representação das coisas externas" e, portanto, "ainda é preciso demonstrar que há ou não algo de
correspondente fora de mim", Kant responde que "ter C. de minha representação"
CONSCIÊNCIA2
190
CONSCIÊNCIA2
significa "ter C. empírica de minha existência", e isso significa "poder ser determinado só em relação a
alguma coisa que, mesmo estando ligada à minha existência, está fora de mim". Logo, "a C. de minha
existência no tempo" é a "C. de uma relação com alguma coisa fora de mim" (Crít. R. Pura, Pref. à 2a
ed.,
Nota sobre a refutação do idealismo). Paradoxalmente, em Kant o termo C. indica uma relação não
interior ou íntima no homem, mas entre o homem e algo de exterior. A apercepção pura ou transcendental
(o Eu penso) não é senão a possibilidade da relação, constitutiva da C. empírica, entre o eu empírico e o
objeto: possibilidade que, como C, nada mais é que a inteligência como espontaneidade (Ibid., § 25, nota
1).
É claro que, para ser efetiva e operante, a relação entre o eu e o que não é eu não deve incidir
exclusivamente no próprio eu, isto é, na "C", porque nesse caso seria uma relação interior do eu ou da C,
e não uma relação com uma realidade diferente. Em outros termos, para que subsista tal relação, a C. não
deve ser considerada como uma relação interior a si mesma, como uma relação entre a C. e ela mesma (ou
algum de seus fatos, operações ou feições), mas como uma relação da C. com algo que não é C: segundo
a terminologia em uso na filosofia contemporânea, deve ser uma relação de transcendência (v.). Talvez
isso possa ser visto, pelo menos de modo implícito, na doutrina de Kant, mas só se torna explícito em
algumas correntes da filosofia contemporânea. A filosofia pós-kantiana, especialmente o Idealismo
romântico, centra-se na imanência total da realidade da consciência. Para Hegel, a C. constitui o ponto de
partida da filosofia e fornece-lhe todo o conteúdo: a tarefa da filosofia é a elaboração conceituai desse
conteúdo, graças à qual esse conteúdo adquire absoluta verdade e realidade, torna-se "Espírito" ou
"Conceito". A Fenomenologia do espírito é, com efeito, o percurso da C. ao espírito. "A experiência que a
C. tem de si não pode, segundo o conceito da própria experiência, compreender em si algo menos que
todo o sistema da C, ou seja, o reino todo do espírito... Arreme-tendo para sua existência verdadeira, a C.
chegará a um ponto em que se libertará da aparência de estar invalidada por algo estranho, que lhe é
alheio, ponto em que a aparência será igual à essência (Phánomen. des Geistes, I, Intr., ao final). Hegel
censura a filosofia de Kant e a de Fichte por terem permanecido como "filosofias da C", por não terem transformado a C. em ciência objetiva e absoluta. "A filosofia kantiana pode ser
considerada mais determinante, por ter concebido o espírito como C. e por conter somente determinações
da fenomenologia, e não da filosofia do espírito. Considera o eu como em relação com algo que está
além, alguma coisa que, em sua determinação abstrata, chama-se coisa-em-si e concebe tanto a
inteligência quanto a vontade segundo essa fini-tude... Por isso, deve ser considerada justa a interpretação
que Reinhold faz dessa filosofia, concebendo-a como teoria da C. sob o nome de faculdade
representativa. A filosofia fichtea-na tem o mesmo ponto de vista e o não-eu é determinado só como
objeto do eu, só na consciência. Ambas as filosofias mostram assim que não chegaram nem ao conceito
nem ao espírito, da forma como ele é em si e por si, mas só ao espírito como ele é em relação com outra
coisa" (Ene, § 415). Hegel quer dizer que a noção de C. implica a relação da C. com um objeto que, pelo
menos à primeira vista, não é C, mas alguma outra coisa; e que a noção de conceito ou de espírito
(Autoconsciência) elimina essa alteridade. Mas erra ao equiparar o ponto de vista de Kant ao de Fichte.
Para Fichte o não-eu incide no interior do eu, e por isso a relação com ele é intrínseca ao eu (isto é, à C).
Para Kant, porém, a relação se estabelece entre o eu e algo diferente do eu. Mas Fichte e Hegel têm em
comum o conceito da Autoconsciência (v.), isto é, um Princípio absoluto que, auto-criando-se, cria a
própria realidade em sua totalidade. O que Hegel entende por espírito ou conceito é uma Autoconsciência
infinita desse tipo.
A C. e a Autoconsciência tornam-se protagonistas de boa parte da filosofia do séc. XIX e dos primeiros
decênios deste século. A alternativa entre essas duas noções é a que existe entre Espiritualismo e
Idealismo, isto é, entre a corrente que procura e acredita encontrar na C, considerada como finita e própria
do homem, a manifestação, a revelação ou pelo menos o sinal do Infinito, e a corrente que considera
infinita a C. porque idêntica, mediata ou imediatamente, ao Infinito. Todo o movimento romântico da
"volta à tradição" lança mão, como único texto e fundamento, da C. como manifestação ou revelação
imediata e infalível da Verdade ao homem. Maine de Biran e Lamen-nais, Galluppi e Cousin, Martineau,
Rosmini e Gioberti, todos consideram a C. como ponto de
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partida e fundamento da filosofia e concebem-na como a manifestação e revelação imediata da verdade e
da vontade de Deus ao homem. Esse princípio não se altera substancialmente nas várias formas do
Espiritualismo contemporâneo, podendo, aliás, ser considerado sua definição. Na mais importante dessas
formas, a doutrina de Bergson, a C, como atitude de introspecção ou auscultação interior, de busca dos
"dados imediatos", é a própria filosofia; e é também a realidade, a única realidade. "Em todo o reino
animal", diz Bergson, "a C. mostra-se proporcional à possibilidade de opção de que o ser vivo dispõe. Ela
ilumina a zona de virtualidades que circundam o ato: mede o intervalo entre o que se faz e o que se
poderia fazer. Olhando-a de fora, poder-se-ia tomá-la por um simples auxiliar da ação, por uma luz que
ilumina a ação, centelha fugidia que brotaria do atrito entre ação real e ações possíveis. Mas é preciso
observar que as coisas se passariam do mesmo modo se a C, em vez de efeito, fosse causa" (Évol. créatr.,
11a
ed., 1911, pp. 194-195). E essa é, na realidade, segundo Bergson, a história verdadeira. "A vida, ou
seja, a C. lançada através da matéira, fixa a atenção em seu próprio movimento ou na matéria que
atravessa, orientando-se assim no sentido da intuição ou no sentidp da inteligência". Na primeira direção,
a C. èncontrou-se comprimida por seu invólucro e limitou-se a ir da intuição ao instinto. Na segunda
direção, determinando-se como inteligência, exterioriza-se de si mesma, mas justamente por se adotar aos
objetos externos chega a circular entre eles, a contornar as barreiras que eles lhe opõem e a estender
indefinidamente seu domínio. "Uma vez liberta, pode dobrar-se sobre si mesma e despertar as
virtualidades de intuição que ainda dormitam nela" (Ibid., p. 197). A C. é, portanto, o princípio criativo da
realidade e ao mesmo tempo manifesta e revela imediatamente essa realidade no interior do homem.
Observações desse tipo são tão freqüentes e repetidas na filosofia contemporânea que seria supérfluo
reproduzi-las. Interessa aqui fixar as etapas relevantes do desenvolvimento dessa noção; na filosofia
contemporânea, a etapa mais importante é constituída pela fenome-nologia de Husserl. O ponto de partida
e o ponto de chegada dessa fenomenologia são os mesmos do espiritualismo, identificam-se com a C.
tradicionalmente entendida como atitude de auto-auscultação. Husserl parte do cogito
cartesiano, isto é, da consideração das vivências (Erlebnisse) "em toda a plenitude concreta com que se
apresentam em sua conexão concreta — a corrente da C. —, na qual se unificam graças à sua própria
essência" (Ideen, I, § 34). Mas para esclarecer a natureza das vivências, isto é, da C. em geral, Husserl
vale-se da noção de intencionalidade, já utilizada por Brentano para definir o caráter dos fenômenos
psíquicos (Psychologie vom empirischen Standpunkt, 1874). A intencionalidade é o referir-se ou o
reportar-se do ato de C. a outra coisa, a alguma coisa que não é o próprio ato de consciência. Para
Husserl, essa noção (v. INTENCIONALIDADE) define a própria natureza da C. em geral, que, por isso, é um
transcender que constitui uma relação com o objeto "em pessoa" e não com uma imagem ou
representação dele. Nesse sentido, a relação com o objeto não é "psicológica", não incide no círculo de
uma realidade específica, a alma, mas é de natureza lógico-transcendental, é uma possibilidade que define
o modo de ser da consciência. A C. nesse sentido, para Husserl, é aquilo que era para Kant: uma relação
com o objeto, mais precisamente, uma relação na qual o objeto se dá como tal. Todavia, para Husserl, a
intencionalidade não exaure a essência da consciência, que é uma "corrente de vivências" (Erlebnisse) e
apreende-se a si mesma de forma direta e privilegiada, que nada mais tem a ver com a intencionalidade.
Nesse aspecto, Husserl distingue a percepção imanente da percepção transcendente. A percepção
transcendente é a percepção da coisa no espaço, que nunca está presente à consciência em sua plena
atualidade. Daí deriva o caráter em si do objeto transcendente, caráter que exprime a possibilidade da C.
de retornar ao objeto e de identificá-lo. Mas justamente por estar ligada a essa simples possibilidade a
existência da coisa nunca é necessária, mas contingente; tudo o que da coisa é dado à percepção
transcendente pode também não ser; a percepção transcendente é sempre duvidosa {Ideen, I, § 46). A
percepção imanente, ao contrário, é a percepção do cogito cartesiano, que tem por objeto as mesmas
vivências (recordar, imaginar, desejar, etc.) Estas não são ciadas à C. do mesmo modo como a coisa é
dada aos fenômenos subjetivos, isto é, através de aparições, sombreamentos, aproximações, que acenam
para a unidade transcendente do objeto: ao contrário, caracteriza-se pela imediação e pela absolutidade.
"A percep-
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ção da vivência", diz Husserl (Ibid., § 44), "é a visão direta de alguma coisa que se dá ou que pode dar-se
na percepção como absoluta e não mais como a identidade das aparências que a sombreiam... Um
sentimento não aparece por sombreamentos. Se lanço o olhar sobre ele, tenho algo de absoluto,
desprovido de aspectos que poderiam apresentar-se tanto de um modo como de outro". A percepção
imanente é, portanto, a esfera da posição absoluta: implica a impossibilidade de negar sua existência.
"Embora a minha corrente de C. só seja apreendida de modo restrito, embora seja desconhecida nas partes
já transatas ou ainda vindouras, se lanço o olhar sobre seu presente efetivo e se me apreendo a mim
mesmo como puro sujeito desta vida, afirmo necessariamente: sou, esse viver é, eu vivo: cogito" (Ibid., §
46). Daí deriva que, enquanto o ser imanente (isto é, o ser da C. reflexa) é absoluto no sentido de que,
para existir, não tem necessidade de nada, o ser transcendente (isto é, o mundo das coisas) é relativo à
consciência. "Todo o mundo espácio-temporal ao qual o homem e o eu humano pertencem como
realidades singulares subordinadas é, segundo o seu sentido, um ser puramente intencional, na medida em
que tem o sentido meramente secundário e relativo de um ser para uma consciência. É um ser que a C.
põe em suas experiências, que é visível e determinável só enquanto permanece idêntico na multiplicidade
das aparições, mas fora disso é nada" (Ibid., § 49). Daí deriva o caráter absoluto ou "apodítico" da
subjetividade, do eu transcendental, que é auto-suficiente no sentido de que "pertence à sua essência a
possibilidade de auto-apreensão, de autopercepção" (Ideen, II, § 22); e daí deriva também a superioridade
metafísica do espírito: "O espírito e só o espírito existe em si mesmo e por si mesmo: o espírito é
autônomo e só nessa autonomia pode ser tratado de forma verdadeiramente racional e radicalmente
científica" (Krisis, § 345). As concepções da C. provenientes da feno-menologia podem ordenar-se
segundo duas correntes opostas: a objetivista e a espiritualista. A espiritualista continua adotando como
tema o cogito cartesiano e acentua a imanência da consciência. A corrente objetivista acentua o caráter
objetivo da relação intencional e, por isso, considera o objeto como autenticamente transcendente: em
última instância, essa corrente tende a deixar de lado a noção de consciência. Vinculam-se à corrente
espiritualista as
doutrinas de Jaspers e de Sartre. Para Jaspers, análise existencial é a analise da consciência. "Existir", diz
Jaspers, "é C: eu existo como C. e só como objetos de C. as coisas existem para mim. Tudo o que existe
para mim deve entrar na C." (Phil, I, p. 7). Sobre a C, Jaspers tem o conceito peculiar à fenomenologia:
"A C. não é um ser como o da coisa, mas é um ser cuja essência é estar voltado para significar o objeto.
Esse fenômeno originário, tão miraculoso quanto em si mesmo compreensível, foi chamado
intencionalidade". Mas a C. não está voltada só para o objeto, reflete-se sobre si mesma e também é,
portanto, Autoconsciência. "O eu penso e o eu penso que penso andam juntos, de tal modo que um não
fica sem o outro. O que parece contraditório do ponto de vista lógico aqui é real: um não é um, mas dois,
e todavia não se torna dois, mas, graças à sua singularidade, permanece um. Esse é o conceito do eu
formal em geral" (Ibid., p. 8) Jaspers ressaltou assim o caráter não transcendível e quase místico da C,
que, porjsso, constitui todo o seu campo de especulação. De modo análogo, Sartre declara explicitamente
que o estudo da realidade humana deve começar pelo cogito (Vêtreetle néant, p. 127). A C. é, em primeiro
lugar, C. de alguma coisa e de alguma coisa que não é consciência. Sartre chama esse alguma coisa de em
si. O ser em si só pode ser designado analiticamete, como "o ser que é o que é", expressão que designa
sua opacidade, seu caráter maciço e estático, pelo que não é nem possível nem necessário: é,
simplesmente (Ibid., pp. 33-34). Diante desse ser em si, a C. é o para si, a presença para si mesma (Ibid.,
p. 119). A presença para si mesma implica uma fissura, uma separação interna. Uma crença, p. ex., é
como tal sempre C. da crença; mas para captá-la como crença é necessário separá-la da C. para a qual está
presente. Mas nada há ou pode haver que separe o sujeito de si mesmo. "A fissura intraconsciencial é um
nada fora daquilo que ela nega e só pode ter ser na medida em que não se a vê. Esse negativo, que é nada
de ser e poder nadificante ao mesmo tempo, é o nada. Em nenhum lugar poderíamos apreen- J dê-lo com
semelhante pureza. Em todos os lugares, de um modo ou de outro, é preciso conferir-lhe o ser-em-si
enquanto nada" (Ibid., p. 120). Condicionando a estrutura da C, o nada é condição da totalidade do ser
que é tal só para a C. e na consciência. Mas ele define o ser da C. que é expresso por Sartre desta forma:
"O
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ser pelo qual o nada vem ao mundo deve ser o seu próprio nada" (Jbid., p. 59), o que significa que a C. é
o seu próprio nada na medida em que se determina a não ser o em-si a que se refere. Paradoxalmente,
partindo da mesma premissa de Husserl, Sartre chega à conclusão simetricamente oposta. Para ele, assim
como para Husserl, a C. em sua percepção imanente, isto é, em seu ato de auto-reflexâo, é tudo, é o
absoluto. Mas por sua fissura interna como negação do em-si, ela é o próprio nada. Essa conclusão é tão
pouco apta a exprimir ou a compreender os fenômenos relativos à C. quanto a de Husserl.
Por outro lado, Hartmann e Heidegger apresentam a alternativa objetivista da interpretação da C. como
intencionalidade. Hartmann julga que a noção de "C. aberta", que penetre sem limites no mundo das
coisas, é falsa. A C. é essencialmente clausura e as coisas nunca entram nela, mas permanecem além dela,
ainda quando conhecidas. "A C. não tem coisas, mas representações, concepções, imagens das coisas; e
estas podem coincidir ou não com as coisas, isto é, ser verdadeiras ou não verdadeiras. Daí resulta que o
conhecimento não é simples ato'de C, como representar ou pensar, mas um ato transcendente. Um ato
semelhante prende-se ao sujeito apenas por um de seus lados e com o outro estende-se para fora dele;
com este lado, prende-se ao existente que, por seu intermédio, passa a ser objeto. O conhecimento é
relação entre um sujeito e um objeto existente. Nessa relação, o ato transcende a C." (SystematischePhilosophie, § 11). Desse modo, a C. perde a supremacia e o caráter de círculo encantado, do qual
não é possível escapar. Para Hartmann, o conhecimento é, para todos os efeitos, a transcendência da C.
para um objeto que existe independentemente dela. A C. também perde o caráter de infalibilidade e perdeo a C. histórica, a C. coletiva. Esta nunca é adequada a si mesma, como seria se fosse de um Espírito
Absoluto. O espírito histórico revela, no mais das vezes, sua própria natureza quando já é passado. "Não
se mostra mais à sua própria C, mas a outra. Para a sua esconde-se atrás daquilo ela sabe dele" (Ibid., §
19). Na mesma linha, porém mais radicalmente, Heidegger fez uma análise da existência humana que
prescinde completamente do termo e da noção tradicional de C. (Bewusstseirí), mas utilizou e interpretou
a noção de C. moral (Gewissen), isto é, da "voz da C". A eliminação
da noção tradicional de C. deve-se ao uso que Heidegger fez da noção de transcendência na análise da
relação do homem com o mundo. A transcendência não é para o homem um comportamento entre os
outros possíveis, mas a própria essência de sua subjetividade; e o termo para o qual o homem transcende é
o mundo, que nesse caso não designa a totalidade das coisas naturais ou a comunidade dos homens, mas a
estrutura relacionai que caracteriza a existência humana como transcendência. Transcender para o mundo
significa fazer do mundo o projeto das atitudes possíveis ou das ações possíveis do homem; mas enquanto
projeto, o mundo recompreende em si o homem que se acha "lançado" nele e submetido às suas
limitações. "A transcendência", diz Heidegger, "exprime o projeto do mundo de tal modo que O-queprojeta é dominado pela realidade que ele transcende e já está conciliado com ela" (Vom Wesen des
Grandes, III). Simultaneamente a transcendência também constitui o si mesmo do homem, isto é, a
identidade do homem singular existente. "Na transcendência e através dela é possível distinguir no
interior do existente e decidir quem é e como se é Si-mesmo e o que não o é" {Ibid., II). A relação do
homem consigo mesmo e com o mundo, descrita em termos de transcendência, deixa de ter os caracteres
tradicionais da C. itranca-mento em si mesma, imediação, auto-reflexão, etc), de sorte que Heidegger
pode dispensar até mesmo o termo consciência. Em sentido mais tradicional, porém, é utilizada a noção
de "voz da C". Esta é entendida como uma relação intrínseca do ser-ai do homem, mais precisamente uma
relação pela qual o homem é revocado da exstência anônima e banal do "diz-se", "faz-se", etc, para seu
próprio e autêntico "poder-ser", isto é, para a sua possibilidade constitutiva última, o ser-para-a-morte.
"Para o que o ser é revocado? Para o seu próprio Si-mesmo. Portanto, não para alguma coisa à qual o seraí, na convivência pública, confira valor e urgência de possibilidade ou de fuga, nem mesmo àquilo que
ele tomou, a que se dedicou, de que se assenhoreou. O ser-aí, relacionado consigo mesmo e com os outros
no quadro da mundanidade, é ultrapassado nessa conclamação" {Seind und Zeit, § 56). Portanto, o ser-aí
que compreende essa conclamação "obedece à possibilidade mais própria de sua existência. Escolheu-se a
si mesmo" (Ibid., § 58). Ainda aqui, portanto, onde deve-
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CONSCIÊNCIA2
ríamos encontrar uma relação intra-consciencial, há uma relação de transcendência.
A análise existencial de Heidegger foi um duro golpe contra o primado metafísico da C, tão tenazmente
afirmada pela filosofia moderna e contemporânea. Não só essa análise deixa de utilizar o termo C. ou a
noção de C, como também a distinção entre "interior" e "exterior", entre o que está na e o que está fora da
C. deixa de ter sentido. Todavia, o caso de Heidegger não é o único na filosofia contemporânea. O
naturalismo instrumentalista e o positivismo lógico chegam à mesma negação do conceito tradicional de
consciência. Dewey chega a ignorar esse significado, que, como se viu, não é de uma qualidade psíquica,
mas de uma atitude reflexiva, a atitude da volta para si mesmo ou da reflexão sobre si. Entende por C. o
simples estar cônscio de si: "o estar desperto, vigilante e atento ao significado dos acontecimentos
presentes, passados ou futuros". Esse estar cônscio não é, como quer o realismo, uma espécie de luz que
ilumina ora uma ora outra parte de um campo dado, nem, como quer o idealismo, uma força que modifica
os acontecimentos. E "aquela fase de um sistema de significados que, em dado tempo, sofre uma
retificação de direção, uma transformação transitiva". O sistema dos significados é o que Dewey chama
de espírito (v.) e é uma formação social. A C. é o ponto focai em que esse sistema entra em crise ou sofre
uma transformação. "O espírito é contextual porque existente; a C. é focai e transitiva. O espírito é, por
assim dizer, estrutural e substancial, é o fundo ou o primeiro plano constante; a C. é perceptiva, é um
processo, uma série de aqui e de agora. O espírito é uma constante luminosidade; a C. é intermitente,
uma série de jorros de luz de várias intensida-des" (Experience and Nature, p. 260 e ss.). A condição da
C. é a dúvida, o sentido de situação indeterminada, suspensa, que urge a determinação e a readaptação. A
idéia, que constitui o objeto da C, que, aliás, é a própria C. em sua clareza e vivacidade, nada mais é que a
previsão e o anúncio da direção em que a mudança e a readaptação é possível; por isso, Dewey diz que
num mundo que não tivesse instabilidade e incerteza, a chama vacilante da C. se apagaria para sempre
(Ibid., pp. 351 ss.). A C. é assim reduzida à funcionalidade, isto é, ao surto de idéias e diretrizes que
servem para retificar determinada situação. Desse modo, não está ligada à introspecção, à auscultação
interna ou, de algum modo, a uma atitude de "retorno para si mesmo". Mas o destino da C. na filosofia
contemporânea parece cumprir-se com a análise que Ryle fez dela, ou melhor, das expressões lingüísticas
em que o conceito recorre {The Concept o/Mind, 1949). Segundo a tese de Ryle, nenhum dos usos que os
termos "C." e "consciente" têm na linguagem comum autoriza a considerar a C. como uma espécie de
autoluminosidade ou fosforescência que acompanha certas operações do homem; portanto, a C. entendida
nesse sentido é um mito. Tudo o que se pode dizer é que "habitualmente sabemos aquilo de que nos
estamos ocupando, sem que, porém, seja necessário recorrer à história da fosforescência para explicar
como o sabemos; que esse saber não implica um ato incessante de censura ou exame do fazer e do sentir,
mas só uma propensão interalia a exprimi-los, se e quando nos ocorre fazê-lo; que esse saber não requer
que devamos topar com algum evento de natureza espectral" (Ibid., trad. it., p. 164), isto é, com aquela
realidade "alma" que se supõe imanente ao metanismo corpóreo (v. ALMA). A C. não é um acesso
privilegiado ao conhecimento da alma ou ao conhecimento de si". "De mim mesmo posso descobrir as
mesmas coisas que do próximo e com métodos não dessemelhantes. As diferenças existentes no
fornecimento dos dados exigidos tornam diferente o grau dos meus conhecimentos, mas nem sempre em
favor do conhecimento de si. Por alguns aspectos importantes, é mais fácil verificar as mesmas coisas de
ti do que de mim mesmo; por outros, ocorre o contrário. Mas isso só na prática, porque em princípio
Fulano acaba sabendo tanto de si quanto de Beltrano. Com a esperança em um acesso privilegiado, ; vai
embora também o isolacionismo teórico- ■> cognoscitivo, perdemos, ao mesmo tempo, a doçura e o
amargor do solipsismo" {Ibid., trad, it., pp. 157-58). O fato principal aduzido para sustentar essa tese é
que os erros são freqüen- -tes no juízo sobre os próprios estados mentais , o que seria obviamente
impossível se a C. fosse aquela relação imediata e infalível consigo mesma que se pretende ser. A
conclusão é, evi* : dentemente, a negação da C. em favor de um "conhecimento de si" tão pouco
privilegiado, •. direto e infalível quanto o conhecimento de; qualquer outra coisa.
O declínio da noção de C. na filosofia con* temporânea é um dos sinais mais evidentes de , uma nova
colocação do problema do homem ;
CONSCIÊNCIA2
195
CONSCIÊNCIA INFELIZ
Elaborada pela filosofia alexandrina, essa noção serviu de início para expressar o orgulhoso isolamento
do sábio, que, como diz Plotino, extrai tudo de si mesmo e, assim, não tem necessidade das coisas nem
dos outros homens para conhecer e viver. Para o sábio da era alexandrina, as relações com o mundo são
acidentais e secundárias: ele encontra a verdade e a realidade em si mesmo. O Cristianismo valeu-se do
mesmo conceito para ressaltar a independência do juízo moral em relação a toda circunstância externa e
sua dependência só de um princípio ou realidade que nada recebe das coisas e dos homens, porque é
Deus. A filosofia moderna lançou mão do mesmo princípio a partir de Descartes, usando-o como
instrumento de dúvida e de libertação. Dele extraiu também "testemunhos" de verdades primeiras,
absolutas ou inderiváveis, bem como de "dados últimos" ou originários, usando-os para erigir pesados
edifícios dogmáticos, cujo apoio era a fragílima base de uma noção histórica, mas assumida como
estrutura real ou originária. Esse, porém, foi só o lado mais visível do uso da noção de C. Não se deve
esquecer que, a partir de Descartes, essa noção serviu para introduzir dúvidas, levantar problemas,
suscitar oposições ou rebeliões a crenças ou a sistemas de crenças estabelecidos institucionalmente. O
recurso à C. serviu com muita freqüência para apresentar ideais ou regras morais ainda não aceitos pela
moral corrente e destinados a superá-la, para sustentar a insurreição e a luta contra a autoridade
constituída, para mostrar o caráter incerto e problemático de muitas crenças e construções metafísicas.
Em Descartes, serviu para pôr em discussão algumas certezas tradicionais, como p. ex. a da existência de
um "mundo externo", e para iniciar pesquisas científicas e filosóficas de grande importância. O próprio
ceticismo de Hume é um dos resultados a que conduziu a noção de C, já que nasceu do pressuposto de
que o homem não dispõe de nada além de impressões e idéias, ou seja, de objetos imediatos de C, e que,
por mais que arremeta com o pensamento, "nunca dará um passo além de si mesmo" (Treatise, I, 2, 6).
Isso posto, o declínio da noção de C. na filosofia contemporânea deve-se às seguintes condições: I
a
formação, em vários campos de pesquisa, de técnica de verificação e controle, às quais, mais do que ao
testemunho íntimo, são confiadas as instâncias negativas e limitati-vas da crítica; 2- conseqüente
desconfiança de
certezas que se pretendem infalíveis e diretas, mas que são pessoais e incomunicáveis e muitas vezes
apresentam oposições mútuas; ò-abandono definitivo do ideal de isolamento do homem em relação ao
mundo, e da crença na estrutura solitária da realidade humana; portanto, renúncia a compreender o
homem em seus modos de ser e em seus comportamentos efetivos abstraindo suas relações com as coisas
naturais e com os outros homens e considerando-o fechado em si mesmo pelo círculo intransponível da
consciência.
CONSCIÊNCIA EM GERAL (ai. Bewuss-tsein üeberhaupí). Termo empregado pela primeira vez por
Kant para indicar o complexo das "funções lógicas" comuns a todas as consciências empíricas, não
obstante as diferenças individuais de tais consciências (Crít. R. Pura, § 20). A C. em geral, portanto, é
idêntica àquilo que Kant chama de apercepção pura, ou simplesmente C, em Antropologia (I, § 7,
Anotação), também "C. discursiva ou reflexa". Esse termo reaparece com mais freqüência em
Prolegômenos. "Como fundamento do juízo de experiência está a intuição da qual tenho C, isto é, a
percepção (perceptió), que é toda oriunda do sentido. Mas em segundo lugar concorre também o juízo
(que é só do intelecto). Ora, esse juízo pode ser de duas espécies, conforme eu confronte simplesmente as
percepções e as ligue em uma C, na C. de meu estado, ou as una numa C. em geral" (Prol., § 20). Na
filosofia contemporânea esse termo é usado para indicar a C. em seu significado mais geral, distinto do
significado restrito e específico de C. como C. clara e distinta, ou C. reflexa. Assim, para Husserl, a C. em
geral é a vivência (Erlebnis) ildeen, I, § 42). Para Jaspers, é a subjetividade como condição de todos os
objetos possíveis. "Como C. em geral, sou a subjetividade, pela qual os objetos subsistem como realidade
dos objetos e como universalmente válidos" (PM, I, p. 13).
CONSCIÊNCIA INFELIZ (ai. Unglückliches Bewusstseiri). Uma das mais famosas figuras da
Fenomenologia do espírito de Hegel. Representa a sua interpretação da filosofia medieval. Nela, Hegel vê
o desembocar do Ceticismo e do Estoicismo, enredados na contradição de afirmar e negar, que querem
manter como dois termos exteriores, conseguindo apenas criar uma "briga de crianças teimosas, em que
um diz a quando o outro diz b, para dizer b quando o outro diz a". A contradição própria do ceticis-
CONSCIENCIALISMO
196
CONSEQÜÊNCIA
mo torna-se dramática na Idade Medieval, como oposição entre duas C, uma imutável, que é a divina, e
outra mutável, que é a humana. Esse contraste constitui a C. infeliz, que é "a C. de si como da essência
duplicada e ainda totalmente enredada na contradição". A infelicidade da C. consiste, pois, no fato de que
a C. não se reconhece como unidade dessas duas C. e, por isso, não se identifica com a C. imutável. A
devoção é a primeira tentativa de superar a contradição, subordinando a C. mutável à imutável, da qual a
primeira pretende receber tudo de presente. O ápice da devoção é o ascetismo, em virtude do qual a C.
reconhece a infelicidade e a miséria da carne e tende a libertar-se dela, unificando-se com a C. imutável
(Deus). Mas com essa unificação termina o ciclo da C. infeliz porque, reconhecendo-se como C.
imutável, a C. reconheceu-se por aquilo que é, isto é, como Espírito ou "Sujeito Absoluto" (Phãnomen.
des Geistes, I, IV, B; trad. it, pp. 185 e ss.). Essa figura exprime bem o princípio da filosofia hegeliana,
segundo o qual a realidade é a C. como substância racional infinita, donde C. "pacificada" ou "feliz" é só
aquela que se reconheceu como totalidade da realidade.
CONSCIENCIALISMO (in. Conscientia-lism; fr. Conscientialisme, ai. Konscientialisms; it.
Coscienzialismó). Esse termo provavelmente foi criado por Külpe {Die Realisierung, 1912) para indicar a
doutrina que reduz a realidade a objeto de consciência. Nesse sentido, esse termo eqüivaleria a idealismo.
É mais comum falar-se hoje de C. com referência a doutrinas que tomem a consciência como ponto de
partida da filosofia, isto é, que considerem como tarefa ou método da filosofia a introspecçâo, a reflexão
sobre si mesmo, a reflexão interna ou a experiência interna: coisas estas que significam toda consciência.
CONSCIENTE (lat. Conscius; in. Conscious-, fr. Conscient; ai. Bewusst; it. Coscienté). Esse adjetivo é
comumente empregado no sentido de consciência1
(v.); seu uso filosófico, porém, correspond ;nte ao do
termo "consciência2
": daí, p. ex., "espírito consciente" significar a atitude de auto-reflexão de busca
interior.
CONSENSO UNIVERSAL (lat. Consensus gentium). Na obra de Aristóteles é comum a referência à
"opinião de todos" como prova ou contraprova da verdade; em Ética a Nicômaco, (X, 2, 1.172 b 36) diz
explicitamente: "Aquilo em que todos consentem, dizemos que assim é, já que rejeitar semelhante crença
significa renunciar ao que é mais digno de fé". Os estói-cos, por sua vez, insistiram no valor do C. universal, donde a
importância que tiveram para eles as "noções comuns", pelo fato de se formarem igualmente em todos os
homens, ou naturalmente ou por efeito da educação (DIÓG. L., VII, 51). Todavia, só os Ecléticos fizeram
do C. comum o critério da verdade; Cícero exprimia o ponto de, vista deles quando dizia: "Em todos os
assuntos, o C. de todas as gentes deve ser considerado lei natural" (Tusc, I, 13, 30). A filosofia moderna,
que tem Descartes como ponto de partida, pretendeu instaurar uma crítica radical do saber comum e, por
isso, não viu mais no C. comum, que sustenta esse saber, garantia ou valor de verdade. Portanto, só
raramente recorre ao consensus gentium. Isso se observa na escola escocesa do Senso Comum,
encabeçada por Tomás Reid (1710-96). Opõe-se sobretudo ao cetismo de Hume, e para superá-lo recorre
ao C. universal, que apoiaria as idéias, criticadas por Hume, de substância, causa, etc. (Indagação sobre o
espírito humano segundo os princípios do senso comum, 1764) (v. SCNSO COMUM). O recurso ao C.
comum muitas vezes constitui uma prova da existência de Deus (v. DEUS, PROVAS DE). Por outro lado
também serviu de fundamento à noção de direito natural (v. DIREITO). Mas estes e outros usos eventuais
não modificam a substância da noção, que é a tentativa de colocar ao abrigo da crítica conhecimentos ou
preconceitos julgados absolutamente válidos, mas cuja efetiva universalidade seria muito difícil provar.
CONSEQÜÊNCIA (gr. cocoAcueíoc; lat. Consequentia-, in. Consequence, fr. Conséquence, ai.
Konsequenz; it. Conseguenzd). Embora Aristóteles utilize o verbo correspondente a esse substantivo para
significar que a conclusão segue-se das premissas do silogismo (v.), esse termo foi introduzido pelos
estóicos para indicar a proposição condicional (v. CONDICIONAL). O latim consequentia foi introduzido
por Boécio como sinônimo de "proposição hipotética" (condicional). Segundo ele, a C. pode ser
acidental, como quando se diz "Quando o fogo é quente, o céu é redondo", ou natural, como quando se
diz "Se a Terra ficar do lado oposto, haverá eclipse da Lua". Neste último exemplo, a C. apóia-se na
"posição dos termos", no sentido de que o fato de a Terra estar em oposição é a causa do eclipse da Lua
(De Syllogismis Hypotheticis, P. L. 640, 835 B). Abelardo reserva o termo C. para as conexões
CONSEQÜENTE
197
CONSTITUTIVO
necessárias que são verdadeiras ab aeterno, como "Se é homem, é animal" {Dialectica, ed. De Rijk,
19702
, p. 160). Ockham fez a distinção entre C. nesse sentido, que ele chamava de formal e que exprime
uma conexão necessária ou intrínseca, e a C. material, que liga extrinsecamente duas proposições, como
quando se diz "Um homem corre, portanto Deus existe", que é válida porque o antecedente é impossível
{Summa log., III, III, 1).
Esse termo é usado com significados semelhantes ou análogos pelos lógicos nos séculos seguintes, mas,
pelo modo como é tratado, muitas vezes se intrica (ou confunde) com o conceito de proposição hipotética
(v.) ou de condicional(v.). Na lógica contemporânea, foi usado por Carnap (LogicalSyntax o/Language, j
14) para indicar uma relação mais extensa do que a de derivabilidade, da qual, posteriormente, considerou
sinônimo (Introduction to Se-mantics, § 37). Mas, como "condicional", esse termo confluiu para
implicação (v.).
CONSEQÜENTE (in. Consequent; fr. Con-séquent; ai. Konsequent; it. Conseguenté). Em Lógica, o
segundo termo de uma conse-qüênciaiv.). G. P.
CONSEQUENTIS (FALLACIA). É a falácia (v.), consistente em supor indevidamente que uma
consequentia (v.) ou implicação seja reciprocável, o que normalmente não ocorre: "se de A se segue B,
então de B se segue A" (ARISTÓTELES, El. sof, 5,167 b 1; PEDRO HISPANO, Summ. log., 7. 58; etc).
CONSERVAÇÃO. V. CONAÇÃO. CONSIGNIFICANTE (lat. Consignificans). O mesmo que
sincategoremãtico (v.).
CONSTANTE (in. Constant; fr. Constant; ai. Konstante, it. Costanté). Termo derivado da matemática,
na qual designa a variável dependente cujo valor não varia com a variação da variável independente (v.
FUNÇÃO). Em geral, chama-se constante toda uniformidade, de importância relevante, que possa ser
verificada em um campo qualquer. Em física, tais unifor-midades chamam-se C. quando podem ser
expressas por números (cf. B. RUSSELL, Introduction toMathematicalPhil, 18; trad. it., p. 223 ss.). Na
lógica contemporânea, o significado desse termo tem como modelo o significado matemático: a C. é,
simplesmente, o nome próprio de um número, assim também em lógica esse termo é empregado para
indicar um nome próprio que tenha denotação. A variável é um símbolo que, em vez de ter a denotação singular da C, representa a possibilidade de diversos valores. Os limites nos quais esses valores
podem mudar chamam-se amplitude da variável. Carnap observou que, para designar as várias espécies
de C. e de variável, pode-se fazer referência a seu valor de expressão, como quando se diz "variável
enunciativa" ou "variável predicado", etc.; ou, como ocorre mais freqüentemente, pode-se fazer referência
aos seus valores ou designados, como quando se diz "variável proposicional", "variável individual",
"variável numérica", etc. {Introduction to Seman-tics, § 37) (v. FUNÇÃO; NOTAÇÃO).
CONSTITUIÇÃO. V. CONSTITUTIVO.
CONSTITUTIVO (gr. cuoxaTVKÓÇ; lat. Constitutivus; in. Constitutive, fr. Constitutif ai. Konstitutiv, it.
Constitutivo). 1. Na lógica antiga e medieval esse adjetivo referia-se à diferença (v.) chamada de
constitutiva em relação à espécie e de divisiva em relação ao gênero: p. ex., a diferança "racional", na
definição do homem como "animal racional", constitui a espécie humana, mas divide o gênero animal em
duas partes, a racional e a não racional (PORFÍRIO, Isag., 10; PEDRO HISPANO, Summ. log., 2.12; JUNGIUS,
Lógica, I, 2, 45, etc).
2. Kant empregou esse termo para designar o que condiciona a realidade dos objetos fenomênicos. As
intuições puras (espaço e tempo) e as categorias são constitutivas, nesse sentido, porque condicionam
todos os objetos possíveis de experiência. As idéias da razão pura têm, ao contrário, apenas um uso regulativo, de dirigir o intelecto para certo objetivo, em vista do qual as linhas diretivas de todas as suas regras
convergem num ponto que — embora nada mais seja que uma idéia (focus imaginarius), isto é, um ponto
do qual na realidade não partem os conceitos do intelecto. já que está fora dos limites da experiência
possível — serve, porém, para conferir-lhes a maior unidade com a maior extensão (Crít. R. Pura,
Apêndice à Dialética Transcendental) (v. IDÉIA). Em sentido análogo, Husserl utiliza a palavra
"constituição" quando fala, p. ex., dos "problemas da constituição da objetividade da consciência". Esses
problemas consistem em ver como "as modalidades fundamentais de uma consciência possível"
condicionam ou, como diz Husserl, predeterminam "todas as possibilidades (e as impossibilidades) do ser
que é objeto da própria consciência" {Ideen, I, § 86). Por sua vez, Carnap esclareceu o conceito de
constituição do ponto de vista lógico-lingüístico
CONSTRUCIONISMO
198
CONTEMPLATIVA, VIDA
com o conceito de reintegrabilidade. Diz-se que um objeto ou conceito é reintegrável num ou mais outros
objetos se os enunciados que dizem respeito ao primeiro se deixam transformar em enunciados que dizem
respeito ao segundo. Nesse caso, pode-se dizer que o primeiro objeto é "constituído" pelos outros (Der
logísche Aufbau der Welt, § 2). Essa palavra passou a fazer parte da linguagem comum: diz-se que tem
caráter ou função C. tudo o que concorre para condicionar de algum modo um objeto qualquer.
CONSTRUCIONISMO (in. Constructiona-lisrri). Produção e uso de constructos (v.). Esse termo às
vezes é empregado por escritores anglo-saxões. (Cf. p. ex., M. DUMMETT, em The Phi-losophical Review,
1957, p. 47).
CONSTRUCTO (in. Construct). C. ou construção lógica é termo usado freqüentemente por escritores
anglo-saxônicos para indicar entidades cuja existência se julga confirmada pela confirmação das
hipóteses ou dos sistemas lingüísticos em que se encontram, mas que nunca é observável ou inferida
diretamente de fatos observáveis. Esse termo entrou em uso desde que Husserl enunciou seu princípio:
"Sempre que for possível, é preciso substituir entidades inferidas por construções lógicas" (Mysticism and
Logic, 1918, p. 155). Os C. são dotados pelo que se chamou de existência sistêmica, isto é, pelo modo de
existência próprio de uma entidade cujas descrições são analíticas no âmbito de um sistema de
proposições, ao passo que as entidades inferidas teriam existência real, que é o modo de existência
atribuído a uma entidade a que se pode referir uma proposição sintética verdadeira (cf. L. W. BECK,
Constructions and Inferred Entities, em Readings in the Philosophy of Science, 1953, p. 369). Os C.
deveriam desempenhar todas as funções das entidades inferidas: ls
resumir os fatos observados; 2°
constituir um objeto ideal para a pesquisa, ou seja, promover o progresso da obsevação; 3S
constituir a
base para a previsão e a explicação dos fatos (Ibid., p. 371). Contudo, é possível a verificação empírica
indireta dos C. "A definição de um C. empírico", diz Bergmann, "p. ex., de um campo elétrico, sempre
fornece instruções para comprovar, para determinar a verdade ou a falsidade das asserções nas quais se
encontra o C: p. ex., 'Há um campo elétrico nas vizinhanças do objeto B'" (Outline of an Empiricist Phil.
of Physics, em Readings, cit., p. 270).
CONSUBSTANCIAÇÃO (lat. Consubstan-tiatio-, in. Consubstantiation; fr. Consubstantia-tion; ai.
Konsubstantiation; it. Consustanzia-zioné). Interpretação do sacramento do altar, segundo a qual a
substância do pão e do vinho se une à do corpo e do sangue de Cristo, como sujeito de seus acidentes.
Essa doutrina, sempre combatida pela Igreja, foi defendida no início do séc. XIV por Ockham, nos dois
escritos intitulados De sacramento altarise De corpore Christi; era aceita por Lutero.
CONTEMPLATIVA, VIDA (gr. GecoprjTiXÒç píoç; lat. Vita contemplativa; in. Tbeoretical life, fr. Vie
théorétique, ai. Theoretisches Leben; it. Vita contemplativa). Ideal da vida dedicada exclusivamente ao
conhecimento. Segundo W. Jaeger (Genesi e ricorso deli'ideale filosófico delia vita, 1928, em Aristóteles,
trad. it., p. 363 ss.), a atribuição de uma vida puramente C. aos filósofos pré-socráticos, por meio de
anedotas (como a de Tales que, por andar olhando para as estrelas, cai num poço, enquanto a criadinha de
Trácias ri dele) é a projeção, no passado, do ponto de vista platônico-ãristotélico, que exaltou a vida C.
acima da prática e a considerou a única digna do filósofo e, em geral, do homem. Pode-se duvidar da
exatidão dessa tese no que concerne à filosofia platônica, que dificilmente poderia ser chamada de
contemplativa, pois tinha deliberadas finalidades políticas. Mas certamente é exata no que diz respeito a
Aristóteles (v. FILOSOFIA; SABEDORIA). Uma das conseqüências do ideal contemplativo de vida foi o
desprezo pela "banausia" (v.), isto é, pelo trabalho manual; outra conseqüência foi a reconhecida
superioridade das ciências chamadas teoréticas sobre as chamadas práticas e, em geral, da atividade
teorética. "Essa atividade", diz Aristóteles, "é por si mesma a mais elevada, já que a inteligência é o que
há de mais elevado em nós; entre as coisas cognoscíveis, as mais elevadas são aquelas de que se ocupa a
inteligência". Portanto, a vida teorética é superior à humana. "O homem não deve, como dizem alguns,
conhecer as coisas humanas, como homem, conhecer as coisas mortais, como mortal, mas tornar-se o
mais imortal possível e fazer de tudo para viver segundo o que nele há de mais elevado: embora isso seja
pouco em quantidade, supera em potência e calor todas as outras coisas" (Et. nic, X, 7, 1177 b 31).
Aristóteles contrapunha explicitamente, no capítulo citado da Ética, a vida teorética, a do político e a do
guerreiro que, segundo os antigos, eram
CONTEMPLATIVA, VIDA
199
CONTEXTO
as mais elevadas. Sobre essa noção deveria basear-se toda a filosofia pós-aristotélica, dos epicuristas aos
neoplatônicos, destinada a exaltar a figura do "sábio", do homem cuja vida se resume ou se esgota na
contemplação. A filosofia medieval continua essa tradição. Se o Misticismo (v.) vê na vida C. a finalidade
do homem e no caminho que leva a ela a única atividade de valor, para a Escolástica, com S. Tomás (5.
Tb., II, 1, q. 3, a. 5), a vida C. é não só a bem-aventurança última e perfeita a ser obtida na outra vida,
como também a bem-aventurança menor e imperfeita que se pode alcançar nesta. Uma das características
do Humanismo e do Renascimento é a ruptura dessa tradição e o reconhecimento do valor da vida prática
ou ativa, do trabalho e da atividade mundana. E a Reforma, ao menos nesse ponto, coincide com o
Renascimento. Bacon afirmava, nessa linha, o caráter prático e ativo do próprio conhecimento (scire
estposse, Nov. Org., I, 3), no sentido de que este visa a estabelecer o domínio humano sobre a natureza.
As análises dos empiristas ingleses nos sécs. XVII e XVIII mostravam a conexão entre o conhecimento e
a experiência vivida do homem e, com Hume, a subordinação da primeira à segunda. No séc. XVIII, o
Iluminismo vê no conhecimento essencialmente um instrumento de ação, um meio para agir sobre'o
mundo e melhorá-lo: o ideal da vida C. parece abandonado. Contudo, retorna e prevalece no Romantismo,
para o qual o conhecimento é o ponto final de chegada; portanto, a vida C. é ápice do processo cósmico,
aquele no qual esse processo alcança a realidade última por meio da consciência, (entendida no sentido de
CONSCIÊNCIA1
[ver]). Hegel assim concluía sua Enciclopédia: "A Idéia, eterna em si e por si, atualiza-se,
produz-se e compraz-se em si mesma eternamente, como Espírito Absoluto"; e acrescentava, como um
selo de sua obra, o trecho de Aristóteles (Met., XI, 7), em que se fala da vida divina como "pensamento do
pensamento". Esse renascimento do espírito C, que se manifestou em todas as direções nas quais o
Romantismo agiu, começou a ser duramente atacado a partir de meados do séc. XIX. Marx contrapôs à
filosofia C. a não-filosofia da práxis, empenhada em transformar, mais do que em conhecer, a realidade
(Teses sobre Feuerbach, 1845, § 3, 11). Nietz-sche insistiu no caráter de renúncia e de enfraquecimento
vital da vida C. e do desinteresse teórico (Die Froeliche Wissenschaft, § 345). As
filosofias da ação e o pragmatismo insistiram na subordinação do conhecimento à ação e às suas
exigências. Por fim, o existencialismo considerou as situações chamadas de cognitivas como modos de
ser do homem no mundo, tornando sem sentido a distinção entre vida C. e vida prática. O reconhecimento
da ilegitimidade dessa distinção talvez seja o traço mais característico da filosofia contemporânea. Por um
lado o conhecimento, em todos os seus graus e formas, implica a aplicação de métodos, técnicas ou
instrumentos inerentes à situação humana no mundo, podendo ser considerados de natureza prática. Por
outro, a própria vida C. não passa de delimitação dos interesses a certa esfera de problemas e não a outra;
portanto é uma diretriz de vida prática, escolhida e deliberada. Desse ponto de vista, a exaltação da vida
C. aparece sobretudo como distorção profissional do filósofo, que privilegia sua atividade, considerando-a
superior a todas as outras.
CONTEÚDO. V. COMPREENSÃO.
CONTEXTO (in. Context; fr. Contexte, ai. Kontext; it. Contesto). Conjunto dos elementos que
condicionam, de um modo qualquer, o significado de um enunciado. O C. é definido por Ogden e
Richards do seguinte modo: "C. é o conjunto de entidades (coisas ou eventos) correlacionadas de certo
modo; cada uma dessas entidades tem tal caráter que outros conjuntos de entidades podem ter os mesmos
caracteres e estar ligados pela mesma relação; recorrem quase uniformemente" (The Meaning of
theMeaning, 10a
ed., 1952, p. 58). Essa definição parece obscura, mas fica mais clara graças à explicação
que se segue.- "Um C. literário é um grupo de palavras, incidentes, idéias, etc. que em dada ocasião
acompanha ou circunda aquilo que dizemos ter um C, enquanto C. determinante é um grupo dessa
espécie que não só ocorre repetidamente, mas é tal que pelo menos um de seus membros é determinado,
quando os outros são dados" (Ibid., p. 58, n. 1). Em outros autores, é chamado de C. o conjunto de
pressupostos que possibilitam apreender o sentido de um enunciado. Diz S. K. Langer: "O nome de uma
pessoa, como todos sabem, traz à mente certo número de acontecimentos de que ela tomou parte. Em
outros termos, uma palavra mnemônica estabelece um C. no qual ela se nos apresenta; e nós a usamos
ingenuamente, esperando que seja compreendida com seu C." (Philosopby in a New Key, ed.
CONTEXTUAUSMO
200
CONTINGENTE
Penguin Books, cap. V, p. 110). Em todo caso, é o conjunto lingüístico de que o enunciado faz parte e que
condiciona seu significado (de modos e em graus que podem ser muito diferentes).
CONTEXTUAOSMO (in. Contextualism). Corrente do pragmatismo que acentua a mobilidade temporal
dos eventos e os considera em estreita relação com os outros eventos que pertencem ao mesmo contexto.
(Cf. S. C. PEPPER, Aesthetic Quality: A contextualistic Theory of Beauty, Nova York, 1938; L. E. HAHN, A
Contextualistic Theory of Perception, Berkeley-Los Angeles, 1942).
CONTIGÜIDADE, ASSOCIAÇÃO POR (in. Association by contiguity, fr. Association par contiguitê,
ai. Berührungs-Association; it. Associazioneper contiguita). Uma das formas de associação de idéias,
conhecidas já por Aristóteles {De memória, 2, 451 b 20) (v. ASSOCIAÇÃO DE IDÉIAS).
CONTINGENTE (lat. Contingens; in. Con-tingent; fr. Contingent; ai. Kontingent; it. Contingente). 1.
Os escolásticos latinos traduziram por esse termo o aristotélico èv8e%ó\i£Vov {De int, 12, 20 b 35).
Boécio, a quem se deve a determinação de boa parte da terminologia filosófica latina, já observava que
possibile e contingens significam a mesma coisa, salvo talvez pelo fato de não existir o negativo de
contingens, que deveria ser incontingens, assim como existe o negativo de possibile, que é impossibile
(De interpretatione, [II], V; P. L., 64s
, col. 582-83). Todavia, na tradição escolástica, e sobretudo por
influência da filosofia árabe, o termo C. passou a ter significado específico, diferente do que se entende
por "possível"; passou a significar aquilo que, embora sendo possível "em si", isto é, em seu conceito,
pode ser necessário em relação a outra coisa, ou seja, àquilo que o faz ser. P. ex., um acontecimento
qualquer do mundo é C. no sentido de que: le considerado de per si, poderia verificar-se ou não; 2a
verifica-se necessariamente pela sua causa. Desse ponto de vista, enquanto o possível não só não é
necessário em si, mas tampouco é necessariamente determinado a ser, o C. é o possível que pode ser
necessariamente determinado e, portanto, pode ser necessário. Por isso, a noção de C. é ambígua e pouco
coerente, mas seu uso na filosofia antiga e moderna é bem grande. Esse uso foi introduzido pelo
necessitarismo árabe, especialmente por Avi-cena. "Se uma coisa não é necessária em relação a si mesma", dizia Avicena, "é preciso que seja possível em relação a si mesma, mas necessária em
relação a uma coisa diferente" (Met., II, 1, 2). O que é possível permanece sempre possível em relação a
si mesmo, mas pode ocorrer que seja de modo necessário em virtude de uma coisa diferente de si (Ibid.,
II, 2, 3). Desse modo, tudo o que existe, de Deus à coisa natural mais ínfima, existe necessariamente,
segundo Avicena. Mas enquanto Deus e as realidades primeiras são necessárias em si, as coisas finitas são
necessárias "para outra coisa", já que em si mesmas são possíveis; e nesse sentido são contingentes. Essa
noção não se alterou substancialmente em toda a filosofia escolástica nem na filosofia moderna, que, no
entanto, utiliza-a muito menos. S. Tomás, que define o C. como possível, isto é, como "o que pode ser ou
não ser", reconhece que nele já podem ser encontrados elementos de necessidade (S. Th., I, q. 86, a. 3).
Duns Scot reproduz a noção de Avicena, defendendo-a da acusação de contradição (Op. Ox., 1, d. 8, q. 5,
a. 2, n. 7). Essa noção reaparece com a clareza desejável na doutrina de Spinoza: segundo ele uma coisa
só pode ser considerada por um defeito de nosso conhecimento (Et., I, 33, scol. 1), já que na realidade,
nada há de C. e tudo é determinado pela natureza divina para ser e para atuar de certo modo (Ibid., I, 29).
A Escolástica falava também de "verdades C", que são as que se referem a eventos C. (p. ex., OCKHAM,
In Sent., prol., q. 1. Z). Leibniz dizia que as verdades C. se distinguem das verdades necessárias assim
como os números incomensuráveis se distinguem dos comensuráveis, isto é, no sentido de que, assim
como é possível obter resolução dos números incomensuráveis à medida comum, também é possível obter
a redução das verdades necessárias a verdades idênticas. Isso, porém, exigiria um progresso infinito para
as verdades C. (ou de fato), progresso que pode ser efetuado somente por Deus (Op., ed. Erdmann, p. 83).
Em sentido análogo, fala-se hoje de "contingência lógica", no sentido de que não se pode comprovar se as
proposições empíricas são verdadeiras ou falsas a partir de qualquer de seus caracteres lógicos: é o que
faz C. I. Lewis (Analysis ofKnowledge and Valua-tion, p. 340). Carnap no mesmo sentido usa esse termo
(Meaning and Necessity, § 39) (v.
MODALIDADE; POSSÍVEL).
2. Na filosofia contemporânea, sobretudo na francesa a partir da obra de Boutroux, A
CONUNGENTIA
201
CONTÍNUO
■ contingência das leis da natureza (1874), o > termo C. passou a ser sinônimo de "nâo-de-terminado",
isto é, de livre e imprevisível; designa especialmente o que de livre, nesse sentido, se í encontra ou age no
mundo natural. Bergson adota esse termo no mesmo sentido: "O papel da contingência é importante na
evolução. C, o mais das vezes, são as formas adotadas, ou melhor, inventadas. C, relativamente a obstá-1
culos encontrados em tal lugar e em tal momento, é a dissociação da tendência primordial em diversas
tendências complementares que produzem linhas divergentes de evolução. C. são as paradas e os
retornos" (Évol. créatr., 11a ed., p. 277, 1911). Nesse sentido, contingência identifica-se com liberdade e
ambas se opõem a necessidade; ao passo que a possibilidade, segundo Bergson, é só a imagem que a
realidade, em sua autocriação C, isto é, "imprevisível e nova, projeta de si mesma em seu próprio
passado" (La pensée et le mouvant, p. 128). O uso do termo "contingência" nesse significado caracteriza
as correntes do chamado indeter-minismo (v.) contemporâneo: doutrinas filosóficas que interpretam a
natureza em termos de liberdade e de finalidade, isto é, em termos de espírito. A esse significado também
se reporta o uso desse termo por Sartre, para quem contingência é o fato, de a liberdade "não poder não
existir". Corttingência, portanto, é a liberdade na relação do homem com o mundo (Vêtre et le néant, p.
567).
CONTINGENTIA Uma das provas da existência de Deus é conhecida como a contin-gentia mundi (v.
DEUS, PROVAS DE).
CONTINGENTISMO. Esta palavra não faz referência ao significado tradicional ou clássico de
contingência, mas ao significado contemporâneo desse termo como sinônimo de liberdade (no sentido
infinito ou incondicionado). Portanto, refere-se sobretudo às várias formas do espiritualismo (v.), que
afirmam a presença e a ação, no próprio mundo da natureza, de um Princípio Livre (divino).
CONTINUO (gr. oi)ve%éç; lat. Continuum; in. Continuous; fr. Continu-, ai. Stelig; it. Continuo). A
noção de C. é matemática, embora os filósofos tenham contribuído para a sua elaboração e a tenham
utilizado muitas vezes. A primeira definição explícita de C. é dada por Aristóteles (que talvez retome um
conceito de Anaxágoras, Fr. 3, Diels), segundo o qual C. é "o divisível em partes sempre divisíveis" (Fís.,
VI, 2, 232 b 24), não podendo, portanto, resultar de elementos indivisíveis, de átomos (Ibid., VI, 1, 231 a 24). Em Aristóteles, esse conceito alterna-se
com outro, mais intuitivo e menos matemático, segundo o qual C. é uma espécie de "contíguo", no
sentido de que são contínuas as coisas cujos limites se tocam e de cujo contato surge certa unidade (Met.,
XI, 12, 1069 a 5 ss.). Este último conceito encontrava-se em Parmênides (Fr. 8, 24, Diels) e não é
utilizado pelo pensamento moderno. O único a lembrá-lo é Peirce, que se reporta explicitamente a
Aristóteles, declarando que não é totalmente satisfatória a definição de C. dada por Cantor (Chance, Love
and Logic, II, 3; trad. it., pp. 153 ss.).
A primeira definição dominou a tradição da matemática até Leibniz. Este ressaltou a importância
filosófica da "lei de continuidade" e redefiniu C. Segundo a lei de continuidade, o repouso pode ser
considerado um movimento que se desvanece depois de ser continuamente diminuído. De modo análogo,
a igualdade é uma desigualdade que se desvanece, assim como aconteceria no caso da diminuição
contínua do maior de dois corpos desiguais, dos quais o menor conservasse sua grandeza (Théod., II, §
348). A lei de continuidade aconselha admitir infinitos graus na constituição e na ação das substâncias que
compõem o universo. "Cada uma dessas substâncias", diz Leibniz, "contém em sua natureza uma lei de
continuidade da série de suas operações" (Op., ed. Erdmann, p. 107). A lei de continuidade também vale
para o mundo das representações, no qual "as percepções notáveis provêm gradualmente daquelas que são
pequenas demais para serem notadas" (Nouv. ess., Introd.). Leibniz definiu C. no sentido de que, nele, "a
diferença entre dois casos pode ser reduzida a menos de qualquer grandeza dada" (Mathe-matische
Schriften, ed. Gerhardt, VI, p. 129). É esse o conceito a que Kant alude: "A propriedade das quantidades,
pela qual nelas não há parte que seja a menor possível (uma parte simples) é chamada de continuidade
delas" (Crít. R. Pura, Antecipações da percepção). Na matemática moderna, duas etapas importantes na
definição do C. são as constituídas pelos postulados de Dedekind (Continuidade e números racionais,
1872) e de Cantor (nos Ma-thematische Annalen, de 1878 a 1883). O postulado de Dedekind diz:
"Dividindo-se todos os pontos de uma reta em duas classes, de tal modo que cada ponto da primeira
preceda
CONTÍNUO
202
CONTRAÇÃO
cada ponto da segunda, existe um ponto, e só um, que assinala a divisão de todos os pontos em duas
classes e da reta em dois segmentos". O postulado de Cantor é mais restrito: "Dadas sobre uma reta r duas
classes C e C de pontos, tais que: lfi cada ponto de C esteja à esquerda de cada ponto de C; 2a
tomando-se
um segmento qualquer y, seja possivel achar um segmento menor que y do qual um extremo seja um
ponto de C e o outro um ponto de C; existe então sobre a reta r um ponto de separação das duas classes."
Russell expressou o mesmo conceito a propósito do movimento, afirmando: "O intervalo entre dois
instantes quaisquer ou duas posições quaisquer é sempre finito, mas a continuidade do movimento nasce
do fato de que, por mais próximas que estejam as duas posições consideradas, ou os dois instantes, há
uma infinidade de posições ainda mais próximas, ocupadas por instantes que são igualmente mais
próximos" (Scientific Metbod in Philosophy, 1926, V; trad. fr., p. 111). No entanto, essas definições de C.
têm caráter paradoxal porquanto parecem querer inferir o C. da imagem do descontínuo, isto é, de um
conjunto de instantes, de pontos ou de posições. Nos últimos tempos, deu origem a discussões acaloradas
entre os matemáticos, alguns dos quais tendem a voltar à noção "intuitiva" de C, assumido às vezes como
conceito originário. Brouwer, p. ex., vê a estrutura do C. na "aproximação que progride mais ou menos
livremente" (Cf. From Frege to Gódel, ed. J. von Heijenoort, 1967, p. 342).
O uso filosófico da noção de C. tem, porém, pouco ou nada que ver com essas especulações matemáticas.
Entre os pensadores modernos, um dos que mais utilizam essa noção é Mach, que a esclarece do modo
seguinte: "Se um intelecto investigante se habituou a reunir no pensamento dois fatos, ae b, procurará, no
que for possível, manter firme esse hábito mesmo em circunstâncias diferentes: em geral, sempre que a se
apresentar, b também será pensado. Esse princípio, que tem raiz na tendência à economia e que se se
mostra bastante claro aos grandes pensadores, nós chamamos de princípio da continuidade" (Analyse der
Empflndungen, IV, § 1; trad. it., p. 71). Como se vê, a continuidade aqui é revocada ao princípio do
hábito, encontrado em Hume, mas não é esclarecida conceitualmente. Por outro lado, Dewey, que
considera a lei de continuidade como "o postulado fundamental da teoria naturalista da lógica", determina a noção de continuidade mais negativamente e por imagens do que de forma
rigorosa. Diz que ela "significa exclusão da ruptura completa, por um lado, e da simples repetição ou
identidade, por outro; nega a redutibilidade do 'mais alto' ao 'mais baixo', como nega as separações e os
cortes nítidos. O crescimento e o desenvolvimento de uma natureza viva, que vai da semente à
maturidade, ilustra bem o significado dessa palavra" (Logic, cap. II; trad. it., p. 59). Aqui, como se vê,
além do recurso à imagem do organismo vivo só há duas determinações negativas que são: ls
) exclusão de
divisão e 2B
) exclusão de unidade entre as partes do contínuo. Em sentido ainda mais impreciso, essa
palavra é usada quando se fala de continuidade da evolução, do desenvolvimento, do progresso, ou da
história. A propósito desta última, a continuidade parece significar, na maioria das vezes, a permanência
de certos elementos, motivos ou fatores, portanto certa unidade ou semelhança entre as várias fases. A
"continuidade da história da filosofia", p. ex., é entendida quase sempre como a permanência, através
dela, de certas noções, diretrizes ou princípio gerais. Por outro lado, se refletirmos que aquilo que Dewey
chama de "postulado naturalista da continuidade" entre biologia e lógica é a ação condicionadora que as
situações biológicas exercem sobre a organização e o desenvolvimento das pesquisas, logo veremos que a
noção de permanência não é apta a definir o conceito suficientemente generalizado de continuidade. A
esse respeito, limi-tando-nos ao uso que essa palavra tem na linguagem filosófica e comum de hoje,
podemos dizer que, em geral, se fala de continuidade entre duas coisas sempre que é possível reconhecer
entre essas duas coisas uma relação ■■ qualquer. Portanto, relações de causalidade ou de
condicionamento, de contigüidade ou de semelhança, podem ser consideradas sinais, -; provas ou
manifestações de continuidade; assim como, por outro lado, podem ser assim consideradas até mesmo
relações de oposição, de contradição, de disparidade ou de conflito, > visto que nem mesmo essas formas
de relação implicam um corte nítido entre as coisas que ■ opõem, nem a falta de uma relação qualquer.
CONTRAÇÃO (lat. Contractio; in. Contrac-tion; fr. Contraction; ai. Kontraction; it. Contra-zionê).
Termo empregado por Duns Scot para indicar o determinar-se e o restringir-se da "natureza comum" (p.
ex., a natureza humana) á
CONTRADIÇÃO
203
CONTRADIÇÃO, PRINCÍPIO DE
um indivíduo determinado, ad esse hanc rem (Op. Ox, II, d. 3, q. 5, n. 1). Utilizando essa expressão
escolástica no mesmo sentido (cf. De docta ignor., II, 4: "A C. se diz em relação a algo, p. ex., a ser isto
ou aquilo"), Nicolau de Cusa chamou o mundo de "Deus contraído", no sentido de que ele, como Deus, é
o máximo, a unidade, a infinitude, mas contraídas, isto é, determinadas e individualizadas numa
multiplicidade de coisas singulares (.Ibid, II, 4). Na Escolástica tardia, certamente por influência do
Escotismo, essa palavra às vezes foi empregada para indicar o determinar-se do gênero nas espécies e da
espécies nos indivíduos.
CONTRADIÇÃO (gr. àvxúpacnç; lat. Con-tradictio-, in. Contradiction; fr. Contradiction; ai.
Widerspruch; it. Contraddizionè). Aristóteles (An. post., I, 2, 72 a 12-14) define-a como "oposição que,
por si só, exclui o caminho do meio"; em An.pr., I, 5, 27 a 29, tal relação é explicada como relação entre
proposição universal negativa e particular afirmativa, universal afirmativa e particular negativa. Esses são
os pares (AO, EI) das propositiones contradic-toriae no chamado "quadrado de Psello" dos textos
medievais de Lógica. O essencial nos pares de proposições contraditórias é que ambas não podem ser
verdadeiras (princípio de C.) nem falsas (princípio do terceiro excluído). '
G. P. CONTRADIÇÃO, PRINCÍPIO DE (gr òtÇkoua Tfjç àvxKpáoecDÇ; lat. Principium contradictionis; in. Principie of contradiction; fr. Príncipe de contradiction-, ai. Satz der Widers-pruchs; it.
Principio di contraddizionè). Tendo nascido como princípio ontológico, o princípio de C. só passou para
o campo da lógica no séc. XVIII, para tornar-se, nesse mesmo século, uma das "leis fundamentais do
pensamento". Como princípio ontológico, foi admitido explicitamente, pela primeira vez, por Aristóteles,
que o tomou como fundamento da "filosofia primeira", ou metafísica. Segundo Aristóteles, esse princípio
serve, em primeiro lugar, para delimitar o domínio próprio dessa ciência, permitindo abstrair o seu objeto,
o ser como tal, de todas as determinações às quais está ligado, do mesmo modo como os axiomas da
matemática e da física permitem abstrair seus objetos (respectivamente a quantidade e o movimento) de
outras determinações às quais estão ligados (Mel, IV, 3). Aristóteles, porém, constantemente formula esse
princípio de duas maneiras. Uma é estreitamente ontológica, e se expressa
assim: "Nada pode ser e não ser simultaneamente" (Ibid, III, 2, 996 b 30; IV, 2, 1005 b 24); a outra
poderia ser chamada de lógica e se expressa assim: "E impossível que a mesma coisa, ao mesmo tempo,
seja inerente e não seja inerente a uma mesma coisa sob o mesmo aspecto" (Ibid., IV, 2. 1005 b 20), ou
então: "É necessário que toda asserção seja afirmativa ou negativa" (Ibid., III, 2, 996 b 29). Aristóteles
considera esse princípio indemonstrável, mas acha que pode ser defendido de seus opositores, entre os
quais os megáricos, os cínicos, os sofistas e os heraclitistas, mostrando-se que, se eles afirmam algo de
determinado, negam a negação desse algo e assim se valem desse princípio (Ibid., IV, 4). Portanto, o valor
desse princípio é estabelecido por Aristóteles em relação ao que é determinado (tóôe xí). "Se a verdade",
diz Aristóteles, "tem um significado, necessariamente quem diz homem diz animal bípede, já que isso
significa homem. Mas se isso for necessário não será possível que o homem não seja animal bípede, pois
a necessidade significa justamente que é impossível que o ser não seja" (Ibid., IV, 4,1006 b 28). Assim, o
princípio de C, referindo-se ao ser determinado, permite abstrair desse ser o que há de necessário: a
substância ou a essência substancial: no exemplo do homem, o animal bípede é precisamente a
substância, a essência substancial ou a definição do homem. Desse modo, o princípio de C. leva a
considerar a filosofia primeira, que é a ciência do ser enquanto ser, como teoria da substância. Diz
Aristóteles: "O que há muito tempo, agora e sempre procuramos, o que sempre será um problema para
nós, ou seja, 'o que é o ser', significa 'o que é a substância?'" (Ibid., VII, 1, 1028 b 2). O significado que o
princípio de C. tem na metafísica de Aristóteles realiza-se, pois, nas noções fundamentais dessa
metafísica, que são as de substância (v.), de essência necessária (v. ESSÊNCIA) e de causa (v.
CAUSALIDADE). Mas para Aristóteles, esse princípio também possui alcance lógico. Ele diz que, embora o
princípio de C. não seja assumido expressamente por nenhuma de-monsLração, é a base do silogismo na
medida em que, considerando-se a noção de homem ou a de não-homem, desde que se admita que o
homem é um animal, sempre resultará verdadeiro afirmar que Cálias é animal e não um não-animal; diz
que ele é o fundamento da redução ao absurdo (An. post., I, 11, 77 a 10). A estrutura silogística é assim
sustentada, tanto na
CONTRADIÇÃO, PRINCÍPIO DE
204
CONTRADIÇÃO, PRINCÍPIO DE
sua forma positiva quanto na negativa, pelo princípio de C: o que não causa espanto, dado que para
Aristóteles a estrutura silogística reproduz a estrutura substancial do ser (v. SILOGISMO).
Na forma dada por Aristóteles, esse princípio permaneceu muito tempo como fundamento da metafísica
clássica. As discussões do séc. XIII sobre o modo de expressá-lo com mais simplicidade e economia
redundaram na formulação daquilo que depois se chamou de princípio de identidade (v.), mas não
abalaram a supremacia do princípio de C. Descartes (Princ.phil., I, 49) e Locke (Ensaio, I, 1,4) ainda o
admitiam como verdade indubitável, mas já ignoravam completamente seu valor ontológico, que, para
Aristóteles, era primordial. Mas foi Leibniz quem levou o princípio de C. de uma vez por todas para a
esfera da lógica.- considerou-o exclusivamente fundamento das verdades de razão, enquanto dizia que as
verdades de fato baseavam-se no princípio de razão suficiente (Monad., §§ 11-32). Segundo Leibniz,
esses dois princípios constituíam a base de todas as verdades e, portanto, de todo o edifício do
conhecimento humano (Nouv. ess., IV, 2, 1). Wolff ainda incluía o princípio de C. na ontologia, mas
considerava-o como um princípio natural da mente humana (Ont, § 27). E Baumgarten encontrava a sua
fórmula clássica: A + não-A = 0, chamando-o de princípio absolutamente primeiro e colocando-o à frente
de sua ontologia (Mel, § 7). Kant preferia exprimi-lo num de seus primeiros textos com fórmula: "Aquilo
cujo oposto é falso é verdadeiro" (Principiorum Primorum Cognitionis Metaphy-sicae Nova Dilucidatio,
1755,1, prop. II, scol.). Mais tarde, em Crítica da Razão Pura, dizia: "A coisa nenhuma convém um
predicado que a contradiga" e considerava-o "princípio geral plenamente suficiente de todo conhecimento
analítico", eliminando dele, porém, a determinação temporal contida na expressão aris-totélica; porque,
dizia ele, "enquanto princípio simplesmente lógico, não deve limitar suas expressões às relações de
tempo" (Crít. R. Pura, Analítica dos Princípios, cap. II, séc. I). Esse era substancialmente o ponto de vista
de Leibniz. Depois de Kant, o princípio de C. foi considerado uma das "leis fundamentais do
pensamento" (KRUG, Logik, 1832, p. 45; FRIES, System der Logik, 1837, p. 121; HAMILTON, Lec-tures on
Logic, I, p. 72), qualificação honrosa
que distinguiu durante muito tempo os princípios lógicos e que às vezes ainda é empregada.
Um retorno ao uso metafísico do princípio de C. ocorreu com Fichte e com Hegel. Tratava-se então da
metafísica subjetivista do idealismo, para a qual nada existe fora da autocons-ciência racional. Fichte
chamava o princípio de C. "princípio da oposição", expressando-o com a fórmula "- A não = A" (que se lê
"não - A não igual a A"), que julgava exprimir o ato pelo qual o Eu opõe a si mesmo um não-Eu, isto é,
uma realidade ou uma coisa (Wissenschafts-lehre, 1794, § 2). Hegel considerava o princípio de C, e o de
identidade, como "a lei do intelecto abstrato" (Ene, § 115). E contrapunha-lhe a lei da "razão
especulativa", que seria: "Todas as coisas se contradizem em si mesmas". Essa lei seria a raiz de qualquer
movimento e da vida, servindo de fundamento para a dialética (Wis-senschaft der Logik, ed. Glockner, I,
pp. 545-46). Por outro lado a dialética (v.) é a identidade dos opostos, de tal modo que a C, conquanto
seja a raiz da dialética (do movimento e da vida), não é à dialética, que, aliás, procede continuamente,
conciliando e resolvendo as C. e estabelecendo para além delas o que o próprio Hegel chama de
identidade ou unidade (d. Wissenschaft der Logik, I, p. 100). No mesmo sentido, Gentile falava do
princípio de identidade como da "lei fundamental do pensamento" no campo da "lógica do abstrato"
(Sistema di lógica, 1922, II, 1, § 6), ao mesmo tempo em que falava da unidade do Espírito consigo
mesmo e com a realidade. Essas e outras críticas semelhantes ao princípio de C. (assim como aos outros
princípios lógicos) são inconcludentes. Por um lado, visam a um uso muito mais dogmático e metafísico
desses princípios, pois tendem a utilizá-los para explicar "o movimento e a vida" da realidade inteira. Por
outro, o algo das críticas são moinhos de vento, pois, quando Leibniz e Kant afirmavam que o princípio
de C. é o fundamento das verdades idênticas ou analíticas, não pretendiam dizer que ele é o fundamento
de verdades do tipo "um planeta é um planeta", "o magnetismo é o magnetismo", "o espírito é o espírito",
como julgava Hegel (Ene, § 115), mas aludiam às verdades matemáticas e lógicas redutíveis a tautologias.
No entanto, coube à lógica matemática moderna renunciar a considerar os princípios lógi- ; cos como
princípios da lógica ou mesmo como "leis fundamentais do pensamento". Já na obra
CONTRAPOSIÇÃO
205
CONTRATUAUSMO
de G. Boole (Laws ofThought, 1854), os princípios lógicos desapareceram como axiomas da lógica e
foram substituídos, nessa função, pela definição das operações lógicas fundamentais, cujos modelos são
as operações da aritmética. Boole considerava o princípio de C. como um teorema derivado de uma
expressão lógica mais fundamental ilbid., cap. III, IV, ed. Dover, p. 49). A partir de Boole, os princípios
assumidos como fundamento da lógica são simplesmente as definições de funções, constantes lógicas,
variáveis lógicas, conectivos e operadores. Os chamados princípios lógicos que ainda são honrados às
vezes com o nome de "leis" reduzem-se a tautologias no cálculo das proposições (cf., p. ex.,
REICHENBACH, The Theory of Probability, § 4), ou a teoremas do mesmo cálculo (cf., p. ex., A. CHURCH,
Introduction to Mathematical Logic, § 26, 13).
Isso não quer dizer que a consistência formal de um discurso, ou seja, a compatibilidade recíproca das
asserções que o constituem, tenha perdido importância. Significa apenas que, para cada sistema
lingüístico, essa compatibilidade é definida pelas regras de transformação ou de inferência, de implicação
ou de sino-nímia explicitamente adotadas no próprio sistema ou às quais se faz referência tácita. O
princípio de tolerância (v.), na forma dada por Carnap, afirma: "Não"nos cabe impor proibições, mas só
chegar a convenções". Isso significa que "em lógica não há moral e que cada um está livre para construir
sua própria lógica, isto é, sua forma de linguagem, como desejar. Tudo o que deve fazer, se quiser discutir
o assunto, é declarar claramente seus métodos e, em vez de argumentos filosóficos, dar as regras
sintáticas do seu discurso" (CARNAP, The Logical Syntax of Language, § 17).
CONTRAPOSIÇÃO (gr. àvoGeoiÇ; lat. Con-trapositia, in. Contraposition; fr. Contraposition; ai.
Kontraposition; it. Contrapposizionè). Uma das formas da conversão (v.) das proposições, que consiste
em negar o contrário da proposição convertida de forma tal que, p. ex., a partir de "todo homem é
animal", se conclua que todo não-animal é não-homem" (cf. ARISTÓTELES, Top., II, 8, 113 b ss.).
CONTRARIEDADE (gr. èvaVTiótnç; lat. Contrarietas; in. Contrariety, fr. Contrariété, ai.
Kontrarietat; it. Contrarietã). 1. Uma das quatro formas da oposição (v.), mais precisamente a que ocorre
entre "os termos que, dentro do mesmo gênero, distam maximamente entre si"
(ARISTÓTELES, Cat., 6, 6 a 17). Estão em oposição contrária o verdadeiro e o falso, o bem e o mal, o calor
e o frio, etc. Aristóteles observa que os contrários se excluem absolutamente, que não existe entre eles
noção intermediária e que ao menos um deles deve pertencer ao objeto: p. ex., não há termo intermediário
entre doença e saúde, porque o organismo animal deve estar necessariamente sadio ou doente. Há, porém,
termo intermediário entre branco e preto, entre excelente e péssimo, etc, porque nenhum desses caracteres
deve necessariamente pertencer a um objeto {Ibid., 10, 11 b 32 ss.). (Cf. PEDRO HISPANO, Summ. log., 3-
32.)
2. Como termo distinto de subcontrariedade (v.), a C. é a relação entre a proposição universal afirmativa
("todo homem corre") e a proposição universal negativa ("nenhum homem corre"). Cf. ARISTÓTELES, De
Int., 7,17 b 4; PEDRO HISPANO, Summ. log., 1. 13.
CONTRATUALISMO (in. Contractualism; fr. Contractualisme, ai. Kontraktualismus-, it.
Contrattualismó). Doutrina que reconhece como origem ou fundamento do Estado (ou, em geral, da
comunidade civil) uma convenção ou estipulação (contrato) entre seus membros. Essa doutrina é bastante
antiga, e, muito provavelmente, os seus primeiros defensores foram os sofistas. Aristóteles atribui a
Licofron (discípulo de Górgias) a doutrina de que "a lei é pura convenção (syntbeké) e garantia dos
direitos mútuos", ao que Aristóteles opõe que, nesse caso, ela "não seria capaz de tornar bons e justos os
cidadãos" (Pol, III, 9, 1280 b 12). Essa doutrina foi retomada por Epicuro, para quem o Estado e a lei são
resultado de um contrato que tem como único objetivo facilitar as relações entre os homens. "Tudo o que,
na convenção da lei, mostra ser vantajoso para as necessidades criadas pelas relações recíprocas é justo
por sua natureza, mesmo que não seja sempre o mesmo. No caso de se fazer uma lei que demonstre não
corresponder às necessidades das relações recíprocas, então essa lei não é justa" (Mass. cap., 37).
Carnéades emitiu concepção semelhante no famoso discurso sobre a justiça que proferiu em Roma. "Por
que razão teriam sido constituídos tantos e diferentes direitos segundo cada povo, senão pelo fato de que
cada nação sanciona para si o que julga vantajoso para si?" (CÍCERO, De rep., III, 20).
Eclipsado na Idade Média pela doutrina da origem divina do Estado e, em geral, pela comunidade civil, o
C. ressurge na Idade Moderna e,
CONTRATUALISMO
206
CONTRATUAUSMO
com o jusnaturalismo, transforma-se em poderoso instrumento de luta pela reivindicação dos direitos
humanos. As Vindiciae contra tyran-nos, publicadas pelos calvinistas em 1579, em Genebra, retomam a
doutrina do contrato para reivindicar o direito do povo a rebelar-se contra o rei sempre que ele descurar
dos compromissos do contrato original. No mesmo espírito, João Altúsio generalizou a doutrina do
contrato, utilizando-a para explicar todas as formas de associação humana. O contrato não é só contrato
de governo que rege as relações entre o governante e seu povo, mas é também contrato social no sentido
mais amplo, como acordo tácito que fundamenta toda comunidade (consociatio) e que leva os indivíduos
a conviver, isto é, a participar dos bens, dos serviços e das leis vigentes na comunidade (Política
methodice digesta, 1603). Hobbes e Spinoza puseram a doutrina do contrato a serviço da defesa do poder
absoluto. Assim Hobbes enunciava a fórmula básica do contrato: "Transmito meu direito de governar-me
a este homem ou a esta assembléia, contanto que tu cedas o teu direito da mesma maneira" (Leviath., II,
17). Essa, diz Hobbes, é "a origem do grande Leviatã ou, com mais respeito, do Deus mortal a quem,
depois de Deus imortal, devemos nossa paz e defesa, pois por essa autoridade conferida pelos indivíduos
que o compõem, o Estado tem tanta força e poder que pode disciplinar à vontade todos para a conquista
da paz interna e para a ajuda mútua contra os inimigos externos" (Ibid., II, 17). Por sua vez, Spinoza julga
que o direito do Estado constituído pelo consenso comum só é limitado por sua força, que é o "poder da
multidão" (Tractatus politicus, 2, 17).
Mais freqüentemente, porém, o C. é empregado para demonstrar a tese de que o poder político é
necessariamente limitado. Nesse sentido foi entendido por Grócio, Pufendorf e especialmente por Locke,
que o usou para defender a revolução liberal inglesa de 1688. Dizia Pufendorf: "Se consideramos uma
multidão de indivíduos que gozam de liberdade e de igualdade natural, e querem proceder à instituição de
um Estado, é preciso antes de mais nada que esses futuros cidadãos façam um pacto no qual manifestem a
vontade de unir-se em associação perpétua e de prover, com deliberações e ordens comuns, sua própria
salvação e segurança. Esse pacto pode ser simples ou condicionado: tem-se o primeiro quando alguém
se obriga a participar da associação, seja qual for a forma de governo aprovada pela maioria; o segundo,
quando se acrescenta a condição de que a forma de governo será aprovada por ele mesmo" (De iure
naturae, 1672, VII, 2, 6). Por sua vez, Locke fala do contrato como acordo entre os homens para "uniremse numa sociedade política"; por isso, define-o como "o pacto que existe e deve necessariamente existir
entre indivíduos que se associam ou fundam um Estado" (Two Treatises of Government, 1960, II, § 99).
Criticado por Hume, o C. encontrou em Rousseau uma interpretação que, substancialmente, eqüivaleu a
sua negação. De fato, o C. pressupõe que os indivíduos como tais tenham "direitos naturais" a que
renunciam, para adquirir outros, com o contrato social. Rousseau considera que os indivíduos como tais
são absolutamente desprovidos de direitos e que só os têm como cidadãos de um Estado. Os homens, diz
Rousseau, tornam-se iguais "por convenção e direito legal"; por isso, "o direito de cada indivíduo ao seu
estado particular está sempre subordinado ao direito supremo da comunidade" (Contrato social, 1762,1,
9)- Para Rousseau, o contrato originário afigurava-se mais como um meio de "legitimar" o vínculo social
do que como realidade (Ibid., 1,1); a mesma coisa foi nitidamente afirmada por Kant: "O ato pelo qual o
próprio povo se constitui em Estado, ou melhor, a simples idéia desse ato, que por si só permite conceber
sua legitimidade, é o contrato originário segundo o qual todos (omnes et singult) no povo renunciam à
liberdade externa para retomá-la imediatamente como membros de um corpo comum" (Met. der Sitten, I,
§ 47). Hoje, dificilmente a idéia fundamental de C, na forma elaborada pelos escritores do séc. XVIII,
pode ser considerada um instrumento válido para compreender o fundamento do Estado e, em geral, da
comunidade civil. Contudo, entre os séculos XVI e XVII, a idéia contratualista teve notável força
libertadora em relação aos costu- \ mes e tradições políticas. Hoje, com o uso que as ciências e a filosofia
fazem de conceitos como convenção, acordo, compromisso, a no- ' ção de contrato talvez pudesse ser
retomada para a análise da estrutura das comunidades ! humanas, com base na noção da reciprocidade de
compromissos e do caráter condicionalf dos acordos dos quais se originam direitos e deveres.
CONVENÇÃO
207
CONVENCIONAUSMO
CONVENÇÃO. V. CONVENCIONAUSMO.
CONVENCIONAUSMO (in. Conventiona-lism; fr. Conventionalisme, ai. Konventionalis-mus, it.
Convenzionalismó). Qualquer doutrina segundo a qual a verdade de algumas proposições válidas em um
ou mais campos se deva ao acordo comum ou ao entendimento (tácito ou expresso) daqueles que utilizam
essas proposições. A antítese entre o que é válido "por convenção" e o que é válido "por natureza" já era
familiar para os gregos. Demócrito diz: "O doce, o amargo, o quente, o frio, a cor são tais por convenção;
só os átomos e o vácuo são tais em verdade" (Fr. 125, Diels). O seu oposto, aplicado ao campo político,
foi tema habitual dos sofistas, sobretudo da última geração, que encontram eco nos Diálogos de Platão.
Pólos, em Górgias, Trasímaco, na República, sustentam que as leis humanas são pura convenção, cujo
objetivo é impedir que os mais fortes tirem proveito do direito natural que lhes dá a força. É da natureza
que o mais forte domine o mais fraco; e isso acontece de fato quando um homem dotado de natureza
idônea rompe as cadeias da convenção e de servo se torna senhor (Górg., 484 A). Para os céticos, a lei
moral e jurídica eram convenção (SEXTO EMPÍRICO, Pirr. hyp., I, 146). O contratualismo dos sécs. XVII e
XVIII tornou familiar a idéia de que o Estado e, em geral, a comunidade civil, bem como as normas e os
valores que dela se originam, são produtos de um contrato ou convenção originária. Aludindo a essa
doutrina. Hume notava que a convenção, nesse sentido, deve não ser entendida como promessa formal,
mas como "um sentimento de interesse comum que cada um encontra em seu coração" (Lnq. Cone.
Morais, Ap. 3); e acrescentava: "Assim, dois homens movem as velas de um barco em comum acordo
para o interesse comum, sem qualquer promessa ou contrato; assim, o ouro e a prata foram adotados
como medida para as trocas; assim, o discurso, as palavras, a língua estão fixados pelas convenções e pelo
acordo humano" (Lbid., Ap. 3). Com tais palavras, talvez pela primeira vez, o conceito de convenção era
utilizado fora do campo político.
Mas a extensão do C. para o domínio cognitivo só ocorre na segunda metade do séc. XK, quando, com a
descoberta das geometrias não euclidianas, o caráter de verdade evidente dos axiomas geométricos foi
negado. Diz Poin-caré: "Os axiomas geométricos não são juízos sintéticos apriorinem fatos
experimentais; são
convenções. Nossa escolha entre todas as convenções possíveis é guiada por fatos experimentais, mas
continua livre e é limitada apenas pela necessidade de evitar a contradição" (La science et Vhypothèse, II,
cap. III). O mesmo Poincaré recusava-se, porém, a atribuir caráter convencional à ciência toda e
contestou Le Roy, no que se refere a essa extensão do C. (La valeur de Ia science, 1905).
Contudo, o desenvolvimento posterior da matemática permitiu estender o ponto de vista de Poincaré a
toda essa disciplina. A obra de Hilbert induzia a ver na matemática sistemas hipotético-dedutivos nos
quais se deduzem conseqüências implícitas em certas proposições originárias ou axiomas, segundo regras
que os próprios axiomas definem, implícita ou explicitamente. A tese fundamental do C. moderno podia
ser assim formulada: as proposições originárias, de que parte qualquer sistema dedutivo, são convenções.
O que quer dizer: 1B
não podem ser consideradas verdadeiras nem falsas; 2a
podem ser escolhidas com
base em determinados critérios que deixam, entretanto, certa liberdade de escolha. Graças ao Círculo de
Viena (v.) e do empirismo lógico, o C. assumia a forma que tem, atualmente, de tese geral sobre a
estrutura lógica da linguagem. A Visão lógica do mundo de Rudolf Carnap (1928) constitui a primeira
exposição dessa tese, que, no entanto, fora preparada pelo Tractatus logico-philosophícus de
Wittgenstein. "A lógica", diz Carnap, "incluindo-se nela a matemática, consiste em estipulações
convencionadas sobre o uso de signos e tautologias que se baseiam nessas convenções" (Logische Aufbau
der Welt, § 107). A essa tese Carnap deu depois o nome de "princípio de tolerância das sintaxes", porque
se trata de um princípio que, ao mesmo tempo em que torna inoperantes todas as proibições, aconselha a
estabelecer distinções convencionais. "Em lógica", diz ele, "não há moral. Cada um pode construir como
quiser a sua lógica, isto é, a sua forma de linguagem. Se quiser discutir conosco, deverá apenas indicar
como quer fazê-lo, dar determinações sintáticas em vez de argumentos filosóficos" (Logische Syntax der
Sprache, 1934, § 17). Hoje, pode-se dizer que essa tese é amplamente aceita, mesmo fora do empirismo
lógico. A segunda obra de Wittgenstein, Investigações filosóficas (1953), levou isso ao extremo,
afirmando que qualquer linguagem é uma espécie de "jogo" que parte de determinados pressupostos
CONVENIÊNCIA
208
COPERNICANA, REVOLUÇÃO
de natureza convencional, reconhecendo a fundamental equivalência dos jogos lingüísticos. Deixando de
lado esta última tese e considerando o C. dentro dos limites em que geralmente é mantido, ou seja, o
campo da estrutura lógica da linguagem, cabe ressaltar o fato de que ele não implica absolutamente, como
às vezes se acredita, a perfeita arbitrariedade das convenções lingüísticas. Podem ser assim resumidos os
pontos básicos do C. contemporâneo:
1
Q
a escolha das proposições iniciais de um sistema dedutivo {axiomas [v.] ou postulados [v.]) deve
obedecer a critérios limitativos, cujo objetivo é garantir a possibilidade de re-propor a escolha com vistas
ao desenvolvimento dedutivo;
2
Q
a determinação das regras de dedução, operações e procedimentos também está sujeita a uma escolha
limitada, sempre com vistas à possibilidade de reproportais regras, procedimentos ou operações;
3
a
as escolhas de que se fala nos nQS 1Q
e 2e constituem: a) objetivamente, o campo de investigação
comum em que os pesquisadores podem mover-se; b) subjetivamente, o compromisso dos pesquisadores.
CONVENIÊNCIA. V. ACORDO.
CONVERGÊNCIA, LEI DE (in. Conver-gency law). Foi assim denominado por Whité-head o critério
usado pelo senso comum e pela ciência para obter generalizações fundadas na observação. "Se A e B são
dois eventos e se A' é parte de A, B' é parte de B; então, sob muitos aspectos, as relações entre as partes A'
e B' serão mais simples do que as relações entre A e B. Esse princípio rege todos os esforços para se
chegar à observação exata" (Organization of Thought, 1917, pp. 146 ss.; The Concept of Nature, 1920;
trad. it., p. 73).
CONVERSÃO (gr. àvxtaxpo(pf|; lat. Convênio-, in. Conversion; fr. Conversion; ai. Umke-brueng; it.
Conversioné). Em Aristóteles {An. pr., 1,1, 2) e nos tratados posteriores de Lógica clássica (aristotélica), é
a operação com a qual de um enunciado se extrai outro (considerado equivalente, o que é muito
problemático), mediante a troca das respectivas posições dos termos (sujeito e predicado). Naturalmente,
nem sempre isso é possível, e às vezes só pode ser feito com a introdução de uma mudança no
quantificador ("tudo" e "alguns"). Mais precisamente: a proposição universal afirmativa (p. ex., "todos os
homens são mortais") converte-se, per accidens, em proposição particular
afirmativa ("alguns mortais são homens"); a particular afirmativa e a universal negativa convertem-se
simpliciter, ou seja, mediante troca simples de termos; a particular negativa não pode ser convertida.
CONVICÇÃO (in. Conviction-, fr. Convic-tion; ai. Überzeugung; it. Convinzioné). Termo de origem
jurídica, que designa um conjunto de provas suficientes para "convencer" o réu, isto é, para fazê-lo
reconhecer-se como tal. No uso comum, esse termo significa uma crença que tem suficiente base objetiva
para ser admitida por qualquer pessoa. Nesse sentido, é definida por Kant: "Quando uma crença é válida
para todos, seu fundamento, desde que dotado de razão, é objetivamente suficiente e ela se chama C."
(Crít. R. Pura, Cânon da R. Pura, seç. III). O caráter objetivo da C. contrasta com o caráter subjetivo da
persuasão (v.). Cf. PERELMANN e OLBRECHTS-TYTECA, Traité de 1'argumentation, 1958, § 6.
COORDENAÇÃO (in. Coordination- fr. Co-ordination; ai. Koordinatfon; it. Coordinazio-né). Relação
entre objetos situados na mesma ordem, num sistema de classificação; p. ex., dois gêneros ou duas
espécies estão entre si coordenados, mas um gênero e uma espécie não estão coordenados.
Chama-se de coordenada o conjunto ordenado de números que serve para designar entidades geométricas
(pontos, linhas, etc), ou então as características utilizadas para distinguir ou ordenar várias classes de
objetos.
COPERNICANA, REVOLUÇÃO (in. Coper-nican revolution; fr. Révolution copernicienne, ai.
Kopernikanische Revolution; it. Rivoluzione copernicand). Costuma-se dar esse nome à mudança de
perspectiva realizada por Kant, que, em vez de supor que as estruturas mentais do homem têm a natureza
como modelo, supôs que a ordem da natureza tem as estruturas mentais como modelo. A referência a
Copér-nico foi feita pelo próprio Kant, no Prefácio à segunda edição (1787) da Crítica da Razão Pura.
Dewey observou, a propósito, que a revolução de Kant foi mais uma revolução pto-lomaica, porque fez
do conhecimento humano a medida da realidade. A revolução C. deveria consistir em reconhecer que o
objetivo da filosofia não é ser ou descrever a totalidade do real, porém, mais modestamente, buscar os
valores que podem ser assegurados e divididos por todos, porque vinculados aos fundamentos
CÓPULA
209
CORAÇÃO
da vida social (The Questfor Certainty, 1930, p. 295).
CÓPULA (in. Copula-, fr. Copule, ai. Kopula; ' it. Copula). O uso predicativo de ser{v.).
CORAÇÃO (gr. KCcpSía; lat. Cor, in. Heart; fr. Coeur, ai. Herz-, it. Cuoré). Entre os antigos, só o
pitagórico Alcmeão de Cróton (séc. VI-V 4.C.) considerou o cérebro como sede do pensa-mento ("Digo
que é com o cérebro que enten-, demos", Fr. 17, Diels). Aristóteles considerou ;
o C. como sede das
sensações e das emoções (De part. an., II, 10, 656 a; De anim. mot., 11, 703 b), doutrina que, graças à
autoridade de Aristóteles, prevaleceu em toda a Antigüidade e na Idade Média, até o séc. XVI, quando os
novos estudos de anatomia puderam mostrar que os nervos partem do cérebro. Mas a importância dessa
noção em filosofia não está nessa herança arcaica, mas, na realidade, permaneceu na história da filosofia
para indicar exigências diferentes. No Novo Testamento, significa a relação do homem consigo mesmo,
tanto no desejo {Mat., V, 8, 28) quanto no pensamento e na vontade (ICor., VII, 37), mas na medida em
que pensamento e vontade se consumam em si mesmos ou pelo menos antes que se manifestem
exteriormente. Mas o uso moderno dessa palavra sem dúvida deriva de Pascal, que frisou a importância
das "razões do C." (Pensées, 277). Ao C. Pascal atribuiu duas espécies de conhecimentos específicos: 1Q
o
conhecimento das relações humanas e de tudo o que delas nasce, de tal modo que o C. é o guia
privilegiado do homem no domínio da moral, da religião, da filosofia e da eloqüência; 2- o conhecimento
dos primeiros princípios das ciências e especialmente da matemática. "O C. sente que há só três
dimensões no espaço, que os números são infinitos; em seguida, a razão demonstra que não há dois
números quadrados dos quais um seja o dobro do outro, etc. Os princípios são sentidos, as proposições
são fruto da conclusão: uns e outras têm a mesma certeza, mas obtida por vias diferentes" ilbid., 282). Só
o primeiro desses dois conhecimentos privilegiados deveria continuar a ser atribuído ao C. na filosofia do
séc. XIX. Entrementes, Kant viu no C. apenas a tendência natural que nos torna mais ou menos capazes
de acolher a lei moral (Religion, I, 2). Hegel entendia por C. "o complexo da sensação", isto é, da
experiência imediata e primordial do homem, como quando se diz que "não basta que os princípios
morais e a religião, etc, estejam só na cabeça: devem
estar no C, na sensação" (Ene, § 400). Por outro lado, ele viu na "lei do C." uma figura de sua
Fenomenologia do espírito, mais precisamente a que representa a revolta romântica contra a realidade em
ato, contra a ordem estabelecida. A lei do C. não propõe uma lei determinada, mas só identifica a lei com
as exigências de cada C, entendendo que o conteúdo particular do C. deve valer como tal universalmente.
Nisso está a contradição da lei do C, porque a pretensão de fazer valer universalmente o conteúdo de um
C. particular choca-se com a mesma pretensão de todos os outros C. "Assim como, antes, o indivíduo
achava a lei abominável e rígida, agora acha abomináveis e avessos às suas excelentes intenções os C. dos
homens". Na realidade, para Hegel, o que há de rígido e torturante para o C. singular não é a realidade dos
fatos, mas a lei dos outros C, contra a qual o recurso à realidade é uma libertação (Phãnomen. desGeistes,
I, V, B, b). Na filosofia moderna, especialmente no espiritua-lismo, que recorre com freqüência à noção
de C, esta exprime substancialmente exigências de caráter moral e religioso. Foi Lotze quem, em
Microcosmo (1856), começou a dar ênfase às "aspirações do C", às necessidades da alma" ou "do
sentimento", às "esperanças humanas" como exigências que a filosofia deve impor contra o mecanicismo
da ciência; obviamente, tais necessidades e aspirações nada mais são do que as exigências metafísicas
implícitas nas crenças morais, assim como nas crenças religiosas tradicionais. As necessidades do C.
foram incluídas na definição de filosofia por Wundt, que viu nela "a recapitulação dos conhecimentos
particulares de uma intuição do mundo e da vida, que satisfaça às exigências do intelecto e às
necessidades do C." {System derPhil, 4
a
ed., 1919,1, p-1; Enleitung in die Phil, 3
a
ed., 1904, p. 5). Nestas
e em expressões semelhantes, que se repetem continuamente na filosofia da segunda metade do séc. XIX
e nos primeiros decênios deste, o C. é o símbolo das crenças tradiciopais que podem ser resumidas no
reconhecimento da ordem providencial do mundo, isto é, de uma ordem destinada a salvaguardar os
valores humanos e o destino do homem. Muitas vezes, na filosofia contemporânea, o termo C. se alterna
com consciência (v.), para indicar a esfera privilegiada em que o homem pode alcançar as "realidades
últimas com certeza absoluta".
CORAGEM
210
CORPO1
CORAGEM (gr. àvSpeíoc; lat. Fortitudo; in. Courage, fr. Courage, ai. Muth; it. Coraggió). Uma das
quatro virtudes enumeradas por Platão, chamadas depois de cardeais (v.), e uma das virtudes éticas (v.) de
Aristóteles. Platão define-a como "a opinião reta e conforme à lei sobre o que se deve e sobre o que não
se deve temer" (Rep., IV, 430 b). Aristóteles define-a como o justo meio entre o medo e a temeridade (Et.
nic, III, 6, 1.115 a 4). Mas como virtude que constitui a firmeza de propósitos, a C. é, de certo modo,
privilegiada e considerada uma das virtudes principais. Foi o que fez Aristóteles (Ibid., III, 7). Cícero
afirmava: "Virtude deriva de vir (homem), sendo a coragem sobretudo viril, ou seja, própria do homem;
seus principais atributos são dois: desprezo pela morte e desprezo pela dor" (Tusc, II, 18, 43). O mesmo é
dito por S. Tomás (S. Th., II, II, q. 123, a. 2). Em sentido biológico-filosófico, a coragem foi definida por
K. Goldstein: "A C, em sua forma mais profunda, é um sim dito à laceraçâo da existência aceita como
necessidade, para que possamos realizar plenamente o ser que nos é próprio". Nesse sentido, a C. é o
contrário da angústia (v.), sendo uma atitude orientada para o possível, ainda não realizada no presente
(DerAufbau des Organismus, 1934, p. 198).
CORNUDO, ARGUMENTO (gr. Kepaxívriç; lat. Cornutus). Assim é chamado o sofisma de Eubúlides:
"O que não perdeste, tens; não perdeste os cornos: logo, os tens" (DIÓG. L., VII, 187).
COROLÁRIO (gr. Ttópiaua; lat. Corolla-rium; in. Corollary, fr. Corollaire, ai. Korollar, it. Corollarió).
O que se deduz de uma demonstração precedente, como uma espécie de acréscimo ou ganho
extraordinário (EUCLIDES, El, III, 1); também pode ser uma espécie de proposição intermediária entre o
teorema e o problema (PAPO, 648, 18 s.; PROCLO, InEucl, p. 301 F). Esse termo estendeu-se para a
linguagem filosófica graças a Boécio (Phil. cons., III, 10). No primeiro sentido, o C. às vezes foi chamado
de consectarium (JUNGIUS, Lógica hamburgensis, IV, 11, 13). A diferença entre teorema e C. é desprezada
pela lógica contemporânea.
CORPO1
(gr. owncx; lat. Corpus; in. Body, fr. Cotps-, ai. Koerper, it. Corpo). Objeto natural em geral,
qualquer objeto possível da ciência natural. Como já notava Aristóteles {De cael, I, 1, 268 a 1), tudo o que
pertence à natureza é constituído por C. e grandezas, por coisas que
têm C. e grandeza ou por princípios das coisas que os têm. A definição mais antiga e famosa de C. é a
dada pelo próprio Aristóteles: "C. é o que tem extensão em qualquer direção" (Fís., III, 5, 204 b 20); e que
"é divisível em qualquer direção" (De cael, I, 1, 268 a 7). Por "qualquer direção", Aristóteles entende
altura, largura e profundidade: o C. que possui essas três dimensões é perfeito na ordem das grandezas
(Ibid., I, 1, 268 a 20).
Tal definição permaneceu constante por muitos séculos. Foi aceita pelos estóicos (DIÓG. L., VII, 1, 135),
que acrescentaram a solidez, e por Epicuro, que acrescentava a impenetra-bilidade (SEXTO EMPÍRICO,
Pirr. hyp., III, 39 ss.). A tradição escolástica também a reproduz (p. ex., S. TOMÁS, S. Th., I, q. 18, a. 2). E
Descartes só faz resumir essa tradição com sua definição do C. como substância extensa. Diz: "A natureza
da matéria ou do C. em geral não consiste em ser dura, pesada, colorida ou qualquer outra coisa que afete
nossos sentidos, mas apenas em ser uma substância extensa em comprimento, largura e profundidade"
(Princ.phil., II, 4). Essa definição não tem nada de novo em relação à tradicional, assim como não têm
nada de novo as definições de Spinoza, que a reproduz (SPINOZA, Et., I, 15, schol.), e de Hobbes (De
corp., VIII, § 1).
Só Leibniz inova o conceito de C. Ele distingue o "C. matemático", que é o espaço e contém só as três
dimensões, do "C. físico", que é a matéria e contém, além de extensão, "resistência, densidade,
capacidade de encher o espaço e impenetrabilidade: devido a esta última, um C. é forçado a ceder ou a
deter-se quando so-brevém outro corpo" (Op., ed. Erdmann, p. 53)-Por essa noção de C, Leibniz é levado
a negar que o C. seja "substância": o que nele há de real é apenas a capacidade (vis) de agir e de sofrer
uma ação (Ibid., ed. Erdmann, p. 445). Esta última definição talvez seja a retomada de uma velha
definição atribuída por Sexto Empírico a Pitágoras (Adv. math., IX, 366). Mas, com o significado que
Leibniz lhe confere, abriu caminho para a elaboração do conceito científico de C. como "massa", como
ocorreu na física newtoniana: por ser a relação entre força e aceleração, a massa pode ser expressa em
termos de "capacidade de agir e de sofrer uma ação", segundo a definição de Leibniz. Seguindo essa linha
de desenvolvimento, que vai da física de Leibniz à física clássica e desta à física da relatividade, através
da noção de massa
CORPO2
211
CORPO2
a noção de C. conduz à de campo (v.). Para a física contemporânea, um C. é somente "certa intensidade
do campo" (EINSTEN-INFELD, The Evolution ofPhysics, III; trad. it., p. 253).
A filosofia, porém, não seguiu de perto essa evolução sofrida pela noção de C. no domínio da física. No
mundo moderno e contemporâneo, ela nos oferece as seguintes alternativas: I
a A alternativa idealista, para
a qual os C. são "representações", "percepções", "idéias", ou complexos de tais coisas. Essa alternativa,
introduzida por Berkeley e aceita por Hume, foi a mais difundida na filosofia moderna e domina até hoje
a filosofia contemporânea. Por maior que seja sua importância nessas filosofias, essa alternativa não é
importante do ponto de vista da própria noção de C, por implicar, simplesmente, a inexistência dos C,
eliminando assim o problema. 2- A alternativa que consiste em considerar os C. como utensílios,
instrumentos ou meios que o homem utiliza no mundo, caracterizando-os, assim, em termos de
possibilidades de ação e de reação que oferecem ao homem. Essa alternativa é própria da filosofia
contemporânea, na qual foi introduzida pelo existencialismo e pelo instrumenta-lismo americano. Com
esse significado, porém, a noção de C. identifica-se com a de coisa, sendo mais comumente designada
com esse termo. V. COISA.
;
CORPO2
(gr. OWLKX; lat. Corpus; in. Body, fr. Corps, ai. Leib, it. Corpo). A concepção mais antiga e
difundida de C. é a que o considera o instrumento da alma. Ora, todo instrumento pode receber apreço
pela função que exerce, sendo por isso elogiado ou exaltado, ou então pode ser criticado por não
corresponder a seu objetivo ou por implicar limites e condições. Essas duas possibilidades se alternaram
na história da filosofia, que nos mostra tanto a condenação total do C. como túmulo ou prisão da alma,
segundo a doutrina dos órficos e de Platão (Fed., 66 b ss.), quanto a exaltação do C. feita por Nietzsche
("Quem está desperto e consciente diz: sou todo C. e nada fora dele", Also sprach Zarathustra, I, Os
odiadores do C). Na primeira tendência, o mito da queda da alma no C, exposto por Platão em Fedro, é
retomado pela Patrística oriental, especialmente por Orígenes (De prínc, II, 9, 2). Scotus Erí-gena, nos
primórdios da Escolástica, reproduzia-o (De divis. nat, II, 25). Também essa concepção pressupõe a
noção de instrumentalidade do C: no estado de queda, devido ao
pecado, a alma tem necessidade do C, cujos serviços lhe são indispensáveis. Mas, obviamente, a mais
completa e típica formulação da doutrina da instrumentalidade é a de Aristóteles, para quem o C. é "certo
instrumento natural" da alma, assim como o machado é o instrumento de cortar, ainda que o C. não seja
semelhante ao machado, pois "tem em si mesmo o princípio do movimento e do repouso" (Dean., II, 1,
412 b 16). O materialismo, por não implicar necessariamente a negação da substancialidade da alma (v.),
tampouco implica a negação da instrumentalidade do C; mesmo que a alma seja corpórea, o C. pode ter
função instrumental em relação a ela. Assim pensava Epicuro, que atribuía ao C. a função de preparar a
alma para ser causa da sensação (Ep. a Herod., 63 ss.) e assim também pensavam os estóicos, para os
quais a alma é aquilo que domina ou, de vários modos, utiliza o organismo físico (AÉCIO, Plac, IV, 21).
Não é diferente a concepção do C. no materialismo de Hobbes, que, afirmando que "o espírito nada mais
é que um movimento em certas partes do C. orgânico" (III Objections contre les méd. cartésiennes, 4),
reconhece com isso a instrumentalidade do C. em relação a esse "movimento", que é a alma. Nem mesmo
o materialismo mais grosseiro do século XLX, para o qual a alma seria um produto do cérebro assim
como a bílis é produto do fígado e a urina o é dos rins, obedece a esquema interpretativo diferente: o
cérebro, como o fígado e os rins, continua sendo um instrumento para a produção de alguma coisa. No
extremo oposto, o espiritua-lismo, p. ex., dos neoplatônicos, também admite a doutrina da
instrumentalidade: "Se a alma é substância", diz Plotino, "será uma forma separada do C, ou melhor,
aquilo que se serve do C." (Enn., I, 1, 4). A doutrina da instrumentalidade domina toda a filosofia
medieval. Diz S. Tomás: "A finalidade próxima do C. humano é a alma racional e suas operações. Mas a
matéria existe em vista da forma e os instrumentos existem em vista das ações do agente" (S. Th., I, q. 91,
a. 3). Exceção a essa doutrina é a teoria da "forma de corporeidade", típica do agos-tinismo (v.) medieval,
que consistia em atribuir ao C. orgânico uma forma própria ou substância independente. Mas o abandono
definitivo do conceito da instrumentalidade do C. só ocorreu com o dualismo cartesiano. Crê-se
comumente que a conseqüência da separação instituída por Descartes entre alma e C, como
CORPO2
212
CORPO2
duas substâncias diferentes, tenha sido o estabelecimento da independência da alma em relação ao C. Na
verdade, sua primeira conseqüência foi estabelecer a independência do C. em relação à alma: ponto de
vista que, antes de Descartes, nunca se apresentara. Com efeito, a instrumentalidade do C. supõe que este
nada possa fazer sem a alma, do mesmo modo como o machado não serve para nada se não é empunhado
por alguém. Mas o reconhecimento de que a alma e o C. são duas substâncias independentes implica,
como diz Descartes, que "todo o calor e todos os movimentos que existem em nós pertencem só ao C,
porquanto não dependem absolutamente do pensamento" (Pass. de Vâme, I, 4). Desse novo ponto de
vista, o C. é visto como uma máquina que se move por si. "O C. de um homem vivo", diz Descartes,
"difere tanto do corpo de um morto quanto um relógio ou outro autômato (p. ex., uma máquina que se
mova sozinha) que está carregado e contém em si o princípio corpóreo dos movimentos para os quais foi
projetado, juntamente com todos os requisitos para agir, difere do mesmo relógio ou da mesma máquina
quando estes estão avariados ou quando o princípio de seu movimento deixa de agir" (Ibid., § 6). Essa
afirmação da realidade independente do C. como autômato nào é tanto uma tese metafísica quanto uma
tese metodológica, que prescreve a direção e os instrumentos das indagações voltadas para a realidade do
"C". Foi exatamente nesse sentido que agiu historicamente a tese cartesiana, fornecendo, durante muito
tempo, o pressuposto teórico das investigações científicas sobre os corpos vivos. Do ponto de vista
filosófico, porém, o dualismo cartesiano tinha a desvantagem de criar um problema desconhecido da
concepção clássica de C. como instrumento: o problema da relação entre alma e corpo. A concepção
clássica, na verdade, já com a definição do C. como instrumento da alma, e da alma como forma ou razão
de ser do corpo, resolvia a seu modo esse problema, já que, na realidade, essas definições nada mais são
que soluções postuladas para o problema. Mas com o dualismo entre alma e C, o problema vinha à tona
com toda a sua crueza. Como e por que as duas substâncias independentes se combinam para formar o
homem? E como o homem, que, sob certo aspecto, é uma realidade única, pode resultar da combinação de
duas realidades independentes? A filosofia moderna e contemporânea elaborou quatro soluções para esse problema.
I
a A primeira delas consiste em negar a diversidade das substâncias e em reduzir a substância corpórea à
substância espiritual. Foi o que fez Leibniz, ao conceber o C. vivo como um conjunto de mônadas, isto é,
de substâncias espirituais, agrupadas em torno de uma "ente-léquia dominante", que é a alma do animal
(Monad., § 70). Desse ponto de vista, "o C. é um agregado de substâncias e não é, ele próprio, uma
substância" (Op., ed. Erdmann, p. 107). Só a alma é substância. Essa solução de Leibniz serve de modelo
para numerosas outras apresentadas pela filosofia moderna e contemporânea, sobretudo pelas correntes do
espiritualismo (v.). A expressão clássica desse ponto de vista pode ser encontrada em Microcosmo, de
Lotze.
Podem ser consideradas variantes dessa mesma solução as doutrinas de Schopenhauer e de Bergson.
Schopenhauer identifica o C. com a vontade, ou seja, com o que ele julga ser o númeno ou a substância
do mundo, cuja representação é o fenômeno. Diz ele: "Meu C. e minha vontade são uma coisa só. Ou: o
que chamo de meu C. como representação intuitiva chamo-o minha vontade enquanto estou cônscio dela,
de modo absolutamente diferente, não comparável a nenhum outro. Ou: meu C. é a objetividade de minha
vontade. Ou: prescindindo do fato de que meu C. é represen-: tação, ele não é senão vontade" (Die Welt, I,
! § 18). Bergson, por sua vez, retomando parcialmente a antiga tese, afirma que "nosso C. é um
instrumento de ação e somente de ação"; não ' contribui diretamente para a representação e em geral para
a vida da consciência: serve apenas para selecionar imagens com vistas à ação* para tornar possível a
percepção que consiste^ nessa seleção. Mas a consciência, que é memória, independe dele (Matière et
mémoire, espec, Résumé et Conclusion; ed. de Genebra, pp. 232 ss.). Naturalmente, o último resultado)
dessa análise de Bergson é a redução do C. à percepção (assim como da consciência à me* mória), ou
seja, a negação de qualquer realidaf de própria do C.
2- A segunda solução, bem próxima da prk meira, considera o C. como um sinal da almas: Trata-se de
doutrina bastante antiga, que PlatàR; (Crat., 400 b) atribui aos ofícios, mas cuja pis», dominância só
ocorre no Romantismo. Diz He* gel: "A alma, em sua corporalidade, inteiramení;
CORPO2
213
CORPO2
te formada e constituída como sua, está para si mesma como sujeito singular; e a corporali-dade é, desse
modo, a exterioridade enquanto predicado no qual o sujeito se reconhece só a si. Essa exterioridade não se
representa a si mesma, mas à alma: e é o sinal desta" {Ene, ) S 411). Desse ponto de vista, o C. é a
"manifes-" tação externa" ou a "realização externa" da alma: ' exprime a alma na forma de uma
exterioridade que não é real como tal, mas tão-somente "simbólica". Podem-se encontrar resíduos dessa í
concepção em todas as doutrinas que vêem no i C. um complexo de fenômenos expressivos. 3a
A terceira
solução consiste em negar a diferença das substâncias, mas não a diferença entre alma e C, e portanto em
considerar a alma e o C. duas manifestações de uma mesma substância. Spinoza deu forma típica a essa
solução, considerando a alma e o C. como modos ou manifestações dos dois atributos fundamentais da
única Substância divina, o pensamento e a extensão. "Entendo por C", disse ele, "um modo que, de certa
forma determinada, exprime a essência de Deus considerado como coisa extensa" (Et., II, def. 1).
Portanto, a "idéia de C. e o C, ou seja, a mente e o C, formam um só e mesmo indivíduo que ora é
concebido sob o atributo do pensamento, ora sob o atributo da extensão" (Ibid., II, 21, scol.). Essa
doutrina obviamente implica que a ordem e a conexão dos fenômenos corpóreos correspondem
perfeitamente à ordem e à conexão dos fenômenos mentais e que, portanto, reconstruindo a ordem e a
conexão de uns, é possível conhecer a ordem e a conexão dos outros. Por essa vantagem que parece
apresentar (sem contar o fato de que ela exclui a possibilidade de misturar e confundir as duas séries de
fenômenos, tomando p. ex. como causa de um fenômeno : corpóreo um fenômeno mental ou vice-versa),
a doutrina de Spinoza foi um modelo para a doutrina do paralelismo psicofísico (v.) que presidiu à
formação da psicologia científica moderna, servindo-lhe como hipótese de trabalho até há alguns
decênios.
4
a
A quarta solução consiste em considerar o C. como uma forma de experiência ou como um modo de ser
vivido, que tenha um caráter específico ao lado de outras experiências ou modos de ser. Os precedentes
dessa solução são as doutrinas a que aludimos ao tratarmos da I
a
solução de Schopenhauer e Bergson. \
Mas, enquanto essas doutrinas ainda têm ressonâncias idealistas e implicam a redução do C.
ao espírito, a hipótese de que ora nos ocupamos não tem significado idealista e evita tal redução. Essa
solução encontrou forma típica na fenomenologia de Husserl, segundo a qual o C. é a experiência que se
isola ou individua depois de sucessivos atos de redução fenome-nológica. "Na esfera do que me pertence
(da qual se eliminou tudo o que remete a uma subjetividade alheia), o que chamamos natureza pura e
simples não possui mais o caráter de ser objetivo e portanto não deve ser confundido com um estrato
abstraído do próprio mundo ou do seu significado imanente. Entre os C. dessa natureza reduzida a 'o que
me pertence', encontro meu próprio C, que se distingue de todos os outros por uma particularidade única:
é o único C. que não é somente um C, mas o meu C; é o único C, no interior do estrato abstraído,
recortado por mim no mundo ao qual, de acordo com a experiência, eu coordeno campos de sensação de
modos diferentes; é o único C. de que disponho de modo imediato, assim como disponho de seus órgãos"
(Cart. Med., § 44). Desse modo, o C. é considerado experiência viva, vinculado a possibilidades humanas
bem determinadas. De maneira análoga, o fisiólogo Kurt Goldstein distinguiu espírito, alma e C. como
processos diferentes mas conexos, que ganham significado e relevância somente em sua conexão. Tais
processos são, na verdade, comportamentos diferentes do organismo vivo. Em particular, o C. é "uma
imagem física determinada e multiforme" que se pode descrever como um fenômeno de expressão, como
um conjunto de atitudes ou como fenômenos que vão dar em todos os órgãos possíveis. Se o espírito é o
ser do organismo, mais precisamente seu ser no mundo, o complexo das atitudes vividas, a alma é o seu
ter, isto é, a sua capacidade cognitiva; e o C. é o devir, que não temos nem somos, mas que acontece em
nós. Esse devir é substancialmente um "debate com o mundo", através do qual o homem acumula suas
experiências e forma as suas capacidades (DerAufbau des Organis-mus, 1927, p. 206 ss.). Desse ponto de
vista, o C. não é senão um comportamento, ou melhor, um elemento ou uma condição do comportamento
humano. Concepção afim é a doutrina de Sartre, segundo a qual o C. é a experiência do que é
"ultrapassado" e "passado". "Em cada projeto do Para-si [isto é, da consciência], em cada percepção, o C.
está lá: ele é o passado imediato porquanto aflora ainda no presente
CORPOREIDADE, FORMA DE
214
CORRUPÇÃO
que lhe foge. Isso significa que ele é, ao mesmo tempo, ponto de vista e ponto de partida: um ponto de
vista, um ponto de partida que sou e que, ao mesmo tempo, ultrapasso em direção do que hei de ser"
(JL'être et le néant, 1945, pp. 391-92). Merleau-Ponty elucidou as teses implícitas nesse ponto de vista. O
C. não é um objeto, uma coisa. "Quer se trate do C. de outrem, quer se trate do meu, não tenho outro
modo de conhecer o C. humano senão vivendo-o, isto é, assumindo por minha conta o drama que me
atravessa e confundindo-me com ele". Mas essa vivência do próprio C. nada tem a ver com o
"pensamento do C." ou com "a idéia do C." que formamos por reflexão através da distinção entre o sujeito
e o objeto. Essa experiência nos revela um modo de existência "ambíguo": se procuramos pensar o C.
como um feixe de processos em terceira pessoa (p. ex., como "visão", "mobilidade", "sexualidade")
perceberemos que essas funções não estão ligadas entre si e com o mundo externo por uma relação de
causalidade, mas estão todas fundidas e confundidas num único drama. Merleau-Ponty nota que
Descartes já fizera a distinção entre C. concebido para os usos da vida, e C. concebido pelo intelecto
(Phénoménologie de Iaperception, p. 231; cf. DESCARTES, Opera, III, p. 690). Deve-se observar que essa
redução do C. a comportamento ou a modo de ser vivido, tão característica da filosofia contemporânea,
não tem sentido idealista: não implica a negação da realidade objetiva do C. ou sua redução a espírito,
idéia ou representação. Ao contrário, essa interpretação da noção de C. acentuou a objetividade da esfera
de fenômenos em que o C. consiste, ao mesmo tempo em que procurou definir essa mesma esfera de
fenômenos em termos de possibilidades de experiência ou de verificação, segundo uma orientação
fundamental da filosofia contemporânea em face da realidade em geral (v. REALIDADE).
CORPOREIDADE, FORMA DE (lat. Forma corporeitatis). Segundo a tradição agos-tiniana da
Escolástica (v. AGOSTINISMO), é a realidade que o corpo possui como corpo orgânico, independentemente
de sua união com a alma, e que o predispõe a tal união. Essa é a definição dada por Duns Scot (Op. Ox.,
IV, d. 11, q. 3; Rep. Par, IV, d. 11, q. 3). Trata-se de uma noção característica do agostinismo e usada na
polêmica contra o aristotelismo, para o qual o corpo, como matéria, é potência e portanto não tem
substancialidade ou forma.
CORRELAÇÃO (gr. zà npóç xi àvn.Keí|iev<X; lat. Correlatio; in. Correlation; fr. Corrélation; ai.
Korrelation; it. Correlazione). Uma das quatro formas de oposição enumeradas por Aristóteles, mais
precisamente a que ocorre entre termos correlativos, como a metade e o dobro. Os opostos correlativos
não se excluem mutuamente porque um evoca o outro, no sentido de que o dobro se diz da metade e a
metade, do dobro. São termos correlativos também o sabí-vel e a ciência, que se dizem um em relação ao
outro (Caí., 10, 11 b 23 ss.). Na lógica escolástica, essa relação foi expressa dizendo-se que, nela, o
sujeito e o termo podem permu-tar-se, de tal sorte que, p. ex., Davi é o sujeito da relação de paternidade
enquanto é objeto da relação de filiação, cujo sujeito é Salomão; reciprocamente, Salomão é o objeto da
paternidade que está em Davi (cf., p. ex., JUNGIUS, Lógica, I, 8, 6). Hamelin pretendia substituir a
contradição pela C. na dialética hegeliana: para ele, os opostos dessa dialética são opostos correlativos,
não opostos contraditórios {Essai sur les éléments principaux de ta réprésentation, 1907, p. 35).
CORRELATIVA, JUSTIÇA. V. COMUTATTVO.
CORRESPONDÊNCIA (lat. Adaequatio, in. Correspondence, fr. Correspondance, ai. Übereinstimmung ou Korrespondenz, it. Corrispon-denza). Doutrina segundo a qual a verdade consiste na
adequação, no acordo ou na C. de termo a termo entre o pensamento ou o conhecimento ou entre as
proposições lingüísticas, de um lado, e a realidade ou os fatos, de outro. É esse o critério de verdade
pressuposto pela filosofia clássica e expresso pela definição escolástica de verdade como adequação do
intelecto e da coisa (v. VERDADE).
CORRUPÇÃO (gr. (pGopá; lat. Corruptio; in. Corruption; fr. Corruption; ai. Vergehen; it. Corruzione).
Segundo Aristóteles, constitui, juntamente com o seu oposto, a geração, a atualidade de uma das quatro
espécies de movimento, mais especialmente do movimento substancial, em virtude do qual a substância
se gera ou se destrói. "A corrupção", diz Aristóteles, "é uma mudança que vai de algo ao não-ser desse
algo; é absoluta quando vai da substância ao não-ser da substância, específica quando vai para a
especificação oposta". (Fís., V, 225 a 17).
Para a doutrina da C. do homem, v. QUEDA; PECADO ORIGINAL.
CÓSMICO, CONCEITO
215
COSMOLOGIA
CÓSMICO, CONCEITO (ai. Weltbegriff). Kant assim denominou "o conceito que versa '. sobre o que
interessa necessariamente a todos", como, p. ex., o conceito de filosofia como guia da vida, em
contraposição ao "conceito escolar" (Schulbegriff), que só interessa a quem aspira à aquisição de
habilidades espe-í ciais (Crít. R. Pura, Doutrina do método, III, nota).
COSMO (gr. KÓON.OÇ). O mundo enquanto ordem (cf. PLATÃO, Gôrg., 508 a; ARISTÓTELES, ' Mel, I, 3,
984 b 16). Segundo Diógenes Laér-cio, os pitagóricos foram os primeiros a chamarem o mundo de C;
mas ele mesmo nota que isso era atribuído a Parmênides por Teofrasto e a Hesíodo por Zenâo (DIÓG. L.,
VIII, 48). Essa palavra é usada indiferentemente em lugar de "mundo" e sua noção constitui uma das
interpretações fundamentais da noção de mundo. Jaspers, porém, estabeleceu uma distinção entre mundo
e C: o C. é a imagem do mundo que cada um forma, mas por isso mesmo não é o mundo como soma total
de todas as coisas e os eus existentes, isto é, como totalidade omnicompreensiva (Phil., I, pp. 979-80) (v.
MUNDO).
COSMOGONIA (gr. Koau.o70vía; in. Cos-mogony, fr. Cosmogonie, ai. Kosmogonie, it. Cosmogonia).
Mito ou doutrina referente à origem do mundo (v. COSMOLOGIA; TEOGONIA).
COSMOLOGIA (lat. Cosmologia; in. Cos-mology; fr. Cosmologie; ai. Kosmologie; it. Cosmologia). Foi
assim que Wolff, e, com ele, a filosofia alemã do séc. XVIII, chamou a filosofia da natureza. Wolff
definiu a C. como "ciência do mundo e do universo em geral, que é um ente composto e modificável";
dividiu-a em uma parte científica e uma parte experimental (C. generalis, 1731, § 1, 4), chamadas por
Baumgarten de C. racional de C. empírica (Met., § 351). Essa terminologia foi aceita por Kant, que
entendeu por "idéia cosmológica" a idéia do mundo como "totalidade absoluta das coisas existentes"
(Crít. R. Pura, Dial., cap. II, seç. I). A partir de Kant, entendeu-se por C. não mais a ciência da natureza,
nem toda a filosofia da natureza, mas só a parte da filosofia ou da ciência da natureza que tem por objeto
a idéia do mundo e que procura determinar as características gerais do universo em sua totalidade.
Podem-se distinguir quatro fases da C, a partir do momento em que foram abandonadas as tentativas
nitidamente míticas das teogonias (cf. M. K. MUNITZ, Theories ofthe Universe, Glencoe, I
11, 1957), quais sejam: I
a
fase de transição do mito para a especulação; 2- fase clássica da C. geocêntrica
e finitista; 3a
C. moderna helio-cêntrica; 4a
a fase contemporânea, caracterizada por várias alternativas de
interpretação.
I
a A primeira fase é caracterizada pelo abandono do mito e pela tentativa de encontrar uma explicação
racional ou natural do mundo. É a fase representada pela filosofia pré-socrática. Os pitagóricos tiveram
maiores méritos porque: a) entenderam o universo como um cosmo (v.), isto é, como uma ordem objetiva,
exprimível na linguagem matemática, em figuras e números; b) com Filolau (séc. V a.C), foram os
primeiros a rejeitar a concepção geocêntrica, acreditando que a Terra e todos os outros corpos celestes se
movem em torno de um fogo central chamado Hestia e apresentando, assim, a primeira doutrina
heliocêntrica, defendida mais tarde por Heráclides Pôntico e Aristarco de Samos (séc. III a.C).
2
a
A segunda fase é a da astronomia clássica e da filosofia da natureza de Platão e Aristóteles. Caracterizase pela consolidação da concepção geocêntrica do mundo através da obra de Eudoxo (séc. IV a.C),
Hiparco (séc. II a.C.) e Ptolomeu (séc. II d.C), bem como pela concepção finitista e qualitativa da
natureza, própria de Aristóteles. Este, com efeito, julgava que o mundo era necessariamente finito porque
perfeito; e estabeleceu como sua característica fundamental a divisão em duas partes qualitativamente
diferentes: o céu, composto por éter, substância não engendrável e incorruptível, que se move apenas em
movimento circular (v. CÉu); e os corpos sublunares, compostos pelos quatro elementos que se movem a
partir do centro ou para o centro" da Terra (v. FÍSICA). Esta concepção prevaleceu na Idade Média.
3
a
A terceira fase inicia-se no fim da Idade Média, quando a concepção clássica foi posta em dúvida por
Ockham, que reconhecia a possibilidade da infinitude do mundo e da existência de mais mundos (In
Sent., I, d. 44, q. 1), ao mesmo tempo em que negava a diferença entre a substância celeste e a substância
sublunar (Ibid., II, q. 22). As possibilidades que Ockham deixou abertas transformaram-se em afirmações
categóricas no século seguinte, por Nico-lau de Cusa (De docta ignor., 1440), unindo-se (assim como o
finitismo aristotélico se unira à astronomia geocêntrica) à astronomia heliocêntrica de Copémico e de
Kepler na nova
COSMOLOGIA
216
COSMOLOGIA
concepção do mundo que era exposta e defendida por Galilei (séc. XVII). Giordano Bruno reiterava, do
ponto de vista filosófico, a conexão mais estreita entre a infinitude do mundo e a nova astronomia
heliocêntrica. A física de Newton representa a expressão da estrutura matemática de um mundo assim
concebido; e foi precisamente baseando-se nas leis da física de Newton que Kant tentou, pela primeira
vez, em Teoria dos céus (1755), uma cosmogonia científica que apresentava a hipótese da formação de
todo o universo a partir de uma nebulosa primitiva. Mais tarde, Laplace apresentava a mesma hipótese
com mais rigor; limitando-se ao sistema solar {Exposição do sistema do mundo, 1796), julgava ter
demonstrado que o mundo não passa de gigantesca máquina dirigida por rigorosas leis matemáticas. Essa
fase cosmológica culmina, pois, com o triunfo do mecanicismo, cujo exemplo mais conspícuo parece
estar nos céus.
4
a
A quarta fase da C. começou na segunda década deste século e deveu-se ao uso dos novos instrumentos
ópticos e conceituais de que se começa a dispor nesse período. O uso dos grandes telescópios e a teoria da
relatividade de Einstein foram os fatores fundamentais dessa transformação. Num texto de 1917,
Considerações sobre o universo como um todo, Einstein propunha pela primeira vez uma reforma radical
da concepção do mundo que viera se formando a partir do Renascimento e que parecia já estabelecida:
propunha considerar o universo não mais como infinito, mas como finito e todavia não limitado (assim
como não é limitado um anel sem engaste, que se pode fazer girar ilimitadamente). Einstein considerava,
portanto, que o espaço do universo era curvo, mais precisamente elíptico, no qual uma linha reta,
suficientemente prolongada, voltaria sobre si mesma e acabaria por fechar-se. As propriedades
geométricas do espaço seriam, nesse caso, determinadas pela matéria, já que o grau de curvatura do
espaço dependeria da densidade da matéria. Por outro lado, as observações de Hubble, possibilitadas pelo
uso do telescópio de cem polegadas, permitiam resolver o problema da natureza das nebulosas e
reconhecê-las como sistemas galácticos independentes, e não como partes de nossa própria galáxia.
Hubble estabeleceu dois fatos de grande importância. O primeiro é que ar. nebulosas extragalácticas estão
distribuídas pelo espaço de modo uniforme e homogêneo. O segundo é
que os espectros dessas galáxias mostram um deslocamento para o vermelho, tanto maior quanto mais
longínquas são as galáxias. Esse segundo fato é comumente interpretado no sentido de que as galáxias se
afastem de nós e, ao mesmo tempo, umas das outras com uma velocidade tanto maior quanto mais
distantes estiverem (EDWIN HUBBLE, The Realm of the Nebulae, 1936). Esse fato, ou melhor, essa
interpretação do fato do deslocamento do espectro das galáxias para o vermelho levou a abandonar os
modelos estáticos do universo, como o de Einstein, a que nos referimos, e de De Sitter (cf. deste,
Kosmos, 1932), em favor de modelos dinâmicos, fundados na noção de "expansão" do espaço. Eddington
e Lemaitre contribuíram de forma eminente para o desenvolvimento e a difusão do modelo do universo
em expansão (A. S. EDDINGTON, The Expanding Universe, 1933; G. LEMAITRE, ThePrimevalAtom: An
Essay on Cosmogony, trad. in., 1950). A diferença entre os vários modelos de universo é expressa por
Eddington nestes termos: "Num extremo temos o universo de Einstein, sem l movimento e, portanto, em
equilíbrio. Depois, à medida que prosseguimos ao longo da série, temos modelos de universo que
mostram uma expansão cada vez mais rápida, até que, no outro extremo da série, tenhamos o universo de
De Sitter. A proposição da expansão cresce ao longo da série, ao passo que a densidade diminui; o
universo de De Sitter é o limite em que a densidade média da matéria celeste se aproxima de zero. A série
dos universos em expansão acaba aí, não porque a expansão se ; torne demasiado rápida, mas porque já
não há nada que possa expandir-se" {TheExpanding Universe, 2, § 4). Mas o modelo de Einstein não se
encaixava totalmente nas observações astronômicas: era pequeno demais para represen- ; tar o universo
real. O modelo de De Sitter satisfazia às equações só a partir do pressuposto de que o espaço fosse vazio e
que nele não houvesse matéria nenhuma. Por isso, o modelo de Lemaitre ficou, durante alguns decênios,
como o mais freqüentemente adotado.
Depois da Segunda Guerra Mundial, a C. so- ' freu nova guinada. Em 1949, os matemáticos " ingleses
Herman Bondi e Thomas Gold propuseram um novo modelo do universo partindo do paradoxo em que se
detivera, mais de um século antes, o astrônomo alemão Olbers: se as = estrelas estão distribuídas
uniformemente no espaço e se o espaço é infinito, por que a luz
COSMOLOGIA
217
COSMOPOLTTISMO
delas não nos cega? Não deveria cada ponto do universo infinito receber uma soma infinita de luz? Ao
formular esse paradoxo, Olbers partia do pressuposto de que o caráter geral do universo é o mesmo não
só em todos os lugares mas também em todos os tempos. É exatamente desse pressuposto que partem
Bondi e Gold. Ele implica que a aparência de uma região qualquer do universo foi no passado e será
sempre no futuro a mesma do presente. Ora, o único modo de conciliar esse postulado com o movimento
de recessão das galáxias (demonstrado pelo deslocamento de seu espectro para o vermelho) é admitir que
novas galáxias se formam continuamente para compensar a dispersão das velhas. Mas se novas galáxias
se formam continuamente, isso quer dizer que continuamente se cria matéria nova no espaço. Bondi e
Gold calcularam que a criação de nova matéria deve ocorrer na proporção de um átomo de hidrogêneo
para cada litro do espaço intergaláctico a cada bilhão de anos (de BONDI, v. "Theories of Cosmology", em
The Advance-ment of Science, 1955, n. 45). Essas idéias foram logo retomadas pelo astrônomo inglês
Fred Hoyle, que modificou as equações da relatividade geral de Einstein, de modo que elas permitissem a
contínua criação da matéria no espaço {The Nature ofthe Universe, 1950).
No momento em" que foi formulada, essa doutrina tinha a vantagem de anular a importância do
desacordo entre os astrônomos sobre a idade do universo, eliminando o próprio problema da
determinação da idade. De fato, se a criação é contínua e se novas galáxias nascem continuamente no
universo, este deve ser povoado de galáxias de todas as idades. O uso de telescópios ainda mais
poderosos nos últimos anos eliminou as discrepáncias sobre a avaliação da idade do universo, que foi
fixada em cerca de cinco bilhões de anos. Isso persuadiu alguns astrônomos a admitir um modelo não
estático do universo, como o de Bondi e de Hoyle, mas "evolucionista", pelo qual se admite que o
universo evoluiu do estado primitivo de gás altamente comprimido e quentíssimo ao estado atual que
apresenta estrelas, galáxias e matéria. Essa teoria admite na origem do universo um acontecimento
catastrófico, único pelas condições em que se desenvolveu (G. GAMOW, "Modern Cosmology", em
Scientific American, 1954, n. 3; D. W. SCIAMA, "Evolutio-nary Processes in Cosmology", em The Advancement of Science, 1955, n. 54.
Embora essas concepções pretendam ser puramente científicas, não tenham o intuito de retornar à velha
C. finalista e tratem a criação como um simples "fato" cuja idade média se pode estabelecer
matematicamente, está claro que se fundamentam em alguns pressupostos pouco justificáveis. Sem levar
em conta que a expansão do universo é admitida através da interpretação do deslocamento do espectro
das galáxias para o vermelho como recessão das galáxias (não se deve esquecer que o fato pode ter outras
interpretações), o postulado da uniformidade do universo no tempo e no espaço não passa de expressão
camuflada da antiga idéia do mundo como totalidade absoluta dos fenômenos. Esse postulado, com efeito,
não é verificável nem falseável, e não pode ser traduzido em enunciados controláveis: não faz mais do
que exprimir a idéia do mundo como "totalidade absolutamente homogênea", que não é menos metafísica
do que a "incorrup-tibilidade dos céus" de aristotélica memória (cf. as importantes observações de M. K.
MUNITZ, Space, Time and Creation, Glencoe, III, 1957).
COSMOLÓGICA, PROVA (in. Cosmolo-gical argument; fr. Preuve cosmologique, ai.
KosmologischerBeweis; it. Prova cosmologicd). Assim foi chamada pela filosofia alemã do séc. XVIII a
prova da existência de Deus, que S. Tomás chamava exparte motus {S. Th., I, q. 2, a. 3) e que a tradição
escolástica extraíra da Física (VII, 1) e da Metafísica (XII, 7) de Aristóteles (v. DEUS, PROVAS DE).
COSMOPOLTTISMO (in. Cosmopolitism; fr. Cosmopolitisme, ai. Kosmopolitismus, it. Cosmopolitismó). Doutrina que tende a negar a importância das divisões políticas e a ver no homem, ou ao
menos no sábio, um "cidadão do mundo". "Cosmopolita" respondeu Diógenes, o Cínico, a quem lhe
perguntou de onde era (DiÓG. L., VI, 63). O C. também foi defendido pelos estóicos. "Consideramos
todos os homens", dizia Zenâo, "compatriotas e concidadãos; que a vida e o mundo sejam unos como uma
grei unida, criada com uma lei comum" (PLAUT., De Alex. virt., I, 6, 329). O C. como ideal diferente do
universalismo eclesiástico foi compartilhado por Leibniz {Escritospolíticos, seleção e trad. it. de V.
Mathieu, pp. 141-42) e retomado pelo Iluminismo. Kant considera-o um princípio regulador do progresso
da sociedade humana para a integração universal e, portanto, como "o destino do gênero humano,
justifica-
COSTUME
218
CRENÇA
do por uma tendência natural nesse sentido" (Antr, II e).
COSTUME (in. Custom; fr. Coutume, ai. Ge-wohnheit; it. Consuetudiné). 1. O mesmo que hábito (v.).
2. No sentido sociológico, qualquer atitude, esquema ou projeto de comportamento que seja
compartilhado por vários membros de um grupo. Viço já aplicava essa palavra nesse sentido: "É frase
digna de consideração a de Dion Cássio: que o C. se assemelha ao rei e a lei ao tirano; o que deve ser
entendido do costume razoável e da lei não animada pela razão natural" (Scienza nuova, 1744, dignidade
104). Na linguagem contemporânea, com o termo C. designam-se os usos (folkways), as convenções e
comportamentos moralmente prescritos (mores, V. COSTUMES), que se distinguem pelas diferentes
intensi-dades das sanções que os reforçam.
COSTUMES (lat. Mores; in. Mores). Atitudes institucionalizadas de um grupo social, às quais se
aplicam eminentemente os qualificativos "boas" e "más" e que são reforçadas pelas sanções mais
enérgicas porque consideradas condições indispensáveis de qualquer relacionamento humano (v. ÉTICA).
CREDO QUIA ABSURDUM. Frase atribuída a Tertualino (séc. II) e que, embora não se encontre em
suas obras, exprime bem o antagonismo que ele estabeleceu entre ciência e fé. Seu significado é
igualmente expresso pelas seguintes palavras: "O Filho de Deus foi crucificado; não é vergonhoso porque
poderia sê-lo. O Filho de Deus morreu; é crível porque inconcebível. Sepultado, ressuscitou; é certo
porque impossível" (De carne Christi, 5).
CREDO UT INTELLIGAM. É o lema de S. Anselmo (séc. XI) e de grande parte da Escolástica. A fé é
o ponto de partida da indagação filosófica e nada se pode entender se não se tem fé. Entretanto, é próprio
do preguiçoso não procurar entender e demonstrar aquilo em que crê (Proslogion, 1).
CRENÇA (gr. jríGTiç; lat. Credere, in. Belief; fr. Croyance, ai. Fuerwahrhalten, Glaube, it. Credenzd).
No significado mais geral, atitude de quem reconhece como verdadeira uma proposição: portanto, a
adesão à validade de uma noção qualquer. A C. não implica, por si só, a validade objetiva da noção à qual
adere nem exclui essa validade. Tampouco tem, necessariamente, alcance religioso, nem é,
necessariamente, a verdade revelada, a fé; por outro lado, também não exclui essa determinação e, nesse
sentido, pode-se dizer que uma C. pode pertencer ao domínio &àfé(v.). De per si, a C. implica apenas a
adesão, a qualquer título dado e para todos os efeitos possíveis, a uma noção qualquer. Portanto, podem
ser chamadas de C. as convicções científicas tanto quanto as confissões religiosas, o reconhecimento de
um princípio evidente ou de uma demonstração, bem como a aceitação de um preconceito ou de uma
superstição. Mas não se pode chamar de C. a dúvida, que suspende a adesão à validade de uma noção,
nem a opinião, no caso de excluir as condições necessárias para uma adesão desse gênero.
Platão chamou de C. a forma ou o grau de conhecimento que tem por objeto as coisas sensíveis, já que ela
contém uma adesão à realidade dessas coisas, ao contrário da conjetu-ra, que, tendo por objeto as
imagens, as sombras, etc, não contém essa adesão (Rep., VI, 510 a). Aristóteles julga que a C. não é
elimlnável da opinião: "Não é possível", diz ele, "que quem tenha uma opinião não creia no que pensa"
(Dean., III, 428 a 20). Em sentido análogo, mas com referência à fé, S. Agostinho definiu a crença como
"pensar com assentimento" (De Predest. Sanct., 2), definição que S. Tomás usa como fundamento de sua
análise da fé. "Esse ato que é crer", diz S. Tomás, "contém a firme adesão a um dos lados e nisso é
semelhante ao ato de quem conhece e entende; todavia, o conhecimento de quem crê não é perfeito pela
sua evidência, e nisso a crença está próxima da dúvida, da suspeita e da opinião" (S. Th., II, 2, q. 2, a. 1).
Na filosofia moderna, a partir de Locke, a limitação crítica do conhecimento levou a distinguir o
conhecimento certo do provável, e no provável vários graus de adesão, dos quais a C. é o maior (Ensaio,
IV, 16, 9). Mas foi o ceticismo de Hume que generalizou a noção de C, vendo nela a atitude que consiste
em reconhecer a realidade de um objeto. "A C", disse Hume, "é só uma concepção mais vivida, viva,
eficaz, firme e sólida daquilo que a imaginação por si só nunca é capaz de obter." É "o ato da mente que
nos torna a realidade, ou o que é tomado por realidade, mais presente do que as ficções, fazendo-a pesar
mais sobre o pensamento e aumentando sua influência sobre as emoções e a imaginação" (Inq. Cone.
Underst., V, 2). Hume considerava a C. inexplicável, entendendo-a simplesmente como experiência ou
sentimento (Jeeling ou senti-meni) natural e irredutível. "Não podemos", disse
CRENÇA 219
CRENÇA
ele, "ir além da asserção de que a C. é uma experiência do espírito que faz a distinção entre idéias do
juízo e ficções da imaginação". Mas um dos resultados dessa análise foi pôr em evidência o caráter
específico de adesão que o reconhecimento de uma realidade qualquer possui. Kant não fez mais do que
aceitar e con-validar a generalização de Hume com os esclarecimentos metodológicos que aduziu na
seção do Cânon da Razão Pura (Crít. R. Pura, mas cf. também a Crít. do Juízo, § 90) que dedicou à
opinião, à ciência e à fé. Entendeu por C. "a validade subjetiva do juízo", ou seja, a validade que o juízo
possui "na alma de quem julga". E reconheceu três graus de C: opinião, que é uma C. insuficiente tanto
subjetiva quanto objetivamente; fé, que é uma C. insuficiente objetivamente, mas considerada
subjetivamente suficiente; e ciência, que é uma C. suficiente tanto subjetiva quanto objetivamente. Mas
esses reparos e distinções, apesar do sucesso que tiveram, são um tanto confusos. Com efeito, Kant
considera a opinião como uma espécie de C, reconhecendo que carece de caráter de adesão. Além disso,
julga que só a fé tem ou pode ter influência sobre a ação, ao passo que, como vira Hume, essa é a
característica própria da crença. O caráter específico da C. foi ressaltado pelos empiristas ingleses do séc.
XIX, por Brentano e pelos pragmatistas. Stuart Mül identificou "juízo" e "C". "É necessário fazer a
distinção", disse ele, "entre a simples sugestão ao espírito de certa ordem entre as sensações ou idéias —
como, p. ex., a do alfabeto e a da tábua pitagórica — e a indicação de que essa ordem é um fato real que
está acontecendo, que aconteceu uma ou mais vezes ou que acontece sempre em certas circunstâncias:
que são as coisas indicadas como verdadeiras por uma predicação afirmativa ou como falsas pela
negativa" (Analysis of the Phenomena of the Human MindIde JAMES MILL], cap. IV, § 4, nota 48; também
System ofLog., I, 5, 2). De resto, a tese de que o juízo importa C. já fora defendida por Hobbes (De corp.,
3, § 8), para quem, no entanto, a C. consistia somente em considerar que sujeito e predicado são dois
nomes de uma só coisa. Stuart Mill, criticando Hobbes nesse aspecto, pretende mostrar que a adesão
implícita no juízo não é só verbal ou lingüística, mas diz respeito ao objeto do próprio juízo, isto é, à
realidade (Logic, I, 5, 4). Tese análoga foi sustentada por Franz Brentano do ponto de vista da
intencionalidade da consciência. Brentano
afirmou que todo objeto julgado existe na consciência em forma dupla: como objeto representado e como
objeto reconhecido ou negado, ou seja, "crido". "Afirmamos", disse Brentano, "que, quando o objeto de
uma representação se torna objeto de um juízo afirmativo ou negativo, a consciência refere-se a ele numa
espécie de relação completamente nova. O objeto está, então, duplamente presente para a consciência,
como representado e como aceito ou negado, assim como, quando o desejo recai sobre um objeto, esse
objeto está presente na consciência, ao mesmo tempo como representado e como desejado" (Von
derKlassifi-cation der psychischen Phánomene, 1911, II, 1). Brentano, portanto, fazia a distinção entre
juízo e representação como faculdades psíquicas diferentes e considerava que o juízo era marcado pelo
caráter de adesão da crença. Husserl chama esse mesmo caráter de "tético"; para ele, a C. é um ato que
"põe" o ser: ao caráter "tético" da C. corresponde o caráter "real" de seu objeto (Ideen, I, § 103). As
mesmas características são atribuídas à C. nas análises de Charles S. Peirce, que, ademais, ressaltou na C.
o caráter de compromisso com a ação. Os caracteres da C, segundo Peirce, são os seguintes: 1B
é algo de
que tomamos consciência; 2B aquieta a irritação da dúvida; 3Q
implica estabelecimento de uma regra de
ação, de um hábito. Desse conceito de C, Peirce extraía a regra que foi depois assumida como princípio
fundamental do pragmatismo: "Para desenvolver o significado de uma coisa não devemos fazer mais do
que determinar os hábitos que ela produz, pois aquilo que uma coisa significa é simplesmente o hábito
que ela implica. A identidade de um hábito depende de como ele nos levará a agir, não só nas
circunstâncias que provavelmente surgirão, mas nas circunstâncias que, embora improváveis, possam
surgir" (Chance, Love and Logic, II, 2; Coll. Pap., 5. 397).
Santayana elucidou a conexão da C. com a parte ativa e prática do homem, ou seja, com a fome, o amor, a
luta ou, de modo geral, a espera do futuro. Aquilo em que se crê não é essência pura (que, como tal, é só
objeto de intuição), mas uma coisa existente, e as coisas existentes se dão somente na "experiência
animal", isto é, na relação de ação e reação do organismo com o mundo. Logo, segundo Santayana, a C.
na existência é uma "fé animal" (Scepticism and Animal Faith, 1923, cap. 15-16). Enfim, outro caráter da
crença foi eviden-
CRIAÇÃO
220
CRIAÇÃO
ciado por James: a capacidade de provocar, às vezes, sua própria confirmação. James enunciou essa tese a
propósito de C. metafísicas, como, p. ex., das C. na ordem e na bondade final do mundo {The Will to
Believe, 1897). Ele entendia que a vida pode adquirir sentido e valor para quem acredita que ela os tem.
Mas fora dessa esfera metafísica o fenômeno da C. que se realiza a si mesma hoje é amplamente
reconhecido e estudado nas ciências sociais, assim como se reconhece e estuda nessas mesmas ciências o
fenômeno da "C. suicida", ou seja, da C. que se destrói a si mesma.
Na filosofia contemporânea, a noção de C. é marcada pelas seguintes características: I
a
a C. é a atitude da
adesão a uma noção qualquer; 2a essa adesão pode ser mais ou menos justificada pela validade objetiva da
noção, ou não se justificar de modo algum; 3a
a própria adesão transforma a noção em regra de
comportamento (o que Peirce chamava de "hábito de ação"); 4a
como regra de comportamento, em alguns
campos a C. pode produzir sua própria realização ou seu próprio desmentido.
CRIAÇÃO (gr. Trovnaiç; lat. Creatio; in. Creation; fr. Création-, ai. Schoepfung; it. Crea-zione). Em
todas as línguas, essa palavra tem sentido muito genérico, indicando qualquer forma de causalidade
produtiva: do artífice, do artista ou de Deus. Seu significado específico, porém, como forma particular de
causação, é caracterizado: 1Q
pela ausência de necessidade do efeito em relação à causa que o produz; 2e
pela ausência de realidade pressuposta no efeito criado, além da realidade da causa criadora (e nesse
sentido diz-se que a C. é "do nada"); 3g
pelo menor valor do efeito em relação à causa; e eventualmente
4° pela possibilidade de que um dos termos da relação, ou ambos, estejam fora do tempo. A I
a
e a 2a
características diferenciam a C. da emanação (v.) além de diferenciá-la das formas ordinárias de
causação. A 3a
característica é comum à C. e à emanação e diferencia ambas das formas ordinárias da
causação. A 4a
característica, quando se verifica, aproxima a C. da emanação (que é eterna porque
necessária), mas nem sempre se verifica.
Considera-se, em geral, que a C. é uma noção de origem bíblica, mas na realidade não é possível colher
na Bíblia as determinações acima expostas, que a definem e que são fruto da elaboração a que o
pensamento cristão submeteu esse conceito, pondo-o em relação positiva
ou negativa com doutrinas próprias da filosofia grega. Assim, na Bíblia, diz-se claramente que Deus criou
o céu e a terra (Gen., I, 1; Ps. 32, 6; 135, 5; Ecl., 18; Act., 14, 14; 17, 24; etc), mas não fica tão claro que
essa C. é do nada; aliás, o livro da Sabedoria (XI, 18) fala da C. do orbe da terra a partir de "uma matéria
invisível". Por outro lado, na filosofia grega encontrava-se certo conceito de C. que não se mostrou
compatível com o conceito de Deus peculiar aos cristãos. O conceito de C. dado por Platão em Timeu
ajusta-se às condições I
a
e 3a
, mas contradiz a 2a
. A C, para o Deus-artífice, é um ato voluntário de
bondade que quer a multiplicação do bem {Tim., 29 E), o que significa que o mundo não é necessário em
relação à sua causa. Mas a ação criadora do Demiurgo é limitada: le
pelas estruturas do ser, isto é, pelas
idéias ou substâncias que ele assume da sua obra como modelos; 2a
pela matriz material que, com sua
necessidade, limita a própria obra. Por isso, sua C. não é ex nihilo. Por sua vez o Deus de Aristóteles,
como primeiro motor imóvel do mundo, é causa do movimento, ou seja, do devir e da ordem do mundo,
mas não de seu ser substancial, que é tão eterno quanto o próprio Deus (Met., XII, 6, 1071 b 3 ss.).
Quanto ao Deus dos neoplatônicos e de Plotino, sua ação criadora é a da emanação, caracterizada pela
necessidade do processo criativo (v. EMANAÇÃO). Nesses modelos clássicos, o conceito de C. choca-se
com os atributos do Deus judaico e cristão, que não é causa necessária, mas cria o mundo por um ato livre
e gratuito, e é infinito e onipotente, não podendo, portanto, encontrar limites à sua ação criadora numa
estrutura substancial ou numa matéria que seja independente dele.
Em vista dessas exigências, a primeira elaboração da noção de C. foi feita por Fílon de Alexandria (séc.
I). Embora Fílon continue chamando Deus de "Demiurgo" ou de "Alma do mundo", anuncia (se bem que
com certa incerteza) a noção de C. afirmando que "Deus, criando todas as coisas, não só as trouxe à luz,
mas criou o que antes não havia: não só construtor, mas na verdade fundador" (Ktíoxriç, De somniis, I,
13). No mesmo sentido, a noção de C. foi elaborada pela Patrística e pela Escolás-tica. A elaboração
patrística tem mais afinidades com os modelos clássicos. Irineu reivindicava contra os gnósticos o caráter
total {ex nihilo) da C, sem o qual se atribuiria a Deus a impotência de realizar seus projetos {Adv.
CRIAÇÃO
221
CRIAÇÃO
haeres, II, 1, 1). Mas é sobretudo nos padres da igreja oriental que se sente a influência do modelo
emanacionista, evidente em Orígenes {Deprinc, I, 2,10) e, nos primórdios da Escolás-tica, em Scotus
Erigena (De divis. nat., IV, 7); este julga insolúvel a conciliação entre a eternidade do mundo e a C. deste
por parte de Deus. A Escolástica árabe, com Avicena e Averróis, insistira na necessidade e na eternidade
do mundo, negando (Averróis) a C, ou reduzindo-a (Avicena) à mera anterioridade do ser necessário ao
ser contingente (Met, VI, 2). E nesse aspecto foram de pouca serventia as críticas de Maimônides, que
defendera a "novidade" do mundo, insistindo nos seus caracteres arbitrários (Guide des égarés, II, 19). A
primeira exposição lúcida do conceito de C. deveu-se a S. Anselmo. "As coisas feitas pela substância
criadora", diz ele, "foram feitas do nada, assim como sói dizer-se que alguém que era pobre ficou rico, e
outro, que era doente ficou são" (Monologion, 8). Logo, nada antecede à obra criadora, exceto Deus:
"Aquilo que antes não era agora é" (Ibid., 8). Com igual lucidez, S. Tomás recapitulava as características
que essa noção viera adquirindo na Escolástica latina. A C. é "a emanação de todo ente a partir da causa
universal, que é Deus". Ela não pressupõe nenhuma realidade, pqis então haveria uma realidade não
causada pbr Deus; e nesse sentido é ex nihilo. Ex não significa a causa material, como se o nada fosse a
matéria de que o mundo é composto, mas somente a ordem de sucessão, pela qual o ser criado do mundo
segue-se ao não ser do próprio mundo (S. Th., I, q. 45, a. 1-2). Com isso e com o reconhecimento de que
"não é necessário que Deus queira algo que não ele mesmo" (Ibid., q. 46, a. 1), que implica o caráter
voluntário e gratuito da C, estavam fixadas as características do conceito. S. Tomás, porém, não julgava
que o conceito implicasse necessariamente o início do mundo no tempo. A C, como causação do mundo
por parte de Deus, poderia muito bem ser eterna, no sentido atribuído por S. Agostinho ao dizer: "Se um
pé sempre existiu no pó, desde a eternidade, sob ele sempre terá existido a pegada, indubitavelmente
produzida pelo pé que calcava; do mesmo modo, o mundo sempre existiu porque sempre existiu quem o
criou" (De civ. Dei, X, 3D. Nesse caso, obviamente, permaneceriam inalteradas as características
fundamentais l-, 2- e 3a
da noção: S. Tomás, portanto, admite que o início do mundo no tempo é
pura matéria de fé (S. Th., I, q. 46, a. 2). Essa doutrina seria reproduzida, sem variantes notáveis, por
Duns Scot (Rep. Par., II, d. 1, q. 3, n° 8).
É esse o paradigma do uso dessa noção pela filosofia moderna e contemporânea. Freqüentemente, os
filósofos que se serviram dessa noção deram maior ênfase a uma ou a outra de suas características, ou
acrescentaram alguma característica que eqüivale à sua negação. Descartes insistiu na continuidade da C,
observando que, se Deus parasse de criar, o mundo deixaria de existir (Discours, IV; Princ.phil, I, § 21):
observação que não é nova (acha-se em FÍLON, Ali. leg., I, 5) e reaparece com freqüência na Idade
Moderna. Outros, porém, como Hegel, insistem na necessidade da C, com o que, porém, o conceito é
implicitamente negado (Phi-losophie der Religion, ed. Glockner, II, p. 51 ss.). Mas Hegel e, em geral, o
idealismo romântico substituíram a noção de C. por outro conceito elaborado por Spinoza: a derivação
racional e necessária das coisas, como momentos lógicos, de seu princípio, derivação que Spinoza
identificara com a inferência pela qual "da natureza do triângulo segue-se que os três ângulos são iguais a
dois ângulos retos", ou seja, com a necessidade geométrica (Et, I, 17, scol.). Desde o início do séc. XIX,
através do idealismo romântico e, depois, do positivismo evolucio-nista, desenvolve-se outra hipótese a
respeito da origem do mundo, muito diferente da hipótese da C. Seu pressuposto é a noção de progresso
que o Iluminismo setecentista elaborara em relação ao mundo humano e que o séc. XIX estende ao
mundo natural. Essa noção deu ensejo à noção de desenvolvimento dialético, por um lado, e à de
evolução ou desenvolvimento natural, por outro. A primeira foi utilizada pelo idealismo romântico; a
segunda, pelo positivismo. Ambas substituem o fiat criador instantâneo pela formação gradual e
progressiva. Ambas levam a considerar como "mítica" a própria noção de criação. Na realidade, estão em
antítese direta com as características fundamentais dessa noção. Desenvolvimento (dialético) e evolução
significam causação necessária, me-diata, progressiva e, se não temporal, pelo menos coincidente com a
sucessão temporal. A C. continuou constituindo a alternativa "mítica", "metafísica" ou "religiosa" da
explicação do mundo, embora muitas vezes a hipótese de evolução e de desenvolvimento se mostrasse tão
"mítica" ou "metafísica" quanto a da criação.
CRIAÇÃO
222
CRISE
Apesar de tudo, a noção de C. não foi abandonada. Reaparece sempre que se apresenta uma concepção
teísta ou deísta do mundo, como muitas vezes acontece, por obra do espi-ritualismo moderno (p. ex., com
Whitehead, que insiste no caráter finalista da vida [Nature and Life, 1934, II]. Também na ciência, nestes
últimos tempos, às vezes é apresentada como "fato", independentemente de qualquer crença metafísica ou
religiosa. Alguns astrônomos modernos julgam que a expansão do universo (cujo sinal é o deslocamento
do espectro das galáxias para o vermelho) exige, para que o estado do universo permaneça uniforme, a C.
contínua de nova matéria. Chegou-se a calcular que a proporção de matéria criada é grosso modo
equivalente à massa de um átomo de hidrogênio para cada litro de volume e para cada bilhão de anos
(BONDI, Cosmology, 1952; cf. M. K. MUNITZ, Space, Time and Creation, 1957, pp. 154 ss.). É certo que
se pode pôr em dúvida a oportunidade científica do uso desse conceito nesse caso (v. COSMOLOGIA): de
qualquer forma, está claro que o significado dele não tem aqui as características específicas que o
identificam como forma de causação, pois não faz referência a uma causa, isto é, a um criador. Pela forma
como esse termo é usado por esses cosmólogos, significa apenas "aparição sem causa".
Em sentido igualmente genérico, emprega-se essa palavra muito mais freqüentemente para corrigir ou
retificar o conceito de evolução e para introduzir nesta os caracteres da impre-visibilidade, liberdade e
novidade. Nesse sentido, Bergson falou de "evolução criadora", para ressaltar a diferença e a
complexidade das linhas evolutivas e das formas orgânicas, bem como "a multiplicidade quase infinita de
análises e sínteses entrelaçadas" que pressupõem: diferença e multiplicidade que o homem pode captar
diretamente em si mesmo, na experiência da ação. "Que a ação cresce avançando, que ela cria à medida
que progride, cada um de nós pode constatar quando se vê agindo" Cá»/, créatr, IP ed., 1911, pp. 270-71).
Outros falaram, em sentido análogo, de "evolução emergente" (p. ex., C. LLOYD MORGAN em Emer-gent
Evolution, 1923). Esse sentido da palavra, que dá ênfase às novidades e à imprevisibili-dade do resultado
de um processo, está implícito nos usos dessa palavra que a relacionam com atividades humanas, como
quando se fala, p. ex., de C. "artística", "literária" ou "científica".
Embora S. Tomás excluísse a C. dos processos da natureza e da arte (_S. Th., I, q. 45, a. 8), o uso desse
termo para qualificar esses processos tornou-se comum tanto em linguagem filosófica quanto corrente.
Mas tudo o que esse uso implica é, precisamente, a acentuação do caráter de novidade imprevisível que
têm alguns produtos das atividades humanas ou mesmo dos processos naturais, sem que, obviamente,
com esse uso o termo faça qualquer referência à significação precisa elaborada pela filosofia medieval.
CRIACIONISMO. V. TRADUCIANISMO.
CRISE (in. Crisis; fr. Crise-, ai. Krisis; it. Crisí). Termo de origem médica que, na medicina hipocrática,
indicava a transformação decisiva que ocorre no ponto culminante de uma doença e orienta o seu curso
em sentido favorável ou não (HIPÓCRATES, Prognosticon, 6, 23-24; Epidemias, I, 8, 22). Em época
recente, esse termo foi estendido, passando a significar transformações decisivas em qualquer aspecto da
vida social. Na Introdução aos trabalhos científicos do século XIX(1^07), St.-Simon afirmava que o
progresso necessário da história é dominado por uma lei geral que determina a sucessão de épocas
orgânicas e de épocas críticas. A época orgânica é a que repousa num sistema de crenças bem
estabelecido, desenvolve-se em conformidade com ele e progride dentro dos limites por ele estabelecidos.
Mas a certa altura, esse mesmo progresso provoca a mudança da idéia central sobre a qual essa época está
apoiada e determina, assim, o início de uma época crítica. Desse modo, p. ex., a idade orgânica medieval
foi posta em C. pela Reforma e, sobretudo, pelo nascimento da ciência moderna. Comte repetiu essa
distinção (Discours sur Vesprit positif § 32). Para St.-Simon, assim como para Comte e muitos
positivistas, toda a época moderna é de C, no sentido de não ter ainda atingido sua organização definitiva
em torno de um princípio único, que deveria ser dado pela ciência moderna, mas, inevitavelmente,
encaminha-se para a realização dessa organização. Esse diagnóstico depois foi compartilhado por todos
os filósofos e políticos que se portaram como profetas de nosso tempo. Tanto os que acham que a nova e
indefectível era orgânica será o comunismo quanto os que acham que essa época será caracterizada pelo
misticismo estão de acordo em diagnosticar a "C." da época presente e em indicar seu caráter na falta de
"organicidade", ou
CRITÉRIO
223
CRITICISMO
seja, de uniformidade nos valores e nos modos de vida. A crença de que essa uniformidade existiu e de
que deverá inevitavelmenbte retornar é o pressuposto do sucesso alcançado pela noção de C, como se vê
num dos textos em que ela foi analisada com mais brilhantismo, O esquema das crises (1933), de Ortega
y Gasset. Mas o ideal de uma época orgânica, em que não haja incerteza nem luta, é, por sua vez, um mito
consolador que serve de escape para as gerações que perderam o sentido de segurança, visto que nenhuma
época chamada orgânica, nem mesmo a Idade Média, foi isenta de conflitos políticos e sociais insolúveis,
de lutas ideológicas, de antagonismos filosóficos e religiosos, que testemunham a fundamental incerteza
ou ambigüidade dos valores da época. Quando, de resto, o diagnóstico da C. é acompanhado pelo anúncio
do inevitável advento de uma época orgânica qualquer, essa noção revela claramente seu caráter de mito
pragmático, ideológico ou político.
CRITÉRIO (gr. Kpuripiov; lat. Criterium; in. Criterion; fr. Critère, ai. Kriterium, it. Critério). Uma
regra para decidir o que é verdadeiro ou falso, o que se deve fazer ou não, etc. O problema de um C.
capaz de dirigir o homem apresentou-se só no período pós-aristotélico da filosofia grega, quando a
filosofia assumiu caráter predominantemente prático. Assim, para Epicuro a sensação era o C. da verdade
e o prazer seasível, o C. do bem (DIÓG. L., X, 3D. Para os estóicos, a representação cataléptica era o C. da
verdade {Ibid., VII, 54) e o viver segundo a natureza era o C. da conduta {Ibid., VII, 87). Por sua vez, os
cépticos, negando a validade desses C, estabeleceram como seu próprio C. a adesão aos fenômenos e a
vida segundo os costumes, as leis e as instituições tradicionais, bem como segundo suas próprias afeições
(SEXTO EMPÍRICO, Pirr. hyp., 21-24). Está claro que toda filosofia, ainda quando não elabora uma
doutrina específica a respeito, tende sempre a apresentar ao homem um critério para dirigir suas opções,
especialmente as que têm importância decisiva em sua vida. Kant usou, em vez de C, a palavra cânon (v.).
CRÍTICA (in. Critique, fr. Critique, ai. Kritik, it. Critica). Termo introduzido por Kant para designar o
processo através do qual a razão empreende o conhecimento de si: "o tribunal que garanta a razão em suas
pretensões legítimas, mas condene as que não têm fundamento". A C. não é, pois, "a C. dos livros e dos
sistemas filosóficos, mas a C. da faculdade da razão, em geral, com respeito a todos os conhecimentos aos
quais ela pode aspirar independentemente da experiência"; portanto, também é "a decisão sobre a
possibilidade ou impossibilidade de uma metafísica em geral e a determinação tanto de suas fontes quanto
de seu âmbito e de seus limites" (Crít. R. Pura, Pref. à I
a ed.). A tarefa da C, portanto, é ao mesmo tempo
negativa e positiva: negativa enquanto restringe o uso da razão; positiva porque, nesses limites, a C.
garante à razão o uso legítimo de seus direitos {Ibid., Pref. à 2- ed.). A C. assim entendida afigurava-se a
Kant como uma das tarefas de sua época ou, como diz ele habitualmente, da "Idade Moderna"; de fato,
constituía a aspiração fundamental do Iluminismo, que, decidido a submeter todas as coisas à C. da razão,
não se recusava a submeter a própria razão à C, para determinar seus limites e eliminar de seu âmbito os
problemas fictícios (v. ILUMINISMO). Pode-se dizer que quem abriu esse caminho ao Iluminismo foi um
de seus maiores inspiradores, Locke; este, segundo palavras contidas na Epístola ao leitor, a qual antecede
o Ensaio sobre o entendimento humano, concebeu o Ensaio com a finalidade de "examinar as capacidades
próprias do homem e verificar quais objetos seu intelecto é capaz ou não de considerar". O Iluminismo
adotou esse ponto de vista (v. COISA-EM-SI). O título que Kant pensara dar à Crítica da Razão Pura, ou
seja, Os limites da sensibilidade e da razão (carta a Marcos Herz, de 7-VI-1771) exprime bem o
significado que ficou ligado à palavra "C". Contra esse significado, Hegel objetou que "querer conhecer
antes de conhecer é absurdo, tanto quanto o é o prudente propósito de quem quer aprender a nadar antes
de se arriscar a entrar na água" {Ene, § 10). Mas essa objeção é infundada, pois a C. kantiana não age no
vazio nem precede o conhecimento, mas atua sobre os conhecimentos de que o homem efetivamente
dispõe, com o fim de determinar as condições de sua validade. Não se trata, portanto, de aprender a nadar
fora da água, mas de analisar os movimentos do nado para determinar as possibilidades efetivas que ele
oferece, comparando-as às outras, fictícias, que levariam ao afogamento. CRÍTICA, HISTÓRIA. V.
ARQUEOLÓGICA. HISTÓRIA.
CRÍTICA, PSICOLOGIA. V. PSICOLOGIA, B CRITICISMO (in. Criticism; fr. Criticisme, ai.
Kritizismus; it. Criticismo). Doutrina de
CROCODILO, DILEMA DO
224
CULPA
Kant, nos pontos básicos pelos quais agiu na filosofia moderna e contemporânea, e que podem ser assim
resumidos: 1Q
Formulação crítica (v.) do problema filosófico e, portanto, condenação da metafísica como
esfera de problemas que estão além das possibilidades da razão humana. 2- Determinação da tarefa da
filosofia como reflexão sobre a ciência e, em geral, sobre as atividades humanas, a fim de determinar as
condições que garantem (e limitam) a validade da ciência e, em geral, das atividades humanas. 3Q
Distinção fundamental, no domínio do conhecimento, entre os problemas relativos à origem e ao
desenvolvimento do conhecimento no homem e o problema da validade do próprio conhecimento, isto é,
distinção entre o domínio da psicologia (Kant disse "fisiologia", Crít. R. Pura, § 10) e o domínio ló-gicotranscendental ou lógico-objetivo, onde tem lugar a questão de iure da validade do conhecimento,
insolúvel no terreno de facto. Essa distinção eqüivale à descoberta da dimensão lógico-objetiva do
conhecimento que deveria inspirar a filosofia dos valores, a Escola de Marburgo, o logicismo de Frege e,
através de Bolzano, a fenomenologia de Husserl. Em geral, pode-se dizer que a polêmica da matemática e
da lógica moderna contra o psicologismo (v.) tem origem histórica no C. kantiano; 4S Conceito de
moralidade fundada no imperativo categórico e conceito de imperativo categórico como forma da razão
em seu uso prático.
Esses pontos constituem as características comuns de todas as formas de C. e de neo-criticismo. Não
constituem, porém, traços característicos ou dominantes do C. os fundamentos da doutrina kantiana de
arte, teleologia e religião; sobre eles, v. verbetes correspondentes.
CROCODILO, DILEMA DO. V. DILEMA.
CRONÓTOPO. Foi esse o nome dado por Gioberti, em Protologia (I, p. 453-54), à unidade de espaço e
tempo puros, isto é, intuídos pelo Pensamento Divino. O C. é Deus mesmo, porque é a própria
possibilidade infinita da criação; no pensamento divino, é uma espécie de modelo eterno do tempo e do
espaço.
CRUCIAL (lat. Instantia crucis). O uso comum que se faz desse adjetivo em expressões como
"experiência C", "exemplo C", "período C", no sentido genérico de decisivo, remonta a Bacon (Nov. Org.,
II, 36), que deu o nome de instâncias C. (das cruzes que se erigiam nas encruzilhadas para indicar a
separação das estradas) aos experimentos que permitem escolher a hipótese verdadeira entre as várias possíveis para a
explicação de um fenômeno.
CUIDADO (lat. Cura; ai. Sorge, it. Cura). A preocupação, que, segundo Heidegger, é o próprio ser do
ser-aí, isto é, da existência. O C. é a totalidade das estruturas ontológicas do ser-aí enquanto ser-nomundo: em outros termos, compreende todas as possibilidades da existência que estejam vinculadas às
coisas e aos outros homens e dominadas pela situação. Heidegger lembra a fábula 220 de Higino como
"um testemunho pré-ontológico" da sua doutrina do cuidado. Essa fábula termina com estas palavras:
"Como foi cuidado quem primeiro imaginou o homem, que fique com ele enquanto ele viver" (Sein
undZeit, § 42). Todavia, Heidegger adverte: "Essa expressão nada tem a ver com 'aflição', 'tristeza',
'preocupações' da vida como se revelam onticamente em cada ser-aí. Ao contrário, é onticamente possível
algo como 'despreocupação' e 'alegria', justamente porque o ser-aí, ontologicamente entendido, é cuidado
(cura); como ao' ser-aí pertence de modo essencial o ser-no-mundo, seu ser em relação com o mundo é
essencialmente ocupação" (Ibid., § 12).
CULPA (lat. Culpa; in. Guilt; fr. Culpabilitê, ai. Schuld; it. Colpa). Originariamente, termo jurídico para
indicar a infração de uma norma cometida "involutariamente", sem premedita-ção, em contraposição a
delito (dolus), que é a transgressão premeditada. Eis como Kant exprime a questão: "Uma transgressão
involuntária mas imputavel chama-se culpa; uma transgressão voluntária (unida à consciência de que se
trata realmente de uma transgressão) chama-se delito" (Met. der Sitten, I, Intr. § 4). Para Heidegger, a
culpa é "um modo de ser do ser-aí", uma determinação essencial da existência humana enquanto tal.
Distingue dois significados de ser culpado (correspondentes aos dois significados do ai. Schuld, que
significa dívida e culpa): estar em débito com alguém e ser causa, autor ou responsável por alguma coisa.
"Nessa forma de 'ter culpa' de alguma coisa, pode-se 'ser culpado' sem 'estar em débito' com alguém ou
ser-lhe devedor. E, vice-versa, pode-se dever algo a alguém sem ter C. disso (ser sua causa)" (Sein und
Zeit, % 58). Em sentido análogo, Jaspers colocou a C. entre as situa-ções-limite da existência humana,
isto é, entre as situações a que o homem não pode fugir (PM., II, pp. 246 ss.).
CULTURA
225
CULTURA
CULTURA (in. Culture, fr. Culture, ai. Kul-tur, it. Cultura). Esse termo tem dois significados básicos.
No primeiro e mais antigo, significa a formação do homem, sua melhoria e seu refinamento. F. Bacon
considerava a C. nesse sentido como "a geórgica do espírito" (De augm. scient., VII, 1), esclarecendo
assim a origem metafórica desse termo. No segundo significado, indica o produto dessa formação, ou
seja, o conjunto dos modos de viver e de pensar cultivados, civilizados, polidos, que tam-; bém costumam
ser indicados pelo nome de civilização (v.). A passagem do primeiro para o segundo significado ocorreu
no séc. XVIII por obra da filosofia iluminista, o que se nota bem neste trecho de Kant: "Num ser racional,
cultura é a capacidade de escolher seus fins em geral (e portanto de ser livre). Por isso, só a C. pode ser o
fim último que a natureza tem condições de apresentar ao gênero humano" (Crít. do Juízo, § 83). Como
"fim", a C. é produto (mais que produzir-se) da "geórgica da alma". No mesmo sentido, Hegel dizia: "Um
povo faz progressos em si, tem seu desenvolvimento e seu crepúsculo. O que se encontra aqui, sobretudo,
é a categoria da C, de sua exageraçâo e de sua degeneração: para um povo, esta última é produto ou fonte
de ruína" (Phil. der Ges-chicbte, ed. Lasson, p. 43).
1. No significado'referente à formação da pessoa humana individual, essa palavra corresponde ainda hoje
ao que os gregos chamavam paidéia e que os latinos, na época de Cícero e Varrão, indicavam com a
palavra hu-manitas-. educação do homem como tal, ou seja, educação devida às "boas artes" peculiares
do homem, que o distinguem de todos os outros animais (AULO GÉLIO, Noct. Att., XIII, 17). As boas artes
eram a poesia, a eloqüência, a filosofia etc, às quais se atribuía valor essencial para aquilo que o homem é
e deve ser, portanto para a capacidade de formar o homem verdadeiro, o homem na sua forma genuína e
perfeita. Para os gregos, a C. nesse sentido foi a busca e a realização que o homem faz de si, isto é, da
verdadeira natureza humana. E teve dois caracteres constitutivos: ls
estreita conexão com a filosofia, na
qual se incluíam todas as formas da investigação; 2a
estreita conexão com a vida social. Em primeiro
lugar, para os gregos, o homem só podia realizar-se como tal através do conhecimento de si mesmo e de
seu mundo, portanto mediante a busca da verdade em todos os domínios que lhe dissessem respeito. Em
segundo lugar, o homem só podia realizar-se como tal na vida em comunidade, na. polis-, a República de
Platão é a expressão máxima da estreita ligação que os gregos estabeleciam entre a formação dos
indivíduos e a vida da comunidade; e a afirmação de Aristóteles de que o homem é por natureza um
animal político tem o mesmo significado. Mas num e noutro aspecto, a natureza humana de que se fala
não é um dado, um fato, uma realidade empírica ou material já existente, independentemente do esforço
de realização que é a cultura. Só existe como fim ou termo do processo de formação cultural; é, em outros
termos, uma realidade superior às coisas ou aos fatos, é uma idéia no sentido platônico, um ideal, uma
forma que os homens devem procurar realizar e encarnar em si mesmos.
Esse conceito clássico de C. como processo de formação especificamente humana evidentemente excluía
qualquer atividade infra-hu-mana ou ultra-humana. Excluía, em primeiro lugar, as atividades utilitárias:
artes, ofícios e, em geral, o trabalho manual que se indicava depreciativamente pelo termo banausia (v.),
que cabia ao escravo ("instrumento animado") porque não distinguia o homem do animal, que também
age no sentido de obter seu alimento e satisfazer às outras necessidades. Excluía também qualquer
atividade ultra-humana, que não estivesse voltada para a realização do homem no mundo, mas para um
destino ultraterreno. Pelo primeiro aspecto, o ideal clássico de C. foi aristocrática, pelo segundo, foi
naturalista; por ambos, foi contemplativo e viu na "vida teórica", inteiramente dedicada à busca da
sabedoria superior, o fim último da cultura. Na Idade Média esse conceito foi parcialmente conservado e
modificado: manteve-se o caráter aristocrático e contemplativo, mas transformou-se radicalmente seu
caráter naturalista. As artes do Trívio (gramática, retórica, dialética) e do Quadrívio (aritmética,
geometria, astronomia, música), que ainda eram chamadas de "liberais" (segundo o conceito grego, as
únicas dignas dos homens livres), constituíam a base e o preâmbulo da C. medieval, cujo objetivo foi,
porém, a preparação do homem para os deveres religiosos e para a vida ultraterrena. O instrumento
principal dessa preparação foi a filosofia, à qual se atribuiu a função específica de tornar acessíveis ao
homem as verdades reveladas pela religião, de fazê-lo compreender essas verdades na medida de
CULTURA
226
CULTURA
suas possibilidades intelectuais, de fornecer-lhe as armas para a defesa dessas verdades contra as
tentações da heresia e da descrença. Assim, a filosofia acabou exercendo função eminente na C. medieval,
mas bem diferente da que exercera no mundo grego: deixou de ser o complexo de investigações
autônomas que o homem organiza e disciplina com os instrumentos naturais de que dispõe (sentidos e
inteligência) para ter valor subalterno e instrumental (Philosophia ancilla theologiaé), para a
compreensão, a defesa e, sempre que possível, a demonstração da verdade religiosa. Só mais tarde, a
partir do séc. XII, começou a reivindicar, ao lado dessa função instrumental, um campo próprio e
específico de investigação, se bem que, também este, submetido às regras da fé. Contudo permaneceram
na Idade Média o caráter aristocrático e o caráter contemplativo, típicos do ideal clássico: este último,
aliás, acentuou-se e estendeu-se como preparação e prenuncio da contemplação beatífica da alma que se
alçou à pátria celeste. O Renascimento, na tentativa de redescobrir o significado genuíno do ideal clássico
de C, quis restabelecer seu caráter naturalista: concebeu a C. como formação do homem em seu mundo,
como a formação que permite ao homem viver da forma melhor e mais perfeita no mundo que é seu. A
própria religião, segundo esse ponto de vista, é elemento integrante da C. não porque prepare para outra
vida, mas porque ensina a viver bem nesta. O Renascimento, além disso, modificou o caráter
contemplativo do ideal clássico, insistindo no caráter ativo da "sabedoria" humana. Pico delia Mirandola
e Carlos Bovillo insistiram no conceito de que é através da sabedoria que o homem chega à realização
completa e torna-se um microcosmo no qual o próprio macrocosmo encontra a perfeição. "O sapiente",
diz Bovillo (De sapiente, 8), "conquista-se, toma posse e continua na posse de si mesmo, ao passo que o
insipiente permanece devedor da natureza, oprimido pelo homem substancial [isto é, pelo homem que é
simples coisa ou natureza] e jamais pertence a si mesmo." Desse ponto de vista, a vida ativa já não é
estranha ao ideal de C; com a vida ativa, o trabalho passa a fazer parte desse ideal, sendo, pois, resgatado
de seu caráter puramente utilitário e servil. O Renascimento, contudo, manteve o caráter aristocrático da
C: ela é "sapiência" e, como tal, reservada a poucos: o sapiente destaca-se do restante da humanidade, tem
seu
próprio statusmetafísico e moral, diferente dos outros homens.
A primeira tentativa de eliminar o caráter aristocrático da C. coube ao Iluminismo. Este teve dois aspectos
essenciais: em primeiro lugar, procurou estender a crítica racional a todos os objetos possíveis de
investigação e considerou, portanto, como erro ou preconceito tudo o que não passasse pelo crivo dessa
crítica. Em segundo lugar, propôs-se a difusão máxima da C, que deixou de ser considerada patrimônio
dos doutos para ser instrumento de renovação da vida social e individual. A Enciclopédia francesa foi a
maior, expressão dessa segunda tendência, mas foi somente um dos meios pelos quais o Iluminismo
procurou difundir a C. entre todos os homens e torná-la universal. Esse ideal de universalidade da C.
permaneceu, caracterizando, até nossos dias, um aspecto essencial da C, não obstante á poderosa
influência do Romantismo; este, por seu caráter reacionário e antiliberal, procurou de várias formas
retornar ao conceito aristocrático de cultura. Entretanto, domínio da C. alargava-se: as novas disciplinas
científicas que se formavam e adquiriam autonomia mostravam-se ipso facto como novos elementos
constitutivos do ideal de cultura, elementos indispensáveis para a formação de uma vida humana
equilibrada e rica. "Ser culto" já não significava dominar apenas as artes liberais da tradição clássica, mas
conhecer em certa medida a matemática, a física, as ciências naturais, além das disciplinas históricas e
filológicas que haviam formado. O conceito de C. começou então a significar "enciclopedismo", isto é,
conhecimento geral e sumário de todos os domínios do saber.
A partir do início deste século percebeu-se a insuficiência desse ideal enciclopedista, que, no entanto, era
fruto da multiplicação e da especifição dos campos de pesquisa e de suas respectivas disciplinas. Em
1908, Croce lamentava que nos cinqüenta anos anteriores houvesse prevalecido "o tipo do homem que
tem não poucos conhecimentos, mas não tem 0 ' conhecimento, que fica limitado a pequeno cúv ; culo de
fatos ou se perde em meio a fatos dos í mais variados tipos, e que, assim limitado ou '. perdido, continua
privado de uma diretriz ou, i como se diz, de uma fé". Croce porém, achava que esse mal não era devido à
especificação das disciplinas, mas ao predomínio do positivismo, que privilegiara a C. "naturalista e
mate-;; mática". E propunha como solução uma C. que
CULTURA
227
CULTURA
fosse "harmoniosa cooperação entre Filosofia e História, entendidas no seu significado amplo e
verdadeiro". Mas essa solução era suge-!
rida pelo espírito polêmico antipositivista e . pela orientação
típica da filosofia crociana, na qual a C. científica e o próprio espírito científico não encontram lugar. Na
realidade, o problema da C. agravou-se ainda mais nos cin-- qüenta anos transcorridos após o diagnóstico
de Croce. Não só o processo de multiplicação e especificação das correntes de pesquisa e, portanto, das
disciplinas (naturalistas e não-naturalistas) ampliou-se até assumir proporções gigantescas, como também
a crescente industrialização do mundo contemporâneo torna indispensável a formação de competências
específicas, possíveis apenas por meio de treinamento especializado, que confina o indivíduo num campo
extremamente restrito de atividade e estudo. O que a sociedade mais exige de cada um dos seus membros
é o desempenho na tarefa ou na função que lhe foi confiada; e o desempenho não depende tanto da posse
de uma C. geral desinteressada quanto de conhecimentos específicos e aprofundados em algum ramo
particularíssimo de deter-' minada disciplina. Ora, essa situação, determinada por condições históricosociais cuja mudança ou cujo fim não é possível prever, não pode ser ignorada ou "minimizada por
aqueles que se ocupam do problema da cultura. Portanto, é perfeitamente inútil erigir-se, com espírito
profético, contra ela, contrapondo-lhe o ideal clássico de C. em sua pureza e perfeição, como formação
desinteressada do homem aristocrático para a vida contemplativa. Por outro lado, também seria inútil
ignorar ou minimizar os defeitos gravíssimos de uma C. reduzida a puro treinamento técnico em
determinado campo e restringida ao uso profissional de conhecimentos utilitários. É óbvio que
dificilmente uma coisa dessas poderia ser chamada de "C", porque esta palavra designa, como se viu, um
ideal de formação humana completa, a realização do homem em sua forma autêntica ou em sua natureza
humana. Competências específicas, habilidades particulares, destreza e precisão no uso dos instrumentos,
materiais ou conceituais, são coisas úteis, aliás indispensáveis, à vida do homem em sociedade e da
sociedade no seu conjunto, mas não podem, nem de longe, substituir a C. entendida como formação
equilibrada e harmônica do homem como tal. E, de fato, a experiência revela todos
os dias os inconvenientes gravíssimos da educação incompleta e especializada, sobretudo nos países onde,
por fortes exigências sociais, ela foi levada mais a fundo. O primeiro inconveniente é o permanente
desequilíbrio da personalidade, que pende para uma única direção e fica centrada em torno de poucos
interesses, tornando-se incapaz de enfrentar situações ou problemas que se situem um pouco além desses
interesses. Esse desequilíbrio, já gravíssimo do ponto de vista individual (pode produzir, como de fato
muitas vezes produz, em certos limites, diversas formas de neuroses), também é grave do ponto de vista
social, pois impede ou limita muito a comunicação entre os homens, fecha cada um em seu próprio
mundo restrito, sem interesse nem tolerância por aqueles que estão fora dele. O segundo inconveniente é
que ele não dá armas para enfrentar as exigências que nascem da própria especialização das disciplinas.
De fato, quanto mais a fundo é levada essa especialização, tanto mais numerosos se tornam os problemas
que surgem nos pontos de contato ou de intersecção entre disciplinas diferentes; e esses problemas não
podem ser enfrentados no domínio de uma só delas e apenas com os instrumentos que ela oferece. Em
outros termos, a própria especialização, que é por certo uma exigência imprescindível do mundo
moderno, requer, em certa altura de seu desenvolvimento, encontros e colaboração entre disciplinas
especializadas diversas: encontros e colaboração que vão muito além das competências específicas e
exigem capacidade de comparação e de síntese, que a especialização não oferece.
Certamente, esses inconvenientes e problemas não têm a mesma gravidade em todos os países. Em geral,
pode-se dizer que onde o desenvolvimento industrial e econômico foi mais rápido esses problemas são
mais agudos. Mas mesmo onde isso não ocorreu, esses problemas acabam surgindo mais cedo ou mais
tarde (pre-visivelmente, mais cedo do que tarde) com a mesma gravidade, no momento em que, devido às
crescentes exigências do desenvolvimento científico e industrial, a especialização alcançar um estágio
adiantado. De qualquer forma, o problema fundamental da C. contemporânea é sempre o mesmo:
conciliar as exigências da especialização (inseparáveis do desenvolvimento maduro das atividades
culturais) com a exigência de formação humana, total ou, pelo menos, suficientemente equilibrada. É para
CULTURA
228
CULTURA
tentar solucionar esse problema que hoje se discute a noção de "C. geral", que deveria acompanhar todos
os graus e formas de educação, até a mais especializada. Mas está claro que a solução do problema será
apenas aparente enquanto não se tiver uma idéia clara do que é "C. geral". Não se trata, obviamente, de
contrapor um grupo de disciplinas a outro e de impor, p. ex., as disciplinas históricas ou humanísticas
como "C. geral", em oposição à especialização das disciplinas "naturalistas". Isso seria impróprio
principalmente porque mesmo as disciplinas chamadas "humanistas" não escapam à premência da
especialização e também exigem treinamento especializado para serem entendidas e proficuamente
cultivadas. Também é óbvio que a C. geral não pode ser constituída por noções vazias e superficiais, que
não suscitariam interesse e, portanto, não contribuiriam para enriquecer a personalidade do indivíduo e
sua capacidade de comunicar-se com os outros. Contudo, é possível indicar de maneira aproximada as
características de uma C. geral que, como a clássica paidéia, esteja preocupada com a formação total e
autêntica do homem. Em primeiro lugar, é uma C. "aberta", ou seja, não fecha o homem num âmbito
estreito e circunscrito de idéias e crenças. O homem "culto" é, em primeiro lugar, o homem de espírito
aberto e livre, que sabe entender as idéias e as crenças alheias ainda que não possa aceitá-las ou
reconhecer sua validade. Em segundo lugar, e por conseqüência, uma C. viva e formativa deve estar
aberta para o futuro, mas ancorada no passado. Nesse sentido, o homem culto é aquele que não se
desarvora diante do novo nem foge dele, mas sabe considerá-lo em seu justo valor, vinculando-o ao
passado e elucidando suas semelhanças e disparidades. Em terceiro lugar, a C. se funda na possibilidade
de abstrações operacionais, isto é, na capacidade de efetuar escolhas ou abstrações que permitam
confrontos, avaliações globais e, portanto, orientações de natureza relativamente estável. Em outros
termos: não há C. sem as idéias que comumente chamamos "idéias gerais", mas estas não devem nem
podem ser impostas ou aceitas, arbitrária ou passivamente, pelo homem culto na forma de ideologias
institucionalizadas; devem poder formar-se de modo autônomo, sendo continuamente co-mensuradas com
as situações reais. É claro que, para a formação de uma C. com essas características formais, são
igualmente necessários o enfoque histórico-humanístico do passado e o espírito crítico e experimental da pesquisa científica,
assim como é necessário o uso disciplinado e rigoroso das abstrações, próprio da filosofia, além da
capacidade de formar projetos de vida a longo prazo, que também é fruto do espírito filosófico. Desse
ponto de vista, o problema da C. geral não se coloca como formulação de um curriculum de estudos único
para todos, que compreenda disciplinas de informação genérica, mas como o problema de encontrar, para
cada grupo ou classe de atividades especializadas, e a partir delas, um projeto de trabalho e de estudo
coordenado com essas disciplinas ou que as complemente, que enriqueça os horizontes do indivíduo e
mantenha ou reintegre o equilíbrio de sua personalidade.
2. No segundo significado, essa palavra hoje é especialmente usada por sociólogos e antropólogos para
indicar o conjunto dos modos de vida criados, adquiridos e transmitidos de uma geração para a outra,
entre os membros de determinada sociedade. Nesse significado, C. não é a formação do indivíduo em sua
humanidade, nem sua maturidade espiritual, mas é a formação coletiva e anônima de um grupo social nas
instituições que o definem. Nesse sentido, esse termo talvez tenha sido usado pela primeira vez por
Spengler, que com ele entendeu "consciência pessoal de uma nação inteira"; consciência que, em sua
totalidade, ele ., entendeu organismo vivo; e, como todos os j organismos, nasce, cresce e morre. "Cada C,
: cada surgimento, cada progresso e cada declínio, cada um de seus graus e de seus períodos internamente
necessários, tem duração determinada, sempre igual, sempre recorrente com * forma de símbolo"
(Untergang des Abendlan- * des, I, p. 147). Do conceito da C. assim entendi- ■>. da, Spengler distinguia
o conceito de civiliza-, ção, que é o aperfeiçoamento e o fim de uma j C, a realização e, portanto, o
esgotamento de ) suas possibilidades constitutivas. "A civiliza- \ ção", diz Spengler, "é o destino
inevitável da cultura. Nela se atinge o ápice a partir do qual podem ser resolvidos os problemas últimos e
mais difíceis da morfologia histórica. As civili-. zações são os estados extremos e mais refinados aos
quais pode chegar uma espécie humana superior. São um fim: são o devindo que sucede ao devir, a morte
que sucede à vida, a ; cristalização que sucede à evolução. São um í
CULTURA
229
CURSO DAS NAÇÕES
termo irrevogável ao qual se chega por necessidade interna" (Ibid., Intr., § 12).
Essas observações, cuja validade é comprometida pela falacidade da analogia entre organismo humano e
grupo humano, sugerida a Spengler por seu biologismo explícito, só tiveram sucesso entre os
representantes do pro-fetismo contemporâneo. Mostraram, porém, a utilidade de um termo como C. para
indicar o conjunto dos modos de vida de um grupo humano determinado, sem referência ao sistema de
valores para os quais estão orientados esses modos de vida. C, em outras palavras, é um termo com que se
pode designar tanto a civilização mais progressista quanto as formas de vida social mais rústicas e
primitivas. Nesse significado neutro, esse termo é empregado por filósofos, sociólogos e antropólogos
contemporâneos. Tem ainda a vantagem de não privilegiar um modo de vida em relação a outro na
descrição de um todo cultural. De fato, para um antropólogo, um modo rústico de cozer um alimento é um
produto cultural tanto quanto uma sonata de Beethoven. As muitas definições de C. hoje em dia só fazem
dar expressões diversas a esses pontos básicos. Segundo Mali-nowski, a C. é "um composto integral de
instituições parcialmente autônomas e coordenadas" que, em seu conjunto, tende a satisfazer toda a
amplitude de "necessidades fundamentais, instrumentais e integrativas do grupo social 04 Scientific
Theory ofCulture, 1944). Segundo Kluckhohn e Kelly, a C. é "um sistema histórico de projetos de vida
explícitos e implícitos que tendem a ser compartilhados por todos os membros de um grupo ou por
membros especialmente designados" (R. LINTON, The
Science o/Man in the World Crisis, 1945). Para Coon, é "a soma total das coisas que as pessoas fazem
como resultado do fato de terem sido assim ensinadas" (.TheStory ofMan, 1954). Para Linton, é "um
grupo organizado de respostas aprendidas, características de determinada sociedade" (The Tree of
Culture, 1955). O caráter global (mas nem por isso sistemático) de uma C, na medida em que corresponde
às necessidades fundamentais de um grupo humano, a diversidade dos modos como as várias C.
correspondem a essas necessidades e o caráter de aprendizado ou transmissão da C, todos esses são traços
característicos expressos por essas definições e que se repetem em quase todas as definições que hoje
podem ser consideradas válidas.
CURIOSIDADE (ai. Neugierdè). Juntamente com a tagarelice e o equívoco, é, segundo Heidegger, uma
das características essenciais da existência cotidiana: caracteriza-se pelo desejo contínuo e sempre
renovado de ver. A C. nada tem a ver com a admiração de quem inicia a busca nem com a perplexidade de
quem não compreende. Caracteriza-se pela im-permanência no mundo circundante e pela dispersão em
possibilidades sempre novas, pelo que a curiosidade nunca está parada (Sein und Zeit, § 36).
CURSO DAS NAÇÕES. Esse é o nome dado por Viço à "constante uniformidade" demonstrada, apesar
da variedade dos costumes, pela história dos diversos povos; a história dos povos pode ser dividida nas
"três idades que, segundo os egípcios, haviam antes transcorrido em seu mundo: dos deuses, dos heróis e
dos homens" (Scienza nuova, IV) (v. RETORNOS).
D
D. 1. Na lógica medieval, todos os silogismos indicados por palavras mnemônicas que começam com D
são redutíveis ao terceiro modo da primeira figura {Darit). Cf. PEDRO HISPANO, Summ. log., 4.20.
2. No algoritmo de Lukasiewicz, indica a não-conjunção (cf. CHURCH, Introduction toMa-thematical
Logic, n. 91).
DABOTS. Palavra mnemônica usada pelos escolásticos para indicar o sétimo modo da primeira figura do
silogismo, mais precisamente o que consiste em uma premissa universal afirmativa, uma premissa
particular afirmativa e uma conclusão particular afirmativa, como p. ex.: "Todo animal é substância;
alguns homens são animais: logo, algumas substâncias são homens" (PEDRO HISPANO, Summ. log., 4.08).
DADO (in. Given; fr. Donné, ai. Gegeben; it. Dato). Em geral, o ponto de partida ou a base de uma
indagação qualquer, o elemento, o antecedente, a situação da qual se parte ou que serve de respaldo para
formular um problema, fazer uma inferência, aventar uma hipótese. O D. tem, portanto, caráter funcional:
o que se assume como D. para certo tipo ou ordem de indagação pode ser, por sua vez, tomado como
problema para outro tipo ou ordem de pesquisa.
A palavra moderna tem provavelmente origem matemática ("um segmento D", "um número D", etc). Na
filosofia moderna, a existência de D. últimos, irredutíveis, foi utilizada como a existência de um limite ao
conhecimento, ou seja, de uma condição que ao mesmo tempo restringe e garante a validade do próprio
conhecimento. Foi desse modo que Locke utilizou as idéias: sem idéias não é possível o conhecimento,
que é percepção de uma relação entre as próprias idéias {Ensaio, IV, 3, 1). Para ele, além das idéias,
também são dadas
(embora ele não lhes dê esse nome) as condições da percepção, do conhecimento racional e do
conhecimento sensorial; estas limitam a extensão do conhecimento, que acaba sendo menor do que o das
idéias {Ibid., IV, III, 6). Para Kant, o D. é a presença do objeto na intuição sensível {Crít. R. Pura, § 1):
presença que torna a intuição uma faculdade passiva, não criadora, como poderia ser a intuição intelectual
de Deus {Ibid., IV, § 8). Como é óbvio, nesse sentido o D. é eliminado das filosofias que negam o caráter
condicionado e limitado do conhecimento humano e o transformam em atividade criadora. Assim, Fichte
de certo modo contrapõe o conceito de posição ao conceito de D.: "Fonte da realidade é o Eu. Só através
do Eu e com ele é D. o conceito da realidade. Mas o Eu é porque se põe e põe-se porque é. Portanto, pôrse e ser são uma e a mesma coisa" {Wissenschaftslehre, 1794, § 4, C). Por outro lado, não é só o
idealismo romântico que elimina a noção e a função do dado. O próprio neo-criticismo, que interpreta a
doutrina de Kant como idealismo gnosiológico, nega a função do dado. Diz Cohen: "O pensamento não é
síntese, mas produção, e o princípio do pensaT mento não é um D., de algum modo independente dele,
mas é a origem {Ursprung). A lógica do conhecimento puro é uma lógica da origem" {Logik der reinen
Erkenntnis, 1902, p. 36). E, para Natorp, o D. não está no início do processo do conhecimento, como a
sua matéria bruta, mas no fim do processo como determinação final. Considera-se como D. o objeto que
se conseguiu determinar completamente {Phi-losophie, 1911, p. 60).
Na filosofia contemporânea, interessada em estabelecer as condições limitativas do conhecimento, a
noção de D. volta a ter seus direitos. O espiritualismo francês, de Maine de Biran a
DADO-A-SI-MESMO ou AUTOPRESENTAÇÃO 231
DATISI
Bergson, considerou o D. como um privilégio da experiência interior, isto é, da consciência. O Ensaio
sobre os dados imediatos da consciência, de Bergson (1889), apresenta-se como a tentativa de rastrear o
D. originário da consciência em sua pureza, libertando-o das superestruturas intelectuais. Tal D. originário
é, para Bergson, a duração da consciência, ou seja, a vida da consciência como autocriação e liberdade.
Para grande parte da filosofia contemporânea, o D. é, como para Bergson, um D. da consciência, que só
pode ser descoberto e reconhecido na busca da própria interioridade. Para Husserl, porém, o D. assume
significado mais geral. Segundo ele, qualquer procedimento rigoroso, seja ele científico ou filosófico, tem
o dever de voltar-se para o "dar-se originário" das coisas e fazer as coisas falar. "Julgar as coisas racional
ou cientificamente", diz ele, "significa voltar-se para elas, remontar dos discursos e das opiniões às
próprias coisas, interrogá-las em seu dar-se {Selbstgegebenheii) e eliminar todos os precondeitos alheios a
elas" Qdeen, I, § 19). A pesquisa fenomenológica, da forma como é concebida por Husserl, consiste em
pôr-se na condição em que as coisas se dão, em que se revelam na sua essência. Dewey entende o dado
como situação total de onde são extraídos os elementos para as soluções de um problema. "O que é D., no
sentido estrito da palavra, é o campo ou "a situação total. O D., no sentido de singular, seja objeto ou
qualidade, é o aspecto, o momento ou o elemento especial da presente situação real, e é abstraído desta a
fim de localizar e identificar seus traços problemáticos, com referência à indagação que se deve efetuar
naquele momento e naquele lugar. Para ser mais exato, o D. singular é mais uma assunção do que um D."
{Logic, cap. VII; trad. it., p. 181). O uso filosófico estabelece, portanto, dois conceitos diferentes da noção
de D.: ls
o D. é o ponto de partida da análise, isto é, a situação de que se parte para resolver um problema
ou as assunções ou os antecedentes de uma inferência ou de um discurso qualquer; 2-° o D. é o ponto de
chegada da busca porque é o que se obtém quando se retiram do campo de indagação preconceitos,
opiniões ou superestruturas falsifica-doras, permitindo que se mostre e manifeste a realidade enquanto tal.
O primeiro sentido foi assumido por Locke, Kant e Dewey; o segundo sentido, por Natorp, Bergson e
Husserl.
DADO-A-SI-MESMO ou AUTOPRESENTAÇÃO (ai. Selbstgegebenheii). Assim chamou Husserl
{Ideen, I, § 67) a representação em que
o objeto é dado de modo claro e visual: "Para cada essência, assim como para cada momento individual a
ela correspondente, há uma proximidade absoluta (por assim dizer) em que o seu dar-se, em relação a
uma série de graus de clareza, é absoluta, ou seja, é pura autopre-sentação" {ibid., § 67). Em outros
termos, a essência tornou-se tão transparente na representação que não há mais nenhum anteparo entre ela
e ela mesma.
DARAPTT. Palavra mnemônica usada pelos escolásticos para indicar o primeiro dos seis modos do
silogismo de terceira figura, mais precisamente o que consiste em uma premissa universal afirmativa,
uma premissa universal afirmativa e uma conclusão particular afirmativa, como no exemplo: "Todo
homem é substância; todo homem é animal: logo, alguns animais são substâncias" (PEDRO HISPANO,
Summ. log., 4. 14).
DARII. Palavra mnemônica usada pelos escolásticos para indicar o terceiro dos nove modos do silogismo
de primeira figura, mais precisamente o que consiste em uma premissa universal afirmativa, uma
premissa particular afirmativa e uma conclusão particular afirmativa, como no exemplo: "Todo homem é
animal; alguns seres capazes de rir são homens: logo, alguns seres capazes de rir são animais" (PEDRO
HISPANO, Summ. log., 4.07).
DARWENISMO(in. Darwinism; fr. Darwinis-me, ai. Darwinismus; it. Darwinismó). Doutrina da
evolução biológica, segundo os fundamentos enunciados por Darwin: 1Q
existência de pequenas
variações orgânicas, que se verificariam nos seres vivos sob a influência das condições ambientais, das
quais algumas (pela lei da probabilidade) seriam biologicamente vantajosas; 2
Q
seleção natural, graças à
qual sobreviveriam, na luta pela vida, os indivíduos nos quais se manifestassem as variações orgânicas
favoráveis {Origem das espécies, 1859). Também são partes integrantes do D. a hipótese de que o homem
descende de animais inferiores {Descendência do homem, 1871) e o agnosticismo diante dos problemas
metafísicos
(v. AGNOSTICISMO; EVOLUÇÃO).
DATISI. Palavra mnemônica usada pelos escolásticos para indicar o quarto dos seis modos do silogismo
de terceira figura, mais precisamente o que consiste em uma premissa universal afirmativa, uma premissa
particular afirmativa e uma conclusão particular afirmativa, como no exemplo: "Todo homem é
substância; alguns homens são animais:
DÉBITO
232
DEDUÇÃO
logo, alguns animais são substância" (PEDRO HISPANO, Summ. log., 4.14).
DÉBITO (in. Debt; fr. Dette, ai. Schuld, it. Debito). Segundo Kant, o D. originário é o pecado original ou
mal radical: o homem, por ter começado com o mal, contraiu um D. que já não lhe cabe liqüidar e que é
intransmissivel por ser a mais pessoal de todas as obrigações {Religion, II, 2 C). Heidegger tirou essa
noção da esfera moral e estudou-a na esfera onto-lógica. Considerou o "estar em D." como uma das
manifestações do "estar em falta" {Schuld significa tanto culpa quanto D.). Nesse sentido, estar em D. é
uma das formas da coexistência "no quadro das ocupações, providenciando, produzindo, etc. Outros
modos dessa ocupação são subtrair, plagiar, defraudar, tomar, roubar, isto é, não satisfazer o direito de
posse de alguém". Mas essas são apenas manifestações de uma culpabilidade essencial e originária da
existência, que é a de não ser seu próprio fundamento, de não ter em si o ser, mas de incluir o nada como
sua própria determinação. São manifestações dessa culpabilidade ontológica a culpa e o D. {Sein und
Zeit, § 58).
DECADÊNCIA (ai. das Verfallerí). Estado de queda da existência humana no nível da banalidade
cotidiana, segundo Heidegger. Isso, porém, não supõe um estado original superior nem é um estado
negativo e provisório que possa ser um dia eliminado. O estado de D. é aquele em que a existência se
alheia de si, esconde de si mesma sua possibilidade própria (que é a da morte) e entrega-se ao modo de
ser impessoal que é caracterizado pela tagarelice, pela curiosidade e pelo equívoco {Sein und Zeit, § 38X
DECISÃO (gr. Ttpoaípeoiç; in. Decision, fr. Decision; ai. Entscheidungou Entschlossenheit; it.
Decisione). 1. Esse termo corresponde ao que Aristóteles e os escolásticos chamavam de escolha, ou seja,
o momento conclusivo da deliberação no qual se adere a uma das alternativas possíveis. Aristóteles
definiu a escolha como "uma apetição deliberada referente a coisas que dependem de nós" {Et. nic, III, 5,
1113 a 10); em sentido determinista, Spinoza identificou a D. com o desejo ou "determinação do corpo",
que pode ser deduzida por meio das leis do movimento e do repouso {EL, III, 2, scol.). Mas, livre ou
determinada, a decisão é constantemente entendida pelos filósofos como o ato de discriminação dos
possíveis ou de adesão a uma das alternativas possíveis. É,
portanto, um ato antecipatório e projetante, no qual o futuro é de certo modo determinado. Esses
caracteres são elucidados por Heidegger, para quem a D. é "o projeto e a determinação clara que, cada
vez, abrem as possibilidades efetivas". Mas, para Heidegger, há uma só D. autêntica: a que orienta, não
para as possibilidades da existência cotidiana (que, em última análise, são impossibilidades), mas para a
possibilidade própria e certa da existência, isto é, a possibilidade da morte. Essa D. autêntica não é senão
"o tácito e angustiante autoprojetar-se sobre o mais próprio ser culpado"; ou ainda "aquilo de que o
cuidado se acusa e, enquanto cuidado, a possível autenticidade de si mesmo" {Sein und Zeit, § 60). Isso
significa que a D. autêntica coincide com a compreensão da existência humana como possibilidade da
morte, isto é, como impossibilidade (v. EXISTENCIALISMO; POSSIBILIDADE).
2. Na lógica contemporânea, um problema de D. é o problema de encontrar um procedimento efetivo ou
algoritmo (isto é, um procedimento de D.) graças âo qual se possa determinar, para uma fórmula qualquer
de dado sistema, se essa fórmula é um teorema ou não, ou seja, se pode ser provada ou não (cf. CHURCH,
Introduction to Mathematical Logic, § 15).
DECUNAÇÃO(gr. KÀiaiç). No latim, clinamen, desvio dos átomos da queda retilínea, admitido por
Epicuro para possibilitar o choque entre os átomos, a partir do qual os corpos são gerados. Com efeito, os
átomos que, no vácuo, se movem todos com a mesma velocidade nunca se encontrariam sem o clinamen
(EPICURO, Ep. a Herod., 61; CÍCERO, Defin., I, 6,18; LUCRÉCIO, Derer. nat., II, 252). Gassendi, que, no
séc. XVI, retomou a física epicurista, negou o desvio dos átomos.
DEDUÇÃO (gr. oi)Mo,
yiau.óç; lat. Deductio, in. Deduction; fr. Deduction; ai. Deduction; it.
Deduzioné). Relação pela qual uma conclusão deriva de uma ou mais premissas. Na história da filosofia,
essa relação foi interpretada e fundamentada de várias manieras. Podem-se distinguir três interpretações
principais: \- a que a considera fundada na essência necessária ou substância dos objetos a que se referem
as proposições; 2- a que a considera fundada na evidência sensível que tais objetos apresentam; 3a
a que
nega que essa relação tenha um único fundamento e a considera decorrente de regras cujo uso pode ser
objeto de acordo. A interpretação tradicional de D. como "o fato de o parti-
DEDUÇÃO
233
DEDUÇÃO
, cular derivar do universal" ou como "um raciocínio que vai do universal ao particular", etc, { refere-se
apenas à primeira dessas interpretações e por isso é restrita demais para poder abranger todas as
alternativas a que essa noção ; deu origem.
I
a
A definição aristotélica de silogismo . coincide com a definição geral de dedução. Diz Aristóteles: "O
silogismo é um raciocínio . em que, postas algumas coisas, seguem-se necessariamente algumas outras,
pelo simples fato de aquelas existirem. Quando digo 'pelo simples fato de aquelas existirem', pretendo
dizer que delas deriva alguma coisa, e, por outro lado, quando digo 'delas deriva alguma coisa', pretendo
dizer que não é preciso acrescentar nada de exterior para que a D. se siga necessariamente" (An. pr., I, 1,
24 b 17 ss.). Definido nesses termos, o silogismo nada mais é que a derivação de uma proposição de
outra, tendo, pois, o significado generalíssimo que ainda hoje se atribui à palavra dedução. Mas
Aristóteles acrescenta que o silogismo perfeito é a D. perfeita, aquela na qual as premissas contêm tudo o
que é necessário à D. da conclusão (Ibid., 24 b 23). Aristóteles faz a distinção entre D. e demonstração e
entre D. e indução. A D. se distingue da demonstração porque a demonstração é uma D. particular (Ibid.,
25 b 26), mais precisamente a D. que tem "premissas verdadeiras, primeiras, imediatas, mais conhecidas
do que a conclusão, anteriores a ela e causas dela" (An.post., I, 2, 71 b 18 ss.). E distingue-se de indução
porque esta se contrapõe àquela por sua estrutura esquemática (An. pr., II, 23, 68 b 30 ss.). Como
fundamento da relação entre as premissas e a conclusão, está a relação entre os três termos do silogismo,
que Aristóteles exprime com o verbo imáp^eiv (inesse = inerir): o significado deste é explicitado por
Aristóteles, ao determinar o modo como é possível formular silogismos e adquirir "a capacidade de
produzi-los". A esse propósito, ele diz que, em primeiro lugar, é necessário considerar o próprio objeto
como tal e sua definição, bem como as características que lhe são próprias; depois, é preciso considerar as
noções que se seguem do objeto, as noções de que o objeto se segue e, enfim, as que ele exclui. Em
outros termos, é preciso contemplar a essência ou substância do objeto, que é precisamente expressa pela
definição, e tudo o que ela implica ou pelo que é implicada. Aristóteles ainda se expressa dizendo que é
necessário
contemplar a totalidade da coisa, não a parte, p. ex., não o que se segue "de alguns homens", isto é, da
essência ou substância "homem" como resulta da definição. E é por isso que Aristóteles introduz uma
limitação importante: o silogismo deve ter premissas universais (Ibid., I, 27, 43 b 14). A estrutura
substancial da realidade, tal como é esclarecida na metafísica, é, portanto, o fundamento da teoria
aristotélica da dedução. As características fundamentais da teoria aristotélica da dedução são as seguintes:
d) multiplicidade das premissas derivadas da função indispensável do termo médio; b) universalidade das
premissas. Ambas essas características dependem do fundamento substancial da relação dedutiva. Com
efeito: le
o termo médio é indispensável porque a atribuição de um predicado a uma coisa só pode ser feita
com referência à substância da própria coisa, e só em virtude dessa referência podem ser determinadas a
qualidade (afirmação ou negação), a quantidade (universal ou particular) e a modalidade (essencial ou
acidental) da atribuição deduzida. 2° A universalidade das premissas deriva do fato de elas deverem
referir-se ao objeto em sua totalidade, ou seja, à substância ou à essência necessária do objeto. Essa teoria
da D. dominou a filosofia e a lógica antiga, medieval e moderna (salvo os reflexos da concepção estóica
de que falaremos em seguida), e, como identifica a D. com o silogismo, pode ser estudada com este
último termo.
2- Pode-se presumir que, à medida que os pressupostos substancialistas usados por Aristóteles como
fundamentos da teoria da D. fossem perdendo prestígio, o mesmo aconteceria com as características da
sua teoria, quais sejam, a multiplicidade e a universalidade das premissas. E é exatamente isso o que
ocorre na lógica dos estóicos, que, diferentemente de Aristóteles, são sensistas. Os estóicos dividiam os
raciocínios em demonstrativos ou apodí-ticos, que concluem por algo de novo, e não demonstrativos ou
anapodíticos (v. ANAPODÍ-TICO), que não concluem por nada de novo. Mas privilegiavam estes últimos
porque "não têm necessidade de demonstração para serem encontrados, mas são demonstrativos na
medida em que concluem também os outros raciocínios" (SEXTO EMPÍRICO, Pirr. hyp., II, 140,156; Adv.
dogm., II, 224 ss.). Ora, nos raciocínios anapodíticos (do tipo "Se é dia, há luz; é dia, logo, há luz"), a
conexão que constitui a premissa "Se é dia, há luz" é clara por si mesmo e não
DEDUÇÃO
234
DEDUÇÃO
precisa de demonstração; e é clara, entenda-se, com base em critérios estóicos, pela presença do fato que
ela exprime para os sentidos ou, pelo menos, pela sua possível presença. Nessa teoria, portanto, muda-se
o fundamento da relação dedutiva, que já não é, como para Aristóteles, a estrutura substancial dos objetos,
mas o fato sensível ou sensivelmente verificável, ou seja, a evidência da representação cataléptica (DiÓG.
L., VII, 45). Portanto, na teoria estóica não há vestígios das características que tornam a teoria da D. de
Aristóteles uma teoria do silogismo, ou seja, da necessária multiplicidade universalidade das premissas. O
fato de os estóicos haverem assumido como fundamentais os raciocínios anapodíticos e considerado que
os raciocínios demonstrativos são redutí-veis a eles significa que o fundamento explícito de sua teoria da
D. é o dado sensível. O ponto de vista do fato substituiu o ponto de vista racional da teoria aristotélica.
Mas, apesar da impossibilidade de conciliar esses dois pontos de vista, a teoria estóica não nos chegou
através da história em toda a sua pureza, mas confundida e unida com a teoria de Aristóteles. Os
peripatéticos (Teofrasto, Eudemo) acolheram ecleticamente a doutrina estóica da D., pondo-a ao lado da
aristotélica. Assim, falaram paralelamente em "silogismo categórico" e "silogismo hipotético", e sob essa
denominação, desconhecida de Aristóteles, entenderam os silogismos fundados nos raciocínios
anapodíticos dos estóicos. Boécio, que nos transmite esses fatos (De syllogismus hypotheticis, I, P. L., 64e
col. 83D, transcreveu da mesma forma, ou seja, paralelamente e no mesmo plano, as duas doutrinas
díspares. Na idade moderna, Locke baseou a D. na relação de concordância ou de discordância entre as
idéias, percebida imediatamente na experiência: "Inferir significa apenas deduzir, em virtude de uma
proposição posta como verdadeira, uma outra como verdadeira; ou seja, ver ou supor que exista uma
ligação entre as duas idéias da proposição inferida" (Ensaio, IV, 17, 4). Stuart Mill interpretou a D. de
modo análogo, como a aplicação de regras gerais obtidas por indução a casos particulares. E admitiu, por
isso, a possibilidade de raciocinar mesmo sem o uso de proposições gerais (Logic, II, 3, 5 ss.).
3
a
A terceira fase, ou melhor, a terceira alternativa que, ao longo da história, se apresentou à teoria da D.,
é a convencionalista, formulada pela lógica contemporânea. As regras da D.
não se baseiam na substância dos objetos a que se refere a D. nem na evidência sensível de tais objetos,
mas são escolhidas arbitrária mas oportunamente. É esse o ponto de vista introduzido por Carnap na obra
A visão lógica do mundo (1928). Essa tese admite "a possibilidade de livre escolha das regras de D.", isto
é, o caráter convencional de toda a lógica. Diz Carnap: "A lógica, ou seja, as regras da D. (na nossa
terminologia, as regras sintáticas de transformação) podem ser escolhidas arbitrariamente e são
convencionais sempre que assumidas como base para a construção do sistema lingüístico e sempre que a
interpretação do sistema for imposta num segundo momento" (Foundations of Logic and Mathematics,
1939, § 12). É claro que, desse ponto de vista, a relação em virtude da qual uma proposição se segue de
outra não é dada de uma vez por todas, mas pode ser determinada de várias formas por regras ou
convenções oportunas. Carnap distinguiu duas formas diferentes de D.: derivação, que é mais restrita, e
conseqüencialidade, que é mais ampla. A derivação é uma série finita de enunciados na qual cada passo é
definido sem que se defina a relação "derivável", que é definida pela cadeia inteira das derivações. Numa
série de conseqüências, até mesmo cada passo da série (isto é, a relação "conseqüência direta") é
indefinido. A derivação é a relação de D. usada em lógica e corresponde ao que comumente se entende
quando se diz "este enunciado se segue àquele" (TheLogical Syntax of Language, § 14).
As várias formas de implicação (v.) reconhecidas pela lógica contemporânea podem ser consideradas
outros tantos modos possíveis de relação de dedutibilidade. Alguns lógicos restringem hoje a relação de
dedutibilidade a certo tipo de implicação, mais precisamente à relação "estrita" ou semântica: é o que faz,
p. ex., Lewis (Knowledge and Valuation, 1946, p. 212). Outros, ao contrário, julgam que, para estabelecer
a dedutibilidade, basta a implicação material cujo conceito foi esclarecido em Principia mathematica: é o
que faz Russell (Lntr. to Mathematical Phil, cap. XIV; trad. it., p. 173). Na verdade, a menos que não se
assuma explicitamente como fundamento da D. a substância das coisas ou sua evidência sensível,
segundo a I
a
ou a 2a
das alternativas consideradas, todo e qualquer tipo de implicação pode ser
considerado relação dedutiva. Do ponto de vista da convencionalidade da lógica, o con-
DEDUÇÃO TRANSCENDENTAL
235
DEFINIÇÃO
ceito de D. não pode sofrer restrições e portanto deve estender-se a todas as formas que a relação de
derivação ou de conseqüencialidade de uma proposição em relação a outra possa assumir.
DEDUÇÃO TRANSCENDENTAL (in. Transcendental deduction; fr. Déduction transcendental^ ai.
Transzendentale Deduction-, it. Deduzione trascendentalé). Kant extraiu o termo D. da linguagem
jurídica, na qual significa a demonstração da legitimidade da pretensão que se formula. Nesse sentido,
falou da "D. da divisão de um sistema" como "prova de sua completitude e da sua continuidade" (Met.
der Sitten, I, intr., § III, nota). Analogamente, para a justificação do uso dos conceitos puros, ou
categorias, Kant julgou indispensável uma D. (que, justamente por referir-se a conceitos puros, chamou
de transcendental [v.]), que tivesse por fim demonstrar "o modo pelo qual os conceitos a priori podem
referir-se a objetos", e que, por isso, se distinguisse da "D. empírica", que mostra "de que modo um
conceito é adquirido por meio da experiência e da reflexão sobre ela". Desse modo, a D. empírica diz
respeito à posse de fato de um conceito, e a D. transcendental, ao seu uso legítimo (Crít. R. Pura, § 13). A
D. transcendental consiste em mostrar como os objetos da experiência não seriam tais, ou seja, nâo seriam
dados como objetos à experiência, se não fossem pensados segundo as categorias; e que o ato ou a função
pela qual podem ser originariamente pensados nas categorias é o "eu penso", ou percepção pura(v.).
Diferente da D. transcendental é a D. metafísica, que Fichte entendeu como demonstração sistemática de
todas as proposições da filosofia. "Todo o demonstrável deve ser demonstrado, todas as proposições
devem ser deduzidas, com exceção do princípio primeiro, supremo e fundamental, que é o Eu = Eu"
{Wissenschaftslehre, 1794, § 7). Hegel atribuía o mérito dessa exigência a Fichte: "A filosofia fichteana
cabe o profundo mérito de haver advertido para que as determinações do pensamento devem ser
demonstradas em sua necessidade, que são essencialmente dedutíveis" {Ene, § 42). Nesse sentido, a D. é
a demonstração da necessidade de uma determinação; e toda a doutrina de Hegel se organiza em
conformidade com essa exigência.
DEDUTIVO (in. Deductive, fr. Déductif; ai. Deductiv-, it. Deduttivo). SISTEMA: indica-se hoje com esse
nome o discurso que se inicia com
pequeno número de regras assumidas como premissas, e que sempre pode assumir como regra qualquer
proposição deduzida daquelas premissas e em conformidade com as regras que elas prescrevem (v.
AXIOMATIZAÇÃO; CONVENCIONALISMO). MÉTODO: entende-se hoje por esse termo o método que consiste
em procurar a confirmação de uma hipótese através da verificação das conseqüências previsíveis nessa
mesma hipótese. Reichenbach mostrou o caráter complexo desse método e sua irreduti-bilidade à dedução
propriamene dita. Admitir que existe uma relação D. entre uma hipótese e os dados observados
significaria admitir que a implicação az> b nos autoriza a considera a como provável quando b é dado
(Theory of Probability, 1949, § 84).
DEFINIÇÃO (gr. õpoç, ópiO|K>Ç; lat. Definitio-, in. Definition; fr. Definition; ai. Definition; it.
Definizione). Declaração da essência. Distin-guem-se diversos conceitos de D., que correspondem aos
diversos conceitos de essência (v.), mais precisamente: I
a
conceito de D. como declaração da essência
substancial; 2a conceito de D. como declaração da essência nominal; 3a
conceito de D. como declaração da
essência-significado.
1
Q
A doutrina aristotélica da D. diz respeito à essência substancial. Aristóteles afirma explicitamente que a
D. concerne à essência e à substância (An.post, II, 3, 90 b 30). E os vários significados de D. que ele
enumera referem-se todos à essência substancial. "A D. pode ser, em um primeiro sentido, a declaração
não demonstrável da essência; num segundo sentido, pode ser a dedução da essência e diferir da
demonstração só pela disposição das palavras: num terceiro sentido, pode ser a conclusão da
demonstração da essência" (Ibid., II, 10, 94 a 11). No primeiro significado, a D. refere-se a objetos que
são substâncias, como por ex. ao homem; no segundo e no terceiro caso, refere-se a objetos que não são
substâncias, mas fatos. como p. ex. o trovão, dos quais dizer essência significa dizer causa {Ibid., 94 a 1
ss.). Em todos os casos, a D. declara a essência substancial de seu objeto. Diz Aristóteles: "A essência
substancial pertence às coisas das quais há definição. E não há D. quando há um termo que se refere a
alguma coisa: nesse caso todas as palavras seriam definições porque as palavras indicam sempre alguma
coisa e até mesmo 'Ilíada' seria uma definição. Mas só há D. quando o termo significa algo de primário, o
que ocorre quan-
DEFINIÇÃO
236
DEFINIÇÃO
do se fala de coisas que não podem ser predicados de outras coisas" (Met., VII, 4, 1030 a 6). É essa a D.
constituída pelo gênero próximo e pela diferença específica: entendendo-se por gênero próximo o
predicado essencial comum a coisas que diferem em espécie Cp. ex., o predicado animal comum a todas
as espécies animais) e por diferença o que distingue uma espécie da outra (Top., I, 8, 103 b 15).
Esse conceito aristotélico de D. tornou-se clássico, ficando sistematicamente ligado ao conceito de
essência substancial e de ser como necessidade. Spinoza só fazia expressar isso com outras palavras
quando dizia: "A verdadeira D. de uma coisa qualquer não implica nem exprime nada além da natureza da
coisa definida" (Et., I, 8, schol. II). Depois de Aristóteles e por influência da Lógica estóica, o conceito de
D. tornou-se muito mais extenso e flexível; Boécio podia enumerar 15 espécies de D. (v. adiante). A D.
substancial, todavia, continuou sendo vista como a única verdadeira e autêntir ca, como se afigurou ao
próprio Boécio (De diffinitione, em P. L., 64e
, col. 898). Esse foi o ponto de vista compartilhado por todos
os escolásticos e até pelos nominalistas ou termi-nistas que, porém, insistiram na importância da definição
nominal. Ockham dizia: "A D. tem dois significados, já que uma é a D. que exprime o que é o objeto
(quid rei) e a outra é a D. que exprime o que é o nome (quid nominis). A D. que exprime o que é o objeto
pode ser assumida em dois sentidos: num sentido lato, caso em que compreende a D. propriamente dita, e
a D. descritiva, e em sentido estrito, caso em que é um discurso breve que exprime a natureza toda da
coisa e nada contém que seja extrínseco a essa coisa" (Summa log., I, 26). Por outro lado, a D. que
exprime o que é o nome é "um discurso que declara explicitamente a que se refere implicitamente com
um enunciado" (Ibid., I, 26). Ockham exclui da lógica as D. reais porque "o lógico não trata de coisas que
não sejam signos" (Ibid., I, 26), mas não nega a legitimidade dessas D. fora da lógica. Por outro lado,
parece-lhe um embuste (trufaticum) admitir que de um mesmo objeto (p. ex., do homem) haja uma D.
lógica, uma D. natural, uma D. metafísica. "O lógico, que não trata do homem porque não trata das coisas
que não são signos, não tem de definir o homem, mas só ensinar de que modo as outras ciências, que
tratam do homem, devem defini-lo. Por isso, o lógico não deve consignar nenhuma D. do homem, a não ser para exemplificar; nesse caso a D. dada como exemplo deve ser natural
ou metafísica" (Ibid., I, 26). Esse ponto de vista foi adotado pela lógica posterior. Jungius distinguia três
espécies de D.: nominal, essencial e científica, que correspondem aos três significados do termo
estabelecidos por Aristóteles (Lógica, 1638, IV, II, 6-8; II, 15). Leibniz reivindicava, contra Locke, a
distinção entre D. nominal e D. real, dizendo que "a essência do ouro é aquilo que o constitui e lhe
confere as qualidades sensíveis que lhe permitem ser reconhecido como tal e tornam nominal a sua
definição, ao passo que teríamos a D. real e causai se pudéssemos explicar sua estrutura ou constituição
interior" (Nouv. ess., III, 3, 19). Mas anteriormente (num ensaio de 1684), distinguira entre "D. nominais,
que contêm apenas as notas para discernir uma coisa das outras, e D. reais, das quais consta que a coisa é
possível" (Op., ed. Erdmann, p. 80). Wolff valeu-se dessas observações para dizer que "a D. da qual não
resulta que a coisa definida é possível se diz nominal; e aquela de que resulta ser possível a coisa
definida, se diz real" (Log., § 191); e, para dividir as D. nominais em essenciais e acidentais, acomodava a
seu modo — como dizia explicitamente — as noções esco-lásticas (Ibid., § 192). Kant, por sua vez,
entendia que definir era "expor originariamente o conceito explícito de uma coisa dentro de seus limites",
entendendo por explícito a. clareza e a suficiência das notas, por limites a precisão e por originariamente
o caráter primitivo da determinação, que não deve precisar de demonstração (Crít. R. Pura, Doutrina do
método, I, seç. I, § 1).
2- A possibilidade da D. nominal foi admitida por Aristóteles como via subordinada e preparatória à D.
real: "E como a D. é a declaração da essência haverá também a declaração daquilo que o nome significa
ou outra declaração nominal: p. ex., o que significa o nome triângulo" (An.post., II, 10, 93 b 28). A
distinção entre D. real e D. nominal não despertava o interesse da lógica estóica, que não atribuía à D. a
tarefa de declarar a essência substancial, portanto não se encontra nos escritores de inspiração
predominantemente estóica, como Cícero (Top., 5, 26 ss.) e Boécio (De diffinitione, P. L., 64Q
col. 901-
02). Pedro Hispano também a ignora. É utilizada pelos lógicos terministas medievais porque lhes fornece
o modo de definir o objeto específico da lógica, como ciência dos signos (v. os trechos de Ockham acima
citados).
DEFINIÇÃO
237
DEFINIÇÃO
Mas só se tem uma teoria da D. propriamente dita, como declaração da essência nominal, quando a
essência nominal é considerada a única possível, podendo-se, portanto, dizer o mesmo de sua D. Nesse
sentido Hobbes dizia: "A D. não pode ser outra coisa senão a explicação de um nome mediante um
discurso". Quando o nome se refere a um conceito composto, a D. é a resolução do nome em suas partes
mais gerais, de sorte que se pode dizer que a D. é "a proposição cujo predicado é reso-lutivo do sujeito
onde isso é possível; e onde não é possível, exemplificativo deste" (De corp., 6, § 14). Do mesmo modo,
Locke diz que "D. outra coisa não é senão dar a conhecer o significado de uma palavra mediante vários
outros termos não sinônimos" (Ensaio, III, 4, 6); e julga que "o melhor modo de dar uma D. é enumerar
as idéias simples que se combinam no significado do termo definido" (Ibid., III, 3, 10). Nessa tradição,
Stuart Mill afirmava que D. "é uma proposição declaratória do significado de uma palavra" (Logic, I, 8,
1). Expressões semelhantes recorrem em filósofos e lógicos mesmo recentes, que não admitem a doutrina
da substância e se inclinam para um ponto de vista nominalista. O mais das vezes, todavia, a teoria da D.
nominal apóia-se no pressuposto de que um nome não tem nem pode ter mais de uma D.; esse
pressuposto distingue a teoria da D. daquela que chamamos teoria da es-sência-significado.
3
e
Pode-se dizer que esta última teoria foi proposta pelos estóicos. Crisipo afirmava que a D. é uma
resposta (ànóSomç, DiÓG. L., VII, 1, 60), entendendo com isso que qualquer resposta dada à pergunta "o
quê?" pode ser considerada uma D. da coisa. Foi provavelmente com base nessa noção extremamente
generalizada da D. que começaram a surgir numerosas espécies de D., como em Cícero (Top., 5. 26 ss.) e,
na sua esteira, em Boécio. Este enumerou 15 espécies de D., privilegiando, como se disse, a primeira, que
é a D. substancial. As outras 14 espécies são as seguintes: I
a D. nocional, que dá certa concepção do
objeto, dizendo mais o que o objeto faz do que o que é; 2- D. qualitativa, que se vale de uma qualidade do
objeto; 3a
a D. descritiva, feita com caracteres que ilustram a natureza de uma coisa; é peculiar ao orador;
4- D. verbal, que consiste em esclarecer uma palavra com outra palavra; 5a
D. por diferença, que consiste
em esclarecer a diferença entre dois objetos, p. ex.,
entre o rei e o tirano; 6a
D. por metáfora, como p. ex. quando se diz que a juventude é a flor da idade; 7a
a
D. por privação do contrário, como p. ex. quando se diz que o bem é o que não é mal; 8a
D. por
hipotipose, que é a elaborada pela fantasia; 9a
D. por comparação com um tipo, como quando se diz que o
animal é como o homem; 10a
D. por falta de plenitude no mesmo gênero, como quando se diz que o plano
é aquilo a que falta a profundidade; 11a
D. laudativa; 12a
D. por analogia; p. ex.: "o homem é um
microcosmo"; 13a
D. relativa; p. ex.: "pai é quem tem filho"; 14a
D. causai, p. ex.: "dia é o sol sobre a
terra" (De diffinitione, P. L, 54s
, col. 901-07). A disparidade dessa relação de Boécio é tal que qualquer
resposta à pergunta "o quê?" pode ser considerada definição. Desse ponto de vista, a herança da teoria
estóica da D. é o conceito moderno de que D. é a declaração do significado de um termo, ou seja, do uso
que o termo pode terem dado campo de investigação. Desse ponto de vista, nào existe uma essência
privilegiada do termo (nem nominal nem real), mas existem possibilidades diferentes de defini-lo para
fins diferentes; todas as possibilidades podem, embora em graus diferentes, ser declaradas essenciais aos
seus fins. Assim, pode-se considerar D. qualquer restrição ou limitação do uso de um termo em
determinado contexto. E em todos os casos a D. supõe o contexto, ou, como disse M. Black, um conjunto
de pressuposições que constituem um preâmbulo à D., de sorte que sua forma é "Toda vez que as
condições forem assim e assim, o termo f será usado assim e assim" (cf. M. BLACK, Problems of
Analysis, 1954, p. 34). Segundo a natureza do preâmbulo, a D. poderá ter caráter diferente. Se o
preâmbulo faz referência a linguagens artificiais (como a lógica e a matemática), a D. será simplesmente
uma convenção (proposta ou aceita) sobre o uso da palavra em tal linguagem (D. estipulativd). Se o
preâmbulo fizer referência a linguagens nào artificiais ou só em parte artificiais (como a linguagem
comum e as das ciências empíricas), a D. será a declaração do uso corrente do termo em questão (D.
lexical) ou a proposta ou aceitação de uma modificação oportuna desse uso (redefinição) (cf. R.
ROBINSON, Definition, 1954). A essa terceira espécie pertencem as D. dos termos contidos neste
dicionário, que utilizam, simplificam ou retificam os usos de um termo em linguagem filosófica,
científica ou corrente.
DEIDADE
238
DELIBERAÇÃO
DEIDADE (lat. Deitas; in. Deity, fr. Déité, ai. Gottheit; it. Deita). Em geral, a essência ou natureza
divina; e esse é o sentido encontrado em S. Agostinho (De Trin., IV, 20) e S. Tomás (5. Th., I, q. 39, a. 5
ad 6S
). No séc. XII, porém, Gilbert de Ia Porrée identificou Deus com a D., distinguindo de D., que seria a
forma ou a essência comum, as três pessoas da Trindade. Essa doutrina, que era uma espécie de triteísmo, porque estabelecia entre as três pessoas divinas e a D. a mesma relação que há entre os indivíduos
humanos e a humanidade, foi condenada por S. Bernardo no Concilio de Paris de 1147 e no de Reims de
1148. Desde então os escolásticos evitaram o termo deitas (que aparece raramente) e em seu lugar usaram
simplesmente Deus. Esse termo foi empregado por Alexander para indicar "a qualidade empírica
proximamente superior ao espírito, em cujo nascimento o universo está empenhado", ou seja, que será a
próxima realização, e sobre cuja evolução emergente nada se sabe (Space, Time and Deity, 1920, II, p.
346).
DEIFICAÇAO (gr. 9É0KRÇ; lat. Deificatio-, in. Deification; fr. Déification; ai. Vergoettung; it.
Deificazione). Identificação do homem com Deus como termo e realização da ascensão mística. Esse
termo acha-se em Dionísio Areo-pagita (De eccl. byer., 2) e foi retomado por Scotus Erigena (De div.
nat., V, 31) e pela mística medieval. Bernardo de Claraval diz, a respeito do êxtase ou excessus mentis, na
qual Deus desce à alma humana e esta se une a Deus: "De que modo Deus poderá estar em todas as
coisas, se algo de humano permanecer no homem? Permanecerá certamente a substância, mas em outra
forma, com outra glória, com outra potência. Isto significa deificar-se" (Dedil. Deo, 11, 20). E Nicolau de
Cusa: "A eliminação de toda alteridade e diversidade, a resolução de todas as coisas na Unidade, que
também é a transfusão da Unidade em todas as coisas, isso é tbeosis" (Defiliatione Dei, 67, 1). DEÍSMO
(in. Deism, fr. Déisme, ai. Deismtis; it. Deísmo). Doutrina de uma religião natural ou racional não
fundada na revelação histórica, mas na manifestação natural da divindade à razão do homem. O D. é um
aspecto do Ilumi-nismo (v.), de que faz parte integrante. Mas as discussões em torno do D. foram
iniciadas pelos chamados platônicos de Cambridge, especialmente por Herbert de Cherbury em sua obra
De Veritate (1624). Entre os outros deístas ingleses devem ser lembrados os nomes de
John Toland, Mathew Tindal, Anthony Collins, Anthony Shaftesbury. A obra principal do D. inglês foi
Cristianismo sem mistérios (1696) de John Toland (1670-1722). O D. difundiu-se fora da Inglaterra como
elemento do Iluminismo: são deístas quase todos os iluministas franceses, alemães e italianos. Nem todos,
porém, usam a palavra D. para designar suas crenças religiosas: Voltaire, p. ex., usa a palavra "teísmo"
(Dic-tionnairephilosophique, Y76A, art. Athée, Théis-te). Mas foi Kant que estabeleceu claramente a
distinção.
As teses fundamentais do D. podem ser re-capituladas assim: l- a religião não contém e não pode conter
nada de irracional (tomando por critério de racionalidade a razão lockiana e não a cartesiana); 2a
a
verdade da religião revela-se, portanto, à própria razão, e a revelação histórica é supérflua; 3a
as crenças
da religião natural são poucas e simples: existência de Deus, criação e governo divino do mundo,
retribuição do mal e do bem em vida futura.
Note-se, porém, que em relação ao conceito de Deus nem todos os deístas estavam de acordo. Enquanto
os deístas ingleses atribuem a Deus não só o governo do mundo físico (a garantia da ordem do mundo),
mas também o do mundo moral, os deístas franceses, a começar por Voltaire, negam que Deus se ocupe
dos homens e lhe atribuem a mais radical indiferença quanto ao seu destino ( Traité de métaphysique, 9).
Todavia, a "religião natural" de Rousseau é uma forma de D. mais próxima da inglesa porque atribui a
Deus também a tarefa de garantir a ordem moral do mundo. Em todo caso, o que há de peculiar ao D., em
relação ao teísmo(v.), é a negação da revelação e a redução do conceito de Deus às características que lhe
podem ser atribuídas pela razão. Essa é a distinção estabelecida entre D. e teísmo por Kant (Crít. R. Pura,
Dialética, cap. III, seç. VII) (v. DEUS).
DELIBERAÇÃO (gr. (toútewiç lat. Consilvum, in. Deliberation; fr. Délibération-, ai. Oberle-gung; it.
Deliberazione). Consideração das alternativas possíveis que certa situação oferece à escolha. É o que
Aristóteles quer dizer ao falar dos limites da D., excluindo do âmbito dela não só o necessário (que não
pode não ser), mas também o fim. Com efeito, Aristóteles observa que o médico não se pergunta se quer
ou não curar o doente, o orador não se pergunta se quer ou não persuadir, nem o político se quer ou não
instituir boa legislação. Ao contrário, uma vez posto o fim, examina-se como e
DEMAGOGIA 239
DEMONSTRAÇÃO
por quais meios se poderá atingi-lo; sobre esses meios, portanto, versará a deliberação. A D. conclui-se e
culmina na escolha. O objeto de ambas é o mesmo, salvo pelo fato de que o objeto da escolha já está
definido pelo processo deliberativo a que a escolha põe termo (Et. nic, III, 3, 1112 a 21 ss.). Essas
definições de Aristóteles tornaram-se clássicas.
DEMAGOGIA. V. GOVERNO, FORMAS DE.
DEMIURGO (gr. ônLuoTjpyóç; lat. Demiur-gus; in. Demiurge, fr. Démiurge, ai. Demiurg; it.
Demiurgo). O artífice do mundo. Essa palavra tem origem em Timeu, de Platão; nessa obra, a causa
criadora do mundo é atribuída a uma divindade artífice que cria o mundo à semelhança da realidade ideal,
utilizando uma matéria informe e resistente que Platão chama de "matriz do mundo" (Tim., 51 a). A obra
criadora do D. (analogamente à de um artesão humano) não investe mas pressupõe os princípios
constitutivos da própria natureza, que são: le
as formas ideais eternas; 2e
a matéria com sua necessidade;
3
e
o espaço que não admite geração e destruição e que é a sede de tudo o que é gerado (Ibid, 52 b). Para
Platão o D. também é o criador das outras divindades, que receberam a função de gerar os seres vivos
(Ibid., 41 c). A noção de D. foi retomada várias vezes na história da filosofia. No séc. I, Numênio de
Apaméia distinguiu o D. da Inteligência como um Deus que atua sobre a matéria e forma o mundo. O
mundo seria o terceiro Deus (EUSÉBIO, Praep. Ev., XIV, 5). No séc. II, foi retomada pelos gnósticos:
Valentino considerou o D. como o último dos eons ou divindades emanadas (CLEMENTE, Strom., IV, 13,
89). Na idade moderna a concepção do D. foi retomada por Stuart Mill, que considerou o poder divino
limitado pela qualidade da matéria empregada, pela substância ou pelas forças de que se compõe o
universo e pela incapacidade de realizar da melhor forma os fins estabelecidos (Three Essays on Relig., 3
a
ed., 1885, p. 194).
DEMOCRACIA. V. GOVERNO, FORMAS DE.
DEMONÍACO (lat. Daemoniacus; in. Demo-niac; fr. Démoniaque, ai. Teuflísch; it. Demoníaco). No uso
corrente, esse adjetivo faz referência exclusivamente aos demônios maus, logo significa o mesmo que
diabólico. Segundo Kant, o diabolismo caracteriza-se pela malícia, pela intenção de acatar como motivo
das ações o mal enquanto mal (Religion, I, 3). Quanto ao próprio diabo, Kant vê nele a personificação de
um ensinamento moral que era assim posto ao
alcance de todos, ou seja, do ensinamento de que não há salvação para os homens a não ser na aceitação
dos princípios morais, e que a essa aceitação não se opõe a sensibilidade, que é disso acusada muitas
vezes, mas certa perversidade ou falsidade simbolizada pela astú-cia de Satã, graças à qual o mal entrou
no mundo (Ibid., II, 2). .
DEMÔNIO (gr. ÔOCÍLKÜV; lat. Daemon; in. De-mon; fr. Démon; ai. Daemon; it. Demone). Ser divino
em geral, que não o supremo, ao qual é habitualmente reservada a função de mediação. Sócrates atribuía à
voz que o chamava para sua tarefa e para o que devia ou não fazer "algo de divino" (ôociLiüMov "n., Ap.,
31 D), expressão que significa simplesmente o caráter divino ou transcendente do chamamento. Depois,
foram freqüentemente chamadas de D. as divindades inferiores ou subordinadas, que muitas vezes os
filósofos identificaram com as admitidas pela religião tradicional. Já Platão admitira essas divindades
como criadas pelo Demiurgo (Tim., 41 a). Os estóicos pensavam do mesmo modo (DIÓG. L., VII, 147).
Plotino diz que um D. é uma "imagem de Deus" (Enn., VI, 7, 6) e que os D. estão na segunda ordem, logo
depois dos deuses, ao passo que depois deles vêm os homens e os animais (Ibid., III, 2,11). O
neoplatonismo siríaco, como Plutarco, multiplica os D., considerando-os todos emanações, mais ou
menos remotas, da divindade suprema. O cristianismo adotou a seu modo a doutrina dos D., chamando de
anjos os bons D. e reservando o nome de D. aos anjos maus (v. ANJOS).
DEMONSTRAÇÃO (in. Demonstration. fr. Demonstration; ai. Demonstration; it. Di-mostrazione). O
termo D. e seu conceito (àTCÓSeiÇiç, lat. demonstratio) foram introduzidos na Lógica por Aristóteles
(Top., I, 100 a 27; An. post., I, 2 e passim) como silogismo que deduz uma conclusão de princípios
primeiros e verdadeiros ou de outras proposições deduzidas silogisticamente de princípios primeiros e
evidentes. Sua estrutura formal é a do silogismo; distingue-se, porém, do silogismo dialético porque,
como dirão os lógicos medievais, facit scire, é demonstrativa da essência das coisas através do
conhecimento das suas "causas". Substancialmente é esse o conceito de D. que passou para a filosofia
moderna. Mas, enquanto do ponto de vista gnosiológico se acentuaram os caracteres de necessidade e
evidência intuitiva da D. (Descartes, Kant), do ponto de vista lógico eviden-
DEMONSTRAÇÃO POR ABSURDO 240
DESCRIÇÃO
ciou-se o caráter de dedução formal a partir de premissas (Descartes, Leibniz), o que distingue a D. (cujo
tipo ou ideal continua sendo a D. matemática) de outros gêneros de prova. Na Lógica contemporânea, o
termo D. não é muito usado: em geral designa uma seqüência de enunciados tais que cada um deles é um
enunciado primitivo ou então é diretamente derivável de um ou mais enunciados que o precedem na
seqüência (CARNAP, Logical Syn-tax of Language, § 10). Durante muito tempo a D. foi considerada a
própria essência da ciência (v.).
DEMONSTRAÇÃO POR ABSURDO. V. ABSURDO.
DENOMINAÇÃO (lat. Denominatio; in. De-nomination; fr. Dénomination; ai. Benennung; it.
Denominazione). Em relação aos denomi-nativos ou parônimos (v.), distinguidos por Aristóteles dos
equívocos e dos unívocos (v.), os nominalistas do séc. XIV empregaram esse termo para indicar a função
das "segundas intenções", isto é, dos conceitos lógicos (como "conceito", "categoria", etc.) que não se
referem a coisas, mas servem só para denominá-las. Diz Pedro Auréolo: "A lógica, que considera as
intenções segundas, trata das intelecções não enquanto coisas verdadeiras, mas enquanto semelhanças que
denominam as coisas" (In Sent., I, d. 23, a. 1). Nesse sentido as intenções segundas são objetos só
"denominativamente", do mesmo modo como se pode chamar de "César" um retrato de César. A Lógica
de Port-Royal usou a expressão "modos externos" ou "D. extrínseca" para indicar os modos em que a
substância deriva da ação de outra coisa; p. ex.: ser amado, ser visto, ser desejado, etc. (ARNAULD,
Logique, I, 2).
DENOTAÇÃO. CONOTAÇÃO.
DEONTOLOGIÀ (in. Deontology, fr. Deontologie, ai. Deontologie, it. Deontologià). Termo criado por
Jeremy Bentham (D. ou Ciência da Moralidade, publicação póstuma de 1834) para designar uma ciência
do "conveniente", ou seja, uma moral fundada na tendência a perseguir o prazer e fugir da dor e que,
portanto, não lance mão de apelos à consciência, ao dever etc. "A tarefa do deontólogo", diz Bentham, "é
ensinar ao homem como dirigir suas emoções de tal modo que as subordine na medida do possível, a seu
próprio bem-estar" (Deont, I, 2). Muito diferente desse uso é o proposto por Rosmini, que entendeu por
"deontológicas" as ciências normativas, ou seja, as que indagam "como
deve ser o ente para ser perfeito" (Psicol, Pref., § 19). O ápice das ciências deontológicas seria a ética
(doutrina da justiça).
DERIVAÇÕES. V. RESÍDUOS.
DESCOBERTA (ai. Entdeckheii). Segundo Heidegger, "a possibilidade do ser de todos os entes não
dotados do caráter do ser-aí" [isto é, de todas as coisas do mundo] de ser procurado e determinado
"através de um processo particular que o descobre partindo do ente que pela primeira vez se encontra no
mundo". É, segundo Heidegger, um dos caracteres fundamentais das coisas, enquanto utilizáveis, e
portanto, da mundanidade em geral (Sein und Zeit, § 18).
DESCRIÇÃO (gr. ímoYpacpr); lat. Descriptio-, in. Description; fr. Description; ai. Beschrei-bung; it.
Descrizionè). Esse termo foi introduzido pelos estóicos, pois a sua noção permanecera estranha a
Aristóteles. Segundo os estóicos, a D. é "um discurso que conduz à coisa através de suas marcas" (DIÓG.
L., VII, 1, 60). Isso estabelece a difereça entre D. e definição, pois enquanto esta decjara a essência, que é
universal, a D. conduz à Coisa singular, faz referência à individualidade da coisa, àquilo que a distingue
das outras. A partir de Boécio {De differentiis topicis, II, P. L., 64s
, col. 1187), a D. começou a ser
caracterizada, em relação à definição, pelo uso de caracteres acidentais, muito comum nela. Os lógicos
medievais extraíram seu conceito de Dialectica (cap. 14) de João Damasceno (séc. VTII): "A D. compõese de acidentes, de caracteres próprios e acidentais, como p. ex.: o homem é capaz de rir, anda ere-to e
tem unhas largas. Esse é o conceito que também se repete em Lógica de Pedro Hispano: "A D. é o
discurso que significa o que é o ser de uma coisa mediante caracteres acidentais" (Summ. log., 5. 12).
Ockham dizia no mesmo sentido: "A D. é um discurso sucinto composto de caracteres acidentais e
próprios" (Summa log., I, 27); definição quase idêntica era aceita e difundida pela Lógica de Port-Royal
(II, 16) e por Jungius (Lógica hamburgensís, I, 1, 48). Dessa doutrina tradicional a lógica contemporânea
aceita só o significado geral, isto é, o reconhecimento do caráter individualizante da descrição. Mas
choca-se com a dificuldade representada pelo fato de a D. ser constituída por proposições que têm sentido
(no sentido de Frege), conotação, mas não significado, de-notação, que consiste na referência a um objeto
existente. Frases como "O autor da Divina Comédia era italiano", "O atual rei da França é
DESCRITIVO
241
DESENVOLVIMENTO
careca", "Pégaso era o cavalo alado capturado por Belerofonte" não parecem fazer nenhuma referência a
qualquer objeto ou entidade, ou seja, não denotam nada; as duas últimas, aliás, descrevem objetos
inexistentes, quais sejam, "o atual rei da França" e "Pégaso". Para evitar esse inconveniente, Russell
(OnDenoting, 1905, agora em Logic andKnowledge, 1956, p. 39 ss.; Principia mathematica, I, p. 36)
propôs interpretar essas frases descritivas como se dissessem: "Há uma entidade x que é o autor da Divina
Comédia e é italiano", "Há uma entidade xque agora é rei da França e é careca", "Há uma entidade x que
é um cavalo alado e foi capturado por Belerofonte". Desse ponto de vista, para ser verdadeira a negação
de uma das frases descritivas acima (p. ex., "O atual rei da França não é careca") deveria significar "É
falso que há uma entidade que agora é rei da França e é careca", o que parece nada ter a ver com o sentido
da frase.
Frege admitira que toda expressão acabada deve pressupor a referência a um objeto, ou seja, um
denotado, mas considerara possível que na linguagem comum, assim como na linguagem matemática,
existam expressões que têm apenas sentido e não significado, que são indeterminadas em termos de
significado ( Über Sinn und Bedeutung, 1892, em Aritmética e lógica, p. 327), e Carnàp aceitou
substancialmente esse ponto de vista (Meaning and Ne-cessity, 1957, §§ 7-8). Quine, por outro lado,
aceitou a interpretação de Russel, mesmo admitindo que o compromisso ontológico expresso pela frase
"Há alguma coisa que..." não faz referência necessária ao mundo da experiência, mas pode também
referir-se a formas de existência mental ou mítica (From a Logical Point ofView, cap. I).
Nesses termos, o problema da D. tem conexões estreitas com o da natureza do significado (v.).
DESCRITIVO (in. Descriptive, fr. Descriptif; ai. Beschreibende, it. Descrittivó). Além do significado
genérico, correspondente ao do substantivo, esse adjetivo tem dois significados controversos, quais
sejam: I
a
o de ciência D., que, a partir do séc. XVIII, foi contraposta à ciência explicativa e ao "espírito de
sistema", que pretendia explicar os fenômenos recorrendo às causas da metafísica tradicional (cf. p. ex.,
D'ALEMBERT, Discours de VEncyclopédie, (Euvres, ed. Condorcet, p. 156-157); 2Q
o da terminologia
contemporânea, em que D. se
contrapõe a persuasivo como qualificação de significado fazendo-se a distinção entre significado
descritivo de um signo, que consiste em sua disposição a produzir conhecimento, de significado
persuasivo, que consistiria em produzir uma resposta de natureza emotiva (cf. C. L. STEVENSON,
EthicsandLanguage, 5
a
ed., 1950, cap. III, especialmente, p. 59) (v. SIGNIFICADO).
DESEJO (gr. èrti(h>nía; lat. Cupiditas, in. De-sire, fr. Désir, ai. Begehren; it. Desiderio). Esse termo
pode ter dois significados: ls
geral, de apetite, de princípio que impele um ser vivo à ação; para tal
significado, v. APETITE; 2S mais restrito, de apetite sensível, pelo qual corresponde ao grego è7u6t)|J.íae
ao latim cupiditas. Nesse sentido, segundo Aristóteles, o D. é "o apetite do que é agradável" (De an., II, 3,
414 b 6). Analogamente, Descartes o definiu como "a agitação da alma causada pelos espíritos que a
dispõem a querer no futuro as coisas que a ela se afiguram convenientes" (Pass. de 1'âme, § 86).
Equivalente a esta é a definição de Spi-noza: "Tristeza ligada à falta da coisa que amamos" (Et., III, 36,
scol). Esses significados repetem-se ao longo da história da filosofia.
Na literatura contemporânea essa palavra assumiu alguns significados novos. Dewey definiu o D. como
"atividade que procura agir no sentido de romper o dique que a retém. O objeto que se apresenta no
pensamento como meta do D. é o objeto do ambiente que, se estivesse presente, garantiria a reunificação
da atividade e a restauração de sua unidade" (Hu-man Nature and Conduct, pp. 249 ss.). Hei-degger
vinculou o D. à natureza do homem como ser projetante: "O ser para as possibilidades manifesta-se em
geral como puro desejo. No D., o ser-aí projeta seu ser para possibilidades que não somente não são
captadas na ocupação, como também não se examina seriamente nem se espera a sua realização (Sein und
Zeit, § 41).
DESENVOLVIMENTO (in. Development; fr. Développement; ai. Entwicklung, it. Sviluppo,
Svolgimentó). Movimento em direção ao melhor. Embora essa noção tenha precedentes no conceito
aristotélico de movimento (v.) como passagem da potência ao ato ou explicação do que está implícito
(CÍCERO, Top., 9), seu significado otimista é peculiar à filosofia do séc. XIX e está estreitamente ligado ao
conceito de progresso (v.). Seu sinônimo mais próximo é evolução (v.), mas este último termo é mais
freqüentemente usado para indicar o D. biológico
DESESPERANÇA
242
DESORDEM
ou um D. cósmico, cujas raízes e analogias estão no D. biológico. Sem referência a esse aspecto
particular, esse termo foi usado por Hegel, que o transformou numa das categorias fundamentais de sua
filosofia e o exemplificou sobretudo na história. Ao lado do caráter progressista do D., Hegel destacou
outro caráter fundamental: o D. pressupõe aquilo de que é D., isto é, o fim para o qual se move e o
princípio ou a causa de si mesmo. "O espírito", disse Hegel, "que tem como teatro, domínio e campo de
realização a história do mundo, não vagueia nas oscilações extrínsecas do acaso, mas é em si
determinante absoluto... O que quer é alcançar seu próprio conceito, mas ele mesmo o obscu-rece para si,
tem orgulho e prazer nesse alhear-se de si mesmo" iPhilosophie der Geschichte, ed. Lasson, pp. 131-32).
Nesse sentido, o Absoluto é D. "O verdadeiro é o integral. Mas o integral é somente a substância que se
completa através de seu desenvolvimento. Do Absoluto deve-se dizer que é essencialmente resultado, que
só no fim é o que é na verdade; e justamente nisso consiste sua natureza, em ser efetividade, sujeito ou D.
de si mesmo" (Phà-nomen. des Geistes, Pref., II, 1). O que esse conceito tem de novo em relação ao
conceito aristotélico do movimento é a aplicação ao mundo da história e a extensão a todos os aspectos da
realidade. Mas o caráter finalista, providencialista e substancialista do D. ilustrado por Hegel tem
correspondência com a doutrina aristotélica do movimento, que também é finalista e providencialista,
exigindo também que aquilo que se desenvolve seja pressuposto pelo próprio D.: não é outro o
significado da superioridade do ato sobre a potência, a que é dedicado um célebre estudo de Aristóteles
(Met., IX, 8) (cf. ATO).
DESESPERANÇA (in. Desperation-, fr. Déses-poir, ai. Verzweiflung; it. Disperazioné). Segundo
Kierkegaard, é "a doença mortal", a doença própria da personalidade humana e que a torna incapaz de
realizar-se. Enquanto a angústia se refere à relação do homem com o mundo, a D. refere-se à relação do
homem consigo mesmo, em que consiste propriamente o eu. Nessa relação, se o eu quiser ser ele mesmo,
pois é finito, logo insuficiente a si mesmo, não chegará jamais ao equilíbrio e ao repouso. E se não quiser
ser ele mesmo chocar-se-á também contra uma impossibilidade fundamental. Em um e outro caso
tropeçará na D., que é "viver a morte do eu", isto é, a negação da possibilidade do
eu na vã tentativa de torná-lo auto-suficiente ou destruí-lo em sua natureza (A doença mortal, 1849, esp.
parte I, C). Também para Jaspers a D. é um dos aspectos fundamentais da existência iPhil, II, 266 ss.; II,
225 ss.).
DESIGNADO (lat. Designatum, in. Designate). Na lógica contemporânea entende-se por essa palavra o
objeto qualquer, existente ou inexistente, que o signo pode denotar. O denotado, ao contrário, é algo de
existente. Entre "designação" e "denotação" estabelece-se distinção análoga, mas ambas significam a
referência de um signo ao seu objeto (cf. DEJ^EY, Logic, cap. XVIII; trad. it., p. 473; MORRIS,
Foundations of the Theory of Signs, § 7; trad. it., p. 69) (v. SEMIÓTICA).
DESIGNADOR (in. Designator). Termo empregado por Morris para indicar uma espécie de signo, mais
precisamente aquela pela qual "o intérprete dispõe-se a seqüências de respostas determinadas por um
objeto que tem certas características" (Signs, Language and Behavior, 1946, III, 3)- Carnap empregou
esse termo para indicar "todas ás expressões às quais se aplica uma análise semântica do significado, de
tal modo que a classe dos D. seja mais vasta ou mais restrita conforme o método de análise empregado"
(Meaning and Necessity, § 1).
DESM1T1EICAÇÃO (ai. Entmythologisierung; fr. Démythisation, it. Demitizzazioné). Corrente
teológica de Rudolf Bultmann que tende a libertar a mensagem cristã (kerygmd) do mito cosmológico
com que está unida no Novo Testamento. Libertada das imagens e dos símbolos do mito, a mensagem
cristã é um diagnóstico da existência humana no mundo, ou seja, do homem existente historicamente nas
ocupações, na angústia, no instante de decisão entre passado e futuro. A uma existência assim entendida a
salvação apresenta-se como acontecimento que deve ocorrer no futuro e com o qual Deus põe fim ao
mundo e à sua história (R. BULTMANN, Offenbarung undHeils-geschehen, 1941; Geschichte und
Escatologie, 1958; Kerygma undMythos(de vários autores), 5 vols., 1948-551.
DESORDEM (in. Disorder; fr. Désordre, ai. Unordnung it. Disordiné). Numa análise célebre (Évol.
créatr., cap. III), Bergson mostrou o caráter e a função positiva da noção de desordem. Ela não exprime a
ausência absoluta de ordem, mas só a ausência da ordem procurada e a presença de uma ordem diferente
(do mesmo modo como se diz "Não há versos" quando
DESSEMELHANÇA 243
DESTINO
se procuram versos e se encontra prosa). Bergson reduz a dois os tipos fundamentais de ordem, que,
substituindo-se um ao outro, levam a falar de D.; são eles o geométrico e o vital: "Dos fenômenos
astronômicos dir-se-á que manifestam uma ordem admirável, entendendo com isso que podemos prevêlos matematicamente. E encontrar-se-á ordem não menos admirável numa sinfonia de Beethoven, que é
genialidade, originalidade e, conseqüentemente, a própria imprevisibilidade" (Ibid., 8
a
ed., 1911, p. 244)
(v. ORDEM).
DESSEMELHANÇA (gr. òXÀoíoxTiç; lat. Dissi-militudo; in. Dissimilitude, fr. Dissimilitude, ai.
Ungleichheit; it. Dissimiglianzà). A falta ou a imperfeição da semelhança (v. SEMELHANTE).
DESTINO (gr. £ÍLiap|!évr|; lat. Fatum, in. Des-tiny, fr. Destin-, ai. Geschick, Schicksal; it. Destino).
Ação necessitante que a ordem do mundo exerce sobre cada um de seus seres singulares. Na sua
formulação tradicional, esse conei-to implica: 1Q
necessidade, quase sempre desconhecida e por isso
cega, que domina cada indivíduo do mundo enquanto parte da ordem total; 2- adaptação perfeita de cada
indivíduo ao seu lugar, ao seu papel ou à sua função no mundo, visto que, como engrenagem da ordem
total, cada ser efeito para aquilo que faz.
O conceito de D. é antiquíssimo e bastante difundido, porque compartilhado por todas as filosofias que,
de algum modo, admitem uma ordem necessária do mundo. Aqui só faremos alusão às que designam
explicitamente essa ordem com o termo em questão. O D. é noção dominante na filosofia estóica. Crisipo,
Posidô-nio, Zenão, Boeto o reconheceram como a "causa necessária" de tudo ou a "razão" pela qual o
mundo é dirigido. Identificavam-no com a providência (DIÓG. L., VII, 149). Os estóicos latinos retomam
essa noção e apontam seus reflexos morais (SÊNECA, Natur. quaest, II, 36, 45; MARCO AURÉLIO,
Memórias, IX, 15). Segundo Plotino, ao D. que domina todas as coisas exteriores só escapa a alma que
toma como guia "a razão pura e impassível que lhe pertence de pleno direito", que haure em si, e não no
exterior, o princípio de sua própria ação (Enn., III, 1, 9). Para Plotino, a providência é uma só: nas coisas
inferiores chama-se D.; nas superiores, providência (ibid., III, 3, 5). De modo análogo, para Boécio (que
com a Consolação da filosofia transmitia esses problemas à Escolástica latina), D. e providência só se
distinguem porque
a providência é a ordem do mundo vista pela inteligência divina e o D. é essa mesma ordem desdobrada
no tempo. Mas no fundo a ordem do D. depende da providência (Phil. cons., IV. 6,10). O livre-arbítrio
humano subtrai-se da providência e do D. só porque as ações a que dá origem se incluem, exatamente em
sua liberdade, na ordem do D. (Ibid, V, 6). Essa solução deveria inspirar todas as soluções análogas da
Escolástica, que conserva o mesmo conceito de D. e de providência (cf., p. ex., S. TOMÁS, S. Th., I, q.
116, a. 2). Em sua Teodicéia, Leibniz repropunha a mesma solução (Théod., I, § 62).
Na filosofia do Romantismo, enquanto Scho-penhauer considera o D. como ação determinante, no
homem e na história, da Vontade de vida na sua natureza dilacerante e dolorosa (Die Welt, II, cap. 38),
Hegel limita o D. à necessidade mecânica. "À potência", diz ele, "como universalidade objetiva e
violência contra o objeto, dá-se o nome de D.: conceito que se inclui no mecanicismo porquanto o D. é
chamado de cego, ou seja, sua universalidade objetiva não é conhecida pelo sujeito em sua propriedade
ou particularidade específica" (Wissenschaft der Logik, III, II, 1, B, b; trad. it., III, p. 199). Nesse sentido,
o D. é a própria necessidade racional do mundo, mas enquanto ignorante de si mesma e, portanto, "cega".
Mas durante esse mesmo período, do ponto de vista de necessidade "puramente racional", tanto
interpretada como dialética, quanto como determinismo causai, a palavra D. começou a parecer fantástica
ou mítica demais para designar essa necessidade. Foi então abandonada e substituída por termos que
exprimem a natureza objetiva e causai da necessidade, como p. ex. necessidade, dialética, determinismo,
causalidade; no domínio da ciência, é regida pelas "leis eternas e imutáveis da natureza".
Quando a palavra D. volta, em Nietzsche e no existencialismo alemão, tem novo significado: exprime a
aceitação e a volição da necessidade, o amorfati. Nietzsche foi o primeiro a expressar esse conceito tão
característico de certa tendência da filosofia contemporânea. Ele interpreta a necessidade do devir
cósmico como vontade de reafirmação: desde a eternidade o mundo aceita-se e quer-se a si mesmo, por
isso repete-se eternamente. Mas o homem deve fazer algo mais que aceitar esse pensamento: deve ele
próprio prometer-se ao anel dos anéis. "É preciso fazer o voto do retorno de si mesmo com o anel da
eterna bênção de si e
DETERMINAÇÃO
244
DETERMINAÇÃO
da eterna afirmação de si; é preciso atingir a vontade de querer retrospectivamente tudo o que aconteceu,
de querer para a frente tudo o que acontecerá" {WillezurMacht, ed. 1901, § 385). Esse é o amorfati, no
qual Nietzsche vê a "fórmula da grandeza do homem". Heidegger não fez senão exprimir o mesmo
conceito ao falar do D. como decisão autêntica do homem. D. é a decisão de retornar a si mesmo, de
transmitir-se a si mesmo e de assumir a herança das possibilidades passadas. "A repetição é a transmissão
explícita, ou seja, o retorno a possibilidades do ser-aí que já foram" {Sein und Zeit, § 74). Nesse sentido, o
D. é "a historicidade autêntica": consiste em escolher o que já foi escolhido, em projetar o que já foi
projetado, em reapresentar para o futuro possibilidades que já foram apresentadas. É, em outros termos, a
vontade da repetição, o reconhecimento e a aceitação da necessidade. Esse conceito volta em Jaspers, que,
no entanto, expressa-o com referência à identidade estabelecida entre o eu e sua situação no mundo. O D.
é a aceitação dessa identidade: "Amo-o como me amo porque só nele estou cônscio de meu existir". Aqui
também o D. nada mais é que a aceitação e o reconhecimento da própria natureza da necessidade, que,
para Jaspers, é a identidade do homem com sua situação {Phil, II, p. 218 ss.). Essa última noção de D.
exprime bem certas tendências da filosofia contemporânea. Na origem de sua longa tradição, essa noção
implicava: ls
uma ordem total que age sobre o indivíduo, determinando-o; 2° o indivíduo não se apercebe
necessariamente da ordem total nem de sua força necessitante: o D. é cego. O conceito contemporâneo
eliminou ambas as características. Para ele: ls
a determinação necessitante não é a de uma ordem (nem
mesmo para Nietzsche), mas a de uma situação, a repetição; e 2- o D. não é cego porque é o
reconhecimento e a aceitação deliberada da situação necessitante.
DETERMINAÇÃO (gr. 7ipÓ09eoT.Ç; lat. De-terminatio; in. Determination; fr. Determination; ai.
Bestimmung ou Bestimmtheit; it. Determinazione). Limitação da extensão de uma noção com o
enriquecimento da sua in-tensão, ou o resutado dessa limitação. Aristóteles já usava esse termo para
indicar o novo acréscimo de notas ou características ao objeto considerado. "Falando de D., refiro-me, p.
ex., à passagem da unidade, que é substância desprovida de posição, ao ponto que é substância
dotada de posição: essa passagem deriva de uma D." {An. post., I, 27, 87 a 34 ss.). Essa palavra foi
entendida do mesmo modo na lógica medieval. Pedro Hispano diz que "a D. restringe o conceito daquilo
a que se une, assim como a palavra 'morto' restringe o conceito de homem quando se diz 'homem morto'"
(Summ. log., 7.46). Wolff demorou-se nessa noção, entendendo por determinado "aquilo sobre o que se
deve afirmar alguma coisa" (Ont., § 112) e por indeterminado "aquilo sobre o que ainda não se pode
afirmar alguma coisa, embora não se possa tampouco afirmar que alguma coisa se lhe oponha" {Ibid., §
105). Além disso, ligava essa noção à noção de razão suficiente, que o próprio Leibniz chamara, nesse
sentido, de razão determinante {Ibid., § 117).
Spinoza expressou uma implicação importante dessa noção quando disse " Omnis deter-minatio est
negatio" {Epist., 59), entendendo que qualquer acréscimo de uma nova nota a um conceito faz que esse
conceito seja negado em alguns dos objetos que antes podiam ser seus predicados. Nessa vínculação da
D. com a negação, Hegel insistiu em sua doutrina da dialética (v.). Para ele, porém, a D. ocorre por
desenvolvimento interno e autônomo do conceito, e não por acréscimos. Diz Hegel: "Determina-se o
universal e, assim, ele é o particular. A D. é sua diferença. Assim, ele é a totalidade e o princípio de sua
diversidade, que é determinada somente por ele mesmo" {Wissenschaft der Logik, III, 1, 1, B). Na
linguagem filosófica contemporânea essa palavra é usada predominantemente no sentido tradicional,
como delimitação do significado. Peirce distingue assim D. de definição: "Um sujeito é determinado em
relação a cada caráter inerente a ele ou que é (universal e afirmativamente) predicado dele, e é
determinado também em relação aos negativos desses caracteres, no mesmo aspecto. Em todos os outros
aspectos, o sujeito é indeterminado. O definido deve estar realmente definido" Ussues of Pragmaticism,
1905, em Values in a Universe of Chance, p. 210). Por outro lado, o uso desse termo em Carnap refere-se
ao valor de verdade dos enunciados: "Um enunciado é logicamente determinado se o seu valor de
verdade, que é sua extensão, é determinado por regras semânticas" {Meaning and Necessity, § 2); isso
significa que um enunciado é logicamente determinado se é analítico ou tautológico, e nesse caso sua
verdade independe dos fatos; mas é logicamente indeter-
DETERMINANTE, JUÍZO
245
DETERMINISMO
minado se é sintético e se, portanto, sua verdade depende dos fatos.
DETERMINANTE, JUÍZO. V. REFLEXIVO, Juízo.
DETERMINISMO (in. Determinism; fr. Dé-terminisme, ai. Determinismus; it. Determinismo). Esse
termo relativamente recente (Kant é um dos primeiros a empregá-lo em Religion, I, Obs. ger., nota)
compreende dois significados: 1Q
ação condicionante ou necessitante de uma causa ou de um grupo de
causas; 2a
a doutrina que reconhece a universalidade do princípio causai e portanto admite também a
determinação necessária das ações humanas a partir de seus motivos. No primeiro sentido, fala-se, p. ex.,
de "D. das leis", "D. sociais", etc, para indicar conexões de natureza causai ou condicional. No segundo
sentido, fala-se da disputa entre D. e indeterminismo, entre quem admite e quem nega a necessitação
causai no mundo em geral e, em particular, no homem. O estudo dos problemas referentes ao 1Q
significado de D. deve ser visto nos verbetes CAUSA, CONDIÇÃO e NECESSIDADE. NO 2- sentido, a palavra
D. foi utilizada para designar o reconhecimento e o alcance universal da necessidade causai, que constitui
uma ordem racional, mas não finalista, e portanto não se presta a ser designada pelo velho nome de
destino (v.). O D. vincula-se, por isso, ao mècanicismo, que é a tendência dominante da ciência do séc.
XIX, assim como da filosofia correspondente a essa fase da ciência. D. é a crença na extensão universal
do mècanicismo, ou seja, na extensão do mècanicismo ao homem. Como Kant já viu (na nota citada), o
D. autêntico é na verdade um predeterminismo, a crença de que o motivo determinante da ação humana
está no momento precedente, de tal modo que não está em poder do homem no momento em que se
efetua. O D., enquanto mècanicismo, é na realidade predeterminação da ação em seus antecedentes.
A partir da segunda metade do séc. XVIII, a polêmica entre D. e indeterminismo deu-se entre os filósofos
da ciência, por um lado, e os filósofos da consciência, por outro, parecendo que a ciência não podia
deixar de reconhecer a validade do princípio de causa (v. CAUSALIDADE) e que, por outro lado, a
consciência era testemunho irrefutável da liberdade do homem (v. INDETERMINISMO). Uma das primeiras
dissertações de Kant, Novos esclarecimentos sobre os primeiros princípios do conhecimento metafísico
(1755), destinada a defender a dimensão universal do princípio de causalidade, pode ser considerada uma
das primeiras defesas do D. (cf. especialmente Prop. IX, Confutatio du-biorum). Mas talvez muito mais
eficaz tenha sido a defesa feita por Priestley no segundo volume de suas Inquirições sobre a matéria e
sobre o espírito (1777), intitulado Doutrina da necessidade filosófica. Nessa obra, Priestley afirmava
claramente que os motivos influenciam a vontade com a mesma certeza e necessidade com que a força da
gravidade age sobre uma pedra, e que, embora o homem freqüentemente se censure por não ter agido de
outro modo, o exame de sua conduta demonstra que isso era impossível e que ele só poderia ter agido
daquele modo (The Doctrine of Philo-sophicalNecessity, 2
a
ed., 1782, pp. 37, 90 ss.). Essas são teses
repetidas com freqüência na filosofia positivista do séc. XK. O D. científico foi formulado de modo
clássico por Claude Bernard, em sua Introdução ao estudo da medicina experimental (1865). "O princípio
absoluto das ciências experimentais", dizia ele, "é um D. necessário e consiste nas condições dos
fenômenos. Se um fenômeno natural qualquer é dado, um experimentador nunca poderá admitir que
houve uma variação na expressão do fenômeno sem que, ao mesmo tempo, tenham sobrevindo condições
novas em sua manifestação. Além disso, ele tem certeza apriori de que essas variações são determinadas
por relações rigorosas e matemáticas. A experiência mostra-nos apenas a forma dos fenômenos, mas a
relação de um fenômeno com uma causa determinada é necessária e independente da experiência, é
forçosamente matemática e absoluta. Nós chegamos assim a ver que o princípio do criterium das ciências
experimentais no fundo é idêntico ao das ciências matemáticas porque, de um lado e de outro, esse
princípio é expresso por uma relação de causalidade necessária e absoluta" (Introduction à 1'étude de Ia
médecine expérimentale, I, 2, 7). Explicitamente, Bernard estendia esse princípio também aos seres vivos
(Ibid., II, 1, 5), e as próprias palavras com que se exprimia mostram, de um lado, o caráter de axioma
racional (mais que de exigência empírica) que ele via no princípio do "D. absoluto", e, de outro lado, o
rigor com que esse princípio era aplicado ao campo da pesquisa experimental. Entretanto, foram
precisamente os progressos experimentais da ciência — em particular os da ciência experi-
DETERMINISMO
246
DETERMINISMO
mental mais adiantada e amadurecida, a física — que levaram a abandonar aquilo que Claude Bernard
chamava de "princípio do criterium experimental". Primeiro a teoria da relativa-de e depois a mecânica
quântica puseram em crise a noção de causalidade necessária e, por conseguinte, a de "D. absoluto". Em
1930, Heisenberg, descobridor do princípio de in-determinação (v.) e um dos fundadores da moderna
física quântica, escrevia: "O conceito de universo que deriva da experiência quotidiana foi abandonado
pela primeira vez na teoria da relatividade de Einstein. Por ela, vê-se que os conceitos usuais só podem
ser aplicados a acontecimentos nos quais a velocidade de propagação da luz pode ser considerada
praticamente infinita... As experiências com o mundo atômico obrigam-nos a uma renúncia ainda mais
profunda dos conceitos até agora habituais. Com efeito, nossa descrição usual da natureza e, em especial,
a idéia de causalidade rigorosa nos eventos da natureza repousam na admissão de que é possível observar
um fenômeno sem influenciá-lo de modo perceptível... Na física atômica, porém, a cada observação
geralmente está ligada uma perturbação finita e até certo ponto incontrolável, o que era de se esperar
desde o princípio na física das menores unidades existentes. Como, por outro lado, toda descrição
espácio-temporal de um evento físico está ligada à observação do evento, segue-se que a descrição
espácio-temporal dos eventos e a lei causai clássica representam dois aspectos causais que se excluem
mutuamente nos acontecimentos físicos" (Diephysikalischen Prinzipien der Quantentheorie, 1930, IV, §
3)-Quase ao mesmo tempo, Max Planck, descobridor do quantum de ação, escrevia que, para poder salvar
a hipótese do D. rigoroso, era necessário pensar num Espírito Ideal, capaz de abranger todos os processos
físicos que se desenvolvem simultaneamente e, portanto, de predizer com certeza e em todos os detalhes
qualquer processo físico. Naturalmente, do ponto de vista de um espírito desses, o princípio de
indeterminaçâo, do fato de o homem precisar intervir nos processos naturais para poder observá-los, não
valeria, visto ser ele, por hipótese, independente da natureza (Der Kausalbegriff in der Physik, 1932, pp.
24-25). Mas essa hipótese, como é óbvio, não tem nenhum fundamento científico ou filosófico. De
Broglie, outro protagonista da física contemporânea, afirmava que os argumentos de Von
Neumann (v. CAUSALIDADE) provaram que: "As leis de probabilidade enunciadas pela mecânica
ondulatória e quântica sobre os fenômenos elementares, leis bem provadas pela experiência, não têm a
forma que deveriam ter se fossem devidas à nossa ignorância dos valores exatos de certas variáveis
ocultas. O único caminho que ainda estava aberto ao restabelecimento do D. em escala atômica parece,
portanto, fechar-se diante de nós" (Physique et Microphysique, X; trad. it., p. 209).
Desse modo, o abandono da causalidade necessária e da doutrina do D. absoluto, que transformara a
causalidade necessária em princípio universal do conhecimento científico, parece sancionado pelas
maiores autoridades científicas do nosso tempo. Todavia, esse abandono não é, automaticamente, a
aceitação do indeterminismo, ou seja, do reconhecimento do acaso e do arbítrio absoluto nos fenômenos
naturais. Assim como o abandono da noção de causa coincide com o uso cada vez mais amplo e
consciente da noção de condição (v.), também o abandono da noção de D. absoluto, paralela à primeira,
coincide com a aceitação de uma forma de D. que se vai esclarecendo paralelamente ao esclarecimento do
conceito de condição. Ao declarar inutilizável o conceito de causa, a física contemporânea insistiu na
possibilidade de previsão provável; e ao declarar, por isso mesmo, a queda do D. absoluto, tende a adotar
um D. restrito ou, como diz o próprio De Broglie, "fraco" ou "imperfeito", fundado no reconhecimento de
que "nem todas as possibilidades são igualmente prováveis" e de que "todo estado de um sistema
microscópico comporta certas tendências que se expressam pelas diferentes probabilidades das diversas
possibilidades nele contidas" Qbid., p. 212). Em sentido análogo, no domínio das ciências sociais,
Gurvitch falou do D. como de uma simples "contingência coerente" ou "coerência contingente", que
nunca é unívoca, mas sempre se caracteriza por constituir uma situação intermediária entre os opostos do
contínuo e do descontínuo, do quantitativo e do qualitativo, do heterogêneo e do homogêneo, etc. (Déterminismes sociaux, 1955, pp. 28 ss.). Portanto, a palavra D. não foi abandonada, mas sofreu uma
transformação radical na linguagem científica e filosófica contemporânea. Não designa mais o ideal de
causalidade necessária e de previsão infalível, mas o método de conexão condicional e de previsão
provável.
DETERMINISMO ECONÔMICO 247
DEUS
DETERMINISMO ECONÔMICO. V. MATERIALISMO DIALÉTICO.
DEUS (gr. 0eóç; lat. Deus, in. God, fr. Dieu; al. Gott; it. Dió). São duas as qualificações fundamentais
que os filósofos (e não só elas) atribuíram e atribuem a D.: a de Causa e a de Bem. Na primeira, D. é o
princípio que torna possível o mundo ou o ser em geral. Na segunda, é a fonte ou a garantia de tudo o que
há de excelente no mundo, sobretudo no mundo humano. Trata-se, como é óbvio, de qualificações
bastante genéricas que só têm sentido preciso no âmbito das filosofias que as empregam. Podemos, por
isso, distinguir as várias concepções de D. partindo dos significados específicos que essas qualificações
adquirem; portanto: ls
quanto à relação de D. com o mundo, pela qual D. é Causa; e 2Q
quanto à relação
de D. com a ordem moral, pela qual D. é Bem. Como, ademais, é possível conceber que da divindade
podem participar vários entes ou que ela é própria de um só ente, e como, por outro lado, é possível
admitir várias vias de acesso do homem a D., também é possível admitir outros dois modos de distinguir
as concepções de D.; 3a
quanto à relação de D. consigo mesmo, ou seja, com sua divindade; 4e
quanto aos
acessos possíveis do homem a D. Esses quatro modos de distinguir as concepções de D., que podem ser
encontrados ao longo da história da filosofia ocidental, têm a vantagem de seguir com suficiente
fidelidade as interações históricas da noção em exame, ou seja, os pontos que serviram de base para as
principais disputas filosóficas.
1. DEUS E O MUNDO.
Concepção para a qual D. como causa é o aspecto fundamental de D.: as formas do atets-mo (v.) são
negações da causalidade de D. Mas na história da filosofia essa causalidade foi entendida de maneiras
diferentes e segundo essas diferenças é possível distinguir as três concepções seguintes: A) D. como
criador da ordem do mundo, como causa ordenadora; B) D. como natureza do mundo, como causa necessitante, C) D. como criador do mundo, como causa criadora.
A) Deus como criador da ordem do mundo. Essa concepção é provavelmente a mais antiga da história da
filosofia; o primeiro a enunciá-la claramente foi Anaxágoras, que considerou o Intelecto como divindade
que ordena o mundo (AÉCIO, I, 7, 14). O caráter criador do Intelecto decorre do fato de Anaxágoras negar,
como
afirma Alexandre {De fato, 2), a existência de um destino necessitante; isso significa que considerava o
Intelecto como causa livre, portanto criadora (v. CRIAÇÃO). Mas não se tratava certamente de uma criação
a partir do nada, assim como não se tratou de criação a partir do nada na doutrina de Platão e de
Aristóteles. Para Platão, D. é o Artífice ou Demiurgo do mundo, cujo poder criador é limitado (1) pelo
modelo que ele imita e que é o mundo das substâncias ou realidades eternas {Tim., 29 a) e (2) pela matriz
material que, com sua necessidade, resiste à obra inteligente do Demiurgo {Ibid., 50 d ss.). As
características da divindade platônica são, além do poder superior (mas, pelos motivos acima, não
ilimitado), a inteligência e a bondade. Graças a esta última, criação é um ato livre, que tem em vista a
multiplicação do bem (Jbid., 29 e). A doutrina de Aristóteles não difere substancialmente da platônica.
Sobretudo nos últimos diálogos (p. ex., Pol., 269 e), Platão insistira no conceito de D. como primeiro
motor ou "guia de todas as coisas que se movem" e é precisamente esse conceito que se torna ponto de
partida da teologia aristotélica. Para Aristóteles, D. é o primeiro motor ao qual necessariamente se filia a
cadeia dos movimentos {Fís., VIII, 7; Met., XII, 6); ou a primeira causa de que decorrem séries causais,
inclusive a das causas finais {Met., II, 2). Mas é justamente no sentido de causa final que D. é criador da
ordem do universo, que Aristóteles compara a uma família ou a um exército. "Todas as coisas estão
ordenadas uma em relação à outra, mas nem todas do mesmo modo: os peixes, os pássaros, as plantas têm
ordens diferentes. Todavia, uma coisa não está para outra como se nada tivesse a ver com outras, mas
tudo está coordenado com um único ser. Isso é, p. ex., o que ocorre numa casa onde os homens livres não
podem fazer o que lhes apraz, mas onde todas as coisas, ou pelo menos a maior parte delas, acontece
segundo uma ordem, ao passo que os escravos e os animais contribuem com pouco para o bem-estar
comum e fazem muito por acaso" {Ibid., XII, 10, 1075 a 12). Do mesmo modo, o bem de um exército
consiste "ao mesmo tempo em sua ordem e em seu comandante, mas especialmente neste último, pois ele
não é o resultado da ordem, mas é a ordem que depende dele" {Ibid, 1075 a 13). D., portanto, é como o
comandante de um exército ou o chefe de uma casa: é quem produz e mantém a ordem que
DEUS
248
DEUS
constitui a bondade do conjunto. Essa é também a doutrina de Platão; exposta de forma menos mítica, ou
seja, fora do mito teogônico. Aristóteles não atribui novas características à divindade, mas esclarece e
determina as que Platão já lhe atribuíra. Assim, D. é não só o primeiro motor: é motor imóvel e, como tal,
eterno e afastado das coisas sensíveis; não tem grandeza (logo, é indivisível, e sem partes) e é dotado da
potência necessária para mover o mundo por tempo infinito {Ibid., VIII, 7, 1073 a, 3). Não é só intelecto,
como já dissera Platão: é inteligência sempre em ato, cujo objeto é o objeto mais alto e excelente, ou seja,
ela mesma; é intelecto do intelecto ou pensamento do pensamento {Ibid., XII, 9, 1074 b 30 ss.). O
intelecto na verdade também pode cochilar e ter por objeto coisas inferiores a si mesmo: o intelecto
divino deve ficar acima dessas eventualidades. Além disso, a distinção entre a potência e o ato e a
reconhecida superioridade do ato em relação à potência permitem que Aristóteles defina D. como ato
puro, atualidade absolutamente desprovida de matéria ou de potencialidade, dando assim um significado
mais rigoroso e filosófico à "incorporeidade" da inteligência divina, já reconhecida a partir de Anaxágoras {Ibid., XII, 6,1071 b, 12 ss.). Aristóteles esclareceu também o conceito da bem-aven-turança
divina: "D.", diz ele, "experimenta sempre Orna felicidade simples e única porque a atividade (que é
acompanhado pelo prazer) não consiste só no movimento, mas também na imobilidade, e a felicidade está
mais no repouso que no movimento" {Et. nic, VII, 1154 b 26). Enfim, a perfeição de D. torna-o autosuficiente: ao contrário do homem, não tem necessidade de amigos: "A causa disso é que para nós o bem
vem de algo que não somos nós, mas ele é o bem para si mesmo" {Et. eud., VII, 12, 1245 b 17). Embora
muitas dessas determinações tenham sido adotadas e utilizadas por doutrinas diferentes, é fácil perceber
que estão estreitamente vinculadas ao conceito platônico-aristotélico de criador da ordem do mundo.
Tanto para Aristóteles quanto para Platão, a estrutura substancial do universo está além dos limites da
criação divina. Certamente, a imagem da divindade que assume como modelo de sua ação criadora o
mundo das substâncias eternas não tem mais sentido para Aristóteles (e para o próprio Platão era um
"mito", um discurso simplesmente "verossímil"). Mas para Platão, assim como para Aristóteles, a
estrutura
substancial do universo é eterna, ou seja, não suscetível de princípio ou de fim. De fato, só a coisa
individual composta de matéria e forma tem nascimento e morte, segundo Aristóteles, ao passo que a
substância que é forma ou razão de ser, ou a que é matéria, não nasce nem perece {Met., VIII, 1,1042 a
30). D. mesmo participa dessa eternidade da substância, pois ele é substância {Ibid., XII, 7, 1073 a 3) e
substância no mesmo sentido em que o são as substâncias finitas {Et. nic, I, 6, 1096 a 24). A superioridade
de D. consiste apenas na perfeição de sua vida, não em sua realidade ou em seu ser, pois, como diz
Aristóteles, "nenhuma substância é mais ou menos substância do que outra" {Cal, V, 2 b 25).
A noção de D. como criador da ordem do mundo, que chegou à plenitude em Aristóteles, não foi
reproposta nos mesmos termos ao longo da história da filosofia. O panteísmo estóico e neoplatônico,
antes, e o criacionismo cristão, depois, impõem outras concepções de D. que se alternam com mais
freqüência na história do pensamento. A ela, porém, podem filiar-se as concepções de D. que, no mundo
moderno, tendem a reconhecer limitações nos poderes da divindade e a excluir dela os caracteres infinitos
e absolutos. Essa é, p. ex., a concepção de muitos iluministas e que foi bem expressa por Voltaire: "Toda
obra que nos mostra os meios e um fim revela um artífice: logo, este universo composto de meios, cada
um com seu fim, revela um artífice poderosíssimo e inteligentíssimo" {Dictionnairephilosophique, art. D.;
Traité de métaphysique, 2). Mas a qualificação de artífice é também a única que Voltaire considera
atribuível a D. De fato, ele se recusa a admitir qualquer intervenção de D. no homem e no mundo moral.
D. é somente o autor da ordem do mundo; o bem e o mal não são mandamentos divinos, mas atributos do
que é útil ou prejudicial à sociedade {Traité, 9). No séc. XEX uma concepção análoga foi defendida por
Stuart Mill: para este, um D. finito, limitado em seu poder pela matéria e pela forma que utilizou, é tudo o
que a experiência do mundo permite concluir acerca de um criador do mundo {Three Essays on Religion,
1874). Peirce e James repropuseram, mais recentemente, um conceito análogo de D. Peirce recusa-se a
considerá-lo em sentido próprio onisciente e onipotente {Coll. Pap., 6. 508-09). James, por sua vez,
afirma que "D. não é o absoluto, mas é ele mesmo parte de um sistema, e que sua fun-
DEUS
249
DEUS
ção não é inteiramente diferente da função das outras partes menores, portanto da nossa. Tendo um
ambiente, existindo no tempo e operando na história como nós, ele deixa de ser diferente de tudo o que é
humano, escapa à estática intemporalidade do perfeito absoluto" (A Pluralistic Universe, 1909, p. 318).
Embora desse modo D. seja investido de mais caracteres humanos do que nas doutrinas de Platão ou
Aristóteles, o conceito clássico do D. orde-nador, cujo poder é limitado por certas estruturas substanciais,
ainda é o traço característico dessas concepções.
B) Deus como natureza do mundo. Sob este título podem ser agrupadas todas as concepções de D. que de
algum modo admitam uma relação intrínseca, substancial ou essencial dele com o mundo, de tal maneira
que o mundo seja entendido como continuação ou prolongamento da vida de D. Deve-se notar que a
própria concepção de D. como criador da ordem do mundo, mesmo demarcando uma separação entre o
mundo e D., estabelece a semelhança entre eles. Platão chama o mundo de "D. gerado" (Tira., 34 b), e
Aristóteles relata com aprovação a crença comum de que os corpos celestes são deuses e de que "o divino
abrange toda a natureza" (Met., XII, 8, 1074 b 2). Mas essa conexão torna-se mais estreita e essencial na
concepção de que ora nos ocupamos e que pode ser designada genericamente pelo nome de panteísmo.
Nesta, um laço necessário ata o mundo a D. e D. ao mundo: D. não seria D. sem o mundo, assim como o
mundo não seria mundo sem D. Isso não implica, porém, a perfeita identidade e coincidência entre D. e o
mundo; ou melhor, essa identidade ou coincidência só se verifica no sentido que vai do mundo para D. e
não no que vai de D. para o mundo. Em outros termos, o mundo não é inteiramente D.: está incluído na
vida divina como seu elemento necessário, mas não a esgota. A exigência apresentada pelo chamado
panenteísmo (v.) na realidade é típica de todas as formas do panteísmo histórico, como se poderá
facilmente verificar pela digressão que segue. A característica do panteísmo pode ser expressa dizendo
que ele não estabelece nenhuma diferença entre causalidade divina e causalidade natural. No interior do
panteísmo, podem-se distinguir três modos principais de vincular mundo e D., quais sejam: ls
o mundo é a
emanação de D.; 2e
o mundo é a manifestação ou
revelação de D.; 3S
o mundo é a realização de D. O primeiro e o segundo desses modos via de regra se
unem, o mesmo ocorrendo com o segundo e o terceiro; não se acham, porém, explicitamente vinculados o
primeiro e o terceiro.
O panteísmo assumiu pela primeira vez forma acabada no estoicismo. Os estóicos "chamavam Deus de
mundo, sendo D. a qualidade própria de toda substância, imortal e não gerado, criador da ordem
universal, o qual, segundo os ciclos dos tempos, consuma em si toda a realidade e novamente a gera de si"
(DIÓG. L., VII, 137). E diziam que "D. impregna todo o universo e toma vários nomes conforme as
matérias diferentes em que penetra" (AÉcio, Plac, 1,7, 33). Os estóicos também afirmavam que D. é
corpo (Stoicorum fragm., ed. Arnim, II, pp. 306-11), porque só o corpo pode ser causa, pode agir (DióG.
L., VII, 56): doutrina que retoma em Tertuliano (De carne Christi, 11; De anima, 18) e em Hobbes
{Leviath., I, 12). O reconhecimento da causalidade de D. no mundo torna-o partícipe da condição geral da
causalidade mundana, ou seja, da corporei-dade. Os precedentes dessa doutrina foram vistos tanto na
doutrina de Heráclito, do Logos ou Fogo divino que tudo penetra (Fr. 30, 50, Diels), quanto na
identificação feita por Xenó-fanes de Colofão entre D. e o Uno e o Todo (SIMPLÍCIO, Fís., 22). Mas a
expressão mais madura do panteísmo deve ser vista no neopla-tonismo, particularmente em Plotino. Este
elabora, ainda que em forma de imagens, a noção de emanação (v.) que se tornaria indispensável ao
panteísmo, permitindo entender o modo como de D. deriva um mundo que não se separa dele. A relação
entre D. e o mundo é assim esclarecida: ls
o mundo deriva, necessariamente, de D. assim como o perfume
emana necessariamente do corpo perfumado, e a luz, de sua fonte; 2e
por esse laço de necessidade, o
mundo é parte ou aspecto de D., ainda que parte diminuída ou inferior, pois o perfume ou a luz que se
afasta de sua fonte é inferior à própria fonte; 3fi D. é superior ao mundo, embora idêntico a ele, na medida
em que possui ordem, perfeição e beleza. Esses são os caracteres que Plotino atribui a D. D. é o Uno em
face dos muitos que dele emanam (Enn., III, 8, 9). "Ele é a potência de tudo; está acima da vida e é causa
da vida; a atividade da vida, que é tudo, não é a realidade primeira, mas deriva do Uno como de uma
fonte" (Ibid., III, 8, 10).
DEUS
250
DEUS
Do Uno emana, em primeiro lugar, a Inteligência na qual residem as estruturas substanciais do ser e que,
por isso, Plotino identifica com o próprio Ser, e, em segundo lugar, a Alma, que penetra e governa o
mundo (Ibid., V, 1, 6). O mundo, emanado da Inteligência e governado pela Alma, é cópia perfeita da
divindade emanadora, sendo eterno e incorruptível como o modelo (Ibid, V, 81, 12); ele "é um D. bemaventurado que se basta a si mesmo" (Ibid., III, 5,5). A noção de emanação, para a qual "o ser gerado
existe necessariamente junto com o seu gerador e só é separado dele por sua própria alteridade" (Ibid., V,
1, 6), vê o mundo como parte integrante de D., e D. como origem única do processo emanativo, algo
superior ao mundo e inexprimível nos termos do mundo. D. propriamente não é nem ser ou substância,
nem vida, ou inteligência, por ser superior a essas coisas: elas, porém como emanações suas, fazem parte
dele. Proclo cunha as palavras adequadas: "D. é supersubstancial, super-vital e superinteligente" (Inst.
theol, 115); essas palavras se tornam nos primórdios da Escolás-tica cristã com Scotus Erigena: para ele,
D. não é substância, mas Supersubstância; não é verdade, mas Superverdade, etc. (Dedivis. nat, I, 14).
Mas, ao mesmo tempo, o mundo é D., ou melhor, como diz Scotus Erigena, manifestação de D., teofania.
O processo da teofania vai de D. ao Verbo, do Verbo ao mundo e do mundo retorna a D. Desse modo, "D.
está acima de todas as coisas e em todas elas; é a substância de todas as coisas porque só ele é; e
conquanto seja tudo em todas as coisas, não deixa de ser tudo fora de todas as coisas" (Ibid., IV, 5).
A característica da divindade nessa concepção é sua "supersubstancialidade", seu ser acima do ser (de
qualquer espécie de realidade). Por essa característica, já em Plotino, D. só parece acessível a um
arrebatamento excepcional ou sobrenatural, ou seja, ao êxtase místico (Enn., VI, 7, 35). Por esse mesmo
caráter, D. não pode ser objeto de uma ciência positiva, que determine sua natureza, mas só de uma
"teologia negativa" que ajude a compreendê-lo determinando o que ele nâoé. O conceito de teologia
negativa, que está em Proclo (Theol. piai, II, 10-11) difundiu-se na filosofia cristã por obra do pseudoDionísio, o Areopagita, com a sua Theologia mystica. O conceito de D. como Supersubstância emanante,
da ascensão mística que culmina no êxtase e da teologia negativa são os três aspectos fundamentais do
conceito panteísta de D. que compreende em si o mundo e é idêntico à sua natureza última. Qualquer
dessas determinações, ao aparecer na história da filosofia, tende a reproduzir as outras. Teologia negativa
e misticismo foram, ao que sabemos, as características do pan-teísmo de Amalric de Bène e de Davi de
Dinant no séc. XII: o primeiro via em D. a essência ou forma das coisas; o segundo, a matéria das
próprias coisas (S. TOMÁS, In Sent., II, d. 17, q. 1, a. 1). Essas mesmas características reparecem na
mística do Mestre Eckhart (séc. XIV), para quem D. é "uma Essência supra-essencial e um Nada supraente" (Deutsche Mystiker, edição Pfeiffer, II, pp. 318-19), de tal modo que dele nada se pode dizer senão
que é uma "quietude erma", ao mesmo tempo em que é preciso reconhecê-lo como a verdadeira essência
das criaturas. "Se D. por um momento se retirasse delas, diz Eckhart, "elas se reduziriam ao nada" (Ibid.,
p. 136). No séc. XV, Nicolau de Cusa retoma a mesma concepção: D. é a essência ou a substância do
mundo e o mundo é um D. contraído, no sentido de que é um D. que se determina e se individualiza
numa multiplicidade de coisas singulares (Dedocta ignor., II, 4). D. é tudo em todas as coisas e todas as
coisas estão em D., já que ele é "a essência de todas as essências" e portanto a complicação e a explicação
da multiplicidade cósmica: o ponto no qual a multiplicidade se unifica e do qual começa a diversificar-se
(Ibid., II, 5; I, 2). Giordano Bruno, por sua vez, utiliza a tese neoplatônica e mística da transcendência e
da incognoscibilidade de D. para limitar-se a considerar D. como natureza. Como tal, D. é a causa e o
princípio do mundo: causa no sentido de determinar as coisas que constituem o mundo, permanecendo
distinto delas; princípio no sentido de constituir o próprio ser das coisas naturais (De Ia causa, II, em Op.
ital, I, 177). Em nenhum dos casos se distingue da natureza: "A natureza é D. mesmo ou é a virtude divina
que se manifesta nas coisas" (Summa ter. met, em Op. lat. IV, 101). Quase simultaneamente, Jacob
Boehme considerava D. como "um nada eterno" (Mysterium magnum, I, 2) e como raiz do mundo natural,
que não foi criado do nada, mas de D., e nada mais é que a revelação ou a explicação da essência divina
(De tribus principiis, 7, 23). Não têm um significado muito diferente as fórmulas com que, no séc. XIX,
Schelling expressou o conceito de D. do ponto de vista de sua filosofia da natureza. D. é uni-
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dade, identidade ou indiferença do espírito e da natureza, da liberdade e da necessidade, da consciência e
da inconsciência (Werke, I, III, pp. 578 ss.). Essa identidade ou indiferença nada mais é que a identidade
panteísta entre o mundo e D. "D e o universo", diz Schelling, "são uma coisa só ou são aspectos distintos
de uma única e mesma coisa. D. é o universo considerado pelo lado da identidade e é o todo porque é
todo o real, fora do qual nada existe" (Ibid, I, IV, 128).
Mas a doutrina de Schelling implica a noção de que o mundo é não só a revelação de D., mas também sua
realização. Essa noção tem origem em Spinoza, embora não se encontre nele: deriva do racionalismo
geometrizante de Spinoza, pelo qual D. não mais se identifica com o mundo, mas com a ordem do mundo,
mais precisamente com a ordem racional, geo-metricamente explicável, do mundo. Diz Spinoza: "Nada
há de contingente nas coisas, mas tudo é determinado a existir e a atuar de certo modo pela necessidade
da natureza divina" (Et., I, 29). Embora se possa distinguir entre natureza naturante que é D., e natureza
"na-turada", que são as coisas derivadas de D. (Ibid., scol.), na realidade a natureza nada mais é que a
ordem necessária das coisas, e essa ordem é D. "De, qualquer modo que concebermos a natureza", sob o
atributo da extensão, do pensamento ou de qualquer outro, sempre encontraremos uma só e mesma
ordem, uma só e mesma conexão de causas, isto é, uma só e mesma realidade" (Ibid., II, 7, scol.). Assim,
para Spinoza D. não é a Unidade inefável da qual as coisas brotam por emanação, nem a Causa criadora
da ordem, mas essa mesma ordem em sua necessidade. Isso implica que a derivação necessária e
recíproca das coisas, segundo o ideal da racionalidade geométrica, é a realização de D., pensamento este
que foi explicitado no Romantismo justamente como referência à doutrina de Spinoza. A concepção de
que D. se revela e ao mesmo tempo se realiza no mundo, mais precisamente na necessidade racional do
mundo, fundamental no Romantismo. Sua melhor expressão está em Hegel. Este começa insistindo na
necessidade da revelação de D.: se D. não se revelasse, seria um D. invejoso. "Quando, na religião, se
toma a sério a palavra D., é também por ele, que é conteúdo e princípio da religião, que pode e deve
começar a determinação do pensamento; e se a D. for negada a revelação, não
restará outro conteúdo a atribuir-lhe senão a inveja. Mas se a palavra espírito deve ter um sentido, ela
significa a revelação de si" (Ene, § 564). Ora, essa revelação não é só revelação, é a realização de D.
como autoconsciência de si que ele alcança no homem. "D. é D. só enquanto se sabe: seu saber-se é sua
autoconsciência no homem e o saber que o homem tem de D., que progride até o saber-se do homem em
D." (Ibid, § 564). Desse ponto de vista, a distinção entre "Essência eterna" e sua manifestação é um
estágio provisório, superado pelo retorno da manifestação à essência eterna e pela realização da unidade
de ambas. Hegel distingue três momentos do conceito de D.: "em cada um deles o conteúdo absoluto é
representado d) como conteúdo eterno que permanece na posse de si em sua manifestação; b) como
distinção entre essência eterna e sua manifestação que, mediante essa distinção, torna-se o mundo da
aparência onde está o conteúdo; c) como infinito retorno e conciliação do mundo alheado da essência,
assim como esta retorna do mundo da aparência para a unidade de sua plenitude" (Ibid., § 566). A
realidade plena de D. consiste em reconhecer-se realizado no mundo e através do mundo.
Essa concepção de que ao mundo está confiada a realização de D. ou pelo menos sua realização última e
total, constitui a inspiração (e a característica) dominante do panteísmo contemporâneo. Bergson exprime
esse pensamento quando identifica D. com o esforço criador da vida (Deux sources, p. 235), ou seja, com
o movimento pelo qual a vida vai além de suas formas estáticas e definidas, encaminando-se para a
criação de novas formas mais perfeitas. Do amor místico pela humanidade que é a ponta avançada do
ímpeto vital, Bergson espera a renovação da humanidade e a retomada "da função essencial do universo,
que é uma máquina de fazer deuses" (Ibid., p. 234). A expressão "máquina de fazer deuses" é muito
significativa; expressa bem a crença de que o mundo deve ser a realização de D. Em outros filósofos
retornam velhas fórmulas, como a do mundo enquanto "corpo de D.", mas com novo significado: só se
incorporando, D. realiza-se como tal. Alexander diz: "D. é o mundo inteiro porquanto possui a qualidade
da deidade. O mundo inteiro é o corpo desse ser; a deidade é seu espírito. Mas o possuidor da deidade
não é real, é ideal: como existente real, D. é o mundo infinito no seu nisus para a deidade, ou, para
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adotar uma frase de Leibniz, enquanto está grávido de deidade" (Space, Time and Deity, II, p. 535).
Portanto, cabe ao mundo parir D., ou sem metáforas, é na via de evolução natural que vai aparecer, em
certo momento, a qualidade de deidade que encontrará substância em certo número de seres (Ibid, p. 365).
Essa mesma relação entre D. e o mundo foi expressa por Whitehead com as seguintes antíteses: "É
verdade que D. é permanente e que o mundo é fluente, assim como é verdade que o mundo é permanente
e D. é fluente. É verdade que D. é uno e que o mundo é múltiplo, assim como é verdade que o mundo é
uno e D. é múltiplo. É verdade que o mundo, em face de D., é eminentemente real, e que D., em face do
mundo, é eminentemente real. É verdade que o mundo é imanente em D. e que D. é imanente no mundo.
É verdade que D. transcende o mundo, e que o mundo transcende D. É verdade que D. cria o mundo, e
que o mundo cria D." (Process and Reality, pp. 527-28). Essas antíteses significam que, se D. espera do
mundo a sua realização, o mundo espera de D. a sua unidade. "O mundo", diz Whitehead, "é a
multiplicidade das atualidades finitas que buscam unidade perfeita. Nem D. nem o mundo atingem
completitude estática. Ambos estão na forja do último fundamento metafísico, o avanço criativo para o
novo. Cada um deles, tanto D. quanto o mundo, é instrumento da novidade do outro" {Ibid., p. 529).
Mesmo para o velho panteísmo, o mundo como emanação ou revelação de D. condicionava, de certo
modo, a realidade de D. "D. não existia antes de criar todas as coisas", dizia Scotus Erigena (Dedivis.
nat., I, 72), defendendo a coeternidade do mundo e de D. E, de fato, o que seria um corpo perfumado que
não emanasse perfume, ou uma luz que não expandisse raios em torno de si? A própria noção de
emanação torna o mundo e, em geral, tudo o que de D. dimana, parte integrante de D. e condição de sua
realidade. Todavia, é só no mundo moderno — a partir do Romantismo (que teve em grande apreço a
lição de Spinoza), — que se passa a afirmar explicitamente que D. é, de algum modo, criação do mundo.
Às vezes, como em Hegel, D. já é real no mundo, em todas as determinações do mundo, porque é o
próprio espírito, ou seja, a racionalidade autoconsciente, que se realiza nele como tal. Outras vezes, D. é o
termo do processo evolutivo, a fase na qual esse processo atinge unidade ou perfeição. Em todos os
casos, o panteísmo contemporâneo inverteu o ponto de vista tradicional: não é D. que dá corpo,
substância ou realidade ao mundo, mas o mundo que dá corpo, substância ou realidade a D.
O Deus como criador. Segundo a concepção de causa criadora, D. não é somente o primeiro motor e a
causa primeira do devir e da ordem do mundo, mas também o autor da estrutura substancial do próprio
mundo. Essa estrutura, constituída pelas substâncias, formas ou razões últimas das coisas, não é coeterna
com ele (como na concepção clássica), mas produzida por ele. Produzida não por um processo necessário,
mas com causalidade livre, graças à qual o mundo se separa de D. no próprio ato de nascimento de seu
ser. Por outro lado, nessa concepção, D. não é mais o super-ser, mas o ser do qual provêm outros seres.
Segundo essa concepção, as características da divindade derivam da noção de criação, em seu significado
próprio e específico (v. CRIAÇÃO). Deve-se notar que esse significado só foi elaborado com o intuito de
distingui-lo por oposição à ordenação e à emanação. Em hebraico, grego e latim, assim como nas línguas
modernas, o verbo "criar" tem sentido genérico, referindo-se, indiferentemente, à obra de um artesão ou à
de um criador; é só através da elaboração filosófica que essa noção chega a configurar-se em suas
características.
Essa elaboração começa com Fílon de Alexandria (séc. I), que por meio da interpretação alegórica do
Velho Testamento definiu o conceito de D. ora em oposição às doutrinas da filosofia grega, ora em
consonância com elas. Foi o primeiro a afirmar que D. tirou o mundo "do não-ser para o ser" (De vita
Mosis, II, 8) e que ele não só foi Demiurgo como também o verdadeiro fundador do mundo (De somniis,
I, 13). Mas nem mesmo Fílon entendeu esse conceito, em todo o seu rigor, pois às vezes assimila criação
e imposição de ordem à matéria desordenada e amorfa (Quis rer. div. heres., 32). A noção de D. criador
vai-se determinando com mais clareza na polêmica cristã contra os gnósticos: Irineu, p. ex., afirma que D.
não tem necessidade de intermediários para a criação (Adv. haer, II, 1,1). Lactâncio, por sua vez, negava
que, para a criação, D. tivesse necessidade de matéria preexistente (Inst. div., II, 9). Contra o emanatismo,
Orígenes afirmava que D. não pode ser considerado nem como o todo nem como uma parte do todo,
porque seu ser
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é homogêneo, absoluto e indivisível {Contra Cels., I, 23), sendo também superior à própria substância já
que não participa dela: participa-se de D., mas D. não participa de nada (De Princ, VI, 64). Além disso, a
unicidade de D., na qual os filósofos cristãos insistem tanto para opor-se ao politeísmo pagão quanto para
eliminar da noção de Trindade qualquer resíduo de multiplicidade de divindades, leva-os a acentuar a
separação entre D. e o mundo, pois se D., de algum modo, participasse do mundo, participaria também da
multiplicidade e da diversidade que o constituem (GREGÓRIO DE NISSA, Or. catech., 1). Pelo mesmo
motivo, é acentuada a eternidade, ou seja, a imutabilidade de D. em face da mutabilidade e da
temporalidade do mundo. Para S. Agostinho, D., enquanto Ser, é o fundamento de tudo o que é, o criador
de tudo.
Com efeito, a mutabilidade do mundo que está ao nosso redor demonstra que ele não é o ser e que,
portanto, precisou ser criado por um Ser eterno (Conf., XI, 4). Antes da criação não havia tempo e não
havia nem mesmo um "antes": não tem sentido, pois, perguntar o que D. fazia "então". A eternidade está
acima de todo tempo e em D. o passado e o futuro nada são. O tempo foi criado juntamente com o mundo
(Ibid, XI, 13). No séc. XI Anselmo resumia em Monologhn os resultados de um trabalho já secular,
esclarecendo os caracteres da criação a partir do nada como "um salto do nada para alguma coisa" (Mon.,
8) e insistindo na impossibilidade de admitir que a matéria ou outra realidade qualquer preexistisse à obra
de criação divina. As coisas são tão-somente por participação no ser; isso significa que sua existência
provém unicamente de D. (Ibid., 7). Anselmo admitia que na mente divina estivesse o modelo ou a idéia
das coisas produzidas, mas este também, apesar de preceder à criação do mundo, foi criado por D. (Ibid. ,
11). Contrariando, porém, um dos caracteres de D. criador (a liberdade de criar), a doutrina de Abelardo
dizia que a criação é um ato necessário de D., ou seja, um ato que não pode não ocorrer, visto que D. não
pode não querer o bem e que a criação é um bem (Theol. christ., V, P. L., 178, col. 1325).
A característica fundamental da doutrina da causa criadora é que D. é o ser do qual dependem todos os
outros seres. Mas foi só através do neoplatonismo árabe que se desenvolveu o corolário implícito nessa
concepção, chegandose à determinação de um atributo que depois passaria a ser o primeiro e fundamental atributo dessa
doutrina: o da necessidade do ser divino. De fato, se as coisas do mundo extraem seu ser de D., este só
pode extraí-lo de si mesmo, ou seja, D. é o ser por natureza ou por essência, ao passo que as coisas têm o
ser por participação ou por derivação de D. Desse modo, determina-se uma cisão no ser: de um lado o ser
de D., do outro o das criaturas; de um lado o ser por si, do outro o ser por participação; de um lado o ser
necessário, do outro o ser possível. Essa distinção foi introduzida por Al Farabi (séc. IX), e graças a
Avicena (séc. XI) prevaleceu na Esco-lástica árabe e cristã, tornando-se um de seus princípios
fundamentais. Avicena interpreta a relação entre necessidade e possibilidade nos termos da relação
aristotélica entre forma e matéria. A forma, como existência em ato, é necessidade; a matéria é
possibilidade. O que não é necessário por si mesmo é necessariamente composto de potência e ato,
portanto não é simples. Tal é o ser das criaturas. Mas o ser que é necessário por si é absolutamente
simples, desprovido de possibilidade e de matéria: é D. (Met., II, 1, 3). A distinção entre ser necessário e
ser possível e a definição de D. como ser necessário foram introduzidas na Escolástica cristã por
Guilherme de Alvérnia (De Trinitate, 7) e tornaram-se fundamento da teologia de Alberto Magno e de
Tomás de Aquino. Este último exprime a necessidade do ser divino como identidade entre essência e
existência em D.: D. é o ser cuja essência implica existência. De fato, tudo aquilo que se acha em alguma
coisa por participação deve ser necessariamente causado por aquilo em que se acha por essência; por isso,
o ser de todas as coisas é criado ou produzido por aquilo que possui o ser por essência própria, isto é, por
ser necessário (S. Th., I, q. 2, a. 3; q. 44, a. 1). A necessidade é, em outros termos a definição da própria
natureza de D. Pois embora a proposição "D. existe", que expressa essa definição, não seja de per si
conhecida no que se refere a nós (que podemos não entender o significado do nome D. e interpretá-lo, p.
ex., como corpo), é todavia conhecida por si, secundum se, ou seja, em si mesma necessária (Ibid, I, q. 2,
a. 1).
A característica de necessidade, à qual o pensamento filosófico chegou relativamente tarde, torna-se
fundamental para todas as doutrinas de D. que surgem depois. Nicolau de Cusa define D. como
"necessidade absoluta"
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(De docta ignor., I, 22). Às vezes essa característica é tomada como ponto de partida da prova ontológica,
como faz Descartes, para quem "a existência necessária está contida na natureza ou no conceito de D., de
tal modo que é verdade dizer que a existência necessária está em D. ou que D. existe" (Secondes
Réponses, prop. I, Démonstration). Outras vezes nega-se a legitimidade de semelhante prova, mas
assume-se igualmente a necessidade como definição de D.; é o que faz p. ex. Leibniz. "É preciso", diz ele,
"procurar a razão da existência do mundo, que é a totalidade das coisas contingentes, e é preciso procurála na substância que traz consigo a razão de sua existência e que é, portanto, necessária e eterna" (Théod.,
I, § 7). Portanto, substância necessária, para Leibniz, é D. (Monad., 38). Nesse aspecto, são poucas as
novidades apresentadas pelas concepções de D. como causa criadora na filosofia moderna e
contemporânea. Limitam-se a repetir as características tradicionais, a começar da necessidade, que na
maioria das vezes é assumida como ponto de partida para uma demonstração ontológica. É o que fazem,
p. ex. Lotze (Microkosmus, III, p. 457) e, na sua esteira, muitos representantes do espiritualismo
contemporâneo. A única exceção a essa tendência é constituída por Kierkegaard e por todos os que se
inspiram diretamente em sua concepção de D. Segundo Kierkegaard, a relação entre D. e o mundo é
incompreensível e só pode ser esclarecida negativamente com a noção de diferença absoluta, de "salto"
entre o mundo e D. (Diário, VIII, A, 414). Portanto, Kierkegaard não utiliza a noção de causa para
determinar a relação entre o mundo e D., evitando atribuir a D. a categoria de necessidade. D. é "aquele
para o qual tudo é possível" (Die Krankheit zum Tode, I, c; trad. it., Fabro, p. 247); essa definição de D.
torna a fé possível por ser o fundamento da confiança naquele que pode sempre encontrar uma
possibilidade de salvação para o homem mas exclui a certeza fundada na necessidade da natureza divina.
É óbvio que, desse ponto de vista, a própria qualificação de D. como criador do mundo torna-se
imcompreensível, sendo indiferente afirmá-la ou negá-la. O mesmo vale para a doutrina contemporânea
que, nesse aspecto, mais se aproxima da inspiração de Kierkegaard: a de Jaspers. Qualificar a
transcendência do ser com os atributos tradicionalmente dados a D. ou como D. mesmo é, segundo
Jaspers,
anular a distância entre a transcendência e o homem, ou seja, anular a transcendência como tal. A única
cifra ou sinal da transcendência é o fracasso que o homem sofre quando tenta alcançar a transcendência.
Esse fracasso é o único e autêntico sinal da transcendência, que é negada por todas as tentativas de tornála próxima e acessível, pensando-a com os termos tradicionais da divindade (Phil, III, 3, pp. 166 ss.).
2. DEUS E O MUNDO MORAL.
A relação entre D. e o mundo moral (ou mundo dos valores) é o segundo aspecto de distinção das várias
concepções de D. Sob esse aspecto é possível isolar, em primeiro lugar, as doutrinas que não atribuem a
D. nenhuma função de ordem moral. Essas doutrinas, porém, são raríssimas, pois constituem formas de
um quase-ateísmo; pode-se mencionar Voltaire. Paradoxalmente, Voltaire disse que a divindade se
desinteressa completamente pela conduta dos homens. Azar dos cordeiros que se deixam devorar pelos
lobos. "Mas se um cordeiro fosse dizer a um lobo: 'Faltas ao bem moral, D. te punirá', o lobo responderia:
'Faço o meu bem físico e parece que D. não está muito preocupado em saber se te como ou não'" (Traité
de mét, 9). Contudo, esse ponto de vista, que é compartilhado por outros iluministas, aparece raramente
na história da filosofia, em que a relação entre D. e a ordem moral tende a tomar como modelo a relação
entre D. e o mundo físico. Nesse aspecto, podem ser distinguidas três concepções fundamentais: d) a que
considera D. como garante da ordem moral do mundo; b) a que o identifica com a ordem moral; c) a que
o considera criador da ordem moral.
d) Deus como garante da ordem moral. Por essa concepção, a ordem moral, do mesmo modo que a
ordem substancial do mundo, é independente de D.; mas D. concorre de modo mais ou menos eficaz para
mantê-la ou para realizá-la, acrescentando-lhe sua garantia. É essa a concepção de Platão e Aristóteles,
segundo os quais D., apesar de criador da ordem natural, não tem nenhuma responsabilidade sobre a
ordem moral que é confiada aos homens, limitando-se a apoiá-la e a encorajá-la com sanções próprias. No
mito de Er, Platão atribui à parca Láquesis as seguintes palavras, dirigidas às almas que estão prestes a
escolher um novo ciclo de vida: "A virtude não tolera senhores; cada um participará dela mais ou menos,
conforme a honre mais ou menos. Cada
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um é imputável por sua escolha: a divindade não é imputável" (Rep., X, 617 e). E na realidade o
Demiurgo predispõe todas as coisas "para não ser causa da maldade futura dos seres individuais" (Tim.,
42 d). Para Platão, a virtude, assim como o vício (logo, a totalidade da ordem moral), faz parte da esfera
de causalidade dos seres criados. Todavia, ser virtuoso significa também "ser amigo da divindade", e isso
significa "ser semelhante" à divindade. "A divindade é para nós a medida de todas as coisas, muito mais
do que pode sê-lo um homem, como dizem hoje" (Leis, IV, 716 c). Analogamente, segundo Aristóteles, a
divindade exerce sua função apenas no mundo natural e só por essa função é possível determinar seus
atributos fundamentais (Motor imóvel, Causa primeira, Pensamento do pensamento, etc). Contudo, até
Aristóteles admite, conforme as crenças populares, que, "se os deuses se preocupam de algum modo com
as obras humanas, como parece, é verossímil que lhes agrade ver nos homens algo de excelente e que
com estes tenham a maior afinidade, o que só pode ser inteligência" (Et. nic, X, 9, 1179 a 24). A
característica negativa dessa concepção é a ausência da noção de providência, ou seja, de uma ordem
racional criada por D. ou que seja D., em que os homens e seus comportamentos encontrem lugar. Sua
característica positiva é ser D. garante da ordem moral, conquanto não estabeleça seus caminhos e seus
modos de realização. No mundo moderno essas características são encontradas nos defensores da religião
natural (v.), a religião sem revelação por parte de D., confiada unicamente às forças da razão. Grócio, p.
ex., afirma que os enunciados da religião natural são quatro: "Primeiro: D. existe e é uno; segundo: D. não
é coisa nenhuma que se veja, mas é muito superior a elas; terceiro: as coisas humanas são cuidadas por D.
e julgadas com perfeita eqüidade; quarto: D. é o artífice de todas as coisas exteriores" (De iure belli, II,
20, 45). Crenças semelhantes, que excluem das coisas humanas o plano providencial, embora
reconhecendo a ajuda e a garantia divina, são freqüentes nos filósofos dos sécs. XVII e XVIII. Talvez sua
melhor expressão esteja em Rous-seau e em Kant. Segundo Rousseau, D. intervém para pôr em ação "as
leis da ordem universal", agindo de tal modo que, nesta vida, quem se comportar corretamente e for
infeliz será recompensado na outra. Aliás, para Rousseau, a exigência de ver assim garantida a
ordem moral é o único motivo razoável para crer na imortalidade da alma (Emílio, IV). Do mesmo modo,
para Kant, a existência de D. é um postulado da razão prática pois só Deus torna possível a união de
virtude e felicidade em que consiste o sumo bem, que é o objeto da lei moral (Crít. R. Prática, I, cap. 2, §
5). "Desse modo", diz Kant, "mediante o conceito do sumo bem, a lei moral conduz à religião, ao
conhecimento de todos os deveres na forma de mandamentos divinos; não como sanções, ou seja, como
decretos arbitrários e por si mesmo i
acidentais de uma vontade alheia, mas como leis essenciais de toda vontade livre por si mesma, que,
porém, devem ser consideradas mandamentos do Ser supremo, porque só de uma vontade moralmente
perfeita (santa e boa) e ao mesmo tempo onipotente podemos esperar o sumo bem, que a lei moral nos
obriga a ter como objeto de nossos esforços; portanto, podemos esperar alcançá-lo mediante o acordo
com essa vontade perfeita". Conseqüentemente, para Kant D. é "Ia
criador onipotente do céu e da terra, e,
do ponto de vista moral, legislador santo; 2S
conservador do gênero humano como seu benévolo
governante e curador moral; 3a
guarda de suas próprias leis, ou seja, justo juiz" (Religion, III, II, Obs.
ger.). Essa solução de Kant ficou sendo típica da concepção em exame, que limita o poder moral de D. a
uma j
garantia que não determina de modo algum a ação dos homens, mas, ao contrário, de certo modo é
solicitada pela própria autonomia dessa ação.
ti) Deus como ordem moral do mundo. Essa concepção, como a outra de D. criador da ordem moral,
apóia-se no conceito de providência, de ordem racional que compreende não só os eventos do mundo mas
também as ações ,,
humanas, ordem que é D. mesmo ou que vem de D. Os primeiros a formular o conceito de providência
foram os estóicos, que deram esse "
nome ou o nome de destino (v.) ao governo ra- (f
cional do mundo, ou seja, "a razão pela qual as coisas passadas aconteceram, as presentes *>
acontecem e as futuras acontecerão" (STOBEO, Ecl, I, 79). Os estóicos identificaram essa razão, destino ou
natureza com D., "presente nas coisas e nos fatos todos, e que assim utiliza todas as coisas segundo sua
natureza, para a economia do todo" (ALEXANDRE, De fato, 22, pp. 191, 30).
Do ponto de vista dessa identificação não deveria nascer o problema da liberdade huma-
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na: essa liberdade deveria ser identificada com a necessidade do desígnio providencial ou ser negada
como coisa impossível. A ação do homem só pode adequar-se à ordem racional do todo porque o homem
é uma parte desse todo. E com efeito sabemos que os estóicos reconheciam a necessidade do agir
humano; só para Crisipo o assentimento voluntário do homem intervinha como fator concomitante, sendo
comparável à forma do cilindro, que contribui para que ele gire sobre o plano inclinado (CÍCERO, De fato,
41-43). Plotino retoma o mesmo conceito de providência: "De todas as coisas forma-se um ser único e
uma só providência; se começamos pelas coisas inferiores ela é destino; no alto, é só providência. Tudo
no mundo inteligível é ou razão ou, acima da razão, Inteligência e Alma pura. Tudo o que desce de lá é
providência, ou seja, tudo o que está na Alma pura e tudo o que vem da Alma para os seres animados"
(Enn., III, 3, 5). A ação que emana de D. coincide, em outros termos, com sua ação providencial: os seres
haurem de D. não só o ser e a vida, mas também a ordem das ações em que seu ser e sua vida são
exercidos. Plotino procura não buscar na ordem providencial a origem do mal, mas o atribui a uma
espécie de acréscimo acidental que alguns seres fazem à ordem da providência (Ibid., III, 3, 5). Mas, para
ele, a providência e D. identificam-se, pois "do Princípio que permanece imóvel em si mesmo provêm os
seres individuais, assim como de uma raiz, que permanece fixa em si mesma, provém a planta: é uma
floração múltipla que redunda na divisão dos seres, mas na qual cada um carrega a imagem do Princípio"
(Ibid., III, 3, 7).
Sem dúvida, muitas dessas expressões e imagens poderão ser empregadas, como de fato serão, pelas
doutrinas que reconhecem em D. o criador da ordem moral, mas não o identificam com essa ordem,
embora só encontrem seu significado literal nessa identificação. A negação da liberdade humana, ou
melhor, a interpretação dessa liberdade como necessidade, é um de seus corolários. Giordano Bruno
expressou esse corolário com a doutrina de que, embora as orações não possam influir nos decretos do
destino, que é inexorável, o próprio destino deseja que lhe supliquem para fazer o que estabelecera fazer.
"Quer ainda o fado que, conquanto até Júpiter saiba ser ele imutável, e que outra coisa não pode ser senão
aquilo que deve ser e será, não deixe de, por tais meios,
correr celeremente para seu destino" (Op. cit., I, 31). Por sua vez, Espinosa nega que D. seja causa livre
no sentido de poder agir diferente do modo como age: ele é livre apenas no sentido de que age "só pelas
leis de sua natureza" (Et., I, 17).
Assim, em Spinoza, a noção de providência identifica-se com a noção de necessidade: necessidade
segundo a qual todas as coisas derivam da natureza de D., como única Causa perfeita e onipotente (Et., I,
33, scol. 22). Fichte só fazia repropor a tese de Spinoza quando, num texto que lhe valeu a acusação de
ateísmo (Do fundamento da nossa fé no governo divino do mundo, 1798), identificava D. com a
"ordenação moral viva e atuante", negando que D. fosse "uma substância particular", diferente dessa
ordenação. Essa identificação ficou como fundamento do Romantismo. Hegel diz: "O verdadeiro bem, a
razão divina e universal, é também potência de realização de si mesmo. Em sua representação mais
concreta, esse bem, essa razão, é D. O que a filosofia vê e ensina é que nenhuma força prevalece sobre a
força do bem, ou seja, de D., de tal modo que a impeça de atuar: D. prevalece, e a história do mundo não
representa outra coisa senão o plano da providência. D. governa o mundo: o conteúdo de seu governo, a
execução de seu plano, e a história universal" (Phil. der Geschichte, ed. Lasson, p. 55). Não obstante a
ambigüidade de certas expressões, o sentido da doutrina he-geliana aqui recapitulada é evidente: D. é a
razão que habita o mundo, e a razão que habita o mundo é a própria realidade histórica. De um século a
esta parte essa doutrina foi repetida com freqüência, sendo às vezes designada "doutrina da providência
imanente". Ainda serve de base para algumas correntes que visam renovar a teologia cristã e a empenhar
o cristianismo numa ação mais direta e eficaz no mundo. Assim, p. ex., Bonhoeffer identifica a realidade
com o bem e ambos com Deus. Por um lado, o bem é a realidade porque não é uma fórmula geral: o real é
impossível sem o bem. Por outro lado, D. é a "realidade última" não no sentido de ser uma idéia ou a
meta final da realidade, mas no sentido de que "todas as coisas se mostram distorcidas se não são vistas
nem reconhecidas em D.". Desse ponto de vista, a ética cristã é "a realização, entre as criaturas de D., da
realidade reveladora de D. em Cristo" (Ethik, 1949, II; trad. in., pp. 55 ss.). A novidade de doutrinas desse
tipo consiste, por um lado, no abandono
DEUS
257
DEUS
das tradicionais especulações teológicas e, por outro, na ênfase na função do Cristo; "D. e o mundo estão
compreendidos em seu nome; portanto, não se pode falar de D. e do mundo sem falar de Cristo" Qbid, p.
61). Mas o pressuposto teórico é sempre o mesmo: a identidade de D. com o mundo moral.
c) Deus como criador da ordem moral. Essa terceira concepção é caracterizada: ls
pela distinção entre D.
e sua ação providencial, sendo D. causa livre da ordem moral; 2
Q
pela tentativa de salvar a liberdade do
homem. O ponto de partida dessa concepção continua sendo a noção de providência, da forma elaborada
por es-tóicos e neoplatônicos. Boécio assim a distingue da concepção de destino.- "A providência é a
própria razão divina constituída como princípio soberano de tudo, que ordena todas as coisas, ao passo
que o destino é a ordem que rege as coisas em seu movimento e por meio do qual a providência as liga,
dando a cada uma o lugar que lhe compete" {Phil. cons., IV, 6, 10). Essa distinção não eqüivale,
obviamente, a uma separação: providência e destino em última análise coincidem, já que o primeiro é a
unidade da ordem vista pela inteligência divina, e o segundo é essa mesma ordem enquanto realizada no
tempo. O problema a que uma e outro dão origem é o do livre-arbítrio, característico dessa concepção de
D. Boécio antecipa o esquema de todas as soluções que depois lhe serão dadas, afirmando que as ações
humanas estão incluídas, justamente em sua liberdade, na ordem providencial (ibid., V, 6). Com forma
mais precisa e circunstanciada, a mesma solução (à qual, em geral, se ativeram os filósofos medievais) foi
reproposta por S. Tomás: este afirma, por um lado, o caráter integral ou totalitário da ação providencial, e
por outro julga a providência conciliável com a liberdade humana, que se insere, como tal, no quadro da
providência. Diz S. Tomás: "É próprio da providência ordenar as coisas para um fim. Depois da bondade
divina, que é um fim separado das coisas, o bem principal, existindo nas próprias coisas, é a perfeição do
universo; esta não existiria se não se encontrassem nas coisas todos os graus do ser. Daí se segue que é da
divina providência produzir todos os graus do ser e, por isso e para certos efeitos, ela preparou causas
necessárias, a fim de que aconteces-sem necessariamente, mas para outros efeitos preparou causas
contingentes a fim de que acontecessem contingentemente em conformidade com a condição das causas próximas". Por isso, "acontece infalível e necessariamente aquilo que a
providência divina dispõe que aconteça assim, mas acontece de forma contingente aquilo que a
providência divina quer fazer assim acontecer" (5. Th., I, q. 22, a. 2). Não se trata, obviamente, de uma
solução isenta de dificuldades, pois não é fácil entender como a realização de um desígnio perfeito e
minucioso pode ser confiada, mesmo que em parte, ou em parte mínima, ao comportamento imprevisível
de um fator arbitrário. Mas essa é a solução repetida constantemente no âmbito dessa concepção, que
tende a ressaltar a liberdade da causalidade divina com vistas à solução do outro problema fundamental
da teodicéia, o do mal, expresso pela velha fórmula: "SiDeusest, unde malum? Si non est, unde bonum?"
Os escritores dos sécs. XVII e XVIII (especialmente Bayle, os deístas e Leibniz) discutiram longamente
esses problemas, sem encontrar novas soluções (v. MAL). De um lado, Bayle dava destaque à
insuficiência das soluções tradicionais e julgava esses problemas insolúveis; de outro, Leibniz repropunha
as soluções tradicionais in-serindo-as no seu conceito de mundo como ordem que se organiza
espontaneamente e de D. como princípio dessa organização. Em virtude desse conceito, Leibniz podia
admitir um determinismo não necessitante, no que diz respeito à vontade humana na ordem providencial
(Disc. de mét., § 30), e reapresentar, com mais plausibilidade, a antiga tese de que o mal não existe, não
tem realidade própria, mas é um ingrediente indispensável, embora incômodo, do melhor dos mundos
possíveis (Théod., I, § 21). Todavia, o conceito de D. como "substância necessária" continuava em
Leibniz (Monad., § 38), e esse conceito é dificilmente compatível com a causalidade livre de D. Como
afirmava Avicena, que foi o primeiro a enunciar esse conceito, uma substância só pode ter uma
causalidade necessária e comunicar sua necessidade a tudo o que dela provém. Em sua formulação
tradicional, essa concepção de D. revela-se uma composição sincrética, cujos elementos não são todos
compatíveis uns com os outros. Com efeito, extrai da concepção (£>) o conceito de plano providencial,
que, na história da filosofia, nasceu da identificação de D. com o mundo ou com sua ordem. E combina
essa doutrina com outra, de origem árabe, para a qual D. é substância necessária, bem como com o
elemento greco-cristão-judaico, de Deus como
DEUS
■258
DEUS
causa livre. Não é de estranhar que da composição de elementos conceituais tão heterogêneos tenham
nascido conflitos e problemas de extrema dificuldade. Na própria filosofia contemporânea, as soluções
oferecidas para tais problemas não são diferentes das citadas; às vezes, tornam-se ainda menos
convincentes devido à ênfase dada ao caráter necessário da realidade divina pela influência do
imanentismo romântico.
3. DEUS E A DIVINDADE.
O terceiro modo de distinguir as concepções de D. consiste em considerá-las quanto à relação entre D. e
ele mesmo, ou, mais precisamente, entre D. e a divindade. Na distinção ou na identificação entre D. e a
divindade estão as duas alternativas, politeísmo ou monoteísmo. Se D. se distingue da divindade, tem-se
uma relação semelhante à que existe entre a humanidade e o homem, podendo haver muitos deuses, assim
como há muitos homens. Se, porém, D. é identificado com a divindade, há um só D., assim como há uma
só divindade. A propósito, é oportuno dar pouca importância ou aceitar com muita cautela as
qualificações com que os filósofos são comumente caracterizados. Na verdade, muitos fiósofos são
qualificados de monoteístas, quando não o são (p. ex., Platão, Aristóteles, Plotino, Bergson, etc), e, como
se verá a seguir, o politeísmo tem mais difusão entre os filósofos do que o monoteísmo. Em todo caso,
para uma distinção rigorosa, cumpre ter em mente apenas o critério indicado (qual seja, a relação entre D.
e a divindade), que é o único que não se presta a equívocos.
a) Politeísmo. Como vimos, devem ser consideradas politeístas todas as doutrinas que admitem de algum
modo a distinção entre divindade e D., porque, para essas doutrinas, a divindade pode ser compartilhada
por um número indefinido de entes. Foi essa, sem dúvida, a doutrina de Platão. Em Timeu, o Demiurgo
delega a outros deuses, criados por ele próprio, parte de suas funções criadoras {Tim., 40 d), e em Leis a
expressão "Deus" (o theós) designa a divindade em geral, que encontra realidade numa multiplicidade de
deuses. Ademais, além dos deuses, são reconhecidos outros seres divinos, os demônios. "Depois dos
deuses, o homem inteligente honra os demônios; depois destes, os heróis" {Leis, 717 b). Aristóteles, por
sua vez, julga que a mesma demonstração válida para a existência do primeiro motor vale também para a
existência
de tantos motores quantos são os movimentos das esferas celestes; e como o número das esferas era 47,
segundo Eudóxio, e 55, segundo Calipo (os dois astrônomos a quem Aristóteles se referia), esse filósofo
admite 47 ou 55 divindades que, conquanto subordinadas ao primeiro motor, têm o mesmo nível dele.
Além disso, ele fala constantemente de "deuses" {Et. nic, X, 9, 1179 a 24; Mel, I, 2, 983 a 11; III, 2, 907 b
10, etc), e, aludindo à convicção popular de que o divino abrange toda a natureza, acha que esse ponto
essencial, ou seja, "que as substâncias primeiras são tradicionalmente consideradas deuses", foi
"divinamente dito" e é um dos ensinamentos preciosos que a tradição salvou {Met, XII, 8, 1074 a 38). Em
outros termos, da substância divina participam muitas divindades; nisso coincidem crença popular e
filosofia.
Por outro lado, não se deve confundir a insistência de Plotino e dos neoplatônicos em geral na unidade de
Deus com o reconhecimento da unicidade de D. D. é uno, aliás é o Uno porque é a unidade do mundo e a
fonte de onde brotam ou emanam todas as ordens da realidade. Mas justamente por isso não é único: a
unidade não elimina a multiplicidade, mas a contém em si mesma. Aliás, para Plotino, a multiplicidade
dos deuses é a manifestação da potência divina; "Não restringir a divindade a um único ser, mostrá-la tão
múltipla quanto é em sua manifestação, eis o que significa conhecer a potência da divindade, que é capaz
de, mesmo permanecendo o que é, criar uma multiplicidade de deuses que se ligam a ela, existem para ela
e vêm dela" {Enn., II, 9, 9). Obviamente, a multiplicidade de deuses em que a divindade se multiplica e se
expande, sem realmente se dividir, não exlui uma hierarquia e a função preeminente de um deles (o
Demiurgo ou o Motor de Platão, o Primeiro Motor de Aristóteles, o Bem de Plotino); mas o
reconhecimento de uma hierarquia e de um chefe da hierarquia não significa absolutamente a
coincidência entre divindade e D., não sendo, pois, monoteísmo.
Por outro lado, não seria exato supor que o politeísmo, entendido na forma exposta acima, seja uma
alternativa exclusiva da filosofia paga e que, portanto, não se apresente mais, depois da elaboração cristã
do monoteísmo. Essa elaboração não consegue eliminar os repetidos ressurgimentos do politeísmo, seja
em doutrinas que, como a das quatro naturezas de Scotus Erigena, reproduzem o esquema neoplatônico,
DEUS
S59
DEUS
seja nas interpretações trinitárias menos felizes, que às vezes se inclinam para o politeísmo. Foi o que
aconteceu, p. ex., com Gilbert de Ia Porrée (séc. XII), que tomava por base a distinção entre deitas e
Deus(v. DEIDADE). Por outro lado, toda forma de panteísmo, antigo ou moderno, tende a ser politeísta, já
que tende a difundir o caráter da divindade por certo número de entes, debilitando ao mesmo tempo a
separação entre esses entes e mantendo a distinção entre divindade e D. Assim, para Hegel, as instituições
históricas nas quais se realiza a razão autoconsciente, em primeiro lugar o Estado, são verdadeiras
divindades: "O Estado", diz Hegel, "é a vontade divina enquanto espírito atual que se explicita como
forma reale como organização de um mundo" (Fil. do dir., § 270). São ainda mais claramente politeístas
as formas do panteísmo moderno. Bergson, Alexandre, Whi-tehead (cf. os trechos citados em 1 B),
conferindo ao mundo o poder de realizar a divindade, reconhecem explicitamente que esta, no momento
da realização, concretizar-se-á numa multiplicidade de seres divinos. De outro ponto de vista, Hume
conferira valor positivo ao politeísmo, quer porque este, ao admitir que os deuses de outras seitas ou
nações também participam da divindade, torna as várias deidades compatíveis e obsta à intolerância, quer
porque ele é mais racionai, pois consiste "apenas numa coleção de histórias que, apesar de não terem
fundamento, não implicam nenhum absurdo expresso nem contradição demonstrativa" (The Natural
History qfReligion, seç. XI e XII, em Essays, II, pp. 336 e 352). Renouvier defendia explicitamente o
politeísmo como único corretivo do fanatismo religioso e do absolutis-mo filosófico. Dizia: "O progresso
da vida e da virtude povoa o universo de pessoas divinas e estaremos sendo fiéis a um sentimento
religioso antigo e espontâneo quando chamarmos de deuses aqueles que acreditarmos capazes de honrar a
natureza e abençoar as obras" (Psy-chologie rationelle, 1859, cap. XXV, ed. 1912, p. 306). Esse
politeísmo não é inconciliável com a unidade de D. porque o D. uno seria, então, a primeira das pessoas
super-humanas.
b) Monoteísmo. Como se disse, o mono-teísmo não se caracteriza pela presença de uma hierarquia de
seres e por um cabeça dessa hierarquia, mas pelo reconhecimento de que só D. possui a divindade e que
D. e divindade coincidem. Nesse sentido, na história da filosofia, o monoteísmo comparece em Fílon de
Alexandria, que afirma que "D. é solitário, é um em si mesmo e nada é semelhante a D"; portanto, "ele
está na ordem do uno e da mônada, ou melhor, é a mônada na ordem do D. uno, já que todo número é
mais recente que o mundo, e assim o tempo, mas D. é mais velho que o mundo e seu Demiurgo" (Ali.
leg., II, 1-3)- Nas discussões trinitárias da fase patrística e da Escolástica, a identidade de D. com a
divindade foi o critério dirimente para reconhecer e combater as interpretações que se inclinavam para o
triteísmo. Por certo, a Trindade é constantemente apresentada como um mistério que a razão mal pode
aflorar. Mas o que importa ressaltar é que a unidade divina só é considerada cindida quando, com a
distinção entre D. e a divindade, se admite, implícita ou explicitamente, que dela participam dois ou mais
seres individualmente distintos. A melhor exposição desse ponto de vista pode ser vista em S. Tomás, que
assim resume uma longa tradição (v. também, p. ex., RICARDO DE SÃO VÍTOR, De Trin., 1,17). "E
evidente", diz S. Tomás, "que aquilo pelo que algo singular é este singular de modo nenhum é
comunicável a outras coisas. P. ex., aquilo pelo que Sócrates é homem pode ser comunicado a muitos
outros seres, mas aquilo pelo que ele é este homem pode ser comunicado a este apenas. Se, portanto,
Sócrates fosse homem com fundamento naquilo pelo que é este homem, assim como não pode haver mais
de um Sócrates, tampouco poderia haver mais de um homem. Mas esse é precisamente o caso de D., já
pois D. é a própria natureza, de tal forma que ele, sob o mesmo aspecto, é D. e este D.; é impossível,
portanto, que haja mais de um D." (S. Th., I, q. lia 3). Esse é o motivo pelo qual os teólogos medievais
insistem na simplicidade da natureza divina, que na realidade nada mais significa do que a
incomunicabilidade dessa natureza e, portanto, a impossibilidade de que ela seja compartilhada por mais
de um D. A partir de S. Tomás, a história da filosofia pouco acrescentou a esses conceitos. A decadência
da especulação teológica tornou, aliás, os filósofos menos sensíveis à precisão desses conceitos, de tal
modo que, com muita freqüência, as qualificações do monoteísmo e politeísmo são empregadas
aleatoriamente, limitando-se o politeísmo a uma manifestação da mentalidade primitiva, conquanto ele
seja, como se viu, uma alternativa filosófica em cujo favor está toda a tradição clássica e muitas das
tentativas modernas de inovar o conceito de D.
DEUS
260
DEUS, MORTE DE
4. A REVELAÇÃO DE DEUS.
O quarto e último modo de distinguir as concepções de D. consiste em considerar a via de acesso a D. que
essas concepções concedem, ou não, ao homem. A esse ponto de vista dizem respeito, especialmente, a
distinção e a oposição entre deísmo e teísmo, que consistem, grosso modo, em considerar a manifestação
de D. como iniciativa do homem (deísmo) ou de D. (teísmo). Portanto, é possível distinguir duas
concepções principais: 0 a que atribui à iniciativa do homem e ao uso das capacidades naturais de que
dispõe o conhecimento que o homem tem de D.; ii) a que atribui à iniciativa de D. e à sua revelação o
conhecimento que o homem tem de D. Obviamente, essas duas concepções podem combinar e dar lugar a
iii), para a qual a revelação só faz concluir e levar a cabo o esforço natural do homem para conhecer D.
Desses três pontos de vista, o primeiro é o mais estritamente filosófico; os outros dois são
predominantemente religiosos. A filosofia grega só conheceu o primeiro. O segundo ponto de vista pode
ser visto com toda a clareza em Pascal: "E o coração que sente D., não a razão. Eis o que é a fé: D.
sensível ao coração, não à razão" (Pensées, 278). E Pascal acrescenta logo: "A fé é um dom de D." (Ibid.,
279). Por isso, a revelação autêntica de D. ao coração do homem é uma iniciativa exclusivamente divina,
iniciativa que o homem pode facilitar, é verdade, dominando suas paixões, mas não solicitar ou provocar.
O terceiro ponto de vista foi instaurado pela Patrística, que considerou a revelação cristã como o
cumprimento da filosofia grega. Esta é produto da razão, do Logos, que é o primogênito de D., e contém
verdades ou germes de verdade que o cristianismo leva ao desenvolvimento pleno (JUSTINO, Apol. séc,
13). O princípio de que a revelação não anula e nem inutiliza a razão dominou toda a filosofia escolástica
e foi posto em dúvida só pelas últimas manifestações desta, no séc. XIV. No Renascimento, inverte-se: a
revelação não chega no fim, para cumprir a obra da razão, mas a inspira e a sustenta desde o início. A
razão só faz transmitir e ilustrar a verdade que D. revelou em tempos remotos. Esse foi, p. ex., o ponto de
vista de Pico delia Mirandola e de Gior-dano Bruno. Em ambos os casos, porém, a obra da razão e a da
revelação colaboram, e não são antitéticas.
O deísmo do séc. XVIII, assim como o seu precedente histórico, a doutrina da religião natural dos sécs.
XVI e XVII ( Thomas Morus, Herbert de Cherbury, Locke), contrapõe à revelação histórica a revelação
natural, que ocorre através da razão, chegando a ver no Evangelho (como Matteo Tindall) apenas "uma
republicação da lei da natureza" (O cristianismo antigo como criação, 1730). Obviamente, uma divindade
que se revela à razão só tem e só pode ter caracteres racionais; por isso, o deísmo restringe os atributos da
divindade aos que podem ser determinados pela razão a partir da relação entre D. e o mundo. Em face
disso, o teísmo, como diz Kant, "crê num D. vivo, num D. cujos atributos podem ser determinados por
analogia com a natureza e com fundamento na revelação" (Crít. R. Pura, dialética, capítulo III, seç. 7). É
preciso, porém, ressaltar que, na terminologia filosófica predominante depois do Romantismo, utilizada
sobretudo pelo panteísmo, a "revelação de D." não é um fato histórico, mas manifestação progressiva de
D. na realidade natural e histórica do mundo. Além de predominar nas filosofias de Hegel e Schelling,
esse significado é importante em filosofias do séc. XIX que obedecem à mesma inspiração. Rosmini
apresenta como fundamento da filosofia e, em geral, do saber humano, a idéia do ser, que é revelação
direta do atributo fundamental de D. à mente do homem (Novo ensaio, § 1055); de modo análogo,
Gioberti considera como base do conhecimento a intuição, que é a revelação imediata de D. ao homem
(Introdução, II, p. 46, 1).
Essa idéia tem trânsito em doutrinas díspares e também pode ser vista nas que acentuam ao máximo a
transcendência de D. e, portanto, vêem sua única revelação possível na inatingibilidade. Essa é a doutrina
de Jaspers, para quem o fracasso inevitável do homem em sua tentativa de alcançar a Transcendência é a
única revelação possível, a cifra da própria Transcendência (Phil, III, p. 134).
DEUS, MORTE DE (in. Death of God; fr. Mort de Dieu; ai. Gottertod; it. Morte diDió). O anúncio de
que "Deus morreu" foi feito por Nietzsche, no sentido de que "a fé no D. cristão tornou-se inaceitável" (A
gaia ciência, 1882, § 108, 125, 343), mas hoje é considerado símbolo da renovação do cristianismo, que
precisava libertar-se das estruturas mitológicas e sobrenaturalistas de que se revestira nos séculos
anteriores, reencontrando a pureza de sua mensagem. Essa "nova teologia" inspira-se
DEUS, PROVAS DE
261
DEUS, PROVAS DE
substancialmente na obra de Bultman (v. DES-MITIFICAÇÃO) e de Bonhoeffer (v. DEUS, 2, b): contrapõe a
fé à religião, nega a transcendência de D. (sendo, pois, quase um pan-teísmo) e transfere para o mundo
histórico a esperança escatológica dos primórdios do cristianismo ao afirmar que "D. não é, mas será", no
sentido de que se realizará como amor no seio de uma comunidade humana ajustada ao exemplo de Cristo
(G. VARTANIAN, Death ofGod, 1961; T. ALTIZER, TheGospelofChristianAtheism, 1967).
DEUS, PROVAS DE (in. Arguments for God; fr. Preuves de Dieu; ai. Gottesbeweise, it. Prove di Dio).
Entenderemos por essa expressão não só as "demonstrações", mas também os indícios ou as indicações
que foram consideradas provas da existência de D. Cada uma dessas provas nasceu de determinada
concepção de D. e recorre a certo tipo de causalidade, mas cada concepção também se vale de provas
extraídas de concepções diferentes, de modo que, via de regra, há certo sincretismo nesse ramo do
pensamento filosófico. No entanto, existe um argumento que não se refere a nenhuma concepção de D.
em especial, que enunciaremos em primeiro lugar.
I
a O recurso ao consenso comum é uma prova que vez por outra aparece na história da filosofia. Dele se
valeu Aristóteles para demonstrar que a divindade reside no primeiro céu, e não tanto que ela existe (De
caei, I, 3, 270 b 17). Mas esse argumento foi muito desenvolvido pelos platônicos ecléticos do séc. I a.C,
e é provável que Cícero o tenha extraído deles. "Para demonstrar a existência dos deuses, o argumento
mais forte que podem aduzir é que nenhum povo é tão bárbaro, que nenhum homem é em absoluto tão
selvagem, a ponto de não ter em sua mente indício da crença nos deuses" (Tusc, I, 30). Pode-se considerar
equivalente a esse argumento a crença de que a idéia de D. é uma das idéias inatas ou constitutivas da
natureza racional humana. Tal foi a tese dos neoplatônicos de Cambridge no séc. XVII (Herbert de
Cherbury, Cudworth, Moore), que Locke teve presente em sua crítica do inatismo do Livro I do Ensaio. E
foi essa a tese defendida no século seguinte pela escola escocesa do senso comum (Thomas Reid e
Dougald Stwart). A afirmação do caráter inato da idéia de D. eqüivale ao recurso ao consensus gentium,
porque a presença da idéia de D. em
todos os homens é a única base presumida para admitir o seu caráter inato.
2
a
O argumento mais antigo e respeitável, e também o mais simples e convincente, é o da ordem ou
desígnio do mundo, que, em termos modernos, se chama argumento teleológico ou físico-teológico. Foi
ele que convencera Ana-xágoras a admitir a Inteligência como causa ordenadora do mundo. Platão e
Aristóteles fazem-lhe referência freqüente. O primeiro diz, p. ex.: "Que a Inteligência ordena todas as
coisas é afirmação digna do espetáculo que nos oferecem o mundo, a lua, os astros e todas as revoluções
celestes" (Fil, 28 e). E Aristóteles, que repetira esse argumento em seu diálogo juvenil Sobre a filosofia,
adaptando-lhe o mito platônico da caverna (os homens reconheceriam a existência de D. assim que
saíssem da caverna, só com olhar a natureza) (Fr. 12", Rose), o pressupõe quando compara D. ao chefe de
uma casa bem organizada ou de um exército (Mel, XII, 10, 1075 a 14). Podemos ler esse argumento na
formulação de Fílon: "Se virmos uma casa construída com cuidado, com vestíbulos, pórticos,
apartamentos para homens, mulheres e para outras pessoas, teremos uma idéia do artista: não acharemos
que foi feita sem arte e sem artesãos. E o mesmo diremos de uma cidade, de um navio, ou de um objeto
qualquer construído, seja ele pequeno ou grande. Do mesmo modo, aquele que entrou nesse mundo como
uma casa ou numa enorme cidade e viu o céu que gira em círculo e tudo contém, os planetas e as estrelas
fixas movidos por movimento idêntico ao do céu, simétrico, harmonioso e útil ao todo, e a terra que
recebeu o lugar central... esse homem concluirá que tudo isso não foi feito sem uma arte perfeita e que o
artífice desse universo foi e é D." (Ali. leg., III, 98-99). Obviamente, como notava Kant, esse argumento
conclui pela existência de um Demiurgo, isto é, do criador da ordem do mundo, e não do criador do
mundo. Todavia, foi também utilizado por aqueles que admitem a causalidade criadora de D. Sua força
probante reside na noção de ordem, mais precisamente no caráter absoluto dessa noção (v. ORDEM). Esse
foi, é e continua sendo o argumento mais simples e popular, mas nem por isso o mais frágil. Stuart Mill
procurou expressá-lo de forma mais rigorosa em quatro partes, em conformidade com os quatros métodos
indutivos: concordância, diferença, resíduos e variações concomitantes (Three Essays on
DEUS, PROVAS DE
262
DEUS, PROVAS DE
Religion, 1875, com o título Theism, 1957, p. 27). C. S. Peirce deu-lhe uma forma não muito diferente da
tradicional, ao considerar D. como Ens necessarium, criador dos três universos de experiência (das idéias
puras, das coisas reais e dos signos), cuja existência pode ser demonstrada pela ordem desses três mundos
e por sua concordância (Coll. Pap., 6,452 ss.; o texto é de 1908). Contudo, não se deve esquecer que o
conceito de ordem (v.) é relativo; como observava Peirce, "um mundo aleatório é simplesmente o nosso
mundo real do ponto de vista de um animal com o mínimo absoluto de inteligência"; portanto, a noção de
ordem dificilmente se presta a remontar a noção de Espírito Ordenador {Chance, Love and Logic, I, 5, 2;
trad. it., p. 83).
3
a
Uma variante ou determinação desse argumento é a prova causai que pode ser encontrada em
Aristóteles (Mel, II, 2) e depois é retomada pelos autores árabes (Avicena) e por S. Tomás. Funda-se no
princípio de que é impossível remontar ao infinito na série das causas materiais e das causas eficientes, ou
das causas finais ou das conseqüências, e que, portanto, deve haver, em cada série um primeiro princípio
do qual depende a série toda. Como a argumentação também vale para as causas finais, leva a ver em D. o
fim último, o bem supremo segundo o qual se ordenam todas as coisas do mundo (Ibid., XII, 7,1072 b 2).
Essa prova pode ser considerada uma transição entre a prova teológica e a do movimento; na verdade, às
vezes é interpretada como uma, às vezes como outra.
4
Q
A prova considerada mais sólida no mundo clássico e medieval é a do movimento. Foi exposta pela
primeira vez por Platão ( Leis, X, 894-95) e reexposta por Aristóteles (Fís., VIII, 1; Met., XII, 7). Na
Escolástica latina foi introduzida por Adelardo de Bath no séc. XI (Quaest. nat., 60). Podemos encontrá-la
na exposição de S. Tomás, que é a mais clara e sucinta. Parte do princípio de que "tudo o que se move é
movido por outra coisa". Ora, "se aquilo pelo qual é movido por sua vez se move é preciso que também
ele seja movido por outra coisa e esta por outra. Mas não é possível continuar ao infinito; senão, não
haveria um primeiro motor e nem mesmo os outros motores moveriam assim como, p. ex., o bastão não
move se não for movido pela mão. Portanto, é preciso chegar a um primeiro motor que não seja movido
por nenhum outro, e por ele todos entendem D." (5. Th., I, q. 2, a. 3). Esse argumento foi criticado já no fim da Escolástica: Ockham nega a
validade dos dois princípios em que ele se funda. Na verdade, observa ele, pode-se racionalmente afirmar
que alguma coisa se move por si, como a alma, o anjo ou o peso que tende para baixo; e que o processo
ao infinito se dá freqüentemente na experiência, p. ex. quando bate numa das extremidades de um
comprimento contínuo: a parte atingida movimentará a parte mais próxima, esta movimentará outra, e
assim por diante infinitamente {Cent. theol., Concl. I, D). Essa prova também conclui apenas pela
existência de um primeiro motor, e não de uma causa criadora, sendo utilizada com esse fim por Platão e
por Aristóteles. Kant considerou essa prova idêntica às duas precedentes e observou que é difícil
estabelecer uma proporção precisa entre movimento e motor, ou seja, induzir da ordem e do movimento a
existência e os caracteres de uma causa infinita. "Espera", disse ele, "que ninguém jamais tenha a
presunção de conhecer a relação entre a grandeza • do mundo por ele observada (por extensão e
conteúdo) e a onipotência, entre a ordem cósmica e a suma sapiência, entre a unidade cósmica e a unidade
absoluta do criador, etc." (Crít. R. Pura, Dialética, c. III, seç. 6).
5
a
O chamado argumento do graus fora exposto por Aristóteles em seu maior diálogo juvenil, Sobre a
filosofia. "Em geral, nas coisas em que há o melhor, há também o ótimo; e como há o ótimo nas coisas
que existem de um modo ou de outro, haverá nelas também o ótimo, que poderia ser divino" (Fr. 16,
Rose). Era reproduzido por Cícero da seguinte forma: "Não se pode afirmar que em cada ordem de coisas
não haja algum termo extremo, uma perfeição absoluta, pois vemos que para uma planta, para um animal,
a natureza se não se lhe opõe força alguma, segue seu caminho e chega ao termo último, e que a pintura, a
arquitetura e as outras artes alcançam também resultado perfeito em suas obras. O mesmo deve ser dito
para toda natureza e com muito maior razão: deve-se necessariamente produzir e realizar uma forma
absolutamente perfeita" (De nat. deor., II, 13, 35). Essa prova foi reexposta por S. Agostinho (De civ. Dei,
VIII, 6) e encontrou forma clássica em Monologion de Anselmo. Diz este: "Se não pode negar que
algumas naturezas são melhores do que outras, a razão nos convence de que há uma tão ex-
DEUS, PROVAS DE
celente que nenhuma outra haverá que lhe seja superior. De fato, se essa distinção de graus presseguisse
ao infinito, de modo que não houvesse um grau superior a todos, a razão seria levada a admitir que o
número dessas naturezas é infinita. Mas como isso é considerado absurdo por qualquer um que não seja
carente de razão, deve haver necessariamente uma natureza superior, que não possa ser subordinada a
nenhuma outra como inferior" (Mon., 4). O fundamento dessa prova é o princípio platônico de que tudo o
que possui certa qualidade possui-a por participação naquilo a que essa qualidade inere de modo essencial
e eminente; p. ex., tudo o que é quente é quente por participação no fogo, que é quente por essência
(Fed., 101 d e ss.). Esse princípio fora admitido também por Aristóteles (Met., II, 1, 993 b 25), ao qual
freqüentemente remetem os escritores medievais.
6
a
A prova chamada por S. Tomás de ex possibili et necessário, por Leibniz de contin-gentia mundi, e por
Kant, de prova cosmoló-gica, é uma das mais felizes; foi exposta pela primeira vez por Avicena e está
intimamente ligada à concepção de D. típica do neopla-tonismo árabe. Avicena (Met., II, 1, 2) distinguira
o ser em necessário e possível, definindo o possível como o que não existe por si, mas tem necessidade de
alguma coisa para existir. Portanto, se existe um possível, existe algo que o faz existir; mas se esse algo é,
por sua vez, possível, remete ainda a um outro que seja causa de sua existência; e assim por diante, até se
chegar ao ser necessário, que é o que existe por si. Dessa prova resulta a definição de D. como ser
necessário, cujo antecedente pode ser encontrado em Aristóteles {Met., XII, 7,1072 b 10). Mas seu
sentido é diferente na filosofia árabe, em que visa afirmar a necessidade de tudo o que existe, portanto
também do possível, que, se existe, existe necessariamente pela ação de uma causa necessária. Apesar de
seus vínculos com o necessitarismo árabe, essa prova foi aceita por Maimônides ( Guide des égarés, II, 1)
e pela Escolástica latina, na qual foi introduzida por Guilherme de Alvérnia (De Trinitate, 7), na primeira
metade do séc. XIII. Desde então, passou a ser uma das provas mais freqüentemente repetidas na história
da filosofia, sendo de fato a única aduzida nos sécs. XVII e XVIII, ou seja, ainda no período em que
muitos conceitos teológicos e metafísicos são criticados e abandonados. Pode ser
263 DEUS, PROVAS DE
assim esquematizada: "Se algo existe, deve existir um ser necessário. Mas algo existe (p. ex., eu mesmo),
logo existe o ser necessário". Em conformidade com esse esquema, essa prova é exposta por Descartes
(Secondes Réponses, prop. 3), por Locke (Ensaio, IV, 10), por Leibniz (Théod, I, § 7; Monad., § 45) e por
Clarke (Demonstration ofthe Being and Attributes of God, 1705). A própria prova que Berkeley extraiu do
princípio esse estpercipi é uma variante da prova cosmológica: "As coisas sensíveis realmente existem; se
realmente existem, são J
necessariamente percebidas por um espírito infinito; logo, há um Espírito infinito, ou D." (Dialogues
Between Hylas and Philonous, II, Works, ed. Jessoup, II, p. 212). Kant considerou a prova cosmológica
como "uma prova onto-lógica mascarada", uma prova que passa da conexão puramente conceituai entre
as noções de possível e necessário à afirmação da realidade necessária (Crtt. R. Pura, Dialética, cap. III,
seç. 5). G. Boole, fundador da lógica, transcrevendo em símbolos o argumento de Clarke, mostrava que
não há conclusão derivável das premissas que afirmam a verdade ou a falsidade da proposição "algo que é
existe pela necessidade de sua natureza", ou da proposição "algo que é existe pela vontade de outro ser",
nem da combinação das duas proposições (laws ofThought, 1854, cap. 13). A essa prova se deve a
definição de D. como ser necessário, que é das mais comuns, sendo usada mesmo por quem não se vale
da prova relativa ou desconhece sua validade.
1° A prova ontológica foi formulada no séc. XI por Anselmo de Aosta. Sua característica é passar do
simples conceito de D. à existência de D. Eis a formulação de Anselmo: "Certamente aquilo de que não se
pode pensar nada , de maior não pode estar só no intelecto. Porque, se estivesse só no intelecto,
poder-se-ia pensar que estivesse também na realidade, ou seja, que fosse maior. Se, portanto, aquilo de >
que não se pode pensar nada de maior está só no intelecto, aquilo de que não se pode pensar ' nada de
maior é, ao contrário, aquilo de que se pode pensar algo de maior. Mas certamente isso é impossível.
Portanto, não há dúvida de que aquilo de que não se pode pensar nada de maior existe tanto no intelecto
quanto na realidade" (Prost., 2). Esse argumento consta de dois pontos: 1Q
o que existe na realidade é
"maior" ou mais perfeito do que o que existe só no intelecto; 2° negar que aquilo de que não
DEUS, PROVAS DE
264
DEUS, PROVAS DE
se pode pensar nada de maior existe na realidade significa contradizer-se. A esse argumento o monge
Gaunilão, em seu Liberpro insipiente (Anselmo dirigira seu argumento contra o néscio do Salmo 13, que
disse "em seu coração, não há D."), aduziu, em primeiro lugar, que se pode duvidar de que o homem
tenha um conceito de D., e, em segundo lugar, que não se pode deduzir do conceito de um ser
perfeitíssimo a existência desse ser tanto quanto não se pode deduzir do conceito de uma ilha
perfeitíssima a realidade dessa ilha. Em Liber apologeticus Anselmo respondeu que se pode pensar D.,
como demonstra a própria fé que Anselmo e Gaunilão professam, e que, se é possível pensá-lo, deve-se
admiti-lo como existente, sem que isso valha para qualquer outro ser, que, embora perfeito, nunca será
aquilo de que não se pode pensar nada de mais perfeito. Rejeitado pela maior parte dos esco-lásticos
(inclusive S. Tomás, 5. Th., I, q. 2, a. 1 ad. 2a
), que em geral preferem os argumentos aposteriori, ou seja,
extraídos da relação de D. com o mundo, o argumento ontológico teve sucesso na filosofia moderna. Foi
repetido por Descartes, para quem a existência de D. está implícita no conceito de D., do mesmo modo
que está implícito no conceito de triângulo que seus ângulos internos são iguais a dois ângulos retos
(JPrinc.phil., I, 14). Leibniz, por sua vez, aceitou essa prova e formulou-a como identidade de
possibilidade e realidade em D. Só D., disse ele, ou seja, o ser necessário, tem o privilégio de precisar
existir, se ele é possível. E como nada pode impedir a possibilidade daquilo que não encerra nenhum
limite, nenhuma negação e, em conseqüência, nenhuma contradição, só isso basta para conhecer a
existência de D. apriori{Monad., § 45). Segundo Kant, a própria prova é contraditória ou impossível: será
contraditória se, já no conceito de D., se considerar implícita a sua existência, por nesse caso não se tratar
de simples conceito; e será impossível se ela for considerada implícita, pois nesse caso a existência deverá
ser acrescida ao conceito sinteticamente, ou seja, por via da experiência, ao passo que D. está além de
toda experiência possível (Crít. R. Pura, Dial, cap. III, seç. 4). Hegel, porém, defendeu essa prova
afirmando que só no que é finito a existência é diferente do conceito, e que "D. deve expressamente ser
aquilo que pode ser pensado só como existente, cujo conceito implica a existência. Essa unidade de
conceito
e ser constitui justamente o conceito de D." {Ene, § 51). Por aí se pode ver que a prova ontológica, mais
que prova, é a explicitação do próprio conceito de D. como ser necessário: com efeito, o ser necessário
existe por essência ou por natureza, isto é, por definição. Contudo, essa prova é repetida com freqüência
na filosofia moderna: Lotze, p. ex., repete-a nos mesmos termos de Anselmo {Mikrokosmus, III, 2
a ed., p.
557).
8
g
Muito semelhante à precedente, porém mais antiga, é a prova extraída da simples presença da idéia de
D. no homem. Consiste em julgar impossível explicar essa presença de outro modo que não pela
produção de D. mesmo, que por isso deve ser considerado existente. Assim raciocinavam Justino
{Apologia sec, 6), Tertuliano {De testimonio animae, 5) e João Damasceno {Defide orth., I, 1). E a essa
tradição pertence uma das provas cartesianas da existência de D., mais precisamente a de que o autor da
idéia de D. deve possuir pelo menos a mesma perfeição que é representada nessa idéia, e assim não pode
ser outro senão D. mesmo {Discours, IV, Méd., II; Secondes Repouses, pro. 3). Uma forma abreviada
dessa prova (ou da anterior) consiste em julgar a proposição "D. existe" como conhecida de per si, ou
seja, conhecida com base nos próprios termos que a compõem. E o que faz, p. ex., Duns Scot {Op. Ox., I,
d. 2, q. 2, n. 3) em polêmica com S. Tomás. Stuart Mill, que chama essa prova de "argumento da
consciência", julga-a inaceitável por "negar ao homem um de seus atributos mais familiares e preciosos, o
de idealizar ou, como se diz, de construir com os materiais da experiência uma concepção mais perfeita
que a contida na experiência" {Three Essays on Religion, 1875, com título Theism, 1957, p. 24).
9
a
A prova moral é acompanhada, via de regra, por certo ceticismo quanto à validade das demonstrações
racionais. Consiste em mostrar que a existência de D. é uma exigência da vida moral, no sentido de que é
conveniente ou necessário ao homem crer em D. Mas o adjetivo "moral" aqui não indica só a esfera à
qual pertence a prova, mas também uma limitação da validade da prova para essa esfera. Uma prova
moral de D. é a Aposta de Pascal. Segundo Pascal, não se pode adiar o problema de D. e permanecer
neutro diante de suas soluções. O homem deve escolher entre viver como seD. existisse ou viver
comoseU. não existisse; se a
DEUS, PROVAS DE
265
DEVER
razão não pode ajudá-lo nessa escolha, que ele considere qual é a escolha mais conveniente como se
estivesse diante de um jogo ou de uma aposta em que é preciso considerar, por um lado, o lance e, por
outro, a perda ou a vitória eventual. Ora, quem aposta na existência de D., se ganhar, ganhará tudo; se
perder, nada perderá: portanto, é preciso apostar sem hesitação. A aposta já é razoável quando se trata de
um ganho finito e pouco superior ao lance, quanto mais se o ganho é infinitamente superior ao lance.
Nem é preciso dizer que a distância infinita entre a certeza daquilo que se aposta e a incerteza daquilo que
se pode ganhar equipara o bem finito, que certamente se arrisca, ao infinito, que é incerto. Todo jogador
arrisca a certeza para ganhar a incerteza e arrisca o finito certo para ganhar o infinito incerto sem pecar
contra a razão. Num jogo em que houver iguais probabilidades de vencer ou de perder, arriscar o finito
para ganhar o infinito é, obviamente, da maior conveniência {Pensées, 233). Essa aposta parece falar mais
a língua das mesas de jogo que a da vida moral, mas é preciso observar que Pascal a utiliza unicamente
para combater a impotência de crer produzida pelas paixões, e que o resultado dessa prova deveria ser o
de "concorrer para convencer, não por aumentar as provas da existência de D., mas por diminuir as
paixões". De qualquer forma, é óbvio que semelhante prova só tem validade moral em face do
comportamento humano: não tem validade teórica. Esse mesmo caráter é absorvido na prova moral da
existência de D. formulada por Kant: para ele, D. é um postulado da vida moral: sua existência é requisito
para a realização do bem supremo, da união de virtude e felicidade, que não se verifica na atuação das leis
naturais. "O bem supremo no mundo só é possível se admitirmos um Ser Supremo cuja causalidade se
conforma à intenção moral... Logo, a causa suprema da natureza, porquanto pressuposta para o bem
supremo, é um Ser que, mediante o intelecto e a vontade, é causa (portanto, autor) da natureza, ou seja, é
D." {Crít. R. Pratica, I, 1. II, cap. 2, seç. 5). Essa prova, que Kant extraiu das famosas considerações do
vigário saboiano, no IV livro de Émile de Rousseau, foi muitas vezes retomada na filosofia
contemporânea. Outra forma da prova moral é a apresentada por James, que reformulou a aposta de
Pascal {The Will to Believe, cap. I), reafirmando a utilidade e a conveniência da crença em D. com vistas
a uma
vida moral ativa e confiante. Nesse aspecto, D. é "objeto mais adequado do nosso espírito". Num universo
sem D., a ação moral parece destinada ao insucesso; por outro lado, a ação moral e a fé em D. podem
contribuir para reforçar a existência do mundo invisível. "D. pode tirar força vital e acréscimo de ser da
nossa fidelidade" {Essays on Faith and Morais, p. 30).
10° Há, por fim, uma prova formulada de vários modos, que parte de alguns tipos de experiência imediata
e privilegiada, interpretados como relação direta com D. Diz Fílon: "Mas há uma inteligência mais
perfeita e mais purificada, iniciada nos grandes mistérios, que conhece a Causa, não a partir de seus
efeitos, assim como se conhece o objeto imóvel a partir de sua sombra, mas que transcendeu o efeito e
recebe a aparição clara do ser não gerado de tal modo que o compreende em si mesmo e por si mesmo e
não em sua sombra, que é a razão e o mundo" {Ali. leg., III, 100). Plotino e os místicos admitem essa
forma de experiência direta de D.; segundo Bergson, ela é a única prova possível da existência de D. A
concordância entre os místicos, não só cristãos mas também pertencentes a outras religiões, é "o sinal da
identidade de intuição que pode ser explicada do modo mais simples como a existência real do ser com o
qual acreditam estar em comunicação" {Deux sources, p. 265). De forma atenuada, esse argumento pode
ser repetido no que se refere à busca pura e simples de D.: a própria busca, na variedade dos seus
procedimentos e resultados, pode ser uma prova intrínseca da existência, sem que seja, porém, definível
ou determinável de modo acabado aquilo que se busca (PAUL WEISS, em Science, Philosophy and
Religion, Nova York, 1941, I, pp. 413 ss.). É o que já Pascal dizia: "É prova de D. não só o desvelo dos
que o procuram como também a cegueira dos que não o procuram" {Pensées, 200).
DEVER (gr. TO KOtGfjKOV; lat. Officium-, in. Duty-, fr. Devoir, ai. Pflicht; it. Doveré). Ação segundo
uma ordem racional ou uma norma. Em seu primeiro significado, essa noção teve origem com os estóicos,
para os quais é D. qualquer ação ou comportamento, do homem ou das plantas e animais, que se
conforme à ordem racional do todo. "Chamam de dever", diz Diógenes Laércio (VII, 107-09), "aquilo
cuja escolha pode ser racionalmente justificada... Entre as ações realizadas por instinto, algumas
DEVER
266
DEVER
o são de D., outras contrárias ao D., algumas não estão ligadas a ele nem dele desligadas. De dever são as
ações que a razão aconselha a cumprir, como honrar os pais, os irmãos, a pátria e estar de acordo com os
amigos. Contra o D. são as que a razão aconselha a não fazer, como negligenciar os pais, não cuidar dos
irmãos, não estar de acordo com os amigos etc. Não são de dever nem a ele contrárias as ações que a
razão não aconselha nem proíbe, como levantar um graveto, segurar uma pena, uma escova, etc." A
conformidade com a ordem racional (que é, de resto, o destino, a providência ou Deus) é aquilo que,
segundo os estóicos, constitui o caráter próprio do dever. Os estóicos distinguiam, como relata Cícero, o
D. "reto", que é perfeito e absoluto, e não pode encontrar-se em ninguém senão no sábio, e os D.
"intermediários", que são comus a todos e muitas vezes realizados graças apenas à boa índole e a certa
instrução (De off., III, 14).
A doutrina do D., como se vê, na origem pertence a uma ética fundada na norma do "viver segundo a
natureza", que é, de resto, a norma de conformar-se à ordem racional do todo. Portanto, não surgiu da
ética aristotélica, que é inteiramente fundada no desejo natural de felicidade e faz referência à ordem
racional do todo. A ética medieval, que, por sua vez, toma como modelo a ética aristotélica, também
ignora a teoria do D. e concentra-se na teoria das virtudes, dos hábitos racionais adequados à consecução
da felicidade e da bem-aven-turança ultraterrena. O conceito de D. volta a predominar só na ética
kantiana, que é uma ética da normatividade. Ela modifica o conceito estóico de D. como conformidade à
ordem racional do todo, transformando-o em conformidade com a lei da razão. Para Kant, D. é a ação
cumprida unicamente em vista da lei e por respeito à lei: por isso, é a única ação racional autêntica,
determinada exclusivamente pela forma universal da razão. Diz Kant: "Uma ação realizada por D. tem
seu valor moral não no fim que deve ser alcançado por ela, mas na máxima que a determina; ela não
depende, portanto, da realidade do objeto da ação, mas somente do princípio da vontade segundo o qual
essa ação foi determinada, sem relação com nenhum objeto da faculdade de desejar." Em outros termos,
"o D. é a necessidade de realizar uma ação unicamente por respeito à lei", indicando a palavra "respeito" a
atitude que não leva em conta quaisquer inclinações naturais (Grundlegung zurMet. derSitten, 2). Nesse sentido, Kant chama de D. a ação "objetivamente prática",
ou seja, a ação na qual coincidem a máxima segundo a qual a vontade se determina e a lei moral. "Nisso
consiste a diferença entre a consciência de ter agido em conformidade com o D. e a de ter agido por D.,
ou seja, por respeito à lei." A ação conforme à lei mas não realizada por respeito à lei é a ação legal; a
realizada por respeito à lei é a ação moral. Portanto, moralidade e D. coincidem (Crít. R. Prática, I, 1,
cap. 3). A doutrina kantiana do D. foi transformada por Fichte numa verdadeira metafísica. "A única base
sólida de todo o meu conhecimento", disse ele, "é o meu dever. É ele o inteligível em si que, mediante as
leis da representação sensível, transforma-se em mundo sensível" (Sittenlehre, § 15, em Werke, IV, p.
172). Isso no sentido de que o próprio mundo sensível outra função não teria que a de fornecer à atividade
moral os limites ou os obstáculos, na luta contra os quais tal atividade teria meios de desempenhar sua
função de libertação.
Na ética contemporânea, a doutrina do D. continua ligada à da ordem racional necessária, ou norma (ou
conjunto de normas) apta a dirigir o comportamento humano. Isso significa que sempre que o fundamento
da ética for a felicidade, individual ou coletiva, a perfeição ou o progresso da vida individual ou coletiva,
não haverá lugar para a noção de D. No século passado Bentham opunha-se ao D. em nome de uma ética
fundada exclusivamente no interesse, julgando inútil e sem sentido o apelo ao D. (.Deontology, 1834,1,1).
No nosso século, Bergson também se opôs ao D. em nome de uma ética do amor. Para Bergson, o D., ou
"obrigação moral", não passa de hábito de comportamento dos membros de um grupo social. Esses
hábitos podem variar, mas seu conjunto, ou seja, o hábito de adquirir hábitos, tem a mesma intensidade e
regularidade de um instinto (Deux sources, p. 21). Essa é a ética da sociedade fechada, mas também há a
ética "absoluta" da sociedade aberta, que diz respeito a toda a humanidade e é a que dá continuidade e faz
progredir o esforço criador da vida, tendendo a uma forma de sociedade aperfeiçoada pelo amor. — Entre
a persistência com novas roupagens da ética clássica da felicidade, o ressurgimento de éticas misticizantes
como a de Bergson, e as tentativas de reduzir a ética a um conjunto de desejos não elaborados ou de pre-
DEVER-SER
267
DEVER-SER
ferências sem motivo, a doutrina do D., que transformava Kant em poeta ("Dever! Nome sublime e
grande que nada contém de agradável que possa adular, mas desejas a submissão; que todavia não
ameaças nada etc", Crit. R. Prática, I, 1, cap. 3), perdeu quase todo o prestígio, sem todavia ser
substituída por algo de mais racional.
DEVER-SER (gr. TO 8éov; in. Oughtness; fr. Devoirêtre, ai. Sollen-, it. Dover esseré). O possível
normativo: aquilo que é bom que aconteça ou que se pode prever ou exigir com base em uma norma.
Platão dizia que, se é verdadeira a doutrina de Anaxágoras, de uma Inteligência que ordena o mundo do
melhor modo, então "o bem e o dever-ser sustentam e agregam todas as coisas" (Fed., 99c). Na filosofia
moderna, essa noção foi ilustrada por Kant, que diz: "O D.-ser exprime uma espécie de necessidade e uma
relação com princípios que não se verificam absolutamente na natureza. Nesta, o intelecto pode conhecer
só o que é, foi ou será. É impossível que alguma coisa deva ser diferente do que foi de fato em suas
relações temporais. Quando se observa o curso da natureza, o D.-ser não tem o menor significado. Não
podemos perguntar o que deve acontecer na natureza, assim como não podemos procurar saber que
propriedades deve ter o círculo, mas apenas o que acontece nela, ou quais propriedades este possui. O D.-
ser exprime uma ação possível, cujo princípio é apenas um conceito, ao passo que o princípio de uma
ação natural só pode ser um fenômeno. É verdade que a ação deve ser possível nas condições naturais se
o D.-ser visar a elas; mas tais condições não atingem a determinação do arbítrio, mas apenas o efeito e a
conseqüência dela no fenômeno" (Crít. R. Pura, Dial., cap. II, seç. 9, § 3). Essas determinações de Kant
deixam claro que a esfera do D.-ser é a ação humana: o D.-ser, que não tem sentido no mundo natural, é o
princípio do mundo humano. Mas esse reconhecimento eqüivale a admitir que, no mundo humano, a
distinção entre o que acontece de fato e o que se poderia esperar que acontecesse, a partir das normas que
o regulam, deve manter-se constante. Onde é reconhecido ou introduzido o D.-ser obviamente é
reconhecida e introduzida a sua diferença possível em relação ao ser de fato, bem como a possibilidade de
julgar este em relação àquele. Assim se explica por que Hegel, que põe como princípio de sua filosofia a
identidade entre real e racional, nega
qualquer função ao D.-ser e considera-o mero fantasma. "À realidade do racional", diz ele, "contrapõe-se,
de um lado, a visão de que as idéias e os ideais são apenas quimeras e que a filosofia é um sistema desses
fantasmas cerebrais, e, de outro, a visão de que as idéias e os ideais são algo excelente demais para ter
realidade ou impotente demais para atingi-la. Mas a separação entre realidade e idéia é muito apreciada
pelo intelecto, que considera verazes os sonhos de suas abstrações e tem muito orgulho de seu D.-ser, que
apregoa de bom-grado até mesmo no campo político, como se o mundo houvesse esperado esses ditames
para aprender como deve ser e não é: pois se fosse como deve ser, aonde iria parar o pedantismo desse D.-
ser?" {Ene, § 6). As obras de Hegel demoram-se muitas vezes em observações irônicas e sarcásticas sobre
o dever-ser que não é, sobre o ideal que não é real, sobre a razão que se supõe impotente para realizar-se
no mundo. Segundo ele, a filosofia não tem a tarefa de considerar o que deve ser, mas o que é "real e
presente" {Ibid., % 38). É como a coruja de Minerva, que começa a voar no crepúsculo, ou seja, chega
sempre tarde demais, quando a realidade já cumpriu o seu processo de formação e está pronta {Fil. do
dir., Pref.). Em outras palavras, não cabe à filosofia outra tarefa senão reconhecer, justificar e exaltar
como "racionalidade absoluta" o fato consumado. Trata-se, em substância, de uma recusa da filosofia de
inserir-se na realidade e de valer como sua força modificadora e diretiva. Essa recusa foi típica da
filosofia romântica, que, segundo expressão do próprio Hegel, quis "estar em paz com a realidade" e
abdicou da tarefa assumida pela filosofia do Iluminismo, de transformar a realidade.
A atitude em face do D.-ser é, portanto, a pedra de toque das filosofias contemporâneas, porque revela se
elas se orientam segundo a tradição iluminista, clássica e renascentista, ou segundo a tradição romântica,
helenística e medieval. Mas é necessário lembrar que nem sempre a importância predominante atribuída à
noção de D.-ser é sinal do caráter clássico-iluminista de uma filosofia. A chamada filosofia dos valores do
século passado, que conta entre seus representantes principais com Windelband e Rickert, fez do deverser o centro da sua especulação, mas o transformou em uma realidade suigeneris, o valor (v.) ou sua
consciência, considerada independente de suas manifestações
DEVIR ou V1R-A-SER
268
DIACRÔNICO/SINCRÔNICO
empíricas; por isso, foi substancialmente infiel à noção kantiana do dever-ser, em que declarava inspirarse. De modo análogo, a interpretação que Nicolau Hartmann faz do D.-ser eqüivale à sua negação. O D.-
ser, segundo Hartmann, só prescreve a realização daquilo que pode e deve necessariamente realizar-se,
quando nada falta às condições de sua realização; por isso, é a própria possibilidade real, que é sempre
uma efetividade, ainda que não pareça. (Môglichkeit und Wirklichkeit, p. 266). Por outro lado, a noção de
D.-ser foi posta como base do positivismo jurídico, por Hans Kelsen. Diz Kelsen: "O D.-ser exprime o
sentido específico no qual o comportamento humano é determinado por uma norma. Tudo o que podemos
fazer para descrever tal sentido é declarar que ele difere do sentido pelo qual dizemos que um indivíduo
se comporta efetivamente de certa forma e que algo acontece ou existe efetivamente" (.General Theory
ofLaw and State, 1945,1,1, C, a, 5; trad. it., p. 36). Kelsen, todavia, reconhece que a tensão entre norma e
existência não deve ser superior a certo máximo, nem inferior a certo mínimo: a conduta efetiva não deve
coincidir completamente com a norma que a regula nem discrepar completamente dela ilbid., Apêndice,
IV, B, c; p. 444) (v. NORMA).
DEVIR ou VIR-A-SER (gr. TíyveoGat; lat. Fieri; in. Becoming; fr. Devenir, ai. Werdent; it. Diveniré). 1.
O mesmo que mudança (v. MOVIMENTO).
2. Uma forma particular de mudança, a mudança absoluta ou substancial que vai do nada ao ser ou do ser
ao nada. Esse é o conceito de Aristóteles e Hegel. Aristóteles afirmava: "Diz-se D. em muitos sentidos: ao
lado daquilo que vem a ser absolutamente (ÔOTÀWÇ), há aquilo que vem a ser isto ou aquilo. O D.
absoluto é só das substâncias: as outras coisas que vêm a ser precisam necessariamente de um sujeito, já
que a quantidade, a qualidade, a relação, o tempo e o lugar vêm a ser só em referência a certo sujeito; e
enquanto a substância não pode ser atribuída como predicado a nenhuma outra coisa, todas as outras
coisas podem ser atribuídas como predicado a uma substância" (Fts., I, 7, 190 a 30). Portanto, para
Aristóteles, os princípios do D. são os opostos, entre os quais está o D., e a privação de um deles, já visto
que "pode dizer que nada vem absolutamente do nada, mas aquilo que vem a ser, vem a ser do não-ser
acidental ou relativo, ou seja, da privação daquilo que é o termo do D." (Jbid, I, 8, 191, b 12).
Conceito não muito diferente foi expresso por Hegel ao dizer que o D. é a unidade do ser e do nada. "O
D.", disse Hegel, "é a verdadeira expressão do resultado de ser e nada, como unidade destes: não é só a
unidade do ser e do nada, mas é a inquietação em si" (Ene, § 88). Na grande Lógica, Hegel ilustrou e
defendeu longamente o significado dessa definição: "A verdadeira importância da proposição: 'nada vem
do nada, o nada é nada', está em sua oposição ao devir em geral e, portanto, também à criação do mundo a
partir do nada. Aqueles que se acaloram defendendo a proposição de que o nada é o nada, não se
apercebem de que nisso coincidem com o panteísmo abstrato dos eleatas e substancialmente também com
o spinozismo. A visão filosófica para a qual vale o princípio de que o ser é somente ser e o nada somente
nada merece o nome de sistemas de identidade. Essa identidade abstrata é a essência do panteísmo"
(Wissenschaft der Logik, I, livro I, seç. I, cap. I, C; trad. it., p. 76). Na verdade, o "nada" de Aristóteles é,
com efeito, um nada privativo que, assim como a privação aristotélica, está na constituição do devir.
Portanto, todas as discussões a que a definição hegeliana do D. deu origem entre os hegelianos (e também
entre os não he-gelianos) parecem hoje completamente ociosas.
DEVOÇÃO (in. Devotion, fr. Dévotion; ai. Andacht, it. Devozioné). Segundo Kant, "a disposição de
espíritos que nos torna capazes de sentimentos de dedicação para com Deus", e que se obtém mediante as
práticas do culto (expiações, mortificações, peregrinações, etc). Atribuir a essa disposição o mesmo valor
de sentimento de dedicação a Deus é, segundo Kant, a ilusão religiosa, que confunde os meios com o fim
e dá ao meio um valor final (Re-ligion, IV, 2, § 1). Essa ilusão por sua vez é a base do falso culto a Deus,
visto que o único culto verdadeiro é a boa conduta moral. O conceito de D. como atitude que, embora
vinculada à religião, não é a autenticamente religiosa, foi fixado pelas observações de Kant. Hegel viu na
D. uma das manifestações da consciência infeliz. "O seu pensar, como D., permanece como um vago
tilintar de sinos ou como nebulosidade cálida, um pensar musical que não chega ao conceito, único e
imanente modo objetivo" (Phãnomen. des Geistes, I, IV, 1).
DIACRÔNICO/SINCRÔNICO (fr. Diachro-nique, synchronique, in. Diachronic, synchro-nic; ai.
Diachronik, synchronik,.\t. Diacronico, sincronicó). Termos introduzidos por Ferdinand
DÍADE
269
DIALÉTICA
de Saussure na lingüística, usados depois em outros campos, especialmente na antropologia cultural.
Designam o eixo da simultanei-dade [sincrônico], do qual se exclui qualquer intervenção de tempo, e o
eixo das sucessões [diacrônico], no qual é possível considerar apenas uma coisa por vez, mas onde estão
situadas todas as coisas do primeiro eixo com suas mudanças {Coursdelinguístiquegénérale, 1922, p.
115). A dimensão S. constitui o sistema ou estrutura (v.) de uma língua, sistema este composto por
elementos lexicais, gramaticais e fonológicos que têm entre si relações definidas. A dimensão D. é o
conjunto de variações sofridas por um sistema lingüístico sob a ação de eventos que não só lhe são
estranhos como também não constituem um sistema.
Essa distinção foi aceita pela lingüística es-truturalista (Trubetzkoy, Jakobson, v. ESTRUTU-RALISMO) e
por Lévy-Strauss, que fez a distinção entre dimensão D. e história, considerando o tempo de que fala esta
última irreversível ou "estatístico", enquanto a dimensão D. considera o tempo como reversível e não
cumulativo {Anthropologie structurale, 1958, p. 314).
DÍADE (gr. 5i)Ó<ç; lat. Dualitas; in. Dyad; fr. Dyade, ai. Dyas; it. Diadê). Segundo os pita-góricos, é "o
princípio da diversidade e da desigualdade, de tudo o que é divisível e mutável e ora está de um modo,
ora de outro" (PORFÍRIO, VitaPith., 52). Contrapõe-se à mônada, que é o princípio da unidade, do ser
idêntico e igual. Nesse sentido, Aristóteles diz que "o número é derivado da mônada e da D. indefinida"
{Met., XIII, 7, 1081 a 14): frase citada por Plotino e interpretada no sentido de que a D. é a Inteligência
(Nous) porque esta manifesta uma composição na multiplicidade dos seus objetos e na cisão entre o que
pensa e o que é pensado {Enn., V, 4, 2). Em sentido análogo, Fílon dissera que "a D. é a imagem da
matéria, dividida e fracionada como ela" {Ali. leg., I, 3; cf. DIÓG. L., VII, 25). No Renascimento essa
noção foi retomada em sentido mais genérico. Em De monade Giordano Bruno diz que do Uno brota a D.
assim como do fluxo do ponto brota a linha; a D. constitui a estrutura de aspectos fundamentais do
universo (essência e ser, matéria e forma, potência e ato, etc). Com significado análogo, esse termo foi
usado por Schelling (Werke, I, X, p. 263).
DIÁDICO (in. Dyadic). Esse adjetivo é usado comumente na lógica contemporânea, mas sem referência
ao significado do substantivo
correspondente. Uma relação D. é um fato relativo a dois indivíduos. P. ex., o fato de a ser semelhante a
b, de a ser amante de b, ou de a e b serem ambos homens constitui uma relação, ao passo que o fato de
«dar èac constitui uma relação triádica (cf. PEIRCE, Coll. Pap., 3, 625). DIALELO. V. CÍRCULO.
DIALÉTICA (gr. ôiatetctucíi Tixvr|; lat. Dia-lectica, in. Dialectic, fr. Dialectique, ai. Dialektik; it.
Dialetticà). Esse termo, que deriva de diálogo, não foi empregado, na história da filosofia, com
significado unívoco, que possa ser determinado e esclarecido uma vez por todas; recebeu significados
diferentes, com diversas inter-relações, não sendo redutíveis uns aos outros ou a um significado comum.
Todavia, é possível distinguir quatro significados fundamentais: I
a
D. como método da divisão; 2g
D.
como lógica do provável; 3a
D. como lógica; 4a
D~ como síntese dos opostos. Esses quatro concei tos têm
origem nas quatro doutrinas que mais influenciaram a história desse termo, mais precisamente a doutrina
platônica, a aristotélica, a estóica e a hegeliana. Com base na documentação histórica correspondente, é
possível chegar a uma caracterização bastante genérica da D., que de algum modo resuma todas as outras.
Pode-se dizer, p. ex., que a D. é o processo em que há um adversário a ser combatido ou uma tese a ser
refutada, e que supõe, portanto, dois protagonistas ou duas teses em conflito; ou então que é um processo
resultante do conflito ou da oposição entre dois princípios, dois momentos ou duas atividades quaisquer.
Mas trata-se, como se vê, de uma caracterização tão genérica que não teria nenhum significado histórico
ou orientador. O problema histórico é mais de iden-tificar claramenltê~os~sTg7nnHcíõs*yindamentais e
as múltiplas e díspares relações que ocorrem entre eles (cf. Studi sulla Dialetticà, de vários autores, em
Rivista di Filosofia, 1958, n. 2).
I
a D. como método de divisão. Este foi o conceito de Platão. Para ele, a D. é a técnica da investigação
conjunta, feita através da colaboração de duas ou mais pessoas, segundo o procedimento socrático de
perguntar e responder^ De fato, para Platão, a filosofia era tarefa índivi-dual e privada, mas obra de
homens que "vivem juntamente" e "discutem com benevolência"; é a atividade própria de "uma
comunidade da educação livre" {Leis, VII, 344 b). A D. é o ponto mais alto a que pode chegar a
investigação conjunta e compõe-se de dois momentos: a) O primeiro consiste em remeter as coisas
DIALÉTICA
270
DIALÉTICA
dispersas para uma idéia única e em definir essa" idéia de taTfnodo que possa ser comunicada a todos
{Fed., 265 c). Em República, Platão diz qüè, ao remõntlrXidéia, a D. situa-se além das ciências
particulares porque considera as hipóteses das ciências (que sempre fazem referência ao múltiplo
sensível) como simples ponto de partida para chegar aos princípios, dos quais depois se pode chegar às
conclusões últimas (Rep., VI, 511 b-c). Mas esse segundo procedimento que vai dos princípios (por meio
das idéias) às conclusões últimas, nos diálogos posteriores, é analisado, explicitamente,
OTmo^3jiiéjo^lo_dj_djvisão. tí) O procedimento da divisão consiste "em poder dividir de novo a idéia
em suas espécies, seguindo suas interações naturais e evitando fragmentar suas partes como faria um
trinchador canhes-tro" (Fed., 265 d). Nesse aspecto, é próprio da D. "dividir segundo~géneros~e~não
assümirTõ-" mo diferente a mSifiã"tofmà7õu como idêntica umrfbrma.diferente" (Sof, 253 d). Num
trecho Tãmosò de Õ Sofista, Platão enumera as três alternativas fundamentais que o procedimento D.
pode deparar: le
que uma única idéia permeie e abarque muitas outras, que no entanto permanecem
separadas dela e exteriores umas às outras; 2B
que uma única idéia reduza à unidade muitas outras idéias,
na sua totalidade; 3Q que muitas idéias permaneçam inteiramente distintas entre si (Sof, 253 d). Essas três
alternativas apresentam dois casos extremos, o da unidade de muitas idéias em uma delas e o de sua
heterogeneidade radical, e um caso intermediário, em que uma idéia que abrange outras sem fundi-las
numa unidade.
A D. consiste em reconhecer, nas situações que se apresentam, qual dessas possibilidades é a apropriada
em proceder coerentemente. Se observarmos o modo como Platão aplicou o procedimento em Fedro, O
Sofista e O Político, chegaremos a outros esclarecimentos. Uma vez definida a idéia, Platão divide-a em
duas partes que chama, respectivamente, de lado esquerdo e lado direito, caracterizadas pela presença e
pela ausência de certo caráter; depois, divide o lado direito da divisão, em duas outras partes, que também
serão chamadas de esquerda e direita, utilizando um novo caráter; e assim por diante (Fed., 266 a-b). Esse
procedimento pode deter-se em certo ponto ou ser retomado a partir de outra idéia. Enfim, será possível
reunir ou recapitular as determinações assim obtidas do princípio ao fim (5o/, 268 c). Esse é o
procedimento que Platão utiliza em Fedro para definir o amor como "mania", dividindo depois a mania
em má (esquerda) e boa (direita) e procurando ainda as determinações da boa mania. Em O Sofista, esse
mesmo procedimento serve para definir a figura sofista. A característica desse procedimento é a
possibilidade de escolha (em cada passo) da característica capaz de determinar a divisão oportuna em
direita e esquerda, ou seja, de tal modo que a linha de articulação do conceito seja seguida, e não
"cortada". Logo, a D. platônica não é um método dedutivo ou analítico, mas indutivo e sintético, mais
semelhante aos procedimentos da pesquisa empírica (não obstante a pretensão platônica de que ele
prescinda dos "sentidos") do que aos procedimentos do raciocínio a priori ou do silogismo. O que
Aristóteles reprova no método da divisão, ou seja, o fato de não ter a capacidade dedutiva do silogismo
(An.pr., I, 31,46 a 31 ss.), não é propriamente uma crítica, porque o método de Platão não tem essa
pretensão. Certamente, a partir de "o homem é um animal" e da divisão seguinte "o animal é mortal ou
imortal" não se segue que "o homem é mortal", mas só que "o homem é mortal ou imortal", mas o
objetivo da divisão D. não é essa dedução, mas a busca, a escolha e o uso das caracteísticas efetivas de
um objeto, com o fim de esclarecer a natureza, ou melhor, as possibilidades (ôwáuEiç) desse objeto. O
conceito platônico de D. não teve seguidores diretos, embora sejam evidentes as conexões entre ele e as
noções de D. elaboradas por Aristóteles, pelos estóicos e pelos neoplatônicos. Entre estas, Plotino marca a
passagem da concepção platônica da D. à metafísica triádica de Proclo. Diz ele que a D. "utiliza o método
platônico da divisão para distinguir as espécies de um gênero, para defini-las e para chegar aos gêneros
primeiros; com o pensamento faz combinações complexas desses gêneros, até percorrer todo o domínio
do inteligível; depois, por caminho inverso, da análise, volta ao princípio" (Enn., I, 3, 4). Aqui o método
platônico da divisão, que para Platão é o segundo momento da D., tornou-se o primeiro e a ele foi
acrescentado, como segundo momento, "o retorno ao princípio", ou seja, à Unidade, acenando assim para
aquele que será o esquema de Proclo.
2° D. corno^Jógica do provável. Para Aristóteles, a D. é simplesmente o procedimento racional não
demonstrativo; dialético é o silogismo que, em vez de partir de premissas ver-
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271
DIALÉTICA
dadeiras, parte de premissas prováveis, geralmente admitidas. "Provável", diz Aristóteles, "é o que parece
aceitável a tocíõs, à maioria ou aos sábios, e, entre estes, a todos, à maioria ou aos mais notáveis e
ilustres" (Top., 1,1,100 b 23 ss.). Por extensão, Aristóteles chama de dialético também o silogismo
erístico, que parte-de premissas que parecem~prõva.veis, mas não são (Jbíd., 100 b 23 ss.). Por esse
conceito, Aristóteles atribuía a invenção da D. a Zenão de Eléia (DIÓG. L., VIII, 57), que, em refutação
do movimento, parte da tese provável, ou seja, aceita pela maioria, de que o movimento existe. O motivo
do uso do termo "L>." nesse sentido é explicado pelo próprio Aristóteles, dizendo que, 'tenquanfO a
premissa demonstrativa e a assunção" de umã~da"5""ciuas~pãrtes da contradição, apre-missaJD. é a
peFgunta que apresenta a rontrpj dição como alternativa" (An. pr., I, 1, 24 a 20 ss^7^~ã^s]HTãz_
certa
referência ao diálogo. Essa noção de D., que permanece secundária e às vezes esquecida no primeiro
período da Escolástica (na qual prevalece o conceito es-tóico da D. como lógica), é retomada, embora
sem eliminar a outra, a partir do séc. XII, quando um conhecimento mais completo do Organon de
Aristóteles, mais especialmente dos Tópicos e dos Elencos sofisticos, chama a atenção para a D.,
entendida como arte da discussão e da exercitação lógica: arte que se vale de premis-sas prováveis e é,
portanto, D. no sentido aristotélico do termo. Esse significado, portanto, é admitido e ilustrado mesmo por
aqueles que continuam a considerar a D. como lógica geral ou ciência das ciências (como p. ex. PEDRO
HISPANO, Summ. log., 7, 41). Foi somente João de Salisbury que tendeu a restringir o significado de D. à
"ciência das coisas prováveis". Mas justamente nesse significado ele descobre novas aplicações da D.
(para ele inútil se não se unir a outras disciplinas), pois, dada a dificuldade de obter conhecimentos
necessários no domínio das coisas naturais, as premissas prováveis serão as únicas a que se poderá
recorrer: e elas são próprias da D. (Metalogicon, II, 13). Dante parece referir-se a uma concepção análoga
quando compara a D. a Mercúrio, o menor e o mais oculto dos planetas; com efeito, "a D. tem corpo
menor do que qualquer outra ciência; é perfeitamente compilada e acabada no que de texto se encontra na
Arte velha e na 'nova; é mais velada do que qualquer outra ciência porquanto procede com argumentos
mais sofisticos e prováveis do que qualquer outra"
(.Convívio, II, 14). À concepção da D. como "arte da discussão" reportam-se, via de regra, os humanistas
a partir de Lorenzo Valia (Dia-lecticaedisputationes, II, Prol. 693): aproximam-se, pois, da retórica, com
a qual Nizolio a identifica explicitamente (De veris principiis, II, 5). Por outro lado, Pedro Ramus
acentuava na D. o aspecto inventivo que os antigos já tinham reconhecido na Tópica e nela via a arte da
invenção e, portanto, "a própria luz da razão" (Dialecti-que, 1555, p. 1, 69-119). Mas oscilando entre a
retórica e a doutrina da invenção, a D. manti-nha-se no âmbito da noção aristotélica.
Todavia, a mais notável recorrência histórica dessa noção só deveria ocorrer com Kant; este partia,
exatamente como Aristóteles, da desvalorização preliminar da D. como instrumento de conhecimento.
Para Kant, a D. é uma "lógi-ca da aparência". Isso significa que ela é "uma ilusão natural e inevitável, que
se funda em princípios subjetivos e os toma por objetivos", mas que está "inseparavelmente ligada à razão
humana, permanecendo mesmo depois de descoberta a sua raiz" (Crít. R. Pura, Dialética transcendental,
Intr., I). Objeto da D. são as três idéias de Alma, Mundo e Deus: delas, a primeira é fruto de um
paralogismo, a segunda mostra sua ilegitimidade ao dar lugar a antinomias insolúveis, a
tercearajMndejrionstravel. Obvia-mente, o significado kantiano de D. identifica-se com o segundo dos
dois significados do termo distinguidos por Aristóteles, ou seja, com aquele segundo o qual a D. é o
procedimento sofistico. O próprio Kant estabelece essa conexão: "Embora tenham sido vários os
significados com que os antigos usaram essa denominação de ciência ou de arte, pode-se deduzir com
segurança do uso que dela fizeram que a D. para eles nada mais era que a lógica da aparência, a arte
sofistica de dar à ignorância, aliás, às ilusões voluntárias, laivos de verdade, imitando o método da
fundação que a lógica geral prescreve e servindo-se de sua tópica para colorir qualquer procedimento
vazio" (Ibid., Lógica transcendental, Intr., III; cf. Grundlegung zurMet. der Sitten, I). Por outro lado, a
esse mesmo conceito de D. liga-se a noção propriamente kantiana de D. transcendental como "crítica do
intelecto e da razão ao seu uso hiperfísico, a fim de tirar os véus da aparência falaz de suas infundada
presunções" (Crít. R. Pura, Lógica transcendental, Intr., § IV) ou, em outros termos, como um
kathartikon do intelecto (Logik, Intr., § II).
DIALÉTICA
272
DIALÉTICA
3
a D. como lógica. O terceiro conceito de D. deve-se aos estóicos, que a identificaram com a lógica em
geral ou, pelo menos, com a parte da lógica que não é retórica. Considerando a retórica como a ciência do
bem falar nos discursos que dizem respeito às "vias de saída", ao passo que a D. é a ciência do discutir
corretamente nos discursos que consistem em perguntas e respostas ( DIÓG. L., VII, 1, 42). Essa
identificação da D. com a lógica geral foi possibilitada pela transformação radical a que os estóicos
submeteram a teoria aristotélica do raciocínio. Como, para eles, a demonstração era "utilizar as coisas
mais compreensíveis para explicar as menos compreensíveis" (Ibid., VII, 1, 45), e como as coisas mais
compreensíveis eram as evidentes para os sentidos (Ibid., VII, 1, 46), as bases de qualquer demonstração
eram os raciocínios anapodíti ços (v.), que seapóiamdire; tamente na evidência sensível. L)e restoT~pãra
eles, o raciocínio em geral constava de premissa e conclusão; isso também é o silogismo (Ibid., VII, 1,
45). Sua teoria do raciocínio não permitia, pois, a distinção entre premissas necessariamente verdadeiras e
premissas prováveis em que, segundo Aristóteles, se fundava a distinção entre silogismo demonstrativo e
silogismo dialético. A D. identificou-se assim com a lógica, que, para eles, era uma teoria dos signos e das
coisas significadas e se definia como "ciência do verdadeiro e do falso, e do que não é nem verdadeiro
nem falso" (Ibid., VII, 1, 42). Por "aquilo que não é nem verdadeiro nem falso" entendiam (como resulta
do trecho de Cícero citado mais abaixo) a conexão da conclusão com a premissa, cujas condições de
verdade a D. estabelece.
Essa interpretação da lógica toda como D. não é um simples retorno à concepção platônica de D. Na
verdade, a lógica estóica, tão centrada nas deduções anapodíticas (do tipo "Se é dia, há luz"), não conhece
raciocínios que não partam de premissas hipotéticas, e as premissas hipotéticas são as que, mesmo para
Aristóteles, dão caráter dialético ao raciocínio. A doutrina estóica da D. foi a mais difundida na
Antigüidade e na Idade Média. Foi adotada por Cícero, que entendia por D. "a arte que ensina a dividir
uma coisa inteira em suas partes, a explicar uma coisa oculta com uma definição, a esclarecer uma coisa
obscura com uma interpretação, a entrever primeiro e a distinguir depois o que é ambíguo e, finalmente, a
obter uma regra com a qual se julgue o verdadeiro e o falso e se as
conseqüências derivam das premissas assumidas" (Brut., 41, 152; cf. também De or., II, 38, 157; Tusc, V,
25, 72; Acad., II, 28, 91; Top., 2, 6). Quintiliano (Inst. or., XII, 2, 13) e Sêneca (Ep., 1,1) aceitam esse
conceito da D., que se encontra igualmente na patrística oriental, p. ex. em Orígenes e Gregório de Nissa
(Dehominis opificio, 16), bem como na patrística latina, p. ex. em S. Agostinho (De ordine, 13, 38).
Através da tradição desses escritores e da obra de Boécio (Ad Cie. Top., I, P. L, 64a
, col. 1047) a noção da
D. como lógica geral, segundo o conceito es-tóico, persiste por toda a Idade Média, coexistindo com o
conceito mais restrito de D. como arte da discussão ou do raciocínio provável, mesmo quando esse
conceito se difunde nas escolas a partir do séc. XII como efeito do melhor conhecimento dos Tópicos e
dos Elencos sofísticos. Isidoro de Sevilha retomara o conceito estóico (Etymol., II, 22-24); o mesmo fez
Rábano Mauro, que repete as palavras de Agostinho: "A D. é a disciplina das disciplinas: ensina a ensinar,
ensina a aprender, e nela a própria razão manifesta o que é, o que quer, o que vê" (De clericorum
institutione, III, 20). Abelardo, por sua vez, defende a D. com as mesmas palavras de Agostinho (Ep., 13),
e Hugo de São Vítor considera-as segundo o modelo estóico, parte da lógica racional ao lado da retórica
(Didascalion, I, 12). Ainda no séc. XIII, Pedro Hispano dizia em Summulae logicales: "A D. é a arte das
artes e a ciência das ciências porque detém o caminho para chegar aos princípios de todos os métodos. Só
a D. pode discutir com probabilidade os princípios de todas as outras artes; por isso, no aprendizado das
ciências, a D. deve vir antes" (1.01).
Encontra-se analogia no conceito de San-tayana, de D. como "ciência ideal" ou formal, que compreende a
matemática e procura "esclarecer e desenvolver a essência do que descobrimos, com o foco nas
harmonias internas e nas implicações das formas que nossa atenção ou nossas metas definiram
inicialmente" (The Life of Reason, 19542
, p. 436).
4
a D. como síntese dos opostos. Oj^uartocofc ceito de D. é formulado pelo Idealismo româa-tiçQ, em
particular por Hegel; seu princípio foi apresentado pela primeira vez por Fichte em Doutrina da ciência,
de 1794, como "síntese dos opostos por meio da determinacãojgcípro-ca". Os opostos de que falava
Fichte eram o Eu e o Não-eu, e a conciliação era dada pela posição do Não-eu por parte do Eu e pela
determi-
DIALÉTICA
273
DIALÉTICA
nação que do Não-eu se reflete sobre o Eu, produzindo neste a representação (Wissens-chaftslehre, § 4,
E). Mas para Hegel a D. é "a própria natureza do pensamentõ^XZwcTS^üT visto ser a resolução
das^õãntradições em que se enreda a realidade finita, que como tal é objeto do intelecto. A D. é "a
resolução imanente na qual a unilatéralidade e a limitação das determinações intelectuais se expressam
como são, ou seja, como sua negação. Todo finito tem a cara^ejísjic^iiejsuprimir-se a si mesmo. A
D^xpjQStitui, pois, a alma do progresso científico e éjQ_único princípio através do qual a conexão
imanente e a necessidade entram no contêu^õ^ã^cjêncIáTnela também está, sobretudo, a elevação
verdadeira e não extrínseca acima do finito" Ubid, § 81). A D. coniste: 1B na colocação de um conceito
"abstrato e limitado"; 2- no suprimir-se desse conceito algo "finito" e na passagem para o seu oposto; 3S
na síntese das duas determinações precedentes, que conserva "o que há de afirmativo na sua solução e na
sua transposição". Hegel dá a esses três momentos os nomes, respectivamente, de intelectual, dialético e
especulativo ou positivo racional. Mas a D. não é só o segundo desses momentos: é mais o conjunto do
movimento, especialmente em seu resultado positivo e em sua realidade substancial. De fato, pela
identidade entre racional e real, a D. é não só ajgi do pensamento, mas a lei da realidade, e seus resultados
não são conceitos puros ou conceitos abstratos, mas "pensamentos concre-tos", ou seja, realidades
propriamente ditüs7ne~-cessárias, determinações ou categorias eternas. Toda a realidade move-se
dialeticamente e, portanto, a filosofia.hegeliana vê em. toda_parte Ü^iieijle_te^e^ar^te^e^e^ínteses, nas
quais a antítese representa a "negação", "o oposto" ou "outro" da tese, e a síntesej^nsütui a unidade e, ao
mesmo tempo, ajxrtifjcaçâo de ambas. Hegel viu os precedentes remotos dessa.D. em Jteáçjito e_Prpclo.
De fato, Heráclito não só concebeu o absoluto como "unidade clos_op_os; ips" como também concebeu
essa unidade como objetiva ou imanente ao objeto", ao contrário de Zenão, que considerou puramente
subjetivas ^SjõãntfãdíçoêsTsindopori espécie He Kant da ajntíguidáHe. "Em Tierá-clito", diz Hegel,
"encontramos pela primeira vez a idéia filosófica em sua forma especulativa... Aqui finalmente vemos
terra: não há proposição de Heráclito que eu não tenha acolhido na minha lógica" (Geschichte der Philosophie, ed. Glockner, I, p. 343). Por outro lado, Proclo foi quem descobriu o caráter triádico do
procedimento dialético, considerando-o como o derivar as coisas do Uno e_seu_rgtorno ao Uno. Segundo
Proclo, esse movimento duplo consta de três momentos: ls
a permanência imutável da Causa em si
mesma; 2- o provir do ser derivado que, pela sua semelhança com a causa, fica ligada a ela ao mesmo
tempo em que dela se afasta; 3Q
o retorno ou a conversão do ser derivado à sua causa originária (Inst.
theoL, 29-31). Desse modo, diz Hegel, Proclo "não se limita aos momentos abstratos da tríade, mas
considera as três determinações abstratas do absoluto, cada uma por si, como totalidade da tríade, obtendo
assim uma tríade real" (GeschichtederPhilosophie, ed. Glockner, III, pp. 73 ss. ).
Na filosofia moderna e contemporânea a palavra D. tem, na maioria das vezes, (^significado helegiano.
Por um lado, esse significado é conservado pelas numerosas ramificações do Idealismo romântico e por
outro é adotado por pontos de vista diferentes, mas que utilizam a noção em que este se baseia. Na
primeira direção, pode-se observar que a chamada "reforma" da D. hegeliana, de cuja autoria Gentile se
vangloriou,ToTsímplesmente a distinção entre a D. do "pensado", do objeto do pensamento, e a D. do "ato
pensante" da consciência ou do Espírito absoluto. Mas cada uma dessas D. dis-tinguidas por Gentile
configura-se como síntese dos opostos: síntese de opostas objetivi-dades objetivamente tais (D. do
pensador), síntese do eu e do não-eu (D. do pensante) CSpirito come atto puro, VIII, 6). Mas com isso
não se inova o conceito de D. Como também não se inova com a distinção, estabelecida por Croce, entre
o "nexo dos distintos" (isto é, entre as várias categorias do pensar, do agir e das suas formas) e a "D_.
dos_opostos^^ye seria a unidade e a oposição entre bglo e feio, vêlHãcleiro e falso, bem
elnãíTútileJnúüLjiq seicTckTcada forma espiritual (Lógica, I, cap. 6). Por outro lado, a noção de D foj
utilizada por Marx, Engels e seus discípulos no mesjno sentido atribuído por Hegel, mas sem o
significado idealista quê recebera" no sistema de Hegel. O que Marx censurava no conceito hegeliano era
que a D., para Hegeí, éconsciência e permanece na j^onscjência^jião alcaliçãn3ãIS!ãnçã]ja objeto, a
realidade, a natureza, j_não_.ser_no pensanjenlci £ corno pensamento. Segundo Marx toda a filosofia
hegeliana vive na "abstra-
DIALÉTICA
274
DIÁLOGO
çào" e _por isso não descreve a realidjide_ou_a história, mas sõ^Tnríãimagem abstrata desta que, por
fim, é colocada como suprema verdade no "Espírito absoluto" (.Manuscritos econô-mico-filosóficos, III;
trad. it., pp. 168 ss.). Marx_ afirmava, portanto, a exigência de fazer a D. passar da abstração à realidade,
do mundo fechado da "consciência" ao rríundo aberto da natureza e da história. "A mistificação",
escreveu ele, "que a D. sofre nas mãos de Hegel não impede, de modo algum, o fato de ter sido ele o
primeiro a descrever suas formas gerais de movimento de modo abrangente e claro. Em Hegel, a dialética
está na cabeça. É preciso virá-la de pernas para o ar, para descobrir o cerne racional no envoltório
místico" (O capital, I, 1, Post-scriptum à 2a
ed.). Retomando a tentiva de Marx, Engels concebia a D.
como a síntese das oposições (todavia relativas e parciais) que a natureza realiza em seu devir. "O
reconhecimento de que essas oposições e diferenças estão realmente presentes na natureza, mas com
validade relativa, e de que a rigidez e a validade absoluta com que são apresentadas sãó introduzidas na
natureza só pela nossa reflexão constitui o ponto central da concepção D. da natureza" (Antidühring, Pref.
à 2- ed.). Segundo Engels, pode-se chegar às leis da D. por abstração, tanto da história da natureza quanto
da história da sociedade humana. "Elas nada mais são do que as leis mais gerais de ambas essas fases da
evolução e do próprio pensamento" (Dialética da natureza, Dialética; trad. it., p. 56). Apesar disso, a
noção de D. permanecia substancialmente inalterada como ocorre em geral nos escritores modernos que
fazem uso dela. Assim, pode-se dizer que o conceito 4Q
de D. é marcado pelas seguintes características: \°
a D. é a passagem de um oposto ao outro; 2e
essa passagem é a conciliação dos dois opostos; 3Q
essa
passagem (portanto a conciliação) é necessária. Essa última característica é a que opõe mais radicalmente
a D. hegeliana aos outros três conceitos de D., cuja característica comum é a ausência da necessidade.
A maior parte dos filósofos modernos e de todos os que usam essa palavra fazem referência a essas três
teses. Uma excessão é constituída por Kierkegaard, que só aceita a primeira. Para ele, a D. é, em geral, a
possibilidade de reconhecer o positivo no negativo (Diário, X
4
, A, 456): conexão entre os opostos que
não elimina nem anula a oposição e não determina uma
passagem necessária para a conciliação ou para a síntese, mas permanece estaticamente na própria
oposição. Kierkegaard diz: "Estamos sós e termos todos contra nós é, em sentido dialético, ter todos por
nós, pois o fato de que todos estão contra nós ajuda a evidenciar que estamos sós" (Ibid., VIII, A, 124). E
muitas vezes ele dá a essa D. sem conciliações o nome de "D. da inversão" ou "D. dupla" (Ibid.,Vlll, A
84; VIII, A 91). Esse uso de Kierkegaard, embora não se possa dizer em conformidade com o conceito
hegeliano de D., tem estreito parentesco com um de seus elementos e, em todo caso, não propõe novo
significado do termo. Para indicar a relação de oposição não conciliada, o termo mais adequado é tensão
(v.). Por outro lado, o caráter oposto da D. hegeliana, o_ da unidade, foi assumido por Sartre_como
definição de toda a D.: "A D. é atividade totali-zadora; ela não tem outras leis que não as regras
produzidas pela totalização em curso e estas se referem evidentemente às relações da unificação com o
unificado, ou seja, aos modos da presença eficaz do devir totalizante nas partes totalizadas" (Critique de
Ia raison dialecti-que, 1960, pp. 139-40).
Portanto, ao longo de sua história, a noção de D. assumiu quatro significados fundamentais aparentados
mas diferentes. Embora o último seja o mais difundido hoje em filosofia, e a ele sejam feitas as
referências mais freqüentes em linguagem comum ("D. da história", "D. da vida política", "D. espiritual",
"D. dos partidos", etc), também é o significado mais desacreditado por haver servido como uma espécie
de fórmula mágica, capaz de justificar tudo o que aconteceu no passado e que se prevê ou se espera que
aconteça no futuro. Se no futuro couber a essa palavra um uso cientificamente fecundo, certamente não
será esse quarto significado que ditará as regras desse uso.
DIÁLOGO (gr. ôióúíoTOÇ; lat. Dialogus-, in. Dialogue, fr. Dialogue, ai. Dialog; it. Dialogo). Para
grande parte do pensamento antigo até Aristóteles, o D. não é somente uma das formas pelas quais se
pode exprimir o discurso filosófico, mas a sua forma típica e privilegiada, isso porque não se trata de
discurso feito pelo filósofo para si mesmo, que o isole em si mesmo, mas de uma conversa, uma
discussão, um perguntar e responder entre pessoas unidas pelo interesse comum da busca. O caráter
conjunto dessa busca da forma como os gregos a conceberam no período clássico tem expres-
DIANOETICO
275
DICTTJM DE OMNI ET NLJIXO
são natural no diálogo. A falta de confiança de Platão nos discursos escritos, porquanto não respondem a
quem interroga e não escolhem seus interlocutores (Fed., 275 c) (o que talvez tenha levado Sócrates a não
escrever nada e a concentrar toda a sua atividade na conversação com amigos e discípulos), também
consolida a superioridade do diálogo como forma literária, que procura reproduzir o ritmo da conversação
e, em geral, da investigação conjunta. Foi por certo esse o motivo que induziu Platão a manter-se fiel à
forma dialógica em seus escritos e a esquivar-se à pretensão do tirano Dionísio de reduzir sua filosofia à
forma de sumário (Let, VII, 341 b). A exigência do D. está presente, de modo mais ou menos claro, em
todas as formas da dialética (v.), e não se pode dizer que esteja totalmente ausente da indagação
filosófica, que, mais do que qualquer outra, procede através da discussão das teses alheias e da polêmica
incessante entre as várias diretrizes de pesquisa. Além disso, o princípio do D. implica a tolerância
filosófica e religiosa (v. TOLERÂNCIA), em sentido positivo e ativo, ou seja, não como resignação pela
existência de outros pontos de vista, mas como reconhecimento de sua legitimidade e com boa vontade de
entendê-los em suas razões. Nesse sentido, o princípio do D. perrnaneceu como aquisição fundamental
transmitida do pensamento grego ao moderno e que, na atualidade, conserva valor eminentemente
normativo (cf. G. CALO-GERO, Logo e dialogo, 1950).
DIANOETICO (gr. 8ICCVOT|TIKÓÇ; in. Dianoe-tic; fr. Dianoétique, ai. Dianoêtik, it. Dianoeticó).
Intelectual. A palavra grega, adaptada às línguas modernas, permaneceu quase exclusivamente na
expressão "virtudes dianoéticas", que, para Aristóteles, indica as virtudes próprias da parte intelectual da
alma, ao contrário das virtudes éticas ou morais, pertencentes à parte da alma que, embora desprovida de
razão, pode em uma certa medida obedecer à razão (Et. nic, I, 13, 1102 b). Para Aristóteles, as virtudes
dianoéticas são cinco: arte, ciência, sabedoria, sapiência, intelecto ilbid., VI, 3, 1139 b 15); sobre elas, v.
os verbetes correspondentes.
DIANÓIA (gr. Stávoia). Conhecimento discursivo que procede pela inferência de conclusões a partir de
premissas. Essa é a definição dada por Platão (Rep., VI, 510 b) e por Aristóteles, que nela vê o
conhecimento científico "referente a 'causas e princípios'" (Mel, V, 1, 1025 b 25). Essa palavra eqüivale,
aproximadamente,
ao que entendemos por razão, em sentido objetivo, e, no uso de Platão e de Aristóteles, implica certa
discrepância com o sentido específico de nous ou intelecto, porquanto este designa a faculdade —
considerada superior — de intuir os princípios de que partem os procedimentos racionais (v.
DISCURSIVO).
DIANOIOLOGIA (ai. Dianoiologiê). É assim que Lambert denominou a primeira das quatro partes do
seu Novo Organon (1764), mais precisamente a que estuda as leis formais do pensamento. Só faz
reproduzir a lógica formal de Wolff.^
DIÁSTEMA (gr. §iáoxniia). Propriamente, intervalo. Na lógica aristotélica, chama-se de D. a conjunção
do sujeito com o predicado, ou seja, a proposição (An. pr., I, 4, 26 b 21; An. post., I, 21, 82 b 7; etc).
DIATRIBE (gr. ôtaxpiPií; lat. Diatriba; in. Diatribe, fr. Diatribe, it. Diatriba). Breve tratado ético. Esse
termo também aparece como título de obras atribuídas aos estóicos Zenão e Cleantes, bem como a outros
filósofos antigos.
DIBATIS. Palavra mnemônica usada pela Lógica de Port-Royal para indicar o sexto modo do silogismo
de primeira figura (Dabitis), com a diferença de assumir como premissa maior a proposição em que se
encontra o predicado da conclusão. O exemplo é o seguinte: "Alguns loucos dizem a verdade. Quem diz a
verdade merece ser imitado. Logo, merecem ser imitadas algumas pessoas que não deixam de ser loucas"
(ARNAULD, Log., III, 8).
DICOTOMIA (gr. Sincronia,- in. Dichotomy, fr. Dichotomie, ai. Dichotomie, it. Dicotomia). 1. Divisão
de um conceito em duas partes segundo o método diairético da dialética platônica (PLATÃO, Górg., 500 d;
Pol, 302 e; cf. LEIBNIZ, Nouv. ess., III, 3, 10). (V. DIALÉTICA.)
2. Denominação clássica (cf. ARISTÓTELES, FÍS., VI, 9, 239 b 18) do primeiro argumento contra o
movimento, de Zenão de Eléia, que pode ser assim exposto: para ir de A a B, um móvel deve antes
percorrer a metade do trajeto A-B; e antes ainda a metade dessa metade; e assim sucessivamente, de modo
que não chegará nunca a B(ARISTÓTELES, FÍS., VT, 9, 239 b 10; Ibid, VI, 2, 233 a 2). V- AQUILES;
FLECHA; ESTÁDIO.
DICTUM. V. SIGNIFICADO.
DICTUM DE OMNI ET NULLO. É o princí pio fundamental do silogismo: o que se diz de todos, dizse também de alguns e de cada um; e o que não se diz de nenhum, tampouco se diz de alguns nem de cada
um. P. ex., se todo
DIDÁTICA MORAL
276
DIGNIDADE1
homem é mortal, alguns homens são mortais e Sócrates também, como indivíduo, etc. (ARISTÓTELES,
An.pr., I, 1, 24 b 26; PEDRO HISPANO, Summ. log., 4.01; JUNGIUS, Lógica, III, 11, 4-5; WOLFF, Log., §
346; KANT, Logik, § 63; HAMILTON, Lectureson Logic, I, p. 303, etc). (V. SILOGISMO.) DIDÁTICA
MORAL (in. Ethical didactics, fr. Didactique morale, ai. Etbische Didaktik, it. Didattica moral).
Segundo Kant, é uma parte da doutrina moral do método; diz respeito ao aprendizado das virtudes. A
exigência de uma D. moral provém do fato de a virtude não ser inata, podendo e devendo ser ensinada
(Met. derSitten, II, § 49).
DIFERENÇA (gr. ôioupopá; lat. Differentia-, in. Difference, fr. Différence, ai. Differenz; it. Differenzà).
Determinação da alteridade. A alteridade não implica, em si, nenhuma determinação; p. ex., "aé outra
coisa que não b". A D. implica uma determinação: a é diferente de b na cor ou na forma, etc. Isso
significa: as coisas só podem diferir se têm em comum a coisa em que diferem: p. ex., a cor, a
configuração, a forma, etc. Segundo Aristóteles, que estabeleceu claramente essas distinções, as coisas
diferem em gênero se têm a matéria em comum e não se transformam uma na outra (p. ex., se são coisas
que pertencem a diferentes categorias); diferem em espécie se pertencem ao mesmo gênero (Met, X, 3,
1054 a 23).
A D. foi incluída por Porfírio entre as quin-que vocês (lit., cinco palavras) (v.), ou seja, entre os cinco
predicáveis maiores. Porfírio chamou de constitutiva a D. quanto à espécie, e de divisiva a diferença
quanto ao gênero: p. ex., a racionalidade é a diferença que constitui a espécie humana e separa a espécie
humana das outras do mesmo gênero. Distinguiu também: D. comum, que consiste em um acidente
separável e existe, p. ex., entre Sócrates sentado e Sócrates não sentado; D. própria, que existe quando
uma coisa difere da outra por um acidente inseparável, como, p. ex., a racionalidade (Isag., 9-10). Essas
distinções foram reproduzidas na lógica medieval (PEDRO HISPANO, Summ. log., 2.11, 2.12). São até hoje
aceitas comumente, tanto em filosofia quanto fora dela.
DIFERENÇA, MÉTODO DA (in. Method of difference, fr. Méthode de Ia différence, ai.
DifferenzMethode, it. Método delia differenzà). Um dos quatro métodos da pesquisa experimental
enumerados por Stuart Mill, mais precisamente o método expresso pela seguinte regra: "Se um caso no qual ocorre o fenômeno investigado e um caso no qual ele não ocorre apresentam
todas as circunstâncias em comum, exceto uma única que ocorre só no primeiro, a circunstância na qual
os dois casos diferem é o efeito, a causa ou uma parte indispensável da causa do fenômeno" (Logic, III, 8,
§ 2) (v. CONCOMITÂNCIA; CONCORDÂNCIA; RESÍDUOS).
DIFERENÇA ONTOLÓGICA (in. Ontolo-gical difference, fr. Différence ontologique, ai. Ontologische
Differenz; it. Differenzà ontologi-cà). Seguindo Heidegger, é a diferença entre o ser e o ente; consiste na
transcendência do ser-aí, ou seja, no seu confronto com o ser mediante a compreensão deste (Vom Wesen
des Grundes, I; trad. it., p. 24).
DIFERENCIAÇÃO (in. Differentiation; fr. Différentiation; ai. Differenzierung; it. Diffe-renziazioné).
Passagem do homogêneo para o heterogêneo, que, segundo Spencer, é a natureza fundamental da
evolução (First Principies, cap. XV). (V. EVOLUÇÃO.)
DIFERENCIAL, PSICOLOGIA (in. Differentia! psychologie, fr. Psychologie différen-tielle, ai.
Differentrelle Psychologie, it. Psicologia differenzialé). Por esse nome indica-se o conjunto das técnicas
psicológicas que servem para verificar os modos e as capacidades de reação de um indivíduo; dizem
respeito, portanto, à parte da psicologia que cuida da personalidade e às aplicações dessa psicologia, a
psicotécnica (v.).
DIGNIDADE1
(in. Dignity, fr. Dignité, ai. Würde, it. Dignitã). Como "princípio da dignidade humana"
entende-se a exigência enunciada por Kant como segunda fórmula do imperativo categórico: "Age de tal
forma que trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre também
como um fim e nunca unicamente com um meio" (Grundlegung zurMet. derSitten, II). Esse imperativo
estabelece que todo homem, aliás, todo ser racional, como fim em si mesmo, possui um valor não relativo
(como é, p. ex., um preço), mas intrínseco, ou seja, a dignidade. "O que tem preço pode ser substituído
por alguma outra coisa equivalente, o que é superior a qualquer preço, e por isso não permite nenhuma
equivalência, tem D." Substancialmente, a D. de um ser racional consiste no fato de ele "não obedecer a
nenhuma lei que não seja também instituída por ele mesmo". A mortalidade, como condição dessa
autonomia legislativa é, portanto, a condição da D. do homem, e
DIGNIDADE2
277
DIORISMA
moralidade e humanidade são as únicas coisas que não têm preço. Esses conceitos kantianos
voltamemF.SCHILLER, GraçaseD. (1793): "Adominação dos instintos pela força moral é a liberdade do
espírito e a expressão da liberdade do espírito no fenômeno chama-se D". (Werke, ed. Karpeles, XI, p.
207). Na incerteza das valorações morais do mundo contemporâneo, que aumentou com as duas guerras
mundiais, pode-se dizer que a exigência da D. do ser humano venceu uma prova, revelando-se como
pedra de toque para a aceitação dos ideais ou das formas de vida instauradas ou propostas; isso porque as
ideologias, os partidos e os regimes que, implícita ou explicitamente, se opuseram a essa tese mostraramse desastrosos para si e para os outros.
DIGNIDADE2
(lat. Dignitas; it. Degnita). Foi assim que os escolásticos, na esteira de Boécio, traduziram
a palavra axioma (cf., p. ex., TOMÁS, In Mel, III, 5, 390). Viço conservou essa palavra em italiano e suas
"D.", expostas na parte da Scienza Nuova intitulada "Dos elementos", constituem os fundamentos de sua
obra. "Propomos agora aqui os seguintes axiomas ou D. filosóficas e filológicas, algumas poucas
perguntas racionais e discretas, com outras tantas definições esclarecidas; estas, assim como o sangue
pelo corpo animado, devem fluir por dentro desta ciência e ânimá-la em tudo o que ela razoa sobre a
natureza comum das nações".
DILEMA (gr. ÔÍÀTILILIOC; lat. Dilemmas-, in. Dilemma; fr. Dilemme; ai. Dilemma; it. Di-letnmá). Esse
termo (que significa "premissa dupla") começa a ser empregado por gramáticos e lógicos do séc. II (cf.
HERMOGENES, De inv., IV, 6; GALENO, Inst. log., VI, 5) para indicar os raciocínios insolúveis ou
conversíveis (cmopoi, ccvciCTpécpovra) que, segundo Diógenes Laér-cio (VII, 82-83), apareciam com
freqüência nos livros dos estóicos. Um desses D. se chamava "do crocodilo": um crocodilo que rapta um
menino e promete ao pai que vai restituí-lo se adivinhar o que o crocodilo vai fazer, ou seja, se vai
restituir o menino ou não. Se o pai responder que o crocodilo não vai restituir, o crocodilo estará diante de
um D.: se não restituir, a resposta do pai será verdadeira e, de acordo com o pacto, ele deverá devolver o
menino; mas se o devolver, a resposta do pai estará errada e este perderá o direito à restituição (Scbol.
adHermog, ed. Walz, IV, p. 170). D. semelhante contava-se a respeito de Protágoras, que levou a juízo seu
discípulo Evatlos, de quem deveria receber honorários quando vencesse a primeira causa. Protágoras achava que Evatlos deveria pagarlhe em qualquer caso: se vencesse, por causa do pacto, e se perdesse por causa da sentença, que o
obrigaria a pagar. Mas Evatlos pôde responder-lhe: "Não te pagarei em caso algum: se perder, por causa
do pacto; se vencer, por causa da sentença". O D., nesse caso, era do juiz (AULO GÉLIO, Atoei. Att., V,
10).
Na lógica medieval, preferia-se dar a argumentos desse genêro as denominações Insolu-bilia ou
Obligationes (v. ANTINOMIA). Esse termo reaparece na lógica renascentista (cf., p. ex., L. VALLA,
Dialect. Disput, III, 13) e desta passa à lógica de Jungius (Lógica Humburgensis, 1638, III, 29, D e à
Lógica de Arnauld (III, 16). Nesse sentido, o D. foi chamado por Hamilton de sophisma heterozeteseos
ou sofisma de con-tra-interrogação (Lectures on Logic, I, p. 466).
2. Mais tarde, deu-se o nome de D. a certa forma de interferência do seguinte tipo.- "Toda coisa é P ou M\
S não é M; logo 5 é P" (cf. PEIRCE, Coll. Pap., 3-404). Esse segundo significado de D. já é distinguido do
precedente por Jungius (Log. hamburg., III, 29, 10) e é descrito como "silogismo hipotético-disjuntivo"
por Kant (Logik, § 79), por Hamiltom (Lectures on Logic, I, pp. 350 ss.) e por outros escritores
posteriores.
DIMENSÃO (in. Dimension; fr. Dimensional. Ausdehruung; it. Dimensione). Entende-se por esse termo
todo plano, grau ou direção no qual se possa efetuar uma investigação ou realizar uma ação. Fala-se,
assim, de "D. de liberdade" para designar os graus da liberdade ou as direções em que ela pode
manifestar-se; ou de "D. de uma pesquisa" para designar os vários planos ou níveis nos quais ela pode ser
conduzida.
DIONISÍACO, ESPÍRITO (ai. Dionysisch Geisí). Inicialmente contraposto ao espírito apolíneo(v.), foi
depois entendido por Nietzsche como atitude própria do super-homem e como o fundamento da "inversão
de valores" que Nietzsche propunha. Para Nietzsche, Dionísio é "a afirmação religiosa da vida total, não
renegada nem estilhaçada". Em outros termos, é o símbolo da aceitação integral e entusiasta da vida em
todos os seus aspectos e da vontade de afirmá-la e repeti-la (Wille zurMacht, ed. 1901, § 479).
DIORISMA (gr. 5lOplon.óç; in. Diorism; fr. Diorisme, ai. Diorismus, it. Diorismd). Enunciação de um
problema ou delimitação da sua probabilidade. Termo usado pelos matemáticos gregos.
DIREITA HEGELIANA
278
DIREITO
DIREITA HEGELIANA (in. Hegelian right; fr. Droite hégélienne, ai. Hegelsche Rechte, it. Destra
hegeliand). As denominações "D." e "esquerda" hegeliana foram empregadas pela primeira vez por Davi
Strauss {Streitscbriften, III, Tübingen, 1837); esses dois termos extraídos dos costumes do Parlamento
francês designam as duas grandes correntes antagonistas em que estava cindida a numerosa ala dos
discípulos de Hegel. A cisão era devida, predominantemente, às posições que tomavam diante da religião.
A D. hegeliana tendia a vincular a doutrina do mestre à religião tradicional; a esquerda hegeliana tendia a
contrapô-la a qualquer forma de religião.
A D. hegeliana pode ser considerada a escolástica do hegelianismo: utiliza a razão hegeliana (ou seja, a
sistemática de especulação de Hegel) para justificar as verdades religiosas. Esse é, de fato, o principal
intuito dos maiores representantes dessa D. como C. F. Gõschel, Bruno Bauer (na primeira fase de sua
atividade) e o historiador da filosofia J. E. Erd-mann. No centro, Strauss punha C. F. Rosen-kranz, que foi
o biógrafo entusiasta de Hegel (Vida de Hegel, 1844; Apologia de Hegel, 1858). (Cf. MÁRIO Rossi, Intr.
alia storia delle inter-pretazioni diHegel, I, Messina, 1953)
DIREITO (gr. TÒ ôíiccaov; lat./ws; in. Law, fr. Droit; ai. Recht; it. Dirittó). Em sentido geral e
fundamental, a técnica da coexistência humana, isto é, a técnica que visa a possibilitar a coexistência dos
homens. Como técnica, o D. se concretiza em conjunto de regras (nesse caso leis ou normas), que têm por
objeto o comportamento inter-subjetivo, ou seja, o comportamento dos homens entre si. Na história do
pensamento filosófico e jurídico, sucederam-se ou entrecruzaram-se quatro concepções fundamentais
sobre a validade do D. I
a
a que considera que o D. positivo (conjunto dos D. que as várias sociedades
humanas reconhecem) baseia-se num D. natural eterno, imutável e necessário; 2a
a que julga o D.
fundado na moral e o considera, portanto, uma forma diminuída ou imperfeita de moralidade; 3a
a que
reduz o D. à força, ou seja, a uma realidade histórica politicamente organizada; 4a
a que considera o D.
como uma técnica social.
1. DIREITO NATURAL.
1
Q
A observação da disparidade e da discrepância entre os D. vigentes nas sociedades humanas, bem
como do caráter imperfeito de tais D. logo conduziu à noção de D. natural como
fundamento ou princípio de todo D. positivo possível, ou seja, como condição de sua validade. O D.
natural é a norma constante e invariável que garante infalivelmente a realização da melhor ordenação da
sociedade humana: o D. positivo ajusta-se em mior ou menor grau, mas nunca completamente, ao D.
natural porque contém elementos variáveis e acidentais que não são redutíveis a este. O D. natural é a
perfeita racionalidade da norma, a perfeita adequação da norma ao seu fim de garantir a possibilidade da
coexistência. Os D. positivos são realizações imperfeitas ou aproximativas dessa normatividade perfeita.
Esse pensamento regeu, por mais de dois mil anos, a história da noção de D. Podemos distinguir duas
fases fundamentais dessa longa história: d) Fase antiga, na qual o D. natural é a participação da
comunidade humana na ordem racional do universo. Como, segundo os estóicos (aos quais se deve a
primeira formulação dessa doutrina), a participação dos seres vivos na ordem universal se dá por meio do
instinto, nos animais, e por meio da razão, nos homens (DfOG. L., VII, 85-87), o D. de natureza é às
vezes interpretado como instinto e às vezes como razão ou como inclinação racional. Mas em todos os
casos, é entendido como participação na ordem universal que é Deus mesmo ou vem de Deus. b) Fase
moderna, na qual o D. natural é a disciplina racional indispensável às relações humanas, mas independe
da ordem cósmica e de Deus. O conceito de técnica que pode e deve regulamentar da forma mais
conveniente as relações humanas apresenta-se com toda clareza nessa fase da doutrina.
d) Fase antiga — O recurso à natureza e à ordenação que ela prescreve às relações humanas é
inicialmente uma instância polêmica contra as leis "convencionais", aquelas que "a maioria" chama de
justiça ou que é justiça para "a maioria". Essa instância foi freqüente nos sofistas. Antifontes afirmava que
todas as leis são puramente convencionais e por isso contrárias à natureza, e que o melhor modo de viver
é seguir a natureza, ou seja, pensar no próprio proveito reservando deferência aparente ou formal às leis
dos homens (OxirhinchusPapyri, n
fi 1364, IX, p. 92). Idéias semelhantes a estas são expressas por
algumas personagens dos diálogos de Platão, como Cálicles em Górgias (484 a) e Trasímaco e Glauco em
República (338, 3, 367 c). Mas mesmo nesse caso o D. natural constitui um tribunal de apelação contra as
DIREITO
279
DIREITO
convenções sociais e no fundo é sempre concebido como justiça mais superior e verdadeira. Nessa
concepção, acentua-se o caráter utilitário do D. natural, graças ao qual o D. natural não visará à realização
de uma ordem, mas à consecução de uma vantagem, tendo por isso caráter prático mais que especulativo.
Portanto, nem sempre essa concepção tem o caráter anti-social de que se reveste em Antifontes e nos
outros sofistas. Tampouco teria esse caráter naqueles que a retomaram alguns séculos depois, epicuristas e
céticos. Epicuro dizia que o D. natural é uma convenção excogitada pelos homens para seu próprio
proveito, a fim de não se prejudicarem uns aos outros (DIÓG. L., X, 150). Os céticos, com Carnéades,
sustentavam que "os homens sancionaram o D. para seu próprio proveito, já que ele é mudado de acordo
com os costumes e dentro de uma mesma sociedade, de acordo com os tempos: logo, não existe D. natural
algum; todos, sejam homens, sejam outros seres vivos, são guiados pelo proveito próprio, sob a direção
da natureza; conseqüentemente, ou a justiça não existe em absoluto ou, se existe de algum modo, é o
cúmulo da estultice, porque ao defender as vantagens alheias estaria agindo em seu próprio prejuízo
(LACTÂNCIO, Div. Inst., V, 16, 2-3; CÍCERO, De rep., III, 21). Nessas doutrinas a polêmica não se volta
diretamente contra o D. natural, mas contra sua interpretação racionalista e otimista, segundo a qual ele é
a garantia infalível de uma ordem perfeita.
Mas era justamente essa garantia infalível que a outra corrente fundamental, que vai de Platão e
Aristóteles aos estóicos, aos juristas romanos e aos escritores medievais, via no D. natural. Na verdade,
Platão definiu o D. ao definir a justiça como aquilo que possibilita que um grupo qualquer de homens,
mesmo que bandidos ou ladrões, conviva e aja com vistas a um fim comum {Rep., 351 c). Ao que parece,
essa seria uma função puramente formal do D., graças à qual ele é simplesmente a técnica da
coexistência. Mas Aristóteles já qualifica o D. tomando como referência a coexistência justa,
racionalmente perfeita. O D., diz ele, é "o que pode criar e conservar, no todo ou em parte, a felicidade da
comunidade política" {Et. nic, V, 1, 1129 b 11), devendo-se recordar que a felicidade, como fim próprio
do homem, é a realização ou a perfeição da atividade própria do homem, ou seja, a razão {Ibid., I, 6, 1098
a 3). "A sanção do D.", diz ele em Política (I, 2,1254 a),
"é a ordem da comunidade política, e a sanção do D. é a determinação do que é justo". Mas um D. assim
entendido é só o D. natural, que é o melhor e em toda parte o mesmo {Et. nic, V, 16, 1135 a 1). O D.
fundado na convenção e na utilidade é análogo às unidades de medida que variam de um lugar para outro;
o D. natural, ao contrário, é "aquilo que tem a mesma força em toda parte e independe da diversidade das
opiniões" {Ibid., V, 6, 1135 a 17). Os estóicos só fizeram explicitar o fundamento dessa doutrina,
identificando o D. natural com a justiça e a justiça com a razão (J. STOBEO, Ecl., II, 184; PLUTARCO, De
Stoic. Rep., 9); sua melhor expressão está num famoso trecho de Cícero conservado por Lactâncio: "Há
certamente uma lei verdadeira, a reta razão conforme à natureza, difundida entre todos, constante, eterna,
que, comandando, incita ao dever e, proibindo, afasta da fraude... Nessa lei não é lícito fazer alterações,
nem é lícito retirar dela qualquer coisa ou anulá-la como um todo... Ela não será diferente em Roma, em
Atenas, hoje ou amanhã, mas, como lei única, eterna e imutável, governará todos os povos e em todos os
tempos, e uma só divindade será guia e chefe de todos: a que encontrou, elaborou e sancionou essa lei; e
quem não lhe obedecer estará fugindo de si mesmo, e, por haver renegado a própria natureza humana,
sofrerá as mais graves penas, mesmo que tenha conseguido escapar daquilo que em geral é considerado
suplício" (LACTÂNCIO, Div. Inst., VI, 8, 6-9; CÍCERO, De rep., III, 33)- Esse conceito de D., entre outras
coisas, induzia a reconhecer a igualdade de todos os homens visto que em todos eles, pela sua natureza
racional, revela-se a lei eterna da razão. Em Cícero, encontra-se esse reconhecimento {De leg., I, 28) e
também um dos corolários mais importantes da doutrina do D natural: o princípio e o fundamento de
qualquer D. devem ser procurados na lèi natural dimanada antes que existisse qualquer Estado; portanto,
se o povo ou o príncipe podem fazer leis, estas não terão verdadeiro caráter de D. se não derivarem da lei
primeira {Ibid., I, 19-20, 28, 42, 45). Essas afirmações foram reiteradas por Sêneca, em que também se
encontra a teoria do "Estado de natureza", que deveria dominar o pesnamento político por muitos séculos.
Segundo essa teoria, antes das instituições criadas por convenção pela sociedade, existiu uma idade em
que os homens viveram sem lei, unicamente à mercê da inocência da natureza original.
DIREITO
280
DIREITO
Viviam felizes, fruindo sua convivência. Não eram virtuosos, porque a sua inocência era feita mais de
ignorância, ao passo que a virtude é própria da alma doutrinada e experiente. Mas a ordem em que viviam
era a melhor possível porque ditada pela própria natureza, nela até os chefes se inspiravam, em sua
sabedoria (Ep., 90). Assim, o mito da idade de ouro transforma-se em mito filosófico porque se une à
noção de D. natural e é caracterizado por ela. Mas, afora esse mito, os juristas romanos elaboraram uma
doutrina do D. bastante semelhante à dos estóicos. Em meados do séc. II, Gaio, nas primeiras palavras das
suas Instituições, que são citadas inclusive no Digesto, afirmava: le existe um D. das gentes (jus gentium)
universal, que compreende princípios reconhecidos por toda a humanidade; 2° tais princípios foram
ensinados aos homens pela razão natural e, por isso, são coevos do gênero humano (Inst., I, 1; Dig, I, 1, 9;
Ibid., XLI, 1, 1). O que Gaio chamava de jus gentium era chamado de D. natural por Paulo, mas a
definição era a mesma (Dig., I, 1, 11). Mais tarde, no séc. III, distinguiu-se o D. das gentes do D. natural.
Segundo Ulpiano, o D. natural é o que a natureza ensinou a todos os animais e por isso não é próprio
apenas do gênero humano, mas é comum a todos os animais que vivem na terra, no mar e no céu. Desse
D. provém a união do macho e da fêmea, que nós chamamos de matrimônio, a procriação e a educação
dos filhos, coisas essas de que também os animais têm experiência. O D. das gentes, ao contrário, é
aquele de que se valem todas as raças humanas, sendo próprio somente dos homens (Dig., I, 1, 1-4). Essa
distinção representa o produto de outra instância crítica, qual seja, o reconhecimento de que nem todas as
leis universalmente reconhecidas como tais pelos homens se fundam no D. natural; p. ex.: a escravidão,
como nota o próprio Ulpiano (Ibid., I, 1, 4), embora universalmente admitida, não se funda no D. natural
porque o homem é originalmente livre.
Mas com essa distinção, o conceito de D. natural mudava, perdia-se o vínculo entre D. natural e razão.
Por ser comum a todos os animais, portanto também aos desprovidos de razão, o D. natural não podia
mais ser considerado como ditado pela razão e coincidente com a racionalidade. Por isso, ele foi remetido
seguindo-se o esquema estóico, àquilo que, nesse esquema, constituía o equivalente da razão nos animais,
ou seja, o instinto. Segundo os Padres
da Igreja que, nesse aspecto, continuam a tradição dos juristas romanos, a lei natural está escrita no
"coração" dos homens como uma espécie de força inata ou instinto. Diz S. Agostinho: "O D. natural não
foi gerado por uma opinião, mas inserido em nós por uma força inata, do mesmo modo como, na religião,
estão a piedade, a graça, a observância, a verdade" (Dediv. quaest., 31; cf. S. AMBRÓSIO, De off, 3). E foi
justamente esse o conceito legado à filosofia escolática através das Etimologias de Isidoro de Sevilha
(séc. VII). Diz Isidoro: "O D. natural é comum a todas as nações, sendo que em todos os lugares deriva do
instinto natural, e não de uma constituição; p. ex., a união do macho e da fêmea, a sucessão e a educação
dos filhos, a posse comum de todas as coisas e a liberdade de todos, a aquisição das coisas que estão no
céu, na terra e no mar, etc." (Etym., V, 4). Não causa estranheza, portanto, que os juristas medievais
tenham considerado o D. natural exatamente como um instinto ou uma tendência inata, que eles
interpretam como sinal ou marca posta no homem por Deus (PIACENTINO, Summa instit, I, 2). No séc. XII
Graciano dividia todas as leis em duas partes, atribuindo a Deus as leis naturais e aos costumes, as leis
humanas (Decretum, d. I). A identificação da lei natural com a lei divina constitui o fundamento do D.
canônico. O D. natural, notava Rufino, comendador de Graciano, é "uma força (vis) que a natureza
imprime na criatura humana para levá-la a fazer o bem e a evitar o mal". Ela ordena o que é útil, como p.
ex. "ama o Senhor teu Deus"; proíbe o que é nocivo, como p. ex. "não matarás"; demonstra o que
convém, como p. ex. "tende tudo em comum", ou "seja uma só a liberdade de todos", etc. (Summa decr.,
d. I, Dictat. Grat., ad I). A distinção de Graciano entre lei divina e lei humana é assumida como
fundamento da doutrina tomista do direito. Segundo S. Tomás, há uma lei eterna, uma razão que governa
todo o universo e que existe na mente divina; a lei natural que está nos homens é reflexo ou
"participação" dessa lei eterna (S. Th., II, 1, q. 91, a, 1, 2). Além dessa lei eterna, que para o homem é
natural, há duas outras espécies de leis: a "inventada pelos homens e segundo a qual se dispõe de
determinado modo das coisas a que a lei natural já se refere" (Ibid., II, 1, q. 91, a. 3) e a divina, necessária
para encaminhar o homem ao seu fim sobrenatural (Ibid., a. 4). No que diz respeito ao fundamento de
todas as leis feitas
DIREITO
281
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pelos homens, S. Tomás repete a doutrina tradicional, de que não é lei aquela que não é justa, e, portanto,
"qualquer lei humana deve derivar da lei natural, que é a primeira regra da razão" (Ibid., q. 95, a. 2). Em
geral, pertence à lei natural tudo aquilo a que o homem se inclina naturalmente; S. Tomás distingue três
inclinações fundamentais por natureza: I
a
para o bem natural, compartilhada com qualquer substância que,
como tal, deseja a própria conservação; 2a
para determinados atos, que foram ensinados pela natureza a
todos os animais, como a união do macho e da fêmea, a educação dos filhos e outros semelhantes; 3a para
o bem, segundo a natureza racional própria do homem, como a inclinação para conhecer a verdade, viver
em sociedade, etc. (S. Th., II, 1, q. 94, a. 2). Assim, S. Tomás considera o D. natural, ao mesmo tempo,
instinto e razão visto que inclui nele tanto a inclinação que o homem tem em comum com todos os seres
da natureza e com os animais, quanto a inclinação específica do homem. Quanto a esta última, ele
estabelece entre os preceitos do D. natural e a razão prática a mesma relação que há entre os primeiros
princípios das demonstrações e a razão especulativa: tanto os preceitos quanto os primeiros princípios são
"conhecidos de per si", ou seja, evidentes. Mas em todas as suas determinações, tanto instintivas quanto
racionais, o D. natural é sempre a participação na "lei eterna", na ordem providencial ou divina do mundo.
Durante toda a Antigüidade e a Idade Média, o D. natural conservou a função de fundamento e, às vezes
platonicamente, de arquétipo ou modelo de todo D. positivo. Já nessa fase de sua história, a noção de D.
natural constituiu um limite e uma disciplina para toda forma de autoridade estatal ou política, servindo
ao mesmo tempo para justificá-la. Mas caberiam outras funções à teoria do D. natural a partir do início do
séc. XVII. Por um lado, ele viria a ser utilizado na justificação e na reivindicação prática de novos
princípios normativos, como os da tolerância religiosa e da limitação do poder do Estado. Por outro, seria
utilizado para fundar um novo ramo do D., o D. internacional, exatamente no momento em que o
surgimento das monarquias absolutas e a aceitação mais ou menos explícita do maquiavelismo como
condutor de suas políticas pareciam fazer da força o único árbitro das relações internacionais. Mas para
cumprir essas novas tarefas, a teoria do D. natural devia sofrer uma transformação radical: essa função coube ao jusnatu-ralismo moderno.
b) Jusnaturalismo moderno — Para o jus-naturalismo (v.) moderno, o D. natural não é mais o caminho
através do qual as comunidades humanas podem participar da ordem cósmica ou contribuir para ela, e
passa a ser uma técnica racional de coexistência. Conquanto Alberico Gentile — que, antes de Grócio,
ainda procurou extrair as noções normativas do D. natural da consideração do estado de guerra (De jure
belli, 1588) — utilizasse o conceito de instinto natural imutável que manteria os homens unidos como
membros de um único corpo, todos os conceitos desse gênero foram descartados por Grócio. A teoria do
D. natural foi levada por Grócio ao mesmo plano racional da matemática, para o qual o próprio Descartes
quis levar a filosofia e todas as outras pesquisas científicas. Como fundamento da obra de Grócio, há o
recurso à razão, que é o recurso à razão matemática, à qual os filósofos do séc. XVII julgam estar
confiadas as verdades da ciência. Segundo Grócio, a matriz do D. natural é a própria natureza humana,
que conduziria os homens às relações sociais mesmo que eles não tivessem necessidade uns dos outros.
Por isso, o D. que se funda na natureza humana "teria lugar mesmo que se admitisse aquilo que não pode
ser admitido sem cometer um delito: que Deus não existe ou que não se preocupa com as coisas humanas"
(De jure belli ac pacis, 1625, Prol., § 11). Porquanto procede por legítima dedução dos princípios da
natureza, o D. natural distingue-se do D. das gentes (jus gentium), que não nasce da natureza, mas do
consenso de todos os povos ou de alguns deles e visa ao proveito de todas as nações. Pela sua própria
origem, o D. natural é próprio do homem, único ser racional, ainda que se refira a atos comuns a todos os
animais, como a criação da prole (Ibid., I, 1, 11). É definido por Grócio como "o mandamento da reta
razão que indica a lealdade moral ou a necessidade moral inerente a uma ação qualquer, mediante o
acordo ou o desacordo desta com a natureza racional" (Ibid., I, 1, 10). As ações sobre as quais versa o
mandamento são obrigatórias ou ilícitas de per si, e portanto são entendidas como necessariamente
prescritas ou vetadas por Deus. Nisso o D. natural distingue-se nâo só do D. humano, mas também do D.
voluntário divino, que não prescreve nem proíbe as ações que pela própria natureza são obrigató-
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282
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rias ou ilícitas, mas torna ilícitas algumas ações, vetando-as, e obrigatórias outras, prescreven-do-as. O D.
natural é, portanto, tão imutável que não pode ser mudado nem por Deus. "Assim como Deus não pode
fazer que dois mais dois não sejam quatro, tampouco pode fazer que deixe de ser mal aquilo que, por
razão intrínseca, é mal" (Ibid., I, 1, 10). Logo, a verdadeira prova do D. natural é prova a príori, que se
obtém mostrando a concordância ou discordância necessária de uma ação com a natureza racional e
social. A prova a posteriori, obtida a partir daquilo que, em todos os povos ou nos mais civilizados, é tido
como legítimo, é apenas provável e funda-se na presunção de que um efeito universal exige uma causa
universal (Jbid., I, 1, 12). Distingue-se do D. natural o D. voluntário, que não se origina da natureza, mas
da vontade, e pode ser humano ou divino (Jbid., I, 1, 13-15). Mas só o D. natural fornece o critério da
justiça e da injustiça: "Por injusto entende-se o que repug-na necessariamente à natureza racional e social"
(Ibid, I, 2, 1).
A doutrina do D. natural teve de Grócio a formulação mais madura e perfeita de sua longa história.
Certamente essa formulação é condicionada pelo racionalismo geometrizante do tempo. Técnica racional,
nos tempos de Grócio e Descartes, é técnica geométrica; nela, uma proposição só se justifica quando pode
derivar, por dedução necessária, de um ou mais princípios evidentes. Mas já ao mostrar que as normas do
D. natural podem ser deduzidas da exigência de existência de uma sociedade ordenada, Grócio estabelece,
entre essa exigência e as normas, uma relação condicional que exprime bem o caráter de técnica. A
concordância necessária entre a norma e a "natureza racional e social", que ele assume como critério para
decidir da validade da norma, isto é, de sua naturalidade, significa de fato o juízo sobre o caráter
indispensável da norma para a possibilidade de relações entre os homens. Assim, para ele, o respeito à
propriedade, o respeito aos pactos, o ressarcimento dos danos e a cominação de penalidades são
condições indispensáveis de qualquer coexistência humana, constituindo, por isso mesmo, as normas
fundamentais do D. natural. Ademais, o reconhecimento da independência desse D. em relação ao arbítrio
humano e divino transformou-o em poderosíssima alavanca na luta pela liberdade do mundo moderno.
Contudo, o jusnaturalismo nem sempre permaneceu fiel às formulações de Grócio. Locke, no Ensaio
sobre a lei natural, negava que essa lei fosse um ditame da razão, e considerava-a como sancionada e
imprimida nos corações humanos por uma potência superior; desse modo, a razão só faz descobri-la, não
sendo sua autora, mas sua intérprete (Law qfNature, V- ed., 1954, p. 110). Nisso, adotava a doutrina de
Hooker ( The Laws ofthe Ecclesiastic Politycs, 1594-97,1, 8), que, por sua vez, adotava a doutrina
tomista. O segundo passo decisivo do jusnaturalismo moderno foi dado por Hobbes, graças a quem são
eliminados da noção de D. natural alguns vestígios dogmáticos que ainda persistiam na doutrina de
Grócio. Para Hobbes, a lei natural é, sem dúvida, "um ditame da reta razão", mas a razão de que ele fala é
a razão humana falível. "Por reta razão no estado natural da humanidade entendo, ao contrário da maior
parte dos escritores que a consideram uma faculdade infalível, o ato de raciocinar, o raciocínio próprio de
cada indivíduo, verdadeiro em termos de ações;
que podem gerar vantagens ou prejuízos aos outros
homens. Digo 'própria de cada indivíduo' porque, ainda que no Estado a razão (ou seja, a lei civil) do
Estado deva ser observada por todos os cidadãos, fora do Estado, porém, onde ninguém pode distinguir a
razão correta da falsa, a não ser confron-tando-a com sua própria razão, cada um deve considerar sua
própria razão não só como regra de suas ações, realizadas por sua conta e risco, mas também como
medida das razões alheias em relação às coisas. Digo 'verdadeiro', ou seja, derivado de princípios
verdadeiros corretamente elaborados, porque toda violação das leis naturais resume-se na falsidade dos
raciocínios, na estupidez dos homens que não julgam necessário à sua própria conservação cumprir seu
dever para com os outros" (De eive, 1642, II, 1, nota). Nesse importantíssimo trecho de Hobbes, além da
reafirmação do caráter racional do D. natural, comum a todo o jusnaturalismo moderno, encontra-se o
primeiro e decisivo reconhecimento do caráter falível, finito ou humano da razão que funda o D. natural.
Grócio transferira o D. natural da esfera da razão divina (na qual os escritores antigos e medievais a
situavam) para a esfera da razão humana, mas continuara atribuindo a essa razão o caráter de infalibidade.
Hobbes dá mais um passo ao negar esse caráter. Por fim, a razão "própria de cada indivíduo", ou seja,
própria de
DIREITO
283
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cada um e de todos os indivíduos humanos, é tribunal que julga da legitimidade ou naturalidade de uma
lei; e faz esse julgamento em termos de possibilidade de ser inferida ou deduzida de princípios
verdadeiros que, de resto, derivam todos de um princípio único, qual seja, "deve-se buscar a paz sempre
que ela for possível; quando não, é preciso buscar socorro para a guerra" ilbid., II, 2). Em De jure naturae
etgentium (1672), Samuel Pufendorf fazia uma síntese feliz das doutrinas de Grócio e de Hobbes ao dizer
que "a lei natural deriva dos ditames da reta razão, no sentido de que o intelecto humano é capaz de
compreender com clareza, a partir da observação de nossa condição, que é preciso viver necessariamente
do acordo com as normas do D. natural e investigar, ao mesmo tempo, o princípio de onde tais normas
recebem sua sólida e clara demonstração" (De jure nat., II, 3, 8). Para Pufendorf, assim como para
Hobbes, o princípio supremo do D. natural exprime a exigência da coexistência pacífica entre os homens
ilbid., II, 3, 8, 10). Graças a Grócio, Hobbes e Pufendorf, a doutrina tradicional do D. natural
transformou-se em técnica racional das relações humanas, que, embora estritamente dependente do
conceito de racionalidade geométrica predominante na época, constitui uma noção que ainda hoje poderia
ser recuperada com vistas a uma "teoria geral do D." (v. mais abaixo). A teoria de Hume não é mais que a
reelaboraçâo em linguagem diferente e a retificação empirista dessa doutrina, enquanto a teoria de
Spinoza, comparada a ela, representa um retorno à fase clássica da teoria do D. natural.
Quando Spinoza diz: "Cada um existe por supremo D. natural e faz o que decorre da necessidade de sua
natureza" (Et., IV, 37, scol. 2), está apenas retornando à concepção dos estóicos, segundo a qual o D.
natural nada mais é que a necessidade de todo ser de adequar-se à ordem racional do todo. Por outro lado,
Hume nega o estado natural, qualificando-o de "ficção filosófica", mas dificilmente sua crítica pode ser
entendida como crítica ao D. natural. Quando ele insiste na subordinação de todas as normas,
concernentes ao estado de paz ou ao estado de guerra, à utilidade humana, só faz repetir uma tese
apreciada pelos jusnaturalistas modernos, em particular Hobbes. O caráter utilitário, eficiente, das regras
que regem todos os tipos de relações humanas, enquanto destinadas a possibilitar essas relações, é
ilustrado por Hume
com um exemplo que nos parece muito evidente, o das normas de tráfego. "As regras são necessárias
sempre que entre os homens haja uma relação qualquer. Sem elas, nem mesmo podem passar uns ao lado
dos outros na rua. Os carreteiros, os cocheiros, os postilhões obedecem a princípios para dar passagem, e
esses princípios baseiam-se principalmente na comodidade e na conveniência recíprocas. Algumas vezes,
são arbitrários ou pelo menos dependentes de alguma espécie de analogia caprichosa, assim como muitos
raciocínios dos advogados" (Inq. Cone. Morais, IV, ao final). Assim, Hume certamente não admite o
caráter de racionalidade necessária que Grócio atribuía às normas que regulam as relações humanas, mas
compartilha da noção fundamental do jusnaturalismo moderno, de que tais normas constituem uma
técnica razoável, ainda que nem sempre racional, das relações humanas.
2. DIREITO COMO MORAL.
A segunda concepção de D., fundado na moral, prenuncia-se quando se começa a atribuir à moral
caracteres que os autores até aqui examinados atribuíam ao D. Em todas as doutrinas do D. natural, nem
chega a nascer o problema da distinção entre moral e direito. O D. natural é constantemente identificado
com o que é bem ou justo na ordem das relações humanas, portanto com a verdadeira moralidade; por
outro lado, a sua diferença em relação ao que Graciano e Tomás chamavam de lei humana e que Grócio
chamava de lei voluntária é a distinção entre o que é justo e bom em si mesmo (verdadeiramente moral) e
o que é justo ou bom só por participação, podendo, pois, não ser justo e bom, como de fato às vezes não
é. Não há dúvida, portanto, de que nos autores até aqui examinados a esfera do D. natural coincidiu com a
esfera que denominamos moral, porém talvez fosse mais exato dizer que eles simplesmente não faziam
distinção entre D. natural e moral. O primeiro sinal dessa distinção pode ser visto na tentativa de Leibniz
de fazer o D. natural derivar da moral, o que parece supor certa distinção entre as duas esferas. Leibniz
diz que o D. é uma "potência moral" e que a obrigação é uma "necessidade moral", entendendo por moral
o que é natural no homem bom, ou seja, o amor ao próximo no sentido da alegria pela felicidade alheia.
"Dessa fonte", acrescenta, "flui o D. natural, que tem três graus.- o D. estrito, que é a justiça comu-tativa;
a eqüidade ou caridade, que é a justiça
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distributiva; a piedade ou a probidade, que é a justiça universal. Esses graus correspondem aos três
preceitos seguintes: 'não prejudicar ninguém', 'atribuir a cada um o que lhe é devido' e 'viver
honestamente' (ou piamente)" {De notio-nibus júris et justitiae, 1693, Op., ed. Erdmann, p. 119). Já
nessas formulações de Leibniz a esfera da moral é entendida como originária e primária em relação à do
D. natural. Mas foi Cristiano Thomasius (1655-1728) o primeiro a expressar com clareza e impor na
filosofia jurídica a distinção entre esfera jurídica e esfera moral, marcando assim a passagem da teoria do
D. natural à teoria do D. fundado na moralidade. Thomasius distinguiu três "fontes" do bem: a
honestidade {honesturri), o decoro {decorum) e a justiça {justurrí). A honestidade é o bem mais alto e o
seu oposto é a torpeza. A justiça opõe-se ao mal extremo, que é a injustiça. E o decoro é um bem
intermediário e por isso imperfeito, sendo um mal imperfeito a falta de decoro {Fundamenta júris
naturae et gentium exsensu communi deducta, 1705,1, 4, § 89). Correspondentemente, "a honestidade
dirige as ações internas dos ignorantes; o decoro, as ações externas que visam a angariar a benevolência
alheia; a justiça, as ações externas, para que não perturbem a paz ou a restituam quando for perturbada"
{Ibid., I, 4, § 90). À norma da honestidade pertence uma obrigação interna que é a mais perfeita e não
obriga em face dos outros homens, mas em face de si mesmo. Pertence à norma da justiça uma obrigação
externa, segundo a qual "ninguém tem o D. em si mesmo", visto que "todo D. é externo, não interno"
{Ibid., I, 5, § 16, 17, 24). "Do que se disse", acrescenta Thomasius, "infere-se que tudo o que o homem
faz por obrigação interna e em conformidade com as regras da honestidade e do decoro é regido pela
virtude em geral, e por isso o homem é dito virtuoso, e não justo; ao passo que o que ele faz segundo as
regras da justiça, ou por obrigação externa, é regido pela justiça e faz que possa ser chamado de justo"
{Ibid., I, 5, § 25). Com essas palavras, a esfera da moralidade e a esfera do D. são claramente distinguidas
e contrapostas: a primeira é a esfera privada da interioridade ou, como Thomasius às vezes também diz,
do "coração" {Ibid., I, 6, § 15, 18 etc); a segunda é a esfera da exterioridade e das obrigações para com os
outros. Por isso, os deveres para consigo mesmo são extraídos por Thomasius do princípio da honestidade
mais do que do princípio da justiça {Ibid., II, 2, § 2); o mesmo princípio do D. natural, do qual todas as normas de tal D.
devem ser dedutíveis, é formulado por Thomasius principalmente em termos de vida moral: "É preciso
fazer tudo o que é possível para tornar a vida dos homens mais longa e feliz e evitar tudo o que torna a
vida infeliz e apressa a morte" {Ibid., I, 6, § 21).
Depois de Thomasius, a distinção entre a esfera do D. e a esfera moral tornou-se lugar-comum da
filosofia. Wolff deduzia o primeiro corolário dessa distinção ao identificar o direito natural com a teoria
da filosofia prática, ou seja, com a ética, a política e a economia {Log., Discursus prel., § 68). E Kant, que
a reexpôs a seu modo, transformou-a num dos fundamentos da filosofia moral e jurídica moderna. Mas
com a predominância dessa distinção, a teoria do D. natural tornava-se útil; o fundamento do D. era
colocado ou reconhecido na moral e o próprio D. era entendido como uma forma reduzida ou imperfeita
de moralidade. Um dos pontos básicos da doutrina de Kant é a distinção entre legalidade e moralidade. "A
pura concordância e discordância de uma ação com a lei", diz ele, "sem considerar o móvel da ação,
chama-se legalidade (conformidade com a lei), ao passo que se tem a moralidade quando a idéia do
dever, derivada da lei, é ao mesmo tempo móvel da ação (doutrina moral). Os deveres impostos pela
legislação jurídica podem ser apenas deveres externos porque essa legislação não exige que a idéia do
dever, que é totalmente interna, seja de per si motivo determinante da vontade do agente e, como tem
necessidade de móveis apropriados às suas leis, só pode admitir móveis externos. A legislação moral, ao
contrário, embora erija em deveres também ações internas, nem por isso exclui as ações externas, mas
refere-se em geral a tudo o que é dever" (Met. der Sitten, I, Intr., § 3). Portanto, o D. é "o conjunto de
condições por meio das quais o arbítrio de um pode ajustar-se ao arbítrio de outro, segundo uma lei
universal da liberdade", e pode ser representado como "uma coação geral e recíproca", de tal modo que
"D. e faculdade de coagir significam a mesma coisa" {Ibid., Intr. à doutrina do dir., § E). Sob esse aspecto,
não há diferença entre D. natural e D. positivo, que são distintos só na medida em que o D. natural
repousa exclusivamente em princípios apriori, ao passo que o D. positivo deriva da vontade do legislador
{Ibid., Div. da doutr. do dir., § B).
DIREITO
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DIREITO
Nessa doutrina de Kant há três pontos importantes: 1Q
o caráter primário e fundamental da norma moral,
que é a única lei racional, e portanto dá origem à norma de D.; 2B
o caráter "externo", logo imperfeito, da
norma de D. e, por conseguinte, o caráter imperfeito e incompleto da ação legal em relação à ação moral;
3
e o caráter necessariamente coercitivo do D. Esses três pontos tiveram grande importância no
desenvolvimento sucessivo da doutrina do D.; o primeiro deles é, obviamente, resultado da doutrina do D.
natural.
E também inspira grande número de correntes da moderna filosofia do D., mais precisamente aquelas que
partem da distinção entre a esfera externa da ação, como pertencente ao D., e a esfera interna da intenção
ou da consciência, como pertencente à moralidade. Assim, a teoria do D. como "o minimum ético",
proposta por Jellinek (Die sozial-ethische Be-deutung von Recht, Unrecht, undStrafe, 1878), implica, ao
mesmo tempo, que o D. deriva da moral e que o D. se reduz a uma esfera moral restrita ou diminuta.
Concepção análoga foi sustentada por Croce, que a exprimia com a fórmula da identidade entre atividade
jurídica e atividade econômica, identidade que servia para fazer a distinção entre D. e moral, ao mesmo
tempo em que vinculava os dois, de acordo com a solução geral apresentada por Kant {Filosofia da
pratica, 1909, pp. 370 ss.).
Outro modo de exprimir a mesma noção de D. pode ser visto na doutrina de R. Stammler, de D. como
tendência imanente em todo D. positivo e da moralidade como perfeição do D. correto, isto é, como
perfeição última deste {Lebre von richtigen Recht, 1902, p. 87). Ainda na mesma linha situa-se o russo
Leon Pe-trazycki {Introdução ao estudo do direito e da moral, 1905; Teoria do direito, 1907), que fez a
distinção entre as normas morais que estabelecem "obrigações livres", ou seja, não conferem aos outros
nenhum D. ou pretensão, e as normas morais que garantem tais obrigações em relação aos outros, ou seja,
dão aos outros o D. de pretender o que a norma garante {Low andMorality, trad. in., 1955, pp. 46-47). E
recentemente A. L. Goodhart reafirmava, ao menos em relação à Common Zíiwanglo-saxônica, o
fundamento moral do D., entendendo-o como obrigação ou dever-ser {oughtness), que não pode ser
reduzido à coerção externa ou à sanção {English Law and the Moral Law, 1953, pp. 18 ss.).
3. DIREITO COMO FORÇA.
Da negação do D. natural e da ligação da noção de D. com a de coerção externa ou sanção nasce a terceira
concepção fundamental de D., que o identifica com a força. A característica essencial da força é garantir
a realização da norma, de tal modo que o D. como força é o D. realizado, ou seja, D. que ganha corpo e
substância em instituições historicamente existentes. O pressuposto dessa corrente é, portanto, a negação
do D. como dever-ser, aliás, do próprio dever-ser: é a identificação entre norma e realidade, entre deverser e ser. Este último aspecto exclui Hobbes dessa corrente doutrinai, pois, uma vez que ele não
identificou o dever-ser com o ser, admitiu um D. natural que é a saída razoável do homem de uma
situação hostil que ameaça destruí-lo, e não considerou que essa saída era infalivelmente garantida e
plenamente realizada. A concepção do D. como força, com base na identificação entre dever-ser e ser,
nasce com Hegel. Segundo ele, o D. é "uma existência em geral que seja existência da vontade livre"
{Fil. do dir., § 29)- Isso significa que o D. é uma liberdade realizada em instituições historicamente
determinadas, que como tais nada têm mais a ver com a liberdade entendida como arbítrio individual.
Hegel, como todo o Romantismo reacionário do séc. XIX, via na liberdade do indivíduo o conceito e a
inspiração fundamental do Iluminismo e da Revolução Francesa, contra os quais entendia assestar sua
doutrina. Citando a definição kantiana de D. (v. acima), ele observava: "A citada definição de D. contém a
opinião, corrente sobretudo depois de Rousseau, segundo a qual o querer deve ser fundamento substancial
e primeiro princípio, não enquanto racional em si e para si, não enquanto espírito e espírito verdadeiro,
mas enquanto individualidade particular, enquanto vontade do indivíduo em seu arbítrio particular. Uma
vez acolhido esse princípio, o racional certamente só pode aparecer como limitador dessa liberdade; logo,
não como racionalidade imanente, mas só como universal externo, formal. Esse ponto de vista é
desprovido de qualquer pensamento especulativo, e é rejeitado pelo conceito filosófico, visto ter
produzido, nas mentes e na realidade, fenômenos cuja horribilidade só tem paralelo na superficialidade do
pensamento em que se fundavam" {Ibid., § 29). Assim, os "horrores" da Revolução Francesa constituem
um paralelo à "superficialidade" de entender a liberdade não
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286
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como realidade histórica, mas como o dever-ser de uma norma. Conseqüentemente, Hegel acha que o D.
é algo sagrado, só por ser "a existência do conceito absoluto, da liberdade autoconsciente", e que um D.
superior, ou seja, mais real, subordina um D. mais abstrato, ou seja, menos real ou imperfeitamente real.
Assim, a esfera do "D. abstrato" subordina-se à da "moralidade", e ambas se subordinam à da "eticidade",
que é a própria liberdade "transformada em mundo existente" {Ibid,, § 142). E a eticidade culmina no
Estado, que é a realidade histórica máxima e, portanto, a mais elevada, a única verdadeira e definitiva
realização do direito. "O ingresso de Deus no mundo", diz Hegel, "é o Estado; seu fundamento é a
potência da razão que se realiza como vontade. Como idéia de Estado não se devem ter em mente estados
particulares, instituições particulares, mas considerar a Idéia por si, esse Deus real" {Ibid., § 258, Zusatz).
Embora fale assim do Estado "em si", que conserva caráter divino ainda que, em suas manifestações
particulares, se mostre imperfeito, assim como um homem conserva caráter humano mesmo quando é
aleijado ou deficiente, Hegel julga que todos os Estados são encarnações do "Espírito do povo", a
autoconsciência que um povo tem de sua própria verdade e de seu ser, ou a "cultura" de uma nação {Phil.
der Geschichte, ed. Lasson, p. 93). O D. não é senão a realização da liberdade no Estado: existe só como
lei do Estado. Correspondentemente, a liberdade existe só como obediência às leis do Estado. "Ao Estado
pertencem as leis, e isso significa que o costume não subsiste só na forma imediata, mas na forma do
universal, como objeto de um saber. O fato de esse universal ser conhecido constitui a espiritualidade do
Estado. O Indivíduo obedece às leis, e sabe que nessa obediência está a sua liberdade; nela, portanto,
entra em relação com seu próprio querer" {Ibid., p. 99).
Durante muito tempo a doutrina do D. natural afirmara que a norma natural é a própria vontade de Deus,
ou vice-versa. Hegel afirma que Deus apareceu ou realizou-se na história: é o próprio Estado. A lei
positiva é assim imbuída do valor e do prestígio que a tradição atribuía ao D. natural. Ao passo que, ao
longo de toda a tradição, sobretudo no mundo moderno, esse D., entendido como lei divina ou como
princípio humano de razão, era um tribunal de apelação ao qual o homem podia recorrer, como de fato
recorria, contra a injustiça ou a
imperfeição do D. positivo, na doutrina de Hegel não existe nenhum tribunal de apelação e, aliás, a
própria doutrina não passa de negação desse tribunal, que é entendido como fonte de pensamentos
"superficiais" e de acontecimentos "horríveis". O indivíduo não tem defesa contra o Estado ou o D.
positivo; não pode desobedecer-lhes e nem mesmo discuti-los; e de fato, discutindo-os, estaria apenas
contrapondo as exigências de seu intelecto "finito" à racionalidade "infinita" da história. O Estado tem
sempre razão. Desse ponto de vista, ao D. só resta a força.
Algumas dessas características da doutrina hegeliana do D., especialmente a redução do dever-ser ao ser,
que é, de resto, o achata-mento da norma no fato, são compartilhadas também por escolas que não se
inspiram na concepção geral de Hegel. Assim, a escola histórica do D., cujo representante principal é F.
von Savigny (1779-1861), ao considerar o Estado como "manifestação orgânica do povo", vê no D. um
produto do "espírito do povo", algo que encontra realidade ria vontade comum do povo {Über den Beruf
unserer Zeit, 1814). Como última justificação do caráter histórico, portanto nacional, do D., os seguidores
dessa escola aduzem a consideração de que o D., visando conservar a ordem nacional, contribui no campo
da história para conservar e garantir a ordem cósmica desejada por Deus. J. Stahl diz que o D. é "a ordem
vital do povo, especialmente da comunidade dos povos, com vistas à conservação da ordem cósmica
estabelecida por Deus. Ele é uma ordem humana, mas a serviço da ordem divina determinada por um
mandamento divino e fundada na permissão divina" {Phil. desRechts, 1830, II, l
s
, p. 194). Ao contário de
Hegel e da escola hegeliana, a escola histórica não identifica o D. realizado (ou Estado) com Deus, mas
vê no D. algo que provém de Deus e cuja justificação consiste em subordinar-se à ordem cósmica
estabelecida por Deus.
Pode-se ver a mesma orientação fundamental (cuja melhor expressão ainda é a doutrina de Hegel) em
todas as doutrinas do D. que de algum modo relacionem a origem e o fundamento do D. com o "Espírito
do povo", com a "Nação" ou com o "Estado", reduzindo, portanto, a obrigatoriedade do D. à força
coercitiva de uma instituição histórica qualquer, considerada como instrumento providencial da ordem
cósmica ou como essa mesma ordem em sua
DIREITO
287
DIREITO
manifestação. De fato, é de se observar que a ênfase ou mesmo a exaltação do caráter "ético", "racional",
"providencial" ou de qualquer forma necessário e necessitante do D. positivo têm como conseqüência
simetricamente oposta a atribuição de caracteres idênticos ao D. natural. Se esses caracteres são
atribuídos ao D. natural, reconhece-se ao mesmo tempo e com base nisso a possibilidade de discutir,
avaliar e julgar o D. positivo, reconhecendo-se, portanto, implícita ou explicitamente, a possibilidade e a
autonomia desse juízo. Mas quando esses caracteres são atribuídos apenas ao D. positivo, nega-se
qualquer possibilidade de discutir, avaliar e julgar tal D., negando-se portanto a autonomia e a própria
possibilidade de qualquer juízo e até mesmo da mais inócua discussão sobre o D. E essa negação que
muitas vezes as teorias desse gênero pretendem garantir e justificar.
4. DIREITO COMO TÉCNICA SOCIAL.
A concepção de D. como força nega o D. natural por negar qualquer dever-ser, e nega qualquer dever-ser
por considerar o D. apenas como força necessariamente realizadora. Não prescinde de considerações de
valor e, particularmente, da idéia de justiça, ou seja, de um tipo de coexistência perfeita entre os homens,
mas considera o valor ou a justiça já desde sempre realizados: como dizia Hegel, a razão não é tão
impotente que não possa realizar-se no mundo. As correntes formalistas da moderna filosofia do D.
tendem, ao contrário, a prescindir de qualquer ideal valorativo, ou seja, da própria noção de justiça, que é
entregue à esfera política e moral, mas considerada estranha à do D. O D. natural, como delineamento
normativo de condições perfeitas, desse ponto de vista é mera ficção: o único D. de que se pode
legitimamente falar, que pode ser objeto de consideração científica, e não de desejos ou de aspirações
idealizadoras, é o D. positivo. Mas o D. positivo nada tem de perfeito ou de transcendente, não inclui
nenhum valor último e absoluto. É simplesmente um instrumento para alcançar certos fins; e, como todo
instrumento, pode ser julgado em termos da eficiência, da capacidade de garantir uma ordenação
(qualquer) da sociedade humana. Sob esse aspecto, o D. deve ser reconhecido como um dever-ser, como
uma regulamentação do comportamento humano, com a qual esse comportamento pode até não se ajustar.
Nessa concepção, confluem vários elementos historicamente reconhecíveis: a velha idéia do D. como
utilidade, que sofistas, epicuristas e céticos já haviam defendido na Antigüidade e que no mundo moderno
foi retomada por Hobbes e Hume; e, em especial, a idéia central do jusnaturalismo moderno de que o D. é
a racionalidade das relações humanas (pacíficas ou não) e que, portanto, em sua esfera inclui-se qualquer
regulamentação racional de tais relações. Este último também é o conceito de D. aceito pela teoria formal,
se bem que a polêmica tradicional de ordem ideal e perfeita da comunidade até agora impediu que essa
teoria se identificasse em seu precedente histórico mais ilustre e significativo. Não há dúvida de que a
idéia de D. como técnica ou instrumento para possibilitar as relações humanas, tanto na paz quanto na
guerra — idéia exprimível na forma de imperativos hipotéticos ou de proposições condicionais do tipo
se... então—, é comum ao jusnaturalismo clássico de Grócio, Hobbes, Pufendorf e a outros defensores
hodiernos da "teoria geral do D."
Pode-se ver um precedente dessa teoria na doutrina de John Austin que definiu o D. como "regra
formulada para que um ser inteligente guie outro ser inteligente e tenha poder sobre ele". D. seria,
portanto, mando-, expressão da vontade de um indivíduo, injuntiva para o indivíduo a quem é dirigida, no
sentido de obrigá-lo a fazer o que o mandante requer {Lectures on Jurisprudence, 1861, 5a
ed., 1885, I,
pp. 88 ss.). As características fundamentais da doutrina de Austin são duas: I
a
redução do D. a uma norma
injuntiva, enquanto mando; 2a
caráter racional, ou pelo menos razoável, desse comando, visto emanar de
um ser inteligente e dirigir-se a outro ser inteligente. Essas características também se encontram em
doutrinas aparentemente diferentes da de Austin, como p. ex. na doutrina sociológica de Eugen Ehrlich,
para quem "o D. é uma organização, vale dizer uma norma que atribui a cada membro da associação sua
posição na comunidade, seja ela de preeminência ou de sujeição, bem como seus deveres" {Grundlegung
der Sozio-logie desRechts, 1913, p. 18). Nessa doutrina, o conceito de ordenação prevalece sobre o de
mando, mas a ordenação, assim como o mando de Austin, é uma norma apta a realizar certa forma de
convivência. Kelsen, hoje o maior defensor e representante da teoria formal do direito, remete-se a esses
predecessores. Dis-
DIREITO
288
DIREITO SUBJETIVO
tingue-se de Ehrlich por não julgar que o conceito de ordenação baste para constituir o D., porquanto nem
sempre a ordenação tem força injuntiva; e distingue-se de Austin por julgar que tal força injuntiva não
consiste no mando, mas no dever-ser do D., ou seja, na estrutura normativa do próprio D. Mais
precisamente, para Kelsen o D. é "a técnica social específica de uma ordenação coercitiva", sendo, pois,
caracterizado pela "organização da força" {General Theory of Law and State, 1945,1, A, d; trad. it., pp. 19
ss.). A eficiência dessa técnica é condicionada, segundo Kelsen, por sua coerência, que pode ser medida a
partir de uma "norma fundamental", que serviu de base para a criação das várias normas de determinada
ordem jurídica. "O sistema do positivismo jurídico, diz Kelsen, "exclui a tentativa de deduzir da natureza
ou da razão normas substanciais, que, estando além do D. positivo, possam servir-lhe de modelo, tentativa
cujo êxito é sempre aparente, e que termina com fórmulas que só têm a pretensão de possuir conteúdo. Ao
contrário, examina com senso de responsabilidade os pressupostos hipotéticos de cada D. positivo, ou
seja, suas condições meramente formatí' (ibid., Ap., IV, B, c, p. 443). Kelsen está cônscio do parentesco
que, sob esse aspecto, seu "positivismo jurídico" tem com o jusnaturalismo clássico, especialmente com a
forma assumida na filosofia kantiana (Ibid., pp. 445, 453), embora continue dizendo que o positivismo
rejeita "a ideologia de que a teoria jusnaturalista se vale para justificar o D. positivo" (Ibid., Apêndice, IV,
B, h, p. 453). Na realidade, no jusnaturalimo ele não distingue suficientemente a fase moderna da fase
antiga e assim atribui à sua fase moderna a noção da ordem perfeita e providencial da justiça, que
caracterizava a fase antiga e entrou em crise com Grócio. Na realidade, a filosofia política e jurídica
contemporânea ainda não conseguiu recuperar os ensinamentos fundamentais da teoria do D. natural,
especialmente em sua formulação jusnaturalista de Grócio a Hume. O que impediu ou obstou essa
recuperação foi a crença de que aquela teoria se fundava num conceito "metafísico" ou "platônico" de
justiça, além da exigência de eliminar da consideração "científica" do D. qualquer ideal valorativo. Mas
na realidade o jusnaturalismo moderno não se apoiou em determinado ideal de justiça, mas na exigência
de que o D., sejam quais forem as normas particulares em que se concretize, seja
eficiente no objetivo de possibilitar as relações humanas. Nessa exigência, como se viu, Grócio e Hume
estão de acordo embora possam dis-sentir quanto ao caráter "necessariamente racional" ou simplesmente
"útil", logo razoável, do direito. Ora, o que se espera de uma técnica, qualquer que seja ela, é a eficiência.
E o juízo sobre a eficiência de uma técnica não pode fundar-se exclusivamente em sua coerência interna,
como pretende Kelsen. É claro que há uma condição fundamental para que a uma técnica qualquer
conserve sua eficiência e a aumente: é a retificabilidade da própria técnica. De fato, quando uma técnica
qualquer pode ser oportunamente modificada e adaptada às circunstâncias, sem mudar substancialmente,
conclui-se que é capaz de conservar e de incrementar a sua eficiência. Portanto, toda técnica eficaz deve
ser auto-retificável; essa é, na verdade, a única vantagem que a técnica da ciência experimental, desde
Galileu até hoje, possui sobre as outras. Desse ponto de vista, o juízo técnico sobre determinado sistema
de D. é o juízo sobre a sua capacidade de corrigir ou eliminar suas próprias imperfeições, de tomar-se
mais ágil e, ao mesmo tempo, mais rigoroso. Não é um juízo que se refira à mera coerência do sistema,
nem um juízo de valor resultante do confronto do sistema com um ideal prévio de justiça. E um juízo
concreto e diretivo, capaz de influir na evolução histórica do direito.
O quadro acima, sobre as teorias filosóficas do D., mostra definitivamente que não tem sentido qualquer
tentativa de definir as relações entre D. e moral, entendendo tanto o D. quanto a moral como duas
categorias "eternas" do espírito. De fato, D. e moral devem ser considerados idênticos tanto do ponto de
vista da teoria do D. natural quanto do ponto de vista da teoria do D. como força. Obviamente, a teoria
segundo a qual o D. se apoia na moral faz uma distinção entre ambas e, na realidade, é a teoria de tal
distinção. Quanto à teoria formal do D., provavelmente permite tanto uma quanto outra solução (v.
ÉTICA).
DIREITO SUBJETIVO (gr. TÒ StKaiov; lat. Jus; in. Rigbt; fr. Droit; ai. Recht; it. Diritto soggettivo). É
o significado que a palavra D. assume em expressões como estas: "Declaração dos D. do homem", "A lei
garante ao réu o D. de defender-se", "O D. ao ressarcimento dos danos". Pufendorf foi um dos primeiros a
expressar com clareza a distinção entre D. em sentido objetivo, como "complexo de leis", e
DISAMIS
289
DÍSPAR
D. em sentido subjetivo, como "faculdade de fazer algo, concedida ou permitida pelas leis". Assim como
o homem tem o poder de fazer tudo o que promane de suas faculdades naturais, contanto que não seja
proibido expressamente por uma lei, costuma-se dizer que a lei atribui o D. de fazer tudo o que não é
proibido por nenhum tipo de lei. Nesse sentido, o D. concerne à nossa liberdade; a lei, ao contrário,
implica a obrigação pela qual a liberdade natural é limitada" (De jure naturae, 1672, I, 6, 3). Essa
distinção manteve-se até hoje nos mesmos termos.
DISAMIS. Palavra mnemônica usada pelos escolásticos para indicar o terceiro dos seis modos do
silogismo de terceira figura, mais precisamente o que consiste em uma premissa particular afirmativa,
uma premissa universal afirmativa e uma conclusão particular afirmativa, como no exemplo: "Alguns
homens são substância; todo homem é animal; logo, alguns animais são substância" (PEDRO HISPANO,
Summ. log., 4.14).
DISCIPLINA (gr. uá&ri(ia; lat. Disciplina; in. Discipline, fr. Discipline, ai. Disziplin; it. Disciplina). 1.
Uma ciência, enquanto objeto de aprendizado ou de ensino (v. MATHEMA).
2. Função negativa ou coercitiva de uma regra ou de um conjunto de regras, que impede a transgressão à
regfa. Foi assim que Kant a entendeu ao defini-la como "a coerção graças à qual a tendência constante a
transgredir certas regras é limitada e, por fim, destruída". Distinguiu-a da cultura, "que só deve conferir
uma habilidade, sem abolir outra preexistente". A D. da razão pura é parte importante da doutrina
transcendental do método, visto que a razão, em seu uso filosófico, não é limitada ou sustentada pela
experiência (como ocorre na física) nem pela intuição pura (como ocorre na matemática) (Crít. R. Pura,
Doutr. transe, do mét., cap. I).
DKCRETTVA, PROPOSIÇÃO (fr. Proposition discrétivé). A Lógica de Port-Royal assim chamou a
proposição composta de juízos diferentes, interligados por partículas como "mas", "todavia", etc, tanto
expressas quanto subentendidas; p. ex., "O destino pode tirar as riquezas mas não a coragem" (ARNAULD,
Log., II, 9).
DISCRETO (gr. ôtcoptauévoç; lat. Discretus; in. Discrete, fr. Discret; ai. Diskret; it. Discreto).
Descontínuo (v. CONTÍNUO).
DISCURSIVO (lat. Discursivus; in. Discursi-ve, fr. Discoursif, ai. Discursiv, it. Discorsivo).
Esse adjetivo corresponde ao sentido da palavra grega dianóia (v.) porque designa o procedimento
racional que avança inferindo conclusões de premissas, ou seja, através de enunciados negativos ou
afirmativos sucessivos e concatenados. S. Tomás contrapõe esse processo, considerado próprio da razão
humana, à ciência intuitiva de Deus, que entende tudo simultaneamente em si mesmo, com um ato
simples e perfeito da inteligência (S. Th., I, q. 14, a. 7 ss.; Contra Gent., I, 57-58). Essa é a contraposição
que se acha em Platão e em Aristóteles entre razão (dianóia) e intelecto (nous). Os modernos utilizaram
essa palavra com o mesmo significado (HOBBES, Leviath., I, 3; WOLFF, Log., § 51). Kant acompanhou
esse uso. "O conhecimento qualquer intelecto", disse ele, "ao menos do intelecto humano, é um
conhecimento por conceitos: não intuitivo, mas D." (Crít. R. Pura, Analítica, I, cap. I, seç. 1). Em toda a
sua obra Kant contrapõe constantemente o intelecto D. ou humano ao hipotético "intelecto intuitivo" de
Deus, que é criador dos seus objetos (Lbid., § 21) (v. INTELECTO).
DISJUNÇÃO (in. Disjunction-, fr. Disjonc-tion, ai. Disjunktion; it. Disgiunzioné). Na Lógica escolástica,
é uma propositio hypothetica formada por duas categorias unidas pelo sinal "vel" ("Sócrates currit
velPlato sedef). Na Lógica contemporânea, é uma proposição mole cular formada por duas (ou mais)
proposições atômicas unidas pelo sinal "v" ("pvq"). Em ambas as Lógicas, a condição necessária e
suficiente para a verdade de uma D. é que pelo menos uma das duas proposições componentes seja
verdadeira. G. P.
DISJUNTIVO (gr. SteÇevyuivoç; lat. Disiunc-tivus, in. Disjunctive, fr. Disjonctif, ai. Dis-junktive, it.
Disgiuntivó). É o enunciado que contém uma alternativa, tanto em sentido in-clusivo, como p. ex. "uma
estrada ou outra conduz a Roma", quanto em sentido exclusivo, como p. ex. "ou é noite ou é dia". Os
estóicos, que foram os primeiros a atentar para esses enunciados, entenderam-nos em sentido exclusivo
(DIÓG. L., VII, 1, 72).
Silogismo D. é o que tem como premissa maior uma proposição disjuntiva (v. SILOGISMO).
DÍSPAR (lat. Diparatus, in. Disparate, fr. Disparate, ai. Disparai; it. Disparato). Foi assim que Cícero
chamou o que está em oposição contraditória com outra coisa, como p. ex. não saber em relação a saber
(De Invent., 28, 42). Boécio restringiu esse termo aos opostos con-
DISPOSIÇÃO 290
DISTINÇÃO
traditórios que, por serem muito diferentes, não têm entre si nenhuma contrariedade, como terra e roupa
(Desyll. hipot., I. P. L., 64s
, col. 834). O significado proposto por Boécio prevaleceu no uso filosófico e
comum: D. são as coisas inconfrontáveis por sua diversidade. O conceito foi reintroduzido na lógica por
Rodolfo Agrícola e elaborado pelos lógicos do séc. XVII, que consideraram os disparata e os opposita
como as duas espécies dos dissen-tanea. Por estes últimos entendiam-se as coisas diferentes entre si, a
ponto de não poderem ser atribuídas reciprocamente, e por D. as "realmente diferentes ou tais que uma
pudesse existir simplesmente sem a outra" (JUNGIUS, Log., V, 33,1-3). Leibniz chamou de D. "as
proposições que dizem que o objeto de uma idéia não é o objeto de uma outra idéia"; p. ex., o calor não é
a mesma coisa que a cor iNouv. ess., IV, 2, § 1).
DISPOSIÇÃO (gr. ôtáBeoiç; lat. Dispositio-, in. Disposition; fr. Disposition; ai. Disposition; it.
Disposizioné). 1. Distribuição das partes em um todo, devida à ordem do todo. Foi assim que Aristóteles
entendeu essa palavra (Met., V, 19, 1022 b 1) (v. ORDEM, 2).
2. Tendência, inclinação ou atitude. Nesse sentido, essa palavra foi entendida também por Aristóteles
(Met., V, 20, 1022 b 10), que às vezes a utilizou para indicar a virtude (Et. nic, II, 7, 1107 b 16, 30, etc).
Os estóicos empregaram-na constantemente para definir a virtude: "uma D. de alma coerente e concorde"
(STOBEO, Eci, II, 7, 60; CÍCERO, Tusc, IV, 34). Esse significado persiste na filosofia medieval. Às vezes,
distingue-se D. de hábito. Pedro Hispano diz: "O hábito difere da D. por ser mais permanente e
duradouro, assim como são, p. ex., as virtudes e as ciências... As D., ao contrário, mudam facilmente,
como p. ex. o frio, o calor, a saúde, a doença, etc. Os hábitos podem ser chamados de D., mas a recíproca
não ocorre. Por isso, pode-se definir hábito como uma qualidade dificilmente movível, e a D. como uma
qualidade facilmente movível" (Summ. log., 3-23). O significado dessa palavra não mudou até hoje.
Segundo Dewey, "a palavra D. significa predisposição, prontidão para agir abertamente de determinado
modo sempre que se apresentar a oportunidade: essa oportunidade consiste na supressão da pressão
exercida pelo domínio de algum hábito patente" (Human Nature and Conduct, 1922, p. 41).
Já na lógica medieval as qualidades das coisas às vezes eram chamadas de D. (PEDRO HISPANO, Summ. log., 12.08); os lógicos modernos repetem essa doutrina, afirmando às vezes que são D.
também qualidades que, como quebrado ou dissolvido, parecem exprimir um fato. Popper observa a
propósito que um químico não diria que o açúcar ou o sal se dissolveram na água se não esperasse poder
recuperar o açúcar ou o sal mediante a evaporação da água ( The Logic ofScientific EHscovery, 1959, p.
424).
DISPOSICIONAL. V. POSSIBILIDADE.
DISPUFATIO. Foi um dos métodos fundamentais do ensino universitário na Idade Média. Suas origens
provavelmente remontam à filosofia grega, em particular a Aristóteles, mas foi só no séc. XI que esse
método começou a ser regulamentado por uma técnica ad hoc, segundo o modelo do Sic et non de
Abelardo. A dialética, ou seja, a lógica, era habitualmente considerada a técnica desse método, assim
definido por João de Salisbury: "A disputatio se dá em torno das coisas que sejam duvidosas,
apresentadas de forma contraditória ou que nos proponhamos demonstrar ou refutar de um modo ou de
outro" (Metalogicus, II, 4).
DISSENTÂNEO. V. DÍSPAR.
DISTELEOLOGIA (in. Dysteleology, fr. Dys-téléologie, ai. Dysteleologie, it. Disteleologid). Termo
criado pelo biólogo materialista Ernesto Haeckel para indicar a parte da biologia que estuda os fatos
biológicos (monstruosidade, abortos, atrofias, etc.) que contradizem a existência de uma finalidade na
formação dos organismos vivos (Weltrütsel, 1899, cap. 14).
DISTINÇÃO (lat. Distinctio; in. Distinction; fr. Distinction; ai. Unterscheidung; it. Distin-zionè). 1. A
relação ou o aspecto segundo o qual pode ser reconhecida uma alteridade entre objetos quaisquer que
sejam. A doutrina da D. foi elaborada pela Escolástica com objetivos metafísicos e teológicos. S. Tomás
conhece somente a D. formal ou específica, que ocorre entre duas espécies diferentes, e a material ou
numérica, que ocorre entre duas coisas pertencentes à mesma espécie (S. Th., I, q. 47, a. 2). Mas no
século seguinte Francisco Mayron podia enunciar nada menos do que sete espécies de D.: I
a D. de razão
(rationè), como p. ex. entre Sócrates como sujeito e Sócrates como predicado da proposição "Sócrates é
Sócrates"; 2a D. ex natura rei, que é independente da ação do intelecto, como a que existe entre o todo e
as partes, o efeito e a causa, o alto e o baixo, etc.; 3S
D. formal, que ocorre entre as coisas que não podem
servir de predicado uma à outra,
DISTRAÇÃO
291
DIVERSIDADE
como p. ex. entre o homem e o asno; nesta distinção Duns Scot já insistira longamente, utilizando-a para
exprimir a diferença entre o indivíduo e a natureza comum {Op. Ox., II, d. 3, q. 6, n. 15) e entre os
atributos divinos {Ibid., I, d. 8, q. 4, n. 17); segundo Mayron, esse tipo de D. pode ser formulado por
definição, divisão (ou classificação), descrição e demonstração, pois o que é individualizado por qualquer
um desses processos distingue-se formalmente das outras coisas; 4S
D. real, que ocorre entre as "coisas
positivas" que são reciprocamente independentes, tais que a existência de uma pode prescindir da
existência da outra; 5a
D. essencial, entre as coisas que podem ser separadas ainda que hipoteticamente (p.
ex., da ação de Deus), como matéria e forma, acidente e substrato, precedente e conseqüente; 6° D. total
substancial {subjectivd), entre as coisas que não coincidem em nenhuma realidade substancial; 7S D. total
representativa {objectivd), entre as coisas que não podem ter o mesmo predicado essencial
{quiditativurrí) {Formalitates, ed. Venetiis, 1517, pp. 23-24). Descartes simplificou muito essa tábua
complicada, reduzindo as D. a três: real, modal e de razão. A D. real ocorre entre duas ou mais
substâncias, quando se pode pensar numa substância clara e distintamente sem pensar na outra. A D.
modal ocorre ou entre a substâácia e o seu modo (ou manifestação) ou entre dois modos diferentes da
mesma substância. A D. de razão é a que se estabelece às vezes entre a substância e um de seus atributos,
sem o qual, porém, a substância não poderia subsistir, ou entre dois atributos, igualmente inseparáveis, da
mesma substância (Princ. phil., I, 60-62). A doutrina das D. não teve continuidade na filosofia moderna e
contemporânea.
2. Grau da evidência (v. CLAREZA).
DISTRAÇÃO (lat. Distractie, in. Distraction; fr. Distraction; ai. Zerstreutheit; it. Distrazionê). 1.
Condição em que a atenção é distanciada das idéias ou das ocupações dominantes e voltada para outras
coisas. Já Kant, com muito bom-senso, notava que é fraqueza, mais do que força do espírito, não poder
separar-se de alguma coisa a que se deu grande atenção durante muito tempo: fraqueza que, se habitual e
voltada para o mesmo objeto, pode degenerar em loucura. Portanto, a D., como divertimento do espírito, é
condição da saúde mental. Por outro lado, a distração constante confere ao homem a aparência de
sonhador e o torna inútil à sociedade
{Antr., I, 47). Nesse sentido a palavra eqüivale a divertimento (v.).
2. O contrário da atenção (v.).- atividade seletiva malograda ou deficiente em relação aos objetos de um
campo.
DISTRIBUIÇÃO (lat. Ditributia, in. Distribu-tion; fr. Distribution; ai. Aufteilung; it. Distri-buzioné).
Uma das doutrinas típicas da lógica terminista medieval, que entendeu por esse termo "a multiplicação de
um termo comum feita por meio de um signo universal: p. ex., na frase 'todo homem corre', o termo corre
é distribuído para qualquer termo inferior pelo signo todo" (PEDRO HISPANO, Summ. log., 12.01). Ao
conceito de D. deve-se a grande importância que os lógicos terministas atribuíam ao operador todo(y.}.
Embora a importância desse operador seja por vezes reconhecida na lógica contemporânea, falta a esta
uma doutrina da distribuição.
DISTRIBUTIVO (gr. 5iave^r\-n.KÓÇ; in. Dis-tributive, fr. Distributif, ai. Distributiv, it. Dis-tributivó).
1. Segundo Aristóteles, justiça D. é a que preside à divisão dos recursos e bens comuns, devendo essa
divisão ser feita segundo a contribuição de cada um para a produção desses bens {Et. nic, V, 4,1131 b 25).
Esse tipo de justiça é, portanto, semelhante a uma proporção geométrica de pelo menos quatro termos, na
qual as recompensas dadas a duas pessoas estejam entre si como os méritos respectivos {Ibid., V, 3,1131 a
15) (v. JUSTIÇA).
2. Lei D. é o nome dado a certo número de leis habitualmente admitidas em aritmética e em lógica. Na
aritmética, a lei D. para a multiplicação e para a adição tem a forma seguinte:
X X (y + z) = (X x y) + (x x z)
No cálculo das proposições e no cálculo das classes há leis distributivas análogas.
DIVERSIDADE (in. Diversity, fr. Diversité, ai. Verschiedenheit; it. Diversita).Toda alteridade, diferença
ou dessemelhança. Esse termo é mais genérico que os três acima e pode indicar qualquer um deles ou
todos juntos. Pode outrossim indicar a simples distinção numérica quando duas coisas não diferem em
nada, exceto por serem numericamente distintas. Nesse sentido, a D. é a negação pura e simples da
identidade; Wolff a definia dizendo que "são diversas as coisas que não podem ser substituídas uma pela
outra, permanecendo constantes os predicados que se atribuem a uma delas, seja absolutamente, seja em
dada condição" {Ont., § 183).
DIVERTIMENTO
292
DOGMA
DIVERTIMENTO (in. Diversion; fr. Diver-tissement; ai. Abwendung; it. Divertimento). Qualquer
atividade que afaste o homem das ocupações ou preocupações habituais. Pascal entendeu o D. como o
meio de que o homem dispõe para escapar à consciência de sua própria miséria, e portanto também
incluiu no D. os trabalhos e as ocupações habituais. "Como não puderam curar a morte, a miséria, a
ignorância, os homens julgaram que, para serem felizes, melhor seria não pensar nelas" {Pen-sées, 168,
131, 139, etc). Segundo Pascal, a busca de ocupações tanto mais agradáveis quanto mais absorventes, de
espetáculos, de entretenimentos, etc, é conseqüência dessa atitude, que significa fraqueza e infelicidade
porque torna o homem dependente e passível de ser perturbado por mil acidentes ilbid., 170). Opondo-se
a Pascal, Voltaire observava: "Nossa condição é precisamente pensar nos objetos externos com os quais
temos relações necessárias. É falso achar que se pode levar um homem a deixar de pensar na condição
humana, porque, seja qual for a coisa a que ele aplique seu espírito, está-lo-á aplicando a alguma coisa
que se vincula a tal condição. Pensar em si, fazendo abstração das coisas naturais, é pensar em nada: digo,
atente-se bem, absolutamente nada" (Annotations sur les pensées de Pascal, § 38). Hume, por sua vez,
reconhecia como justas essas considerações porque "o espírito não pode proporcionar sozinho seu próprio
D. e naturalmente procura fora de si objetos que lhe possam dar sensação vivida e ponham suas
capacidades em ação" (.Treatise, II, 1,4). Ponto de vista aceito também pela psicologia moderna.
DÍVIDA. V. DÉBITO.
DIVISÃO (gr. Staípemç; lat. Divisio-, in. Di-vision; fr. Division; ai. Einteilug; it. Divisioné). O processo
da D., que Platão considerou como segunda fase da dialética (v.) e Aristóteles negligenciou como
"silogismo fraco" (An. pr., I, 31, 46 a 31), foi reintroduzido na lógica dos estóicos que foram os primeiros
a distinguir a D. da partição, a definir a subdivisão como "uma D. depois da D." e a distinguir a D. por
espécie da D. por contrário ou por negação (DIÓG. L., VII, 61). Essa doutrina, que se encontra
reproduzida sem variações na lógica do séc. XIII (cf., p. ex., PEDRO HISPANO, Summ. log., 5.45), foi
notavelmente enriquecida nos séculos seguintes (OCKHAM, Summa logicae, I, 34; JUNGIUS, Lógica
hamburgensis, 1638, IV, 5-7) e exposta
em último lugar por Hamilton, que ilustrou amplamente seus fundamentos tradicionais,
Em primeiro lugar, a D., como D. lógica, distingue-se da participação, que é a decomposição de um todo
em suas partes, porquanto é a distinção de objetos diferentes que podem ser significados pelo mesmo
nome. A D. só pode ser feita com base num princípio que exprima um caráter essencial do objeto. Se os
membros que resultam de uma D. são também divididos, tem-se uma subdivisão-, se um mesmo grupo
pode ser dividido com base em princípios diferentes, têm-se co-divisões. Enfim, se uma D. tem só dois
membros chama-se dicotomia; se três, tricotomia, etc.; se muitos, politomia. Hamilton também enunciou
as seguintes regras da D.: I
a
toda D. deve ter um princípio; 2a
deve ter só um; 3a
deve ser um caráter real e
essencial da noção dividida; 4a
nenhum membro divisor do predicado deve, por si mesmo, exaurir o
sujeito; 5a
os membros dividendos, tomados conjuntamente, devem exaurir o sujeito; 6a
os membros
divisivos devem ser mutuamente excludentes; 7a
a D. deve proceder continuamente de diferenças
imediatas a diferenças mediatas {Lectures on Logic, II, 2
a
ed., pp. 22 ss.). O estudo da D. desapareceu da
lógica contemporânea. Esse conceito foi substituído pelo de disjunção, que é um dos conectivos lógicos
(v. CoNEcnvo).
DIVISmiIIDADE (gr. ôiocípecnç; lat. Divisibi-litas, in. Divisibility, fr. Divisibilité, ai. Teilbar-keit; it.
Divisibilitã). Propriedade de um todo, de poder ser decomposto em suas partes; se o todo é contínuo,
essas partes são, por sua vez, divisíveis (ARISTÓTELES, Pis., VI, 1, 231 b 11). Segundo Kant, uma das
antinomias cosmológicas consiste em julgar possível e impossível a divisão ao infinito, portanto
impossível e possível a existência de partes simples, ou seja, indivisíveis. Segundo ele, a antinomia
resolve-se reconhecendo que, embora o todo possa ser dado à intuição, o mesmo não ocorre com a
divisão inteira, que consiste só na decomposição progressiva ou no retrocesso (Crít. R. Pura, Dialética,
cap. II, seç. 9).
DOGMA (gr. Só-yua; lat. Dogma; in. Dogma; fr. Dogme, ai. Dogma; it. Dogma). 1. Opinião ou crença.
Nesse sentido, essa palavra é usada por Platão (Rep., 538 c; Leis, 644 d) e contraposta pelos céticos à
epoché, ou suspensão do assentimento, que consiste em não definir a própria opinião em um sentido ou
em outro (DIÓG. L., IX, 74). Kant entendeu por D. "uma
DOGMATISMO
293
DOUTA IGNORÂNCIA
proposição diretamente sintética que deriva de conceitos" e como tal distinta de "uma proposição do
mesmo gênero, derivada da construção dos conceitos", que é um materna. Em outros termos, os D. são
"proposições sintéticas a prior? de natureza filosófica, ao passo que não poderiam ser chamadas de D. as
proposições do cálculo e da geometria (Crít. R. Pura, II, Disciplina da Razão Pura, seç. I).
2. Decisão, juízo e, portanto, decreto ou ordem. Nesse sentido, essa palavra foi entendida na Antigüidade
(CÍCERO, Acad., IV, 9; SÊNECA, Ep., 94) para indicar as crenças fundamentais das escolas filosóficas, e
depois usada para indicar as decisões dos concílios e das autoridades eclesiásticas sobre as matérias
fundamentais da fé.
DOGMATISMO (in. Dogmatism; fr. Dogmatis-me, ai. Dogmatismus-, it. Dogmatismó). O significado
desse termo foi fixado pela contraposição que os céticos estabeleceram entre os filósofos dogmáticos, que
definem sua opinião sobre todos os assuntos, e os filósofos céticos, que não a definem (DIÓG. L., IX, 74).
Desse ponto de vista, são dogmáticos todos os filósofos que não são céticos. Um novo significado de D.
foi o que Kant atriburiu a essa palavra, ao identificar D. com metafísica tradicional, entendendo por ele "o
preconceito de poder progredir na metafísica serri uma crítica da razão" (Crít. R. Pura, Pref. à 2- ed.).
Esse D. filosófico, que consiste em aventurar-se a razão em pesquisas que estão fora de sua alçada, por
estarem além da esfera da experiência possível, é incentivado pelo "D. comum", que consiste em
"raciocinar levianamente sobre coisas das quais não se compreende nada e das quais nunca ninguém no
mundo entenderá nada" (Ibid.). Essa palavra foi usada por Fichte, para indicar o ponto de vista do
realismo, segundo o qual a representação é produzida por uma realidade externa, e não pelo eu
(Wissenschaftslehre, 1794, I, Teorema IV), e por Hegel, para designar o ponto de vista oposto ao da
dialética, segundo o qual "de duas afirmações opostas uma deve ser verdadeira e outra, falsa" (Ene, § 32).
Esses dois filósofos deram assim início ao péssimo costume de chamar de D. os pontos de vista diferentes
dos seus próprios, empregando a palavra sem nenhuma referência ao seu uso histórico. Mais conforme a
esse uso é o significado que Husserl lhe atribuiu, que não implica nenhuma condenação da atitude
correspondente. "A justa atitude no campo das indagações que chamamos de dogmático, em sentido positivo, ou seja, pré-filosófico, e ao qual pertencem as
ciências empíricas (mas não só estas), é deixar honestamente de lado, com toda 'filosofia da natureza' e
toda 'teoria do conhecimento', qualquer ceticismo e assumir os dados cognitivos onde eles efetivamente se
encontram" (Jdeen, I, § 26). O D. se contraporia assim à epoché fenomenológica, própria da filosofia (v.
EPOCHÉ).
DOMINANTE. V. RELAÇÃO, C, 5
S
.
DOMINANTE, ARGUMENTO. V. VITORIO so, ARGUMENTO.
DOMINANTES (ai. Dominanteri). O fisió-logo J. Reinke usou esse termo para denominar as forças de
natureza espiritual, inconscientes mas que agem de modo finalista, que presidem às funções dos
organismos e à vida em geral. Essas forças seriam conhecidas só indiretamente, através de seus efeitos
(Die Welt ais Tat, 1899,1957,7a
ed., pp. 273 ss.; Einleitung in die theoretische Biologie, 1902, pp. 168 ss.)
(v. VIDA, VITALISMO).
DONATISMO (lat. Donatismus, in. Dona-tism; fr. Donatisme, ai. Donatismus). A doutrina de Donato de
Casas Negras (séc. III), que foi um dos alvos da polêmica de S. Agostinho. Essa doutrina afirmava a
absoluta intransigência da Igreja diante do Estado. Como comunidade de perfeitos, a Igreja não deve ter
contato com a autoridade civil; as autoridades religiosas que toleram tais contatos cometem traição e
perdem a capacidade de administrar os sacramentos. O D. teria tornado impossível a formação da
hierarquia religiosa e, subordinando a validade dos sacramentos à pureza de vida do ministro, teria
exposto essa validade à dúvida constante (cf. S. AGOSTINHO, De baptismo contra donatistas, 401; Contra
litteras Petiliani donatistae, 401; Contra donatistas epístola de unitate ecclesiae, 405, etc).
DOR (gr. Xvm\; lat. Dolon, in. Pain; fr. Dou-leur, ai. Schmerz; it. Dobre). Uma das tonalidades
fundamentais da vida emotiva, mais precisamente a negativa, que costuma ser assumida como sinal ou
indicação do caráter hostil ou desfavorável da situação em que se encontra o ser vivo (v. EMOÇÃO).
DOUTA IGNORÂNCIA (lat. Docta ignoran-tid). Consciência dos limites do saber, como princípio ou
fundamento de um saber positivo. Essa expressão encontra-se, talvez pela primeira vez, em S. Agostinho
{Ep. ad Probam, 130, 15, § 28). Repete-se algumas vezes na filosofia me-
DÓXICO
294
DUPLA VERDADE
dieval, sendo usada p. ex. por S. Boaventura, para caracterizar o êxtase: "Como por uma douta ignorância,
nosso espírito é arrebatado acima de si, na obscuridade e no êxtase" (Breviloquium, V, 6). Mas sua difusão
deve-se a Nicolau de Cusa, que deu esse título a uma de suas maiores obras (De âocta ignorantia, 1440).
Nicolau de Cusa, como os outros, usou a expressão com referência a Deus: a D. ignorância consiste em
saber que nada se pode saber de Deus. Deus é infinito, logo está além de qualquer proporção com o
finito, ou seja, com o homem: o que faz dele algo de inco-mensurável em relação aos poderes humanos,
podendo ser entendido somente por via de alteridade, ou seja, negando ou levando ao extremo os
caracteres conhecidos pelo homem (De docta ignor., I, 3; De coniecturis, I, 13; Apologia, p. 13) (v.
IGNORÂNCIA).
DOXICO (ai. Doxiscti). De doxa (opinião). Husserl indica com esse adjetivo todos os caracteres próprios
da crença (ou doxd) (Ideen, I, § 103).
DOXOLOGIA ou PRATICOLOGIA (fr. Do-xologie ou practicologié). Foi esse o nome dado por
Leibniz a certas formas de expressão que se coadunam com o uso popular ou corrente, ainda que não
sejam rigorosamente exatos; por exemplo, continua-se dizendo que o sol nasce e se põe, mesmo depois de
aceita a teoria de Copérnico (Disc. de Mét., §27).
DUALIDADE (lat. Dualitas; in. Duality, fr. Dualité, ai. Dualitüt; it. Dualitã). Relação que une dois
objetos quaisquer, de tal modo que um pode transformar-se no outro mediante operações oportunas. Esse
pelo menos é o conceito definido em geometria, em que são chamadas de duais duas figuras que podem
ser obtidas uma da outra, assim como a reta e o ponto, porque traçar uma reta passando por um ponto e
marcar um ponto sobre uma reta são ambas operações duais. Em filosofia, a palavra não tem significado
tão preciso: indica em geral um par de termos entre os quais haja uma relação essencial: p. ex., matéria e
forma, etc.
DUALISMO (in. Dualism; fr. Dualisme, ai. Dualismus, it. Dualismo). Esse termo foi cunhado no séc.
XVIII (aparece pela primeira vez, provavelmente, em THOMAS HYDE, Historia religionis
veterumpersarum, 1700, cap. IX, p. 164), para indicar a doutrina de Zoroastro, que admite dois princípios
ou divindades, um do bem e outro do mal, em luta constante entre si. Bayle e Leibniz
empregam essa palavra no mesmo sentido, mas Christian Wolff dá-lhe significado diferente, ao dizer que
são "dualistas aqueles que admitem a existência de substâncias materiais e de substâncias espirituais"
(Psychol. rat., § 39). Esse foi o significado que se tornou mais comum e difundido na tradição filosófica.
Segundo ele, o fundador do dualismo seria Descartes, que reconheceu a existência de duas espécies
diferentes de substâncias: a corpórea e a espiritual. Essa palavra, todavia, muitas vezes foi estendida para
indicar outras oposições reais que os filósofos descobriram no universo: p. ex., a oposição aristotélica
entre matéria e forma, a medieval entre existência e essência e uma oposição que ocorre em todos os
tempos, entre aparência e realidade. Arthur O. Lovejoy examinou historicamente a revolta contra o D.
(TheRevolt Against Dualism, 1930), insistindo na necessidade de certa forma de D. ou pelo menos de
"bifurcação da experiência" que justifique a distinção entre a aparência ilusória e a realidade (v.
MONISMO).
DUCTIO PER IMPOSStBILS. Ou ainda: per contradictoriampropositionem. Redução da tese
adversária ao absurdo por meio da demonstração da contradição que ela implica. Assume a forma dos
silogismos Baroco (v.) e Bocardo (v.) (JUNGIUS, Lógica, III, 14; cf. ARISTÓTELES, An. pr., I, 5, 27 a 36
ss.).
DUPLA VERDADE (in. Double truth; fr. Double vérité, ai. Doppelte Wahrheit; it. Doppia veritã). Foi
assim que os escolásticos latinos designaram a doutrina de Averróis sobre as relações entre religião e
filosofia, sendo assim designadas depois todas as doutrinas semelhantes. Segundo Averróis "a religião dos
filósofos consiste em aprofundar o estudo de tudo o que é; não se poderia render a Deus culto melhor do
que conhecer suas obras, que leva a conhecê-lo em toda a sua realidade" (MUNK, Mélanges de phil. juive
et árabe, p. 456). Por outro lado, a pesquisa filosófica não pode ser de todos e a religião do filósofo não
pode ser a religião do vulgo. A religião feita para a maioria segue e deve seguir um caminho "simples e
narrativo", que ilumine e dirija a ação. Segundo Averróis, cabe à filosofia o mundo da especulação; à
religião, o mundo da ação (Des-tructio destruitionum, disp. 6, pp. 56, 79). Como se vê, o ponto de vista
de Averróis nada tem em comum com o fideísmo grosseiro que contrapõe a verdade da razão à verdade da
fé e se decida por esta num ato de arbítrio ou de
DUPLA VERDADE
295
DURAÇÃO
deferência à autoridade. Mas depois a expressão dupla verdade serviu justamente para designar esse
fideísmo, fosse ele sincero ou insincero. Assim, no último período da Escolás-tica, muitas proposições,
consideradas demonstração impossível, são admitidas por fé; e Duns Scot delimita nitidamente a esfera da
fé, que diz respeito à ação, e a esfera da filosofia, que diz respeito à especulação (Op. Ox., Prol., q. 3).
Com Ockham e seus seguidores, essa posição torna-se ainda mais radical, visto reconhecer-se a
impossibilidade de demonstrar todas as proposições fundamentais da fé. Ockham afirmava
peremptoriamente que "os artigos de fé não são princípios de demonstração, nem conclusões, nem
probabilidades" (Summa log., III, 1), querendo dizer que não são verdades evidentes, nem verdades
demonstradas, nem proposições prováveis. Mas nem mesmo em Ockham se observa a atitude
desconcertante que foi típica de muitos aver-roistas dos sécs. XIV e XV, consistente em declarar
friamente, sem a mínima justificação, que se acredita no contrário daquilo que se demonstrou, pois assim
quer a fé ou a religião. Dizia, p. ex., João de Jandun (séc. XIV): "Conquanto essa opinião de Averróis não
possa ser refutada com razões demonstrativas, eu digo o contrário e afirmo que o intelecto não é
numericamente uno"em todos os lugares... Mas isso não demonstro com nenhuma razão necessária
porque não julgo possível; e se alguém sonhar fazê-lo, que se alegre (gaudeai). Essa conclusão, afirmo
que é verdadeira e julgo indubitá-vel unicamente pela fé" (De an., III, q. 7). E também a propósito de
outros pontos fundamentais da fé cristã João de Jandun repete seu convite irônico: "alegre-se quem
souber demonstrá-lo". É difícil crer na sinceridade de semelhante atitude, assim como é difícil acreditar
na sinceridade de um Pomponazzi, que, depois de demonstrar a inconciliabilidade entre o destino e o
livre-arbítrio, declara explicitamente que é preciso crer na Igreja e portanto negar o destino {De fato,
Perorat.): escapatória a que muitos recorreram entre os sécs. XVI e XVII. Na realidade, só esse ponto de
vista (se assim se pode chamá-lo) deveria ser chamado de "dupla verdade", ao passo que para o outro,
representado por Averróis, a verdade é uma só e a religião e a filosofia simplesmente a expressam de
modos diferentes, uma para a especulação e outra para a ação. Numa forma ou noutra, porém, a atitude da
dupla verdade continua tendo, ainda hoje, seus defensores tácitos, tanto em filosofia quanto em religião e política. Quando se acha
que nem todas as verdades devem ser ditas e proclamadas, que algumas verdades podem ser perigosas
para a "maioria", sendo, pois, necessário calar sobre elas ou ignorá-las oficialmente, está-se encarnando,
ainda que inconscientemente, a atitude que a tradição filosófica chamou de dupla verdade. Essa atitude
pode caracterizar-se como crença no caráter aristocrático àa. verdade, ou seja, de que a verdade
realmente se destina a uns poucos e a "maioria" é incapaz de suportá-la.
DURAÇÃO (gr. oaúv; lat. Aevum-, in. Du-ration-, fr. Durée, ai. Dawer, it. Duratd). Período de vida de
uma coisa ou de um acontecimento, limites de sua existência no tempo. Era assim que Aristóteles definia
a D..- "Termo que abrange o tempo de cada coisa viva e fora do qual nada dessa coisa incide
naturalmente" (De cael., I, 9, 279 a 23). A duração abrange, portanto, todo o período de vida de uma
coisa, mas se a coisa de que se trata é o mundo, que abrange a totalidade do tempo, a D. é a própria
eternidade, no sentido de um permanecer indefinido da existência no tempo (Ibid., I, 9, 279 a 25). Entre
os antigos, portanto, o conceito de D. tem dois significados: I
o
. os termos temporais que circunscrevem a
existência de uma coisa qualquer; 2°. o prolongamento indefinido do tempo, ou seja, a eternidade. Aqui
consideraremos só o primeiro desses significados, já que o outro está incluído no verbete ETERNIDADE
(V.).
Descartes distinguiu o tempo, como número do movimento, da D. em geral, vendo nele "certo modo de
pensar essa D., de compreender numa medida comum a D. de todas as coisas" (Princ. phil., I, 57).
Spinoza só fez repetir o mesmo conceito de Descartes ao definir a D. como "a existência das coisas
criadas, enquanto perse-vera em sua realidade" (Cogitada metaphysica, I, 5) ou como "a continuação
indefinida do existir" (Et., II, def. 5). Com Locke a noção de D. é explicada a partir da experiência
interior. D. seria a generalização dessa experiência, como a extensão é uma generalização da experiência
da distância obtida pela visão ou pelo tato. Locke diz "obtemos a idéia de sucessão ou de D. da reflexão
em torno da sucessão das idéias que vemos aparecer, uma após a outra, em nosso espírito" (Ensaio, II, 14,
4). Diante disso, Leibniz observava que "uma série de percepções desperta em nós a idéia da D., mas não
a substitui.
DURAÇÃO
296
DUVIDA
Nossas percepções nunca têm uma sucessão tão constante e regular que possa corresponder à do tempo,
que é contínuo, uniforme e simples, como uma linha reta". Portanto, pode-se dizer que se conhece "a D.
através do número dos movimentos periódicos iguais, dos quais um começa quando acaba o outro, como
p. ex. o número de revoluções da terra ou dos astros" {Nouv. ess., II, 14, § 16, 22). Em outros termos, para
Leibniz a noção de D. está ligada à de medida do tempo e esta última está ligada aos movimentos
periódicos uniformes. E Kant exprimia substancialmente o mesmo conceito de duração ao observar que
"só por meio do permanente a existência adquire, nas várias partes da série temporal, uma quantidade que
se chama duração" (Crít. R. Pura, Anal. d. Princ, I. Analogia). A D. é, portanto, uma quantidade
mensurável com fundamento na permanência: é um atributo da substância porquanto é o próprio objeto
que permanece no tempo ilbid). Donde se conclui que, enquanto os antigos remetiam a idéia de D. à de
eternidade, os modernos, ao contrário, remetem-na à idéia de tempo, identificando-as.
Bergson procura separar D. de tempo, pelo menos do tempo mensurável pela ciência, e acaba por
transformá-la numa espécie de eternidade. Para Bergson, o tempo da ciência é espacializado, ou seja,
reduzido à sucessão de instantes idênticos. O tempo real ou D. é dado pela consciência, despojado de
qualquer supe-restrutura intelectual ou simbólica, ou reconhecido em sua fluidez original. Nessa fluidez
não existem estados de consciência relativamente uniformes que se sucedam uns aos outros, como os
instantes do tempo espacializado da ciência. Existe uma única corrente fluida, onde não existem cortes
nítidos nem separações, e na qual, a cada instante, tudo é novo e tudo é ao mesmo tempo conservado.
Bergson diz: "Meu estado d'alma, avançando no caminho do tempo, vai-se dilatando continuamente com
a D. que recolhe: pode-se dizer que faz uma avalanche consigo mesmo" iÉvol. créatr., p. 2). O conceito
de D. assim entendido é o princípio de toda a filosofia de Bergson: é invocado como memória, ou seja,
conservação integral, em Matière et mémoire, para explicar a relação entre alma e corpo (v. ALMA); como
ímpeto vital em Evolução criadora, para explicar a evolução da vida e súa divisão nas duas direções
fundamentais que são instinto e inteligência; e também como ímpeto vital em Deux
sources de Ia morale et de Ia religion, para explicar o desenvolvimento das sociedades humanas e seu
encaminhamento para uma sociedade mística. Finalmente, é o objeto próprio da intuição, que é o órgão
específico da filosofia, destinada a apreender a espiritualidade como tal, da mesma forma como o
intelecto destina-se a apreender a matéria, ou seja, a imobilidade do mecanicismo. Como já se disse, essa
noção de D., não obstante apresentar-se caracterizada como mudança incessante, está mais próxima da
noção de eternidade que da noção de tempo, visto que, na verdade, conserva tudo, é tudo e nada tem fora
de si, precisamente como o aión de Aristóteles.
DÚVIDA (gr. à7iopíoc; lat. Dubium, in. Doubt; fr. Doute, ai. Zweifel; it. Dubbió). Esse termo costuma
designar duas coisas diferentes, porém mais ou menos ligadas: ls
um estado subjetivo de incerteza, ou
seja, uma crença ou opinião não suficientemente determinadas, ou a hesitação em escolher entre a
asserçâo da afirmação e a asserçâo da r^egação; 2° uma situação objetiva de indetèrminação ou a problematicidade de uma situação: seu caráter de indecisão em relação ao possível êxito ou à possível
solução. Aristóteles foi o primeiro a reconhecer (pelo menos implicitamente) essa distinção de
significados quando negou que a dúvida pudesse reduzir-se à "equivalência dos raciocínios contrários",
porque é essa equivalência que pode produzir a dúvida. E disse: "Quando raciocinamos em ambas as
direções e todos os elementos do discurso parecem desenvolver-se com igual validade em cada um dos
dois sentidos, ficamos em D. sobre o que fazer" (Top., VI, 7, 145 b 15). A "equivalência de raciocínios
opostos" é a situação objetiva de indetèrminação; a D. é a incerteza subjetiva, a incapacidade de decisão
que ela comporta. Esses dois aspectos encontram-se, de forma mais ou menos explícita, na história da
filosofia, mas com predominância do aspecto subjetivo, que é considerado peculiar ou constitutivo da
dúvida. É isso o que se conclui de um comentário de Sexto Empírico {Pirr. hyp., I, 7) para quem a D. é "a
hesitação entre afirmar e negar", conquanto os céticos não neguem os bons fundamentos objetivos dessa
hesitação. E mesmo não negando seu fundamento objetivo, S. Tomás insiste no caráter subjetivo da D.
como ignorância ou falta de informação, não a considerando, portanto, essencial à escolha voluntária (5.
Th., III, 2. 18, a. 4). Aparentemente, o cará-
DÚVIDA
297
DÚVIDA HIPERBÓLICA
ter subjetivo da D. também prevalece em Descartes: o cunho autobiográfico da busca cartesiana parece
fazer da D. uma fase subjetiva dessa busca. Mas, na verdade, a D. cartesiana não é um elemento da
história pessoal de Descartes, mas a fase crítica do tipo de saber próprio do tempo em que Descartes
vivia, e que através dele chega a reconhecer a insuficiência e a fragilidade de seus fundamentos. É o que o
próprio Descartes reconhecia: "Não concluiremos mal, dizendo que a física, a astronomia, a medicina e
todas as outras ciências que dependem do estudo das coisas compostas são dúbias e incertas; mas que a
aritmética, a geometria e as outras ciências dessa natureza, que tratam de coisas bastante simples e gerais,
sem se preocuparem com sua existência ou inexistência na natureza, contêm algo de certo e de
indubitável" (Méd., I). Embora a D. possa ser estendida às ciências matemáticas (aventando-se a hipótese
de que um gênio maléfico se divertisse enganando os homens), o certo é que, para Descartes, estas
escapam, por motivos objetivos, à incerteza subjetiva e permitem que ele extraia justamente delas as
regras fundamentais do método (Discours, II). O caráter objetivo da D. tem sido freqüentemente
evidenciado pela filosofia contemporânea. Por um lado, em Husserl a D., como estado subjetivo,
corresponde a um modo de dar-se eu de ser da coisa (Ideen, I, § 103). Por outro, para Dewey, a raiz da D.
está na "situação problemática", que estimula ou determina a pesquisa, e a própria pesquisa deve levar a
uma nova colocação. "Ao sistematizar a relação perturbada entre organismo e ambiente [que determina a
D.], a investigação não se limita a afastar a D. restabelecendo a integração primitiva, de boa adaptação.
Provoca novas condições ambientais, que são ocasiões de novos problemas" (Logic, cap. 2; trad. it., p.
73).
O valor da D. para a pesquisa filosófica foi admitido por todas as doutrinas que vêem na filosofia a
procura e a aquisição da verdade, mais que a posse e a revelação desta. Às vezes, também se acreditou
que a D. trouxesse em si
ou implicasse uma certeza originária superior a toda dúvida. Essa é a corrente de pensamento que
Descartes difundiu pelo mundo moderno e no qual baseou a evidência da consciência. Tem origem em S.
Agostinho: "Quem sabe que duvida sabe a verdade, e está certo disso que sabe: logo, está certo da
verdade. Portanto, quem duvidar de que exista a verdade, já tem em si mesmo uma verdade, a verdade de
que não pode duvidar, já que nenhuma coisa verdadeira é verdadeira sem a verdade. Portanto, não deve
duvidar da verdade quem pôde por uma só vez duvidar" (De vera religione, 39). E todos recordam a D.
total de Descartes, que redunda no cogito-. "Enquanto assim rejeitamos tudo aquilo de que podemos
duvidar e imaginamos até mesmo que seja falso, supomos facilmente que não há Deus, nem céu, nem
terra, e que não temos corpo; mas não somos capazes de supor que não existimos enquanto duvidamos da
verdade de todas as coisas, pois causa-nos tanta repugnância conceber que aquilo que pensa não existe
realmente enquanto está pensando que, apesar de todas as suposições mais extravagantes, não poderíamos
impedir-nos de crer que essa conclusão, penso, logo existo, seria verdadeira e que, por conseguinte, seja a
primeira e mais certa conclusão que se apresenta àquele que conduz seus pensamentos com ordem"
(Princ.phil., I, 7). A certeza ligada à D. é a própria certeza do cogito e deve ser submetida às mesmas
objeções (v. COGITO).
A filosofia contemporânea, conquanto insista no aspecto objetivo da D. e, portanto, na extensão desse
aspecto a todas as situações que podem constituir o ponto de partida para a pesquisa, tende a utilizar a D.
"hiperbólica" (como se chamou a D. cartesiana) e a considerar a D. circunscrita a uma situação ou
problema determinado. Em outros termos, a D. não é vista hoje como início absoluto ou o primeiro
princípio da pesquisa filosófica, mas como condição pela qual uma situação suscita ou exige investigação.
DÚVIDA HIPERBÓLICA. V. DÚVIDA.
E
E. 1. Na Lógica formal aristotélica, essa letra é usada como símbolo da proposição universal negativa
(PEDRO HISPANO, Summ. log., 1.21).
2. Na lógica modal tradicional, a proposição modal que afirma o modo e nega a proposição: p. ex., "É
possível que não pf, onde p é uma proposição qualquer (ARNAULD, Log., II, 8).
3. Na notação de Lukasiewicz, Et usado para indicar a equivalência das proposições (A. CHURCH,
Introduction to MathematicalLogic, n
s 91). G. P.-N. A.
ECLETISMO (gr. ÈK^eKtiKii oíípemç; in. Eclecticism, fr. Éclectisme, ai. Eklektizismus, it. Eclet-tismó).
A diretriz filosófica que consiste em escolher, dentre as doutrinas de diferentes filósofos, as teses mais
apreciadas, sem se preocupar em demasia com a coerência dessas teses entre si e com sua conexão aos
sistemas de origem. Esse termo acha-se em Diógenes Laér-cio (Proem., 21), que o usa com referência a
um obscuro filósofo de Alexandria, Potámon, e foi adotado por Brucker (Historia critica philosophiae, II,
p. 193)- É comumente empregado para indicar as seguintes tendências filosóficas: I
a
a adotada pela escola
estóica a partir de Boeto de Síndon (morto em 119 a.C), da Academia Platônica a partir de Fílon de Arixa
(séc. I a.C.) e pela escola aristotélica a partir de Andronico de Rodes (séc. I a.C), bem como por seus
seguidores, dos quais o mais importante foi Cícero; o critério adotado pelos ecléticos dessa linha foi o
acordo comum dos homens (consensus gentium); 2
g
o espi-ritualismo romântico de Cousin, que adotou
pessoalmente o termo "ecletismo" para indicar seu método que visava levar ao nível da consciência as
verdades implicitamente contidas nela (Du vrai, du beau et du bien, 1853, Pref.).
ECOLOGIA (in. Ecology, fr. Écologie, it. Ecologia). Estudo das relações entre o organismo
vivo e seu ambiente, que constitui parte fundamental da biologia; ou estudo das relações entre o homem
como pessoa e seu ambiente social, que constitui parte da sociologia. Essa palavra é moderna e foi
introduzida pelos anglo-saxões.
ECONOMIA (gr. OÍKOVO|AÍ(X; lat. Oeconomia; in. Economy, fr. Economie, ai. Qekonomie, ital.
Economia). Ordem ou regularidade de uma totalidade qualquer, seja esta uma casa, uma cidade, um
Estado ou o mundo. No Novo Testamento essa palavra, às vezes, é usada para indicar o plano
providencial (S. PAULO, Eph., I, 10). Orígenes chamou de "E." a encarnação do Verbo, pois ela restituiu
providencialmente ao mundo a ordem e a sua verdadeira regra (Contra Cels., 11, 9).
Mas, ao menos no que diz respeito às tota-lidades flnitas, a melhor ordem é a que produz o resultado
máximo com o esforço mínimo, de tal modo que mesmo a lei do menor esforço foi entendida, na história
da filosofia, como "princípio da E.". Esse princípio, como regra metodológica, não deve ser confundido
com o princípio da ação mínima (v.), que, num primeiro momento, é um princípio físico e metafísico e,
num segundo momento, uma lei da mecânica. Pode-se dizer que o princípio da E. foi formulado pela
primeira vez por Ockham, no séc. XIV, com a fórmula "Pluralitas non estponen-da sine necessitatè' e
"Frustra fit per plura quod potest fieri perpauciora"'. Ockham utilizou constantemente esse princípio
para eliminar muitas das entidades admitidas pela es-colástica tradicional: p. ex., a specie, sensível ou
inteligível, como intermediária do conhecimento ijn Sent, II, q. 14, P). Mais tarde, com o nome de
navalha de Ockham, esse princípio foi expresso com a fórmula "Entia non sunt multiplicanda praeter
necessitatem", forma
ECONOMIA POLÍTICA
299
ECONOMIA POLÍTICA
que se encontra a partir da Lógica vetus et nova (1654) de Clauberg. Kant refere-se a esse princípio como
expressão da exigência de buscar na natureza (ou melhor, de realizar através de seu conhecimento) a
máxima unidade e simplicidade possíveis. E diz.- "A existência dessa unidade na natureza é pressuposta
pelos filósofos na conhecida regra da escola, segundo a qual os princípios não devem ser multiplicados
sem necessidade. Com isso se diz que a natureza das coisas dá azo à racionalidade e que a aparente
diversidade infinita não deve impedir-nos de supor que, por trás dela, haja uma unidade das propriedades
fundamentais, da qual pode ser extraída a multiplicidade por meio de múltiplas determinações" (CrítR.
Pura, Dialética, livro II, seç. III, Do uso regulativo das idéias; Crít. do Juízo, Intr., I).
A filosofia contemporânea insistiu e ainda hoje insiste muito na importância dessa regra metodológica.
Para isso contribuíram sobretudo Avenarius (Die Phil. ais Denken der Welt gemüss dem Princip des
kleinsten Kraftmasses, 1876) e Mach, que disse: "Os métodos pelos quais se constitui o saber são de
natureza econômica" (.Die Principien der Würmenlehre, 2-ed., 1900, p. 39). Segundo Mach, é esse
princípio que preside, p. ex., à formação dos conceitos, que nascem da situação de desequilíbrio entre o
número» das reações biologicamente importantes, que é bastante limitado, e a variedade, quase ilimitada,
das coisas existentes. Permitindo classificar adequadamente essa variedade, o conceito permite enfrentá-la
do modo mais econômico, ou seja, com o mínimo esforço (Erkenntniss undlrrtum, 1905, cap. 8). Essa
exigência ainda hoje é considerada válida na construção das hipóteses ou teorias científicas (v. TEORIA).
ECONOMIA POLÍTICA (in. Political eco-nomy, economics; fr. Économie politique, ai. Politische
Oekonomie, it. Economia política). Como nome de uma ciência, esse termo em geral designa a técnica de
enfrentar situações de escassez. Por situações de escassez são entendidas as situações em que, para
realizar objetivos múltiplos e dotados de importância diferente, o homem dispõe de tempo e de meios
limitados e passíveis de usos alternativos. A técnica adotada para enfrentar tais situações tem em vista a
maior satisfação possível que elas permitem; e as regras que constituem tal técnica definem o
comportamento racional do homem nas situações de escassez. Esse comportamento é
o autêntico objeto da economia política, que muitas vezes reivindica para si um caráter descritivo, visto
situar-se diante desse comportamento como qualquer outra ciência diante do seu objeto específico (cf.
MENGER, Grundsàtze der Volkswirtschaftslehre, 1871; trad. it., pp. 51-70; MISES, Die Gemeinwirtschaft,
pp. 98 ss.; FETTER, Economic Principies, 1915, cap. 1; STRIGL, Die ókonomischen Kategorien und die
Organisation der Wirtschaft, 1923, passim; ROBBINS, An Essay on the Nat. and Significance ofEc. Sc,
1935, cap. 1). É possível distinguir três fases da E. política, que correspondem aos três diferentes
fundamentos adotados como base ou diretriz da técnica econômica. I
a O comportamento racional do
homem nas situações de escassez é assegurado por uma ordem natural que age automaticamente e que,
desde que não perturbada, garante a cada homem e a todos o máximo de utilidade possível. Chamaremos
essa concepção de teoria da ordem natural. 2
a
Não existe uma ordem natural que garanta o
comportamento econômico dos indivíduos, mas existe e pode ser determinada em todos os casos uma
distribuição dos meios econômicos que realize a satisfação máxima dos indivíduos interessados,
constituindo, portanto, um estado de equilíbrio. Chamaremos essa segunda fase de teoria do equilíbrio-,
3
a
Não tem sentido procurar determinar um estado de equilíbrio não compatível com a realidade
econômica. O comportamento racional do homem nas situações de escassez só pode ser determinado a
partir da condição de ignorância e de falibilidade com que ele entra nessas situações. Essa terceira fase
ainda está no início e se encontra delineada apenas na chamada teoria dos jogos. Indicá-la-emos,
portanto, por esse nome. I
a Teoria da ordem natural. — Foi com base nessa teoria que a E. surgiu e se
constituiu no mundo moderno. Embora desde a Antigüidade numerosas observações sobre os fenômenos
econômicos tenham sido coligidas e expressas em forma de teorias, leis ou conselhos, a E. política é uma
ciência recente que só teve origem quando as uniformidades observáveis na esfera dos fenômenos
econômicos e exprimíveis como "leis" passaram a ser consideradas exemplos ou casos de uma ordem
total e abrangente desses fenômenos. Isso aconteceu no séc. XVIII, quando, com os fisiocratas,
reconheceu-se a existência de uma "ordem natural" nos fenômenos econômicos. A primeira definição da
E. política foi feita por Dupont de Nemours,
ECONOMIA POLÍTICA
300
ECONOMIA POLÍTICA
como "ciência da ordem natural", e a doutrina dessa ordem era ilustrada no Tableau écono-mique (1758)
de François Quesnay e em Re-fléxions sur laformation et Ia distribution des richesses(1776) de Turgot.
Essa doutrina é análoga e correspondente à do jusnaturalismo (v.): a ordem natural é racional, portanto
uma ordem segundo a qual todo indivíduo pode alcançar o maior proveito possível com o mínimo
esforço. Graças a esse caráter, essa ordem garante a coincidência entre interesse particular e o interesse
geral, de tal modo que "o mundo caminha por si mesmo", e o desejo de bem-estar confere à sociedade
uma tendência contínua ao progresso. Mas está claro que, se a ordem natural dos fenômenos econômicos
é a única possível, qualquer tentativa de intervir nela para modificá-la é, além de inútil, prejudicial, e
portanto a máxima fundamental da política econômica deve ser a de deixá-la caminhar por sua própria
conta. Laisser faire, laisser passer foi o lema que os fisiocratas opuseram aos obstáculos que a ordenação,
ainda parcialmente medieval, das atividades econômicas e as doutrinas mercantilistas haviam
multiplicado. Adam Smith só fez aceitar o princípio fisio-crático em An Inquiry into the Nature and
Causes ofthe Wealth ofNations(V7l6), que costuma ser considerado o início da fase científica da
economia. Segundo Adam Smith, existe uma ordem harmoniosa e benéfica das coisas, que se manifesta
sempre que a natureza fica entregue a si mesma. As instituições humanas muitas vezes alteraram ou
perturbaram a ordem natural, mas esta ainda pode ser encontrada sob as superestruturas históricas que a
ocultam. Deve ser tarefa da ciência descobrir as leis determinantes dessa ordem e prescrever os meios
pelos quais ela pode ser integralmente realizada nas sociedades humanas. Abolidos os sistemas de
proteção ou de restrição, "o sistema simples e fácil da liberdade natural instaura-se por si mesmo". A
única regra que esse sistema comporta é a liberdade ilimitada dos sujeitos econômicos. De fato, em
virtude dessa liberdade, permite-se a ação da força natural própria da natureza humana, que, com sua ação
constante em todos os homens, garante a realização da ordem econômica: a tendência egoísta. Smith
acredita que em todas as circunstâncias os homens tendem a agir no sentido de seu verdadeiro interesse e
que, assim agindo, não só realizam o seu bem pessoal, mas também o bem coletivo. Em outros termos,
como
jã acreditavam os fisiocratas, a ordem natural age como ordem providencial: a harmonia entre o interesse
individual e o interesse público está previamente garantida, e Smith não acha possível o conflito entre os
dois interesses. Foi esse o princípio clássico do liberalismo econômico, cujas exigências básicas Smith
enuncia: a negação de qualquer função econômica do Estado e a concepção de que a concorrência é a
grande força reguladora dos valores econômicos. As análises subseqüentes dos economistas mostraram,
todavia, que a ordem econômica não anda sozinha em todos os seus aspectos e que nem sempre a ação
das forças que a regem é benéfica. Em An Essay on the Principies ofPopulation (1798), Malthus mostrava
que o desequilíbrio que tende a ocorrer entre a entidade população e a entidade meios de subsistência (que
crescem em proporções muito diferentes, a primeira superando de muito a segunda) só é restabelecido à
custa de grandes males, como epidemias, guerras e flagelos sociais. E David Ricardo, em seiís Principies
of Political Economy (1817), evidenciava alguns conflitos essenciais entre o interesse geral e o interesse
privado. Assim, o fenômeno da renda fundiária mostra que o proprietário de terras tem interesse no
crescimento rápido das necessidades e na manutenção de preços altos, para os produtos agrícolas
(condições que elevam a renda fundiária): assim, o que é útil para ele empobrece os outros cidadãos. A
análise do salário dos operários evidenciava o antagonismo entre salário e lucro, em virtude do qual um
só pode crescer em detrimento do outro. Na mesma linha estão as críticas de Sismondi, em Nouveaux
príncipes d'economie politique (1819). Explica-se assim o surgimento das primeiras doutrinas socialistas,
que, embora reconhecendo a realidade da ordem econômica, pretendem intervir nela e dirigi-la para
resultado melhor. Assim, St.-Simon (L'industrie, 1817; VOrganisateur, 1819-20) delineava os princípios
de uma ordem econômica ideal, que se baseava no industrialismo, mas era isenta dos defeitos da ordem
natural. Na sociedade nova, organizada segundo esse ideal, não deveria haver classes, só trabalhadores, e
todas as nações se transformariam numa única associação produtiva cujo fim seria alcançar, através de
trabalhos pacíficos, a prosperidade máxima. Outros socialistas como Owen, Fourier e Blanc, distin-guemse de St.-Simon por preconizarem uma organização social em que os indivíduos, reuni-
ECONOMIA POLÍTICA
301
ECONOMIA POLÍTICA
dos em grupos autônomos {associação cooperativa, de Owen,falanstériode Fourier, oficina social de
Blanc), conservem certa independência e não percam o poder de iniciativa, como ocorre na associação
única de que fala St.-Si-mon. Mas o verdadeiro ataque ao fundamento da ordem liberal, a propriedade
privada dos meios de produção, foi feito por Proudhon. No texto Qu'est-ce que Ia propriété? (1840),
Proudhon afirmava que "a propriedade é roubo", não no sentido de que ela tenha como origem o fruto da
apropriação violenta, mas na medida em que dá a quem a detém o direito de fruir e dispor a seu bel-prazer
do fruto do trabalho e da capacidade alheia. No entanto, em meados do séc. XIX, a doutrina da ordem
natural tinha como expoentes máximos Bastiat e Stuart MUI. O primeiro a interpretava em senti-do
finalista, dizendo que a ordem natural se organiza com vista à perfeita autonomia social e reafirmando,
assim, o princípio da bondade essencial das forças que agem nessa ordem {Harmonies économiques,
1849). O segundo, em Principies ofPolitical Economy (1848), afirmava o caráter mecânico da ordem
natural e via a garantia da mecanicidade dessa ordem na natureza da força que a produz: a tendência ao
bem-estar individual. Portanto, as leis da E., em particular as da produção dos bens, conservam o caráter
de necessidade, e em face delas a única atitude possível por parte do Estado é o laisserfaire. Com efeito,
tudo o que é produzido pelo homem deve obedecer às condições impostas pela natureza. Mesmo que o
homem não queira, os produtos que ele cria serão limitados pela soma dos produtos acumulados
anteriormente (o capital) e, em vista dessa soma, serão proporcionais à energia e à habilidade do homem,
à perfeição das máquinas empregadas e ao uso judicioso da divisão do trabalho (lei do capital). Mesmo
que o homem não queira, uma quantidade dupla de trabalho não produzirá, no mesmo terreno, uma
quantidade dupla de produtos (lei das compensações decrescentes). Por outro lado, a distribuição da
riqueza é uma instituição exclusivamente humana, dependente das leis e dos costumes civis, que variam
segundo o tempo e o lugar, podendo variar sempre que os homens queiram. Por isso Stuart Mill, assim
como toda a corrente do utilitarismo (v.), é partidário de reformas até radicais nesse campo, desde que
visem unir o máximo da liberdade individual à maior justiça na distribuição das riquezas naturais. Essa
constatação de Stuart Mill — de que a distribuição da riqueza não é determinada necessariamente pelo
mecanismo da ordem econômica — já é uma infração grave ao princípio da ordem mecânica. Todavia,
esse princípio e a concepção da E. política que nele se funda resistiram aos dois ataques ferozes lançados
contra a E. clássica na segunda metade do séc. XDÍ pela escola histórica e pelo marxismo. A primeira,
fundada por Wilhelm Roscher (Grundriss zu Vorlesungen über die Staatswissenschaft nach
geschichtlicherMethode, 1843), partia do princípio de que a ordem natural não é um mecanismo, mas um
organismo que carrega em si uma lei de sucessão graças à qual passa por diversos graus de
desenvolvimento. A ciência econômica deve, portanto, levar em conta esse desenvolvimento e ser a
descrição da natureza econômica e das necessidades de um povo, ou seja, "a anatomia e a fisiologia da
ordem econômica". A escola histórica, que é o reflexo mais importante do romantismo no domínio da E.,
por vezes acentuou (como fez Hildebrand) a diversidade dos organismos econômicos nacionais, negando
que a E. clássica tivesse descoberto as leis econômicas naturais válidas em qualquer tempo e país.
Contudo, na própria história dos organismos econômicos, a escola procurou justamente encontrar a ordem
única ou, como dizia outro representante seu, Karl Knies, a "única lei geral do desenvolvimento da
humanidade", que determina a história de cada nação. Portanto, embora o conceito de organismo
permitisse acentuar alguns caracteres aos quais o conceito de mecanismo dava pouca importância — o
desenvolvimento e a individualidade histórica dos sistemas econômicos — e enfatizasse, assim, a
dificuldade de se chegar a delinear uma ordem econômica universal, a exigência dessa ordem e sua
descoberta ainda eram, para a escola histórica, o fundamento da E. política. Teve esse significado também
para a doutrina que, sob certo aspecto, representou uma guinada na E. clássica.- o marxismo. Com efeito,
a passagem da sociedade capitalista para a sociedade comunista, que Marx previa como inevitável e
necessária, seria produzida precisamente pelo funcionamento do mecanismo econômico: sua necessidade
é a necessidade própria das leis desse mecanismo. Assim como o capital (no sentido exato da palavra, ou
seja, o meio de proporcionar a mais-valia a partir da força de trabalho do operário) nasceu da destruição
do artesanato e do trabalho livre, que
ECONOMIA POIÍTICA
302
ECONOMIA POLÍTICA
obrigou as grandes massas proletárias a vender sua força de trabalho, determinando a concentração e o
poder do capital, esse mesmo processo de concentração e de fortalecimento do capital, levado ao extremo,
transformar-se-ia em sua negação. A concentração industrial afastará o proprietário cada vez mais da
empresa e fará que a empresa, portanto sua direção, sua iniciativa e seu trabalho, acabem passando para
as mãos dos trabalhadores assalariados. Desse modo, a função social da classe capitalista terá
enfraquecido e sua expropriação poderá ser feita sem que o organismo produtivo se ressinta.
Paralelamente, o proletário terá sido treinado pela própria organização das grandes empresas para geri-las
e dirigi-las, estando pronto a assumir plenamente sua posse. Desse modo, a socialização dos meios de
produção, sua transferência da classe capitalista para a operária, ocorrerá com a mesma fatalidade que
rege as metamorfoses da natureza {Das Kaptíal, 1867, 1, 24, § 7).
Num primeiro momento, o caráter mecânico da ordem natural pareceu ser confirmado pela introdução da
linguagem matemática na ciência econômica, devido a Augustin Cournot em Recherches sur les príncipes
mathématiques de Ia théorie des richesses (1838), mas que só se tornou definitiva e frutífera alguns
decênios mais tarde graças a Jevons e de Walras. A roupagem matemática da E. política ressaltava a
analogia dela com a física, que Jevons foi um dos primeiros a enfatizar. "A teoria econômica", dizia ele,
"tem grande analogia com a ciência da mecânica estática: as leis de troca são semelhantes às do equilíbrio
de uma alavanca, determinadas pelo princípio das velocidades virtuais. A natureza da riqueza e do valor
mostra-se com clareza sempre que se considerem aportes infinitamente pequenos de prazer e de dor,
precisamente como a teoria da estática foi baseada na igualdade de aportes de energia infinitamente
pequenos. Acredito que certos ramos dinâmicos da ciência da E. podem prestar-se a desenvolvimentos
próprios" {The Theory of Political Economy, 1871, Pref. à I
a ed.). Mas com Jevons e com Walras já
estamos num campo diferente de formulação da teoria econômica.
2
a Teoria do equilíbrio. — Segundo essa teoria, que constitui a segunda concepção fundamental da E.
política, o objetivo dessa ciência é determinar qual a melhor combinação possível dos elementos
econômicos: essa combinação,
justamente por ser a melhor, manter-se-á indefinidamente se não for alterada por nenhum motivo, ou
tenderá restabelecer-se se for alterada, sendo por isso um estado de equilíbrio (cf. PARETO, Man. di E.
pol., III, § 22). Ora, a melhor combinação possível não é a única possível, mas uma entre muitas. Os
pressupostos dessa teoria são dois: d) existem possibilidades ou alternativas diferentes na realidade
econômica; b) entre as várias alternativas possíveis, uma só é a mais conveniente, a econômica; e esta
última é necessariamente determinada pelas leis econômicas.
O pressuposto d) exprime a mudança decisiva que a E. política sofreu por volta de 1870, em vista do
abandono de um dos fundamentos da teoria clássica, a da doutrina do valor-trabalho. A teoria clássica,
baseada no princípio de que existe uma ordem econômica natural e necessária, não deixava alternativa à
escolha individual; a rigor, não reconhecia nenhuma possibilidade de escolha. Os indivíduos só podem
seguir seu instinto econômico, e a ordem econômica é o efeito natural e inevitável desse instinto. Numa
ordem assim, o fundamento das relações econômicas, das trocas, ou seja, o valor, deve ser tão natural e
necessário quanto a própria ordem: por isso a E. clássica, de Smith a Marx, vê a origem ou o princípio do
valor no trabalho. O trabalho, como notava Marx {Das Kapital, 1,1, % 1), possibilita ter a medida exata
do valor porque ele mesmo é exatamente mensurável em sua duração temporal. Esse era, entenda-se, o
valor de troca, já que o valor de uso fora. constantemente identificado com a utilidade, ou seja, com a
capacidade de um objeto de satisfazer a uma necessidade. Essa teoria do valor chocara-se com várias
dificuldades, mas só graças a Jevons, Menger e Walras foi superada por uma nova doutrina, da utilidade
marginal. A característica dessa teoria é que, para ela, o valor é "a importância que nós atribuímos a
determinados bens concretos ou quantidades de bens, pelo fato de sabermos que a satisfação de nossas
necessidades depende da possibilidade de dispor desses bens" (MENGER, Grundsütze der
Volkswirtschafts-lehre, 1871). O valor, portanto, nasce da limitação dos bens em relação às necessidades e
só essa limitação confere aos bens caráter econômico. Os bens que existem em quantidade ilimitada (p.
ex., o ar) não têm valor econômico, pois a disponibilidade de uma fração desses tais bens não tem
nenhuma utilidade. Com
ECONOMIA POIJTICA
303
ECONOMIA POIÍTTCA
essas considerações, estabelece-se a condição fundamental para a existência do valor econômico: a
raridade ou escassez dos bens disponíveis. E estabelece-se também uma relação entre escassez e valor,
em virtude da qual, à medida que aumenta o número das frações disponíveis de uma mercadoria, diminui
o valor de cada uma de suas frações. Nesse sentido, o valor de uma mercadoria consiste no que Jevons
chamava de "grau final de utilidade" (Theory ofPolitícal Economy, 1871, cap. 3), que Walras chamava de
"raridade" (Elements of Purê Political Economy, 1874; trad. it., p. 103) e que Marshall chamará de
"utilidade marginal" (.Principies o/E., 1890): consiste, em resumo, na utilidade da última fração da
mercadoria que satisfaz a uma necessidade. Walras definia em termos matemáticos a utilidade marginal
como "a utilidade derivada da utilidade efetiva em relação à quantidade possuída" (Elements, trad. cit., p.
103), e Pareto, em seu Curso de E. política (1896, § 26), dava ao mesmo conceito o nome de
"ofelimidade elementar". Os pressupostos dessa teoria eram claramente enunciados por Menger em
Unter-suchungen über die Methoden der Sozial-wissenschaften und derpolitischen Oekonomie
ínsbesondere (1883), que foi uma crítica decisiva à escola histórica da economia. Menger observou que o
porfto de partida e o ponto de chegada de toda atividade econômica são rigorosamente determinados pela
situação econômica do momento. As necessidades econômicas imediatas de qualquer sujeito econômico
são determinadas por sua natureza e pela evolução que esta sofreu: os bens que esse sujeito tem a sua
disposição são igualmente determinados pela situação econômica. Entre esses dois pólos desenvolve-se a
atividade econômica do indivíduo. Ora, mesmo que sejam dados os pontos de partida e de chegada da
atividade econômica, nem por isso está rigorosamente determinado apriorio caminho que, na realidade, o
indivíduo seguirá para chegar à satisfação das necessidades. "O arbítrio, o erro e outras causas podem
fazer (como de fato o fazem) que o homem tenha a liberdade de seguir rumos diferentes. Contudo, o certo
é que, dadas aquelas premissas, um só é o caminho mais conveniente" (Jbid., Ap. 6). Portanto, se em
qualquer E. são possíveis inúmeras direções da atividade do sujeito econômico, uma só é a direção mais
conveniente, ou seja, a econômica; e só ela é rigorosamente determinável.
À corrente "realista", da escola histórica, que, tomando como objeto de considerações "os fenômenos
reais da E. humana", podia chegar a "leis exatas", Menger contrapõe a corrente "exata", "que examina os
fenômenos da eco-nomicidade, rigorosamente determinados, e assim consegue estabelecer algo que não
são as leis exatas dos fenômenos reais — que em parte são absolutamente não-econômicas — mas as leis
exatas da economicidade" (Ibid.). A E. exata de que falava Menger foi chamada "E. pura" por Walras, por
Maffeo Pantaleoni (JPrin-cipi di E. pura, 1889) e por Vilfredo Pareto. Este último, assim como Menger,
insiste na necessidade de fazer determinadas abstrações para tornar possível a ciência econômica:
abstrações que são da mesma natureza das realizadas pelas outras ciências. "Não conhecemos", diz
Pareto, "e não conheceremos jamais nenhum fenômeno concreto em todos os seus detalhes; só podemos
conhecer fenômenos ideais que se aproximem cada vez mais do fenômeno concreto" (Corso, § 35). Assim
como a astronomia limita suas pesquisas à forma genérica da terra, e a geografia e a topografia
possibilitam aproximações progressivamente maiores, mas nenhuma descrição da terra conseguirá dar
conta dos mínimos detalhes, também a "E. pura indica-nos a forma geral do fenômeno e a E. aplicada
propicia uma aproximação maior, indicando as perturbações produzidas por causas que tinham passado
despercebidas na primeira aproximação, mas nenhuma teoria jamais nos dirá de que modo será regulada a
vida econômica de cada indivíduo" (Ibid., § 35). Logo, é preciso distinguir os "fenômenos principais" dos
"fenômenos secundários"; e não se deve confundir "o estado de equilíbrio com o estado de transição de
um equilíbrio a outro" (Ibid.. § 36). Desse modo, o estado de equilíbrio torna-se o verdadeiro objeto da
ciência econômica. Supõe-se que esta tenha o objetivo de determinar, em cada caso, o optimum da
situação econômica. Por vezes, distinguiram-se dois métodos fundamentais da teoria econômica do
equilíbrio: o geométrico ou método de Marshall, dos equilíbrios parciais, o algébrico ou método de
Losanna, do equilíbrio geral (cf. U. RICCI, Giornale degli economisti, 1906). Mas tanto os equilíbrios
parciais quanto o equilíbrio geral constituem construções ideais ou soluções-li-mite de problemas cujos
dados são, estes sim, extraídos da experiência, mas que, em conjunto, só reproduzem de modo idealizado
e retifi-
ECONOMIA POLÍTICA 304 ECONOMIA
POLÍTICA
cado a marcha dos fenômenos empíricos. Sob esse ponto de vista, Menger expressara com toda a clareza
o pressuposto fundamental da teoria do equilíbrio ao observar que "premissa da regularidade dos
fenômenos econômicos e, portanto, de uma E. teórica não é só o dogma do interesse individual sempre
idêntico, mas também o da infalibilidade e da onisciência do homem nas a coisas econômicas" {Methode,
1, cap. 7). Como teoria do equilíbrio, ou seja, como determinação do optimum econômico mediante leis
necessárias, a E. política deve, portanto, pressupor a infalibilidade e a onisciência do sujeito econômico.
Nesse ponto, mostra-se clara a analogia entre esta fase da ciência econômica e a mecânica clássica
(anterior à revolução provocada por Einstein). Esta pressupunha a existência de uma ordem necessária da
natureza, determinada por leis imutáveis, e com ela a existência de um sujeito físico, infalível e
onisciente, que pudesse obter todas as informações possíveis sobre essa ordem sem nela interferir
minimamente. A E. do equilíbrio pressupõe, analogamente, a existência de um equilíbrio econômico
determinado por leis necessárias, e com ele a existência de um sujeito econômico, infalível e onisciente,
capaz de obter todas as informações possíveis sobre esse equilíbrio sem interferir nele. Mas, exatamente
como ocorreu com a física, esses pressupostos chocaram-se com dificuldades de ordem empírica. Os
resultados obtidos pela teoria do equilíbrio muitas vezes se mostraram em conflito com a realidade
econômica ou, na melhor das hipóteses, aplicáveis só a casos-limite muito circunscritos. A teoria do
equilíbrio vangloriou-se da "pureza" ou "exatidão", do "rigor" e da "necessidade" de suas conclusões,
mas, ao mesmo tempo, mostrou-se incapaz de descrever os fenômenos econômicos mais complicados e
de prevê-los com aproximação suficiente. Essa é uma situação paradoxal numa época como a nossa em
que se mede a validade da ciência por sua capacidade de previsão, que, de resto, é a capacidade de agir no
respectivo campo de fenômenos.
3
a Teoria dos jogos— A primeira investida contra a teoria clássica do equilíbrio foi de autoria de Keynes.
Em 1936 ele escrevia: "Embora a doutrina clássica em si mesma nunca tenha sido posta em dúvida por
economistas ortodoxos até tempos recentes, a sua patente incapacidade de previsão científica com o passar do tempo reduziu consideravelmente o prestígio de seus seguidores. Pois os economistas de profissão,
depois de Malthus, ficaram impassíveis diante da falta de correspondência entre os resultados de sua
teoria e os fatos da observação; discordância essa que o homem comum não deixou de observar e que
provocou nele uma relutância crescente em dispensar aos economistas o mesmo respeito que se manifesta
em relação a outras categorias de cientistas, cujos resultados teóricos são confirmados pela observação,
quando aplicados aos fatos". Em particular, quanto ao problema do emprego, Keynes observava que "a
teoria clássica representa o modo como gostaríamos que a nossa E. se comportasse, mas na realidade
ignora as verdadeiras dificuldades e é incapaz de enfrentá-las" {The General Theory of Employment,
Interest and Money, 1936, cap. 3, § 3). O próprio Keynes, porém, utilizava amplamente os procedimentos
da teoria clássica, que ele julgava verificáveis em determinadas condições ilhid., cap. 24, § 3). Na
fealidade, só nos últimos anos começou a delinear-se no campo da E. uma nova tendência que põe de lado
definitivamente o pressuposto da teoria do equilíbrio: a infalibilidade e onisciência do sujeito econômico.
A chamada "teoria dos jogos" parte do pressuposto de que o indivíduo não controla todas as variáveis de
que depende o resultado de seu comportamento. Ele nunca está na situação de Robinson Crusoé, que
conhece perfeitamente suas necessidades e os elementos que devem servir para satisfazê-las, controlando,
portanto, tudo aquilo de que depende a sua utilidade total. Na realidade econômica a situação é
completamente diferente, porque nela vários indivíduos estão em relação uns com os outros e o resultado
do comportamento de cada um deles depende de variáveis diversas, das quais ele controla só uma parte,
enquanto as outras dependem de outros indivíduos. O resultado geral, porém, depende simultaneamente
de todas as variáveis. Ora, "essa situação", nota Morgenstem, "não pode ser de nenhum modo definida
como um problema de princípio, quaisquer que sejam as limitações e as condições acessórias em que se
possa pensar. Encontramo-nos diante de uma situação lógico-matemática, que a matemática não soube
representar de algum modo até agora, para não falar da E. teórica. Ela nada tem em comum com o cálculo
das variações, com a teoria das funções, etc, mas constitui uma novidade de
ECONÔMICA
305
EDUCAÇÃO
natureza efetivamente conceituai. Portanto é preciso examinar se é possível resolver o problema de como
deveria comportar-se um indivíduo ou uma empresa para que seu comportamento possa ser considerado
'racional'. Por enquanto, a palavra 'racional' não tem nenhum significado nessa construção: só poderá ter
significado se for encontrada uma teoria que possa ser empregada em todas essas situações econômicas"
("Teoria dos jogos", em A Indústria, 1951, pág. 319). Em vista dessa situação, a teoria dos jogos rejeita
qualquer analogia com os sistemas físicos porque julga não haver nada na física que corresponda às
situações tipicamente econômicas, e para elaborar seus procedimentos de cálculo utiliza um modelo
completamente diferente, o dos jogos estratégicos. Nesses jogos, a vitória do indivíduo depende não só
dos seus movimentos, mas também dos movimentos dos outros e de um componente aleatório. Cada
jogador pode escolher entre várias estratégias, ou seja, entre vários modos de jogar a partida. Diremos que
ele se comporta "racionalmente" quando, entre todas as estratégias, escolhe "a melhor". A determinação
dessa estratégia ocorre através de procedimentos matemáticos especiais de base estatística (NEUMANN e
MORGENSTERN, Theory of Games and Economic Behavior, 1944). Para tanto, esses procedimentos
exigem um complexo de observações econômicas extraordinariamente rico com base nos quais é possível
realizar generalizações indutivas. Seja qual for o juízo sobre os detalhes técnicos dessa doutrina, é certo
que, na economia contemporânea, ela representa a primeira ruptura decisiva com os pressupostos
dogmáticos da teoria do equilíbrio e o encaminhamento para a determinação de uma técnica de
comportamento racional nas situações de escassez que permite a previsão dos comportamentos efetivos.
ECONÔMICA (in. Economics; fr. Écono-mique, ai. Oekonomik, it. Econômica). 1. Com esse nome
muitos autores contemporâneos designam a ciência da economia; esse nome evita a ambigüidade do
termo "economia", que pode indicar tanto a ciência quanto o seu objeto.
2. Foi assim que Croce chamou a parte da filosofia da prática que tem por objeto as ações utilitárias e
econômicas entre as quais Croce coloca não só as ações assim chamadas comu-mente, mas também o
direito, a política, a ciência, etc. {Filosofia delia pratica, E. ed ética,
1909). Mas essa acepção do termo não teve fortuna (v. ECONOMIA).
ECPIROSE. V. CONFLAGRAÇÃO.
ECTESE (gr. êK6eoiÇ; fr. Ecthèse, ai. Ekthesis, it. Ectesi). Exposição do significado de um termo
(ARISTÓTELES, An.pr., 1, 34, 48 a 25) ou exibição de um exemplo ilbid., I, 6, 28 b 14; CRISIPO, em Stoic.
Fragm., II, 7). Leibniz designou com esse termo o enunciado de um teorema geométrico e o traçado da
figura, que preparam a demonstração (Nouv. ess., IV, 17. 3).
ÉCTIPO (ingl. Ectype, fr. Ectype, ai. Ektypus; ital. Ectipó). Termo introduzido pelos platônicos de
Cambridge para indicar a natureza como algo diferente e dependente de Deus e como princípio da ordem
e da regularidade do mundo. Como Deus não faz tudo diretamente e como nada acontece por acaso, deve
haver um princípio {Plastic Nature, 'Nature, Spiritus naturaé) que execute a parte da providência divina
referente à regularidade dos fenômenos. "A natureza", diz Cudworth, "não é o Arquétipo da arte divina,
mas só o É.; é a marca ou a assinatura viva da sabedoria divina, que, através dela, age exatamente
segundo seu arquétipo apesar de não compreender a razão do que faz" {The True Intellectual System of
the Uni-verse, I, 1, 3). Essa palavra foi empregada com o mesmo significado por Berkeley: "Reconheço
um duplo estado de coisas: um, É. e natural; o outro, arquétipo e eterno. O primeiro foi criado no tempo;
o segundo existia na eternidade no espírito de Deus" (.Dial. Between Hylas and Philonous, ed. Jessop. III,
p. 254). E Kant distingue um intelecto arquétipo, que é o divino, que cria os objetos pensando-os, do
intelecto E., que é o humano ou finito, não criativo, mas discursivo (Crít. do Juízo, 11, § 77).
EDENTUII. V. PURPÚREA.
EDUCAÇÃO (gr. notiSeía; lat. Educatio, in. Education-, fr. Éducation-. ai. Erziehung; it. Educazioné).
Em geral, designa-se com esse termo a transmissão e o aprendizado das técnicas culturais, que são as
técnicas de uso, produção e comportamento, mediante as quais um grupo de homens é capaz de satisfazer
suas necessidades, proteger-se contra a hostilidade do ambiente físico e biológico e trabalhar em
conjunto, de modo mais ou menos ordenado e pacífico. Como o conjunto dessas técnicas se chama
cultura (v. CULTURA, 2), uma sociedade humana não pode sobreviver se sua cultura não é transmitida de
geração para geração; as modalidades ou formas de realizar ou garantir
EDUCAÇÃO 306 EFETIVO
essa transmissão chamam-se educação. Esse é o conceito generalizado de E., que se tornou indispensável
graças à consideração do fenômeno não só nas sociedades chamadas civilizadas, mas também nas
sociedades primitivas. As formas de E. nesses dois tipos de sociedade não apresentam diferenças de
desenvolvimento ou grau (como comumente se crê), mas de atitude ou orientação. A sociedade primitiva
caracteriza-se pelo fato de que nela a E. visa garantir a imutabilidade das técnicas de que dispõe; por isso
tende a atribuir caráter sacro a tais técnicas, o que leva a proibir como sacríle-ga qualquer inovação ou
correção. Uma sociedade civilizada está, acima de tudo, aparelhada para enfrentar situações novas ou em
mudança; logo, tende a tornar flexíveis e corrigíveis as técnicas de que dispõe e a confiar à E. a tarefa não
só de transmiti-las, mas também de corrigi-las e aperfeiçoá-las. Sem dúvida, essas duas orientações nunca
se acham em estado puro: não existem sociedades absolutamente primitivas, que não permitam — ainda
que sub-repticiamente — correções ou modificações lenta em suas técnicas, assim como não existem
sociedades absolutamente civilizadas que permitam a rápida e incessante correção das técnicas mais
delicadas, que não são as técnicas de uso e produção de objetos, mas as que controlam a conduta dos
indivíduos e seus comportamentos recíprocos.
Podem-se, portanto, distinguir duas formas fundamentais de E.: 1- a que simplesmente se propõe
transmitir as técnicas de trabalho e de comportamento que já estão em poder do grupo social e garantir a
sua relativa imutabilidade; 2a
a que, através da transmissão das técnicas já em poder da sociedade, se
propõe formar nos indivíduos a capacidade de corrigir e aperfeiçoar essas mesmas técnicas.
I
a O primeiro conceito de E., como se disse, é posto em prática pelas sociedades primitivas e também,
parcialmente, nas sociedades secundárias, sobretudo no que tange à E. moral e religiosa. Consiste na
transmissão pura e simples das técnicas consideradas válidas e na transmissão simultânea da crença no
caráter sagrado, portanto imutável, de tais técnicas. Na tradição pedagógica do Ocidente, esse conceito de
E., por motivos óbvios, foi formulado e defendido poucas vezes. Entre os que o defenderam com maior
decisão e nitidez está Hegel: "O indivíduo deve recapitular os graus de formação do Espírito universal,
também segundo
o conteúdo, mas como figuras já depositadas pelo Espírito (...). Do ponto de vista do indivíduo, sua
formação consiste na conquista do que ele encontra diante de si, consiste em consumar sua natureza
inorgânica e em apropriar-se dela" (.Phãnomen. des Geistes, Pref, II, 3). Hegel hipostasia aqui, como
"Espírito universal", o sistema cultural da sociedade civilizada, mas o seu conceito de E. é típico da
sociedade primitiva.
2
a
No segundo conceito de E., a transmissão das técnicas já adquiridas tem sobretudo a finalidade de
possibilitar o aperfeiçoamento dessas técnicas através da iniciativa dos indivíduos. Nesse aspecto, a E. é
definida não do ponto de vista da sociedade, mas do ponto de vista do indivíduo: a formação (v.) do
indivíduo, sua cultura, tornam-se o fim da educação. A definição de E. na tradição pedagógica do
Ocidente obedece inteiramente a essa exigência. A E. é definida como formação do homem,
amadurecimento do indivíduo, consecução da sua forma completa. ou perfeita, etc.: portanto, como
passagem gradual — semelhante à de uma planta, mas livre — da potência ao ato dessa forma realizada.
Esses conceitos repetem-se com tal uniformidade na tradição pedagógica que não chegam a constituir
novidade do ponto de vista filosófico. Segundo esse ponto de vista, a E. é cultura, no segundo dos dois
significados fundamentais deste termo; os problemas gerais correspondentes podem ser estudados nesse
verbete.
EDUÇÃO (lat. Eductio; in. Eduction; fr. Eduction; ai. Eduction; it. Eduzioné). Termo usado na
Escolástica para indicar a emergência da forma a partir da matéria, ou seja, a passagem da potência ao ato
(S. TOMÁS, S. Th., I, q. 90, a. 2). Leibniz emprega esse termo com o mesmo sentido (Théod., I, § 88).
EFEITO (in. Effect; fr. Effet; ai. Wirkung; it. Effettó). Termo ou o resultado de qualquer tipo ou espécie
de causação (v. CAUSALIDADE).
EFÉTICO (gr. èçeictiKÓç). Aquele que pratica a suspensão do juízo, isto é, o cêtico pir-roniano (v.
EPOCHÉ; CETICISMO).
EFETIVO (in. Actual; fr. Effectif ai. Wir-klich; it. Effettivo ou Effetualé). O mesmo que real (v.
REALIDADE). Em italiano e francês, esse termo ressalta o caráter que a realidade possui diante do que só é
imaginado ou desejado; em inglês e alemão, ressalta o caráter que a realidade possui diante do que é
somente possível.
EFICIÊNCIA
307
EGOLOGIA
EFICIÊNCIA (in. Efficiency, fr. Efficience, ai. Wirksamkeit; it. Efficienzá).Em sentido próprio, a ação da
causa eficiente. Mas hoje, em todas as línguas, esse termo é empregado com significado diferente, como
correspondência ou adequação de um instrumento à sua função ou de uma pessoa à sua tarefa. Diz-se
também "E. de uma organização" para indicar a adequação de uma organização às suas funções, e,
correspondentemente, fala-se de "ineficiência". Nesse sentido os filósofos também utilizam esse termo
com freqüência, embora não se trate de termo especificamente filosófico.
EFLÚVIOS (gr. cmoppoaí). Empédocles (séc. V a.C.) explicava o conhecimento com a hipótese dos E.,
que emanam das coisas e penetram nos sentidos por meio dos poros existentes em todos os órgãos e que
são apropriados à espécie de E. que devem recolher (TEOFRASTO, De sensu, 7; Fr. 89, Diels).
EGOCENTRISMO (in. Egocentrism, fr. Égo-centrisme, ai. Egozentrismus; it. Egocentrismo). Scheler
designou com esse termo a atitude que consiste em confundir o mundo que nos circunda imediatamente
com o "mundo" no sentido próprio do termo, ou seja, em atribuir ao ambiente imediato uma função
universal ou cósmica. Com o E. assim entendido Scheler refracionou o solipsismo, o egoísmo e o autoerotismo. O solipsismo é a atitude egocêntrica que preside à concepção dos objetos do mundo real; o
egoísmo é o E. em seu aspecto prático ou volitivo; o auto-erotismo é a atitude egocêntrica na vida
amorosa (Sympathie, I, cap. 4, § 2).
EGOe SUPEREGO. V. PSICANÁLISE.
EGOÍSMO (in. Egoism-, fr. Égoisme, ai. Egoismus, ital. Egoísmo). 1. Termo criado no séc. XVIII para
indicar a atitude de quem dá importância predominante a si mesmo ou aos seus próprios juízos,
sentimentos ou necessidades, e pouco ou nada se preocupa com os outros. Platão já achava*que o "amor
desmesurado por si mesmo" (que nada tem a ver com a filáucia de que falava ARISTÓTELES, V. AMOR DE
SI) é a causa de todas as culpas dos homens {Leis, V, 731e).Muitas vezes o E. foi considerado atitude
natural do homem. Diz Kant: "A partir do dia em que o homem começa a falar em primeira pessoa, ele
passa a pôr seu querido eu na frente de tudo, e o E. progride incessantemente, sub-reptícia ou abertamente
(por sofrer a oposição do E. dos outros)" (Antr., I, § 2). Aliás, antes de Kant, Adam Smith (Teoria dos
sentimentos morais (1759) e os moralistas franceses tinham visto no E. uma das emoções fundamentais do
homem. Vauvenargues, que chama o E. de "amor próprio", distingue-o do amor de si(y.), que é a filáucia
de Aristóteles (.DeVesprit humain, 24). Kant distingue três formas de E.: E. lógico, de quem não acha
necessário submeter seu próprio juízo ao juízo alheio; E. estético, que se satisfaz com seu próprio gosto;
E. moral, de quem restringe todos os fins a si mesmo e não vê utilidade no que não lhe traz proveito.
Além dessas três espécies de E., Kant distingue o E. metafísico, que responde negativamente à pergunta:
"eu, como ser pensante, tenho razão de admitir, além da minha existência, também a de um todo de outros
seres que estão em comunhão comigo?" (Antr., I § 2).
A antítese entre E. e altruísmo e a predição do futuro triunfo do altruísmo são típicas da ética positivista.
O positivismo cunhou a palavra altruísmo (v.) e, ao lado dos instintos egoísti-cos, admitiu a existência de
instintos altruístas destinados a prevalecer com o progresso moral da humanidade (COMTE,
Catéchismepositiviste, pp. 48 e ss.; SPENCER, Data qfEthics, § 46). Por outro lado, Stirner e Nietzsche
sustentaram a moral do egoísmo. Stirner chamou seu anar-quísmoiv.) de E. absoluto, que consiste na
afirmação de que o indivíduo é a única realidade e o único valor (DerEinzige und sein Eigentum, 1845).
Nietzsche por sua vez dizia: "O E. é parte essencial da alma aristocrática e por egoísmo entendo a fé
inquebrantável em que outros seres devem sujeitar-se e sacrificar-se pelo ser que «os somo? (Jenseit von
Gut und Bóse, 1886, § 265). Scheler deu a melhor caracterização do E., distinguindo-o do amor de si ou
filáucia. O E., segundo diz, não se dirige ao eu individual como objeto de amor desvinculado de todas as
relações sociais. O egoísta não se comporta como se estivesse só no mundo, mas está tão absorvido por
seu eu social que se apega somente aos seus próprios valores ou àqueles que podem tornar-se seus. Essa
atitude é o contrário do amor de si, dirigido principalmente aos valores por si mesmos {Sympatbie, II. cap.
I, § 1).
2. O mesmo que solipsismo (v.).
EGOLOGIA (In. Egology, fr. Égologie, ai. Egologie, it. Egologia). Segundo Husserl, a esfera própria do
ego obtida mediante a epoché egológica, com a qual, no campo da experiência fenomenológica, se abstrai
de tudo o que pertence aos outros eus {Cart. Med, § 44).
EGOTISMO
308
ELEMENTO
EGOTISMO (In. Egotism- fr. Égotisme, ai. Egotismus; it. Egotismd). Termo de origem inglesa,
difundido no resto da Europa por Stendhal, que o empregou também no título das suas memórias
autobiográficas {Souvenirs d'égotisme, 1892, mas escritas em 1832). Essa palavra significa a excessiva
importância concedida a si mesmo e às vicissitudes da vida pessoal, bem como a tendência a falar demais
de si mesmo (cf. sobre a história da palavra, o prefácio de H. Martineau à edição dos Souvenirs de
Stendhal, Paris, 1950). No sentido de sub-jetivismo ou culto do eu, essa palavra foi usada por G.
Santayana {Egotism in German Phi-losophy, 1915).
EIDÉTICO (in. Eidetic; fr. Eidétique, ai. Eidetisch; it. Eideticó). Termo introduzido na filosofia
contemporânea por Husserl a partir de Investigações lógicas (1900-01) para indicar tudo o que se refere
às essências, que são objeto da investigação fenomenológica (v. FENO-MENOLOGIA).
EIDOS. Este, que é um dos termos com que Platão indicava a idéia e Aristóteles a forma, é usado na
filosofia contemporânea especialmente por Husserl para indicar a essência que se torna evidente mediante
a redução fenomenológica (v. FENOMENOLOGIA). Para os significados clássicos dessa palavra, v. FORMA;
IDÉIA; ESPÉCIE.
EJEÇÃO (in. Ejection; fr. Éjection; it. Eie-zione). Termo criado por G. Clifford {Lectures and Essays,
1879) para indicar as sensações dos seres diferentes de nós, que nunca podem ser diretamente objeto de
nossa consciência, sendo portanto projeções da consciência. O termo foi empregado também por
Romanes {The World as an Eject, 1895) e por alguns outros.
EK-STASE. Heidegger e Sartre chamaram de E. (no sentido literal do termo êxtase, "estar fora" ou
"sair") as três determinações do tempo, passado, presente, futuro, porquanto cada uma delas se move ou
caminha para a outra, o presente para o passado, o presente para o futuro, o futuro para o presente.
Heidegger diz: "A temporalidade é o originário fora de si em si e para si. Nós chamamos de E. da
temporalidade os fenômenos caracterizados como futuro, passado e presente" {Sein und Zeit, § 65). Em
seguida, Heidegger viu nos E. temporais as manifestações do Ser {Was ist Metaphysik?, 6
2 ed., 1951, p.
14). Analogamente Sartre fala da "relação extática interna" como da "fonte da temporalidade" {L 'être et
le néant, p. 256) (v. TEMPO, 3).
ELA VITAL (fr. Élan vital). Segundo Berg-son, é a consciência que penetra a matéria e a organiza,
realizando nela o mundo orgânico. O E. vital passa "de uma geração de germes para a geração seguinte,
por intermédio dos organismos desenvolvidos, que funcionam como traço de união entre os germes.
Conserva-se nas linhas evolutivas entre as quais se divide e é a causa profunda das variações, pelo menos
daquelas que se transmitem* regularmente, que se adicionam e que criam espécies novas" {Évol. créatr.,
8
ê
ed., 1911, p. 95). A formação da sociedade, antes fechada e depois aberta, a religião fabuladora e a
religião dinâmica, segundo Bergson, são os produtos ulteriores do mesmo E. vital, ou seja, da consciência
{Deuxsources, IV, trad. it., p. 295) (v. DURAÇÃO).
ELEATTSMO (in. Eleaticism; fr. Éléatisme, ai. Eleatismus-, it. Eleatismó). Doutrina da escola que
floresceu em Eléia (Magna Grécia) entre os sécs.VI e V a.C, formulada por Xenófanes de Colofão,
elaborada po* Parmênides e seguida e defendida por Zenão e Melisso. Os fundamentos dessa doutrina são
os seguintes: 1Q
unidade, imutabilidade e necessidade do ser, expressa pela frase: "Só o ser é e não pode
não ser" {Fr. 4, Diels); 2Q
acessibilidade do ser só para o pensamento racional e condenação do mundo
sensível e do conhecimento sensível como aparência. Esses dois princípios do E. foram um componente
importante da filosofia grega posterior, especialmente de Platão e Aristóteles, e constituíram uma das
alternativas que se repetiram com mais freqüência na história da filosofia.
ELECTRA (gr.'HÀéKTpoc). Nome de um so-fisma atribuído a Eubúlides (DiÓG. L., II, 108) e citado
por Luciano ( Vitarum auctio, 22); segundo ele, Electra conhece e ao mesmo tempo não conhece Orestes:
quando Orestes vai ao seu encontro, ela sabe que é Orestes, seu irmão, mas não o reconhece como
Orestes porque não o conhece. É uma versão do sofisma chamado "velado", que também é atribuído a
Eubúlides e comentado por Aristóteles {El. sof, 24, 179 a 33).
ELEIÇÃO. V. ESCOLHA.
ELEMENTO (gr.OTOtxeTov; lat. Elemen-tum; in. Element; fr. Élément; ai. Element; it. Elemento). Este
conceito recebeu dois significados principais: ls
o de componente primeiro de um todo composto; 2- o de
termo ou resultado de um processo de análise ou
ELEMENTO
309
EMANAÇÃO
divisão. O primeiro desses conceitos é o mais antigo.
1
Q
Embora Platão (cf., p. ex.: Teet., 210 e) tenha sido o primeiro a falar em filosofia dos E. (como nos diz
DIOGENES LAÉRCIO, III, 24), Aristóteles é o primeiro a fazer uma análise exaustiva desse conceito. "Por
elemento", diz ele, "entende-se o componente primeiro de uma coisa qualquer, que seja de uma espécie
irredutível a uma espécie diferente: nesse sentido, p. ex., os E. das palavras [isto é, as letras] são os
elementos de que consistem as palavras, nos quais se dividem em última análise porque não podem
dividir-se em partes de espécie diferente. Se um E. for dividido, suas partes serão da mesma espécie; p.
ex: uma parte de água é água, ao passo que a parte de uma sílaba não é uma sílaba" (Met., V, 3,1014 a
30). Aristóteles esclarece também o sentido em que essa palavra foi usada (como o é ainda) para indicar
as partes principais de uma doutrina, no sentido, p. ex., em que se diz "E. de Euclides". Diz ele que os E.
das provas geométricas e das demonstrações em geral são aquelas demonstrações primeiras que
reaparecem em outras demonstrações diferentes (Ibid., V, 3, 1014 a 35). Aristóteles nota também que
podem ser metaforicamente chamados de E. as entidades mais universais porque são simples e
indivisíveis e podem repetir-se em um número incjefinido de casos. E talvez tenha sido justamente contra
essa extensão do termo que os estóicos estabeleceram sua própria distinção entre princípios, que não
podem ser gerados nem se corrompem, e os E., que podem ser destruídos pelas conflagrações periódicas a
que o mundo está sujeito (DIÓG. L., VII, 134). No séc. XII, Guilherme de Conches dava o nome de E. aos
átomos e de elementata à água, ao ar, à terra e ao fogo, que seriam compostos de átomos (Philosophia, I,
21).
2- O segundo conceito de E. foi elaborado no séc. XVII por Robert Boyle, um dos fundadores da química
moderna. Em Chymista Scep-ticus 0-661), Boyle definiu como E. químico o corpo não composto que não
se é possível decompor com os meios químicos de que se dispõe. Essa definição tinha a vantagem de não
fixar antecipadamente quais são os corpos que devem ser considerados elementos. Pode ser facilmente
generalizada para um campo qualquer, podendo-se definir como E., nesse campo, aquilo que não é
possível dividir com os instrumentos de análise disponíveis nesse mesmo campo. Desse ponto de vista, o
que é "E."
num campo pode não ser "E." em outro campo e o conceito é definido em cada caso só em relação aos
instrumentos de análise e ao seu alcance.
Do ponto de vista lógico, a noção de E. foi definida por Wittgenstein: "É claro que, ao analisar uma
proposição, deve-se chegar a proposições elementares, que constam de nomes em união imediata"
(Tractatus, 4, 221). Nesse sentido, a proposição elementar é o resultado da decomposição das
proposições. Segundo Wittgenstein, ela "afirma a existência de um fato atômico" (.Ibid, 4. 21); sua marca
característica é que "nenhuma proposição elementar pode estar em contradição com ela" (Ibid, 4. 211).
ELEMENTOS (ai. Elementè). R. Avenarius deu um significado especial a essa palavra, que, para ele,
indica as qualidades sensíveis que formam os "complexos de E." que são as coisas (Kritik der reine
Erfahrung, I, 16).
ELENCO (gr. êteTXOÇ; lat. Elenchus). Refuta-ção. E. Sofísticos de Aristóteles: as refutações falsas.
ELEUTERONOMIA (ai. Eleutheronomié). Palavra usada por Kant para indicar "o princípio da
liberdade em que se apoia a legislação interna", isto é, a legislação moral (Met. der Sitten, II, Pref.).
ELÍCLTA, AÇÃO. V. AÇÃO.
ELITE. A teoria da E ou classe eleita foi elaborada por Vilfredo Pareto em Trattato di sociologia
generale (1916), e consiste na tese de que é uma pequena minoria de pessoas que conta em qualquer ramo
ou campo de atividade e que, mesmo em política, é essa minoria que decide sobre os problemas do
governo. Pareto entendia por E. o conjunto "daqueles que têm os padrões mais elevados em seu ramo de
atividade" (Trattato, § 2031) e chamava de "classe governante eleita" aqueles que, direta ou
indiretamente, têm participação importante no governo. Fala também de "circulação da classe eleita"
(Ibid, § 2042) para indicar o fenômeno da passagem de grupos humanos da classe eleita para a classe não
eleita e vice-versa. O próprio Pareto indicava como fonte dessa teoria a tese de doutoramento de M.
KOLABINSKA, La circulation des elites en France, Lausanne, 1912. Essa teoria foi um dos pontos
fundamentais da doutrina política do fascismo e do nazismo.
EMANAÇÃO (gr. 7tpoeívat, ÒTtoppeív; lat. Emanatio, in. Emanation; fr. Émanation; ai.
EMANATISMO
310
EMINÊNCIA
Emanation; it. Emanazione). Uma forma de causação com as seguintes características: I
a necessidade do
efeito em relação à causa ou força que o produz; 2- continuidade entre causa e efeito, pela qual o efeito
continua a ser parte de sua causa; 3a
inferioridade de valor do efeito em relação à causa; 4a
eternidade da
relação entre causa emanente e efeito emanado. As características I
a
, 2
a
e 4a
diferenciam a E. da criação,
ao passo que a característica 3a
é comum à E. e à criação. As características 2a
, 3a
e 4a
diferenciam a E. das
formas comuns da causação.
O conceito de E. foi elaborado pela primeira vez por Plotino: "Todos os seres, enquanto permanecem,
produzem necessariamente em torno de si e de sua substância uma realidade que tende para o exterior e
provém de sua atualidade presente. Essa realidade é como uma imagem dos arquétipos dos quais nasceu:
é assim que do fogo nasce o calor e que a neve não retêm em si o frio. Mas são principalmente os objetos
perfumados que provam isso, pois, enquanto existem, algo emana deles e em torno deles, uma realidade
de que usufruem todos os que estão próximos. Além disso, todos os seres que chegaram à perfeição
geram; por isso, o ser que é sempre perfeito gera sempre: gera um ser eterno, mas inferior a ele" (Enn., V,
1, 6). Esse trecho de Plotino contém a noção clássica de E., que permaneceu inalterada na história da
filosofia. De fato, apresenta-se com as mesmas características em Proclo {Instituições teol, pp. 27 ss.), em
Scotus Erigena (De divis. nat. III, 17) e em todos os que utilizam essa noção. Em geral, caracteriza a
relação que o panteísmo antigo (antes de Spinoza) estabelece entre Deus como força ou princípio
animador do mundo e as coisas ou os seres do mundo. Emanatista é, p. ex., a relação entre o artífice
interno, de que fala G. Bruno, e as coisas naturais, que são manifestações suas, necessárias e eternas
(Dela causa, I). Mas não é emanatista, embora conserve algumas características da E. (a I
a
, a 2a
e a 4a
), a
relação que Spinoza estabelece entre Deus ou a Natureza e as coisas do mundo: relações por ele
identificadas como aquelas graças às quais "da natureza do triângulo resulta que a soma dos ângulos de
um triângulo é igual a dois retos", ou seja, com necessidade geométrica (Et., I, 17. scol.); que é, de resto,
uma forma de causação ordinária (v. CAUSALIDADE).
EMANATISMO (in. Emanationism; fr. Ema-natisme, ai. Emanatismus; it. Emanatismó).
Toda doutrina que reconheça como válida a teoria da emanação. Devem ser considerados como formas de
E. o neoplatonismo antigo, o naturalismo de Giordano Bruno, o panteísmo de Schelling e outras formas
de panteísmo contemporâneo.
EMERGÊNCIA (in. Emergence, fr* Émer-gence, ai. Emergenz; it. Emergenza). Termo empregado pelos
anglo-saxões para indicar o caráter criativo da evolução (v. CRIAÇÃO).
EMINÊNCIA (lat. Eminentia; in. Eminence, fr. Eminence, ai. Eminenz; it. Eminenzd). Prioridade
ontológica, ou seja, a perfeição. Eminente significa "mais perfeito"; e eminentementedignifica "de modo
mais perfeito". Essa noção tem origem na hierarquia dos seres, estabelecida em Instituições teológicas de
Proclo e repetida nos escritos do Pseudo-Dionísio (cf. especialmente De div. nom., VII). S. Tomás dizia:
"Quando se diz 'Deus é bom' ou 'sábio', entende-se não só que ele é causa da sabedoria ou da bondade,
mas que es^as coisas preexistem nele de modo mais perfeito (eminentius)" (S. Th., I, q. 13, a. 6). Na
escolástica tardia, começou-se a designar via Eminentiae a prova da existência de Deus que, da existência
de graus diversos de perfeição no mundo, interfere a existência do grau eminente ou mais perfeito de
todos (v. DEUS, PROVAS DE): sua expressão se encontra, p. ex., em Duns Scot (Op. Ox., 1, d. 2, q. 2, a. 1,
n. 17), que se preocupa, em outro passo, em definir essa palavra no sentido de "aquilo que é mais perfeito
e mais nobre segundo sua essência e, nesse sentido, precedente" (De primo principio, ed. Roche, p. 4).
Descartes emprega esse termo com o mesmo sentido: "A pedra que ainda não existe não pode começar a
existir agora, se não for produzida por uma coisa que possui em si, formal ou eminentemente, tudo aquilo
que entra na composição da pedra, isto é, que contém em si as mesmas coisas ou outras mais excelentes,
que estão contidas na pedra" (Méd., III, 2; // Rép., def. IV). Por sua vez, Spinoza diz: "Entendo por
'eminentemente' que a causa contém toda a realidade do efeito mais perfeitamente do que o próprio
efeito" (Ren. Cart. Princ. Phil, I, ax. 8). Generalizando essa noção e expressando-a em termos negativos,
Wolff dizia: "Por E. entende-se o ente que, a rigor, não existe, ao passo que existe algo que faz as vezes
dele e que propriamente não lhe pode ser atribuído" (Ont., § 845).
EMOÇÃO
311
EMOÇÃO
EMOÇÃO (gr. 7ió0oç; lat. Affectus ou Passio, in. Emotion; fr. Emotion; ai. Affekt; it. £wo-zioné). Em
geral, entende-se por esse nome qualquer estado, movimento ou condição que provoque no animal ou no
homem a percepção do valor (alcance ou importância) que determinada situação tem para sua vida, suas
necessidades, seus interesses. Nesse sentido, no dizer de Aristóteles (Et. nic, II, 4. 1105 b 21), a E. é toda
afeição da alma, acompanhada pelo prazer ou pela dor: sendo o prazer e a dor a percepção do valor que o
fato ou a situação a que se refere a afeição tem para a vida ou para as necessidades do animal. Desse
modo, as E. podem ser consideradas reações imediatas do ser vivo a uma situação favorável ou
desfavorável: imediata, porque condensada e, por assim dizer, resumida no tom do sentimento, (agradável
ou dolorosa), que basta para pôr o ser vivo em estado de alarme e para dispô-lo a enfrentar a situação com
os meios de que dispõe.
A primeira teoria das E. nesse sentido talvez tenha sido a enunciada por Platão em Filebo-. ocorre a dor
quando a proporção ou a harmonia dos elementos que compõem o ser vivo é ameaçada ou comprometida;
tem-se o prazer quando essa proporção ou harmonia se restabelece (17, 31 d, 32 a). Aristóteles, por sua
vez, ao considerar o prazer vinculado à atuação de um hábito ou de urg"desejo natural (Et. nic, VII, 13,
1153 a 14), atribuiu-lhe a mesma função de restituição ou restabelecimento de uma condição natural e,
conseqüentemente, considerou doloroso o que afasta violentamente da condição natural e é, por isso,
contrário à necessidade e aos desejos do ser vivo (Ret, I, 11, 1369 b 33). Foi precisamente desse ponto de
vista que no II livro da Retórica, Aristóteles fez uma das análises mais interessantes da história da
filosofia sobre a E. Veja-se, p. ex., o que ele diz sobre o medo {Ret., II, 5, 1382 a 20 ss.): "O medo é uma
dor ou uma agitação produzida pela perspectiva de um mal futuro, que seja capaz de produzir morte ou
dor". De fato, observa Aristóteles, nem todos os males são temidos, mas só os que podem produzir
grandes dores e destruições e mesmo estes só no caso de não estarem distantes demais, mas de parecerem
próximos címinentes. De fato, os homens não temem as coisas muito distantes: todos sabem que devem
morrer, mas enquanto a morte não se aproxima não se preocupam com ela. O medo também é reduzido ou
eliminado por condições que tornam os males menos temíveis ou os fazem parecer inexistentes. Por isso, muitas vezes a riqueza, a força, o poder e a abundância de
amigos fazem que os homens descuidem-se dos males, tornando-se audazes e desdenhosos. Dessa análise
emerge claramente o conceito de E. como "índice" de uma situação, ou melhor, do valor que ela tem para
a existência do homem.
Para Platão e Aristóteles, as E. têm significado porque têm uma função na economia da existência
humana no mundo. Para os estóicos, porém, elas não têm significado nem função. Sob esse aspecto, a
doutrina estóica é a mais típica e radical entre as que negam o significado das emoções. Seu fundamento é
que a natureza proveu de modo perfeito à conservação e ao bem dos seres vivos, dando aos animais o
instinto e ao homem a razão. As E., porém, não são provocadas por nenhuma força natural: são opiniões
ou juízos ditados por leviandade, portanto fenômenos de estupidez e de ignorância que consistem em
"achar que se sabe o que não se sabe" (CÍCERO, TUSC, IV, 26). Os estóicos distinguiam quatro E.
fundamentais, duas das quais tinham origem em bens presumidos {desejo de bens futuros e alegria pelos
bens presentes); e duas, em males presumidos (temor de males futuros e aflição pelos males presentes). A
três dessas E., mais precisamente ao desejo, à alegria e ao temor, correspondiam três estados normais,
próprios do sábio, que são, respectivamente, vontade, alegria e precaução, três estados de calma e de
equilíbrio racional. Mas, no sábio, nenhum estado corresponde à aflição do néscio, que é sentida por
males presumidos e deve-se à falta de obediência à razão. A essas quatro E. fundamentais os estóicos
reduziam as outras, consideradas igualmente doenças ou enfermidades (ou seja, doenças crônicas) e
capazes de gerar outras E. de aversão e de desejo (Ibid., IV, 24). O pressuposto dessa análise é a tese da
perfeita racionalidade do mundo. O homem sábio só pode tomar consciência dela e viver de acordo com
ela, "viver segundo a razão". O mundo, como ordenação racional perfeita, nada tem que pos-sa afligir ou
ameaçar o sábio, que é o ser racionalmente perfeito: portanto, a aflição ou o temor, assim como o desejo e
o prazer, provêm simplesmente de ver no mundo algo que não existe e que não pode existir: um bem que
esteja além da razão ou um mal que possa ameaçar a razão. Portanto, as E. não passam de juízos errados,
opiniões vazias e des-
EMOÇÃO
312
EMOÇÃO
providas de sentido. O sábio está imune a elas pelo fato mesmo de ser sábio, de viver segundo a razão; e
entre o sábio e o estulto, que é vítima dessas falsas opiniões, não há meio termo nem transição (CÍCERO,
Definibus, III, 48).
Para S. Agostinho, o ideal estóico da apatia parece desumano e irrealizável. "Não experimentar a menor
perturbação enquanto se vive neste lugar de miséria", diz ele, "só pode ser fruto de grande dureza de alma
e de grande entorpecimento do corpo" (De civ. Dei, XTV, 9). S. Agostinho frisa o caráter ativo e
responsável das emoções: "A vontade está em todos os movimentos da alma, ou melhor, todos os
movimentos da alma não são mais que vontade. O que é, de fato, a cupidez ou o contentamento senão
vontade consciente com as coisas desejadas? E o que é o medo e a tristeza senão vontade que repudia
coisas não desejadas? Segundo a diversidade das coisas desejadas ou evitadas, a vontade humana, ao
permanecer atraída por elas, ou ao rejeitá-las, transforma-se nesta ou naquela E." (Ibid., XIV, 6).
S. Tomás restabelece o conceito de E. como afeição, como modificação sofrida, relacionan-do-a com o
aspecto da alma no qual ela é potencialidade e pode receber ou sofrer uma ação (S. Th., II, I, q. 22, a. 1).
Em particular, as E. pertencem mais à parte apetitiva da alma do que à apreensiva (embora se achem
também nesta); especificamente, mais ao apetite sensível do que ao apetite espiritual, já que costumam
estar unidas a mudanças físicas (Ibid., q. 22, a. 2-3). Importante é a distinção que S. Tomás introduz entre
as E. referentes à parte concupiscível e as que se referem à parte irascí-vel. A faculdade concupiscível tem
por objeto o bem ou o mal sensível enquanto agradável ou doloroso. Mas, assim como às vezes
deparamos com dificuldades ou conflitos ao buscarmos o bem ou evitarmos o mal, também o bem ou o
mal, quando difíceis de conseguir ou de evitar, são objeto da faculdade irascível. Portanto, as E. que
concernem ao bem e ao mal tomados em si pertencem à faculdade concupiscível (p. ex., alegria, tristeza,
amor, ódio, etc), enquanto as E. que se referem ao bem ou ao mal enquanto difíceis de conseguir ou de
evitar pertencem à faculdade irascível (p. ex., audácia, temor, esperança, desespero, etc.) (Ibid., q. 23, a.
1). As E. que pertencem à parte concupiscível referem-se à ordo executio-nis, ou seja, ao movimento com
que se realiza a consecução de um bem ou o afastamento de um mal; as pertencentes à parte irascível servem de mediadoras à consecução das emoções
concupiscíveis, ou seja, condicionam sua realização (Ibid., q. 25, a. 1). O significado dessa distinção é
que, em um mundo sub ratione ardui, em que é difícil conseguir o bem e evitar o mal, a previsão do bem
ou do mal e o esforço para obter o primeiro e evitar o segundo servem de trâmite às outras emoções.
Esses reparos têm o objetivo de garantir o significado e a "seriedade" das E. humanas, evidenciando sua
função na economia da vida humana no mundo. È significativo que o mesmo intuito se encontre nas
análises naturalistas das E., feitas nos sécs. XVI e XVII, que, como é óbvio, partem de formulações
metafísicas e metodológicas completamente diferentes. Assim, Telésio reconhece claramente a função
biológica do prazer e da dor, os dois pólos da experiência emotiva. Causam dor ao corpo e ao espírito
vital as coisas que, dotadas de forças prepotentes e contrárias, afastam-nos de sua disposição e os
corrompem; ao contrário, causam prazer as coisas que, dotadas de forças semelhantes e afins, os
favorecem, os vivificam e lhes restituem a sua própria disposição, se estiverem afastados dela (De rer.
nat., VII, 3). Assim, as E. nascem da difícil situação em que o espírito vital e o corpo se encontram no
mundo. O espírito, na verdade, está situado em lugar estranho e em meio a acontecimentos adversos, dos
quais o corpo não chega a protegê-lo a ponto de evitar que se canse ou enfraqueça; e o próprio corpo, que
lhe serve de revestimento e de proteção, é continuamente modificado e corrompido não só por forças
ambientais, mas também por seu próprio calor, de tal modo que em pouco tempo pereceria se não se
restaurasse com o alimento. Nessa situação, para poder sobreviver, o espírito vital precisa perceber e
entender as forças de todas as outras coisas, desejar e perseguir as coisas que lhe dêem o meio e a
faculdade de proteger-se do calor e do frio demasiados, bem como de nutrir-se e refazer-se, e que o
comovam e o levem à sua nova atuação. Também é preciso que sinta prazer quando essas coisas estão à
sua disposição e que ame e venere as coisas que as proporcionam, ao mesmo tempo que se entristeça
quando elas lhe faltem e odeie e deseje destruir aqueles que procurem privá-lo delas (Ibid., IX, 3). Desse
modo, são geradas as E. fundamentais, amor e ódio, que têm origem, portanto, na situação em que o
espírito
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313
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do homem se encontra no mundo natural. Essa situação explica também as outras E., em virtude das quais
o homem está ligado aos seus semelhantes. Com efeito, o homem é levado à convivência não só para
atender às necessidades que não poderia satisfazer sozinho, mas também pela tendência a gozar da
companhia de seus semelhantes; essa tendência impele-o para as relações sociais e para o desejo de
familiaridade e benevolência. Tais relações determinam, portanto, outro grupo de E., como temor, dor,
prazer e satisfação, inerentes ao comportamento recíproco dos homens. Enfim, um terceiro grupo de E.
nasce da sensação de orgulho e satisfação que o espírito experimenta ao sentir-se íntegro e puro, e ao
reconhecer nos outros a integridade e a pureza que deseja para si mesmo. Determina-se assim o
sentimento de honra e o seu contrário, o desprezo, bem como outros semelhantes: todos referentes à
situação natural do espírito humano no mundo (Ibid., IX, 3).
Muito próxima dessa análise de Telésio está a de Hobbes, que situava as E. entre as quatro faculdades
humanas fundamentais, ao lado da força física, da experiência e da razão (De eive, I, 1). Hobbes relaciona
as E. com os "princípios invisíveis do movimento do corpo humano" que precedem as ações visíveis e
costumam ser chamados de tendências (conatus). As tendências chamam-se desejos, apetites ou aversões,
em relação aos objetos que as produzem, e como tais são os constituintes de todas as E. humanas. De fato,
o que os homens desejam também se diz que amam, e o que evitam se diz que odeiam; de tal modo que
desejo e amor, aversão e ódio são a mesma coisa com a diferença de que as palavras "desejo" e "aversão"
implicam a ausência do objeto, ao passo que as palavras "ódio" e "amor" implicam sua presença. Aquilo,
porém, que não se deseja nem se odeia, diz-se que se desdenha; assim, o desdém é uma espécie de
imobilidade do coração, uma refratariedade a sofrer a ação de certas coisas. O tom agradável ou doloroso
de uma E. garante sua função vital. "O movimento chamado apetite", diz Hobbes, "e, em sua aparência,
deleite ou prazer, parece um reforço e um auxílio ao movimento vital; portanto não é com im-propriedade
que se chamam de jucunda (de juvando) as coisas que dão prazer, porque ajudam e fortificam; ao passo
que chamamos de molestas as coisas nocivas porque impedem e perturbam o movimento vital" (Leviath.,
I, 6). O
prazer ou deleite, portanto, é o sentido do bem.- o enfado ou desprazer, o sentido do mal. E todo apetite,
desejo ou amor é acompanha do por um prazer maior ou menor, como todo ódio ou aversão é
acompanhado por uma dor maior ou menor. Assim entendidas, as E. controlam toda a conduta do homem:
a própria vontade, para Hobbes, não passa de "último apetite ou última aversão aderente à ação ou à
omissão", e a deliberação que precede a vontade não passa de "soma de desejos, versões, esperanças ou
temores". Essa é a primeira vez que se reconhece a função determinante das E. sobre a totalidade da
conduta humana.
Embora Descartes compartilhe do ponto de vista estóico, de que a força da alma consiste em vencer as E.
e deter os movimentos do corpo que a acompanham, enquanto a sua fraqueza consiste em deixar-se
dominar por elas, de tal modo que é puxada para todos os lados, sendo levada a lutar contra si mesma, a
teoria das E. que ele expõe em Paixões da alma tem as mesmas características fundamentais das teorias
de Telésio e de Hobbes. Segundo Descartes, as E. são as afeições, ou seja, as modificações passivas
causadas na alma pelo movimento dos espíritos vitais, das forças mecânicas que agem no corpo (Pass. de
1'âme, I, 27). Essa ação dos espíritos sobre o corpo é mediada pela glândula pineal, onde, segundo
Descartes, reside a alma, sendo, portanto, também a sede das E. (Ibid., 34). A função natural das E. é
incitar a alma a permitir as ações que servem para conservar o corpo ou para torná-lo mais perfeito,
contribuindo com elas. Por isso, a tristeza e a alegria são as duas E. fundamentais. Graças à primeira, a
alma adverte das coisas que prejudicam o corpo e por isso sente ódio pelo que lhe causa tristeza e desejo
de livrar-se. Graças à alegria, ao contrário, a alma adverte das coisas úteis ao corpo e, assim, sente amor
por elas e desejo de adquiri-las e de conservá-las (Ibid., 137). Obviamente tudo isso supõe a separação
entre alma e corpo, ou seja, a noção de alma como "substância" independente, visto que reduz a E. a uma
preocupação da alma em relação ao corpo, à vida e à conservação deste. Segundo Descartes, a diferença
entre as E. não provém da diferença entre os objetos, mas dos diferentes modos pelos quais os objetos nos
prejudicam, nos ajudam ou, em geral, têm importância para nós. O modo de ação habitual das E. consiste
em dispor a alma a desejar as coisas que a natureza nos faz sentir
EMOÇÃO
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EMOÇÃO
úteis e a persistir nesse desejo, além de produzir a excitação dos espíritos vitais que facilita os
movimentos corpóreos úteis à consecução dessas coisas (Ibid., 52). Para Descartes, há só seis E. simples e
primitivas: admiração, amor, ódio, desejo, alegria e tristeza; todas as outras são compostas por essas seis
ou são espécies delas. Ele rejeita a distinção tomista entre paixões pertencentes à parte concupiscível e
paixões não pertencentes à parte concupiscível {Jbid., 68); o estranho é que nem o temor nem a esperança
são admitidos no rol das E. fundamentais. Entretanto, nele está incluída a admiração, que é "a súbita
surpresa da alma, que a impele a considerar com atenção os objetos que lhe pareçam raros e
extraordinários" (Jbid., 70). Essa é a única E. não acompanhada de movimentos corpóreos, porque não
tem como objeto o bem e o mal, mas só o conhecimento da coisa que causa admiração. O que não
significa que é desprovida de força, pois a surpresa da novidade, típica dessa E., reforça enormemente
todas as outras {Jbid., 72).
Se para Descartes a E. diz respeito à alma só em termos de sua relação com o corpo, para Spinoza ela é
um modo de ser total que envolve alma e corpo, que são dois aspectos de uma única realidade. Segundo
Spinoza, as E. derivam do esforço (conatus) da mente em perse-verar no próprio ser por um período
indefinido. Esse esforço chama-se vontade quando se refere só à mente: chama-se desejo (appeti-tus)
quando se refere à mente e ao corpo {Et., III, 9 e, scol.). O desejo é assim a E. fundamental. A ele estão
ligadas as outras duas E. primárias, alegria e dor; a alegria é a E. graças à qual a mente, sozinha ou unida
ao corpo, eleva-se para uma perfeição maior; e a dor é a E. graças à qual a mente desce para uma
perfeição menor {Ibid., III, 11, scol.). O amor e o ódio são, apenas a alegria e a dor acompanhadas da
idéia de suas causas externas; assim, quem ama esforça-se necessariamente por manter consigo e
conservar a coisa amada, e quem odeia esforça-se por afastar e destruir a coisa odiada {Jbid., III, 13,
schol.). Nessas observações, as E. são vinculadas ao esforço da mente e do corpo para a perfeição; na
verdade, para Spinoza corpo e mente são duas manifestações da Substância, são eternas como a
Substância; portanto, não podem ser realmente ameaçados por nada, de tal sorte que as E. não podem ser
a advertência dessa ameaça. Donde o pouco peso que o medo e a esperança têm na análise de
Spinoza. Ambas as E. são relacionadas com o amor e ódio {Ibid., III, 18, scol. 2) e atribuídas a "causas
acidentais" (Ibid, III, 50). De resto, todas as E., enquanto afeições ou modificações passivas (passiones),
estão destinadas a desaparecer como tais, pois são idéias confusas destinadas a tornar-se idéias distintas;
uma vez idéias distintas, deixam de ser afeições (Ibid., V, 3) para tornar-se idéias sub specie aeternitatis,
na ordem geométrica da Substância divina. São, então, determinações da natureza divina e dela derivam
(Ibid., V, 29, scol.).
Esse ponto de vista coincide substancialmente com o dos estóicos, visto resolver-se em negara função das
E. na economia da vida humana no mundo. E a mesma negação está implícita na doutrina de Leibniz, que
vê nas E. somente sinais de imperfeição que impedem a alma de ser um Deus: "Tem-se razão em chamar,
como os antigos, de perturbações ou paixões aquilo que consiste em pensamentos confusos que têm algo
de involuntário e de incógnito-, o que, na linguagem comum, atribui-se não sem razão à luta do corpo e
do espírito, porque os nossos pensamentos confusos representam o corpo ou a carne e fazem nossa
imperfeição" (Op., ed. Erdmann, 1, p. 188). Essa noção das E. como "pensamentos confusos" que, para a
alma, derivam de sua relação com o corpo, constituindo, portanto, a imperfeição do espírito criado finito,
foi adotada por toda a escola de Leibniz e Wolff. Essa noção obviamente implica que as E. não têm
caráter próprio e específico se comparadas com as representações cognitivas: portanto, não têm sequer
significado, a não ser representar a imperfeição da alma humana.
Uma linha de pensamento que vai de Pascal aos moralistas franceses e ingleses (La Roche-foucauld,
Vauvenargues, Shaftesbury, Butler), até Rousseau e Kant, levou ao reconhecimento da categoria
"sentimento" como princípio autônomo de E. e à elaboração da noção moderna de "paixão" como E.
dominante, capaz de penetrar e controlar toda a personalidade humana. Já se viu que para Hobbes todas as
formas da ação voluntária passam pelas E. e são determinadas por elas: a própria vontade é apenas uma E.
que consegue prevalecer. Essa tese é compartilhada por toda a corrente a que aludimos. Pascal foi o
primeiro a dar primazia "às razões do coração, que a razão não conhece" (Pensées, 277); insistiu no valor
e na função do "sentimento" como um princípio em si, que
EMOÇÃO
315
EMOÇÃO
também é fonte de conhecimentos específicos (v. SENTIMENTO); e julgou impossível eliminar o conflito
entre razão e E., sendo em todo caso impossível solucionar esse conflito eliminando uma das partes dele
{Itríd, 412-13)- Vauve-nargues delineou assim a natureza das E.: "Extraímos da experiência do nosso ser
a idéia de grandeza, prazer e poder, que gostaríamos de aumentar sempre: e haurimos na imperfeição de
nosso ser a idéia de pequenez, sujeição e miséria que procuramos reprimir: aí estão todas as nossas
paixões... Desses dois sentimentos unidos, ou seja, o de nossa força e o de nossa miséria, nascem as
maiores paixões, pois o sentimento das nossas misérias impele-nos a sair de nós mesmos e o sentimento
dos nossos recursos encoraja-nos a isso e arrebata-nos de esperança. Mas aqueles que sentem apenas sua
própria miséria sem a força nunca se apaixonam bastante, porque nada ousam esperar; tampouco se
apaixonam aqueles que sentem sua força sem a impotência, pois têm muito pouco a desejar: é preciso,
assim, que haja esperança de coragem, de fraqueza, de tristeza e de presunção" (De 1'esprit humain, 22).
O pressuposto dessas observações é que não só é impossível compreender a natureza e o comportamento
do homem sem levar em conta as E., mas também; que as próprias E. têm função diretiva sobre a
totalidade da conduta humana, ou seja, tendem a transformar-se, segundo a expressão de Pascal (Pensées,
106), em "E. dominantes". Shaftesbury foi provavelmente quem mais contribuiu para difundir esse ponto
de vista em filosofia: "A rigor, não se pode dizer que um animal age, a não ser através das afeições ou das
E. próprias dos animais. De fato, nas convulsões em que uma criatura se fere ou fere outra, o que age é
um simples mecanismo, uma máquina, uma peça de relojoaria, não o animal. Tudo o que é feito pelo
animal como tal é feito só através de certa afeição ou E., como p. ex. o temor, o amor e o ódio que o
movem. E assim como é impossível que uma afeição mais fraca prevaleça sobre outra mais forte, também
é impossível que, sempre que as afeições ou E. forem mais fortes e formarem, graças a sua força e a seu
número, o lado mais poderoso, o animal não se incline nesse mesmo sentido. Segundo essa balança das
E., ele deve ser governado e conduzido à ação" (Characteristicks, 1749, Treatise IV, livro II, parte I,
sqção 3). Em outros termos, segundo Shaftesbury a presença das E. é o que distingue um animal de um puro e simples mecanismo de tipo
cartesiano. A classificação que Shaftesbury dá das emoções (no trecho ora citado) é característica do seu
moralismo otimista. Em primeiro lugar, há as afeições naturais, que conduzem ao bem público-, em
segundo lugar, as auto-afeições, que conduzem ao bem pessoal; em terceiro lugar, as que não tendem nem
ao bem público nem ao pessoal, mas aos seus contrários, e, portanto, devem ser chamadas de afeições
inaturais. O conceito em que ele insiste é o da balança ou do equilíbrio das E., em virtude do qual fala de
uma "economia das E." com vistas à conservação das criaturas; assim, p. ex., uma criatura que não possua
fortes meios de ataque e de defesa está sujeita a alto grau de temor, que é a E. que lhe possibilita salvar-se
fugindo do perigo.
Kant, que foi o primeiro a introduzir explicitamente a categoria do sentimento como autônoma e
mediadora entre as admitidas tradicionalmente (razão e vontade), reconheceu claramente o significado e a
função biológica das E., embora fosse levado por sua doutrina moral, a simpatizar com a tese dos
estóicos, de que elas são doenças da alma. "A E.", disse ele, "é tal predomínio das sensações que se
produz a supressão do controle da alma (animus sui compôs); portanto, é precipitada, ou seja, cresce
rapidamente até tornar impossível a reflexão (Antr., § 74). Nisso é diferente da paixão, que, ao contrário, é
lenta e reflexiva (v. PAIXÃO). Para Kant o ideal de apatia é "justo e nobre"; mas a natureza foi sábia
quando deu ao homem a disposição à simpatia como guia temporário, antes que a razão adquira todas as
suas forças, pois assim, ao impulso moral para o bem, acrescentou um estímulo patológico (sensível)
como sucedâneo temporário da razão.Portanto, até do ponto de vista moral a E. tem certa função, ainda
que subordinada e provisória. Do ponto de vista biológico, não pairam dúvidas quanto a importância da
emoção. A alegria e a tristeza estão respectivamente ligadas ao prazer e à dor: estes têm a função de
impelir o sujeito a permanecer na condição em que está ou a deixá-la. A alegria excessiva (não atenuada
pela preocupação da dor) e a tristeza extrema (não aliviada por nenhuma esperança), a angústia,, são E.
que ameaçam a existência. Mas na maioria da vezes as E. ajudam e sustentam a existência, e algumas,
como o riso
EMOÇÃO 316 EMOÇÃO
e o pranto, ajudam mecanicamente a saúde. A utilidade das E. decorre da função exercida em face da vida
por seu tom fundamental, prazer ou dor. "O prazer", diz Kant (Antr., § 60), "é o sentido do crescimento da
vida; a dor, do impedimento à vida: a vida do animal, como já notaram os médicos, é o antagonismo
contínuo entre prazer e dor." Nesse jogo de antagonismo, a dor tem a primazia. De fato, aquilo que de
modo imediato, ou seja, por via do sentido, me impele a abandonar meu modo de ser, é desagradável para
mim, aflige-me; o que, ao contrário, me impele a conservá-lo (a permanecer nele) é agradável para mim,
apraz-me. Mas como o tempo nos foge, indo sempre do presente para o futuro e não vice-versa, somos
obrigados a sair do estado presente sem saber em qual entraremos, sabendo apenas que é um estado
diferente. Ora, essa perspectiva é a causa do sentimento agradável, o que significa que ele é precedido e
condicionado pelo sentimento de dor vinculado à necessidade de sair do próprio modo de ser. "A dor",
nota também Kant, "é o aguilhão da atividade e é nela que sentimos a vida; sem dor, cessaria a vida". É
estranho que essas observações de Kant, que outra pretensão não tinham senão caracterizar uma situação
de fato, tenham sido amplificadas por Schopenhauer, fundamentando seu pessimismo romântico. Viver,
para Schopenhauer, significa querer; querer significa desejar; e o desejo implica a ausência do que se
deseja, ou seja, deficiência e dor. Por isso, a vida é dor e a vontade de viver é o princípio da dor. Da
satisfação do desejo ou da necessidade, surge um novo desejo, outra necessidade ou o tédio da satisfação
prolongada. Nessa oscilação, contínua, o prazer representa só um momento de trânsito, negativo e
instável: é a simples cessação da dor (Die Welt, I, § 57).
A distinção e a especificação dos conceitos de "E.", "sentimento" e "paixão" podem ser vistas no fato de
que, na doutrina de Hegel, a paixão recebe tratamento privilegiado, enquanto o sentimento e, sobretudo, a
emoção são reduzidos ao nível da "vã opinião" dos estóicos. Hegel fala das E. a propósito da forma do
sentimento, que faz parte do espirito subjetivo, mais precisamente do momento dele que é a "psicologia";
esta "indica em forma de narração o que é espírito ou alma, o que lhe acontece, o que faz" (Ene, 387). O
sentimento, diz Hegel, tem forma de "particularidade acidental"; nele o espírito encontra sua "forma
íntima
e pior, em que já não está livre, como universalidade infinita, mas seu conteúdo está como acidental,
subjetivo, particular" (Ibid., 447). Obviamente, com essas expressões, Hegel pretende referir-se às E., das
quais o sentimento constitui a forma ou categoria universal; e às E. cabem portanto as qualificações de
"particularidade acidental" e "conteúdo acidental, subjetivo, particular": expressões todas que, na
linguagem de Hegel, designam determinações provisórias ou aparentes, que só têm realidade na
substância racional. Quanto aos "sentimentos práticos", só podem ser considerados como tais egoísticos e
maus, pois só estes pertencem à individualidade que se mantém contra a universalidade; o conteúdo
desses sentimentos, portanto, só é determinado em antítese com o dos direitos e dos deveres (Ibid., 471).
As expressões que Hegel emprega a propósito e que parecem referir-se ao conteúdo da forma do
sentimento, ou seja, à esfera das E., são o equivalente exato da "vã opinião" dos estóicos e do
"pensamento confuso" de Spinoza e Leibniz: indicam estados ou momentos que não têm significado
próprio, mas só o significado negativo de não serem perfeitamente redutíveis ao juízo, ou, em geral, às
determinações racionais.
A partir da segunda metade do séc. XK, as E. tornam-se objeto de indagação científica e são consideradas
em estreita conexão com os movimentos e os estados corpóreos que as acompanham. A primeira tentativa
importante nesse sentido foi de Charles Darwin, em Expressão das E. no homem e nos animais, de 1872,
que também utilizou pesquisas anteriores e assumiu como ponto de partida a distinção de Spencer entre
sensações e emoções. Segundo Spencer {.Principies of Psichology, 1855, § 66), todas as experiências
vividas (feelings) dividem-se em duas classes: sensações, produzidas por um estímulo periférico, e E,
produzidas por um estímulo central. Sensações e E. distinguem-se sobretudo porque as primeiras são
relativamente simples e as segundas são extremamente complexas. Ambas, porém, são mecanismos de
adaptação ou de resposta a conjuntos uniformes de circunstâncias externas (Ibid, § 216). Darwin
preocupou-se principalmente em estudar os movimentos ou as modificações somáticas que constituem a
expressão das emoções. E julgou poder explicá-las mediante três princípios. 1Q Princípio dos hábitos úteis
e associados, que exprimiu assim: "Quando uma sensação, um de-
EMOÇÃO
317
EMOÇÃO
sejo, tiver produzido, ao longo de toda uma série de gerações, alguns movimentos voluntários úteis a dar
satisfação ou alívio, ter-se-á uma tendência a realizar movimentos semelhantes sempre que essa sensação
ou desejo voltar a apresentar-se, mesmo que de forma débil e mesmo que o movimento expressivo não
tenha mais nenhuma utilidade. Movimentos dessa espécie são, em geral, herdados e pouco diferem de
ações reflexas (v.)". 2e
Princípio da antítese, segundo o qual se tem a tendência a realizar movimentos
opostos no caso de E. opostas, ainda que tais movimentos não tenham nenhuma utilidade. 3Q
Princípio da
ação direta do sistema nervoso: quando a sensibilidade é fortemente excitada, o excesso de força nervosa
é transmitido em direções definidas que dependem da conexão das células nervosas e, em parte, do
hábito, produzindo assim efeitos que reconhecemos como expressões emotivas. Os dois primeiros
princípios apelam para a ação do hábito e da associação, à qual recorreu constantemente a psicologia do
séc. XIX. Mas a mesma corrente de investigação psicológica, levada a considerar os fatos psíquicos em
conexão estreitíssima com os corpóreos, logo levou a ver nos estados somáticos muito mais que a simples
"expressão" das emoções. Em 1884 e 1885, James e Lange, independentemente um do outro, propunham
a chamada "teoria somática das E.", que, apesar das críticas logo suscitadas, prevaleceu durante muitos
decênios e serviu, como ainda serve em parte, de útil ponto de referência para teorias ulteriores. Eis como
James expôs essa teoria: "Minha teoria sustenta que as mudanças corpóreas seguem-se imediatamente à
percepção do fato excitante e que o sentimento que temos dessas mudanças, enquanto elas se produzem, é
a emoção. O senso comum diz-, Perdemos a nossa fortuna, ficamos aflitos e choramos; encontramos um
urso, temos medo e fugimos; um rival nos insulta, ficamos encoleriza-dos e batemos. A hipótese que
defendemos é que essa ordem de sucessão é inexata: que um estado mental não é imediatamente induzido
pelo outro, que as manifestações corpóreas devem interpor-se, entre um e outro, e que a fórmula mais
racional consiste em dizer: ficamos aflitos porque choramos, irritados porque batemos, assustados porque
trememos, e não que choramos, batemos e trememos porque estamos aflitos, irritados ou assustados
conforme o caso. Sem os estados corpóreos que se seguem à percepção, esta teria forma puramente cognitiva, pálida, descorada e desprovida de calor emocional. Poderíamos então ver o urso e julgar oportuno
fugir, receber o insulto e decidir reagir, mas não sentiríamos realmente medo nem cólera" (Jhe Theory
o/Emotions, 1884; trad. fr., p. 6l). A força dessa teoria está na observação de que, se em caso de alguma E.
violenta, se prescindir de todas as sensações de sintomas físicos, não ficará nenhum resíduo, nenhuma
"substância mental" emotiva, mas simplesmente um estado de percepção intelectual. "Não consigo
imaginar", dizia James, "o que sobraria da E. do medo, se não estivesse presente o sentido da pulsação
apressado do coração, da respiração ofegante, do tremor dos lábios, do enfraquecimento das pernas, do
arrepio e dos estremecimentos viscerais. Poderia alguém imaginar um estado de raiva sem calor no peito,
enrubes-cimento das faces, dilatação das narinas, aperto dos dentes, impulso para a ação violenta, ou seja,
um estado de raiva que deixasse os músculos imóveis e relaxados, a respiração tranqüila e o rosto
plácido? Nesse caso não restaria da E. mais que um juízo trio e desapaixonado, segundo o qual cada
pessoa ou certas pessoas merecem castigo por seus delitos." Por dois ou três decênios sucessivos, pode-se
dizer que os estudos experimentais sobre as E. foram inspirados nessa teoria. Mas foi precisamente no
domínio dos fatos experimentais que ela encontrou as primeiras objeções decisivas. Sherrington
demonstrou que a expressão visceral da E. é posterior à ação cerebral, que ocorre juntamente com o
estado psíquico (1908), e Cannon (.Feelings and Emotions, 1928) observou que as E. viscerais ocorrem
em muitos estados orgânicos sem que tenham qualquer significado emocional. A febre e a exposição ao ar
frio produzem muitas vezes aceleração do coração, aumento do açúcar no sangue, descarga de adrenalina,
ereção dos pelos. A asfixia age do mesmo modo no estágio da excitação. A redução do sangue através da
insulina provoca uma reação hipoglicêmica caracterizada por palidez, aceleração do coração, acréscimo
de açúcar no sangue e suores profusos. Por isso é difícil compreender como reações que em si mesma não
têm nenhum valor emotivo na maior parte dos casos em que ocorrem adquiririam, em outros casos,
caráter de emoções propriamente ditas. Mas o defeito principal dessa teoria, justamente como "teoria", é
que ela não explica absolutamente a função das emoções. Não explica, p. ex., por que a visão do urso e a
constatação de
EMOÇÃO
318
EMOÇÃO
que ele não está empalhado nem acorrentado fazem tremer e empalidecer.
Não explica, em outros termos, o caráter biológico das E., seu finalismo, parcial ou relativo embora, mas
bastante evidente em certo número de casos. Precisamente por esse prisma, Dewey e a escola psicológica
de Chicago (especialmente Stanley Hall), retomando a tentativa de Darwin, consideraram a E. como a
recorrência alterada de certos movimentos teleológicos e a atribuíram a manifestações residuais de
instintos ancestrais. Assim, p. ex., os movimentos de agarrar, morder e arranhar, nos estados de cólera,
seriam resquícios de atos próprios de animais selvagens, de que descendemos. O movimento de pôr a
cabeça para a frente também seria uma recordação ancestral: encontra-se, com efeito, nos animais com
chifres e nos primeiros vertebrados aquáticos ou terrestres que utilizaram a cabeça para afastar obstáculos.
Sem dúvidas essas teorias reintegram a E. em sua natureza biológica, mas levam a ver nela nada além do
resíduo atualmente não significante de um movimento instintivo originariamente significante. Esse
resíduo seria constituído por aquilo que a here-ditariedade deixou sobreviver de movimentos instintivos
que tinham significado de ataque ou defesa nos animais que em geral os possuíram, mas que depois
deixaram de tê-los. Toda essa teoria está, pois, fundada na hipótese da transmissão hereditária de
movimentos instintivos e no postulado de que as E. derivam mais desses movimentos do que da situação
em face da qual assumem significado de reações ou respostas.
A referência a essa situação constitui, no entanto, o traço característico das mais importantes teorias
contemporâneas. Para elas, a E. não se esgota na subjetividade como simples "estado de espírito" ou
complexo de estados de espírito, mas sempre inclui uma relação com circunstâncias objetivas, que lhe
conferem o seu significado específico. Desse ponto de vista, a E. é um comportamento ou o elemento de
um comportamento que visa a enfrentar a situação ou a fugir dela, resolver o problema que ela apresenta
ou a eludi-lo. Pode-se considerar que a psicanálise é o primeiro passo para a interpretação da E. nesse
sentido: ela evidenciou o significado dos fatos psíquicos em relação às situações que os determinaram. Na
angústia, p. ex., Freud vê em primeiro lugar a preparação para enfrentar o perigo, que se manifesta pela
exaltação da atenção sensorial e da tensão motora. Esse estado de expectativa ou de preparação é
biologicamente útil, pois sem ele o indivíduo estaria exposto a conseqüências graves. Dele derivam, por
um lado, a ação motora, a fuga e, em grau superior, a defesa ativa; por outro lado, o que se sente como
estado de angústia. Se o desenvolvimento da angústia for contido em limites estreitos, ele não passará de
apêndice, de simples sinal de perigo, e todo o processo de transformação do estado de preparação
angustioso em ação ocorre rápida e racionalmente. Quando, ao contrário, o desenvolvimento do estado de
angústia ultrapassa certos limites, torna-se contrário ao objetivo biológico e dá lugar às formas
patológicas. Freud também julga que a situação cujo sinal é a angústia e, em geral, um estado afetivo
pode não ser um acontecimento presente: pode tratar-se de uma impressão profunda ou oculta,
pertencente à pré-historia, não do indivíduo, mas da espécie. Assim, pode-se dizer que o estado afetivo
apresenta a mesma estrutura de uma crise de histeria, visto ser, como esta última, constituído por uma
reminiscência inconsciente. A crise de histeria pode ser comparada a um estado afetivo individual recémformado, e o estado afetivo normal pode ser considerado a expressão de uma histeria genérica, que se
tornou hereditária (Einführung in die Psycho-analyse, 1917, cap. 24; trad. fr., pp. 422-23). Em outros
termos, tem-se conduta emotiva sempre que a E., em vez de transformar-se rapidamente de preparação
em ação, na ação efetiva, desenvolve-se como E., agindo como inibição, recusa ou censura da própria
ação. Nesse sentido explica-se a sua analogia com a histeria, que é, freqüentemente a recusa de reviver
uma recordação desagradável. Assim como o sonho às vezes é uma fuga diante da decisão a tomar, assim
como a doença de certas moças às vezes é uma fuga diante do casamento, também a cólera é
habitualmente a fuga diante de uma situação desagradável e o desmaio por medo é a fuga diante de uma
perspectiva desfavorável, a procura de um refúgio ilusório.
Em sentido análogo, Janet caracterizou a E. como a "reação do fracasso". Para Janet, a E. é a regressão
brutal para uma forma de conduta inferior, menos adaptada à situação e incapaz de enfrentá-la. Como o
comportamento psíquico mais elementar é a agitação convulsiva acompanhada por modificações das
funções
EMOÇÃO
319
EMOÇÃO
respiratória e circulatória, quando suficientemente profunda, a E. dá início a convulsões ou simples
modificações viscerais. Não se trata, porém, de uma regressão simplesmente mecânica: um idiota não
experimentaria nenhuma E. ao deparar com o urso de que falava James, e muitos doentes em "estado de
apatia" deixam de sentir as E. que teriam sentido outrora nas mesmas circunstâncias. Trata-se, portanto,
de uma reação ativa, de uma forma de regulamento da ação cujo ponto de partida é a reação do indivíduo.
Mas trata-se também de uma reação inferior e desordenada que denuncia a recusa e a incapacidade de
enfrentar uma situação: eqüivale, por isso, à consciência do fracasso diante de tal situação. Exemplo disso
é a jovem que ouve o pai dizer que tem dor no braço e que teme uma paralisia, e começa a chorar, a gritar,
e a agitar-se, entrando em convulsões, que se repetem alguns dias depois. Durante o tratamento médico,
confessa que a idéia de cuidar do pai e de levar vida de enfermeira doméstica parecera-lhe insuportável.
Nesse caso, a E. representa efetivamente uma conduta de fracasso, derivada da incapacidade de enfrentar
a situação em perspectiva (De 1'angoisse à 1'extase, 1928, pp. 450 ss.). Por outro lado, os estados afetivos
de elação e alegria constituem, segundo Janet, reações de êxito, ainda que não justificadas. A alegria nem
sempre é correta e nem sempre corresponde a um aumento real das faculdades, a uma criação real, como
os filósofos consideraram. Ela pode ser equivocada e aparece simplesmente quando o homem se
comporta como se fosse vitorioso e quando esse comportamento de triunfo, verdadeiro ou falso, liberta
forças que são bem ou mal utilizadas. Portanto, é principalmente um comportamento de esbanjamento, no
qual as forças que tinham sido utilizadas na ação, ou pelo menos seus resíduos, expandem-se pelo
organismo e são empregadas em outras ações não solicitadas por estímulos urgentes ou que já se
desenvolviam em limites restritos Ubid., p. 408).
Desse ponto de vista, a E. mostra-se nociva porque suprime a ação eficaz e a substitui por convulsões
absurdas. Contudo, segundo Janet, tem certa utilidade ou pelo menos certa função, porquanto seu sujeito,
na impossibilidade de responder à situação com uma reação de ordem superior, entrega-se a uma reação
inferior e primitiva, muito mais grosseira, porém capaz de dar-lhe certa proteção imediata. "Os
comportamentos reflexos, as simples convulsões desordenadas, serviram a gerações inteiras de seres para
afastar os contatos nocivos e para conseguir alimento. Não será natural que, em certa época, os seres em
vias de aperfeiçoamento, mas ainda incapazes de utilizar de modo constante os procedimentos
aperfeiçoados, voltem instintivamente a esses atos primitivos?" (Ibid., p. 471). Mas se a E. propriamente
dita, ou seja, o choque emocional, é a regressão a uma forma grosseira e primitiva de reação, o sentimento
é a forma de E. mais bem organizada e menos violenta que acompanha todo o desenvolvimento da ação
sob forma de esforço, fadiga, tristeza, alegria. O sentimento é parte essencial da reação bem organizada. A
E. contém confusamente elementos que pertencem aos sentimentos, mas os contém em desordem, não se
identificando por isso com nenhum dos comportamentos sentimentais. "São os incidentes insignificantes,
as pequenas discordâncias, que conduzem às grandes perturbações emocionais.É provável que o perigo
real desperte o instinto vital, o amor pelos seres caros, o amor pela propriedade, e que essas tendências
poderosas venham em socorro do ato falho, produzindo a reação do esforço: a presença dessa reação
elimina a da E., que não é do mesmo gênero" (Les obsessions et Ia psy-chasténie, I, pág. 5, 578). Todavia,
entre as emoções e os sentimentos, que são as suas formas superiores, devem ser admitidos todos os graus
intermediários; no fundo, trata-se de uma questão de palavras: já que "empregamos a palavra E. sempre
que há uma mudança brusca da conduta após uma circunstância imprevista, mas todos os sentimentos
podem nascer nessas condições" (De 1'angoisse, p. 474).
A psicologia da forma tornou mais precisa e aperfeiçoada, principalmente com Lewin e Dembo, a teoria
das E. nesse sentido. A E. é interpretada como a "ruptura de uma forma" e a reconstituição de uma outra
forma que valha como sucedâneo da primeira. A forma é certa situação que oferece um problema, cuja
solução pode ser encontrada tão-somente em determinada direção. Quando a procura e o esforço voltados
para essa solução se interrompem, o indivíduo refugia-se em atos sucedâneos ou então procura evadir-se
ou encerrar-se em si mesmo, estabelecendo entre si e o campo hostil uma barreira de proteção. Atos
sucedâneos, evasões, fechamento em si mesmo, esses são os comportamentos emotivos. Des-
EMOÇÃO
320
EMOÇÃO
troem a estrutura diferencial do problema inerente ao campo situacional e, por isso, produzem o
enfraquecimento da distinção entre real e irreal, com a conseqüência de que os objetos do campo perdem
o seu valor próprio e adquirem caráter uniformemente negativo. P. ex., a cólera é um modo de fugir de um
problema que não se sabe resolver, recorrendo a uma ação de natureza inferior: aquele que está encolerizado assemelha-se ao homem que, não podendo desfazer os nós das cordas que o atam, agita-se
convulsamente em seus laços. Na falta de uma solução adequada para o problema que a situação
apresenta, a cólera procura um sucedâneo, uma evasão, em movimentos desordenados que mascaram a
falta da resposta adequada (GUILLAUME, Psych. dela forme, pp. 138 ss.).
As teorias que acabamos de examinar são "psicológicas", no sentido de que se apresentam como
generalizações científicas fundadas em uma rica messe de observações de casos normais e patológicos
(servindo estes ainda melhor do que os primeiros para ilustrar o fenômeno em questão). Todavia, hoje as
teorias filosóficas não se afastam muito das psicológicas, pois umas e outras são levadas a considerar os
fenômenos emotivos (como também os outros fenômenos mentais) não como a resultante de elementos
atomisticamente considerados, mas na sua totalidade, na forma complexa e concreta, portanto, na situação
global em que têm origem. Ademais, as teorias psicológicas e filosóficas concordam em considerar as E.
como formas de comportamento específico, que exprimem um modo de ser fundamental do homem.
Scheler, que é o filósofo contemporâneo mais interessado na vida emotiva e que procurou fundar, numa
análise apropriada desta, toda a sua filosofia, parte da distinção entre esteios emotivos e funções emotivas;
essa distinção pode ser expressa dizendo que os estados são afeições (modificações de natureza passiva) e
as funções, ao contrário, são atividades, reações aos estados emotivos. Segundo Scheler, os estados
emotivos não têm, por si mesmos, caráter intencional, ou seja, não se referem imediatamente a objetos ou
situações. Essa referência é sempre indireta, mediada por uma associação perceptiva ou representativa. P.
ex., se me pergunto: "Por que hoje estou com este humor? O que" causou em mim esta tristeza ou esta
alegria?", a resposta a tal pergunta não é dada pelo estado emocional em
que me encontro (humor, tristeza, alegria, etc), mas por um ato diferente e independente, no qual vinculo,
com base na experiência ou no raciocínio, a E. com objetos ou situações conhecidas. Em certos casos, o
estado emotivo pode tornar-se um signo do objeto ou da situação, como quando certas dores anunciam o
início de uma doença. Mas a relação simbólica entre o estado emotivo e seus objetos é sempre mediada
pela experiência e pelo pensamento. O estado emotivo, em outros termos, pode estar ligado a uma
situação de fato ou simbolizá-la, mas não contém em si a referência intencional a um objeto seu (Der
Forma-lismus in derEthik, pp. 262 ss.). A diversidade entre estados emotivos e funções emotivas não
impede que eles possam coexistir no mesmo ato ou momento de consciência. Um homem pode ser feliz e,
no entanto, sofrer de um mal físico; poderia até acontecer, p. ex., que para um verdadeiro mártir da fé este
sofrimento se tornasse um sofrimento feliz; pode até acontecer que, desesperados na fundo da alma,
sintamos de um prazer sensível, que, aliás, o gozemos em nosso íntimo. Estados e funções, porém, não se
misturam porque são dados e vividos de maneira diferente. Essa é a diferença que muitos psicólogos
contemporâneos estabelecem entre emoções e sentimentos, entendendo por estes últimos os
comportamentos emotivos superiores, que acompanham a ação em vez de bloqueá-la e que portanto se
diferenciam do choque emocional (que dá lugar às neuroses). Para Scheler, trata-se sobretudo de uma
diferença de profundidade, desse ponto de vista, podem distinguir-se quatro graus de E., que
correspondem à estrutura da existência humana. São: 1Q
E. sensíveis; 2- E. corpóreas (estados) e
sentimentos vitais (funções); 3B
sentimentos psíquicos (sentimentos do eu); 4a sentimentos espirituais
(sentimentos da personalidade). Todas essas E. fazem referência à vivência do eu ou da pessoa; mas a
referência é diferente para cada uma das quatro espécies mencionadas, tornando-se mais intrínseca à
medida que se consideram sentimentos superiores. As E. sensíveis e as vitais tornam-se estados ou
funções do eu só quando penetramos os dados corpóreos e apreendemos o corpo como nosso, ou seja,
como pertencente ao seu eu psíquico. Os sentimentos psíquicos, ao contrário, já são, originariamente, uma
qualidade do eu. "Sentir-se triste" ou, mais ainda, "ser triste" é algo de muito mais intrínseco ao
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EMOÇÃO
eu do que o sentimento vital de bem-estar ou de mal-estar. Enfim, os sentimentos espirituais identificamse com o eu no sentido de que não podem constituir estados distintos dele. Na bem-aventurança e no
desespero, aliás, já na serenidade e na paz de espírito, qualquer estado particular do eu é como que
anulado, pois esses sentimentos parecem brotar da própria fonte do ato espiritual e penetrar tudo o que
nesses dados é dado do mundo interno e externo (Ibid., pp. 355 ss.). Scheler considera o sentimento assim
entendido como um ato intencional (v. INTENÇÃO) cujo objeto específico é o valor, e distingue, portanto,
quatro espécies de valores correspondentes aos quatro graus do sentimento (v. VALOR). O importante na
doutrina de Scheler é que o valor constitui o objeto próprio da E., ou pelo menos das funções emotivas, e
é considerado uma realidade específica, irredutível às realidades percebidas ou conhecidas e de natureza
absoluta. Doutrina análoga é exposta por. Nicolai Hartmann, segundo a qual os valores se dão a priori no
sentimento axiológico (Wertgefühí), que é o fenômeno autêntico da moralidade (Etbik, 1926, 3a
ed., 1949,
pp. 118 ss.) (v. SENTIMENTO). Mas seja qual for a apreciação que se faça de tais lucubrações metafísicas
pode-se admitir que a E. consiste na percepção de um valor, ou seja, da forma específica que uma
situação apresenta em relação às necessidades, aos interesses e aos fins do homem, sem lançar mão de
qualquer metafísica, visto que isso exprime bem os resultados das pesquisas psicológicas a respeito.
A importância do sentimento como característica essencial da existência humana no mundo, como parte
da própria substância do homem, é ressaltada por Heidegger. Ele não vê as E. como simples fenômenos
que acompanham os atos de conhecimento e de vontade, mas como modos de ser fundamentais da
existência na medida em que é uma existência no mundo, ou, como ele diz, um Dasein. Analisa a
propósito o fenômeno do medo, que julga constitutivo da existência inautêntica, isto é, da existência
"lançada no mundo" e abandonada às vícissitudes deste. Como tal, o medo não é um fenômeno temporal
parcial, mas um modo de ser essencial e permanente. "Só um ente no qual, em sendo, está em jogo seu
próprio ser pode ter medo. O temer abre esse ente ao risco, ao estar entregue a si mesmo" (Sein und Zeit,
§ 30). Correspondente ao medo, mas no plano
da existência autêntica, que não se entrega ao mundo e às suas vícissitudes, mas procura compreendê-lo
na totalidade, é a outra situação afetiva fundamental, a angústia. Tem-se medo de algo que está dentro do
mundo, que se aproxima ameaçadoramente e que pode ser removido, ao passo que a angústia só pode ser
sentida diante do mundo como tal. Ela não é provocada, como o medo, por um fato particular ou por um
acontecimento ameaçador, mas pelo simples estar no mundo, pela situação originária e fundamental da
existência humana. E, como, justamente devido a essa situação, o homem tem de lidar com fatos ou
acontecimentos que a qualquer momento podem revelar-se ameaçadores, o medo pode ser considerado
"uma angústia caída no mundo, inautêntica e oculta a si mesma". A angústia é, por isso, a situação
emotiva fundamental, a que "abre primariamente o mundo enquanto mundo". Como situação emotiva, a
angústia não é só angústia em face de... mas é também angústia por... E assim como o em face de...
também o por... refere-se ao ser no mundo como tal. Em outros termos, a angústia não é tal em face de
determinado modo de ser ou de determinada possibilidade humana. A ameaça que ela anuncia é
indeterminada e não pode penetrar, ameaçando, nesta ou naquela possibilidade concreta e efetiva. Ao
contrário, é a libertação das possibilidades determinadas e efetivas, porque é compreensão da
possibilidade última e própria que compreende todas as possibilidades, que é a possibilidade do estar
lançado no mundo. Por isso, ao mesmo tempo que a angústia isola o homem como solus ipse, esse
isolamento não é o de um ente ou o de um objeto sem mundo, mas, ao contrário, põe o homem perante
seu mundo e, com isso, põe o homem diante de si mesmo como ser-no-mundo (Ibid., § 40). Heidegger
pode afirmar, com base nessas análises, que "toda compreensão é emotiva", e ver no tom emotivo da
angústia a compreensão última, decisiva, que a existência pode ter de si mesma (Ibid., § 53)-Heidegger
concentrou a atenção na angústia e considerou-a como a única "E. autêntica" do homem, porque é a única
E. que faz o homem compreender sua existência, ou seja, seu estar no mundo. Não negou, porém, as
outras emoções. Está bem claro que, para ele, as outras E. humanas pertencem ao nível da existência
"inautêntica" ou "impessoal", da existência que não visa a compreender-se e possuir-se nessa
compreensão, mas viver quotidianamente no cui-
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EMOÇÃO
dado, ou seja, na preocupação sugerida pelas necessidades próprias e alheias. À utilização das coisas e ao
preocupar-se com o mundo, que são os dois aspectos essenciais do ser-no-mundo, estão obviamente
ligadas todas as E. e os afetos humanos, que, portanto, são rejeitados para o plano inautêntico da
banalidade quotidiana. Embora Heidegger não trate desses afetos ou E. (nem sequer do amor, donde
Sartre ter observado que, para ele, o Dasein, a realidade humana, não tem sexo), não se deve esquecer
que, para Heidegger, a existência inautêntica não é aparência, ilusão ou realidade diminuída ou
empobrecida, mas um modo de ser necessário da própria existência.
Na mesma linha da análise de Heidegger situa-se a de Sartre, que, porém, utiliza mais as análises e as
teorias da psicologia contemporânea. Para Sartre, a E. é "certa maneira de apreender o mundo"; ela é,
portanto, em primeiro lugar, "consciência do mundo", embora se trate de consciência imediata e não
reflexa. "O sujeito que procura a solução de um problema prático está no mundo, toca o mundo a cada
instante, através de todos os seus atos. Se falha em todas as suas tentativas, se se irrita, sua irritação é um
modo como o mundo lhe aparece. E não é preciso que o sujeito, entre a ação que falha e a cólera, realize
um retorno para si mesmo e intercale a consciência reflexa. Pode haver uma passagem contínua da
consciência irreflexa 'mundo-agido' (ação) para a consciência reflexa 'mundo odioso' (cólera). A segunda
é uma transformação da outra" (Esquisse d'une théorie des émotions, 1947, p. 30). Mas o mundo a que a
E. faz referência é um mundo difícil. A dificuldade é uma qualidade objetiva do mundo que se oferece à
percepção; é ela que determina a natureza das emoções. Esta, para Sartre, é uma transformação do
mundo, mais precisamente uma transformação pela magia. "Quando os caminhos traçados se tornam
difíceis demais ou quando não vemos absolutamente o caminho, não podemos mais ficar num mundo tão
urgente e difícil. Todas as vias estão barradas e, no entanto, é preciso agir. Então procuramos mudar o
mundo, viver como se as relações das coisas com as suas propriedades não fossem controladas por
processos deterministas, mas pela magia" (Jbid., p. 33). P. ex., o desmaio diante de um perigo iminente
não é mais que negação do perigo, vontade de anulá-lo. "A urgência do perigo serviu de motivo para uma
intenção aniquilante que ordenou uma conduta mágica. E, de fato, eu aniquilei o perigo da forma como podia. Não se trata, porém,
de brincadeira, mas de crença, de uma coisa séria, como demonstram as expressões orgânicas das
emoções." Na E. a consciência visa combater os perigos ou modificar os objetos, sem distância e sem
instrumentos, através de modificações absolutas e maciças do mundo. Esse aspecto do mundo é
inteiramente coerente, diz Sartre; trata-se do mundo mágico. "Chamaremos de E. a queda brusca da
consciência no mágico. Ou, se preferirem, há E. quando o mundo dos instrumentos se esvai bruscamente
e o mundo mágico lhe toma o lugar. Portanto não se deve ver na E. uma desordem passageira do espírito,
que viria perturbar de fora a vida psíquica. Ao contrário, trata-se do retorno da consciência à atitude
mágica, uma das grandes atitudes que lhe são essenciais, com a aparição do mundo correla-tivo, o mundo
mágico. A*E. não é um acidente, é um modo de existência da consciência, uma das maneiras pelas quais
ela compreende (no sentido heideggeriano dé verstehen) o seu ser no mundo" Ubid., p. 49).
É significativo o fato — resultante das exposições anteriores — de as teorias das E. apresentadas pelos
cientistas não diferirem radicalmente das apresentadas pelos filósofos, mas apresentarem muitas
características substanciais em comum. É também verdade que os filósofos utilizam essas teorias para
extrair ilações ou generalizações de natureza ontológico-metafísica; mas, de certo modo, isso é um direito
deles. A concordância entre as teorias tem grande significado porque demonstra que, no terreno da análise
interpretativa dos modos fundamentais de experiência, é possível que o acordo entre cientista e filósofo
não seja me nor que o existente entre dois cientistas. Outro exemplo desse acordo é a teoria das E.
apresentada por Kurt Goldstein, médico e fisiólogo especialista em lesões cerebrais (cf. DerAuJbau des
Organismus, 1934; trad. fr. com o título La structure de 1'organisme, Paris, 1951). Goldstein acredita que
a adaptação do organismo ao ambiente acontece através de pequenas "reações de catástrofe" que não
podem ser evitadas no embate do organismo com o mundo. Quando essas catástrofes ou choques
ultrapassam determinada medida, passam a ter significado de comportamento anômalo do organismo, de
perigo para a sua capacidade de agir, para a sua existência. Está-se então diante de reações gra-
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EMOÇÃO
ves de catástrofe que, do ponto de vista subjetivo, assumem a forma emotiva de angústia. A angústia
distingue-se do medo pela falta de objeto determinado: ela não tem objeto. No medo, encontramo-nos
diante de um objeto ao qual nos opomos, do qual podemos procurar desembaraçar-nos ou do qual
podemos fugir; temos consciência tanto desse objeto como de nós mesmos e podemos examinar o modo
como devemos comportar diante do objeto, fixar o olhar sobre a causa do medo, que realmente se
encontra no espaço diante de nós. Mas na angústia o doente "vive a impossibilidade de relacionar-se com
o mundo sem saber por quê. É um sentimento de estremecimento que diz respeito à existência do mundo
e à sua própria existência. Não pode tomar consciência do seu eu tanto quanto não pode fazê-lo do objeto,
já que a consciência do eu é apenas o correlato da consciência do objeto... A angústia aparece, portanto,
quando a realização de uma tarefa correspondente à essência do organismo foi impossível. Esse é o perigo
da angústia" {Ibid., trad. fr., pp. 250-51). Em outros termos, a angústia é o sentido de ruptura entre o
organismo e o mundo, ou melhor, a perda da possibilidade de relação entre o organismo e o mundo. Desse
ponto de vista, o que conduz ao medo é "o sentimento da possibilidade de surgimento da angústia".
Assim, pode-se compreender o medo a partir da angústia, e não vice-versa. Quem tem, medo
compreende, por certas indicações, que um objeto é capaz de colocá-lo em situação de angústia. Ora, a
angústia não é só um estado normal. Muitos estados angustiosos de indivíduos normais só não são
reconhecidos como tais porque são relativamente insignificantes para a personalidade global e para a sua
existência; mas às vezes basta um insucesso, insignificante em si mesmo, mas que ocorra numa situação
importante para o indivíduo, para transformá-lo em angústia verdadeira, como acontece, p. ex., com a
angústia dos exames. A capacidade de suportar a angústia varia de um indivíduo para outro: o doente de
lesões cerebrais suporta menos, a criança suporta mais, e o adulto ativo ainda mais. "Nesse último mostrase a coragem verdadeira, a coragem, que é o meio de sair da angústia. Ela é um sim dito ao
estremecimento da existência, aceito como uma necessidade para a realização do ser que nos é próprio.
Implica a capacidade de ordenar uma situação particular num conjunto maior, uma atitude orientada para
o possível ainda não realizado. Além disso supõe a liberdade de decidir-se por esses possíveis. Justamente
por isso, é uma característica do homem; pode-se, pois, compreender que quem sofre uma lesão cerebral,
que é precisamente uma perda da categoria do possível, ou seja, uma perda de liberdade, fique
completamente desarmado diante da situação da angústia; está condenado a essa situação na medida em
que não está protegido contra ela por um empobrecimento enorme do seu mundo, que reduz seu ser
humano às formas mais simples" {Ibid., pp. 260-61). Assim, a descida do paciente ao nível humano mais
baixo é a última defesa do organismo que vive a impossibilidade de relacionar-se com o mundo. Além
disso, a coragem não é a certeza de que os possíveis se realizarão, não é a garantia de que se destinam ao
êxito, mas só o sentido do possível como tal, como possibilidade de êxito ou insucesso, como procura,
esforço, tentativa, trabalho, criação, orientados para as possíveis vias de sucesso.
O exame do conjunto das teorias da E. que se sucederam ao longo da história do pensamento mostra que
elas podem ser divididas em duas grandes classes, segundo o modo de considerar as E., como dotadas de
significado ou como desprovidas de significado.
I
a As teorias que atribuem significados às E. consideram-nas manifestações, indicações ou signos de
situações objetivas em que o homem se encontra, seja por suas relações com as coisas do mundo, seja por
suas relações com os outros homens. Por esse prisma, aparecem como os valores das situações, no que se
refere às possibilidades de vida, conservação, desenvolvimento, realização de interesses e tarefas que elas
oferecem ao homem. Obviamente, o pressuposto desse reconhecimento do significado objetivo das E. é
que nem todas as situações são igualmente favoráveis, que muitas delas apresentam características que
podem ameaçar a existência e as realizações do homem, ou que, em outros termos, na maioria das vezes o
mundo se apresenta sub ratione ardui (como diz S. Tomás), ou é um mundo difícil (como diz Sartre). Mas
um mundo difícil, um mundo onde o que favorece o homem pode apresentar-se sub ratione ardui, não é
uma totalidade racional perfeita, não é caracterizado pela plena correspondência de todos os seus aspectos
com um princípio único e simples que garanta a vida e os interesses da exis-
EMOÇÃO
324
EMOÇÃO
tência humana. Portanto, o reconhecimento do significado das E. está sistematicamente ligado à negação
implícita ou explícita da natureza necessariamente racional do mundo em que o homem vive.
2
a
Por outro lado, tem-se a negação do significado das E. em todas as teorias que as consideram "vãs
opiniões", entre as quais é típica a teoria estóica. Esse ponto de vista implica que o mundo é uma
totalidade perfeita que assegura de modo absoluto a existência do homem e a realização dos seus
interesses legítimos, ou seja, da parte racional e dos interesses racionais do homem. Nesse caso, prazer e
afeição, temor e esperança, etc. são absolutamente isentos de sentido, pois qualquer situação em que o
homem venha a achar-se será exatamente aquilo que deve ser em relação à entidade racional "homem" e
portanto nada haverá nela de que as E. possam servir de advertência ou sinal. A teoria que considera as E.
como "pensamentos confusos" (Spinoza, Leibniz, Wolff, etc.) não se distingue substancialmente da dos
estóicos e tem as mesmas conexões sistemáticas. Um pensamento confuso não é um verdadeiro
pensamento (não seria claro e distinto) e portanto está destinado a desaparecer, assim como uma opinião
falaz ou um erro temporário diante da verdade. O pensamento confuso é o equivalente da "opinião vã"
dos estóicos, e o pressuposto da teoria relativa é o mesmo dos estóicos, ou seja, a racionalidade absoluta e
perfeita do mundo, que, não contendo nenhuma ameaça para o homem, não justifica a percepção dessa
ameaça, nem a satisfação ou a alegria de superá-la, nem a coragem ou as outras manifestações emotivas
que levam a essa superação. O mesmo valor negativo é observado nas teorias que reduzem as E. a
acidentalidades empíricas, a particularidades insignificantes (Hegel e os hegelianos): expressões
equivalente a "vãs opiniões" ou "pensamentos confusos", que partem da mesma noção de mundo
desprovido de ameaças reais para o homem. O defeito dessas teorias não consiste tanto em deixar de
justificar as E., mas em não poder explicar essas "vãs opiniões", esses "pensamentos confusos" ou essas
"acidentalidades insignificantes" a que as E. são reduzidas. E de fato não se compreende como, num
mundo racionaimente perfeito, possam nascer no homem, que é a parte mais racionalmente perfeita dele,
erros, preconceitos ou determinações capazes de perturbar e ameaçar
justamente essa racionalidade perfeita e a im-perturbabilidade necessária que deveria acompanhá-la.
Portanto, não é de surpreender que na indagação contemporânea, bem mais atenta aos dados e aos
elementos de fato da condição humana, as teorias das E. sejam concordes em atribuir-lhes significado
próprio e objetivo. Essas teorias, e especialmente as apresentadas por médicos e psicólogos, também
levam em conta os fenômenos patológicos, o que significa o abandono do preconceito de que só os
chamados fenômenos normais permitem entender a condição humana, e de que subsiste uma separação
precisa e radical entre fenômenos normais e fenômenos patológicos, de tal modo que estes últimos
possam ser circunscritos num domínio à parte e declarados sem interesse para a investigação científica e
filosófica do homem. As teorias científicas e filosóficas contemporâneas partem da convicção de que não
é possível compreender a existência do homem, seja como organismo, seja como eu ou pessoa, sem levar
em conta a experiência emocional. Também concordam quando consideram essa experiência como reação
normal e global do homem às situações em que se encontra, ou seja, como um comportamento ou
conduta. Parece, todavia, haver uma distinção que nem todas fazem explicitamente e que, por isso,
convém evidenciar: a distinção entre conduta emotiva e emoção-controle. Ocorre conduta emotiva
quando a E. constitui a totalidade da reação do homem à situação; é a chamada "reação de fracasso",
"reação mágica" ou "reação de desastre". Por isso, é sempre patológica ou semipatológica porquanto
impede ou diminui a resposta correta do homem à situação, sua adaptação a ela. Mas é lógico que a
conduta emotiva assim entendida não esgota o domínio das emoções. A E. também é parte integrante da
conduta não emotiva, que constitui uma resposta adequada e normal à situação, e que pode ser definida
como "racional". As E. da coragem, do esforço, da fadiga, da esperança ou do temor, da satisfação ou da
insatisfação, etc. condicionam e controlam as formas de conduta mais eficazes, livres e criativas. Foi
justamente por isso que Pierre Janet distinguiu a E.-choque, que define a reação de fracasso, da E.-
sentimento, que controla a reação adequada, e Goldstein viu na coragem, como "sentimento do possível",
o meio de sair da angústia, que é o sentimento da inadequação
EMOTIVO/EMOCIONAL
325
EMPÍRICO
do organismo à sua função vital, à sua relação com o mundo. Nesse outro aspecto ou função, a E. pode
ser considerada uma modalidade de controle do comportamento, um índice ou condição da eficácia do
comportamento ajustado e normal. Certamente a distinção entre conduta emotiva e E.-controle não
eqüivale a uma separação entre esferas diferentes, pois sempre existe a possibilidade de que, a qualquer
momento, uma se transforme na outra: contudo, suas respectivas funções são diferentes e sua
diferenciação é a mesma que existe entre doença e normalidade.
EMOTIVO/EMOCIONAL (in. Emotive, fr. Émotif, ai. Affektif, it. Emotivo). Em geral, o mesmo que
afetivo (v.). Stevenson (Ethics and Language, 1945) chamou de "significado E." a disposição que um
signo lingüístico tem para produzir uma atitude (v.), uma disposição a agir, a desejar, etc, e não uma
crença, um conhecimento em geral. Por isso, especialmente na filosofia contemporânea anglo-americana,
prevaleceu o uso de dar o nome "proposições E." às proposições que não descrevem um estado de fato (v.
DESCRIÇÃO), mas contêm uma prescrição, uma ordem, etc, como p. ex. as proposições morais. Esse uso,
porém, é extremamente impróprio e nos últimos anos foi quase totalmente abandonado.
Na linguagem comum e na filosófica, é freqüente atribuir à palavra E./Emocional um significado
puramente negativo, indicando-se com ela as coisas às quais não se saberia nem poderia atribuir um
motivo suficiente e que, portanto, não parecem suficientemente "razoáveis". Nesse sentido, acaba-se
qualificando de emocionais todas as escolhas (ou deliberações) que não obedeçam ao critério vigente no
campo em que incidem. P. ex., dizemos que tem valor E. ou emocional um objeto que não é útil nem
bonito, mas preferimos conservar; ou que somos "emocionalmente apegados" a certas crenças que,
subentendemos, não são racionalmente sustentáveis. Aqui também o uso desse termo não faz nenhuma
referência a qualquer teoria positiva da emoção.
EMPATIA (in. Empathy, fr. Empathie, ai. Einfühlung; it. Empatiá). União ou Fusão emotiva com outros
seres ou objetos (considerados animados). O termo alemão encontra-se em Herder (Vom Erkennenn
undEmpfinden, Werke, ed. Suphan, VIII, p. 165) e em Novalis, Discípulos em Sais {Werke, ed.
Friedemann, II,
p. 49). Foi retomado por Robert Vischer (Das optische Formgefühl. Ein Beitrag zur Ãsthetik, 1873;
reimpresso em Drei Abhandlungen zum ãsthetischen Formproblem, 1927, pp. 1-44), mas sua difusão se
deve especialmente a Lipps, que o empregou para esclarecer a natureza da experiência estética (Ãsthetik,
2 vols., 1903, 2-ed., 1914). Segundo Lipps, essa experiência, assim como o conhecimento dos outros eus,
ocorreria mediante um ato de imitação e de projeção. A reprodução das manifestações cor-póreas alheias
(devida ao instinto de imitação) reproduziria em nós mesmos as emoções que costumam acompanhá-las,
colocando-nos assim no estado emotivo da pessoa a quem essas manifestações pertencem. É justamente
essa projeção em outro ser de um estado emotivo despertado em nós pela reprodução imitativa da
expressão corpórea dos outros (p. ex., quadro somático do medo ou do ódio, etc.) que seria o modo de
comunicação entre as pessoas. Analogamente, a experiência estética consistiria em projetar no objeto
estético emoções propriamente humanas, ou seja, em dar "às coisas insensatas sentido e paixão", como
dizia Viço.
O conceito de E. foi abandonado por estar em conflito com certo número de fatos, sobretudo com o fato
evidenciado por Scheler de que os fenômenos de compreensão ou de simpatia nada têm a ver com a E. ou
fusão emotiva (cf. SCHELER, Sympathie, I, cap. I). Quanto à função estética atribuída à E., v. ESTÉTICA.
EMPERIA. V. EXPERIÊNCIA.
EMPÍRICO (gr. èu.7teiptKÓÇ; in. Empirical; fr. Empirique, ai. Empirisch; it. Empírico). Esse adjetivo
tem os seguintes significados principais, nem todos redutíveis aos significados do substantivo
correspondente, experiência (v.).
l
s
Designa, em primeiro lugar, a espécie de saber que se adquire através da prática, através da repetição e
da memória. Nesse sentido, corresponde ao significado 1B
de experiência e opõe-se a racional, assim
como a experiência se opõe à arte e à ciência.
2
a E. significa intuitivoou sensíveis, são chamados de E. os elementos sensíveis de que é constituído o
conhecimento intuitivo ou sensível. Esse significado corresponde ao significado 2-, a) de experiência e
seu oposto é intelectual. Nesse sentido Kant chama de E. o material da experiência constituído pelas
sensações, ao passo que chama a priori ou intelectuais as formas ou condições da experiência.
EMPIRIOCRITICISMO
326
EMPERISMO
3
Q
E, é o atributo do conhecimento válido, do conhecimento que pode ser posto à prova ou verificado, e
opõe-se a metafísico, enquanto atributo de uma pretensão cognitiva infundada, não verificável. Nesse
sentido, esse adjetivo corresponde ao significado 2B
, b) da palavra "experiência".
4
a
E. contrapõe-se a experimental quando indica a experiência bruta ou a observação não controlada,
confrontada ao experimento, que é a observação controlada e provocada.
5
a
E. significa factual, e "enunciado E." é um enunciado que diz respeito a estados de fato. Nesse sentido,
esse adjetivo contrapõe-se a analítico, que qualifica os enunciados que exprimem simples relações
conceituais ou lingüísticas.
EMPIRIOCRITICISMO (ai. Empiriokriti-cismus). Foi assim que R. Avenarius chamou sua "filosofia
da experiência pura", que ele concebeu como ciência rigorosa, análoga às ciências naturais positivas,
portanto excludente de qualquer metafísica. A tese fundamental do E. é que a experiência pura precede a
distinção entre físico e psíquico e, portanto, não pode ser interpretada em bases materialistas nem
idealistas. Os elementosáà experiência pura são as sensações, que são acompanhadas pelos caracteres,
qualificações várias que as sensações recebem em suas diversas relações: p. ex., prazer e dor, aparência e
realidade, certo e incerto, conhecido e desconhecido, etc. O que chamamos de "coisa" e de "pensamento"
não passam de diversas formas de posição dos mesmos conjuntos de elementos, no sentido de que a sua
diferença só depende de uma diversidade de "caracteres" e que essa diversidade depende da relação
biológica com o ambiente circundante (Kritik der reinen Erfahrung, 1888-1890, 2 vols.). Algumas dessas
teses, e especialmente a de que todas as coisas ou pensamentos se compõem de um complexo de
sensações que não são entidades físicas nem entidades psíquicas, são aceitas e defendidas por Mach
{Analyse der Empfindungen, 1900).
EMPIRISMO (in. Empiricism; fr. Empiris-me, ai. Empirismus, it. Empirismó). Corrente filosófica para a
qual a experiência é critério ou norma da verdade, considerando-se a palavra "experiência" no significado
2
a
. Em geral, essa corrente caracteriza-se pelo seguinte: I
a
nega-,_ ção do caráter absoluto da verdade ou,
ao me-I nos, da verdade acessível ao homem; 2a
reco-I nhecimento de que toda verdade pode e deve
U 9MÍoe.xíWí -><- y- •—■ s-*--^ ~J
^ ' c~''''"-
ser posta à prova, logo eventualmente modificada, corrigida ou abandonada. Portanto, o E. não se opõe à
razão ou não a nega, a não ser quando a razão pretende estabelecer verdades necessárias, que valham em
absoluto, de tal forma que seria inútil ou contraditório submetê-las a controle. Foi desse modo que Sexto
Empírico caracterizou o E., e, com base nessas características, reconhecia o seu parentesco com o
ceticismo; essas características continuaram sendo fundamentais em todas as doutrinas posteriormente
denominadas empíricas, quaisquer que fossem suas determinações peculiares. Sexto Empírico diz que o
médico empírico, ou melhor, metódico, "nada afirma temeraria-mente acerca dos fatos obscuros, mas,
sem pretender dizer se são compreensíveis ou não, acompanha os fenômenos e destes toma aquele que lhe
parece útil, assim como fazem os céti-cos". E acrescenta: o que a medicina metódica e o ceticismo têm
em íbmum é a falta de dogmas e a indiferença no uso das palavras, sendo comum também a regra de
seguir as indicações da natureza é as fornecidas pelas necessidades do corpo {Pirr. hyp., I, 236-41).
Depois de vários séculos, Leibniz dava o mesmo conceito de E., mas contrapondo nitidamente o
procedimento empírico ao racional: "Os homens agem como os animais na medida em que o
concatenamento de suas percepções só é realizado pela memória, assemelhando-se assim aos médicos
empíricos, que só têm prática e nenhuma teoria. Em três quartos de nossas ações nós somos apenas
empíricos: p. ex., quando prevemos que vai amanhecer, estamos agindo empiricamente, pois estamos
esperando que aconteça o que sempre aconteceu. Só o astrônomo julga esse fenômeno com a razão. Mas é
o conhecimento das verdades necessárias e eternas que nos distingue dos simples animais e nos faz ter
razão e ciência, elevando-nos ao conhecimento de nós mesmos e de Deus" {Monad., §§ 28-29). A razão,
nesse sentido, é infalível. Se como faculdade humana pode enganar-se, como "concatenação das verdades
e das objeções em boa forma, é impossível que a razão nos engane" (Théod., Disc, § 65). É muito
provável que dessas observações de Leibniz nos tenha chegado o conceito de E., de racionalismo e da
oposição entre ambos. O ra cionalismo fv.) defende ajesg da_necessidade da razão como "rorifarenarãn
das verdades", ejiãg.como[faculdade, rio sen-Tido de que ela não pode ser diferelitéTcfqíie
KJ
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EMPBRISMO 327
EMPQUSMO
é e, portanto, não pode sofrer desmentidos e não exige confirmações. A tese do E. é de que essa
necessidade não existe e que, portanto, toda e qualquer "concatenação de verdades" deve poder ser posta
à prova, controlada e eventualmente modificada ou jbandonada^_^-
A essa característica fundamental do E. e com base nela acrescentam-se outras, com as quais ele foi
associado em cada fase de sua história:
I
a Negação de qualquer conhecimento ou princípio inato, que deva ser necessariamente reconhecido como
válido, sem qualquer atesta-ção ou verificação. Essa característica, estabelecida por Locke no primeiro
livro de Ensaio, foi das que mais sobressaíram no séc. XVIII e às vezes serviu para definir o E., embora
não passe de conseqüência derivada dele.
2
a
Negação do "supra-sensível", entendido como qualquer realidade não passível de verificação e controle
de qualquer tipo. Ora, os melhores e mais diretos instrumentos de que o homem dispõe para a verificação
de si mesmo e das realidades em que está mais diretamente interessado são os órgãos dos sentidos; desse
modo, o E. apresenta-se na maioria das vezes como o recurso à evidência sensível enquanto método para
decidir o que deve ser considerado real. Essa característica foi quase sempre usada para definir a natureza
do E.; sendo considerada fundamental. Na verdade, por mais importante que seja, não é fundamental, mas
secundária e derivada de outra, segundo a qual o E. é a exigência de que qualquer verdade só seja aceita
se puder ser devidamente verificada e confirmada.
ò- Ênfase na importância da realidade atual ou imediatamente presente aos órgãos de verificação e
comprovação, ou seja, no fato-, essa ênfase é conseqüência do recurso à evidência sensível. Essa é a
característica que Hegel reconhecia como mérito do E.: o princípio de que "o que é verdade deve estar na
realidade e estar lá para a percepção", e portanto "aquilo que o homem quiser admitir em seu saber deverá
ir ver pessoalmente, confirmar pessoalmente sua presença" (Ene, % 38). Desse ponto de vista, a atitude
empírica consiste em ressaltar a importância dos fatos, dos dados, das condiçõesque tornam possível a
verificação de uma verdade qualquer, pois a verdade só é verdade quando verificada como tal, e o único
meio de verificá-la, se ela se refere a coisas reais, é confrontá-la com os fatos nos quais essas coisas se
apresentam, por assim dizer, em pessoa.
4- Reconhecimento do caráter humano limitado, parcial ou imperfeito dos instrumentos de que o homem
dispõe para verificar e comprovar a verdade, além da aplicação e do uso desses instrumentos em todos os
campos de pesquisa acessíveis ao homem e só neles. Essa é a característica limitativa ou crítica do E., que
é tradicionalmente associado ao reconhecimento da limitação das possibilidades humanas, e, portanto, da
restrição da investigação aos limites impostos por essas possibilidades, ao mesmo tempo em que é
associado à decisão de prosseguir as investigações até onde tais possibilidades o permitam e em qualquer
campo que o permitam. Sob esse aspecto, o E. é substancialmente uma instância cética, que de dúvida
geral transformou-se em dúvida organizada e metódica para experimentar, em todos os campos, o alcance
da verdade que o homem pode obter. O E. alija da filosofia, e de qualquer pesquisa legítima, os problemas
referentes a coisas que não sejam acessíveis aos instrumentos de que o homem dispõe. Hume entendia o
E. nesse sentido. Donde a constante polêmica do E. moderno contra a "metafísica", que é precisamente o
campo desses problemas ou ao menos é assim considerada pelas correntes empíricas. Mas no próprio
domínio das realidades acessíveis ao homem, o E. freqüentemente encontra limites que lhe parecem
intransponíveis, como p. ex. a "substância" de que fala Locke ou a "coisa em si" de que falam os
empiristas do séc. XVIII e o próprio Kant. Essas características são típicas do E. moderno que se inicia
com Locke. Não incluem, como se vê, nenhuma renúncia ao uso de instrumentos racionais ou lógicos, se
adequados às possibilidades humanas. Não incluem sequer a renúncia a qualquer tipo de generalização,
hipótese ou teorização, em qualquer escala ou grau, implicando só a exigência de que qualquer
generalização, hipótese ou teorização possa ser posta à prova e, portanto, confirmada ou refutada. A mais
recente forma de E., qual seja, o E. lógico do Círculo de Viena (v.) e de algumas correntes inglesas e
americanas, ajusta-se às características acima expostas. Com efeito, "a exigência fundamental do E.
lógico é que qualquer enunciado, para ter sentido, deve ser de certo modo verificado, confirmado ou
submetido à prova" (CARNAP, Testability and Meaning, em Phil. of Science, 1953, p. 73), e esse princípio
leva a restringir a investigação apenas ao domínio dos significados lingüísticos
EMPIRISMO
328
EMPIRISMO LÓGICO
que satisfaçam à tradicional exigência empirista de verificação e comprovação e a declarar "desprovidos
de sentido" todos os outros. No que concerne ao pensamento antigo e medieval, não se pode dizer que
apresente formas completas de empirismo. Nele podem ser facilmente encontrados aspectos ou tendências
de E., mas não se observa o conhecimento nem a aceitação da exigência fundamental de que qualquer
verdade seja verificada ou comprovada por um método adequado. Mas encontra-se freqüentemente a
característica 2a
, o sensacionismo, que foi de fato compartilhado por cirenaicos, estóicos e epicuristas.
Entre Platão e Aristóteles, o mais próximo do E. é Platão, apesar do interesse que Aristóteles demonstrou
pelo mundo natural e da extensão de suas pesquisas nesse campo. De fato, o que Aristóteles considerava
como objeto de investigação em qualquer campo é a substância, a razão de ser das coisas, da qual são
dedutíveis, por via silogística, todas as propriedades da coisa, e a substância, embora empiricamente seja
aquilo que se apresenta sempre do mesmo modo, não é suscetível de verificação ou comprovação pela
experiência, mas a ela se chega por meio da dedução dos princípios evidentes comuns a todas as ciências
e dos princípios próprios de cada ciência (v. SUBSTÂNCIA). O método dialético de Platão (v. DIALÉTICA),
no entanto, parece consistir justamente na verificação e na comprovação das determinações atribuídas a
determinada realidade; assim, essas determinações podem ser abandonadas, corrigidas ou modificadas
pelos empregos sucessivos do método. Mas o E. de Platão só pode ser reconhecido pelos modernos, já
que Platão contrapunha o seu método precisamente à experiência e nele evidenciava as características
contrárias: como aparece claramente no trecho de Leis (citado no verbete EXPERIÊNCIA) em que à
experiência do médico de escravos contrapõe o procedimento racional do médico de homens livres {Leis,
IV, 720 c-d). Na Idade Média, a tendência empirista manifesta-se na negação freqüente da realidade do
universal, que sempre implica o recurso à experiência, e no reconhecimento da experiência como
processo que permite verificar e comprovar a realidade atual das coisas; p. ex., como conhecimento
intuitivo. Nesse sentido, a doutrina de Ockham é a principal manifestação do E. medieval. Finalmente, a
antítese estabelecida por Francis Bacon entre a antecipação da natureza, que, sem verificação nem comprovação, salta dos casos particulares para os axiomas generalíssimos, e a interpretação
da natureza, que consiste em ir, "sem saltos e por graus", das coisas particulares aos axiomas (Nov. Org.,
I, 24), representa a certidão de nascimento do E. moderno e de sua oposição a qualquer forma de
racionalismo dogmático.
EMPIRISMO LÓGICO (in. Logical empiri-cism-, fr. Empirisme logique, ai. Logischer Em-pirismus; it.
Empirismo lógico). Com esse nome ou com o nome de positivismo lógico indica-se a orientação
instaurada pelo Círculo de Viena (v.) e depois seguida e desenvolvida por outros pensadores,
especialmente na América do Norte e na Inglaterra. A característica fundamental dessa corrente é a
redução da filosofia à análise da linguagem. Nela, porém, podem ser distinguidas duas tendências
fundamentais, segundo se entenda linguagem como linguagem científica ou linguagem comum. Essas
duas tendências têm em comum um arsenal negativo e polêmico (a negação de qualquer "metafísica") que
elas compartilham com todo o E. moderno e que justificam com a tese de que todos os enunciados
metafísicos são desprovidos de sentido, porque não verificáveis empiricamente. Têm também em comum
as duas teses propostas pela primeira vez por Ludwig Wittgenstein, em seu Tratado lógicofilosófico(1922): I
a
os enunciados factuais, isto é, que se referem a coisas existentes, só têm significado se
forem empiricamente verificáveis; 2- existem enunciados não verificáveis, mas verdadeiros com base nos
próprios termos que os compõem; tais enunciados são tautolo-gias, ou seja, não afirmam nada a respeito
da realidade; a matemática e a lógica são conjuntos de tautologias.
A) A tendência que atribui à filosofia a função de analisar a linguagem científica conta sobretudo com os
nomes de Rudolf Carnap e Hans Reichenbach. As obras deste último pertencem à metodologia da ciência.
Ele estudou os Fundamentos filosóficos da mecânica quântica (1944) e a Teoria da probabilidade (1949)
como fundamento da indução, considerando que a própria probabilidade baseia-se exclusivamente na
freqüência estatística. Por sua vez, Rudolf Carnap deu mais atenção à matemática e à física 04 visão
lógica do mundo, 1928; A sintaxe lógica da linguagem, 1934; Fundamentos da lógica e da matemática,
1939; Introdução à semântica, 1942; Formalização da lógica, 1943; Significado e necessidade, 1947;
EMPIRISMO LÓGICO
329
EM SI
Fundamentos lógicos da probabilidade, 1950; O contínuo dos métodos indutivos, 1952). Para a filosofia
de Carnap, assim como para a de Reichenbach, conflui a corrente matemática da lógica contemporânea,
especialmente o forma-lismo de Hilbert, segundo o qual o trabalho da matemática consiste em fazer
deduções, segundo regras determinadas, a partir de outras proporções assumidas como fundamentais por
convenção e chamadas de axiomas (v.). Carnap estendeu esse princípio a toda a lógica considerando-a um
conjunto de convenções sobre o uso dos signos, bem como de tautologias que se fundam nessas
convenções (Logische Aufbau der Welt, § 107), e dando lugar assim ao con-vencionalismo (v.) típico da
filosofia contemporânea. Sobre as contribuições que essa corrente filosófica tem dado a noções filosóficas
e científicas fundamentais, como conceito, causa, número, probabilidade, assim como à metodologia das
ciências e à lógica, ver os verbetes correspondentes, além do verbete ENCICLOPÉDIA. B) A tendência que
atribui à filosofia a função de analisar a linguagem comum tem início com a segunda obra de
Wittgenstein, Investigações filosóficas, que, antes de ser publicada (1953), circulara pela Inglaterra e
começara a inspirar o trabalho filosófico de um grupo de pensadores. A tese dçssa obra é que toda
linguagem é uma espécie de jogo que segue determinadas regras, e que todos os jogos lingüísticos têm o
mesma valor. Por isso, segundo Wittgenstein, a única regra para a interpretação de um desses jogos é o
uso que dele se faz; e, como a filosofia não tem outra função senão a de analisar a linguagem, cabe-lhe
esclarecer as expressões lingüísticas em seu uso corrente. Essa corrente recebeu grande contribuição de
Alfred Ayer, que já em 1936, no livro Linguagem, verdade e lógica, apresentava ao público inglês as teses
fundamentais do Círculo de Viena, e de Gilbert Ryle, que, em Conceito do espírito (1949), analisou com
esse critério a noção de espírito, mostrando que, para entender e esclarecer as expressões da linguagem
comum em que essa noção aparece, não há necessidade de afirmar a realidade substancial da alma nem de
admitir que a consciência constitui um acesso privilegiado a essa realidade. A importância dessa tendência
consiste no fato de que, por meio de análises da linguagem comum, procura esclarecer as situações mais
comuns e recorrentes em que o homem pode encontrar-se, ainda que só considerado como "animal falante". Sob esse aspecto, o E. lógico é autenticamente uma forma de E. que identifica o mundo da
experiência com o mundo dos significados próprios da linguagem comum. Contudo nem sempre e para
nem todos os seus seguidores, essa tendência apresenta esse caráter: às vezes se perde em discussões
estéreis e enfadonhas sobre a interpretação de expressões lingüísticas retiradas do contexto, logo
desprovidas do significado e do alcance que têm em tal contexto e, pór isso, das autênticas possibilidades
interpretativas que só o contexto fornece. A esse respeito, Bertrand Russell (que é considerado um dos
fundadores da escola) condenou claramente essa tendência verbalista, que torna a pesquisa filosófica
inútil e enfadonha, e ressaltou a exigência de que a filosofia estude não só a linguagem, mas a realidade, e
se funde portanto no saber positivo dado pela ciência (cf. Hilbert Journal, julho de 1956).
EM SI (gr. oròtó; lat. In se, in. In itself fr. En soi; ai. An sich; it. In sé). O que se considera sem referência
a outra coisa, ou seja: l9
inde-pentemente das relações com outros objetos; 2a
independentemente da
relação com o sujeito considerante.
I
a
) Platão e Aristóteles utilizam essa expressão no primeiro sentido. Platão fala do "belo mesmo", da
"semelhança mesma", etc. (expressões que, em geral, foram traduzidas nas línguas modernas como "belo
em si", "semelhança em si", etc), para indicar o belo, a semelhança, etc, sem as relações com as coisas
que deles participam {Fed., 65d, 75c; Parm., 130b, 150e, etc). Aristóteles emprega essa expressão no
mesmo sentido, para indicar uma qualidade ou uma substância, como p, ex. "animal", que se considere
independentemente das relações com sua espécie (cf., p. ex., Met. VII, 14, 1039 b 9). Esse significado
também explica a acepção dada por Hegel a essa expressão, ao usá-la para designar o que é abstrato e
imediato, desprovido de desenvolvimento, reflexão, relação. "Em si", portanto, é o conceito em sua
imediação, da forma como é considerado pela primeira parte da lógica, a Doutrina do Ser {Ene, § 83), no
sentido de não ser para si (v.), de não ser resolvido na consciência. Nesse sentido Hegel diz: "As coisas
são chamadas de ser em si quando se abstrai do ser para outro, o que geralmente significa: quando são
pensadas sem nenhuma determinação, ou como nadas" (WissenschaftderLogik, I, I, seç. I, cap. II, B, a;
trad. it., p. 124).
ENCARNAÇAO
330
ENCICLOPÉDIA
Com referência a esse significado, Hegel utilizou a expressão para designar o que está em potência, que
ainda não se desenvolveu e que só por isso pode ser considerado independentemente das relações com as
outras coisas. O contrário de em si, neste sentido, é para si, que é a atualidade ou a efetividade de uma
coisa, o enriquecer-se da coisa em seu desenvolvimento, graças às suas relações com as outras (cf.
Geschichte der Philosophie, I, Intr. A, 2).
2
S
) Na idade moderna, a partir de Descartes, essa expressão passou a ter com mais freqüência o
significado de "independentemente da relação com o sujeito cognoscente", sobretudo na expressão coisa
em si (v).
De modo análogo, Sartre entendeu por "ser em si"o ser objetivo, externo e independente da consciência,
chamando a consciência de ser para si (Vêtre et le néant, pp. 30, 115 ss.). Em sentido mais restrito, N.
Hartmann entendeu o ser em si dos valores como sua "independência da opinião do sujeito" {Ethik, 2- ed.,
1935, p. 149). Esse significado é bastante freqüente no uso filosófico: Bolzano falara de uma "proposição
em si", entendendo "em si" nessas expressões como o significado lógico-objetivo puro da proposição, da
representação ou da verdade, independentemente de serem pensadas ou expressas (Wissenschaftslehre,
1837, § 19, 25, 48).
ENCARNAÇAO (lat. Incarnatio; in. Incar-nation-, fr. Incarnation; ai. Menschuerdung; it.
Incamazioné). A unidade da natureza divina e da natureza humana na pessoa de Cristo. Esse é um dos
dois dogmas fundamentais do cristianismo, sendo o outro o da Trindade. Depois das discussões patrísticas
que, no séc. V, levaram a algumas interpretações que a Igreja condenou como heréticas, na Escolástica
esse dogma foi uma das pedras de toque da capacidade das filosofias de servir à interpretação e à defesa
das crenças religiosas. Desse ponto de vista, não há dúvida de que a maior capacidade nesse sentido foi
do tomismo, que deu a mais simples e elegante interpretação do dogma. S. Tomás toma como motivo
justamente as duas heresias simetricamente opostas do séc. V. A interpretação de Eutíquio, que insistia na
unidade da pessoa de Cristo, também reduzia as duas naturezas a uma só, mais precisamente à divina,
considerando simplesmente aparente a natureza humana revestida por Cristo. A interpretação de Nestório,
ao contrário, que insistia na dualidade das naturezas, também admitia
em Cristo a coexistência de duas pessoas, sendo a pessoa humana instrumento ou revestimento da divina.
A distinção real entre essência e existência nas criaturas e a sua unidade em Deus oferecem a S. Tomás a
chave da interpretação. Em Deus, a essência ou natureza divina é idêntica ao ser; logo, Cristo, que tem
natureza divina, subsiste como Deus, como pessoa divina, e é uma só pessoa, a divina. Por outro lado, a
possibilidade de separar a natureza humana da existência faz que Cristo possa assumir a natureza humana
(que é alma racional e corpo), sem ser pessoa humana (Contra Gent., IV, 49; S. Th., III. 2. II, a. 6). Essa
interpretação tomista constitui a doutrina oficial da Igreja católica.
ENCICLOPÉDIA (in. Encyclopedia; fr. En-cyclopédie, ai. Enzyklopüdie, it. Enciclopédia). Esse termo,
que significa propriamente ciclo educativo, educação completa em suas fases, portanto nas disciplinas que
lhe servem de fundamento, agora é usado fiara designar o sistema das ciências, o conjunto total das
ciências em suas relações imutáveis de coordenação e subordinação (na sua hierarquia), tais como podem
ser reconhecidas ou estabelecidas pela metafísica (v.) ou por outra ciência predominante. Como
investigação racional autônoma, a filosofia foi a matriz da qual as disciplinas isoladas foram-se separando
pouco a pouco, até alcançar autonomia; como metafísica, ou "ciência primeira", muitas vezes se reservou
o direito de julgar essas disciplinas em termos de alcance ou importância e de prescrever-lhes limites e
condições. Portanto, a tendência a ser ou a valer como E., ou pelo menos a estabelecer ou reconhecer uma
E., foi um dos aspectos fundamentais do pensamento filosófico. O primeiro projeto de E. pode ser visto
nos quatro graus do conhecimento, estabelecidos por Platão no VII livro de A República. Aos dois graus
da opinião (conjectura e crença) pertencem as artes e os ofícios que lidam com as coisas sensíveis e com
as suas imagens, portanto também a poesia e a arte imitativa. Ao primeiro dos dois graus racionais, a
razão discursiva ou dianôia, pertencem a geometria, a aritmética, a música e a astronomia, ou seja, as
disciplinas que partem de hipóteses e utilizam imagens, ainda que tenham por objeto conceitos puros. Ao
quarto e último grau pertence tão-somente a dialética, que é a ciência do filósofo (Rep., VI 510).
Aristóteles baseava sua E. na distinção entre necessário e possível. O necessário (o que não pode ser
diferente do que é) é objeto das
ENCICLOPÉDIA
331
ENCICLOPÉDIA
ciências teóricas: filosofia, física e matemática. O possível é objeto das ciências práticas (ética e política)
e das disciplinas poéticas (ou produtivas), as artes {Et. nic, VI, 3-4). Enquanto es-tóicos e epicuristas
concordaram em reduzir a sua E. a três ciências fundamentais, lógica, física e ética, a Idade Média
permaneceu substancialmente fiel ao sistema enciclopédico de Aristóteles, que culminou na teologia, a
que todas as outras ciências se subordinavam (S. Tomás, S. Th., I, q. 1, a. 5). No séc. XVII, Francis Bacon
apresentou o projeto de uma E. fundada na tripartição entre ciências da memória, ciências da fantasia e
ciências da razão {De augm. scient., II, 1). Essa distinção foi aceita por D'Alembert e serviu de base para
a Ency-clopédie. Diz D'Alembert: "A memória, a razão e a imaginação são as três maneiras diferentes
pelas quais nossa alma atua sobre os objetos dos seus pensamentos... Essas três faculdades constituem as
três divisões gerais do nosso sistema e os três objetos gerais dos conhecimentos humanos: a história,
relacionada com a memória, a filosofia, que é o fruto da razão, as belas-artes, que nascem da imaginação"
{Dis-cours préliminaire de VEncyclopédie, em CEuvres, ed. Condorcet, p. 112). Todavia, a E. francesa,
cujo espírito iluminista se inspirava predominantemente no empirismo, não insistiu no caráter total e
definitivo do sistema das ciências, mas entendeu a E. sobretudo como a tentativa de abranger, numa
síntese rápida e completa, os resultados do saber positivo. E foi essa justamente a principal função da E. à
qual se deveu a enorme difusão, no séc. XVIII, por toda a Europa, dos resultados das ciências e da crítica
racionalista da tradição. Esse mesmo conceito foi assumido no século seguinte pelo positivismo como
fundamento para a definição da filosofia; com Comte, porém, foi reduzido a sistema, com base naquilo
que ele julgava ser sua descoberta fundamental, a lei dos três estados. Comte atribuiu graus às ciências
segundo sua ordem cronológica de entrada na fase positiva, mostrando que essa ordem é também a que
vai do grau máximo ao grau mínimo de simplicidade e generalidade. Começa dividindo a física em
inorgânica e orgânica e observa que a primeira estuda fenômenos muito mais simples, pois, enquanto os
fenômenos orgânicos dependem dos inorgânicos, estes últimos não dependem dos primeiros. A física
inorgânica, por sua vez, será primeiro física celeste (ou astronomia) e depois física terrestre, ou seja,
física
propriamente dita, e química. Divisão análoga será feita para a física orgânica: haverá uma física orgânica
ou fisiológica, que concerne ao indivíduo, e uma física social (ou sociologia), que diz respeito à espécie.
A E. das ciências será, portanto, constituída por cinco disciplinas fundamentais: astronomia, física,
química, biologia e sociologia. De tal E. não fazem parte nem a matemática nem a psicologia: a
matemática porque é a base de todas as ciências e portanto não pode ocupar um lugar à parte; a
psicologia porque não é uma ciência, já que se funda numa pretensa "observação interior", que é
impossível, pois pressuporia o indivíduo dividido em duas partes, uma observadora, a outra observada
{Cours dePhil. Positive, I, pp. 75 ss.). Essa E. de Comte foi amplamente aceita pela cultura moderna e
contemporânea mesmo fora do positivismo, porque levava em conta a situação e as funções reais das
ciências, ainda que Comte às vezes tenha pretendido impor restrições ou limitações insustentáveis a tais
ciências. A ela foi contraposta a E. das ciências de Hegel, que é a maior expressão do romantismo
idealista. Para Hegel só existem três disciplinas fundamentais, que são a lógica, a filosofia da natureza e
a filosofia do espírito. As três ciências têm por objeto a Idéia, oi*seja, a Autoconsciência infinita: a
primeira considera a Idéia em si e por si, antes de seu desenvolvimento no mundo; a segunda considera a
Idéia no seu "ser outro", no seu exteriorizar-se e alienar-se no mundo da natureza; a terceira, enfim,
considera a Idéia que "retorna a si mesma", que toma consciência de si como princípio criador de tudo
{Ene, § 18). Mas nessa E. não havia lugar para as ciências positivas, que se vinham constituindo
autonomamente. Para Hegel, essas ciências não tinham valor de verdade, porque fundadas em elementos
que ele chama de "acidentais", não pertencentes à substância racional do mundo, que é a Idéia {Ibid., §
16). Hegel utiliza-as somente para extrair um material que depois elabora a seu modo no esquema
enciclopédico descrito, mas sem nenhuma consideração pelos métodos de pesquisa e verificação de que
cada disciplina se serviu para elaborá-lo.
Na segunda metade do séc. XIX e nos primeiros anos do séc. XX, a E. positivista de Comte e a E.
idealista de Hegel constituíram os dois modelos fundamentais a que os filósofos fizeram referência. Devese observar, porém,
ENCICLOPÉDIA
332
ENERGIA
que enquanto a E. de Comte procura abranger as ciências e as disciplinas efetivas, que haviam se
constituído com autonomia de métodos, complexidade e riqueza de resultados, a E. de Hegel alija esse
conjunto de ciências e o rebaixa a simples fase preparatória ou temporária, substituindo-o por um
conjunto de especulações metafísicas que só têm sentido a partir de determinados pressupostos. A esse
segundo tipo de E. pertence também a E. enunciada por Croce, fundamentada na distinção de duas formas
de espírito, a teórica e a prática, e na subdivisão de cada uma delas em dois graus, conhecimento do
individual e conhecimento do universal, volição do individual e volição do universal. Croce distingue a
estética, que tem por objeto o conhecimento individual, ou seja, a arte; a lógica, que tem por objeto o
conhecimento do universal, ou seja, a filosofia; a ciência econômica, que tem por objeto a volição do
individual e por isso compreende o estudo de tudo o que é útil, logo do direito, da economia, etc; e a
ética, que tem por objeto a volição do universal (Fil. daprãtica, 1909, II, cap. 1). Essa E. também alija as
ciências da natureza e as reduz a simples instrumentos práticos que, mediante "pseudoconceitos",
fornecem meios de economizar energia para a ação (Lógica, II, cap. 6). A E. de Hegel e a de Croce foram
simplesmente iniciativas filosóficas unilaterais, que os filósofos de certas tendências aproveitaram. Não
foram verdadeiras E. no sentido de exercer alguma ação de coordenação efetiva entre as pesquisas de
cada ciência e da integração de seus resultados em um sistema de conhecimento. É justamente essa a
tendência de alguns filósofos e cientistas contemporâneos de orientação neopositivista e neo-empirista
que, para isso, trabalharam e trabalham numa E. internacional da ciência unificada, cujos primeiros
volumes começaram a ser publicados em 1938; cada um deles era dedicado aos fundamentos de
determinada disciplina. É preciso, porém, observar que essa tentativa não demonstra acordo suficiente no
modo de entender a unidade da ciência: alguns, como p. ex. Neurath, entendem-na como combinação dos
resultados das várias ciências e tentam axiomatizá-los num sistema único; outros, como unificação no
campo da lógica ou no campo da semiótica (Morris) ou do ponto de vista do próprio método da ciência
(Dewey) (cf. Encyclopedia of Unified Science, I, 1, 1938). Na verdade, hoje parece utópico querer
reencontrar e expor de
modo definitivo, como sempre fez a metafísica, a unidade das ciências, visto que as próprias ciências não
toleram durante muito tempo uma disciplina determinada, e cada uma se reserva ampla liberdade de
pesquisa, organização e linguagem. Portanto, hoje parece claro que a exigência enciclopédica da filosofia
é mais exeqüível na forma livre e descompromissada de reconhecimento da possibilidade de múltiplas
relações entre as ciências e de pesquisa e determinação dessas relações em campo do que na forma
tradicional de "unificação" das ciências. E esse reconhecimento, essa pesquisa e essa determinação ainda
constituem tarefas fundamentais da filosofia (v. METAFÍSICA; CIÊNCIAS, CLASSIFICAÇÃO DAS).
ENERGIA (in. Energy, fr. Energie, ai. Ener-gie, it. Energia). 1. Qualquer capacidade ou força capaz de
produzir um efeito ou de realizar um trabalho. Nesse sentido E. é sinônimo de atividade (v.) e de força
(v.); fala-se de "E. espiritual", "E. material", "E. nervosa", "E. física", etc.
2. Como conceito físico, entende-se por E. a capacidade de realizar um trabalho; por trabalho, entende-se
o deslocamento do ponto de aplicação de uma força. Esses conceitos só foram claramente formulados na
primeira metade do séc. XIX. No entanto, a distinção entre E. potencial (ou de posição) e E. cinética (ou
de movimento) deve-se a Leibniz, que em 1686 a exprimia numa dissertação intitulada Demons-tratio
erroris memorabilis Cartesii, como a distinção entre força viva e força morta. Leibniz considerava a
força viva igual ao produto do "corpo" (massa) pelo quadrado da velocidade: fórmula que depois foi
corrigida, passando-se a considerar a força viva igual ao semiproduto da massa pelo quadrado da
velocidade.
A segunda guinada conceituai importante na evolução da noção de E. ocorre em meados do séc. XIX,
com a descoberta do princípio de conservação da E. (ou primeiro princípio da termodinâmica) por Mayer
(1842) e Joule (1843), que estabelece a equivalência entre E. mecânica e calor. Essa equivalência
demonstrava que o calor é uma forma de E., por conseguinte, o conceito de E. extrapolava o domínio
mecânico. A generalização foi feita por Helmholtz na sua famosa dissertação Sobre a conservação da
força (1847). A ele se deve o uso do termo E., que antes se confundia com força; considerou também
como E. qualquer entidade que possa ser convertida em outra
ENERGISMO
333
ENSOMATOSE
forma e caracterizou a E. como indestrutível, pois comporta-se como qualquer outra substância: não pode
ser criada nem destruída. Deste ponto de vista, os cientistas começaram a falar de numerosas formas de
E.: magnética, elétrica, química, acústica, etc, e a E. passou a ser a segunda substância da física, já que a
primeira é a matéria. Todavia, tanto em ciência quanto em filosofia tentou-se reduzir também a matéria à
E. constituindo-se o energismo (v.).
A terceira guinada conceituai importante dessa noção ocorreu com a teoria da relatividade e com a
mecânica quântica. Com a redução da matéria (v.) à densidade de campo (v'.)i, o dualismo entre as duas
substâncias tradicionais da física clássica perdeu sentido. Por um lado, portanto, parece que a ciência
acolheu o princípio do energismo, pois a matéria deixou de ser uma substância em si mesma, mas, por
outro lado, pode-se dizer que o próprio energismo foi descartado, pois o conceito fundamental já não é de
E., mas de campo (v.), e qualquer distinção qualitativa entre matéria e E. ou matéria e campo perdeu
importância (cf. A. EINSTEIN-L. INFELD, The Evolution ofPhysics, III; trad. it., pp. 251 ss.).
ENERGISMO (in. Energetism; fr. Énergétis-me, ai. Energetik, it. Energetismó). Monismo da energia, ou
seja, redução de toda substância a energia. O E. foi defendido pelo próprio Helmholtz, que o apresentava
como um ideal da ciência (v. ENERGIA), mas difundiu-se sobretudo na Inglaterra, graças a William
Rankine (1820-72). Entre o fim do século passado e o início do séc. XX, foi defendido pelo fundador da
químico-física, Wilhelm Ostwald (1853-1932), cujas obras principais são: A energia e suas
transformações, 1888; A crise do materialismo científico, 1895; As energias, 1908; O imperativo
energético, 1912. Ostwald considerava como especificação do conceito de energia o próprio conceito de
vida; para ele, no campo das ciências formais, o conceito de energia correspondia ao conceito de função
{Grundriss der Naturphilosophie, 1908) (v. CIÊNCIAS, CLASSIFICAÇÃO DAS).
ENGAJAMENTO. V. COMPROMISSO.
ENGENHO (lat. Ingenium; in. Ingenuity, Wit; fr. Génie, ai. Witz; it. Ingegnó). Retomando um dos
significados tradicionais desse termo, Giambattista Viço chamou de E. a faculdade inventiva da mente
humana. Contrapôs, portanto, o E. à razão cartesiana; analogamente, contrapôs à arte cartesiana da
crítica, fundada
na razão, a tópica como arte que disciplina e dirige o procedimento inventivo do E. O E. tem tanta força
produtiva quanto a razão, porém menor capacidade demonstrativa {De nostri temporis studiorum ratione,
§ 5). Kant, por sua vez, entendia por E. o talento, ou seja, "a superioridade do poder cognitivo proveniente
da disposição natural do indivíduo, e não do ensino", e o distinguia em E. comparativo e E. logicizante
(Antr., I, § 54).
ENIGMAS (in. Riddles-, fr. Enigme, ai. Rãtsel; it. Enigmi) Na literatura filosófica dos últimos decênios
do séc. XIX deu-se o nome de E. do mundo aos problemas que, não tendo sido resolvidos pela ciência,
eram considerados inso-lúveis. Em 1880, o fisiologista alemão E. Du Bois-Reymond enumerava Sete E.
do mundo-. 1
Q
a origem da matéria e da força; 2Q
a origem do movimento; 3Q
o surgimento da vida; 4Q
a
ordem finalista da natureza; 5Q
o surgimento da sensibilidade e da consciência; 6e
a origem do
pensamento racional e da linguagem; 7a
a liberdade da vontade. Diante desses E., Du Bois-Reymond
achava que se devesse dizer não só ignoramus [ignoramos], mas também um igno-rabimus
[ignoraremos]. Alguns anos depois, o biólogo Ernst Haeckel, numa obra de enorme difusão, intitulada
OsE. do mundo (1899), proclamava que aqueles E. tinham sido resolvidos pelo materialismo
evolucionista (v. MATERIALISMO). Embora essa palavra até hoje seja empregada com fins retóricos,
tornou-se imprópria para exprimir a atitude do homem moderno em face das limitações ou da imperfeição
do seu conhecimento do mundo. E. significa propriamente "adivinhação", e a expressão E. do mundo
parece indicar que o mundo, como uma gigantesco jogo de adivinha, só tem uma solução que, uma vez
encontrada, eliminaria todos os problemas. O que, por certo, é uma visão bastante pueril, pois o mundo
não tem E., nem no plural nem no singular, mas só problemas para os quais existem soluções mais ou
menos adequadas, nunca definitivas e sempre sujeitas a revisões.
ENOEMÂTICA (in. Ennoematic). Termo empregado por Hamilton para indicar a doutrina do conceito
{Lectures on Logic, I, 1886, p. 130).
ENSOMATOSE (gr. èvoconátcocTiç). Doutrina segundo a qual a alma é infundida no corpo diretamente
por Deus; Orígenes a contrapõe à metensomatose ou metempsicose (v.) {In Joan, VI, 14 [86]).
ENTE
334
ENTROPIA
ENTE (in. Being; fr. Être, ai. Selentes-, it. Ente). O que é, em qualquer dos significados existenciais de
ser. Às vezes, mas raramente, essa palavra é usada para designar somente Deus: é o que faz Gioberti, em
sua fórmula ideal: "o E. cria o existente" (Jntroduzione alio studio delia fil., II, p. 183): onde "E."
eqüivale a Deus, como ser necessário, e "existente" eqüivale às coisas criadas. Habitualmente essa palavra
é usada em sentido mais geral. Diz Hei-degger: "Chamamos de E. muitas coisas, em sentidos diferentes.
E. é tudo aquilo de que falamos, aquilo a que, de um modo ou de outro, nos referimos; E. é também o que
e como nós mesmos somos" {Sein und Zeit, § 2). Mas nesse sentido generalíssimo prefere-se hoje a
palavra entidade (v.).
ENTELÉQUIA (gr. èvxeXèxeia, lat. Ente-lechia; in Entelechy fr. Entéléchie, ai. Enteleckie, it.
Entelechid). Termo criado por Aristóteles para indicar o ato final ou perfeito, isto é, a realização acabada
da potência {Met., IX, 8, 1050 a 23). Nesse sentido Aristóteles definiu a alma como "a E. de um corpo
orgânico" {De an., II, 1, 412 a 27). O termo que Ermolau Bárbaro traduzia para o latim como
perfectihabia (LEIBNIZ, Théod., I, § 87) foi retomado por Leibniz para indicar as substâncias simples ou
manadas criadas, pois elas têm certa perfeição ou auto-suficiência que as torna origens das suas ações
internas e, por assim dizer, "autômatos incor-póreos" (Monad., § 18). Na filosofia contemporânea, esse
termo foi retomado pelo biólogo Hans Driesch, que nele centrou o seu vitalismo (v.). Para Hans Driesch, a
E. é o princípio da vida nos seres animados: fator espiritual, irredutível a agentes físico-químicos {A alma
como fator elementar da natureza, 1903; O vitalismo, 1906).
ENTIDADE (lat. Entitas; in. Entity, fr. Entité, ai. Entitát; it. Entita). Objeto existente no sentido I
o
. da
palavra existência, provido de um modo de ser especificamente definível. Esse termo foi introduzido por
Duns Scot, que o utilizou para distinguir o modo de ser do indivíduo, que ele chama de entitas positiva (o
mesmo que haecceitas), do modo de ser da natureza ou da espécie, que ele chama de entitas
quidditativaiOp. Ox., II, d. 3, q. 6). E. positiva seria, p. ex., Sócrates; E. quiditativa, a espécie homem.
Essa terminologia foi incorporada pela escola scotista, sendo comumente empregada nas discussões sobre
individuação, no séc. XIV. Leibniz aludiu a essas discussões numa de suas
primeiras obras, De principio individui (1663), na qual usa o termo com o mesmo objetivo.
Na lógica contemporânea esse termo é empregado para indicar todo objeto cujo status existencial possa
ser definido, ou então, ct>mo também se diz, todo objeto a respeito do qual o uso lingüístico comporte
um "compromisso ontológico". Carnap defendeu o uso desse termo, insistindo ao mesmo tempo no fato
de que as E. de que se fala na lógica não são redutí-veis a dados sensíveis, portanto não são entidades
reais {Meaning and Necessity, A. 4).
ENTTMEMA (gr. èvOúurina; lat. Enthymema-, in. Enthymeme, fr. Entbymème, ai. Enthymem; it.
Entimemd). Segundo Aristóteles, silogismo fundado em premissas prováveis ou em signos {An.pr., 70 a
10); é o silogismo da retórica. O E. fundado em premissas prováveis nunca conclui necessariamente, pois
as premissas prováveis valem na maioria das vezes, mas nem sempre. O E. fundado em signos às vezes
conclui necessariamente. Assim, quando se diz que alguém está doente porque tem febre, ou que uma
mulher deu à luz porque tem leite, cria-se um silogismo do qual simplesmente se omite a premissa maior,
ou seja, que quem tem febre está doente, ou que toda mulher que deu à luz tem leite {Ret., I, 1357 a, pp.
33 ss.). Quando o signo é uma prova segura, vale como termo médio de um silogismo demonstrativo do
qual se omitiu uma premissa considerada já conhecida {An.pr., 70 b 1 ss.). Este segundo significado de E.
foi acolhido pela lógica medieval, que o considerou um "silogismo imperfeito", em que se deixa de expor
uma premissa, como quando se diz "Todo animal corre, logo todo homem corre, omitindo a premisssa
'todo homem é animal'" (PEDRO HISPANO, Summ. log., 5.04; ABELARDO, Dialectica, edição de Rijk, p.
463).
ENTROPIA (in. Entropy fr. Entropie; ai. Entropie, it. Entropia). A noção de E. está vinculada ao
segundo princípio da termodinâmica, formulada por Sadi Carnot em 1824 e enunciada em termos
matemáticos por Clau-sius (1850). Esse princípio afirma que o calor só passa do corpo mais quente para o
corpo mais frio, e que em toda transformação de energia num sistema fechado ocorre a degradação da
energia, ou seja, a perda da energia total disponível no sistema. Chama-se degradação a passagem de uma
forma de energia para outra forma que não possa ser acompanhada pela transformação inversa completa.
Assim, é sem-
ENTROPIA 335
ENTUSIASMO
pre possível a transformação completa de energia mecânica em calor, mas a transformação inversa nunca
é completa porque só uma parte do calor pode ser transformada em energia mecânica. O calor, portanto, é
considerado uma forma inferior ou "degradada" de energia; por isso, o segundo princípio da
termodinâmica é chamado de "princípio de degradação da energia". E. é a função matemática que
exprime a degradação da energia que infalivelmente ocorre em toda transformação. O princípio da E.
chamou sempre a atenção dos filósofos, porque estabeleceu, em nível científico, a irreversibilidade dos
fenômenos naturais. De fato, para a mecânica clássica ou newtoniana, todos os fenômenos são
reversíveis.- para eles, o tempo pode transcorrer indiferentemente em uma ou outra direção, do passado
para o futuro ou do futuro para o passado. O t das equações que exprimem o comportamento dos
fenômenos mecânicos é uma variável contínua, que não tem sentido determinado. O princípio da E., ao
contrário, estabelece um sentido para os fenômenos, qual seja, a sua irreversibilidade no tempo. Cientistas
e filósofos do fim do séc. XIX algumas vezes se dedicaram à previsão da morte do universo pela
degradação total da energia, ou seja, pelo alcance do máximo de E., ou a excogitar possíveis meios de
salvar o universo dessa morte (cf., p. ex., S. ARRHENIUS, Vévolution des mondes; trad. fr., Seyrig, 1910).
Outros deram uso mais filosófico à noção, entrevendo nela a estrutura fundamental do tempo, ou seja, a
sua irreversibilidade. Reichen-bach utilizou a E. para a determinação da direção do tempo. "A direção do
tempo expressa-se para nós nas direções dos processos dados pelos sistemas parciais, que são numerosos
no nosso ambiente. Todos esses processos vão na mesma direção, a direção da E. crescente. Esse fato está
estreitamente ligado ao crescimento geral da E. do universo, e é através da reiteração desse fato nos
sistemas parciais que o desenvolvimento da E. no universo nos indica a direção do tempo" (TbeDirection
q/Time, 1956, p. 131). Na verdade, a ciência hoje não parece autorizar a transposição dos sistemas
fechados ou parciais, nos quais vale a E., para o sistemaf geral do universo. Assim, não é fácil dizer qual o
valor das especulações filosóficas em torno dessa noção. Na teoria da informação (v.), a partir das obras
de Shannon e Wiener, utilizou-se o conceito de E. para medir a falta de informação sobre os detalhes da
natureza de um sistema. Como a E. é constituída pela equivalência entre as possibilidades de
desenvolvimento de um sistema, a informação, ao eliminar algumas dessas possibilidades, é uma E.
negativa. Estabelece-se, assim, a equivalência entre E. e falta de informação e entre informação e E.
negativa. Mas como, na transmissão de qualquer informação, tem-se uma perda de informação, admite-se
que, assim como nos sistemas físicos, a E. tende a crescer também no campo da informação; por isso, a
medida da informação pode ser definida pelo crescimento correspondente da E. negativa.
ENTUSIASMO (gr. ev6oucn.acu.oc; in. En-thusiasm; fr. Enthousiasme-, ai. Enthusiasmus; it.
Entusiasmo). Em sentido próprio a inspiração divina, donde o estado de exaltação que ela produz, com a
certeza de possuir a verdade e o bem. A primeira crítica do E. do ponto de vista da filosofia é de Platão,
em Ion-. este pretende demonstrar que a arte do rapsodo, assim como qualquer outra atividade que
dependa exclusivamente de inspiração divina, não é realmente uma arte, porque não dá nada a conhecer
{Ion, 538; cf. Men., 99 c). Com o predomínio da concepção religiosa em filosofia, ou seja, com o
Neoplatonismo, o juízo sobre o E. muda: para Plotino, é o meio de alcançar o estado final da visão
perfeita, o êxtase iEnn., VI, 9, 11, 13). Os neoplatônicos do Renascimento (Ficino e Pico) retomaram o
conceito de E. no mesmo sentido. É um dos conceitos centrais da filosofia de G. Bruno, que concebeu a
filosofia como religião da natureza, cujo instrumento principal é o E., que ele designava com vários
nomes ("furor heróico", raptus mentis, contractio mentis, etc). A Bruno deve-se também a distinção entre
E. intelectual ou natural e E. religioso: este é próprio daqueles que "por se terem feito habitação de deuses
ou espíritos divinos, dizem e operam coisas maravilhosas sem que destas eles ou outros entendam a
razão". Graças ao E. intelectual, ao contrário, ocorre que alguns homens "com terem inato espírito lúcido
e intelectual, por um estímulo interno e fervor natural, suscitado pelo amor à divindade, à justiça, à
verdade, à glória, pelo fogo do desejo e pelo sopro da intenção, aguçam os sentidos, e no enxofre da
faculdade cogitativa acendem o lume racional com que vêem mais que de ordinário; estes, ao fim, não
falam nem operam como vasos e instrumentos, mas como artífices principais e eficientes" (Degli
eroicifurori, III). Mas esse E. natu-
ENTUSIASMO
336
ENUMERAÇÃO
ral e intelectual, como se vê, tem o mesmo caráter do outro: dá aos sentidos e ao pensamento um poder
sobre-humano, elimina os limites em que o homem se acha "ordinariamente" encerrado e é assumido
como justificação da infalibilidade ou da impecabilidade do homem. Quando, a partir da segunda metade
do séc. XVII, com o Empirismo e o Iluminismo, esses limites são claramente reconhecidos, o E. também
é reconhecido pelo que é: uma justificação do dogmatismo e da intolerância; é o que faz Locke, em
famoso capítulo de Ensaio (IV, 19). O E., que não se funda nem na razão nem na revelação divina, não é
senão uma presunção de infalibilidade: a luz a que os entusiastas fazem menção é "um ignisfatuus que os
fará girar continuamente dentro desse círculo: é uma revelação, porque eles acreditam nisso firmemente; e
acreditam firmemente porque é uma revelação" (Ibid., IV, 19, 10). Segundo Locke, esse círculo é tudo o
que o E. consegue encontrar como apoio. Leibniz concordava com Locke aduzindo certo número de
exemplos de E. fanático e observava: "As dissensões dessas pessoas entre si deveriam convencê-las de
que seu pretenso testemunho interno não é absolutamente divino e que precisa de outros sinais para
justificar-se" (Nouv. ess., IV, 29, § 16). Mais tarde, Leibniz aderia às idéias expressas por Shaftesbury
{Recuei! de diverses pièces surlaphilosophie, Ia religion naturelle, Vhistoire, les mathématiques, etc, de
Leibniz, Clarke, Newton, etc, Lausanne, 31
. ed., 1759, II, pp. 311-34).
A Carta sobre o E. (1708) de Shaftesbury estabelece pela primeira vez a oposição entre E. e ironia, que
foi um dos temas preferidos do iluminismo setecentista e é um dos temas do iluminismo de todos os
tempos. Shaftesbury insistiu na capacidade liberadora do riso: "Estou seguro de que só existe um caminho
para salvaguardar os homens e preservar o tino do mundo: a liberdade espiritual. Ora, o espírito nunca
será livre se não houver ironia livre, porque contra as grandes extravagâncias e os humores bilio-sos outro
remédio não há além desse" 04 Letter concerningEnthusiasm, 2; trad. it, Garin, p. 44). A razão e o que
nela se apoia nada têm a temer do ridículo, mas o ridículo é uma arma poderosa contra a aparência que
não é substância, logo contra o saber ilusório e a virtude hipócrita. A obra de Voltaire inspirou-se nessa
concepção fundamental. O próprio Voltaire afirmava que o E. "é sobretudo a herança da devoção malentendida" e só concedia aos poetas o "entusiasmo razoável" {Dictionnairephilosophique, art.
Enthousiasme, 1765). As Cartas Persas de Montesquieu são outra manifestação da mesma tendência. Em
Kant a crítica do E. era crítica do fanatismo, e a luta contra o fanatismo era o objetivo fundamental de sua
atividade filosófica (v. FANATISMO). Mas, por uma das não raras ironias da história, essa luta deveria
prenunciar uma das maiores explosões de E. fanático conhecidas pela filosofia: o Romantismo. Por isso,
não é de surpreender a defesa do E. num dos manifestos do Romantismo europeu, De VAllemagne, de
Madame de Staêl (ed. de 1813, p. 603).
Na filosofia contemporânea, Jaspers definiu o E. de acordo com o conceito tradicional e apreciou-o
positivamente. "Na atitude entusiástica", disse ele, "o homem se sente tocado em sua substância mais
íntima, em sua essencialidade ou — o que dá no mesmo — sente-se arrebatado e comovido pela
totalidade, pela substancialidade, pela essencialidade do mundo" (Psychologie der Weltanschauungen, I,
C; trad. it., pp. 138 ss.). Contudo, Jaspers distinguiu o E. do fanatismo, no sentido de que, enquanto o
entusiasta "se obstina em manter firmes suas idéias, mas tem vivacidade e vitalidade para aperceber-se do
novo", o fanático "fica fechado em determinada fórmula ou numa idéia fixa" (Jbid., p. 162).
ENUMERAÇÃO (in. Enumeration; fr. Énu-mération; ai. Aufzàhlung; it. Enumerazionê). A quarta regra
do método enunciada por Descartes na segunda parte do Discurso: "Fazer em tudo E. tão completas e
revisões tão gerais que se esteja seguro de nada omitir". Assim expressa, essa regra refere-se mais ao
controle dos resultados do procedimento racional do que à descoberta desses resultados. Tem maior
alcance a regra correspondente (a VII) de Regulae ad directionem ingenii, em que a E. é identificada com
a indução: "Essa E. ou indução é, portanto, a investigação de tudo o que se refere a dada questão, tão
diligente e cuidadosa que a partir dela concluímos com certeza e evidência que nada negligenciamos...
Por enumeração suficiente ou indução entendemos somente aquela da qual se conclui uma verdade com
mais certeza do que com qualquer outro gênero de prova, salvo pela simples intuição". Com isso parece
que Descartes faz referência ao procedimento que Bacon chamara de "E. simples", em que via uma forma
imper-
ENUNCIADO
337
EPICURISMO
feita de indução. Com efeito, para Bacon, essa indução é "um expediente pueril, que leva a conclusões
precárias, expõe ao perigo dos casos contrários e conclui como pode de um número menor de provas do
que as necessárias". A essa indução Bacon contrapõe a verdadeira, que precede por eliminação e exclusão
e é semelhante ao procedimento diairético de Platão (Nov. Org., I, 105). A crítica da indução por E.
simples foi depois repetida por Stuart Mill (Logic, III, 3, § 2). A E. simples, nesse sentido, parece ser a
indução de que falava Aristóteles (v. INDUÇÃO).
ENUNCIADO (gr. C^ÍGOLUX; lat. Enuntiatum, Enuntiatio; in. Sentence, fr. Enonce, ai. Aus-sage, it.
Enunciató). 1. Expressão lingüística de sentido completo, que é verdadeira ou falsa. Neste sentido,
também se costuma falar de E. indicativo ou declarativo, ou de asserção (v.).
Conquanto corresponda ao logos apophan-tikós de Aristóteles (De interpr., 4, 17 a 2), essa noção foi
formulada claramente pelos estói-cos, que definiram o E. (axiomà) como aquilo que pode ser verdadeiro
ou falso e o distinguiram da interrogação, do comando, do juramento, da apóstrofe e da expressão
dubitativa (DIÓG. L. VII, 65-68). Nos gramáticos latinos ao termo estóico corresponde o termo effatum ou
pro-loquium (AULO GÉLIO, Noct. Att, XVI, 18, 2-8; APULEIO, De interpr., p. 205), e Cícero preferiu
enunciatum (De fato, I, 1). Na lógica medieval, esse termo foi usado alternadamente com proposição.
Pedro Hispano diz que "proposição", "questão", "conclusão" e "enunciação" são termos substancialmente
idênticos que só se distinguem porque a questão é aquilo de que se duvida, a conclusão aquilo que se
demonstra com um argumento, a proposição é aquilo que se põe na premissa e a enunciação é aquilo que
se pronuncia sem condições (absoluté) (Summ. log., 5.06). Esta identificação continua na lógica posterior
(cf. p. ex. JUNGIUS, Lógica hamburgensis, 1638, II, I, 2).
Freqüentemente esse termo é usado com o significado acima definindo na lógica contemporânea (cf.
CARNAP, Introduction to Semantics, § 37; CHURCH, Introduction to Mathematical Logic, § 04). Na lógica,
E. não eqüivale à simples emissão de voz (utterance), mas a uma fórmula ou esquema repetível, uma
norma aproximável. QUINE considera-o uma seqüência (em sentido matemático) dos seus sucessivos
caracteres ou fonemas ( Word and Object, § 40). Quando, conforme ocorre com freqüência, se distingue E. de proposição, diz-se que o E. é verdadeiro quando exprime uma proposição
verdadeira (KNEALE AND KNEALE, The Development of Logic, 1962, p. 53). Sobre a relação entre E. e
proposição, v. PROPOSIÇÃO.
2. Qualquer expressão lingüística de sentido completo. Neste sentido, mais estritamente gramatical, o
termo indica não só a expressão de-clarativa (asserção ou proposição), como também as dúvidas, os
comandos, as exortações, as apóstrofes, etc, frases que não podem ser declaradas verdadeiras ou falsas.
3. Mais raramente, quaisquer expressões lingüísticas, também de sentido não completo; p. ex., uma
palavra isolada como "vermelho" ou "quadrado". QUINE também considera E. uma interjeição como "ai"
(Word and Object, 1960, §3).
ENVOLVER (lat. Involvere, in. involu; ai. Involvieren-, it. Involgerê). Implicar, conter. Spi-noza dizia,
com referência à Causa Primeira, que "sua essência envolve a existência" (Et., I, Def. 1). Esse termo
corresponde ao inglês to entail, usado para indicar a implicação estrita ou forma. V. IMPLICAÇÃO.
EONS (gr. oddiveç). Termo empregado pelos gnósticos (séc. II), especialmente por Valenti-no, para
designar Deus e os seres "eternos" que dele emanam (CLEMENTE, Strom., IV, 13.89).
EPAGÓGICO (gr. èjiayayyiKóç; in. Epagogic; fr. Épagogique, ai. Epagogik, it. Epagogicó). Indutivo (v.
INDUÇÃO).
EPICURISMO (in. Epicureanism-, fr. Épicu-réisme, ai. Epikureismus, it. Epicureismó). Escola filosófica
fundada por Epicuro de Samos no ano 306 a.C. em Atenas. Suas características, que têm em comum com
as demais correntes filosóficas do período alexandrino a preocupação de subordinar a investigação
filosófica à exigência de garantir a tranqüilidade do espírito ao homem, são as seguintes: ls
sensacionismo, princípio segundo o qual a sensação é o critério da verdade e do bem (este último
identificado, portanto, com o prazer); 2e
atomismo, com que Epicuro explicava a formação e a
transformação das coisas por meio da união e da separação dos átomos, e o nascimento das sensações
como ação dos estratos de átomos provenientes das coisas sobre os átomos da alma; 3° semi-ateísmo, pelo
qual Epicuro acreditava na existência dos deuses, que, no entanto, não desempenham papel nenhum na
formação e no governo do mundo.
EPEFENÔMENO
338
ÉPOCA
EPIFENÔMENO (in. Epiphenomenon; fr. Épiphénomène, ai. Epiphànomenon; it. Epife-nomenó). Em
alguns positivistas ingleses do séc. XK (Huxley, Clifford, etc), essa palavra designou a consciência,
considerada fenômeno secundário ou acessório que acompanha os fenômenos corpóreos, mas é incapaz
de reagir sobre eles (V. MATERIALISMO).
EPIGÊNESE (in. Epigenesis, fr. Épigénèse, ai. Epigenese, it. Epigenest). Com esse nome G. F. Wolff
designou sua teoria sobre a geração dos organismos animais, segundo a qual os órgãos de um ser vivo não
estão preformados no óvulo ou no embrião, mas se originam ex novo de uma matéria indiferenciada (
Teoria da geração, 1759). Essa teoria, que Wolff baseava em observação microscópica dos órgãos das
plantas e do embrião do pintainho, foi um golpe rude na teoria do preformismo, que tinha sido defendida
no mesmo século por Malpighi e Bonnet. Kant observava, a propósito dessa teoria, que ela tem a
vantagem de atribuir à natureza uma ação própria que difere do simples desenvolvimento; desse modo,
"lançando mão o menos possível do sobrenatural, deixa por conta da natureza tudo o que se segue ao
primeiro começo" (Crít. do Juízo, § 81). Kant chamou a sua própria doutrina de "E. da razão pura", ao
admitir que as categorias do intelecto são o fundamento da possibilidade de experiência, ao contrário da
doutrina tradicional, segundo a qual é a experiência que torna possíveis as categorias (Crít. R. Pura, § 27)
(v. PRE-FORMAÇÃO).
EPIQUÉIA. V. EQÜIDADE.
EPIQUIREMA (gr. è7uxeípr||j.a; lat. Epichi-rema; in. Epicheirema; fr. Épichérèm; ai. Epicheirem; it.
Epicheremd). Esse termo, que significa empresa ou "tentativa", foi definido por Aristóteles como
"raciocínio dialético" (Top., VIII, 11, 162 a 16) (v. DIALÉTICA). Na realidade, esse termo também é usado
por Aristóteles para indicar o artifício que consiste em esconder ou expor só imperfeitamente algumas
premissas da argumentação. Por isso, na Lógica moderna, o termo E. passou a indicar um prossilogismo
(v.) cujas premissas são expressas de forma incompleta. G. P.
EPISSILOGISMO (in. Episyllogism- fr. Episyllogism; ai. Episyllogismus, it. Episillo-gismó). Silogismo
que assume como uma das suas premissas a conclusão de outro silogismo. Este último será então
chamado de prossilogismo (v.). Kant usou a expressão per episyllogismos para indicar, numa cadeia polissilogística, o sentido em direção ao condicionado, e a expressão perpro-syllogismos
para indicar o sentido em direção às condições. As duas expressões são usadas na dialética transcendental
para esclarecer o procedimento mediante o qual a razão chega às idéias transcendentais, obtidas
procedendo per prosyllogismos, quando se considera como dada e completa a série de condições, ou seja,
a totalidade das premissas (Crít. R. Pura, Dialética, 1, seç. 2) (v. POLISSILOGISMO).
EPISTEMOLOGIA. V. CONHECIMENTO, TEORIA DO.
ÉPOCA (gr. èKOXÍ; in. Epoch; fr. Époque, ai. Epoche, it. Epocd). Tendo como referência o antigo
significado astronômico de É. como ponto do tempo em relação ao qual são definidas as posições dos
astros e contados seus movimentos (cf. PTOLOMEU, Alm., III, 9), essa palavra às vezes é usada para
indicar um acontecimento de especial importância, que estabelece ou permite reconhecer o caráter de um
período histórico. Nesse sentido, diz-se que certo acontecimento "faz É.". Essa palavra passa a significar
o período histórico caracterizado pelo acontecimento. Essa noção distingue-se de idade (v.) porque,
enquanto esta última é o conceito de uma lei de sucessão dos períodos históricos, a É. é o conceito do
caráter central e determinante de certo acontecimento histórico. Nesse sentido, no início do séc. XIX,
Saint-Simon distinguia as É. "críticas" e as "orgânicas" (v. CRISE). Hegel falava das É. da história do
mundo como de vários graus (Stufen) do desenvolvimento unitário dessa história, distinguindo a É.
caracterizada pela unidade do espírito com a natureza, que é o Mundo oriental, a É. caracterizada pela
separação dos dois termos, que se realizou no mundo grego como ideal de liberdade individual e no
mundo romano como subordinação do indivíduo ao Estado, e É. germânica, que se realizou no mundo
cristão, na qual "o espírito divino veio ao mundo e assumiu seu lugar no indivíduo, que agora está
completamente livre, tendo em si a liberdade substancial" {Philosophie der Geschichte, ed. Lasson, pp.
136-37).
Mas foi Dilthey quem introduziu a noção de É. na metodologia historiográfica. Segundo ele, É. é uma
estrutura que tem centro em si mesma e por isso interliga num todo único todas as suas manifestações.
Cada pessoa que nela vive tem em comum a medida das suas ações, de seus sentimentos e sua
compreensão. A tarefa da análise histórica é rastrear a
EPOCHE
339
EQUIDADE
coincidência de objetivos, valores e modos de pensar que constituem É., pois é só em relação com a
estrutura total da É. que se pode calcular a importância da contribuição de um indivíduo {DerAufbau
dergeschichtlichen Welt, em Gesammelte Schriften, VII, p. 155). Adotando esses conceitos, Spengler
acrescentava o caráter de necessidade: "Um acontecimento faz É. quando marca uma virada necessária,
uma guinada do destino no desenvolvimento de uma cultura. Um acontecimento fortuito, que é a imagem
cristalizada da superfície histórica, poderia ser representado por outros casos correspondentes; a É. é
necessária e predeterminada" {Der Untergang des Abendlandes, I, 2, 17). A esse uso está ligado o
significado que Heidegger dá a esse termo: "Toda É. da história universal é uma É. do ser. A essência
epocal do Ser entra no caráter temporal íntimo e oculto do Ser e caracteriza a essência do tempo pensada
no Ser" (Holzwege, p. 311; cf. Chiodi, Uúltimo Heidegger, 1952, p. 29; ID., Lesisten-zialismo di
Heidegger, 2- ed., 1955, pp. 191-92): Jaspers fala de uma É. axial, que corresponderia à idade histórica
que vai do séc. VIII ao séc. II a.C, na qual ocorreram alguns acontecimentos de relevo na história do
mundo (período clássico da Grécia; Confúcio e Lao-tsé na China; Upanishad e Buda na índia; Zaratus-tra
na Pérsia; os profetas na Palestina, etc). A novidade dessa É. é que nela "o homem tomou consciência do
ser em geral, de si mesmo e dos seus limites; tomou consciência de que o mundo é temível, de sua própria
fraqueza. Fez perguntas fundamentais, partiu do abismo para a libertação e para a redenção" (Einführungin diePhilosophie, 1950, cap. IX; trad. it., p. 154).^
EPOCHÉ (gr. éTtoxií). Suspensão do juízo, que caracteriza a atitude dos céticos antigos, particularmente
de Pirro; consiste em não aceitar nem refutar, em não afirmar nem negar. O contrário dessa atitude é o
dogmatismo, em que se dá assentimento a alguma coisa obscura, que constitui objeto de pesquisa
científica (SEXTO EMPÍRICO, Pirr. hyp., I, 10, 13). Segundo o ceticismo, essa atitude era a única possível
para se atingir a imperturbabilidade. Com efeito, "quem duvida de que algo seja bom ou mau por natureza
não evita nem persegue coisa alguma com desejo: por isso, é imperturbável" {Ibid., I, 28). Na filosofia
contemporânea, com Husserl e a filosofia fenomenológica em geral, a E. tem finalidade diferente: a
contemplação desinteressada, ou seja, uma atitude desvinculada de qualquer interesse natural ou psicológico na existência das
coisas do mundo ou do próprio mundo na sua totalidade. Com a E., diz Husserl, "pomos fora de ação a
tese geral própria da atitude natural e pomos entre parênteses tudo o que ela compreende; por isso, a
totalidade do mundo natural que está sempre 'aqui para nós', 'ao alcance da mão' e que continuará a
permanecer como 'realidade' para a consciência, ainda que nos agrade colocá-la entre parênteses. Fazendo
isso, como é de minha plena liberdade fazê-lo, não nego o mundo, como se fosse um sofista, não ponho
em dúvida o seu existir, como se fosse um cético, mas exerço a E. fenomenológica, que me veta
absolutamente qualquer juízo sobre o existente espácio-tem-poral" {Ideen, I, § 32). A E. fenomenológica
distingue nitidamente a filosofia de todas as outras ciências que estão interessadas na existência do mundo
e dos objetos nele compreendidos; por isso, faz do filosofar uma atitude puramente contemplativa, à qual
pode revelar-se, em sua genuinidade, a própria essência das coisas {Ibid., % 90; Cart. Med., § 8). Husserl
vale-se da E. em vários níveis da sua investigação: para efetuar a redução da experiência à "esfera de
propriedade" que pertence ao meu eu e da qual é eliminada qualquer remissão às outras subjetividades
{Cart. Med., § 44); para atingir o chamado "mundo da vida" com a suspensão da validade de todas as
ciências objetivas {Krisis, § 35); para alcançar "o eu constitutivamente operante na intersubjetividade"
{Ibid., § 50); enfim, para alcançar "o ego absoluto, o ego enquanto centro funcional último de qualquer
constituição" {Ibid., § 55). Com este último ato ruma-se para o ponto final da E., pois com o ego absoluto
se está "na esfera da evidência apoclítica" {Ibid., § 55).
EQUAÇÃO LÓGICA (in. Logical equation; fr. Equation logique, ai. Logische Gleichung; it. Equazione
lógica). Na Álgebra da lógica (v.) designa-se com esse termo uma fórmula que contém o sinal "=", à
esquerda do qual situam-se letras (termos) ligadas por operações lógicas, à direita o símbolo "O" ou então
"1". A solução consiste em eliminar incógnitas, segundo técnicas elaboradas por vários alge-bristas
lógicos. G. P.
EQÜIDADE (gr. ÈTtieÍKEia; lat. Aequitas, in. Equity, fr. Équité; ai. Billigkeit; it. Equitã). Apelo à
justiça voltado à correção da lei em que a justiça se exprime. Esse é o conceito clássico de E.,
EQÜIPOLÊNCIA
340
ERÓTICA
esclarecido por Aristóteles e reconhecido pelos juristas romanos. Diz Aristóteles: "A própria natureza da
E. é a retificação da lei no que esta se revele insuficiente pelo seu caráter universal" (Et. nic., V, 14,1137 b
26). A lei tem necessariamente caráter geral; por isso às vezes sua aplicação é imperfeita ou difícil, em
certos casos. Nesses casos, a E. intervém para julgar, não com base na lei, mas com base na justiça que a
própria lei deve realizar. Portanto, nota Aristóteles, o justo e o eqüitativo são a mesma coisa; o eqüi-tativo
é superior, não ao justo em si, mas ao justo formulado em uma lei que, em virtude da sua universalidade,
está sujeita ao erro. Fundamentando-se em conceito análogo, Kant considerava, porém, que a E. não se
presta a uma autêntica reivindicação jurídica e que, portanto, não cabe aos tribunais, mas ao tribunal da
consciência (Met. der Sitten, Ap. à Intr., 1).
EQÜIPOLÊNCIA (gr. icoôuvapa; lat. Ae-quipollentia; in. Equipollence, fr. Êquipollence, ai.
Aequipollenz; it. Equipollenzd). Relação entre enunciados diversos que tem o mesmo valor de verdade. A
doutrina da E. foi exposta pela primeira vez por Galeno na obra Sobre as Proposições Eqüipolentes,
reexposta em latim por Apuleio (no seu comentário a De inter-pretationè), do qual passou à lógica
medieval (cf. PEDRO HISPANO, Summ. log., 1.24-1.27). Jungius distinguia a E. gramatical, que existe
entre frases de igual significado, embora compostas de palavras diferentes, da E. lógica, que ocorre entre
enunciados simultaneamente verdadeiros ou falsos que correspondam ao mesmo objeto extramental:
como no caso dos dois enunciados: "Alguns homens não são amantes da sabedoria" e "É falso que todos
os homens sejam amantes da sabedoria" (Log., II, 10, 2-3). No lógica contemporânea a E. (que se chama
também equivalência) é simbolizada pelo signo = e definida, de acordo com a tradição, como
coincidência de dois enunciados em seu valor de verdade (W. V. O. QUINE, Methods of Logic; § 9;
CARNAP, Mea-ning and Necessity, 3).
EQÜIPROBABIIISMO. V. INDIFERENÇA, PRINCÍPIO DE.
EQUIVALÊNCIA (in. Equivalency, fr. Équi-valence, ai. Aequivalenz; it. Equivalenzá). 1. Relação entre
dois objetos que tenham o mesmo valor: p. ex., entre duas figuras planas que tenham a mesma área ou
duas figuras sólidas que tenham o mesmo volume.
2. O mesmo que eqüipolência (v.).
EQUIVOCAÇÃO (in. Equivocation; fr. Equivocation; ai. Aequivokation-, it. Equivocazione). No latim
medieval, usava-se aequivocatio para traduzir a on.covuu.ia de Aristóteles (v. HOMO-NÍMIA).
EQUÍVOCO1
(in. Equivocation; fr. Equivoque, ai. Aequivok, it. Equivoco). Segundo Hei-degger, uma
das manifestações essenciais, juntamente com a tagarelice (v.) e a curiosidade (v.) da existência
impessoal cotidiana. No E. "tudo parece ser compreendido, apreendido e expresso com pureza, e no
entanto não é; ou então não parece, mas é". Ele "oferece à curiosidade o que ela está procurando e à
tagarelice a ilusão de que com ela tudo se resolve" (Sein und Zeit, § 37).
EQUÍVOCO2
. Adj. V. UNÍVOCO.
ERETRÍACOS (gr.'EpetptKOÍ). Assim foram chamados, devido à origem de um dos fundadores,
Menedemos de Erétria, os seguidores da escola socrática fundada por Fédon, o discípulo de Sócrates que
dá nome a um diálogo de Platão (DIÓG. L., II, 17, 126). Mas das doutrinas dessa escola nada se sabe.
ERÍSTICA (gr. épiOTUcii xèyyr\; in. Eristic, fr. Éristique, ai. Eristik, it. Eristicd). Arte de combater com
palavras, ou seja, vencer nas discussões. Foi cultivada na Antigüidade pelos sofistas e pela escola
megárica, cujos membros foram chamados, por antonomásia, de "erís-ticos" (DIÓG. L., II, 106). Em
Eutidemos, Platão dá um exemplo vivo do modo como essa arte era exercida em seu tempo. Os
interlocutores do diálogo, os irmãos Eutidemos e Dioniso-doro, divertem-se em demonstrar, p. ex., que só
o ignorante pode aprender, e logo depois que só o sábio aprende; que se aprende só o que não se sabe e
depois que se aprende só o que se sabe, etc. O fundamento de semelhantes exercícios é a doutrina
compartilhada por me-gáricos, sofistas e cínicos, de que o erro não é possível porque, não se podendo
dizer o que não é (que eqüivale a não dizer), sempre se diz o que é, logo a verdade.
ERLEBNIS. V. VIVÊNCIA.
EROS. V. AMOR.
EROTÉTICO. V. CATECISMO.
ERÓTICA (fr. Érotique, ai. Erotik, it. Erótica). Algumas vezes, utilizou-se esse termo para designar uma
desejada (mas não realizada) ciência do amor, da felicidade (RICKERT, System der Philosophie, 1921) ou
da vida emocional em geral.
ERRO
341
ERRO
ERRO (gr. v|/eüSoç; lat. Error, in. Error, fr. Erreur, ai. Irrtum; it. Errore). O E. não pertence à esfera das
proposições (ou dos enunciados), mas à do juízo (v.), das atitudes va-lorativas. Com efeito, não consiste
em uma proposição falsa, embora uma proposição falsa seja um elemento do E. consistente em acreditá-la
ou julgá-la verdadeira. Elemento do E. também podem ser uma proposição verdadeira, se considerada
falsa, e qualquer declaração de valor — moral, estética, política, econômica, etc. — se acreditada ou
assumida como exata e desmentida por critérios ou regras reconhecidamente válidos. P. ex., é um È.
acreditar que pode haver duas moedas correntes simultaneamente no mesmo mercado, pois sabe-se que "a
moeda ruim expulsa a boa". O erro pode consistir também em julgar um objeto com base num critério
estranho ao próprio objeto, ou melhor, ao campo de objetos a que ele pertence, ou então em julgar com
base num critério apropriado um objeto não discriminável por tal critério. Tem-se um E. da primeira
espécie quando se quer decidir da realidade de um fato com base num critério moral ("não deve, não
pode, ter acontecido assim"). Tem-se um E. da segunda espécie quando se quer decidir das verdades ou
falsidades dos postulados ou proposições iniciais das ciçncias ou de enunciados não significativos. Em
geral, pode-se chamar de E. todo juízo ou valoração que contrarie critério reconhecido como válido no
campo a que se refere o juízo, ou aos limites de aplicabilidade do próprio critério. Portanto, o contrário de
um juízo errado não é um juízo "verdadeiro", como comumente se crê, mas um juízo "correto", "exato"
ou "regular"; o oposto de E. poderia ser a correção. A possibilidade de E. supõe duas condições: a) que
haja um critério válido de juízo aplicável na situação dada; b) que tal critério não seja necessário e
infalível. Sem a condição a) não haveria a possibilidade de distinguir o E. do que não é E. Sem a
condição ti) o E. seria impossível em princípio.
Platão procurou satisfazer essas condições com a doutrina do E. exposta em O Sofista. Platão observou
corretamente que o E. é impossível do ponto de vista dos eleatas e seus discípulos, segundo os quais "o
ser é" e que o não-ser não pode ser nem pensado nem expresso. Nesse caso, efetivamente, qualquer coisa
que se diga diz-se o que é, por isso diz-se a verdade. Mas se assim é, entre o sofista e o filósofo, entre o
charlatão e o investigador honesto, não haverá nenhuma diferença e a própria investigação será inútil. A possibilidade do E.
condiciona, em outros termos, a investigação da verdade e não se pode negar sem negar a própria
verdade. Por isso, Platão abandona a tese eleática da necessidade do ser e define o ser como possibilidade
(dynamis, Sof., 247 e). Como possibilidade, o ser não é nem um nem muitos, nem movimento nem
repouso, etc, mas pode ser uma coisa ou outra, e tudo está em ver quais são as determinações dele que
podem unir-se e permanecer juntas, e quais, ao contrário, são as não suscetíveis disso. A ciência que
estuda as combinações possíveis das formas (ou gêneros) do ser — ciência análoga à gramática, que
estuda as combinações possíveis das letras, e à música, que estuda as combinações possíveis dos sons —
é a dialética (v.). Em vista disso, o E. é simplesmente uma combinação de determinações do ser e de
palavras que exprimem tais determinações, a qual não se conforme às regras da dialética; em outros
termos, uma combinação que combine ou una o que, com base em tais regras, não pode ser combinado ou
unido. Portanto, quem diz o falso não diz "o que não é" (o que seria impossível), mas diz algo diferente
do que é: exprime uma combinação de formas (gêneros e espécies) não conforme às possibilidades
objetivas de relação entre essas formas. O E. é como um conjunto de letras sem sentido ou um conjunto
de sons sem harmonia (Sof, 263). Essa doutrina platônica do E. é adaptada por Aristóteles aos princípios
da sua filosofia. Aristóteles parte de uma definição do E. que repete a definição encontrada em O Sofista:
'O E. é a negação do que é ou a afirmação do que não é" (Met., IV, 7, 1011 b 26). Mas "o que é" não é o
mesmo para Aristóteles e para Platão: para este, é a "possibilidade"; para Aristóteles, é a "substância" ou
realidade necessária. Aristóteles procura, portanto. definir a possibilidade do E. justamente em relação à
substância, neste caso em seu aspecto de essência necessária (Quod quid erat esse). Aristóteles reafirma a
tese platônica de que o E. é possível só onde há "combinação", "síntese" de elementos diferentes. Onde há
intelecção de indivisíveis não há possibilidade de E.; este sempre se verifica na síntese (ou, o que dá na
mesma, numa divisão), e o princípio que realiza essa síntese é o intelecto (De an., III, 6, 430 b 2). Ora,
nessas sínteses o intelecto está na verdade "se enuncia a essência segundo a essência substancial", mas
não está na verdade
ERRO
342
ERRO
"se enuncia uma coisa qualquer segundo uma coisa qualquer". Com efeito, para o intelecto a essência
substancial ou necessária é o que o branco é para o olho: assim como ninguém se engana ao perceber o
branco, mas alguém se pode enganar ao achar que o branco percebido é um homem, ninguém se pode
enganar ao pensar o homem "segundo a sua essência necessária", ou seja, como "animal racional", mas
alguém se pode enganar afirmando que "este é um homem" ou que "este homem é músico", ou seja,
realizando sínteses ou divisões que não são guiadas pela essência necessária do objeto (Ibid., 430 b 26
ss.). Com isso, Aristóteles restringe a possibilidade do E. à esfera das intelecções que não se referem à
estrutura substancial do ser, já que essa estrutura é apreendida nos seus princípios com um ato análogo à
percepção das qualidades corpóreas, ato que, como "intelecção do indivisível", subtrai-se à possibilidade
de erro. Em outros termos, a estrutura necessária do ser exclui a possibilidade de E. no que diz respeito ao
pensamento do ser. O E. fica então circunscrito à esfera das afirmações acidentais, ou seja, que não têm
lugar na ciência. Mas, na realidade, mesmo na esfera das afirmações acidentais é difícil entender, do
ponto de vista aristotélico, a possibilidade do E., visto que a necessidade da ciência silogística,
constituindo a medida e o controle também da parte do conhecimento que não tem tal necessidade,
elimina, mesmo dessa parte, a possibilidade de erro. Na verdade, a partir de Aristóteles, o problema que a
filosofia deve enfrentar não é o da verdade, mas o do E., no sentido de que os princípios a que
habitualmente a filosofia recorre implicam que o homem está "necessariamente" em verdade e excluem,
assim, a possibilidade de erro. Portanto, as soluções mais comuns do problema do E. são as seguintes: I
a
)
o E. não existe; 2a
) o E. deve-se a uma força que intervém para perturbar o funcionamento normal do
intelecto, precisamente A) na vontade ou B) na sensibilidade. I
a Ambas essas soluções do problema do E.
estão em S. Agostinho, mas a primeira acaba predominando. Para S. Agostinho o E. consiste "em julgar e
acatar como supremo o que, de per si, é ínfimo" (De vera rei, 21), ou seja, em afastar-se "da ordem
estabelecida por Deus, apesar de iludir-se achando que a conserva intacta" (Ibid., 20). O E. é, portanto,
devido à "vontade maléfica", ou seja, ao propósito deliberado de prescindir da ordem divina do mundo e da hierarquia dos valores que ela implica. Mas qual é a causa dessa vontade maléfica e como ela é
possível na ordem divina do mundo? S. Agostinho nega que possa tratar-se de uma causa positiva e
eficiente; trata-se de uma causa defeituosa ou deficiente. E querer encontrar a causa dessas defecções
seria como querer ver as trevas ou ouvir o silêncio. "As coisas que ficam sendo conhecidas não em sua
forma positiva, mas como privação de algo, são de algum modo apreendidas, por assim dizer, exatamente
ao não serem conhecidas, tanto que, se as conhecêssemos, não as ficaríamos conhecendo. Quando a
acuidade da visão sensível percorre as espécies corpóreas, não vê trevas em lugar algum, a não ser no
lugar onde começa a não ver as coisas. Assim, não cabe a nenhum outro sentido perceber o silêncio; a não
ser ao ouvido, que, todavia, adverte-o quando não ouve nada. Assim, nossa mente vê com o intelecto as
espécies inteligíveis, mas onde elas se acham em forma negativa conhece-as não as conhecendo" (De civ.
Dei, XII, 7). Assim, para S. Agostinho E. é o conhecimento de um não-conhecimento: como ouvir o
silêncio. Em sentido próprio e rigoroso, é um não conhecimento e um não ser: ele não existe. Essa
redução do E. ao nada é característica de grande parte das doutrinas filosóficas tradicionais. Spi-noza
expressa-o com a costumeira nitidez: "A falsidade consiste na privação de consciência que está implícita
nas idéias inadequadas, falhas ou confusas". P. ex., os homens erram ao se acreditarem livres, porque
estão cônscios de suas ações, mas desconhecem as causas que as determinam. Assim também erram
quando acham que o Sol está próximo, porque são ativados pela ação do Sol, mas ignoram sua distância
real (Et., II, 35, scol.). O E., portanto, não consiste na simples imaginação (que é a faculdade das idéias
inadequadas e confusas), mas na falta de conhecimento, na falta da idéia que excluiria a existência dos
objetos que a imaginação crê presentes (Ibid, II, 17, scol.). Com outra terminologia, tradicional, Leibniz
afirmava a mesma coisa, reconhecendo como causa do E. uma causa "deficiente", ou seja, a limitação ou
a imperfeição da natureza humana (Théod., I, § 20). Para o idealismo romântico, o E. é o "finito", o
"negativo", o "acidental": o que se destina a ser eliminado e a encontrar sua "verdade" no Infinito, no
Necessário e no Positivo da Autoconsciência absoluta. Assim, a rigor, não existe erro. Como dizia
Gentile, expri-
ERRO
343
ERRO
mindo bem a posição do idealismo romântico, "o E. é o superado: aquilo que, em outros termos, está em
face do nosso conceito, como seu não ser. Portanto, assim como a dor, não é uma realidade que se oponha
à realidade es-* pírito {Conceptus Sui), mas é a própria realidade aquém de sua realização, num momento
ideal" {Teoria do espírito, cap. 16, § 8). Essa é a solução tipicamente dialética (no sentido hege-liano do
termo) do problema do E.: o E. é o momento negativo, destinado a ser "superado" ou a "ser transformado
em verdade" pelo momento positivo e concreto: como E., não existe.
2
a
À segunda solução típica do problema do E. consiste em atribuí-lo a uma faculdade diferente do
intelecto, mas capaz de agir sobre ele e de desviá-lo do seu funcionamento correto. A) A primeira
alternativa nesse sentido é a que o atribui à vontade. Já se viu que S. Agostinho começou julgando o E.
como o afastamento voluntário da ordem das coisas estabelecida por Deus. A idéia do caráter voluntário
do E. acaba prevalecendo na última fase da Escolástica: é defendida por Duns Scot e Ockham. De fato,
ambos entendem a vontade como a faculdade de executar atos opostos porquanto é absolutamente livre. A
ela se deve o assentimento dado a uma proposição e, portanto, também a faculdade de dar assentimento a
proposições falsas ou de dissentir de proposições verdadeiras (OCKHAM, In Sent, II, q. 25, L). Para
Ockham, o assentimento da vontade deve necessariamente seguir-se à evidência intuitiva dos primeiros
princípios da demonstração, ou das verdades empíricas ou conclusões das demonstrações; por outro lado,
pode se dar assentimento ao que é desprovido de qualquer evidência (Ibid., II, q. 25, Y); nesses casos,
determina-se a possibilidade de erro. Essa doutrina foi substancialmente reproduzida por Descartes, em
sua tese de que "a vontade é maior que o intelecto, podendo, pois, dar assentimento ao que não tem
clareza e distinção suficientes para o intelecto. A vontade", diz Descartes, "pode parecer de certo modo
infinita porque nada percebemos que possa ser o objeto de outra vontade, nem mesmo da vontade imensa
de Deus, até a qual a nossa não pode estender-se. Essa é a causa de ordinariamente levarmos a vontade
além daquilo que conhecemos clara e distintamente; e quando assim abusamos dela não é de surpreender
que aconteça enganar-nos" (Princ. phil., I, 35). De modo análogo, Locke dizia que "o E. não é
uma falha do nosso conhecimento, mas um engano do nosso juízo, que dá assentimento ao que não é
verdadeiro". E enunciava quatro razões do assentimento errado: le
falta de provas; 2S
falta de capacidade
de usá-las; 3Q
falta de vontade de vê-las; 4Q
cálculo errado de probabilidades {Ensaio, IV, 20, § 1).
Rosmini também atribui o E. à vontade, considerando-o decorrente da ausência do elemento ideal (Idéia
do ser) ou do elemento real (sentimento ou sensação) da percepção intelectiva {Novo ensaio, §§ 1356-59).
Mas, dada a formulação geral da teoria de Rosmini, que identifica a idéia do ser com a "forma da razão",
a primeira espécie de E. pareceria implicar o poder da vontade de dissociar a razão da "forma".
Finalmente, o próprio Croce aceitou essa teoria do E.: "Quem comete um erro não tem nenhum poder de
distorcer, desvirtuar ou macular a verdade, que é seu próprio pensamento, o pensamento que opera nele
como em todos; aliás, assim que toca o pensamento, é tocado por ele: pensa e não erra. Tem apenas o
poder prático de passar do pensamento ao fazer; e o fazer, e não o pensar, é abrir a boca e emitir sons aos
quais não corresponda o pensamento, ou, o que dá no mesmo, um pensamento que tenha valor, precisão,
coerência, verdade" {Lógica, 4-ed., 1920, pp. 254-55).
B) A outra alternativa dessa solução é que o E. se deve à sensibilidade ou, pelo menos, à ação da
sensibilidade do intelecto. Essa é a doutrina de Kant a respeito. Um juízo errôneo — e o E., assim como a
verdade, só pode existir no juízo — é o que confunde a aparência da verdade com a verdade. Essa
confusão não seria possível se o homem não tivesse outra faculdade além do intelecto. Mas como o
homem, além do intelecto, tem sensibilidade, não pode evitar a influência oculta da sensibilidade sobre o
intelecto, e dessa influência nasce a possibilidade de confundir o subjetivo com o objetivo, ou seja, a
aparência da realidade com a própria realidade {Logik, Einleitung, VII). Essa teoria kantiana retorna em
alguns filósofos contemporâneos. P. ex., para C. I. Lewis o E. é devido à combinação dos dados mediados
pela experiência com as suas interpretações ou integrações habituais, de natureza intelectual {Analysis
ofKnowledge and Valuation. p. 26).
Em geral, a teoria do E. não é alvo de muita atenção por parte da filosofia contemporânea. Algumas
correntes não elaboram uma teoria
ESCÂNDALO
344
ESCOLÂSTICA
do E. pelo mesmo motivo pelo qual Hegel não a elaborou: porque não admitem a possibilidade do erro.
Para outras correntes, porém, o motivo é diferente: elas reconheceram a intrínseca falibilidade (y.) dos
procedimentos cognoscitivos de que o homem dispõe e, portanto, a possibilidade do E. não se distingue
da possibilidade do conhecimento. Em certo sentido, esse ponto de vista significa um retorno à teoria
platônica do E. ou, pelo menos, ao seu pressuposto de que as determinações do conhecimento, assim
como as do ser, não devem ser consideradas necessidades, mas possibilidades (v.).
ESCÂNDALO (in. Scandal; fr. Scandale, ai. Skandal; it. Scandaló). Kierkegaard transformou o E. numa
categoria religiosa, definindo-o como "o pecado de desesperar da remissão dos pecados". Para o intelecto
humano, o perdão do pecado é a mais impossível de todas as coisas: desse ponto de vista, a religião é a
"possibilidade do escândalo" {Die Krankheit zum Tode, II, B, B; trad. it., Fabro, p. 347; cf. Diário, X'A,
133).
ESCATOLOGIA (in. Eschatology, fr. Escha-tologie, Eschatologie, it. Escatologiá). Termo moderno que
indica a parte da teologia que considera as fases "finais" ou "extremas" da vida humana ou do mundo:
morte, juízo universal, pena ou castigo extra terrenos e fim do mundo. Os filósofos usam às vezes esse
termo para indicar a consideração dos estágios finais do mundo ou do gênero humano (cf. RENOU-VIER,
Nouvelle monadologie, 1899, VII, 139-40).
ESCOCESA, ESCOLA (in. Scottish school; fr. École écossaise, ai. Schottische Schule, it. Scuola
scozzese). Grupo de filósofos escoceses que compreende Thomas Reid (1710-96), Dugald Stewart (1753-
1828), Thomas Brown (1778-1820), William Hamilton (1788-1856) e Henri Mansel (1820-71), cujas
doutrinas fundamentais são: ls
recurso ao senso comum para garantir algumas verdades teóricas e morais
consideradas fundamentais para o homem (v. SENSO COMUM); 2
e
realismo natural, teoria de que o objeto
imediato do conhecimento não é a idéia (como se julgara desde Descartes até Hume), mas a coisa externa
(v. REALISMO).
ESCOLÂSTICA (in. Scholasticism- fr. Sco-lastique, ai. Scbolastik, it. Scolastica). 1. Em sentido próprio,
a filosofia cristã da Idade Média. Nos primeiros séculos da Idade Média, era chamado de scholasticus o
professor de artes liberais e, depois, o docente de filosofia ou teologia que lecionava primeiramente na
escola do convento ou da catedral, depois na Universidade. Portanto, literalmente, E. significa filosofia da
escola. Como as formas de ensino medieval eram duas (lectio, que consistia no comentário de um texto, e
disputatio, que consistia no exame de um problema através da discussão dos argumentos favoráveis e
contrários), na E. a atividade literária assumiu predominantemente a forma de Comentários ou de
coletâneas de questões (v. QUESTÃO).
O problema fundamental da E. é levar o homem a compreender a verdade revelada. A E. é o exercício da
atividade racional (ou, na prática, o uso de alguma filosofia determinada, neoplatônica ou aristotélica)
com vistas ao acesso à verdade religiosa, à sua demonstração ou ao seu esclarecimento nos limites em que
isso é possível, aprestando um arsenal defensivo contra a incredulidade e as heresias. A E., portanto, não é
uma filosofia autônoma, como, p. ex., a filosofia grega: seu dado ou sua limitação é o ensinamento
religioso, o dogma. Para exercer essa tarefa, não confia apenas nas forças da razão, mas chama em seu
socorro a tradição religiosa ou filosófica, recorrendo às chamadas auctoritates. Auctoritas é a decisão de
um concilio, uma máxima bíblica, a sententia de um padre da Igreja ou mesmo de um grande filósofo
pagão, árabe ou judaico. O recurso à autoridade é a manifestação típica do caráter comum e supraindividual da investigação E., em que cada pensador quer sentir-se apoiado pela responsabilidade coletiva
da tradição eclesiástica.
A E. medieval costuma ser distinguida em três grandes períodos: ls
a alta E., que vai do séc. IX ao fim do
séc. XII, caracterizada pela confiança na harmonia intrínseca e substancial entre fé e razão e na
coincidência de seus resultados; 2Q
o florescimento da E., que vai de 1200 aos primeiros anos do séc.
XIV, época dos grandes sistemas, em que a harmonia entre fé e razão é considerada parcial, apesar de não
se considerar possível a oposição entre ambas; 3S dissolução da E., que vai dos primeiros decênios do séc.
XIV até o Renascimento, período em que o tema básico é a oposição entre fé e razão.
Esse conceito da E. foi extraído da obra fundamental de M. Grabman, Die Geschichte der scholastichen
Methode (1909, reimpr. 1956). Não faltaram tentativas de considerar a E. como uma síntese doutrinária
completa, na qual con-fluíam e fundiam-se contribuições individuais
ESCOLHA
345
ESCOLHA
(p. ex., por parte de De Wulf, Histoire de Ia philosophie médiévale, 1900, e ed. seguintes), mas essas
tentativas não têm base histórica e reduzem-se a alijar da E. grande número de autores e a estabelecer
concordâncias e unifor-midades fictícias entre os outros (cf. Abbag-nano, Storia dellafil., 2- ed., 1958, 1,
§ 171, e a bibliografia correspondente).
2. Por extensão, pode-se chamar de E. qualquer filosofia que assuma a tarefa de ilustrar e defender
racionalmente determinada tradição ou revelação religiosa. Para isso, via de regra, essa E. lança mão de
uma filosofia já estabelecida e famosa; de tal sorte que, nesse sentido, a E. é a utilização de determinada
filosofia para a defesa e a ilustração de determinada tradição religiosa (v. FILOSOFIA). Nesse sentido
genérico são muitas as E., tanto na Antigüidade quanto no mundo moderno: na Antigüidade o neoplatonismo, o neopitagorismo, etc.; na Idade Média, a filosofia dos árabes e dos judeus; no mundo
moderno, são escolásticas as filosofias de Malebranche, de Berkeley, da direita hegeliana, de Rosmini, de
muitos espiritualistas, etc.
ESCOLHA (gr. aipecuç, 7rpoaípeatç; lat. Electicr, in. Cboice, fr. Choix, ai. Wabl; it. Scelta).
Procedimento pelo qual determinada possibilidade é assumida, adotada, decidida ou realizada de um
modo qualquer, preferentemente a outras. O conceito de E. está estreitamente vinculado ao de
possibilidade (v.), de tal modo que não só não há E. onde não há possibilidade (visto ser justamente a
possibilidade o que se oferece à E.), como tampouco há possibilidade onde não há E., já que a
antecipação, a projeção ou a simples previsão das possibilidades são escolhas. Por outro lado, o conceito
de E. é uma das determinações fundamentais do conceito de liberdade (v.).
O conceito de E. é constante em Platão, que, usando o mito de Er, mostra que o destino do homem
depende da E. que ele faz do modelo de vida: "Não havia nada de necessariamente preestabelecido para a
alma porque cada uma devia mudar segundo a E. que fizesse" (Rep., X, 618 b). Mas foi Aristóteles quem
fez a primeira análise exaustiva da E., distinguindo-a: le
do desejo, que é comum também aos seres
irracionais, ao passo que a E. não é (Et. nic, III, 2, 1111 b 3); 2e
da vontade, porque também se podem
querer as coisas impossíveis (p. ex., a imortalidade), mas não escolher (Ibid., 1111b 19); 3e
da opinião,
que também pode referir-se
às coisas impossíveis (p. ex., as eternas) que não dependem de nós (Ibid., 1111 b 30). A essas
determinações negativas Aristóteles acrescentou a determinação positiva de que a E. "é sempre
acompanhada por razão e pensamento" (Ibid., 1112 a 15). A essa determinação pode-se acrescentar outra,
fundamental, extraída das determinações negativas: a E. diz respeito só às coisas possíveis. Essa última
determinação, que é a fundamental, era explicitamente ressaltada por S. Tomás, que repetia
substancialmente a análise aristotélica (S. Th., II, 1, q. 13, a. 5).
A noção de E. sempre foi amplamente utilizada pelos filósofos, em especial na discussão do problema da
liberdade (v.), mas não foi analisada com freqüência. A partir de Kier-kegaard, a filosofia da existência
enfatizou o valor da E. no que concerne à própria personalidade do homem ou à sua existência,
considerando a E. sobretudo sob o ângulo da sua própria possibilidade, ou seja, como E. da escolha. Diz
Kierkegaard: "A E. é decisiva para o conteúdo da personalidade: com a E. ela aprofunda-se na coisa
escolhida, mas se não escolhe definha" (Werke, II, p. 148). Desse ponto de vista, a E. importante não é
entre o bem e o mal, mas entre escolher e não escolher. "Com essa E., não escolho entre o bem e o mal,
mas escolho o bem; mas, porquanto escolho o bem, escolho com isso a escolha entre o bem e o mal. A E.
original está sempre presente em toda E. ulterior" (Ibid., II, p. 196). Esse conceito foi freqüentemente
repetido no existencialismo contemporâneo. Segundo Heidegger, a E. autêntica é a E. do que já foi
escolhido, a E. das possibilidades que já são do homem. "Repetição da E. significa escolhimento dessa E.,
opção por uma possibilidade que tem raiz no si-mesmo. Ao escolher a E., o ser-ai possibilita pela primeira
vez o seu autêntico poder-ser" (Sein undZeit, § 54). Mas nesse sentido a "E. da E." é simplesmente a
aceitação ou o reconhecimento daquilo que se é, renunciando-se a qualquer pretensão de mudança ou
libertação. No mesmo sentido, Jaspers diz: "Não posso recomeçar e escolher entre ser eu mesmo e não ser
eu mesmo, como se a liberdade fosse apenas um instrumento. Mas, quando escolho, sou, e, se não sou,
não escolho" (Phil, II, p. 182). Quer dizer: o que posso escolher é apenas meu eu-mesmo: o eu-mesmo
que é idêntico à situação, ao lugar da realidade em que me encontro (Ibid., I, p. 245). A E. da E. na
verdade é
ESCOLHA
346
ESCOLHAS, AXIOMA DAS
a E. do que já se é e não se pode não ser. Esse conceito de E. da E. acaba eliminando a própria E., que,
como Aristóteles reconhecera, está sempre ligada ao possível. Por outro lado, Sartre insistiu na perfeita
arbitrariedade da E., identificou E. e consciência e viu, por isso, um ato de E. em todo ato de consciência
(Vêtre et le néant, pp. 539 ss.). Isso pode ser verdade, mas de certo modo é oportuno sair em busca de um
sentido mais específico de E., segundo o qual nem todos os atos sejam escolhas. Esse sentido pode ser
precisamente o de E. da E., não como E. do que já foi escolhido, mas como E. do que pode ainda ser
escolhido. Nesse sentido, a "E. possível" é não só a E. que se oferece como possibilidade, mas a E. que,
uma vez feita, afigura-se ainda possível. Entendido nesse sentido, o conceito de E. torna-se suscetível de
tratamento objetivo e capaz de orientar a análise das técnicas de E. Desse ponto de vista, é indispensável
determinar, em primeiro lugar o contexto das E., ou seja, o campo de possibilidades (v.) objetivas em que
a E. deve atuar. P. ex., para o homem que sofreu uma afronta, as opções de vingança pela força ou pela
violência são diferentes das que lhe são oferecidas pelo sistema jurídico em que vive. Além disso, sempre
com referência a um contexto determinado, pode-se fazer a distinção entre grau de E., que é o número de
possibilidades oferecidas por determinado contexto, e extensão da E., que é o número de indivíduos que
têm acesso a determinada E. em dado contexto. Entre extensão e grau pode haver todas as relações
possíveis, pois o aumento no grau pode influir na extensão e vice-versa. O critério da repetibilidade das
E., com base nas considerações acima, especialmente com base nas normas técnicas do contexto, é
adotado por todas as disciplinas (conquanto implicitamente): p. ex., um axioma matemático ou lógico
continuará sendo admitido (ou seja, sua E. se repete) enquanto não levar a uma contradição; uma técnica
científica ou produtiva continuará em uso (ou seja, será sempre escolhida) enquanto não der ensejo a
inconvenientes ou não for encontrada outra melhor; e assim por diante.
Hoje, em todas as ciências, especialmente na matemática, na lógica, na psicologia e na sociologia, é
grande o uso da noção de E. Mas, como se disse, raramente ela é analisada por essas ciências, que
pressupõem seu significado corrente. Por outro lado, as análises feitas pelos filósofos nem sempre dão conta dos caracteres fundamentais da E. Bergson, p. ex.,
considerou as alternativas diante das quais se encontra situada toda E. como falsas "espacializações" dos
estados interiores de hesitação; portanto, concebeu a E. como algo que, "à maneira de um fruto maduro,
separa-se dos estados consecutivos do eu" (Les données immédiates de Ia conscience, 1889, p. 134). Mas
está claro que, se as alternativas são fictícias, fictícia é a própria E. que vive só no possível, que é
constituído por alternativas. Característica mais autêntica da E. humana foi evidenciada por Dewey: "A E.
não é uma preferência que emerge da indiferença.- é a emergência de uma preferência unificada a partir
de um conjunto de preferências competitivas". Portanto, a E. racional é apenas aquela que unifica e
harmoniza diferentes tendências concorrentes (Human Nature and Conduct, 1929, p. 193). Assim, Dewey
alija da E. o critério de racionalidade, pondo-se num plano em que é possível sugerir inúmeros critérios.
Tem, contudo, o mérito de ter ressaltado a importância da E. e sua onipresença. "A operação de E.", disse
ele, "é inevitável em qualquer empreendimento que exija a reflexão. Em si mesma, não é fal-sificadora. A
ilusão reside no fato de que a sua presença é oculta, camuflada, negada. Um método empírico descobre e
põe a nu a operação de E., como faz com qualquer outro acontecimento" (Experience and Nature, 1926,
p. 35). ESCOLHAS, AXIOMA DAS (in. Axiom of choice, fr. Axiome des choix, ai. Auswahlprin-zip it.
Assioma delle scelte). Tem esse nome um princípio enunciado por Zermelo em 1904, segundo o qual,
dada uma classe K cujos membros são classes não vazias a, b, c,... existe uma função /que estabelece a
correspondência entre cada classe a, b, c, e um elemento e um só da classe f(a), f(b),f(c)... Esse postulado,
na forma de um axioma multiplicativo, foi reex-posto por Russell da seguinte forma: dada uma classe K,
cujos membros são classes não vazias, que não têm nenhum membro em comum, existe uma classe A,
cujos membros são todos membros dos membros de K e que tem só um membro em comum com cada
membro de K. Zermelo demonstrou que os dois axiomas são equivalentes. Os matemáticos utilizavam
com freqüência uma assunção desse gênero, mas a sua enunciação explícita suscitou dúvidas e
discussões, substancialmente quanto ao conceito de "existência" dos membros de um conjunto.
ESCOTISMO
347
ESCRAVIDÃO
O postulado de Zermelo, se aplicado aos conjuntos infinitos, significa simplesmente que se pode falar da
existência de um membro do conjunto, mesmo não apresentando uma regra precisa que permita construir
ou reconhecer esse membro (cf. K. GÒDEL, The Consistency of tbe Axiom of Choice and of the
Generalized Continuum Hypothesis with the Axioms of Set Theory, 1940; L. GEYMONAT, Storia e filosofia
deWanalisi infinitesimale, 1948).
ESCOTISMO (in. Scotism-, fr. Scotisme, ai. Scotismus-, it. Scotismó) Doutrina de John Duns Scot
(1266-1308) e de seus discípulos, que tem as características abaixo enumeradas.
I
a Doutrina do caráter prático da ciência teológica: esta não conteria verdades teóricas, mas só regras para
a conduta humana em vista da salvação eterna.
2- Afirmação da indemonstrabilidade de um número relevante de proposições filosóficas e teológicas.
Duns Scot acreditava ser impossível demonstrar, p. ex., todos os atributos de Deus ou a imortalidade da
alma. Na obra a ele atribuída (cuja autenticidade é duvidosa), Theore-mata, numerosas outras proposições
teológicas são declaradas indemonstráveis.
3
a
Doutrina da univocidade do ser, em oposição ao tomismo: a metafísica é a ciência suprema, que tem
por, objeto o ser em geral, tanto o das criaturas quanto o de Deus.
4
a
Doutrina da individuação: a individuação é a última determinação da forma, da matéria e do seu
composto, ou seja, é a haecceitas (\. INDIVIDUAÇÃO). Essa doutrina foi interpretada pela escola de Scot
em oposição à tomista, segundo a qual a individuação depende da matéria signata, no sentido de que a
individuação depende das formas, mais precisamente da superposição de um número indefinido de
formas no mesmo composto.
5
a
Voluntarismo: doutrina do primado da vontade, que Duns Scot compartilha com Henrique de Gand (v.
VOLUNTARISMO).
ESCRAVIDÃO (gr. Souteíoc; lat. Servitus; in. Slavert; fr. Esclavage, ai. Sklaverei; it. Schiavi-tü). Entre
os filósofos, a justificação da E. sempre teve a mesma forma: a E. é útil não só ao senhor como também
ao escravo. Por esse motivo, Aristóteles considera a E. uma das divisões naturais da sociedade,
semelhante à divisão entre homem e mulher: como há "quem é naturalmente disposto ao comando" e
"quem é naturalmente disposto a ser mandado", é graças à união que "ambos podem sobreviver". Portanto, A E. é "vantajosa tanto para o senhor quanto para o escravo" (Pol., I, 2, 1552 a). Citando Aristóteles, S.
Tomás dizia: "Que um homem seja escravo e não outro é coisa que, de um ponto de vista absoluto, não
tem razão natural, mas só razão de utilidade, porquanto é útil ao escravo ser governado por um homem
mais prudente, e é útil a este último ser ajudado pelo escravo" (5. Th., II, 2, q. 57, a. 3, ad 2e
). O modo
como Hegel comenta a figura servo-senhor em Fenomenologia do espírito obedece ao mesmo espírito de
justificação. O senhor é a autoconsciência do escravo e o escravo é o instrumento que elabora os objetos,
a fim de que o senhor os usufrua e, desse modo, ele próprio participe, por mediação, da fruição do objeto,
assim como, por mediação, o senhor participa da produção dele (Pbãnomen. des Geistes, I. IV, A; trad. it.,
pp. 168 ss.).
Por outro lado, o cristianismo tornara insignificante a E. e, em um certo sentido, a sua condenação. Uma
vez que tanto o judeu quanto o grego, tanto o servo quanto o homem livre, tanto o homem quanto a
mulher "fazem uma só coisa em Jesus Cristo" {Gal, III, 28), não é importante ser escravo ou livre, mas
ser "liberto do Senhor" (/ Cor., VII, 21-22). No mundo antigo, só os estóicos condenaram sem reservas a
E.: "Só o sábio é livre, os maus são escravos: já que a liberdade não é senão autodeterminação e a E. é a
ausência de autodeterminação. Há, então, outra E., que consiste na sujeição ou na compra e na sujeição, à
qual se contrapõe a senhoria, que é também maléfica" (DiOG. L., VII, 121). Ao lado da negação da E.
como instituição social, os estóicos fizeram prevalecer o conceito da E. como estado ou situação moral.
Dizia Sêneca: "'São escravos'. Sim, mas também homens. 'São escravos'. Sim, mas também companheiros
de habitação. 'São escravos'. Sim, mas também amigos humildes. 'São escravos'. Sim, mas também
companheiros de escravidão, se refletires que uns e outros estão sujeitos aos caprichos da sorte" (Ep., 47):
conceitos que se repetiram de várias formas na literatura romana, embora nada tivessem de
correspondente no direito romano codificado, para o qual o escravo era a "coisa" do patrão. No mundo
moderno, foi a filosofia iluminista que mostrou a noção de E. como absurda e repugnante: sua defesa da
noção de igualdade significa a condenação da E. em todas as suas formas e graus (cf., p. ex., VOLTAIRE.
Dictionnaire Philosophique, 1764, artigo "Éga-lité").
ESCRÚPULO
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ESPAÇO
ESCRÚPULO (in. Scruple, fr. Scrupule, ai. Skrupel; it. Scrupoló). Hesitação em agir, por incerteza na
avaliação da situação, por não se saber se a ação projetada é correta ou não. Esse é o significado dessa
palavra em frases como "Ter E." ou "Agir sem E.".
Escrupulosidade é a atitude de quem procede com E., a fim de executar melhor um trabalho ou de
desenvolver com mais precisão uma atividade qualquer.
ESFERA (gr. ocpocípa, C(paípoç; lat. Gobus; in. Globe, fr. Globe-, ai. Spbare, it. Sfera). Segundo os
antigos, a figura perfeita, que compreende em si todas as outras figuras e é a imagem da homogeneidade e
da perfeição (cf. PLATÃO, Tim., 33 b). Parmênides comparava o ser a uma "E. perfeitamente redonda",
porquanto ele é definido por todos os aspectos, sendo igual a si mesmo, de tal modo que em nenhum de
seus aspectos é maior ou menor que ele mesmo (Fr. 8, 41, Diels). Empédocles chamava de esfero a fase
perfeita do ser, em que predomina a amizade: "Mas em todos os aspectos era igual e inteiramente infinito,
o esfero redondo que goza da sua solidão envolvente" (Fr. 28, Diels). No Renascimento, Nicolau de Cusa
retomou essas especulações, insistindo na perfeição da figura circular (De docta ignor, I, 21) e atribuindo
à alma a forma esférica (De ludo globi, I).
ESFORÇO (in. Effort; fr. Ejfort; ai. Streben; it. Sforzó). Atividade tendente a vencer um obstáculo ou
uma resistência qualquer. Essa noção foi introduzida em filosofia por Fichte, que a utilizou para mostrar
que a realidade deriva do Eu: "A atividade pura do eu, reentrando em si mesma, em relação a um objeto
possível é um E.; aliás, um E. infinito. Esse E. infinito é ao infinito a possibilidade de todo objeto: sem E.,
não há objeto" (Wissenschaftslehre, 1794, § 5, II; trad. it., pp. 213-14). Maine de Biran valeu-se dessa
noção e identificou com a experiência imediata do E. tanto o princípio metafísico de causalidade quanto a
liberdade do eu. Tomado na origem, E. é liberdade, ou seja, o eu como liberdade; em face da resistência
que se lhe opõe, é necessidade (Fondements de lapsy-chologie, em CEuvres, ed. Naville, II, p. 284).
Pode-se considerar esse conceito como uma continuação do conceito mais antigo de co-nação (v.).
ESOTÉRICO, EXOTÉRICO (gr èocoxe pitcóç; èÇcorepVKÓÇ; in. Esoteric, exoterio, fr. Eso-térique,
éxotérique, ai. Esoterisch, exoterisch; it.
Esotérico, éssoterico). O primeiro destes termos encontra-se nos últimos escritores gregos para indicar
doutrinas ou ensinamentos reservados aos discípulos de uma escola, que não podiam ser comunicados a
estranhos (GALENO, 5, 513; JÂMBLICO, Comm. math., 18). O segundo termo é muitas vezes empregado
por Aristóteles (Pol, 1278 b 31; Met., 1076 a 28; Et. nic, 1102 a 26, etc.) para designar suas obras
populares, destinadas ao público (em forma de diálogos, dos quais só temos fragmentos), em
contraposição aos escritos acroamãticos, destinados aos ouvintes, que eram os apontamentos das lições
que chegaram até nós (v. ACROAMÁTICO). O adjetivo esotérico é usado na linguagem comum para
designar obras que tratam de ciências ocultas, como magia, astrologia, etc. ESPAÇO (gr. x^pa, TÓrcoç;
lat. Spatium; in. Space, fr. Espace, ai. Raum; it. Spazió). A noção de E. deu origem a três problemas
diferentes, ou melhor, a três ordens de problemas: 1-a respeito da natureza do E.; 2a
a respeito da
realidade do E.; 3a
a respeito da estrutura métrica do E. A resposta a este último problema só pode ser uma
geometria, e as diversas respostas a ele dadas constituem as diferentes geome-trias. Para tais respostas, cf.
GEOMETRIA.
I
9 O primeiro problema concerne ao verdadeiro conceito de E. e é o problema da natureza da
exterioridade em geral, ou seja, daquilo que torna possível a relação extrínseca entre os objetos. Einstein,
no prefácio a um livro histórico sobre o conceito de E. (MAX JAMMER, Con-cepts of Space, 1954),
distinguiu duas teorias fundamentais de E.: a) E. como qualidade posicionai dos objetos materiais no
mundo; b) E. como continente de todos os objetos materiais. A esses dois conceitos pode-se acrescentar
outro, fundado pelo próprio Einstein: c) E. como campo.
a) A primeira concepção é de E. como lugar (v.), como posição de um corpo entre outros corpos. Nesse
sentido, o E. é definido por Aristóteles como "o limite imóvel que abraça um corpo" (Fís., IV, 4, 212 a
20), definição que Aristóteles reconhece idêntica ao conceito platônico que identificava E. e matéria
(Tim., 52 b, 51 a). Segundo esse conceito, não haverá E. onde não houver objeto material; por isso, a tese
principal dessa teoria do E. é a inexistência do vazio (cf. ARISTÓTELES, FÍS., IV, 8, 214 b 11). Essa é a
teoria que prevalece na Antigüidade e é aceita durante toda a Idade Média até mesmo pelos adversários de
Aristóteles
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349
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(cf. OCKHAM, Summulae physicorum, IV, 20; Quodl, I, 4). No Renascimento era defendida por
Campanella (Desensu rerum, I, 12), sendo aceita e reexposta por Descartes nos termos da sua geometria.
Entre lugar e E. Descartes estabelecia uma diferença apenas nominal, porquanto "o lugar assinala mais
expressamente a situação do que a grandeza ou a figura e pensamos mais nestas quando falamos do E.".
Mas as duas coisas são idênticas: "Se dizemos que uma coisa está em tal lugar, entendemos somente que
está situada de tal modo em relação a outras coisas; mas se acrescentamos que ocupa tal E. ou tal lugar,
entendemos ademais que ela é de tal grandeza e de tal forma que pode preenchê-lo exatamente" (Princ.
phil, II, 14). Descartes negava, portanto, a existência do vazio (Ibid, II, 16); assim como a negava Spinoza, que compartilhava da mesma concepção de E. (Et, I, 15, scol.). Leibniz, por sua vez, defendia essa
concepção contra Newton e seus seguidores. "Se o E. é uma propriedade ou um atributo, deve ser a
propriedade de alguma substância. O E. vazio e limitado, que seus defensores supõem entre os dois
corpos, seria propriedade ou afecção de que substância?"' (IVe
Lettre à Clarke, 8; Op., ed. Erdmann, p.
756). Mas a velha concepção encontrava em Leibniz expressão nova e feliz, em termos de noção de
ordem, que deveria tornar-se clássica: "Considero o E. (opondo-se a Newton e seus seguidores) como
algo puramente relativo, do mesmo modo que o tempo, ou seja, como uma ordem de coexistências, assim
como o tempo é uma ordem das sucessões. Isso porque o E. caracteriza, em termos de possibilidade, uma
ordem de coisas que existem ao mesmo tempo, porquanto existem juntamente, sem entrar em seus modos
de existir" (III'' Lettre à Clarke, 4; Op., ed. Erdmann, p. 752). A definição de Leibniz foi retomada por
Wolff (Ont, § 389) e por Baumgarten (Met, § 239). O próprio Kant defende-a nas primeiras obras e só
resolve abandoná-la em 1768, em Sobre o primeiro fundamento da distinção das regiões no espaço.
Nessa obra ele declara insuficiente a concepção do E. como ordem de coexistências: "As posições das
partes do E. em relação entre si pressupõem a região segundo a qual elas estão ordenadas nessa relação;
entendida do modo mais abstrato, a região não consiste na relação que uma coisa tem com outra no E. (o
que, propriamente, constitui o conceito de posição), mas na relação do sistema dessas posições com o E. cósmico absoluto". Todavia, a concepção posicionai do E. nunca é de todo abandonada
pelo pensamento filosófico posterior: parece pressuposta nas teorias idealistas do E. (v. mais abaixo), pelo
que se pode extrair do caráter genérico e confuso dos conceitos empregados, e foi defendida com energia
e lucidez por Heidegger. Este afirmou que "nem o E. está no sujeito nem o mundo está no E.", mas que o
próprio sujeito, ou seja, a realidade humana, o ser-aí, é espacial em sua natureza. E é espacial porque,
como ser-no-mundo, em sua relação com as coisas, é dominado pela proximidade ou pela distância das
coisas utilizáveis, por um conjunto de relações possíveis que "a intuição formal" do E. só faz evidenciar
nas várias disciplinas geométricas (Sein und Zeit, §§ 23-24).
b) A segunda concepção de E. considera-o como o recipiente que contém os objetos materiais. Essa
concepção nasceu com o atomismo antigo, e sua tese fundamental é a existência do E. vazio e de sua
infinidade. Demócrito já expressara 'essas idéias; afirmava que os átomos se movem no E. vazio e que
esse E. é infinito (Fr, 38-40, Diels). Epicuro herdou essa concepção (Carta a Heródota, cf. Dióg. L., X,
67), que era defendida por Lucrécio Caro (De rer. nat, I, pp. 950 ss.). A mesma concepção de E. era
compartilhada pelos estóicos, em particular por Zenão (DIÓG. L., VII, 140).
Obliterada durante muito tempo pela concepção aristotélica, essa doutrina volta a apresentar-se no
Renascimento. Telésio afirma que o E. deve poder ser receptáculo de qualquer coisa, de tal modo que,
estejam as coisas dentro dele ou distantes dele, ele permaneça idêntico e acolha prontamente todas as
coisas que se sucedem nele, sendo ao mesmo tempo tão grande quanto as coisas que nele acham lugar. O
E., portanto, é infinito e incorpóreo: a existência do vazio é um fato de experiência (De rer. nat, I, 25). A
infinidade do E. era definida por Giordano Bruno no mesmo sentido (De 1'infinito, universo e mondi, I).
Essa concepção de E. prevaleceu na ciência graças a Newton, que dizia: "O E. absoluto, por sua própria
natureza, sem relação com algo exterior, é sempre semelhante e imóvel. O E. relativo é a dimensão móvel
ou a medida do E. absoluto; nossos sentidos o determinam por sua posição em relação aos corpos, sendo
muitas vezes confundido com o E. imóvel; essa é a dimensão de um subterrâneo, de um E. aéreo
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celeste, determinado pela sua posição em relação à terra. O E. absoluto e o relativo são idênticos em
forma e grandeza, mas não permanecem sempre numericamente os mesmos. Porque, p. ex., se a terra se
move, um E. do nosso ar, que, relativamente à terra, continua o mesmo, em certo momento fará parte do
E. absoluto que o ar atravessa e, em um outro, será uma outra parte do mesmo E." (Phi-losophiae
naturalis principia mathematica, 1687, I, def. 8 scol.). A polêmica de Leibniz contra essa doutrina não
conseguiu impedir seu êxito. Quase um século depois, Euler dizia: "Suponhamos que todos os corpos que
se acham agora no meu quarto, inclusive o ar, sejam aniquilados pela onipotência divina. Obteremos
então um E. que, apesar de ter o mesmo comprimento, a mesma largura e a mesma profundidade de antes,
já não contém nenhum corpo. Portanto, aí está, no mínimo, a possibilidade de uma extensão que não é um
corpo. Semelhante E. sem corpo é denominado vácuo; o vácuo, portanto, é uma extensão sem corpo"
(Lettres â une princesse d'Allemagne, 69, de 21-X-1760; trad. it., p. 228). Já se viu que a noção
newtoniana de E. acabou prevalecendo (talvez por influência do próprio Euler) na doutrina de Kant.
Também prevaleceu em toda a física do séc. XIX, apesar das freqüentes críticas à parte referente ao E.
absoluto. Clerk Maxwell afirmava que "todo o nosso conhecimento tanto do tempo quanto do E. é
essencialmente relativo" (.Matter and Motion, Dover publ., p. 12). Mach falava da "monstruosidade
conceituai do E. absoluto" (Die Mechanik in ihrer Entwicklung, 1883; T ed., 1921, p. X). Essa teoria do E.
foi, porém, assumida ou pressuposta pela física até Einstein.
c) A terceira concepção fundamental do E. é a de Einstein, que prevalece na física contemporânea. À
primeira vista, principalmente ao se considerar só a relatividade restrita, a concepção de Einstein constitui
um retorno à teoria clássica do E. como posição ou lugar. Diz Einstein a respeito: "Nosso E. físico, do
modo como o concebemos por meio dos objetos e de seu movimento, tem três dimensões e as posições
são caracterizadas por três números. O instante em que se verifica o evento é o quarto número. A cada
evento correspondem quatro números determinados e um grupo de quatro números corresponde a um
evento determinado. Portanto, o mundo dos eventos constitui um contínuo quadridimensional"
(EINSTEIN-INFELD,
The Evolution of Physics, III; trad. it., p. 217). Nesse conceito de E., a novidade parece ser constituída
exclusivamente pelo acréscimo da coordenada temporal às coordenadas com que Descartes definia o E.
Mas na relatividade geral, o afastamento dos conceitos tradicionais é mais radical. Aí não tem mais
sentido falar de E. sem considerar o campo, que é usado para representar os fenômenos físicos. Tanto os
fenômenos inerciais quanto os gravitacionais são explicados por mudanças na estrutura métrica do
campo: "Em vez de um sistema de referência rígido e fixo (observou-se com justeza), agora se tem a
oportunidade de constatar as variações na curvatura do E. ou, o que dá no mesmo, o uso de critérios não
euclidianos de medida e de cálculo em diferentes partes do campo como um todo, segundo as variações
na densidade da matéria e da energia. Portanto, sem levar em conta o campo, não há nada e, contrariando
até mesmo a relatividade restrita, nem sequer o E. vazio. Nesse sentido, o campo, segundo Einstein,
substitui como concepção unitária tanto a matéria (ponderável ou imponderável) quanto o E." (M. K.
MUNITZ, Space, Time and Creation, 1957, VII, I; trad. it., pp. 112-13). Paradoxalmente, portanto, a
concepção mais atualizada do E. não é senão a renúncia implícita ao conceito de E. e o encaminhamento
para o uso de outros conceitos, menos vinculados a abstrações tradicionais e mais capazes de descrever os
resultados da observação.
2- O problema da realidade do E. deu lugar a três diferentes teses: a) da realidade física ou teológica do
E.; b) da subjetividade do E.; c) de que o E. é indiferente ao problema da realidade ou irrealidade.
d) A tese da realidade física ou teológica do E. é típica da filosofia antiga. Concebendo o E. como lugar
ou posição ou como recipiente, os antigos acreditavam na realidade do E. e consideravam-no um
elemento ou uma condição do mundo ou mesmo um atributo de Deus. Enquanto para Platão, para
Aristóteles e para os epicuristas o E. é constituinte do mundo, para os neoplatônicos é Deus. Essa
concepção é atribuída por Sexto Empírico aos peripatéticos: "Parece que, para os peripatéticos, o primeiro
Deus é o lugar de todas as coisas. De fato, segundo Aristóteles, o primeiro Deus é o limite dos céus... E
uma vez que o limite dos céus é o lugar de todas as coisas dentro dos céus, Deus será o lugar de todas as
coisas" (Adv. math.,
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II, 33). A filosofia judaico-alexandrina adota essa concepção, que reaparece nos livros da Cabala. No
séc. XVII, foi aceita por Campanella (De sensu rerum, I, 12), por Henry More (Enchiridion
metaphysicum, I, 8) e por Spi-noza, que concebeu a extensão como um atributo de Deus e afirmou,
portanto, que "tudo o que é, é em Deus" (Et., I, 15). O próprio Newton falou do E. como sensorium, órgão
mediante o qual Deus move as coisas (Opticks,
III, q. 31; Dover publ., p. 403), conceito criticado longamente por Leibniz em suas cartas a Clarke, mas
aceito no séc. XVIII por vários escritores, inclusive o próprio Clarke. Como última manifestação desse
ponto de vista pode-se considerar a doutrina de S. Alexander, segundo a qual o E. e o tempo são a
substância do universo e de Deus, estando entre si na mesma relação em que o corpo está com o espírito.
Desse ponto de vista, o E. seria o "corpo" da realidade, logo de Deus, que está no ápice da realidade
(Space, Time and Deity, 1920).
b) A tese da subjetividade do E. foi apresentada pela primeira vez por Hobbes, que definiu o E. como "a
imagem da coisa existente enquanto existente, ou seja, não se considerando dela outro acidente que não
seu aparecer fora do sujeito imaginante" (De corp., VII, § 2). A análise que Locke fez do E. como idéia
complexa de modo também tem como pressuposto a redução do E. a uma idéia (Ensaio, II, 13, 2); essa
redução é ainda mais radical em Berkeley, pela sua oposição ao conceito newtoniano de E.: "A
consideração filosófica do movimento não implica a existência de um E. absoluto distinto do que é
percebido pelos sentidos e relativo aos corpos: está claro que tal coisa não pode existir sem o espírito,
considerando os mesmos princípios que demonstram tese semelhante sobre todos os outros objetos dos
sentidos" (Principies of Human Knowledge, I, 116). Com base no mesmo pressuposto, Hume afirmava
que "a idéia de E. ou extensão não é mais que a idéia de pontos visíveis ou tangíveis, distribuídos em
certa ordem", e que portanto "não podemos fazer idéia do E. ou do vácuo onde nada haja de visível ou
tangível" (Treatíse, I, II, 5, ed. Selby-Bígge, p. 53).
O empirismo havia, assim, afirmado a subjetividade do E., reduzindo-o a um conceito empírico, a uma
idéia derivada de sensações. Leibniz e seus seguidores, por outro lado, considerando o E. como "a ordem
das coexistências", faziam a mesma redução subjetivista, mas chegavam a considerar o E. como um conceito
discursivo, universal, que exprime as relações das coisas entre si. A essas duas formas de subjetividade,
Kant contrapôs a subjetividade transcendental do E., segundo a qual ele é a condição da percepção
sensível. "O E. é uma representação necessária apriori, que serve de fundamento para todas as intuições
externas. Nunca se pode formar a representação da inexistência do E., ainda que se possa perfeitamente
pensar que no E. não há objeto algum. O E. deve ser, portanto, considerado como a condição da
possibilidade dos fenômenos, e não como uma determinação dependente deles; é uma representação
apriori que está necessariamente no fundamento dos fenômenos externos" (Crít. R. Pura, § 2). Nesse
sentido, o E. não é nem conceito nem percepção, mas "intuição apriori" ou "intuição pura", ou seja,
condição de qualquer intuição externa possível. Assim entendido, corresponde exatamente ao "E.
absoluto" de Newton, que este entendia como sensorium de Deus; para Kant é como o sensorium do
sujeito cognoscente, isto é, a condição absoluta da possibilidade dos objetos externos.
Na filosofia moderna e contemporânea a tese da subjetividade do E. assume a forma do caráter aparente
ou ilusório do E. Idealismo e espíritualismo insistem nessa tese. Hegel afirmava que "o E. é mera forma,
uma abstração, uma abstração da exterioridade imediata" (Ene, § 254): o que, todavia, não o impedia de
procurar uma demonstração racional da necessidade das três dimensões do E. (Ibid., § 255). O idealismo
de inspiração hegeliana considera o E. simples, aparência (cf. BRADLEY, Appearance and Reality, 1893;
GENTILE, Teoria generale dello spirito, 1916, cap. IX). E o espíritualismo segue o mesmo caminho
quando, com Berg-son, vê o E. como a decadência, a dispersão ou a exteriorização da duração real da
consciência (Essai sur les données immédiates de Ia cons-cience, 1889; Évol. créatr., 3
â
ed., 1934, pp.
219 ss.). Teses análogas a essas foram e são freqüentemente repetidas na filosofia contemporânea.
c) A terceira alternativa que o problema da realidade do E. deixou aberta é a rejeição do problema e a
afirmação de que o E. não é real nem irreal, embora possa, em alguma das suas determinações métricas,
ser empregado na descrição da realidade. Esse ponto de vista come-
ESPAÇO VITAL
352
ESPÉCIE
çou a amadurecer com a descoberta das geo-metrias não euclidianas, quando se percebeu a dificuldade de
saber se uma dessas geometrias está incorporada na estrutura física do mundo. Embora os matemáticos se
tenham pronunciado algumas vezes em favor da resposta positiva a essa questão, optando em sua maioria
pela geometria euclidiana, o caráter provisório e parcial dessas respostas mostra, mais do que qualquer
outra coisa, a impossibilidade de resolver a questão e induz à adoção do ponto de vista que prescinde
dela. Pode-se então afirmar que só motivos de oportunidade científica sugerem o uso de um esquema
geométrico particular para a descrição de determinado campo de fenômenos. A esse respeito M. K.
Munitz diz o seguinte: "Poderá ser mais conveniente e fecundo usar um esquema métrico e não outro,
mas não podemos dizer que são os fatos que nos levam a fazer isso. O problema é o seguinte: a adoção de
um valor particular para a cur-vatura, tomado em conjunção com o resto da teoria, permite-nos fazer
inferências corretas a partir de dados fatos para outros fatos? Se a exatidão dos fatos observáveis inferidos
for maior quando estabelecidos por uma teoria com sua métrica própria e não por outra, poderemos dizer
que 'a métrica do universo é assim e assim'. Esta última expressão não passa de um modo sumário de
aludir à superioridade relativa de dada teoria ou modelo do universo" (Space, Time and Creation, VII, §
4; trad. it., p. 133).
ESPAÇO VITAL. V. CAMPO.
ESPÉCIE (gr. elôoç; lat. Species; in. Kind, Species; fr. Espèce, ai. Ari, Species; it. Speciê). 1. Conceito
que é parte ou elemento de outro conceito. Nesse sentido, essa palavra foi co-mumente empregada por
Platão (cf Sof, 235 d, Teet., 178 a etc), por Aristóteles (Met, X, 7, 1057 b 7; Cat. 2 b 7, etc.) e ilustrada em
Isagoge de Porfírio, que lhe dá a seguinte definição: "A E. é o que se situa sob o gênero e a que o gênero é
atribuído essencialmente". E acrescenta: "A E. é o atributo que se aplica essencialmente a uma pluralidade
de termos que diferem especificamente entre si", observando-se, porém, que esta última definição só se
aplica à "E. especialíssima", que precede imediatamente o indivíduo, como p. ex. o conceito de homem
(Isag., 4, 10 ss.). Nesse sentido o conceito de E. permaneceu inalterado em toda a lógica tradicional, até
que, com a afirmação da lógica matemática, foi substituído pelo conceito de classe (v.).
No domínio da biologia, durante algum tempo esse termo teve um significado correspondente ao descrito,
entendendo-se por E. um tipo biológico bem definido por características hereditárias e subordinado a um
outro tipo mais amplo (gênero). Mas na biologia contemporânea os conceitos de gênero e espécie
deixaram de referir-se aos significados tradicionais, e por E. entende-se simplesmente uma classe de
indivíduos cujos acasalamentos produzem indivíduos férteis, o que não ocorre com híbridos nascidos de
acasalamentos entre indivíduos pertencentes a E. diferentes (C. PIN-CHER, Evolution, 1950, p. 21;
KALMUS, Variation and Heredity, 1957, p. 29).
2. O mesmo que idéia no sentido platônico (v. IDÉIA).
3. O mesmo que forma no sentido aris-totélico (v. FORMA).
4. Em relação ao significado 3 e na linguagem da escolástica medieval, a E. é intermediária do
conhecimento, ou seja, o objeto próprio da sensibilidade ou do intelecto, enquanto forma que a
sensibilidade ou o intelecto abstrai das coisas. Essa doutrina foi expressa com toda a clareza por S.
Tomás, que, comentando o trecho do De anima (III, 8, 431 b 21), em que Aristóteles diz que "a alma é de
certo modo todas as coisas", observa: "Se a alma é todas as coisas, é necessário que ela seja as próprias
coisas, sensíveis ou inteligíveis — no sentido da afirmação de Empédocles, de que conhecemos a terra
com a terra, a água com a água, etc. — ou então que ela seja as espécies. Mas por certo a alma não é a
coisa, pois, p. ex., na alma não há as pedras, mas a E. da pedra". Ora, a E. é a forma da coisa. Logo, "o
intelecto é a potência receptiva de todas as formas inteligíveis e o sentido é a potência receptiva de todas
as formas sensíveis" (cf. também S. Th., I, 2. 84 a, 2). A doutrina da E. ou, como também se diz, da
similitude, como intermediária entre o objeto e a potência cognoscitiva humana, predomina durante o
período clássico da escolástica: é aceita por Boaventura (In Sent., II, d. 39, a. 1, q. 2) e por Duns Scot
(Op. Ox., I, d. 3, q. 7, n. 2, 3, 20), mas posta de lado pela escolástica do séc. XIV. Durand de Ppurçain (In
Sent., II, d. 3, q. 6, n. 10) e Pedro Aureolo (In Sent., I, d. 9, a. 1) negam peremptoriamente a existência da
E. e afirmam que o objeto do conhecimento é a própria coisa. Essa doutrina é veementemente ratificada
por Ockham com o argumento de que, se a E. fosse o objeto imediato do conheci-
ESPECIFICAÇÃO
353
ESPECULAÇÃO
mento, o conhecimento não seria conhecimento do objeto, mas da sua imagem, assim como a estátua de
Hércules não levaria a conhecer Hércules, nem permitiria julgar da sua semelhança com ele se não se
conhecesse o próprio Hércules (In Sent., II, q. 14, T). O ponto de vista que permitiu que esses escolásticos
abandonassem a noção de E. foi o da intenciona-lidade (v.) do conhecimento, segundo a qual o ato de
conhecer é uma relação com o objeto em pessoa. Todavia, a doutrina cartesiana da idéia como objeto
imediato do conhecimento pode ser considerada, sob certos aspectos, a retomada da noção escolástica da
E. (v. IDÉIA).
ESPECIFICAÇÃO (in. Specification- fr. Specification; ai. Spezifikation; it. Specificazioné). Kant
chamou de "lei transcendental de E." a regra que "impõe ao intelecto procurar sob todas as espécies que
se nos deparam certo número de subespécies e, para cada diferença, certo número de diferenças menores"
(Crít. R. Pura, Apêndice à Dialética transcendental). Essa lei tem o seu correspondente simétrico na lei
da homogeneidade'(v.), segundo a qual o múltiplo deve ser continuamente posto sob gêneros superiores;
ambas as leis confluem na lei da afinidade (v.) de todos os conceitos, que permite a passagem de um
conceito para o outro (Ibid.). O princípio da E. foi chamado por Hamilton de "tei de heterogeneidade" (v.
HOMOGENEIDADE).
Kant falou também de uma "lei da E. da natureza", segundo a qual a natureza especifica suas leis gerais
segundo o princípio de finalidade relativa à nossa faculdade de conhecer. Mas essa lei pertence à esfera
do juízo reflexivo, ou seja, não faz parte da natureza, mas simplesmente prescreve uma regra para a sua
interpretação (Crít. do Juízo, Intr., § V).
ESPECULAÇÃO (gr. Becopía; lat. Speculatio; in. Speculation-, fr. Spéculation; ai. Spekulation; it.
Speculazione). O termo tem dois significados: le
contemplação ou conhecimento desinteressado; 2-
conhecimento ultra-empírico ou sem base na experiência. No primeiro significado, a E. se contrapõe à
ação; no segundo, à experiência, ou ao conhecimento "natural".
l
e
Os antigos entenderam por E. a atividade cognoscitiva não utilizada para um fim qualquer, mas como
fim em si mesma. O conceito de E., nesse sentido, foi fixado por Aristóteles, que qualificou de
especulativas (ou teoréticas) as ciências naturais, porquanto "consideram a substância que tem em si
mesma o princípio
do movimento e do repouso". Com efeito, uma ciência desse gênero não é prática nem produtiva. A
atividade produtiva tem princípio na mente ou na habilidade do artista, e a atividade prática na decisão de
quem age. "Logo, se todo pensamento é prático, produtivo ou teórico as ciências naturais são
especulativas e consideram o que tem em si capacidade de mover-se" (Mel, VI, I, 1025 b 18). O objeto
das ciências especulativas é o necessário, já que só o necessário, que não pode ser diferente do que é, não
dá o que fazer ao homem. E só na E. o homem encontra felicidade. "Quanto maior a E., maior também a
felicidade, e encontra-se mais felicidade naquilo em que há maior especulação. Isso não acontece por
acaso, mas pela própria natureza da E., que tem valor em si mesma, de sorte que a felicidade é uma
espécie de E." (Et. nic, X, 8, 1178 b 28).
Essa exaltação da E., que constitui um dos modos fundamentais de entender a função da filosofia (v.), foi
herdada sobretudo pelo misticismo neoplatônico. Plotino reduziu todas as atividades à E. e afirmou que a
própria geração das coisas naturais é E.: E. de Deus (Enn., III, 8, 5). O misticismo medieval identifica E.
com contemplação, que é o grau mais alto da ascensão mística antes do êxtase (cf. RICARDO de S. VÍTOR,
De contemplatione, I. 3), mas S. Tomás a identifica com a meditação, que é o grau anterior (S. Tb., II, 2,
q. 180, a. 3, ad 2Q
). Em todos esses usos, todavia, o significado de contemplação desinteressada é
predominante e fundamental.
2° Kant introduziu um novo significado do termo, que é o predominante no uso moderno: "O
conhecimento teórico é especulativo quando se refere a um objeto ou ao conceito de um objeto a que não
se pode chegar com nenhuma experiência. A E. contrapõe-se, por isso. ao conhecimento natural, que só se
refere a objetos ou predicados que podem ser dados em uma experiência possível" (Crít. R. Pura, O ideal
da razão pura, seç. VII). Esse significado permaneceu inalterado na tradição, mesmo porque Hegel
adotou-o, modificando seu sinal, ou seja, considerando autêntico apenas o conhecimento especulativo.
Chamou de especulativo ou positivo racional o terceiro momento da dialética, o da síntese, em que se tem
"a unidade das determinações na sua oposição". Essa unidade significa que "a filosofia nada tem a ver
com meras abstrações ou pensamentos formais, mas apenas com pensamentos concre-
ESPERANÇA
354
ESPIRITO
tos", ou seja, com pensamentos que são ao mesmo tempo realidades {Ibid., § 82). Além disso, é da
filosofia especulativa a demonstração da necessidade de seus objetos {Ene, § 9). Assim, em Hegel, o
adjetivo especulativo indica o ponto de vista que considera a realidade como racionalidade, a
racionalidade como real, e ambas como necessidade. O adjetivo que Kant empregava para designar o que
está além da experiência possível, portanto do conhecimento efetivo, é usado por Hegel para designar o
conhecimento efetivo que, como tal, está além da experiência e das separações que nesta aparecem.
Os significados de E. e de especulativo fixaram-se nessa alternativa. Entende-se por E. um conhecimento
que não encontra fundamento ou justificação na experiência ou na observação: por um lado, esse é um
motivo para declarar ilusório ou quimérico tal conhecimento, por outro (mas cada vez menos), motivo
para julgá-lo superior.
ESPERANÇA (in. Hope, fr. Esperance, ai. Hoffnung; it. Speranzd). 1. Uma das emoções fundamentais
(v. EMOÇÃO).
2. Uma das virtudes teologais (v. VIRTUDE).
ESPIRITISMO (in. Spiritism; fr. Spiritisme, ai. Spiritismus; it. Spiritismó). Crença em fenômenos
mentais ou naturais não explicáveis por métodos comuns ou científicos e que devem ser atribuídos à ação
de espíritos, sejam estes almas de pessoas mortas ou potências angélicas ou demoníacas (v. METAPSÍQLTCA).
ESPÍRITO (in. Mind, Spirit; fr. Esprit; ai. Geist; it. Spirito). Podem-se distinguir os seguintes
significados:
l
s Alma racional ou intelecto (v.) em geral; esse é o significado predominante na filosofia moderna e
contemporânea, bem como na linguagem comum.
2- Pneuma (v.) ou sopro animador, admitido pela física estóica, passando desta a várias doutrinas antigas
e modernas. É o significado originário do termo, do qual derivaram todos os outros. Esse significado
ainda permanece nas expressões em que E. significa "aquilo que vivifica". Kant usou o termo nesse
sentido em sua teoria estética: "No significado estético, E. é o princípio vivificante do sentimento. Mas
aquilo com que esse princípio vivifica a alma, a matéria de que se serve, é o que confere impulso finalista
à faculdade do sentimento e a insere num jogo que se alimenta de si mesmo e fortifica as faculdades de que resulta" {Crít. do Juízo, § 49; Antr., % 71 b). Foi com esse sentido que a palavra
E. permaneceu no uso corrente, em que às vezes se contrapõe a "letra", para indicar o que vivifica ou, sem
metáfora, o significado autêntico de alguma coisa. Nesse sentido, foi também empregada por
Montesquieu no título da sua obra, O E. das leis.
3
S
Substâncias incorpóreas, ou seja, anjos, demônios e almas dos mortos. Era nesse sentido que Locke
empregava a palavra spirit (reservando mind a E. no significado le
) e dizia: "Com exceção de algumas
pouquíssimas idéias que obtemos mediante a reflexão e tudo o que, a partir delas, podemos reunir a
respeito do Pai de todos os E., o eterno e independente autor deles, de nós e de todas as coisas, até mesmo
da existência de outros E., não temos informação segura a não ser por via de revelação" {Ensaio, IV, 3,
27). E Kant, em Sonhos de um visionário esclarecidos por sonhos da metafísica (1766), entendia Geist no
mesmo sentido: "E. é um ser dotado de razão. Não é, pois, um dom maravilhoso ver E., já que quem vê
homens vê seres dotados de razão. Mas prossigamos: esse ser que no homem é dotado de razão é apenas
uma parte do homem; e essa parte, que o vivifica, é um E." {Trãume eines Geistersehers, I, 1). Como
Locke, Kant é cético sobre a existência do E. nesse sentido e, em todo caso, julga impossível demonstrála. Também com esse sentido, a palavra E. permaneceu no uso corrente
(v. ANJOS; DEMÔNIO; ESPIRITISMO).
4
S
Matéria sutil ou impalpável que é a força animadora das coisas. Esse significado, derivado do
estoicismo, encontra-se com freqüência nos magos do Renascimento, sobretudo em Agripa {De oceulta
philosophia, I, 14) e em Paracelso {Meteor, pp. 79 ss.).
5
e
Em relação mais estreita com o significado le
, esse termo às vezes significa disposição (v.) ou atitude
(v.), como nas célebres expressões de Pascal "E. de geometria" e "E. de finu-ra" e em expressões
correntes como "E. religioso", "E. esportivo", etc.
Desses cinco significados, o único estritamente vinculado à problemática da filosofia moderna é o
primeiro. Foi Descartes quem introduziu e impôs esse significado. "Portanto, a rigor, não sou mais que
uma coisa que pensa, um E., um intelecto ou uma razão, termos cujo significado antes me era
desconhecido" {Méd., II). E na resposta às segundas objeções ele esclarece, em forma de definição, o
signifi-
ESPIRITO
355
ESPIRITO
cado do termo: "A substância na qual reside imediatamente o pensamento aqui é chamada de espírito.
Embora esse nome seja equívoco, porque às vezes é atribuído também ao vento e aos liquores
sutilíssimos, não conheço nenhum outro mais apropriado" (II Rép., def. VI). Embora nessa expressão de
Descartes a noção de substância sirva de intermediária entre o significado novo e o antigo (substância
incorpórea) do termo, seu uso em Descartes acaba por tomá-la equivalente a consciência. Substância
pensante, consciência, intelecto ou razão são, portanto, sinônimos de espírito. Locke, como se disse,
usava o termo mind no mesmo sentido (cf., p. ex., Ensaio, II, 1, 5). Leibniz dizia: "O conhecimento das
verdades necessárias e eternas é o que nos distingue dos simples animais e nos dota de razão e ciência,
elevando-nos ao conhecimento de nós mesmos e de Deus. É isso o que em nós se chama alma racional ou
E." (Monad., § 29). Berkeley, por sua vez, adotou esse termo e estabeleceu suas equivalências: "Esse ser
ativo e perceptivo é o que chamo de mind, spirit, soul (alma) ou myself (eu)" (Principies of Human
Knowledge, I, § 2). Hume entendia esse termo como alma, intelecto ou eu (Treatise, I, 4, 2, ed. SelbyBigge, p. 207). Essas equivalências mantêm-se constantes no uso posterior do termo: assim, os problemas
a que ele dá origem são os vinculados às noções de alma, consciência, intelecto, razão e eu. Nesses
verbetes, encontrar-se-á a indicação dos problemas que tiveram origem na noção de E. em suas diversas
especificações. Aqui basta recordar que alguns dos empregos paradoxais às vezes encontrados na filosofia
contemporânea se referem na realidade ao significado tradicional instituído por Descartes. Assim, quando
L. Klages contrapôs E. a alma, entendeu por E. o conjunto de atividades racionais, confrontadas com as
tendências instintivas representadas pela alma (Der Geist ais Widersacher der Seele, 1929). Por outro
lado, G. Santayana entendeu E. no sentido — também cartesiano — de consciência: "Por E. entendo não
só a intuição passiva implícita em ser dado de essência, mas também o entendimento e a crença que pode
acompanhar a presença da essência" (Scepticism and Animal Faith, cap. 26, Dover Publ., p. 272). De
resto, chega a ser supérfluo advertir que, na expressão "ciências do E.", difundida por Dilthey, entende-se
por E. a atividade racional do homem (v. CIÊNCIAS, CLASSIFICAÇÃO DAS).
Foi só com Hegel que se teve uma especificação diferente da noção de E., com as noções de E. objetivo e
E. absoluto. Se por E. subjetivo ele entende o E. finito, ou seja, alma, intelecto ou razão (E. no significado
cartesiano do termo) (Ene, § 386), por E. objetivo ele entende as instituições fundamentais do mundo
humano, quais sejam, direito, moralidade e eticidade, e por E. absoluto entende o mundo da arte, da
religião e da filosofia. Nessas duas concepções, o E. deixou de ser atividade subjetiva para tornar-se
realidade histórica, mundo de valores. Enquanto E. objetivo é o mundo das instituições jurídicas, sociais e
históricas que culmina na eticidade (que compreende as três principais instituições históricas: família,
sociedade civil e Estado), E. absoluto é o mundo da Autoconsciência, que se revela a si mesma nas
produções superiores, que são a arte, a religião e a filosofia (Ibid., §§ 486, 553). Para Hegel, as três
formas de E. sâo manifestações da Idéia, da Razão infinita, mas é só no E. objetivo e no E. absoluto que a
Idéia ou Razão se realiza plenamente ou chega à manifestação acabada ou adequada. Essas noções
caracterizam o idealismo romântico de inspiração he-geliana, que identificou E. com sujeito absoluto ou
eu universal, como o fez Gentile (Teoria generale dello S., 1920), ou com Conceito, em sua
universalidade ou concretude, que é a Razão absoluta, como o fez Croce (Lógica. 1920, pp. 26 ss.).
Mesmo fora do idealismo, todavia, a noção do E. objetivo, como mundo de instituições his-tórico-sociais,
de valores institucionalizados ou de formas de vida, foi acolhida e estudada. De fato, foi aceita por
Dilthey, que por ela entendeu "a conexão estrutural das unidades vivas, que continua nas comunidades" e
criticou o caráter absoluto e dogmático dessa noção em Hegel (Gesammelte Schriften, VII, p. 150; cf. P.
ROSSE, Lo storicismo tedesco contemporâneo 1956, pp. 104-105). Nesse sentido limitado, a noção foi
aceita por E. Spranger, que entendeu como ciência do E. a disciplina que cuida das formações
ultrapessoais ou coletivas da vida histórica (Lebensformen, 1914, p. 7). Foi aceita igualmente por N.
Hartmann, que considerou o E. objetivo como uma superestrutura que se eleva acima do mundo
orgânico. Ao E. objetivo pertenceriam todas as produções espirituais: letras, artes, técnicas, religiões,
mitos, ciências, filosofias, etc. Ele é o verdadeiro protagonista da história, segundo Hartmann (Das
Problem
ESPÍRITO NACIONAL
356
ESPIRITUAUSMO
desgeistigen Seins, 1931, P- 262). Acima do E. Objetivo, Hartmann situa o E. vivo, que seria a unidade do
E. objetivo e da consciência pessoal (Jbid., p. 259). Por certo Hartmann ainda está muito próximo da
inspiração hegeliana. Mas o caráter impessoal e objetivo do E. também é ressaltado por Dewey, que parte
de pressupostos filosóficos diferentes: "Toda a história da ciência, da arte e da moral demonstra que o E.
que aparece nos indivíduos não é, como tal, E. individual. É em si mesmo um sistema de crenças, de
reconhecimentos e de ignorâncias, de aceitações e de recusas, de expectativas e de apreciações de
significados, e foi instituído sob a influência do costume e da tradição" (Experience and Nature, 1926, p.
218).
ESPÍRITO NACIONAL (in. National spirit; fr. Esprit d'une nation; ai. Volksgeist; it. Spirito nazionalê).
Conceito introduzido por Mon-tesquieu, que exprime o caráter fundamental da nação enquanto resultante
de uma multiplicidade de fatores. Diz Montesquieu: "Muitas coisas conduzem os homens: o clima, a
religião, as leis, os princípios de governo, as tradições, os costumes, os usos; a partir daí se forma o E.
geral, que é seu resultado" (Esprit des lois, 1748, XIX, 4). Em outro trecho, Montesquieu chama o E.
nacional de "alma universal'' (Mélanges inéríits, p. 160), mas, em todo caso, estava bem longe de
transformar esse conceito numa realidade em si. Esse passo foi dado por Hegel, que concebeu o E.
nacional como o verdadeiro sujeito da história: "O E. da história é um indivíduo de natureza universal
mas determinado: em geral, uma nação; o E. de que tratamos é o E. da nação. Os E. das nações
distinguem-se conforme a idéia que fazem de si mesmos, conforme a superficialidade ou a profundidade
com que compreenderam e aprofundaram o que é o E." (Pbilosophie der Geschichte, ed. Lasson, p. 36;
trad. it., I, p. 43). Periodicamente, determinado E. nacional assume o papel de "E. do mundo" (Weltgeist),
de guia e sujeito único da história. "O Weltgeist é o E. do mundo, tal como ocorre na consciência humana;
os homens estão para ele como as realidades singulares estão para a totalidade que as consubstancia. E
esse E. do mundo conforma-se ao E. divino, que é o E. absoluto. Assim como Deus é onipresente, está em
todos os homens, aparece na consciência de cada um, isso é o E. do mundo" (Jbid., p. 37; trad. it., p. 44).
A noção de E. do mundo foi
muito repetida e em geral se encontra em todas as concepções providencialistas de história (v.).
ESPIRITUALISMO (in. Spiritualism, Perso-nalism; fr. Spiritualisme, ai. Spiritualismus; it.
Spiritualismo). 1. Entende-se por esse termo toda doutrina que pratique a filosofia como análise da
consciência (v.) ou que, em geral, pretenda extrair da consciência os dados da pesquisa filosófica ou
científica. Essa palavra começou a ser utilizada no século passado por V. Cousin, que, no prefácio à
edição de 1853 de sua obra Du vrai, du beau et du bien, assim escrevia: "Nossa verdadeira doutrina,
nossa verdadeira bandeira é o E., essa filosofia tão sólida quanto generosa, que começa em Sócrates e
Platão, que o Evangelho difundiu pelo mundo, que Descartes colocou nas formas severas do pensamento
moderno, que no séc. XVII foi uma das glórias e das forças da pátria, que pereceu com a grandeza
nacional no séc. XVIII e que no início deste século Royer Collard reabilitou no ensino público, enquanto
Cha-teaubriand e Madame de Staèl a transportavam para a literatura e para a arte... Essa filosofia ensina a
espiritualidade da alma, a liberdade e a responsabilidade das ações humanas, as obrigações morais, a
virtude desinteressada, a dignidade da justiça, a beleza da caridade; e além dos limites deste mundo
mostra um Deus, autor e modelo da humanidade, que, depois de tê-la criado evidentemente para um
propósito excelente, não a abandonará no desenrolar misterioso de seu destino. Essa filosofia é a aliada
natural de todas as causas justas. Sustenta o sentimento religioso, favorece a verdadeira arte, a poesia
digna desse nome, a grande literatura; é o apoio do direito; rejeita igualmente a demagogia e a tirania,
etc". Esse programa do E., magistralmente delineado por Cousin, foi adotado por todas as numerosíssimas
formas assumidas por essa corrente filosófica na filosofia moderna e contemporânea. O apoio às "boas
causas", isto é, aos valores morais, políticos, sociais e religiosos da tradição, continuou sendo
preocupação constante do E., que, sob esse aspecto, tem o comportamento e a natureza de uma
escolástica (v.). O meio de realizar seu programa foi também indicado por Cousin: o recurso à
consciência, à reflexão interior ou introspecçâo para o inventário dos dados indispensáveis à especulação.
O recurso à consciência, como o próprio Cousin observava, vincula o E. ao idealismo romântico, mas este
não
ESPIRITUALISMO
357
ESPONTANEIDADE
compartilha com o idealismo romântico a identificação entre consciência finita (humana) e Consciência
infinita (divina). Como defensor da teologia cristã tradicional (a principal das suas "boas causas"), o E.
não admite essa identificação, que lembra panteísmo ou ateísmo (v.).
A figura principal do E. do século passado é Maine de Biran (1766-1824); a figura principal do E. do séc.
XX é Henri Bergson (1859-1941). O E. tem congenialidade com a filosofia francesa, que hauriu em
Montaigne e Pascal a prática de filosofar como interrogação da consciência. Mas em todos os países suas
manifestações são numerosas, conquanto não muito diferentes. As grandes figuras da filosofia do
risorgimento italiano, Galluppi, Rosmini, Gioberti e Mazzini, inspiraram-se na tradição espiritualista. Na
Alemanha, a obra de Hermann Lotze inspirou e conduziu a retomada do E., e a obra Microcosmo, desse
autor, pode-se dizer que constitui o epítome do E. oitocentista, defendido de forma inteligente contra o
cientificismo positivista. No mundo contemporâneo, a obra de Bergson renovou o E. ao ir ao encontro, na
medida do possível, das exigências da ciência e ao re-propor suas teses fundamentais sobre problemas
específicos, como liberdade, alma, vida, moralidade, religião, etc. Em todas as suas formas, porém, o E.
tem em comum algumas teses fundamentais", que derivam do seu conceito da filosofia como análise da
consciência e que podem ser assim resumidas:
I
a Negação da realidade do mundo externo, ou seja, o idealismo gnosiológico. Essa negação pode ser mais
ou menos condicionada ou indireta, mas em última análise é inevitável, porque uma realidade exterior à
consciência seria, por definição, inacessível a esta e contradiria o compromisso metodológico do espiritualismo. Logo, direta ou indiretamente, essa doutrina reduz a realidade a objeto imediato da consciência;
2
a
Conseqüente redução da ciência a conhecimento falso, imperfeito ou preparatório. Os espiritualistas
mais avisados, como Lotze e Bergson, reduziram a ciência a conhecimento preparatório.
3
a
Inventário, na consciência, de dados aptos a construir o mundo da natureza e o mundo da história em
seu caráter finalista ou providencial.
4
a
Inventário, na consciência — e, portanto, no mundo da natureza e da história —, de dados que
remontariam a Deus ou a um princípio
divino em alguma de suas especificações que se ajustasse à tradição teológica do cristianismo.
5
a
Defesa da tradição e das instituições em que a tradição se encarna, porquanto a tradição é interpretada
como manifestação no mundo humano do mesmo princípio divino que se revela na consciência. A defesa
das "boas causas", de que falava Cousin, na maioria das vezes se traduz em conservadorismo político.
2. O mesmo que espiritismo. Esse uso é mais comum em inglês, mas pode ser encontrado também em
italiano e em alemão (cf., p. ex., a obra de I. H. FICHTE, Der neue Spiritua-lismus, 1878).
ESPONTANEIDADE (lat. Spontaneitas-, in. Spontaneity, fr. Spontanéité, ai. Spontaneitát; it.
Spontaneitã). O adjetivo spontaneusrão passa da tradução latina de ÉKOÚOIOÇ, que significa livre.
Leibniz, que introduziu esse termo na linguagem filosófica moderna, indica corretamente sua origem e
significado: "Aristóteles definiu bem a espontaneidade ao dizer que uma ação é espontânea quando seu
princípio está no agente. Spontaneum est, cuiusprincipium est in agente' {Et. nic, III, 1, 1110 a 17). É
assim que nossas ações e nossas vontades dependem inteiramente de nós" {Teod., III, § 301). Em certo
trecho, ele distingue liberdade de E., dizendo que "a liberdade é a E. de quem é inteligente, de tal modo
que o espontâneo no animal ou em outra substância desprovida de inteligência eleva-se no homem ou em
outra substância inteligente e chama-se livre" (Op.. ed. Erdmann, p. 669)- Mas, levando em conta ou não
essa distinção, a E. não é mais que o conceito clássico da liberdade como causa sui. o que também deixa
clara a definição de Wolff. segundo a qual ela é "o princípio intrínseco para determinar-se a agir"
{Psychol. empírica. § 933). No mesmo significado, Kant falou do intelecto como "E. do conhecimento"
enquanto "faculdade de produzir por si representações" {Crít. R. Pura, Lógica transcendental, Introd., I).
Nesse sentido, opõe-se a receptividade (v.) ou passividade (v.) sendo sinônimo de atividade, termo hoje
mais freqüentemente empregado para indicar um processo ou uma mudança que é causa sui, ou seja, que
não tem causa fora de si. Também Heidegger entendeu a E. como liberdade; para isso, identificou-a com a
transcendência em que consiste a liberdade finita do homem: "A essência do si-mesmo (a ipseidadè), a
essência daquele si-mesmo que
ESQUEMA
358
ESSÊNCIA
jaz já no fundo de toda E., consiste na transcendência... Só porque constitui a transcendência, a liberdade
pode revelar-se, no Dasein existente, como modo particular de causalidade, isto é, como autocausalidade"
{Vom Wesen des Grundes, 1929, III; trad. it., p. 65).
ESQUEMA (gr. o%fj(i,a; in. Scheme, fr. Sché-ma; ai. Schema; it. Schemd). No significado simples de
forma ou figura, essa palavra é empregada comumente pelos filósofos. Foi Kant quem deu sentido
específico a esse termo, entendendo com ele o intermediário entre as categorias e o dado sensível; esse
intermediário teria a função de eliminar a hetero-geneidade dos dois elementos da síntese, sendo geral
como a categoria e temporal como o conteúdo da experiência. Nesse sentido o E. ou, mais precisamente,
o E. transcendental, é "a representação de um procedimento geral graças ao qual a imaginação oferece
sua imagem a um conceito" {Crít. R. Pura, Anal. dos Princ, cap. I). Kant distingue vários tipos de E.,
segundo os quatro grupos de categorias, e inclui neles o número (E. da quantidade) e a coisalidade (E. da
qualidade). Em geral, os E. são determinações do tempo e constituem, por isso, fenômenos ou conceitos
sensíveis de objetos de acordo com uma categoria determinada Ubid., Anal. dos Princ, cap. I). O E. foi
entendido por Schelling de modo semelhante, distinguindo-se de imagem (em relação à qual é mais geral)
e de símbolo; para Schelling, E. era a "a intuição da regra segundo a qual o objeto pode ser produzido",
esclarecendo-se essa noção com o exemplo do artífice que deve criar um objeto de forma determinada e
em conformidade com um conceito {System des transzendentalen Idealismus, 1800, III, cap. II, 3
a
época;
trad. it., p. 183). Esse significado atribuído por Kant e Schelling é o único significado técnico dessa
palavra, que às vezes ainda reaparece (cf., p. ex., LEWIS, An Analysis of Knowledge and Valuation, p.
134). Fora dele, esse termo significa simplesmente modelo, imagem geral, forma (como ocorre, p. ex., em
BERGSON, Matièreet mémoire, pp. 130 ss.; Énergie spirituelle, p. l6l; La pensée et le mouvant, p. 216) ou
projeto geral.
ESQUEMATISMO (gr. axr|M-Crao-Lióç; in. Schematism-, fr. Schématisme, ai. Schematis-mus; it.
Schematismó). 1. Configuração ou estrutura. Esse é o significado comum do termo grego, a que Bacon se
referiu quando falou do E. latente como de um dos dois aspectos fundamentais dos fenômenos naturais (o outro é o processo latente ou processo para a forma). Por
latente Bacon entendeu a configuração ou estrutura dos corpos considerados es-taticamente {De augm.
scient, II, 1), de sorte que o estudo do E. foi comparado por ele ao que é a anatomia para os corpos
orgânicos {Nov. org., 11, 7).
2. Kant entendeu por E. "comportamento intelectual por esquemas" {Crít. R. Pura, Anal. dos Princ, cap.
I), e Schelling usava essa palavra em sentido análogo {System des transzendentalen Idealismus, III, cap.
II, 3
a
época). Sobre a doutrina kantiana do E., cf. E. PACI, "Critica dello schematismó trascendentale" em
Rivista di Filosofia, 1955, n. 4; 1956, n. 1.
ESQUERDA HEGELIANA (in. Hegelian left; fr. Gaúche hegélienne, ai. Hegelsche Linke, it. Sinistra
hegeliand). Enquanto a direita hege-liana (v.) é a escolástica do hegelianismo, a E. hegeliana tende a
contrapor à doutrina de Hegel os traços ou características do homem que nela não foram adequadamente
reconhecidos. No plano religioso, essa tendência abre caminho para a crítica radical dos textos bíblicos e
para a tentativa de reduzir a mito toda a doutrina da religião (David Strauss, 1808-74). A religião era
considerada por Ludwig Feuerbach (1804-72) como "a autoconsciência do homem, ou seja, como a
projeção na divindade do que o homem quer ser". No plano histórico-político, a E. hegeliana contrapôs à
concepção hegeliana da história como racionalidade absoluta a interpretação materialista, que considera a
história em função das necessidades humanas (K. MARX, 1818-83; F. ENGELS, 1820-95) (v. MATERIALISMO HISTÓRICO).
ESSÊNCIA (gr. "ri ecmv; lat. Essenta-, in. Essence, fr. Essence, ai. Wesen; it. Essenzd). Por este termo,
entende-se Em geral qualquer resposta à pergunta: o quê? P. ex., nas expressões "Quem foi Sócrates? Um
filósofo", "O que é o açúcar? Uma coisa branca e doce", "O que é o homem? Um animal racional", as
palavras "um filósofo", "uma coisa branca e doce", "um animal racional" exprimem a E. das coisas a que
se faz referência nas respectivas perguntas. Algumas dessas respostas limitam-se a indicar uma qualidade
do objeto (p. ex., a de ser branco e doce), ou um caráter (como o de ser filósofo) que o objeto também
poderia não ter. Outras, como p. ex. a que afirma que o homem é um animal racional, parecem indicar
algo a mais, um caráter que qualquer coisa chamada
ESSÊNCIA
359
ESSÊNCIA
"homem" não pode não possuir e que, por isso, é um caráter necessário do objeto definido. Nesse último
caso, a resposta à pergunta o quê? não enunciou simplesmente a E. da coisa, mas sua E. necessária ou sua
substância, e pode ser assumida como sua definição. Portanto, deve-se distinguir: ls
a E. de uma coisa,
que é qualquer resposta que se possa dar à pergunta o quê? 2
a
) a E. necessária ou substância, que é a
resposta (à mesma pergunta) que enuncia o que a coisa não pode não ser e que é o porquê da coisa, como
quando se diz que o homem é um animal racional, pretendendo-se dizer que o homem é homem porque é
racional.
Os fundamentos que expusemos foram estabelecidos pela primeira vez por Aristóteles, que é o fundador
da teoria da E., assim como é fundador da teoria da substância. É verdade que Aristóteles encontrava os
precedentes dessa teoria em Platão, que por sua vez a atribuía a Sócrates. "Enquanto eu te pedia que me
defi-nisses a virtude inteira", censura Sócrates a Mênon, "tu evitas dizer-me o que ela é e afirmas que toda
ação é virtude, se realizada com uma parte de virtude, como se tu já houvesses dito o que é a virtude na
sua inteireza e eu devesse reconhecê-la mesmo depois de a reduzires a cacos" (Men., 79 b). Nessas
palavras, exigir que Mênon diga o que é a virtude em sua inteireza é exigir que ele enuncie a E.
necessária, ou o que a virtude não pode não ser em qualquer circunstância. É a isso, exatamente, que
Aristóteles dará o nome de substância. Mas nem toda E., ou seja, nem toda resposta à pergunta o quê? é
uma definição desse tipo. Diz Aristóteles: "Quem indica a E. ora indica a substância, ora uma qualidade,
ora uma de outras categorias. Quando, referindo-se a um homem, se diz que ele é um homem ou um
animal, entende-se sua E. como substância. Mas quando, referindo-se à cor branca, diz-se que é branca ou
é uma cor, entende-se a E. como qualidade. Igualmente, quando se faz referência à grandeza de um
côvado, afirmando que ela é a grandeza de um côvado, entende-se que sua E. é quantidade. O mesmo se
diga nos outros casos" (Top., I, 9, 103 b 27). Em outro trecho, Aristóteles contrapõe nitidamente a E.
substancial à E.: "O enunciado sempre se refere a alguma coisa, assim como a afirmação, e é sempre
verdadeiro ou falso; mas o intelecto não é assim, sendo verdadeiro quando enuncia a E. segundo a E.
substancial, e não verdadeiro quando a enuncia relativamente a alguma coisa"
(De an., III, 6, 430 b 26). Com isso, ele não põe no mesmo plano todas as respostas que podem ser dadas
à pergunta "o quê?" Se à pergunta "O que és?" um homem responde "músico", sua resposta não exprime
realmente o que ele é por si mesmo, sempre e necessariamente, ou seja, na sua substância. De fato, ele
poderia muitíssimo bem não ser músico, e, havendo começado a sê-lo, pode deixar de sê-lo. Mas, se
responder que é "um animal racional", então estará expressando o que não pode não ser ou o que é
necessariamente como homem. Exprime, portanto, o que Aristóteles chama de to ti en einaiiquod quid
erat esse), que é a substância considerada à parte de seu aspecto material (Met, VII, 7, 1032 b 14). Esta
segunda resposta é a única que pode valer como definição da E. do homem, ao passo que todas as outras
possíveis determinações de E. não valem como definição porque não dizem o que o homem é de per si ou
necessariamente (Ibid., VII, 4,1029 b 13). Também por isso só a E. necessária ou substância é o
verdadeiro objeto do saber ou da ciência. Sobre estes fundamentos Aristóteles assenta a estrutura
necessária da realidade, que é o objeto específico da teoria da substância (v.).
As considerações precedentes mostram que a teoria da E., embora diferente da teoria da substância, pode
conduzir a ela e ser considerada uma propedêutica dela. Portanto, não é de estranhar que, na evolução
histórica do termo, seu significado muitas vezes tenha sido idêntico ao de E. substancial ou substância.
Mesmo a linguagem comum, na qual freqüentemente se sedimenta o significado filosófico de uma longa
tradição, emprega esse termo quase exclusivamente no sentido de E. necessária. Deveremos então ter em
mente a distinção entre os dois significados já enunciados, que Aristóteles ilustrou perfeitamente: I
a
a E.
como resposta à pergunta "o quê?"; 2
a
a E. como substância.
l
e
O significado geral e fundamental desse termo pode ser admitido também por filósofos que não
compartilham a teoria da substância. Mas os estóicos, que não admitiram a teoria da substância, evitaram
(ao que saibamos) o termo "essência". Para eles, a definição não manifesta a E. de uma coisa, mas foi
definida (por Crisipo) como "resposta" (apódosis). Com isso, deram a entender que qualquer resposta à
pergunta "o quê?" pode ser considerada definição da coisa sobre a qual se faz a pergunta. Com efeito,
diziam que a descrição "é um discurso
ESSÊNCIA
360
ESSÊNCIA
que conduz à coisa através de suas pegadas" (DióG. L., VII, 1, 60), vendo assim nos enunciados
lingüísticos um modo de orientar-se em relação às coisas, e não a expressão da substância das coisas.
Desse ponto de vista, nem sequer se apresenta a possibilidade de passar da teoria da E. para a teoria da
substância. Uma proposição ou um enunciado qualquer nada exprime que possa referir-se à substância e,
portanto, declarar-se essencial ou acidental em relação a ela, dedutível ou não dedutivel dela, mas
exprime simplesmente um estado de fato, que, se é como se diz, verifica a proposição ou, se não é, tornaa falsa. P. ex., a proposição "é dia" é verdadeira se é dia; falsa, se não é dia (DIÓG. L., VII, 65). Em outros
termos, a relação predicativa (ou o significado predicativo de ser [v.]) deve ser entendida, desse ponto de
vista, como uma relação de fato que remete à identidade verificável entre o objeto significado pelo sujeito
e o objeto significado pelo predicado, e não como uma relação de inerência ou pertinência, ou como uma
relação qualquer que implique conexão substancial ou necessária. Quando, a partir do séc. XIII, começou
a prevalecer a orientação estóica da lógica, até então quase obliterada pela orientação aristotélica,
aparecendo o que se chamou de via moderna, ou terminista (em oposição à via antiga, aristotélica), o
significado da cópula foi explicitamente definido em oposição ao significado que fora atribuído à cópula
com base na teoria da substância. Assim, Alberto da Saxônia, depois de distinguir o significado
existencial do significado predicativo do verbo é, diz a propósito deste último: "Quando o verbo aparece
como terceiro constituinte [da proposição, isto é, como cópula dos outros dois], significa certa
composição do predicado em relação ao sujeito, graças à qual sujeito e predicado estão pelo mesmo
objeto" (Log., I, 6). Essa doutrina será repetida com freqüência durante o séc. XIV (cf., p. ex., BURIDAN,
Sophisrnata, cap. 2, concl. 10), mas é Ockham que mostra claramente seu significado, ao mesmo tempo
polêmico e positivo: "Proposições como 'Sócrates é homem' ou 'Sócrates é animal' não significam que
Sócrates tem humanidade ou animalidade, nem significam que a humanidade ou a animalidade está em
Sócrates, nem que Sócrates é homem ou animal, nem que o homem ou o animal é uma parte da substância
ou da essência de Sócrates, ou uma parte do conceito ou da substância de Sócrates. Significam apenas que
Sócrates é na
realidade um homem e é na realidade animal, não no sentido de que Sócrates é esse predicado 'homem' e
esse predicado 'animal', mas no sentido de que existe alguma coisa pela qual estão o predicado homem e o
predicado animal: como quando acontece que esses dois predicados estão por Sócrates" (Summa log., II,
2). Essa contraposição da teoria da suposição à teoria da inerência é apenas um aspecto da contraposição
da teoria da E. à teoria da substância. E tal contraposição na realidade é a mesma entre a formulação da
lógica estóica e a da lógica aristotélica: a primeira fundada na enunciabilidade das situações de fato ("É
dia" é verdadeiro se for dia); a segunda fundada na enunciabilidade da substância ("O homem é animal
racional" porque a racionalidade é a essência necessária do homem).
Depois disso, é fácil seguir as etapas principais dessa linha de interpretação da noção de E. na filosofia
moderna e contemporânea. O problema criado pela desvinculação entre teoria da E. e teoria da substância
é o da possibilidade de certa hierarquia entre as determinações se atribuídas a uma entidade qualquer,
visto que nenhuma dessas determinações pode ser considerada necessária. Parece, p. ex., que no
significado da palavra "homem" está muito mais implícita a "racionalidade" do que a determinação de
"bípede". Mas como pode isso acontecer se não existem determinações necessárias ou substanciais, se
não se pode dizer que a racionalidade é "inerente" ao homem? A resposta que a teoria da E. dá a este
problema está contida na noção de E. nominal. Hobbes, p. ex., diz que a E. é simplesmente "o caráter
(accidens) graças ao qual damos nome ao objeto" (De corp., 8, § 23). Essa doutrina é exposta e defendida
por Locke, graças a quem se torna predominante na filosofia do iluminismo. Locke diz que a E. "nada
mais é que a idéia abstrata à qual é associado o nome de uma espécie; por isso, tudo o que está contido
nessa idéia é essencial à espécie". E acrescenta: "Embora esta seja toda a E. das substâncias naturais que
conhecemos ou com a qual as distinguimos em tantas espécies eu lhe darei o nome particular de E.
nominal, para distingui-la da constituição real das substâncias, de que depende essa E. nominal
juntamente com todas as propriedades da espécie dada; por isso [a constituição das substâncias] poderá
ser chamada de E. real' (Ensaio, III, 6, 2). A E. real é a substância no genuíno sentido aristotélico,
ESSÊNCIA
361
ESSÊNCIA
como constituição ou forma que deveria explicariodas as qualidades ou caracteres de uma realidade e
mostrá-los em suas interconexões necessárias ilbid., 4, 9), mas, segundo Locke, tal E. real é inacessível ao
homem. A doutrina da E. nominal foi a base da lógica moderna. Stuart Mill repete-a dizendo: "Proposição
essencial é a proposição puramente verbal que afirma de uma coisa, sob um nome particular, só o que é
afirmado sobre ela pelo próprio fato de chamá-lo por esse nome, e que, por isso, não dá nenhuma
informação ou só a dá em relação ao nome, não à coisa" (Log., I, VI, § 4). Com poucas variantes, essa
doutrina é repetida na lógica contemporânea. C. I. Lewis diz: "Tradicionalmente, diz-se que todo atributo
exigido para a aplicação de um termo pertence à E. da coisa nomeada. Sem dúvida, não tem significado
falar da E. de uma coisa, a não ser relativamente ao fato de ela ser denominada por um termo particular"
(Analysis of Knowledge and Valuation, p. 41). E Quine, sublinhando a diferença entre a doutrina
aristotélica da E. como substância e a "doutrina do significado", observa: "Deste último ponto de vista,
pode-se concordar (ainda que só para discutir) que no significado da palavra 'homem' está implícita a
racionalidade, mas não o fato de ter duas pernas; contudo, pode-se considerar que ter duas pernas está
implícito no significado de 'bípede', ao passo que a racionalidade não. Do ponto de vista da doutrina do
significado, não faz sentido dizer de um indivíduo real, que é ao mesmo tempo homem e bípede, que sua
racionalidade é essencial e que o fato de ter duas pernas é acidental ou vice-versa. Para Aristóteles, as
coisas têm E., mas só as formas lingüísticas têm significado. Significado é aquilo que a E. se torna
quando se divorcia do objeto de referência e se casa com a palavra" (From a Logical Point ofView, II, 1).
Por outro lado, mesmo utilizando amplamente a noção de essência em sua obra A visão lógica do mundo
(onde, aliás, fala em "E. constitutivas"), Carnap reduz o significado de E. de um objeto ao critério de
verdade das proposições das quais os signos desse objeto possam fazer parte (Aufbau, § 161). Pode-se
dizer, portanto, que a teoria da E. sé resolve inteiramente na teoria do significado (v.). Por E. hoje não se
entende nada mais do que a regra do uso correto de um termo.
Embora não tenha em mira uma teoria do significado, o uso que Santayana fez desse termo E. vincula-se
a este seu significado. As E.
são os objetos da atividade cognoscitiva: constituem um reino infinito de que faz parte tudo o que pode
ser percebido, imaginado, pensado ou, de algum modo, experimentado; não existem em nenhum espaço
ou tempo, não têm substância nem lados ocultos, mas seu ser resolve-se em seu aparecer (The Realm of
Essences, 1927). As E. constituem um dos termos do dualismo metafísico de Santayana: o outro é a
existência, que ele identifica com a matéria. Mas justamente por se distinguirem da existência, e portanto
de qualquer forma de ação ou de energia, as E. não se concatenam entre si e não implicam nenhuma
necessidade nem nenhuma forma de ser, mas permanecem puros objetos de intuição. Esta doutrina das E.
de Santayana pode ser considerada a última utilização metafísica da teoria da essência.
2- A teoria da E. como substância pode ser caracterizada como a que restringe o uso da palavra E. para
indicar a E. necessária ou substancial. Aristóteles, como se viu, não identificara as duas coisas, embora se
possa dizer que para ele a "verdadeira" E. de uma coisa, que a define em seu modo de ser, é a E.
necessária. A identificação de E. com substância encontra-se já em Plotino, que a relaciona com o estado
das coisas no mundo inteligível, ou seja, no Nous divino, mas não só com esse estado. Diz: "Aqui, tudo
está na unidade, de tal modo que são idênticos a coisa e o porquê da coisa... Na verdade, o que poderia
impedir esta identidade e impedir que ela constitua a substância de cada ser? Assim é necessariamente,
como vê quem procura compreender a E. necessária" (Enn., VI, 7, 2). No séc. XIII, ao procurar esclarecer
a confusa terminologia com que a filosofia medieval até aquele momento traduzira os termos
aristotélicos, S. Tomás fixava os significados seguintes, que implicam a redução da doutrina da E. à da
substância: "E. significa algo que é comum a todas as naturezas em virtude das quais entes diferentes são
colocados em diferentes gêneros e espécies, assim como a humanidade é a E. do homem, e assim por
diante. Mas, como aquilo em virtude do que a coisa se constitui no gênero e na espécie é o que se entende
como a definição que indica o que a coisa é, os filósofos substituíram a palavra E. por qüididade, esse é o
motivo pelo qual o Filósofo, no VII da Metafísica, freqüentemente fala do quod quid erat esse, vale dizer,
aquilo em virtude do que alguma coisa é o que é." A
ESSÊNCIA e EXISTÊNCIA
qüididade, acrescenta S. Tomás, também é chamada de forma ou natureza, entendendo-se por este último
termo "a E. da coisa segundo a ordem ou a ordenação que ela tem para a sua própria atuação, porquanto
coisa nenhuma há desprovida de uma atuação própria. O termo qüididade, porém, é assumido como
aquilo que é significado pela definição; o termo E. significa que por ela e nela a coisa tem ser" {De ente
et essentia, 1). Esta última distinção não se mantém inalterada em S. Tomás, que, em outro trecho,
entende por E. "propriamente o que é significado pela definição" {S. Th., I, q. 29, a. 2). Mas durante
muitos séculos essas determinações tomistas serviram de fundamento para todas as teorias da substância,
que devem ser estudadas em seu lugar próprio, o verbete SUBSTÂNCIA.
Embora não conduza para uma teoria da substância, a acepção que Husserl atribui ao termo E. tem
conexão com este seu segundo significado: "E. caracterizou sobretudo o que se encontra no ser próprio de
um indivíduo como seu quid. Mas cada quid pode ser 'posto em idéia'. Uma visão empírica ou individual
pode ser transformada em visão da E. (ideação), possibilidade que, esta sim, não deve ser entendida como
empírica, mas como essencial. O objeto intuído consistirá, portanto, na correspondente E. pura ou eidos,
que pode ser tanto uma categoria superior quanto uma particula-rização, até à concretude completa"
{Ideen, I, § 3). Para Husserl, E. é a E. necessária ou substancial de Aristóteles; é captada por um ato de
intuição, análogo à percepção sensível {Ibid., § 23). Esta talvez seja a utilização mais moderna do antigo
conceito aristotélico de E. substancial (v. DEFINIÇÃO; SER).
ESSÊNCIA e EXISTÊNCIA (lat. Essentia et esse, essentia et existentia; in. Essence and existence, fr.
Essence et existence, ai. Wesen und Existenz; it. Essenza ed esistenzd). A distinção real entre E. e
existência é uma das doutrinas típicas da Escolástica do séc. XIII. Foi exposta pela primeira vez por
Guilherme de Alvérnia, em De trinitate (composto entre 1223 e 1228). Seus criadores foram os
neoplatônicos árabes, especialmente Avicena (séc. XI), que a expusera em Metafísica (II, 5, 1). Foi
adotada por Maimônides, que a modificou no sentido de reduzir a existência a um simples acidente da
essência {Guide des égarés, trad. fr., Munk, pp. 230-33). Mas quem deu à doutrina sua melhor expressão
foi S. Tomás, que também a remeteu
! ESSÊNCIA e EXISTÊNCIA
ao significado que recebera de Avicena, negando que a existência seja um simples acidente (Quodl., q. 12,
a. 5). Por isso, é oportuno expor a doutrina na forma emprestada por S. Tomás.
S. Tomás entende a essência no significado 2-, como E. necessária ou substancial. Ela é a "qüididade" ou
"natureza" que compreende tudo o que está expresso na definição da coisa; logo, não só a forma, mas
também a matéria. P. ex., a E. do homem, definido como "animal racional", compreende não só a
racionalidade (que é forma), mas também a animalidade (que é matéria). Da E. assim entendida distinguese o ser ou a existência da coisa definida: ser ou existência que é algo diferente da E. porque se pode, p.
ex., saber o que {quid) é o homem ou a fênix sem saber se existe homem ou fênix, ou seja, sem saber
nada acerca do ser ou da existência da coisa definida {De ente et essentia, 3). Portanto, substâncias como
o homem ou a fênix são compostas de E. (matéria e forma) e existência, separáveis entre si; nelas, E. e
existência estão entre: si assim como potência e ato: a E. é potência em relação à existência; a existência é
o ato da essência. Somente em Deus, porém, a E. é a própria existência, porque Deus "não só é a sua E.
como também o seu próprio ser"; se assim não fosse, ele existiria por participação, como as coisas finitas,
e não seria o ser primeiro e a causa primeira {S. Th., I, q. 3, a. 4).
Esta doutrina da distinção real foi muitas vezes considerada de origem aristotélica. Na realidade, nada tem
de aristotélico; aliás contradiz um dos cânones fundamentais da filosofia de Aristóteles, o que identifica o
ser ou a existência com o ato e o ato com a forma; de sorte que não há forma que não seja ato, isto é, que
não exista (a forma é a existência: v. ATO; FORMA). Na realidade, a doutrina foi introduzida e utilizada
com propósitos diferentes, que nada têm a ver com o aristotelismo. Avicena introduziu-a como elemento
da doutrina da necessidade universal. Deus é necessário "em si mesmo" porque nele E. implica existência;
as coisas finitas são necessárias "por outra coisa", porque, como sua E. não implica existência, elas
existem apenas em virtude da necessidade divina. Assim, tudo é necessário (cf. A. M. GOL-CHON, La
distinction de l 'essence et de 1'existence d'après Ibn-Sina, 1937). S. Tomás, porém, lança mão da mesma
distinção para ressaltar a diferença entre o ser de Deus e o ser das criaturas, diferença que ele expressou
com o princí-
ESSÊNCIA e EXISTÊNCIA
363
ESTÁDIO
pio da analogicidade do ser (v. ANALOGIA), e para fazer que o próprio ser das criaturas, por resultar
estranho à sua E., exija a intervenção criadora de Deus. Em outros termos, Avicena viu na distinção entre
E. e existência um instrumento para a defesa do princípio de que "tudo o que existe, existe por
necessidade, e essa necessidade é Deus". S. Tomás utiliza a mesma distinção para defender o princípio de
que "tudo o que existe, existe por participação no ser, e esse ser é Deus". A doutrina da distinção real
inclui duas teses diferentes, mas conexas: d) ser e E. estão separados nas criaturas; b) ser e E. são
idênticos em Deus. Ora, mesmo aqueles que não aceitam a distinção real e, portanto, negam a proposição
a), admitem a proposição b) como definição de Deus. Foi o que fez Averróis contra Avicena (_Met., IV,
3); o que fez Duns Scot contra S. Tomás (Rep. Par., IV, d. 7, q. 2, n. 7). Ockham, ao contrário, negou
ambas as proposições. Sobre a primeira afirma.- "A E. não é indiferente ao ser ou ao não-ser, assim como
não o é a existência; pois assim como a E. pode ser ou não ser, também a existência pode ser ou não ser.
Os dois termos significam, portanto, absolutamente, a mesma coisa" (Quodl., II, 7). Sobre a segunda,
afirma que a existência não pode ser contida analiti-camente na E. de Deus porque seu predicado está não
só em Deus", mas também em todas as outras coisas reais; portanto, é muito mais ampla do que a E. de
Deus e não pode ser-lhe intrínseca (In Sent., I, d. 3, q. 4, G).
A distinção entre E. e existência é peculiar à doutrina escolástica tradicional, e mesmo na filosofia
moderna e contemporânea só é retomada por doutrinas a ela ligadas, sobretudo na elaboração dos
conceitos teológicos. Fora do uso teológico, essa distinção foi retomada na filosofia contemporânea por
Hartmann, como um dos fundamentos da sua ontologia. "Em cada ente", diz ele, "há um momento de
existência (Dasein). Com isso deve-se entender o fato puro e simples de que, em geral, ele está aí. E em
cada ente há também um momento de E. (Soseirí). A este pertence tudo o que constitui a determinação
específica ou a particularidade do ente, tudo o que este último possui em comum com um outro ou em
virtude do que se distingue do outro, em resumo, tudo 'aquilo que ele é'" (Zur Grundlegung der
Ontologie, 2
a
ed., 1941, p. 92). Embora Hartmann pretenda distinguir o significado do termo que ele
emprega, Sosein, do tradicional,
essentia, esse significado coincide com o que a tradição escolástica e especialmente o tomismo atribuía à
qüididade (quod quid erat esse) expressa pela definição. Hartmann também admite a distinção real entre
E. e existência e considera a E. como possibilidade e a existência como a atualidade dela (Ibid., p. 95).
Com um sentido que nada tem a ver com a distinção real do neoplatonismo árabe e do tomismo, a relação
E.-existência foi utilizada na filosofia contemporânea para definir a natureza do homem. Diz Heidegger:
"A natureza desse ente (do ser-aí [Dasein], do homem) consiste no seu ser-para. A E. (essentia) deste
ente, no que em geral é possível falar dela, deve ser entendida a partir do seu ser (existentia)" (Sein und
Zeit, § 9). Esse "primado da existência sobre a E." não significa, para Heidegger, nem a separação real dos
dois elementos, que para a Escolástica era própria das criaturas, nem sua identidade real, que para a
Escolástica era própria de Deus; significa apenas que o modo de ser do homem, ou seja, a existência, só
pode ser esclarecida e compreendida a partir do fato de que o homem está aí (existe), ou seja, existe no
mundo e entre os outros entes (v. EXISTÊNCIA).
ESSENCIAL (in. Essential; fr. Essentiel; ai. Wesentlich; it. Essenziale). Além dos significados relativos
à essência, este adjetivo tem o significado mais comum e genérico de "importante". Esse é o significado
desse termo em expressões como "caráter E.", "qualidade E.", etc, que na maioria das vezes não fazem
referência aos significados específicos de "essência", mas só pretendem ressaltar a importância de um
caráter, uma quantidade, etc, a partir de certo ponto de vista.
ESSENCIALISMO (in. Essentialism; fr. Es-sentialisme, ai. Essentialismus; it. Essenzialis-mó). K.
Popper chamou de E. metodológico "a corrente de pensamento introduzida e defendida por Aristóteles,
segundo a qual a pesquisa científica deve penetrar até a essência das coisas para poder explicá-las" (The
Poverty of Historicism, 1944, § 10).
ESSÊNIOS. V. JUDAICA, FILOSOFIA.
ESTÁDIO (gr. aráSiov; lat. Stadium, in. Stadium-, fr. Stade, ai. Stadium-, it. Stadio) O último dos quatro
argumentos de Zenâo de Eléia contra o movimento. Pode ser expresso da seguinte forma: duas massas
iguais, dotadas de velocidades iguais, deveriam percorrer espaços iguais em tempos iguais. Mas, se duas
mas-
ESTADO1
364
ESTADO1
sas se movem, uma de encontro à outra, a partir das extremidades opostas do E., cada uma delas gasta,
para percorrer a extensão da outra, a metade do tempo que elas gastariam se uma delas estivesse parada:
disso Zenâo concluía que a metade do tempo é igual ao dobro (ARISTÓTELES, FÍS., VI, 9, 239 b 33)- O
argumento volta a dizer que, ao se admitir a realidade do movimento, admite-se a equivalência entre
metade do tempo e dobro do tempo.
ESTADO1
(gr. 7io?UT£ta; lat. Respublica-, in. State, fr. État- ai. Staat; it. Stató). Em geral, a organização
jurídica coercitiva de determinada comunidade. O uso da palavra E. deve-se a Maquiavel (Opríncipe,
1513, § 1). Podem ser distinguidas três concepções fundamentais: I
a
a concepção organicista, segundo a
qual o E. é independente dos indivíduos e anterior a eles; 2a
a concepção atomista ou contratualista,
segundo a qual o E. é criação dos indivíduos; 3a
a concepção formalista, segundo a qual o E. é uma
formação jurídica. As duas primeiras concepções alternaram-se na história do pensamento ocidental; a
terceira é moderna e, na sua forma pura, foi formulada só nos últimos tempos.
I
a A concepção organicista funda-se na analogia entre o E. e um organismo vivo. O E. é um homem em
grandes dimensões; suas partes ou membros não podem ser separados da totalidade. A totalidade precede
portanto as partes (os indivíduos ou grupos de indivíduos) de que resulta; a unidade, a dignidade e o
caráter que possui não podem derivar de nenhuma de suas partes nem do seu conjunto. Essa concepção do
E. foi elaborada pelos gregos. Platão considera que no E. as partes e os caracteres que constituem o
indivíduo estão "escritos em tamanho maior" e, portanto, são mais visíveis (Rep., II, 368 d); assim,
começa a determinar quais são as partes e as funções do E. para proceder depois à determinação das
partes e das funções do indivíduo (Ibid., IV, 434 e). Este é um modo de exprimir a prioridade do E.: a
estrutura do E. é a mesma estrutura do homem, porém é mais evidente. Aristóteles, por sua vez, afirmava:
"O E. existe por natureza e é anterior ao indivíduo, porque, se o indivíduo de per si não é auto-suficiente,
estará, em relação ao todo, na mesma relação em que estão as outras partes. Por isso, quem não pode fazer
parte de uma comunidade ou quem não tem necessidade de nada porquanto se basta a si mesmo não é
membro de um E., mas fera ou
Deus" (Pol, I, 2, 1253 a 18). Essas considerações foram repetidas muitas vezes na história da filosofia
(cf., p. ex., S. TOMÁS, De regimine principium, I; DANTE, De monarchia, I, 3), mas no mundo moderno
só foram revigoradas pelo romantismo, que insistiu no caráter superior e divino do E. Fichte dizia: "Na
nossa época, mais do que em qualquer outra que a precedeu, todo cidadão, com todas as suas forças, está
submetido à finalidade do E., está completamente compenetrado dele e tornou-se seu instrumento"
(Grundzüge des gegenwàr-tigen Zeitalters, 1806, X). Mas esta concepção foi formulada de modo mais
simples e extremo por Hegel, que identificou o E. com Deus: "O ingresso de Deus no mundo é o E.: seu
fundamento é a potência da razão que se realiza como vontade. Na idéia do E. não se devem ter em mente
estados particulares, instituições particulares, mas considerar a idéia por si mesma, este Deus real" (Fil.
do dir, § 258, Zusatz). O E. é um "Deus no mundo", ou seja, um Deus imanente: constitui a existência
racional do homem. "Só no E. o homem tem existência racional. A educação tende a fazer que o indivíduo
não permaneça como algo de subjetivo, mas se torne objetivo de si mesmo no Estado... Tudo o que o
homem é, deve-o ao E.: só nele tem sua essência. O homem só tem valor e realidade espiritual por meio
do E." (Philosophie der Geschichte, ed. Lasson, p. 90). Na realidade, os caracteres que a concepção
organicista sempre atribuiu ao E. — racionalidade perfeita, auto-suficiência e supremacia absoluta — têm
sua melhor expressão na tese de Hegel, de que o E. é Deus. Nem sempre, porém, a tese organicista foi
formulada de modo tão rigoroso e extremo: o primado atribuído ao E. em relação aos indivíduos e a autosuficiência do E. nem sempre convenceram de que o E. é Deus, mas sempre levaram a considerá-lo como
algo divino, que justificasse a sujeição dos indivíduos. O fim que as concepções organicistas sempre
propuseram foi bem expresso por O. Gierke: "Somente do valor superior do todo em confronto com o das
partes é que pode derivar a obrigação do cidadão de viver e, se necessário, morrer pelo todo. Se o povo
fosse apenas a soma de seus membros e se o E. fosse apenas uma instituição para o bem-estar dos
cidadãos, nascidos e nascituros, então realmente o indivíduo poderia ser coagido a dar sua energia e sua
vida pelo E., mas não teria nenhuma obrigação moral de fazê-lo" (Das Wesen der menschlichen
Verhãnden, 1902, pp. 34 ss.).
ESTADO1
365
ESTADO1
2- Para a concepção atomista ou contra-tualista, o E. é obra humana: não tem dignidade nem caracteres
que não lhe tenham sido conferidos pelos indivíduos que o produziram. Foi essa a concepção dos
estóicos, que consideravam o E. como respopuli. Diz CÍCERO: "O E. (res publica) é coisa do povo, e o
povo não é qualquer aglomerado de homens reunido de uma forma qualquer, mas uma reunião de pessoas
associadas pelo acordo em observar a justiça e por comunidade de interesses" (De rep., I, 25, 39). Na
história medieval e moderna essa concepção mesclou-se com a precedente. A partir do séc. IX constituiu
o princípio teórico a que se recorreu freqüentemente nas lutas políticas (cf. R. e A. CARLYLE, History of
Mediaeval Political Theory, I, seç. I, parte IV, cap. V; trad. it., I, pp. 269 ss.). Suas principais
manifestações podem ser vistas no verbete CONTRATUALISMO. Em geral, essa concepção é
simetricamente oposta à anterior: para ela, o E. não tem dignidade ou poderes que os indivíduos não
tenham conferido ou reconhecido, e sua unidade não é substancial ou orgânica, não precede nem domina
seus membros ou suas partes, mas é unidade de pacto ou de convenção e só vale nos limites de validade
do pacto ou da convenção. Às vezes, porém, no próprio tronco do contratualismo enxertam-se as
exigências peculiares ao organicísmo: é o que acontece, p. ex., em Rousseau, quando ele afirma que "a
vontade geral não pode errar". Rousseau, com efeito, distingue entre a vontade de todos e a vontade geral:
"Aquela visa somente ao interesse comum; esta visa ao interesse pessoal e é a soma das vontades
particulares; mas retire-se dessa vontade o mais e o menos que se des-troem mutuamente e ficará, como
soma das diferenças, a vontade geral" (Contraí social, II, 3). Embora justificada como simples soma algébrica das vontades particulares, a "vontade geral" de Rousseau, com sua infalibilidade, assemelha-se à
racionalidade perfeita do E. orgânico.
3
a
As duas concepções precedentes de E. têm em comum o reconhecimento do que os juristas hoje
chamam de aspecto sociológico do E., ou seja, sua realidade social; o E. é considerado, em primeiro
lugar, como comunidade, como um grupo social residente em determinado território. Essa concepção
fundamentou a descrição de E. formulada por juristas e filósofos do séc. XIX (qualquer que fosse seu
conceito filosófico de E.), de que o E. tem três
elementos ou propriedades características: soberania ou poder preponderante ou supremo, povo e
território. Desses três aspectos ou elementos eram feitas descrições estanques e independentes do
conceito filosófico de E. a que se fazia referência implícita ou explicitamente. A melhor definição, nesse
aspecto, foi dada porjellinek (Allgemeine Staatslebre, 1900), sendo repetida e exemplificada inúmeras
vezes (cf., p. ex., W. W. WILLOUGHBY, The Fundamental Concepts of Public Law, 1924). O aspecto
sociológico do E., porém, é negado por Kelsen, e essa negação é a característica básica de seu
formalismo. Para Kelsen, o E. é simplesmente a ordenação jurídica em seu caráter normativo ou
coercitivo: "Há um único conceito jurídico de E., que é o de ordenação jurídica (centralizada). O conceito
sociológico de modelo efetivo de comportamento orientado para a ordenação jurídica não é um conceito
de E., mas pressupõe o conceito de E., que é o conceito jurídico" (General Theory of Law and State,
1945; trad. it., p. 192). Em outros termos, o E. "é uma sociedade politicamente organizada porque é uma
comunidade constituída por uma ordenação coercitiva, e essa ordenação coercitiva é o direito" (Ibid., p.
194). Kelsen não nega, naturalmente, que existam fatos, ações ou comportamentos mais ou menos ligados
à ordenação jurídica estatal, mas afirma que tais fatos, ações ou comportamentos são manifestações do E.
só enquanto interpretados "segundo uma ordenação normativa, cuja validade deve ser pressuposta" (Ibid.,
p. 193). Essa doutrina presta-se a definir de modo simples e elegante os elementos tradicionalmente
reconhecidos como próprios do Estado. O território nada mais é que "a esfera territorial de validade da
ordenação jurídica chamada E." (Ibid., p. 212). O povo nada mais é que a "esfera pessoal de validade da
ordenação", ou seja, os limites do grupo de indivíduos aos quais se estende a validade da ordenação
jurídica (Ibid., pp. 237 ss.). Quanto à soberania, Kelsen afirma que atribuí-la ao E. depende da escolha
que se faz quanto às hipóteses de primado do direito estatal ou do direito internacional. Na primeira
hipótese, o E. é soberano só em sentido relativo, pois nenhuma outra ordenação, que não a internacional,
é superior à sua ordenação jurídica. Na segunda hipótese, o E. é soberano no sentido absoluto e original
do termo (Ibid., p. 391). Essa doutrina representa uma notável simplificação do conceito descritivo
tradicional
ESTADO2
366
ESTATUA
de E., reunindo todos os elementos deste na noção fundamental de ordenação jurídica. Por outro lado,
porém, estabelece a equivalência de todas as ordenações jurídicas enquanto tais, ou seja, de todas as
formas de Estado. O forma-lismo de Kelsen não permite, com efeito, estabelecer qualquer diferença entre
E. absolutista e E. liberal, entre E. democrático e E. totalitário, entre E. coletivista e E. liberalista, etc.
Inclusive a expressão E. de direito, com que se designa o E. que respeita ou garante os chamados "direitos
inalienáveis" do indivíduo, do ponto de vista de Kelsen é desprovida de sentido, já que, para ele, E. e
direito coincidem. Contudo, justamente por seu caráter formalista, a doutrina de Kelsen sobre o E., assim
como a sua doutrina do direito (v.), abre caminho para a consideração da eficácia (e portanto dos limites)
da técnica coercitiva em cada uma de suas fases ou manifestações, ou seja, das ordenações em que se
concretiza. Quando Humboldt falava dos "limites da ação do E." (Die Grenzen der Wirksamkeit des
Staates, 1851) explicava esses limites justamente pela impossibilidade de o E. atingir certos fins com o
único meio de que dispõe, ou seja, a técnica coercitiva. Por esse motivo, Humboldt colocava além dos
limites da ação do E. a religião, o aperfeiçoamento dos costumes e a educação moral, coisas que
dependem de uma disposição não controlável pelos instrumentos de que o E. dispõe. Por outro lado, o E.
como ordenação jurídica dificilmente poderia evitar o juízo (propriamente jurídico) sobre a
compatibilidade recíproca das normas que constituem tal ordenação, o juízo (este também jurídico) sobre
a eficácia de tais normas em alcançar seus objetivos, que é o juízo dado pela chamada ciência da
legislação, nem o juízo (político) sobre a oportunidade de incluir, excluir ou modificar normas ou grupos
de normas da ordenação em que ele consiste (v. POLÍTICA).
ESTADO2
(lat. Status; in. State, fr. État; ai. Zustand; it. Stató). Condição, modo de ser ou situação. Desta
última noção aproxima-se especialmente o significado desse termo na expressão E. de coisas, pela qual se
pode traduzir o alemão Sachverhalto e o inglês state ofaffairs. A expressão alemã foi introduzida por
Husserl em Logische Untersuchungen (1901, II, 1, pp. 472 ss.) e por ele definida como o correlato
objetivo de juízo (cf. Ideen, I, § 6). Essa noção foi aceita por Wittgenstein, que por ela entendia "uma
combinação de objetos (entidades,
coisas)" (Tractatus, 2). É essa expressão que às vezes se traduz por "fato atômico". Mas, embora o E. de
coisas de que fala Wittgenstein seja um elemento inseparável do mundo, a expressão "fato atômico" não
traduz literalmente a expressão original.
A crítica de Bergson à concepção que a psicologia do séc. XIX fazia da vida psíquica em seu conjunto
repousa no conceito de E., considerado por Bergson como uma forma ou um instantâneo imóvel tomado
do vir-a-ser (cf. especialmente Évol. créatr., cap. IV, e a análise do "mecanismo cinematográfico do
pensamento"). Na verdade, a noção de E. não inclui absolutamente a de repouso ou imobilidade, mas a de
relação de objetos entre si no conjunto de uma situação. Por Estado de natureza, v. NATUREZA, ESTADO
DE.
ESTÁTICA. V. MECANICISMO, I, a.
ESTATISMO (fr. Étatisme). Em sentido próprio, a doutrina que considera o Estado como única fonte do
direito. Em sentido genérico, toda orientação política que atribua ao Estado funções ou poderes
preponderantes em qualquer campo da atividade humana.
ESTATÍSTICA (in. Statistics; fr. Statistique-, ai. Statistik, it. Statisticá). Coleta e interpretação de dados
numéricos em determinado campo; ou então, em geral, a ciência que tem por objeto os métodos para a
coleta e a interpretação dos dados numéricos. Nascida no terreno da observação dos fatos sociais, a E.
estendeu-se já a numerosos campos de investigação e, em primeiro lugar, ao domínio da física,
inicialmente para a formulação de teorias especiais (a teoria cinética dos gases), depois para a formulação
das leis da mecânica quântica. O conceito de lei E., ou seja, da uniformidade relativa da freqüência de
certo acontecimento, considerado numa escala numérica suficientemente extensa, foi formulado pela
primeira vez pelo astrônomo e matemático belga A. J. Quetelet (Physique sociale, 1869). A corrente
probabilista da ciência moderna levou esse conceito a muitos campos de indagação (v. CAUSALIDADE;
CONDIÇÃO; FÍSICA; CIÊNCIA).
ESTÁTUA (in. Statue, fr. Statue, ai. Statue, it. Statua). Hipótese imaginada por Condillac para
demonstrar que todas as atividades psicológicas derivam da sensação. "Imaginemos", diz Condillac, "uma
estátua organizada inteiramente como nós e animada por um espírito desprovido de qualquer espécie de
idéia. Suponhamos também que o exterior, todo de
ESTATUTO
367
ESTÉTICA
mármore, não lhe permitisse o uso dos sentidos, cabendo-nos a liberdade de abri-los, à nossa escolha, às
diversas impressões de que são capazes" (Traité des sensations, 1754, Pref.).
ESTATUTO (in. Statute, fr. Statut; ai. Statut; it. Statutó). Conjunto de normas que definem o estado, ou
seja, a condição ou o modo de ser de um grupo social.
ESTÉTICA (in. Aesthetics-, fr. Esthétique, ai. Aesthetik, it. Estética). Com esse termo designa-se a
ciência (filosófica) da arte e do belo. O substantivo foi introduzido por Baumgarten, por volta de 1750,
num livro {Aesthetica) em que defendia a tese de que são objeto da arte as representações confusas, mas
claras, isto é, sensíveis mas "perfeitas", enquanto são objeto do conhecimento racional as representações
distintas (os conceitos). Esse substantivo significa propriamente "doutrina do conhecimento sensível".
Kant, que também fala {Crítica do Juízo) de um juízo estético, que é o juízo sobre a arte e sobre o belo,
chama de "E. transcendental" {Crítica da Razão Pura) a doutrina das formas apriori do conhecimento
sensível. Mas em Kant o substantivo E., alusivo à arte e ao belo, já não se referia à doutrina de
Baumgarten; hoje, esse substantivo designa qualquer análise, investigação ou especulação que tenha por
objeto a arte e o belo, independentemente de doutrinas ou escolas.
Dissemos "arte e belo" porque as investigações em torno desses dois objetos coincidem ou, pelo menos,
estão estreitamente mescladas na filosofia moderna e contemporânea. Isso não ocorria, porém, na
filosofia antiga, em que as noções de arte e de belo eram consideradas diferentes e reciprocamente
independentes. A doutrina da arte era chamada pelos antigos com o nome de seu próprio objeto, poética,
ou seja, arte produtiva, produtiva de imagens (PLATÀO, Sof., 265 a; ARISTÓTELES, Ret, 1,11,1371 b 7),
enquanto o belo (não incluído no número dos objetos produzíveis) não se incluía na poética e era
considerado à parte (v. BELO). Assim, para Platão, o belo é a manifestação evidente das Idéias (isto é, dos
valores), sendo, por isso, a via de acesso mais fácil e óbvia a tais valores {Fed., 250 e), ao passo que a arte
é a imitação das coisas sensíveis ou dos acontecimentos que se desenrolam no mundo sensível,
constituindo, antes, a recusa de ultrapassar a aparência sensível em direção à realidade e aos valores
{Rep., X, 598 c). Para Aristóteles,
o belo consiste na ordem, na simetria e numa grandeza que se preste a ser facilmente abarcada pela visão
em seu conjunto {Poet., 7, 1450 b 35 ss.; Met., XIII, 3, 1078 b 1), ao mesmo tempo que retoma e adota a
teoria da arte como imitação, apesar de, com a noção de catarse, retirá-la daquela espécie de
confinamento à esfera sensível a que fora condenada por Platão (v. mais abaixo).
A partir do séc. XVIII, as noções de arte e belo mostram-se vinculadas, como objetos de uma única
investigação; essa conexão foi fruto do conceito de gosto, entendido como faculdade de discernir o belo,
tanto dentro quanto fora da arte. A investigação de Hume Sobre a norma dogosto{U4l) \á supõe essa
identificação, assim como a de Burke, Sobre a origem das idéias do sublime e do belo (1756; cf. V, I), e o
ensaio de G. SPALLETTI, Sopra labellezza (1765; cf. §§ 19-20). Mas foi sobretudo Kant quem estabeleceu
a identidade entre artístico e belo, ao afirmar que "a natureza é bela quando tem a aparência da arte"; e
que "a arte só pode ser chamada de bela quando nós, conquanto conscientes de que é arte, a consideramos
como natureza" {Crít. dojuízo, § 45). Finalmente, Schel-ling invertia a relação tradicional entre arte e
natureza, fazendo da arte a norma da natureza e não o contrário. Para Schelling, a arte é a realização
necessária e perfeita da beleza a que a natureza só chega de modo parcial e casual {System des
transzendentalen Idealismus, 1800, VI, § 2; cf. "As artes figurativas'e a natureza", 1807, em Werke, VII,
pp. 289 ss.).
Todavia, a tentativa de separar a ciência da arte da doutrina do belo ocorreu mais recentemente na
Alemanha, com vistas a instituir uma "ciência geral da arte" em bases positivas (E. UTITZ, Grundlegung
der allgemeinen Kunst-wissenschaft, 2 vols., Stuttgart, 1914 e 1920; M. DESSOIR, Àsthetik und
allgemeíne Kunst-wissenschaft, Stuttgart, 1923). Essa ciência deveria ter como objeto a arte em seus
aspectos técnicos, psicológicos, morais e sociais, cabendo à E. a consideração do belo, que para ela é
tradicional e insuficiente para explicar todos os fenômenos artísticos, porquanto a arte dos primitivos, p.
ex., e grande parte da arte moderna parecem fugir à categoria do belo. Essas considerações, porém, não
parecem decisivas. No uso comum e mesmo no erudito (próprio dos críticos de arte e dos filósofos), a
noção de "belo" é suficientemente ampla para qualificar qualquer obra de arte bem realizada, ainda que
ESTÉTICA
368
ESTÉTICA
represente coisas ou pessoas que, por si mesmas, não poderiam ser chamadas de "belas" com base nos
cânones correntes. Portanto, não se afigurou oportuno separar a E., como ciência filosófica do belo, da
ciência da arte enquanto tal (cf. B. C. HEYL, New Bearings in Esthetics and Art Criticism, 1943, pp. 20
ss.). Por outro lado, no próprio domínio da E. são cada vez mais discutidos problemas de ordem
psicológica, social, moral, etc, o que não parece exigir um lugar à parte. A proposta em questão, portanto,
só serviu para ressaltar a exigência de que esses problemas sejam cada vez mais debatidos no âmbito da
E. Teve mais sucesso a proposta de Paul Valéry de distinguir da E. uma poética que deveria consistir "na
análise comparada do mecanismo do ato do escritor e das outras condições menos definidas que esse ato
parece exigir" (Variéte, 1944, V, p. 292). Pelo nome de poética, hoje se indica freqüentemente o conjunto
de reflexões que um artista faz sobre sua própria atividade ou sobre a arte em geral; e se, com o uso dessa
palavra, não se pretender aludir a uma forma de E. menor, debilitada ou provisória, seu uso não suscita
objeções.
A história da E. apresenta uma grande variedade de definições da arte e do belo. Embora cada uma dessas
definições tenha, via de regra, a pretensão de expressar de forma absoluta a essência da arte, hoje vai
ganhando corpo a idéia de que a maioria delas só expressa tal essência do ponto de vista de um problema
particular ou de um grupo de problemas. P. ex., está bastante claro que a definição de arte como imitação
é a solução de um problema totalmente diferente do problema cuja solução é a definição da arte como
prazer: de fato, a primeira refere-se à relação entre arte e natureza; a segunda, à relação entre arte e
homem. Por isso, as teorias E. só podem ser apresentadas com referência aos problemas fundamentais
cuja solução constituem (ou pretendem constituir), sendo necessário, preliminarmente, expor tais
problemas para poder apontar, a propósito de cada um, as soluções mais importantes que já foram ou
estão sendo propostas. Ora, os problemas fundamentais em torno dos quais podem ser agrupados todos os
problemas discutidos no domínio da E., permitindo orientar-se em meio à variedade de tendências dessa
ciência, são três: 1Q
a relação entre a arte e a natureza; 2a
a relação entre a arte e o homem; 3e
a função da
arte.
l
e
Muitas definições de arte são determinações da relação entre a arte e a natureza (ou, em geral, a
realidade). Como se pode entender a arte como algo dependente da natureza, independente dela ou
condicionada por ela, é possível distinguir três diferentes concepções de arte, sob esta perspectiva: a) arte
como imitação-, b) arte como criação, c) arte como construção.
a) A definição mais antiga de arte na filosofia ocidental, a de imitação, pretende subordinar a arte à
natureza ou à realidade em geral. Platão insiste na passividade da imitação artística: o pintor só faz
reproduzir a aparência do objeto construído pelo artesão (Rep., 598 b); o poeta só faz copiar a aparência
dos homens e de suas atividades, sem aperceber-se realmente das coisas que imita e sem a capacidade de
realizá-las (Ibid., 599 b). Para Aristóteles, o valor da arte deriva do valor do objeto imitado: p. ex., devem
pertencer ao objeto que a tragédia imita, ou seja, ao mito, os caracteres que asseguram a produção da boa
tragédia. "Assim como para serem belos os corpos dos seres.vivos devem ter uma grandeza que, em seu
conjunto, possa ser facilmente abarcada pelo olhar, também o mito deve ter uma extensão que possa ser
facilmente abarcada, em seu conjunto, pela mente" (Poet., VII, 1451 a 2). Desse ponto de vista, ao artista
cabe, quando muito, o mérito da escolha oportuna do objeto imitado, mas, uma vez escolhido o objeto,
não pode fazer mais do que reproduzi-lo em suas características próprias. Pouco importa se o objeto
imitado é uma coisa natural ou uma entidade transcendente ou inteligível: a passividade da imitação
permanece. Assim Sêneca diz que, quando o artista mantém o olhar voltado para um exemplar concebido
por ele mesmo, esse exemplar na realidade está contido na mente divina (Ep., 65), isto é, não é criado. Do
mesmo modo, observa Plotino: "Se alguém despreza as artes porque só fazem imitar as coisas naturais, é
preciso dizer, em primeiro lugar, que as mesmas coisas naturais imitam outras coisas e, em segundo lugar,
é preciso saber que as artes não imitam diretamente os objetos visíveis, mas contemplam as regiões de
que estes provêm e, assim, são capazes de fazer muitas coisas por sua própria conta e de acrescentar o que
falta às coisas naturais" {Enn., V, 8, 2). Assim, segundo Plotino, o que a arte acrescenta à natureza é por
ela haurida da realidade superior (inteligível) para a qual tem voltado o olhar.
ESTÉTICA
369
ESTÉTICA
Hoje a teoria da imitação é defendida e praticada pelos partidários do realismo na arte, sobretudo nos
países comunistas e em quem se inspira na ideologia comunista. Mas muitas vezes a interpretação que se
faz da imitação elimina exatamente o caráter passivo que a caracterizava na formulação clássica. Assim,
Lukács, que define a arte como "reflexo da realidade", entende que essa realidade é resultado da interação
entre natureza e homem, interação mediada pelo trabalho e pela sociedade, em seu momento histórico.
Por isso, vê na arte "o modo de expressão mais adequado e mais elevado da autoconsciência da
humanidade" {Àsthetik 1, 1963, cap. VII, § III, trad. it., p. 575). Desse ponto de vista, a imitação não se
distingue da criação.
b) O conceito de arte como criação é peculiar ao romantismo e foi posto em prática por Schelling. "É
fácil entender no que o produto E. se distingue do produto de artesanato comum, porque toda criação E.
é, em princípio, abso-tamente livre, porquanto o artista só pode ser impelido a ela por uma contradição
que se ache na parte mais elevada da sua natureza, ao passo que qualquer outra criação é ocasionada por
uma contradição exterior a quem cria e tem, por isso, objetivo fora de si" {System, cit., VI, § 2). Para
Schelling, a arte é a mesma atividade criadora do Absoluto porque o mundo é um "poema" (Ibid., VI, § 3)
e a arte humana é uma continuação, especialmente através do gênio, da atividade criadora de Deus. Esse
conceito foi retomado por Fichte nas obras do segundo período, Caracteres do tempo presente (1806),
Essência do sábio (1805) e Destinação do sábio (1811) (cf. PAREYSOL, L'E. deWidea-lismo tedesco,
1950, pp. 388 ss.). Como se vê, a tese romântica da arte como criação compõe-se de duas teses diferentes:
I, a arte é originali dade absoluta e os seus produtos não são refe-ríveis à realidade natural; II, como
originalidade absoluta, a arte é parte (continuação ou manifestação) da atividade criadora de Deus. Fo ram
essas as teses fundamentais de Hegel em Lições de estética: "Poder-se-ia imaginar que o artista recolhe
no mundo exterior as melhores formas e as reúne, ou que faz uma escolha de fisionomias, situações, etc,
para encontrar as formas mais adaptadas ao seu conteúdo. Mas quando assim recolhe e escolhe ainda não
fez nada, pois o artista deve ser criador e, em sua fantasia, com o conhecimento das formas verdadeiras,
com sentido profundo e sensibilidade
viva, deve formar e exprimir o significado que o inspira de modo espontâneo e com ímpeto"
(Vorlesungen über die Àsthetik, ed. Glockner, I, p. 240). Por outro lado, justamente por esse seu caráter de
criação, a arte pertence à esfera do Espírito absoluto e, ao lado da religião e da filosofia, é uma das suas
manifestações ou realizações no mundo. "A arte", diz Hegel, "por ocupar-se do verdadeiro como objeto
absoluto da consciência, pertence à esfera absoluta do espírito e graças a seu conteúdo situa-se no mesmo
plano da religião e da filosofia. Pois também a filosofia não tem outro objeto a não ser Deus e é assim
essencialmente uma teologia racional e um perpétuo culto divino a serviço da verdade" (Ibid., I, pp. 147-
48). Nesse aspecto, Croce praticamente só fez repetir a doutrina de Hegel. "Como posição e resolução de
problemas (da fantasia ou estéticos), a arte não reproduz nada de existente, mas produz sempre algo de
novo, forma uma nova situação espiritual e, portanto, não é imitação, mas criação. Do mesmo modo,
criação é pensamento que também consiste em posição e resolução de problemas (lógicos, filosóficos ou
especulativos, como se preferir chamá-los), e nunca em reprodução de objetos ou de idéias" (Nuovi saggi
di E., 1920, p. 156). No mesmo sentido, Gentile escreveu: "É difícil renunciar a ver no artista um espírito
criador livre. O pensamento comum encontra dificuldade em aperceber-se claramente dessa criatividade
do homem, mas, embora obscura, essa idéia do artista que cria um mundo seu está profundamente
arraigada em todo homem que se aproxima da obra de arte" (Fil. deWarte, 1931, 11, S 4). No âmbito da
concepção romântica de arte, o princípio de arte como criação aparece como verdade evidente.
O corolário principal dessa concepção é a pouca importância atribuída aos meios técnicos de expressão e
a insistência na natureza "espiritual", consciencial da arte. A esse respeito Hegel dizia: "A obra de arte só
superficialmente tem a aparência da vida, pois no fundo é pedra, madeira, tela ou, no caso da poesia,
letras e palavras. Mas esse aspecto da existência externa não é o que constitui a obra de arte; esta tem
origem no espírito, pertence ao domínio do espírito, recebeu o batismo do espírito e exprime tão-somente
o que se formou sob a inspiração do espírito" {Vorlesungen über die Àsthetik, ed. Glockner, I, p. 55).
Croce, por sua vez, confinou a técnica expressiva da arte ao
ESTÉTICA
370
ESTÉTICA
domínio da "prática" e considerou-a como simples expediente de comunicação: "O artista, que deixamos
a vibrar em imagens expressas que prorrompem, por infinitos canais, de todo o seu ser, é homem integral
e, portanto, também homem prático; como tal, está atento aos meios que evitem a dispersão dos
resultados de seu trabalho espiritual, ao mesmo tempo que possibilitam e facilitam a reprodução de suas
imagens para ele e para os outros; por isso, realiza atos práticos que servem à obra de reprodução. Esses
atos, como todo ato prático, são guiados por conhecimentos e por isso são chamados de técnicos-, e, por
serem práticos, distinguem-se da intuição, que é teórica, e parecem exteriores a esta, sendo então
chamados de físicos, e, quanto mais são fixados e abstraídos pelo intelecto, mais facilmente são assim
designados" (Breviario di E., em Nuovi saggi di E., II, pp. 39-40). E Gentile confirmava: "Admi-tindo-se
que o elemento estético consiste na subjetividade sentimental que conforma um pensamento, a
representação na qual esse pensamento se desenvolve e atua refere-se unicamente aos meios técnicos de
expressão. Alfieri é o mesmo poeta nos sonetos e nas tragédias, etc." (EU. deli'arte, VII, § 8).
c) Tem-se o conceito de arte como construção quando não se considera a atividade E. como receptividade
ou criatividade puras, mas como um encontro entre a natureza e o homem ou como um produto complexo
em que a obra do homem se acrescenta à da natureza sem destruí-la. Esse foi o conceito de arte de Kant,
que concebeu a atividade E. como uma forma de juízo reflexivo, ou seja, uma das formas da faculdade
que leva a ver a subordinação das leis naturais à liberdade humana ou o finalismo da natureza em relação
ao homem. Para Kant, o finalismo da natureza não é "um conceito da natureza" nem "um conceito da
liberdade", ou seja, não pertence só à natureza nem só ao homem, mas ao encontro entre a natureza e o
homem, pelo fato de que é na natureza que o homem deve realizar seus fins, experimentando um
sentimento de prazer (libertação de uma necessidade) quando essa realização lhe aparece possível,
quando a natureza se mostra capaz de servir aos fins humanos (Crít. do Juízo, Intr., V). No mesmo
conceito de atividade E., Kant incluía assim o de encontro entre o mecanismo natural e a liberdade
humana: encontro no qual a arte não prescinde da natureza, mas a subordina a si, e o homem frui dessa
subordinação como de
uma necessidade aplacada. O conceito pelo qual Kant exprimiu com mais freqüência o caráter construtivo
(nem imitativo nem criativo) da arte foi a atividade lúdica. Como atividade liberal ou não mercenária, a
arte é "um simples divertimento, ou seja, uma ocupação de per si agradável, que não necessita de outro
objetivo" (Ibid., § 43). Depois, a noção de atividade lúdica foi empregada para definir algumas artes em
particular, especialmente a eloqüência, a poesia e a música (Ibid., § 51). Tem esse mesmo significado o
conceito de atividade lúdica na doutrina de Schiller. O homem, sendo ao mesmo tempo natureza e razão,
é dominado por duas tendências contrastantes: a tendência materiale a ten-dêncinformal; essas tendências
são conciliadas pela tendência ao divertimento, que visa realizar a forma viva, isto é, a beleza (Über die
ãsthetische Erziehung des Menschen, 1793-95, XV; trad. it., p. 71). A tendência à atividade lúdica
harmoniza a liberdade humana com a necessidade natural. "Com liberdade ilimitada", diz Schiller, "o
homem pode reunir as coisas que a natureza separou e pode separar as que a natureza uniu... Mas só tem
esse direito de soberania no mundo das aparências, no reino irreal da imaginação e só enquanto se abstém
escrupu-losamente de afirmar sua existência no campo da teoria e de querer produzir sua existência
efetiva" (Ibid., XXVI, p. 134).
Portanto, a aparência E. (ou atividade lúdica) é o domínio em que o homem e a natureza colaboram, a
natureza limitando e condicionando a liberdade humana e esta, por sua vez, compondo e unificando os
dados naturais. Esse é o conceito construtivo, que não deixou de aparecer esporadicamente mesmo na E.
romântica do séc. XIX. O mais volumoso (senão o maior) tratado sobre essa E., E. ou ciência do belo
(1846-57) de F. T. Vischer, apesar de aceitar a Idéia hegeliana, isto é, a Razão autoconsciente como
princípio do mundo da arte, dizia que a Idéia estava em luta incessante contra obstáculos e influências que
Vischer chamava de "reino do acaso". Segundo Vischer, toda a vida do espírito é "a história da anulação e
da assimilação do acaso" (Àsthetik oder Wissenschaft des Schõnen, § 41), mas é só na beleza que o acaso
não é destruído, mas assimilado e organizado. Isso eqüivalia a ver na arte não uma obra de criação, como
a concebera Hegel, mas de construção condicionada.
Na E. contemporânea, predomina o conceito de arte como construção. Foi explicitamente
ESTÉTICA
371
ESTÉTICA
defendido por Valéry, que, com base nele, afirmou a excelência da arquitetura sobre todas as outras artes.
"Aquele que constrói ou cria", escreveu Valéry, "comprometido que está com o restante do mundo e com
o movimento da natureza, que tendem perpetuamente a dissolver, a corromper ou a derrubar o que ele faz,
deve entrever um terceiro princípio que ele tenta comunicar às suas obras, e que exprime a resistência que
ele deseja opor, por meio dele, ao seu destino de ser mortal. Cria, em suma, a solidez e a duração"
(Eupalinos, trad. it., p. 142). O mesmo conceito encontra-se repetido de várias formas nas considerações
estéticas de muitos poetas contemporâneos (v. POESIA) e é expresso por Dewey na forma mais apropriada
de colaboração ou oposição entre fazer e receber: "A arte, em sua forma, associa numa mesma relação o
fazer e o receber, a energia que sai e entra, que faz com que uma experiência seja experiência. O produto
é a obra de arte E., graças à eliminação de tudo o que não contribui para a organização mútua dos fatores
da ação e da recepção e graças à seleção dos aspectos e das características que contribuem para a sua
interpretação" (Art as Experience, 1934, cap. III; trad. it., p. 60). L. Pareyson, ao estudar a formação da
obra de arte e ao propor a sua teoria, delineou os caracteres da construção artística. "Fazer, inventando ao
mesmo tempo o modo de fazer; considerar a realização bem-sucedida como critério em si mesma;
produzir a obra inventando suas próprias normas; fazer que a invenção coincida com a produção, a
ideação com a realização, a concepção com a execução; agir de tal modo que a obra de arte seja ao
mesmo tempo a lei e o resultado de sua própria formação, são essas as muitas expressões equivalentes
para designar o processo de formação da arte e para indicar a coincidência entre ensaio e organização no
processo artístico" (Estética, 1954, p. 126). A tese fundamental dessa concepção de arte é a identidade
entre produção artística e técnica, assim como a distinção radical entre técnica e produção é a tese
característica da concepção de arte como criação. A chamada arte abstrata, que, mais do que as outras,
insiste na identidade entre técnica e produção é, em seu conjunto, uma manifestação desse modo de
entender a arte.
2
e
O segundo problema fundamental da E. é o da relação entre a arte e o homem, ou seja, da situação ou
posição da arte no sistema de
faculdades ou categorias espirituais. Podem-se distinguir a respeito três concepções fundamentais:
A) a que considera a arte como conhecimento;
B) a que a considera como atividade prática; O a que a considera como sensibilidade. A) A concepção da
arte como conhecimento
parece ser sugerida pela doutrina de Aristóteles, ainda que este tenha explicitamente atribuído a arte à
esfera da atividade prática, como veremos. Mas ele observa que a arte tem origem na tendência à
imitação, que é um aspecto do desejo de conhecer (Poet., TV, 1448b 5), afirmando sobre a poesia, em uma
passagem célebre, que ela é mais filosófica do que a história (Ibid., 9, 1451 b 5), o que parece querer
dizer que ela tem maior valor teorético do que a história por estar mais próxima da primeira ciência
teorética. Mas foi sobretudo o romantismo que insistiu no valor cognitivo da arte, vendo nela (Schelling)
"o órgão geral da filosofia", porquanto a arte permite apreender a "identidade entre a atividade consciente
e a inconsciente", que é Deus ou o Absoluto (System, cit., VI, 1). Hegel atribuía à arte um grau a menos,
situando-a abaixo da filosofia e da religião, mas reafirmava seu valor teórico ao incluí-la na esfera do
"Espírito absoluto", que é o mais alto conhecimento (ou "autoconsciência") que o Absoluto pode alcançar
de si mesmo (Ene, § 556). A E. de Croce e todas as que a tomam por modelo adotam essa inclusão. Desde
a primeira formulação de sua doutrina, Croce insistiu na definição da arte como primeiro grau do
conhecimento, ou seja, como "conhecimento intuitivo ou do particular" (É., 1902, cap. I). E sempre
insistiu na tese de que a arte é "uma teorese, um conhecer", que religa o particular ao universal e portanto
tem sempre a marca da universalidade e da totalidade (La poesia, 1936). Essa mesma tese também é o
pressuposto da E. de Gentile, em que a definição da arte como sentimento significa apenas a redução da
arte a pensamento "inatual", ou seja, que ainda não se realizou em um objeto (La filosofia deWarte, 1931,
cap. IV). Mesmo a doutrina bergsoniana da arte, formulada a propósito da função da comicidade, reduz a
arte à intuição, que é o órgão do conhecimento filosófico (Le rire, 1908, p. 160). Finalmente, a corrente
crítica que, em artes plásticas, foi chamada de corrente da "visibilidade pura", por ver nas formas e nos
graus das artes plásticas formas e graus
ESTÉTICA
372
ESTÉTICA
da visão, algumas vezes adotou essa noção da arte como conhecimento. Assim, p. ex., K. Fiedler disse:
"Só a verdade e o conhecimento parecem ser ocupações dignas do homem, e se quisermos dar à arte um
lugar entre as mais elevadas tendências do espírito será preciso indicar como objetivo seu apenas o
impulso para a verdade, o impulso para o conhecimento" (Aphorismen, em Schriften überKunst, 1914, II,
8, pp. 147 ss.).
B) A inclusão da arte na esfera da atividade prática é a tese explícita de Aristóteles. Dada a grande divisão
entre ciências teoréticas ou cognoscitivas, que têm por objeto o necessário, e ciências praticas, que têm
por objeto o possível, para Aristóteles a arte pertence ao domínio prático e constitui o objeto da poética,
ou seja, da ciência da produção, enquanto a outra subdivisão da prática é a ciência da ação {Et. nic, VI, 4,
1140 a 1). Não obstante a forte influência de Aristóteles (ou talvez porque essa influência tenha sido
anulada pela outra a que já nos referimos), a concepção da arte como atividade prática raramente voltou
na história da estética. Pode ser incluída nesse tópico a concepção da arte como atividade lúdica, exposta
pela primeira vez por H. Spencer, que considerou a arte como uma atividade que se desvinculou de sua
finalidade de adestramento biológico e tornou-se fim em si mesmo {Principies of Psychology, 1855, §§
535-36). Com algumas variantes, essa teoria foi retomada por K. Groos, que associou a arte à
"experiência sensorial lúdica" (Spiele des Menschen, 1889), mas foi sobretudo Nietzsche quem insistiu no
caráter prático da arte, vendo nela uma manifestação da vontade de potência. Segundo Nietzsche, a arte
está condicionada por um sentimento de força e de plenitude como o que se verifica na embriaguez. A
beleza é a expressão de uma vontade vitoriosa, de uma coordenação mais intensa, de uma harmonia de
todas as vontades violentas, de um equilíbrio perpendicular infalível: "A arte corresponde aos estados de
vigor animal. É, por um lado, um excesso de constituição vigorosa que transborda para o mundo das
imagens e dos desejos; por outro, é a exci-tação das funções animais, por meio das imagens e dos desejos
de uma vida intensa; é a exaltação do sentimento da vida e um estimulante à vida" {WillezurMacht, ed.
1901, § 361). É essencial à arte a perfeição do ser, o encaminhamento do ser para a plenitude; a arte é
essencialmente a afirmação, a divinização da
existência. O estado apolíneo (v.) nada mais é que a resultante extrema da embriaguez dionisíaca: é o
repouso de certas sensações extremas de embriaguez.
O A inclusão da arte na esfera da sensibilidade é uma tese platônica que reaparece no séc. XVIII com
inversão de sinal. Platão confinara a arte à esfera da aparência sensível e a caracterizara pela recusa de
sair dessa esfera com o uso do cálculo e da medida {Rep. X, 602 c-d). Mas no séc. XVIII, a noção de arte
como sensibilidade não é mais diminuição ou condenação: a arte aparece como a perfeição da
sensibilidade. O nascimento e a elaboração do conceito de gosto (v.), paralelamente ao nascimento e à
elaboração da categoria sentimento (v.) condiciona a nova apreciação da esfera da sensibilidade, própria
da filosofia dos setecen-tistas, e a inclusão das artes nessa esfera. Baumgarten achava que "o objetivo da
E. é a perfeição do conhecimento sensível enquanto tal" e que essa perfeição é a beleza (Aesthetica, 1750-
58, § 14). É bem verdade que ele considerava as representações E. como representações claras, mas
confusas, e assim estabelecia uma diferença só de grau entre estas e as representações racionais (que são
claras e distintas): o que, como Kant deveria observar freqüentemente, não é uma distinção suficiente
entre sensibilidade e inteligência {Crít. R. Pura, § 8; cf. Crít. dojuízo, Intr., § III). Mas é também verdade
que, muito embora com conceitos imperfeitos, Baumgarten tinha em mira reivindicar a autonomia da
esfera sensível. Viço incluía a poesia nessa esfera, em oposição a tudo o que "sobre a origem da poesia se
disse, primeiro por Platão, depois por Aristóteles, até os nossos Patrizi, Scaligeri, Castelvetri" (Sc. nuova,
1744, II, Delia metafísica poética). Segundo Viço, a tese desses autores era da poesia como "sabedoria
oculta", ou seja, "metafísica raciocinada e abstraída", ao passo que a tese de Viço era de que a poesia fora
metafísica "sentida e imaginada", tal como podia ocorrer em homens "que eram de nulo raciocínio, mas
de sentidos robustos e vigorosíssimas fantasias" {Ibid., 1744, II, Delia metafísica poética). Ora, segundo
Viço, metafísica (isto é, conhecimento) e poesia opõem-se totalmente: aquela purifica a mente dos
preconceitos da infância, esta neles imerge e derrama a mente; aquela resiste ao juízo dos sentidos, esta
faz deles a sua norma principal; aquela debilita a fantasia, esta a requer robusta; enfim, aquela só confere
pen-
ESTÉTICA
373
ESTÉTICA
samentos abstratos e isentos de paixão, esta só confere pensamentos concretos e corpulentos, que movem
com extraordinária violência os espíritos humanos (Sc. nuovaprima, 1725, III, 26, em Opere, ed. Ferrari,
IV, p. 227). A fantasia, que é o órgão da poesia, é definida por Viço como a faculdade que "altera e
contrafaz" as coisas (Sc. nuova, 1744, III, Dell' inarrivabile facoltà poética d'Omero); em geral, a fantasia
é tanto mais robusta quanto mais débil o raciocínio (Ibid., I, Elementi, 36). Com Kant, oficializava-se o
nascimento da "faculdade do sentimento" e a tal faculdade atribuía-se o juízo E., procurando-se
determinar, por conseguinte, os seus caracteres (Crít. do Juízo, Intr., § III). Na E. contemporânea, foi a
essa faculdade que se atribuiu arte com mais freqüência. Segundo Santayana, "a beleza é um prazer
considerado como a qualidade de uma coisa", sendo por isso sempre "uma emoção, um afeto da nossa
natureza volitiva e valorativa" (The Sense of Beauty, 1896, § 11). Para Dewey, igualmente, a arte é "uma
forma de sentimento" (Art as Experience, 1934, cap. IV).
3
e
O terceiro ponto de vista do qual se podem considerar as teorias estéticas é o da função atribuída à arte.
Todas as teorias incidem em dois grupos fundamentais, que consideram a arte a) como educação ou P)
como expressão. Como educação, a arte é instrumental; como expressão, é final.
a) A teoria da arte como educação é muitíssimo mais antiga e mais difundida. Platão condenou a arte
imitativa por reputá-la não-educativa e, mais, antieducativa (Rep., X, 605 a-c), mas aceitou e defendeu as
formas artísticas nas quais entreviu instrumentos educacionais úteis Ubid., III, 395 c). Aristóteles
afirmava que "a música não deve ser praticada só por um tipo de benefício que dela possa derivar, mas
por usos múltiplos, já que pode servir à educação, à catarse e, em terceiro lugar, ao repouso, ao
soerguimento da alma e à suspensão dos afazeres" (Pol., VIII, 7, 1341 b, 35). O que ele diz sobre a
música obviamente vale para todas as artes; igualmente, a catarse (v.) e o divertimento são procedimentos
educativos. O conceito da arte como educação persistiu por toda a Idade Média e não foi sensivelmente
alterado ou inovado pelas discussões estéticas do Renascimento. A tônica no caráter catãrtico da arte nada
mais é que a ênfase em sua instru-mentalidade educativa. Disso nem Viço duvidava, ao insistir nos "três
trabalhos que a grande
poesia deve realizar, quais sejam, encontrar fábulas sublimes condizentes com o entendimento popular e
que o perturbe ao extremo, para atingir o fim a que se propõe, que é ensinar o vulgo a agir virtuosamente,
assim como eles [os poetas] ensinaram a si mesmos" (Sc. nuova, II, Delia metafísica poética). Esse é
ainda o ponto de vista tradicional, para o qual a arte é um instrumento de aperfeiçoamento moral. Mas a
própria teoria da arte como conhecimento pertence ao âmbito da concepção instrumental ou educativa da
arte. Hegel expressou-a com toda a clareza possível. Procurando determinar o objetivo da arte na
introdução de Lições de E., ele elimina as teorias para as quais a finalidade da arte é a imitação, a
expressão (neste caso, seria verdadeira a fórmula da arte pela arte) ou o aperfeiçoamento moral, para
insistir no seguinte: a finalidade da arte é a educação para a verdade através da forma sensível que esta
reveste na arte, e o aperfeiçoamento moral é uma conseqüência inevitável da educação teórica. "É preciso
admitir", diz Hegel, "que a arte deve revelar a verdade na forma da representação sensível, que deve
representar a oposição reconciliada [entre forma sensível e conteúdo de verdade] e que, portanto, tem
objetivo em si mesma, nessa representação e manifestação" (Vorlesungen über Àsthetik, ed. Glockner, I,
p. 89). Mas a educação na verdade nada mais é que educação moral, e para Hegel a tarefa da arte é
produzir a morte da arte, ou seja, passar para as formas superiores de revelação da Verdade absoluta, que
são a religião e a filosofia (Ibid., III, pp. 579 ss.). Com certa atenuação ou confusão, esse ponto de vista
foi repetido por Croce, que reconhece que o conhecimento E. se conserva no conhecimento filosófico
assim como na arte se conserva a exigência moral ou a consciência do dever (Breviario diE., III). Às
teorias que vêem na arte um instrumento educativo com vistas à moral e ao conhecimento ultimamente se
somaram as que nela vêem um instrumento de educação política. Essas são as doutrinas que falam do
engajamento político em arte e que exigem do artista uma orientação política precisa, uma obra
harmonizada com as classes ou os grupos sociais majoritários menos favorecidos (ou com os partidos que
os representam ou pretendem representá-los), que os ajude no esforço de libertação e, portanto, de
conquista e de conservação do poder político. Do ponto de vista filosófico essa tese, própria das doutrinas
estéticas inspi-
ESTÉTICA
374
ESTETISMO
radas na ideologia comunista, não é mais absurda que as doutrinas tradicionais que estabelecem como
tarefa da arte a educação moral ou cognoscitiva. É verdade que a política tem exigências mais mutáveis e
mais arbitrárias que a moral ou o conhecimento: desse modo, o engajamento político apresenta o risco de
limitar de modo muito mais drástico que o engajamento moral ou cognoscitivo as direções em que podem
ser realizadas ou desenvolvidas as experiências artísticas e, portanto, bloquear antecipadamente
experiências que poderiam mostrar-se fecundas. Mas a autonomia, ou seja, o caráter final e não
instrumental da arte, tampouco é garantida pela doutrina que vê na arte um engajamento cognoscitivo ou
moral.
P) A teoria da expressão consiste em ver na arte uma forma final das vivências, das atividades ou, em
geral, das atitudes humanas (v. EXPRESSÃO). O que caracteriza a atitude expressiva é apresentar como fim
aquilo que para outras atitudes vale como meio. P. ex., ver, que é um meio para orientar-se no mundo e
para utilizar as coisas, torna-se um fim em arte, de tal modo que o pintor outra coisa não quer senão ver e
fazer ver. Por isso, também se diz que a expressão aclara e transporta para outro plano o mundo comum
da vida: as emoções, as necessidades e também as idéias ou os conceitos que dirigem a existência
humana. Dewey disse: "A emoção que foi elaborada por Tennyson, na composição In memoriam, não era
idêntica ao sentimento de dor que se manifesta no pranto e no abatimento: a primeira é um ato de
expressão, a segunda de desabafo. Todavia, é evidente a continuidade das duas noções, ou seja, o fato de a
emoção estética ser a emoção originária, transformada através do material objetivo ao qual foi confiado o
seu desenvolvimento e a sua realização" (Art as Experience, 1934, cap. IV; trad. it., pp. 94-95). Deste
ponto de vista, a arte não é natureza, mas, como diz Dewey, "natureza transformada pelo seu ingresso em
novas relações" (Jbid., 1934, cap. IV; trad. it., pp. 94-95), ou, como ainda se poderia dizer, retorno à
natureza. E não causa estranheza se, freqüentemente, do Renascimento ao impressionismo, o retorno à
natureza serviu para renovar profundamente e com êxito o estilo e o gosto da arte.
A concepção da arte como expressão talvez se disfarce nas afirmações de quem insiste no caráter teórico
ou contemplativo da arte, mas é mal disfarçada quando (como faz CROCE,
Breviario di E, III) se ironiza ao mesmo tempo sobre a fórmula da arte pela arte, que é a melhor definição
do caráter expressivo da arte. Nessa fórmula insistiram poetas e artistas modernos, que dela se valeram
para defender a arte das tentativas de escravização ou manipulação para fins que acarretariam a sua
completa subordinação e lhe tolheriam toda liberdade de movimento. Os textos correspondentes estão
citados no verbete POESIA. A fórmula que defendem deve ser considerada ainda hoje a melhor, a mais
eficiente defesa da atividade E. e das condições da sua fecundidade. De fato, porque essa atividade, como
qualquer outra, ocorre por tentativa, e bem pouco se pode dizer antecipadamente sobre o valor de uma
tentativa, prescrever algumas e proscrever outras, em nome de uma função moral, cognoscitiva ou política
da arte, significaria aumentar enor-memente o risco de insucesso, já que nada garante que a tentativa mais
promissora não esteja entre as eliminadas ou condenadas antecipadamente. O caráter expressivo da arte
também significa que as possibilidades de ver, contemplar e fruir que a arte realiza, as novas aberturas
para o mundo que ela revela, quando expressas na obra, estão à disposição de qualquer um que tenha
condições de entender a obra. A expressão é, por natureza, sua comunicação. A capacidade de julgar as
obras de arte de certo estilo chama-se gosto, e o gosto tende a difundir-se e a tornar-se uniforme em
determinados períodos ou em determinados grupos de indivíduos. Mas, sem dúvida, as possibilidades
comunicativas de uma obra de arte bem realizada são praticamente ilimitadas e também relativamente
independentes do gosto dominante. Isso significa que nem todos verão a mesma coisa numa obra de arte,
ou que nem todos vão fruí-la do mesmo modo. As respostas individuais diante dela podem ser
inumeráveis e apresentar ou não uniformidade de gostos. Mas o importante não é essa uniformidade, mas
a possibilidade que se abre a novas interpretações, a novos modos de fruir a obra. Aqueles que fruem uma
mesma obra de arte (p. ex., os ouvintes de Beethoven) não são como os membros de uma seita ou os
adeptos de uma mesma crença. Constituem, todavia, uma comunidade vinculada por um interesse comum
e aberta no tempo e no espaço. ESTETISMO (in. Aestheticism; fr. Esthétis-me, ai. Âstbetizismus, it.
Estetismó). Qualquer doutrina ou atitude que considere fundamen-
ESTILO
375
ESTOICISMO
tais e primordiais os valores estéticos e reduza ou subordine a eles todos os outros (mesmo e sobretudo os
morais). Neste sentido, pode-se chamar de E. tanto uma doutrina como a de Novalis ou de Schelling, que
vê na arte a revelação do Absoluto, quanto a de Oscar Wilde ou de D'Annunzio, para quem prevalecem os
valores estéticos na literatura e na vida.
O E. foi caracterizado por Kierkegaard como a atitude de quem vive no instante, ou seja, vive para colher
o que há de interessante na vida, desprezando tudo o que é banal, insignificante e mesquinho. O homem
estetizante, por isso, evita a repetição, que sempre implica monotonia e anula o atrativo das experiências
mais promissoras. O símbolo ou a encarnação do E. é, portanto, Don Juan, o sedutor. Para Kierkegaard, a
vida estetizante desemboca no tédio e, portanto, no desespero (Werke, II, p. 162).
ESTILO (in. Style, fr. Style, ai. Stil; it. Stilé). Conjunto de características que distinguem determinada
forma de expressão. Em sua origem, no séc. XVIII, a noção de estilo foi expressa pelo lema francês le
style c'est Vhomme même e considerada a manifestação na forma expressiva das características do sujeito
em sua relação com o material empregado. Hegel considerou demasiado restrita essa concepção e incluiu
no E. também as determinações que as condições da arte em questão produzem na forma expressiva;
nesse sentido, pode-se distinguir, p. ex., na música o E. gregoriano do E. operístico; na pintura, o E.
histórico do E. genérico, etc. ( Vorlesungen über die Àsthe-tik, ed. Glockner, I, pp. 394-95). Neste sentido,
o E. não seria o homem, mas a própria coisa. Em todo caso, porém, o E. seria uma certa uniformidade de
caracteres, encontrável em determinado domínio do mundo expressivo. "O E. se nos revela como uma
unidade de formas, de tônicas e de atitudes dominantes, numa complexa variedade de formas e
conteúdos", escreveu Lucian Blaga, que insistiu em estender o fenômeno E. a todo o mundo da cultura
(Orizzonte e stile, 1936; trad. it., 1946, p. 45). Às vezes, porém, viu-se no E. "o momento de invenção,
que não é invenção formalista de palavras ou de signos, mas de idéias" (G. MOR-PURGO TAGLIABUE, //
concetto dello stile, 1951, p. 352).
ESTÍMULO (in. Stimulus; fr. Stimulus; ai. Reiz, it. Stimolo). Qualquer objeto capaz de excitar um
receptor, ou seja, de provocar resposta
num organismo vivo (v. AÇÃO REFLEXA; PERCEPÇÃO; RESPOSTA).
ESTIFULAÇÃO (in. Stipulation, fr. Stipula-tion; ai. Übereinhunft; it. Stipulazionè). O ato de estabelecer
uma convenção, ou a própria convenção.
ESTOICISMO (in. Stoicism; fr. Stoicisme, ai. Stoizismus; it. Stoicismó). Uma das grandes escolas
filosóficas do período helenista, assim chamada pelo pórtico pintado (Stoá poikílé) onde foi fundada, por
volta de 300 a.C, por Zenão de Cício. Os principais mestres dessa escola foram, além de Zenão, Cleante
de Axo e Crisipo de Soles. Com as escolas da mesma época, epicurismo e ceticismo, o E. compartilhou a
afirmação do primado da questão moral sobre as teorias e o conceito de filosofia como vida
contemplativa acima das ocupações, das preocupações e das emoções da vida comum. Seu ideal,
portanto, é de ataraxia ou apatia (v.). Os fundamentos do ensinamento estóico podem ser resumidos da
seguinte forma:
1
Q
divisão da filosofia em três partes: lógica, física e ética (v. FILOSOFIA);
2
Q
concepção da lógica como dialética, ou seja, como ciência de raciocínios hipotéticos cuja premissa
expressa um estado de fato, imediatamente percebido (v. ANAPODÍTICO; DIALÉTICA);
3
S
teoria dos signos, que constituiria o modelo da lógica terminista medieval e o antecedente da semiótica
moderna (v. SEMIÓTICA; SIGNIFICADO);
4
a
conceito de uma Razão divina que rege o mundo e todas as coisas no mundo, segundo uma ordem
necessária e perfeita (v. DESTINO;
LIBERDADE; NECESSITARISMO);
5
Q
doutrina segundo a qual, assim como o animal é guiado infalivelmente pelo instinto, o homem é
guiado infalivelmente pela razão, e a razão lhe fornece normas infalíveis de ação que constituem o direito
natural (v. DIREITO; INSTINTO);
6
Q
condenação total de todas as emoções e exaltação da apatia como ideal do sábio (v. APATIA; EMOÇÃO);
1° cosmopolitismo (v.), ou seja, doutrina de que o homem não é cidadão de um país, mas do mundo;
8
a
exaltação da figura do sábio e de seu isolamento dos outros, com a distinção entre loucos e sábios (v.
SÁBIO; SABEDORIA).
Ao lado do aristotelismo, o estoicismo foi a doutrina que maior influência exerceu na histó-
ESTOIQUIOLOGIA
376
ESTRUTURA
ria do pensamento ocidental. Muitos dos fundamentos enunciados ainda integram doutrinas modernas e
contemporâneas.
ESTOIQUIOLOGIA (in. Stoicheiology). Foi esse o nome dado por Hamilton à parte da lógica que
estuda os aspectos elementares ou constitutivos dos processos do pensamento. Dividiu a E. em noética,
enoemática, apofân-tica e doutrina do raciocínio ilectures on Logic, I, p. 72).
ESTRITO (in. Strict; fr. Strict; ai. Streng; it. Strettó). Esse adjetivo às vezes se aplica ao direito ou ao
dever, para indicar seu caráter mais rigorosamente obrigatório. Kant diz.- "Há ações de tal modo
conformadas que seu princípio básico não pode sequer ser concebido sem contradições como lei universal
da natureza... Outras há em que não se encontra essa impossibilidade interna, mas que são tais que é
impossível querer que seu princípio básico seja elevado à universalidade de uma lei da natureza, porque
semelhante vontade se contradiria em si mesma. Vê-se facilmente que o princípio básico das primeiras é
contrário ao dever E. ou rígido (rigoroso), ao passo que o das segundas é contrário apenas ao dever em
sentido lato (meritório)" (Grundlegung zurMetaphysik der Sitten, II). Em outro techo, Kant chama de
direito E. o que "também pode ser representado como uma possibilidade de coação geral recíproca, de
acordo com a liberdade de cada um e segundo leis universais" (Met. der Sitten, Introdução à doutrina do
direito, § E). Essas considerações kantianas estão entre as mais precisas nessa matéria e, todavia, estão
bem longe de ser convincentes.
ESTRUTURA (in. Structure, fr. Structure, ai. Strukture, it. Strutturd). 1. Em sentido lógico, o mapa ou o
plano de uma relação: assim, diz-se que duas relações têm a mesma E. quando o mesmo plano vale para
ambas, ou seja, quando são análogas tanto quanto uma carta geográfica tem analogia com a região que
representa. Nesse sentido, a E. é o "número-relação", conceito generalíssimo que eqüivale a plano,
construção, constituição, etc. (RUSSEIX, Introduction to MathematicalPhilosophy,Vl; trad. it., pp. 74-75;
Human Knowledge, IV, 3; trad. it., pp. 362 ss.). A descrição formal de Russell molda-se ao uso corrente
do termo, p. ex., ao uso encontrado na terminologia de Marx e dos marxistas. Nessa terminologia, E. é a
constituição econômica da sociedade em que se incluem as relações de produção e as relações de
trabalho, ao
passo que superestrutura (v.) é a constituição jurídica, estatal, ideológica da própria sociedade (MARX,
Zur Kritik der politischen Òkono-mie, 1859, Pref.; Deutsche Ideologie, I).
Nesse sentido, a palavra E. é, por um lado, sinônimo de forma, no sentido presente no gestaltismo, que,
aliás, é também chamado estruturalismo ou psicologia estrutural (v. PSICOLOGIA); por outro lado, é
sinônimo de sistema (no significado 2) como conjunto ou totalidade de relações. Foi nesse último sentido
que essa palavra passou para a lingüística, para a estética e para os outros campos em que é hoje
comumente usada. O próprio Saussure falara de sistema: "A língua é um sistema cujas partes todas devem
ser consideradas em sua solidariedade sincrônica" {Cours de linguistique générale, III, § 3). Esse termo,
enfim, tem o significado genérico de sistema e poderia ser substituído por ele sempre que se fala de
estrutura como "um conjunto de elementos quaisquer, portanto abstratos, entre os, quais (ou entre alguns
de seus subconjuntos) tiverem sido definidas relações igualmente abstratas" (Granger), ou como "um
conjunto de elementos submetidos a determinadas relações" (Mouloud) ("La no-tion de structure" na
Revue Intern. de Phil., 1965, pp. 254, 315) ou de modos análogos (Sens et usage du terme Structure dans
les sciences humaines et sociales, aos cuidados de R. Bastide, 1962, passim-, The Structure ofLan-guage,
org. por Fodor e Katz, 1964, pp. 33 passim).
O mesmo se pode dizer do uso desse termo em antropologia, sobretudo por Lévi-Strauss; este define a E.
explicitamente como um sistema de elementos tal que uma modificação qualquer de um implica uma
modificação de todos os outros, considerando-a como um modelo conceituai que deve dar conta dos fatos
observados e permitir que se preveja de que modo reagirá o conjunto no caso da modificação de um dos
elementos {Anthropologie structurale, 1958, XV, I, pp.306 ss.).
2. Em sentido restrito e específico, a E. não é um plano qualquer ou qualquer sistema de relações, mas um
plano hierarquicamente ordenado, ou seja, uma ordem finalista intrínseca destinada a conservar o
máximo possível seu plano. Neste sentido específico, essa palavra foi usada por Dilthey, que com ela
designou o instrumento explicativo fundamental do mundo humano e histórico. Ele falou de uma
ESTRUTURA
377
ESTRUTURALISMO
"E. psíquica", entendida como "a ordem segundo a qual, na vida psíquica desenvolvida, os fatos psíquicos
de qualidade diferente estão interligados por uma relação interna que pode ser imediatamente vivida"
{Gesammelte Schrif-ten, VII, pp. 3 ss.; cf. Critica delia ragione storica, trad. it., p. 63). E utilizou esse
termo sobretudo para indicar as unidades elementares do mundo histórico, quais sejam indivíduos,
épocas, comunidades, instituições, sistemas culturais, entendendo por ele, nesse sentido, uma conexão
dinâmica centrada em si mesma, "vale dizer, que tem finalidade e seus critérios de avaliação em si
mesma" {Der Aujbau der geschichtlichen Welt in den GeistesuHssenschaf-ten, 1910, VI, 2; trad. it., em
Critica delia ragione storica, VI, 1, 2, pp. 243 ss.). A conexão dinâmica ou vital em que Dilthey viu o
caráter básico da E. foi traduzida por Spengler pelo conceito de organismo, do qual se serviu para
descrever as épocas históricas que nascem, declinam e morrem (v. ÉPOCA). Nesse sentido, esse termo é
usualmente empregado em biologia. Segundo explicitação recente de um biólogo, E. seria "a forma
relativa à função", assim como função seria a "E. que muda no tempo" (A. C. MOULYN, Structure,
Function and Purpose, 1957, pp. 22-23). No behavio-rismo, que hoje procura utilizar, com as devidas
correções, a experiência da cibernética, fala-se de "E. hierárquica", ou de "plano", como de "processo
hierárquico do organismo, que pode controlar a ordem na qual uma seqüência de operações deve ser
executada (MILLER, GALAN-TER, PRIBRAM, Plans and the Structure of Be-havior, 1967, p. 16). Nesse
sentido, a E. não é constituída simplesmente por um conjunto de elementos em relação, mas por uma
ordem hierárquica que tem o objetivo de garantir o êxito de sua função e sua própria conservação. Podese dizer que a E. é caracterizada pelo fato de propor como fim sua própria possibilidade de ser (cf.
ABBAGNANO, La struttura delVesisten-za, 1939).
Este significado, que parece o mais sutil, é, no entanto, o que mais corresponde ao uso desse termo na
linguagem comum. A E. de um edifício é a correlação entre suas partes, que assegura a estabilidade do
edifício e lhe permite corresponder ao uso a que é destinado. Em uma organização qualquer, E. é o plano
de atividades ou de órgãos que mantém em pé a organização e lhe permite realizar seus objetivos. Não é
semelhante a uma máquina précibernética ou a um organismo no sentido pré-evolucionista, mas é um plano articulado de elementos que,
dentro de certos limites, são suscetíveis de variações mais ou menos autônomas. Tanto no significado 1
quanto no 2, a E. pode ser concebida de dois modos: I) Como algo que constitui a ordem ou a substância
da realidade em exame e, portanto, determina necessariamente todas as suas determinações, de tal modo
que as torna infalivelmente previsíveis (Lévi-Strauss, Sapir. V. verbete seguinte); II) como modelo (v.) ou
constructo(y.) hipotético, passível de interpretações diversas, que exerça condicionamentos não
necessitantes e possibilite apenas previsões prováveis (estru-turalistas russos, cibernéticos).
ESTRUTURALISMO (in. Structuralism, fr. Structuralisme, ai. Strukturalismus; it. Struttu-ralismó).
Entende-se por este termo todo método ou processo de pesquisa que, em qualquer campo, faça uso do
conceito de Estrutura em um dos sentidos esclarecidos. Esse termo nasceu na Gestalt e na lingüística, em
que o E. foi defendido pelos russos R. Jakobson, N. Tru-betzkoy e inúmeros outros. Em antropologia, o
ponto de vista estruturalista foi introduzido por Radcliffe-Brown, no prefácio à obra African Systems
ofKinship and Mariage (1950), tendo sido difundido na antropologia moderna por Lévi-Strauss
{Anthropologie Structurale, 1958, espec. cap. XV). Também houve tentativas de estendê-lo a todas as
ciências humanas. Em sua exigência mais geral, o E. não só tende a interpretar um campo específico de
indagação em termos de sistema, como também a mostrar que os diversos sistemas específicos,
verificados em diversos campos (p. ex., antropologia, economia, lingüística), correspondem-se ou têm
características análogas. Lévi-Strauss, p. ex., julga possível que uma mesma estrutura possa ser
encontrada em três níveis da sociedade: no sentido de que as normas de parentesco e de casamento
servem para assegurar a comunicação das mulheres entre os grupos, assim como as normas econômicas
servem para assegurar a comunicação dos bens e dos serviços, e as normas lingüísticas, a comunicação
das mensagens {Anthropologie structurale, cap. III, p. 95).
O E. manifestou sua oposição a três frentes: historicismo, idealismo e humanismo. Contra o historicismo,
que é substancialmente uma consideração longitudinal da realidade, vale dizer, uma interpretação da
realidade em termos
ÉTER
378
ETERNIDADE
de devir, desenvolvimento e progresso, afirma o primado da concepção transversal (cross-sectiori), ou
seja, da concepção que considera a realidade como um sistema relativamente constante e uniforme de
relações. O sistema não é, por certo, considerado estático ou imóvel pelo E., porque se admite o estudo
diacrônico, além de sincrônico, do sistema, mas o estudo diacrônico está subordinado ao sincrônico,
considerando as mudanças temporais como transformações nas relações constitutivas de um sistema ou
como oscilações dessas transformações em torno do limite constituído pelo próprio sistema.
Contra o idealismo, o E. afirma a objetividade dos sistemas de relações, que, mesmo quando concebidos
como modelos conceituais, ou seja, como construções científicas, não se reduzem a um ato ou a uma
função subjetiva, mas têm como função fundamental explicar o maior número de fatos constatados.
Enfim, contra o humanismo o E. afirma a prioridade do sistema em relação ao homem, das estruturas
sociais em relação às escolhas individuais, da língua em relação ao falante individual e, em geral, da
organização econômica ou política em relação às atitudes individuais. Sapir escreveu: "Para nós, as
línguas são mais que sistemas de comunicação intelectual. São hábitos invisíveis que envolvem nosso
espírito e predeterminam a forma de todas as suas expressões simbólicas (Language, 1922, cap. XI, trad.
it., p. 218). Segundo Althusser, a estrutura global da sociedade determina todas as suas manifestações do
mesmo modo que a Substância de Spinoza determina todos os seus modos (Lire Le Capital, 1965, IX,
trad. it., pp. 196 ss.). Esse determinismo é uma conseqüência da interpretação realista do conceito de
estrutura, não se encontrando em sua interpretação como modelo (v.) ou constructo hipotético, passível de
interpretações diferentes. Contudo, como historicismo, idealismo e humanismo indeter-minista foram os
traços característicos do clima idealista da primeira metade do séc. XX, o E., em suas várias formas,
denuncia o dissolver-se desse clima na cultura contemporânea.
ÉTER (gr. aiOtíp; lat. Aether, in. Ether, fr. Éther, ai. Ether, it. Eteré). Este termo, que Em-pédocles usou
{Fr, 100.5, Diels) como equivalente a ar e Anaxágoras (Fr, 15, Diels) como equivalente a fogo, foi
empregado por Aristóteles para indicar a substância que compõe os céus e que, por não ser gerada, por ser
incorruptível e inalterável, distingue-se dos quatro elementos que constituem as coisas sub-lunares.
Aristóteles atribui o uso desse termo, que considera o mais adequado para indicar os céus como sede da
divindade, a uma tradição muito antiga: "Os homens, querendo indicar que o primeiro corpo é algo
diferente da terra, do fogo, do ar e da água, chamaram a região superior pelo nome de É., pelo fato de
'sempre correr' para a eternidade do tempo. Anaxágoras, porém, entendeu mal o nome, confundindo o É.
com o fogo" {De coei., I, 3, 270 b 20). Posteriormente o E. foi chamado de "quinto corpo", "quinta
substância" ou "quinto elemento" (Placit., I, 3, 22; 2, 25, 7; 2, 6, 2). Com o mesmo sentido atribuído por
Aristóteles, essa palavra é mencionada em Epinômides, atribuído a Platão (981 c, 984 b). Os estóicos
identificaram o É. com o fogo de Heráclito, dando-lhe, porém, a mesma função e a mesma dignidade
atribuída por Aristóteles. "Acima de todos está o fogo, que chamam de É., que constitui tanto a primeira
esfera imóvel dos céus como as outras esferas móveis" (DIÓG. L., VII, 137). Cícero ilustrava da seguinte
maneira essa teoria estóica: "Do É. surgem inumeráveis astros chamejantes dos quais o primeiro é o Sol,
que tudo ilumina com sua luz esplendorosa e é muitas vezes maior e mais extenso do que a Terra inteira, e
depois os outros astros de incomensurável grandeza" (De nat. deor., II, 36, 92; Acad., I, 7, 25). Essa
noção não foi alterada na tradição medieval, enquanto se acreditou na diferença de natureza entre
substância celeste e substância sublunar, o que foi negado, pela primeira vez, por Nicolau de Cusa (De
docta ignor., II, 12).
No início do séc. XIX, Fresnel restaurou o uso desse substantivo para designar um hipotético meio
elástico que daria sustentação às ondas luminosas. A hipótese do É. foi mantida em física até ser superada
pela teoria da relatividade geral.
ETERNIDADE (gr. àíStóiriç, aicóv; lat. Aetemitas; in. Eternity, fr. Éternité, ai. Ewígheit; it. Eternitã).
Esse termo tem dois significados fundamentais: I
a
duração indefinida no tempo; 2° intemporalidade como
contemporaneidade. A filosofia grega conheceu ambos os significados. Heráclito expressou o primeiro ao
afirmar que o mundo "foi desde sempre, é e será fogo sempre vivo que se acende a intervalos e a
intervalos se apaga" (Fr. 30, Diels). Parmê-nides, por sua vez, exprimiu o segundo: "O ser
ETERNIDADE
379
ETERNIDADE
não foi, nem será, mas é no presente simultaneamente uno, contínuo" (Fr. 8, Diels). Platão contrapôs
explicitamente os dois significados: "Da substância eterna dizemos erroneamente que era, que é e que
será, mas na verdade só lhe cabe o é, ao passo que o era e o será devem ser predicados apenas da geração
que procede no tempo" (Tim., 37 e). Aristóteles utilizou ambos os conceitos. Por um lado o mundo fora do
qual não há espaço vazio, nem tempo, abrange toda a extensão do tempo e é eterno (De caelo, I, 9, 279 a
25). Nesse sentido, E. é duração (ccicóv). Por outro lado, as substâncias imóveis, motores dos céus, são
eternas em outro sentido: no sentido de estarem fora do tempo. "Os entes eternos (xà aei ÕVTOC),
porquanto eternos", diz Aristóteles, "não estão no tempo: não são abarcados pelo tempo nem por ele são
medidos; o sinal disso é que eles não sofrem a ação do tempo, não estando no tempo" (Fís., IV, 12, 221, b
3).
Essa distinção aristotélica tornou-se clássica. Plotino identificou a E. (oawv) com o modo de ser do
mundo inteligível, ou seja, com "o que persiste na sua identidade, que está sempre presente para si mesmo
em sua totalidade, que não é ora um, ora outro, mas é, simultaneamente, perfeição indivisível, assim
como a do ponto onde se unem todas as linhas sem se expandirem, ponto que persiste em si mesmo na
sua identidade e não sofre modificações, que existe sempre no presente, sem passado nem futuro, mas é o
que é e é sempre" (Enn., III, 7, 3). A esse respeito, Plotino repete a concepção de Parmênides e de Platão:
eterno é o que não era nem será, mas apenas é. S. Agostinho analisou o tempo com base na contraposição
entre tempo e E. (Conf, XI, 11; Deciv. Dei, XI, 4, 6), e Boécio exprimia corretamente a distinção entre os
dois conceitos de E.: "Não se pode legitimamente considerar eterno o que é condicionado pelo tempo,
ainda que, como Aristóteles pensou do mundo, não tenha princípio nem fim, e ainda que sua vida se
prolongue na infinidade do tempo. Pois, mesmo sendo infinita, sua vida não compreende nem abrange sua
própria duração inteira, visto que ainda não compreende nem abrange o futuro e já não abrange o passado.
Portanto, só o que abrange e possui igualmente, em sua totalidade, a plenitude de uma vida sem limites,
de tal sorte que nada lhe falte do futuro e nada lhe haja escapado do passado, só esse é o ser que deve ser
considerado eterno: ele se possui necessariamente por inteiro no presente e possui no presente a infinidade do tempo" (Phil. cons., V, 6, 6-8).
Depois de Boécio essa distinção tornou-se lugar-comum em filosofia. S. Tomás fixou com precisão a
terminologia correspondente. A E., como "posse total, simultânea e perfeita de uma vida sem limites",
caracteriza-se por: 1Q
ausência de princípio e fim; 2° ausência de sucessão, porquanto é um presente
eterno. A duração (aevum), porém, é peculiar às coisas que estão sujeitas ao movimento local e para o
resto são imutáveis, como ocorre com o céu, que é, por isso, algo de intermediário entre a E. e o tempo
(S. Th., I, q. 10, a. 1, 5). Esse conceito de E. também foi adotado pelo racionalismo moderno. Spinoza
identifica a E. com a existência da Substância, porque implícita em sua essência e, portanto, necessária.
Esclarece: "Tal existência, enquanto verdade eterna, é concebida como a essência da coisa; no entanto,
não pode ser explicada por meio da duração ou do tempo, mesmo que se conceba a duração sem princípio
e sem fim" (Et., I, def. 8, ciar.). Portanto, conceber as coisas sob o aspecto da E. (sub specie aeternitatis)
significa concebê-las como manifestações da essência divina e necessariamente derivadas de sua natureza
(Ibid., V, 30). Leibniz afirma, contra Locke, a precedência de uma "idéia do absoluto", que serviria de
fundamento à noção da E. (Nouv. ess., II, 14, 27). Toda a filosofia hege-liana é concebida do ponto de
vista da E. assim entendida. Hegel nega que a E. possa ser entendida negativamente como abstração ou
negação do tempo, ou como se viesse depois do tempo (Ene, § 258). Para ele, a E. é o totum simul das
determinações da Idéia. "A Idéia, eterna em si e por si, atualiza-se, produz-se e frui-se a si mesma
eternamente como espírito absoluto" (Ibid., § 577).
"Intemporalidade" e "presente eterno" são as expressões mais repetidas também na filosofia
contemporânea, sempre que se utiliza a noção de eternidade. É a última expressão que aparece, p. ex., na
obra de Lavelle, O tempo e aE. (1945), assim como em muitos outros idealistas e espiritualistas
contemporâneos. McTag-gart, porém, observara que conceber a E. como "eterno presente" é uma
metáfora não de todo apropriada porque com ela se faz referência ao tempo, já que o presente é uma parte
do tempo e supõe passado e futuro; propôs considerar o eterno situado no futuro, no fim ou na
consumação dos tempos (em Mind, 1909, p.
ÉTICA
380
ÉTICA
355). Hoje, de fato, está bem claro que a concepção 2 de E., tal como foi expressa, com uma
uniformidade impressionante, de Parmênides até nós, não passa de imagem reduzida do tempo: é o tempo
reduzido a uma de suas determinações, a simultaneidade (o totutn simut), que, como hoje todos sabem, é
não só tempora-lidade, mas temporalidade mensurável. Quanto à concepção da E. como aevum, ou seja,
como duração temporal indefinida, choca-se com as objeções já expostas por Kant em sua crítica à
cosmologia racional do séc. XVIII (v. COSMO-LOGIA).
ÉTICA (gr. TÒ í|0iKá; lat. Ethica-, in. Ethics; fr. Éthique, ai. Ethik, it. Ética). Em geral, ciência da
conduta. Existem duas concepções fundamentais dessa ciência: I
a
a que a considera como ciência do fim
para o qual a conduta dos homens deve ser orientada e dos meios para atingir tal fim, deduzindo tanto o
fim quanto os meios da natureza do homem; 2- a que a considera como a ciência do móvel da conduta
humana e procura determinar tal móvel com vistas a dirigir ou disciplinar essa conduta. Essas duas
concepções, que se entremesclaram de várias maneiras na Antigüidade e no mundo moderno, são
profundamente diferentes e falam duas línguas diversas. A primeira fala a língua do ideal para o qual o
homem se dirige por sua natureza e, por conseguinte, da "natureza", "essência" ou "substância" do
homem. Já a segunda fala dos "motivos" ou "causas" da conduta humana, ou das "forças" que a
determinam, pretendendo ater-se ao conhecimento dos fatos. A confusão entre ambos os pontos de vista
heterogêneos foi possibilitada pelo fato de que ambas costumam apresentar-se com definições
aparentemente idênticas do bem. Mas a análise da noção de bem (v.) logo mostra a ambigüidade que ela
oculta, já que bem pode significar ou o que é (pelo fato de que é) ou o que é objeto de desejo, de
aspiração, etc, e estes dois significados correspondem exatamente às duas concepções de E. acima
distintas. De fato, é característica da concepção I
a
a noção de bem como realidade perfeita ou perfeição
real, ao passo que na concepção 2a
encontra-se a noção de bem como objeto de apetição. Por isso, quando
se afirma que "o bem é a felicidade", a palavra "bem" tem um significado completamente diferente
daquele que se encontra na afirmação "o bem é o prazer". A primeira asserção (no sentido em que é feita,
p. ex., por Aristóteles e por S. Tomás), significa: "a felicidade é o fim da conduta humana, dedutível da natureza racional do homem", ao
passo que a segunda asserção significa "o prazer é o móvel habitual e constante da conduta humana".
Como o significado e o alcance das duas asserções são, portanto, completamente diferentes, sempre se
deve ter em mente a distinção entre ética do fim e ética do móvel, nas discussões sobre ética. Tal
distinção, ao mesmo tempo que divide a história da É., permite ver como são irrelevantes muitas das
discussões a que deu ensejo e que outra causa não têm senão a confusão entre os dois significados
propostos.
l
e
Ambas as doutrinas éticas elaboradas por Platão, quais sejam, a que se encontra expressa em A
República e a que está expressa em Filebo, pertencem à primeira das concepções que distinguimos. A É.
exposta em A República é uma E. das virtudes, e as virtudes são funções da alma (Rep., I, 353 b)
determinadas pela natureza da alma e pela divisão das suas partes ilbid., IV, 434 e). O paralelismo entre as
partes do Estado e as partes da alma permite a Platão determinar e definir as virtudes particulares, bem
como a virtude que compreende todas elas: a justiça como cumprimento de cada parte à sua função (Ibid.,
443 d). Analogamente, a É. de Filebo começa definindo o bem como forma de vida que mescla
inteligência e prazer e sabe determinar a medida dessa mistura (Fil., 27 d). A É. de Aristóteles é, aliás, o
protótipo dessa concepção. Aristóteles determina o propósito da conduta humana (a felicidade), a partir da
natureza racional do homem (Et. nic, I, 7), e depois determina as virtudes que são condição da felicidade.
Por sua vez, a É. dos estóicos, com a sua máxima fundamental de "viver segundo a razão", deduz as
normas de conduta da natureza racional e perfeita da realidade (J. STOBEO, Ecl., II, 76, 3; DIÓG. L., VII,
87). O misticismo neoplatônico colocou como propósito da conduta humana o retorno do homem ao seu
princípio criador e sua integração com ele. Segundo Plotino, esse retorno é "o fim da viagem" do homem,
é o afastamento de todas as coisas exteriores, "a fuga de um só para um só", ou seja, do homem em seu
isolamento para a Unidade divina (Enn., VI, 9,11).
Por mais diferentes que sejam as doutrinas mencionadas, em suas articulações internas as formulações são
idênticas, pois: à) determinam a natureza necessária do homem, b) de-duzem de tal natureza o fim para o
qual sua
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conduta deve orientar-se. Toda a É. medieval mantém-se fiel a esse esquema. Assim, p. ex., toda a É. de
S. Tomás é deduzida do princípio de que "Deus é o último fim do homem" (5. Th., II, 2, q. 1, a. 8), do
qual se infere a doutrina da felicidade e a da virtude. Pode-se entrever uma crítica contra essa formulação
em Duns Scot e em muitos escolásticos do séc. XIV: as normas morais fundam-se pura e simplesmente no
mandamento divino, com exceção da norma que impõe obedecer a Deus,. que seria a única "natural" {Op.
Ox., III, d. 37, q. 1; cf. OCKHAM, In Sent., II, q. 5 H). Com efeito, esse recurso ao arbítrio divino é
resultado do reconhecimento da impossibilidade de deduzir da natureza do homem o fim último de sua
conduta {Op. Ox., IV, d. 43, q. 2, n. 27, 32). Mas nem por isso se abriu uma alternativa à indagação ética.
Na filosofia moderna, os neoplatônicos de Cambridge retomam a concepção estóica de ordem do universo
que também vale para dirigir a conduta do homem; portanto, insistem no caráter inato das idéias morais,
bem como, em geral, de todas as idéias gerais ou diretivas de que o homem dispõe (CUDWORTH, The True
Intell. System, 1678, I, 4; MORE, Enchiridion, 1679, III). A filosofia romântica deu forma mais radical a
essa concepção ética. Fichte exige que toda a doutrina moral* seja deduzida da "autodeterminação do Eu"
{Sittenlehre, Intr., § 9)- Por isso, vê como objetivo da moral a adequação do eu empírico ao Eu infinito;
essa adequação nunca é completa e por isso provoca um progresso ad infinitum, a liberação progressiva
do eu empírico de suas limitações {Ibíd., em Werke, II, p. 149). Segundo Hegel, o objetivo da conduta
humana, que é ao mesmo tempo a realidade em que tal conduta encontra integração e perfeição, é o
Estado. Por isso, para Hegel, a É. é filosofia do direito. O Estado é "a totalidade ética", Deus que se
realizou no mundo {Fil. do dir., § 258, Zusatz). O Estado é o ápice daquilo que Hegel chama de
"eticidade" {Sitt-lichkeii), isto é, a moralidade que ganha corpo e substância nas instituições históricas que
a garantem; ao passo que a "moralidade" {Mo-ralitái) por si mesma é simplesmente intenção ou vontade
subjetiva do bem. Mas, por sua vez, o bem é "a essência da vontade em sua substancialidade e
universalidade", ou então, "a liberdade realizada, o objetivo final e absoluto do mundo" {Ibid., §§ 139-
42), ou seja, o próprio Estado. Assim, pode-se dizer que, para
Hegel, a moralidade é a intenção ou a vontade subjetiva de realizar o que se acha realizado no Estado. O
conceito de Estado é o ponto de partida e o ponto de chegada da É. de Hegel. A É. de Rosmini conformase à É. tradicional; segundo ele o bem identifica-se com o ser, de tal modo que a máxima fundamental da
conduta pode ser assim formulada: "Querer ou amar o ser onde quer que seja este conhecido, segundo a
ordem que ele apresenta à inteligência" {Princ. delia scienza morale, ed. nacional, p. 78). Mas, quer se
defina a realidade como Ser, quer se defina como Espírito ou Consciência, a estrutura das doutrinas
morais que entendem inferir a moral de seu objetivo mostram grande uniformidade de procedimentos e
conclusões. Consideremos, p. ex., na filosofia contemporânea, a É. de Green e a de Croce. Segundo
Green, a Consciência infinita, Deus, é, ab aetemo, tudo o que o homem tem a possibilidade de vir a ser,
ou seja, o Bem ou Fim supremo, que é o objeto da boa vontade humana; à razão cabe a tarefa de concebêlo e de colocá-lo como fundamento de sua lei {Prole-gomena to Ethics, 3
a
ed., 1890, pp. 198, 214).
Querer o bem significa, portanto, querer a Consciência absoluta, procurar realizar o que está presente
nela. Do mesmo modo, para Croce a atividade ética é "volição do universal", mas o universal "é o
Espírito, é a Realidade enquanto verdadeiramente real, enquanto unidade de pensamento e vontade; é a
Vida apreendida em sua profundidade como unidade; é a Liberdade, se uma realidade assim concebida for
perpétuo desenvolvimento, criação, progresso" {Filosofia delia pratica, 1909, p- 310). Agir moralmente
significa, portanto, querer o Espírito infinito, assumi-lo como um Fim: formulação essa que (assim como
a de Fichte, Hegel, Green) não se distingue da É. tradicional que (como a de Platão, Aristóteles, S. Tomás
e Rosmini) recorre à Realidade ou ao Ser. Uma forma mais complexa e moderna da É. do fim pode ser
vista na doutrina de Bergson, que distinguiu a moral fechada da moral aberta. Moral fechada é aquilo que
se entende co-mumente por esse termo. No mundo humano, corresponde ao que é o instinto em certas
sociedades animais, pois seu propósito é conservar a sociedade. "Suponhamos por um instante", diz
Bergson, "que, na outra ponta da linha [na ponta da linha evolutiva da inteligência, diferente da linha do
instinto], a natureza tenha desejado obter sociedades em que fosse permi-
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tida certa amplitude à opção individual: nessas sociedades, agiria de tal modo que, em termos de
regularidade, a inteligência obteria resultados comparáveis aos do instinto na outra ponta da linha: teria
recorrido a hábitos. Cada um desses hábitos, que podem ser chamados de 'morais', será contingente, mas
seu conjunto, ou seja, o hábito de contrair hábitos, por estar na base das sociedades, terá uma força
comparável à do instinto tanto em intensidade quanto em regularidade" (Deuxsources, I; trad. it., p. 23).
Do outro lado, porém, está a moral dos profetas e dos inovadores, dos místicos e dos santos. Essa é a
moral em movimento, fundada na emoção, no instinto, no entusiasmo: moral que é impulso de renovação
coincidente com o próprio impulso criador da vida. Segundo Bergson, essa dualidade de forças
fundamenta a moral: "Pressão social e impulso de amorsào duas manifestações complementares da vida,
normalmente dedicadas à conservação, em linhas gerais, da forma social característica da espécie humana
desde a origem, mas excepcionalmente capazes de transfigurá-la graças a indivíduos que, assim como o
surgimento de uma nova espécie, representam um esforço de evolução criadora" ilbid., p. 101). Assim, do
ideal de renovação moral, Bergson deduziu a existência de uma força destinada a promover essa
renovação, assim como do conceito de "sociedade fechada" deduziu a noção de moral corrente. Sua É.,
portanto, obedece à clássica formulação da É. do fim.
Quando, na filosofia contemporânea, a noção de valor (v.) começou a substituir a de bem, a antiga
alternativa entre É. do fim e É. da motivação assumiu nova forma. Com efeito, o valor subtrai-se à
alternativa própria da noção de bem, que pode ser interpretada ou em sentido objetivo (como realidade)
ou em sentido subjetivo (como termo de apetição). O valor possui modo de ser objetivo, no sentido de
que pode ser entendido ou apreendido independentemente da apetição; mas, ao mesmo tempo, é dado em
certa forma de experiência específica. O valor, portanto, é constantemente reconhecido como dotado de
três caracteres: d) objetividade; b) simplicidade, graças à qual é indefinível e indescritível, do mesmo
modo que uma qualidade sensível elementar; c) necessidade ou problematicidade. Esta última é a
alternativa que, no âmbito da noção de valor, substitui a alternativa entre subjetividade e objetividade, típica da noção de bem. Ora, as doutrinas que reconhecem a necessidade do valor, ou seja, sua
absolutidade, sua eternidade, etc, têm estreito parentesco com as doutrinas éticas tradicionais do fim, ao
passo que as doutrinas que reconhecem a problematicidade do valor são estreitamente aparentadas com as
doutrinas éticas da motivação. As doutrinas de Scheler e Hartmann estão entre as que afirmam a
necessidade do valor. Scheler elaborou sua "É. material dos valores" justamente com o fim de imunizar a
É. contra o relativismo a que conduz a É. material do bem, que vê no bem simples objeto de apetição.
Segundo Scheler, as apetições (aspirações, impulsos ou desejos) têm seus fins em si mesmas, ou seja, "no
sentimento, contemporâneo ou anterior, dos seus componentes axiológicos". Os fins da apetição podem
tornar-se propósitos da vontade quando representados e escolhidos, tornando-se assim um dever-ser real,
vale dizer, termos de uma experiência objetiva. Mas os valores são dados anterior e independentemente
tanto em relação aos fins quanto em relação aos propósitos, sendo também dadas independentemente de
tais fins e propósitos as preferências dos valores, isto é, sua hierarquia. Scheler diz: "De fato, podemos
sentir os valores, mesmo os morais, na compreensão dos outros, sem que eles se transformem em objeto
de aspiração ou sejam imanentes a uma aspiração. De modo semelhante, podemos preferir ou pospor um
valor a outro, sem com isso optar entre aspirações voltadas para esses valores. Todos os valores podem
ser dados e preferidos sem nenhuma aspiração" iFormalismus, p. 32). Em outros termos, a É. não se
funda na noção de bem nem na de fins imediatamente presentes à aspiração ou em propósitos
deliberadamente almejados, mas na intuição emotiva, imediata e infalível dos valores e das suas relações
hierárquicas; intuição é base de qualquer aspiração, desejo e deliberação voluntária. Hartmann expressou
de forma mais didática, clara e eficaz essa mesma concepção de ética: "Existe um reino de valores
subsistente em si mesmo, um autêntico 'mundo inteligível' que está além da realidade e além da
consciência, uma esfera ideal ética, não construída, inventada ou sonhada, mas efetivamente existente e
apreensível no fenômeno do sentimento axiológico, subsistindo ao lado da esfera ôntica real e da esfera
gno-siológica atual" (Ethik, 1926, p. 156). O "serem si" dos valores ressalta que eles não dependem
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da mesma intuição axiológica em que são dados e, portanto, são necessários e absolutos, o que, como
pretendia Hartmann, deveria conter o avanço do "relativismo axiológico de Nietzsche" Çlbid., p. 139).
No entanto, o "relativismo axiológico de Nietzsche" tem a mesma estrutura formal, ou seja, a mesma
elaboração da É. de Hartmann e, em geral, da É. tradicional do fim, porque também se funda em uma
hierarquia absoluta de valores. Para Scheler e Hartmann, essa hierarquia, assim como os próprios
valores, é de todo independente da escolha humana; aliás, toda escolha é pressuposta pela escolha, quer
esta se conforme ou não a ela. Essa também é a crença de Nietzsche. Só que, para Nietzsche, essa
hierarquia é diferente: é a hierarquia dos valores vitais, dos valores em que se encarna a Vontade de
Poder: "Até hoje os valores morais ocuparam posição superior; quem poderia duvidar deles? Mas
retiremos esses valores de sua posição e mudaremos todos os valores: inverteremos o princípio da sua
hierarquia precedente" (Wille zur Macht; trad. fr. Bianquis, III, 503). O imoralismo de Nietzsche, seu
"relativismo axiológico", que o leva a criticar a moral corrente e ver nela formas camufladas de egoísmo e
hipocrisia, é simplesmente a proposta de uma nova tábua de valores, fundada no princípio de aceitação
entusiástica da vida, na preeminência do espírito dionisíaco. É por esse motivo que Nietzsche pretende
substituir as virtudes da moral tradicional pelas novas virtudes em que se exprime a vontade de potência.
É virtude toda paixão que diz sim à vida e ao mundo: "a altivez, a alegria e a saúde; o amor sexual, a
inimizade e a guerra; a veneração, as belas aptidões, as boas maneiras, a vontade forte, a disciplina da
intelectualidade superior, a vontade de potência, o reconhecimento para com a terra e para com a vida:
tudo o que é rico e quer dar, quer recompensar a vida, dourá-la, eternizá-la e divinizá-la" (Jbid., § 479).
Assim, daquilo que considerou a natureza do homem, a vontade de potência, Nietzsche deduziu a tábua
de valores morais que deveriam dirigir o homem para a realização da vontade de potência num mundo de
super-homens. A estrutura de sua doutrina não é, portanto, diferente da estrutura de muitas outras que,
utilizando o mesmo processo, tendem a conservar e justificar as tábuas de valores tradicionais,
deduzindo-as da natureza do homem ou da estrutura do ser.
2
a
A segunda concepção fundamental da É. é a que se configura como uma doutrina do móvel da conduta.
A característica dessa concepção é que nela o bem não é definido com base na sua realidade ou perfeição,
mas só como objeto da vontade humana ou das regras que a dirigem. Assim, enquanto na primeira
concepção as normas derivam do ideal que se assume como próprio do homem (a perfeição da vida
racional, segundo Aristóteles, o Estado, segundo Hegel, a sociedade fechada ou aberta, segundo Bergson,
etc); na segunda concepção procura-se em primeiro lugar determinar o móvelâo homem, ou seja, a norma
a que ele de fato obedece; portanto, define-se como bem aquilo a que se tende em virtude desse móvel, ou
aquilo que se conforma à norma em que ele se exprime. Assim, quando Pródico formulava sua moral em
proposições condicionais ou imperativos hipotéticos, estava criando uma das primeiras É. do móvel.
Dizia: "Se quiseres que os deuses te sejam benévolos, deves venerar os deuses. Se quiseres ser amado
pelos amigos, deves beneficiar os amigos. Se desejares ser honrado por uma cidade deves ser útil à
cidade. Se aspiras a ser admirado por toda a Grécia, deves esforçar-te por fazer bem à Grécia", etc.
(XENOF., Memor.. II, i, 28). Do mesmo modo, Protágoras aspira a uma E. do móvel quando reconhece que
o respeito mútuo e a justiça são as condições para a sobrevivência do homem. Esse é o sentido do mito de
Prometeu, que Protágoras expõe no diálogo homônimo de Platão {Prot., 322 c). E a obra conhecida com o
nome de Anônimo de Jâmblico reafirma esse ponto de vista. "Mesmo que houvesse (mas não há) um
homem invulnerável, insensível, com corpo e alma de aço, só aliando-se às leis e ao direito, fortalecendoos e utilizando sua força por eles e em favor deles, poderia salvar-se, pois de outro modo não poderia
resistir" (Anôn.Jâmbl., 6, 3). Nessas formulações, o que se costuma evidenciar é o mecanismo dos móveis
que fundam as normas do direito e da moral: para sobreviver, o homem conforma-se a tais regras e não
pode agir de outro modo. Em tais formulações, o móvel da conduta humana é o desejo ou a vontade de
sobreviver. Em outras formulações do mesmo gênero, esse móvel é o prazer. Aristipo afirmava que só o
prazer é desejado por si mesmo, e via a confirmação disso no fato de que, desde a infância, os homens
procuram o prazer sem vontade deliberada e, quando o alcançam, não procuram
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ÉTICA
outra coisa, ao passo que evitam a dor, que é o seu oposto (DIÓG. L., II, 88). O princípio da É. de Epicuro
tem o mesmo significado de reconhecimento daquilo que, de fato, é o móvel da conduta humana: "Prazer
e dor são as duas afeições que se encontram em todo animal, uma favorável e outra contrária, através das
quais se julga o que se deve escolher e o que se deve evitar" (DIÓG. L., X, 34).
Essa concepção de É. esteve ausente durante toda a Idade Média e só é retomada no Renascimento.
Lorenzo Valia foi o primeiro a reapresentá-la em De voluptate, afirmando que o prazer é o único fim da
atividade humana e que a virtude consiste em escolher o prazer (De vol., II, 40). Telésio reapresenta a
outra alternativa tradicional da mesma concepção (De rer. nat, IX, 2), extraindo as normas da É. do desejo
de conservação que existe em cada ser. Com rigor e sistematização, Hobbes via nesse mesmo princípio o
fundamento da moral e do direito: "O principal dos bens é a autoconservação. Com efeito, a natureza
proveu a que todos desejem o próprio bem, mas para que possam ser capazes disso é necessário que
desejem a vida, a saúde e a maior segurança possível dessas coisas para o futuro. De todos os males,
porém, o primeiro é a morte, especialmente se acompanhada de sofrimento; mas, como os males da vida
podem ser tantos, se não for previsto seu fim próximo, levarão a incluir a morte entre os bens" (De bom.,
XI, 6). Nessa tendência à autoconservação e, em geral, à consecução de tudo o que é útil, Spinoza viu a
ação necessitante da Substância divina: "A razão nada exige contra a natureza, mas exige por si mesma,
acima de tudo, que cada um ame a si mesmo, que procure aquilo que seja realmente útil para si, que
deseje tudo o que conduz o homem à perfeição maior e, de modo absoluto, que cada um se esforce, no
que estiver a seu alcance, para conservar o próprio ser. O que é necessariamente tão verdadeiro quanto é
verdadeiro que o todo é maior que a parte" (Et., IV, 18, scol.). Locke e Leibniz concordavam quanto ao
fundamento da ética. Locke dizia: "Uma vez que Deus estabeleceu um laço entre a virtude e a felicidade
pública, tornando a prática da virtude necessária à conservação da sociedade humana e visivelmente
vantajosa para todos os que precisam tratar com as pessoas de bem, não é de surpreender que todos não só
queiram aprovar essas normas, mas também recomendá-las aos
outros, já que estão convencidos de que, se as observarem, auferirão vantagens para si mesmos" (Ensaio,
I, 2, 6). E Leibniz, por sua vez, reconhecia como fundamento da moral o princípio de "adotar a alegria e
evitar a tristeza", considerando-o, porém, mais relacionado com o instinto do que com a razão (Nouv. ess.,
I, 2, 1). Como se vê, a É. dos sécs. XVII e XVIII tem alto grau de uniformidade: não só ela é uma
doutrina do móvel como também a oscilação que apresenta entre "tendência à conservação" e "tendência
ao prazer" como base da moral não implica uma diferença radical, já que o próprio prazer não passa de
indicador emocional das situações favoráveis à conservação (v. EMOÇÃO). Semelhante É. opõe-se
radicalmente à É. do fim, ou seja, à É. em sua formulação tradicional que se encontra em Platão, em
Aristóteles e na Escolástica. A característica fundamental da filosofia moral inglesa do séc. XVIII, que
tem importância particular na história da E., consiste em evidenciar e assumir como tema principal de
discussão precisamente a oposição entre a É. do móvel e a É. do fim, que pareceu idêntica à oposição
existente entre razão e sentimento. Hume diz: "Há uma controvérsia surgida recentemente, que é muito
mais digna de exame e que gira em torno dos fundamentos gerais da moral: se eles derivam da razão ou
do sentimento, se chegamos ao conhecimento deles por meio de uma seqüência de argumentos e de
induções ou por meio de um sentimento imediato e de um sutil sentido interno" (Inq. Cone. Morais, I).
Hume afirma que o primeiro a aperceber-se dessa distinção foi Lord Shaftesbury; na verdade, Shaftesbury
falou de um sentido moral, que é uma espécie de instinto natural ou divino, especificação no homem do
princípio de harmonia que regula o universo (Características de homens, maneiras, opiniões e tempos,
1711). Já Hutchinson interpretava o sentido moral como tendência a realizar "a maior felicidade possível
do maior número possível de homens" (Indagação sobre as idéias de beleza e de virtude, 1725, III, 8),
fórmula que será adotada por Beccaria e por Bentham. Foi Hume quem encontrou a palavra que exprimia
essa nova tendência: o fundamento da moral é a utilidade. Em outros termos, é boa a ação que
proporciona "felicidade e satisfação" à sociedade, e a utilidade agrada porque corresponde a uma
necessidade ou tendência natural: a que inclina o homem a promover a felicidade dos seus semelhantes
ÉTICA
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ÉTICA
(Inq. Cone. Morais, V, 2). Portanto, razão e sentimento constituem igualmente a moral; segundo Hume, "a
razão nos instrui sobre as diversas direções da ação, a humanidade nos faz estabelecer a distinção em
favor daquelas que são úteis e benéficas" ilbid., Ap. I). Para Hume, o sentimento de humanidade, ou seja,
a tendência a ter prazer pela felicidade do próximo, é o fundamento da moral, o móvel fundamental da
conduta humana. Alguns anos mais tarde, Adam Smith chamará de simpatia esse sentimento do
espectador imparcial que olha e julga a sua conduta e a dos outros {The Theory of Moral Sentiments,
1759, III, 1).
Pelo fato de a concepção moral de Kant corresponder às características fundamentais da doutrina do
móvel, está claro que deve ser inserida nessa tradição. Em primeiro lugar, Kant julga que "o conceito do
bem e do mal não deve ser determinado antes da lei moral (cujo fundamento aparentemente deveria ser),
mas depois dela e através dela" (Crít. R. Prática,!, 1, 3)- Isto quer dizer que Kant compartilha a
concepção (2) do bem, que corresponde à É. do móvel. Em segundo lugar, é justamente com base nos
móveis (Bestimmungsgründé) que Kant classifica as diferentes concepções fundamentais do princípio da
moralidade (Ibid., I, 1, § 8, nota 2). Em terceiro lugar, Kant considera a lei moral como um fato (Factum),
porque "não pode ser deduzida de dados precedentes da razão, como p. ex. da consciência da liberdade",
mas se impõe por si mesma como um sic volo, sic iubeoÚbid., § 7). Desse modo, Kant transferiu o móvel
da conduta do "sentimento" para a "razão", utilizando o outro lado do dilema proposto pelos moralistas
ingleses. Com isso, quis garantir a categoricidade da norma moral, ou seja, o caráter absoluto de comando
graças ao qual ela se distingue dos imperativos hipotéticos de técnicas e prudência. Em vista dessa
exigência, a É. kantiana sem dúvida compartilha com a concepção (1) da É. a preocupação básica de
ancorar a norma de conduta na substância racional do homem. Mas, deixando de lado essa preocupação
absolutista (que deve ser explicada pelo "rigorismo" kantiano), a É. de Kant tem grande afinidade com a
É. dos moralistas ingleses do séc. XVIII (pelos quais, aliás, nas obras iniciais Kant não escondeu sua
simpatia), não só na formulação fundamental como também nos resultados. Se o sentimento, ao qual
recorriam os moralistas ingleses, era a tendência à felicidade do próximo, a razão, à
qual Kant recorre, é a exigência de agir segundo princípios que os outros podem adotar. Conquanto essa
fórmula possa parecer mais rigorosa e mais abstrata que as empregadas pelos filósofos ingleses, seu
significado é o mesmo. O que ambas pretendem sugerir como princípio ou móvel da conduta é o
reconhecimento da existência de outros homens (ou, como queria Kant, de outros seres racionais") e a
exigência de comportar-se em face deles com base nesse reconhecimento. O imperativo kantiano de tratar
a humanidade, tanto na primeira pessoa quanto na pessoa do próximo, sempre como fim e nunca como
meio, não passa de outra expressão dessa mesma exigência, que os moralistas ingleses chamavam de
"sentido moral" ou "sentido de humanidade". Infelizmente, a evolução sofrida pela filosofia moral de
Kant a partir de Fichte teve como ponto de partida mais freqüente o seu arsenal dogmático e absolutista
do que suas colocações fundamentais e a substância de seus ensinamentos morais. Tanto esses
ensinamentos quanto a postura de que dependem estão de acordo com a É. setecentista, com a diretriz
moral do iluminismo, mas com esta não se coaduna a contraposição estabelecida por Kant entre o mundo
moral e o mundo natural e, portanto, entre a É. e a ciência da natureza. Essa oposição ingressa na doutrina
de Kant a partir do arsenal absolutista de sua É., ou seja, a partir do aspecto que a transformou em menina
dos olhos dos metafísicos moralistas do séc. XIX, em pretexto para inumeráveis (e inoperantes)
perquirições a respeito do caráter absoluto do dever, bem como do acesso que ele permitiria a uma
Realidade superior e in-condicionada (a do "númeno"), sem nenhuma relação com a realidade fenomênica
e condicionada da natureza. Ainda hoje, muitas vezes amigos e adversários da É. de Kant vêem nela
exclusivamente esse aspecto; os primeiros para exaltá-la como ancoradouro seguro de todas as certezas
referentes à vida moral, os últimos para condená-la como baluarte das ilusões metafísicas no campo
moral. Mas uma consideração dessa É. que se subtraia a tais alternativas e a veja no quadro da É.
setecentista, cuja postura compartilhou, ao mesmo tempo em que pretendeu fundamentá-la com
necessidade rigorosa, talvez permita apreciá-la mais adequadamente. Pode, efetivamente, abrir caminho
para a utilização das análises kantianas com vistas à formulação da É. como técnica da con-
ÉTICA
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duta, independente de pressupostos metafísicos.
Nesse ínterim, em clima positivista, a É. do móvel tinha a pretensão de valer como ciência exata da
conduta. Helvétius dizia: "Acredito que se deve tratar a moral como todas as outras ciências e fazer uma
moral como se faz uma física experimental" {De 1'esprit, 1758, 1, p. 4). Mas essa pretensão caracteriza
sobretudo o utilitarismo do séc. XIX, encabeçado por Ben-tham. Segundo ele, os únicos fatos de que se
pode partir no domínio moral são os prazeres e as dores. A conduta do homem é determinada pela
expectativa de prazer ou de dor, e esse é o único motivo possível de ação. Com estes fundamentos a
ciência da moral torna-se tão exata quanto a matemática, embora seja muito mais intricada e ampla
(Jntroduction to the Principies of Morais and Legislation, 1789, em Works, I, p. V). Desse ponto de vista,
consciência, sentido moral, obrigação moral, são conceitos fictícios ou "não-entidades". A realidade que
tais conceitos ocultam é o cálculo dos prazeres e das dores em que repousa o comportamento moral do
homem, cálculo cujos princípios Bentham quis estabelecer fornecendo a tábua completa dos móveis de
ação, que deveria servir de guia para as legislações futuras. Na realidade, a obra de Bentham inspirou a
ação reformadora do liberalismo inglês e ainda hoje seus princípios estão incorporados na doutrina do
liberalismo político. O utilitarismo de James Mill e de John Stuart Mill não passa de defesa e ilustração
das teses fundamentais de Bentham. O positivismo inspirou-se no mesmo ponto de vista: a realização da
moral do altruísmo, cujo arauto é Comte e cujo princípio é: "viver para os outros", também fica por conta
de instintos simpáticos que, segundo Comte, podem ser gradualmente desenvolvidos pela educação, até
que dominem os instintos egoístas {Caté-chismepositiviste, 1852, p. 48). A É. biológica de Spencer adota
essas teses. Spencer vê na moral a adaptação progressiva do homem às suas condições de vida. O que o
indivíduo enxerga como dever ou obrigação moral é resultado de experiências repetidas e acumuladas
através de inúmeras gerações: é o ensinamento que essas experiências propiciaram ao homem em sua
tentativa de adaptar-se cada vez mais às suas condições vitais. Spencer prevê ainda uma fase em que as
ações mais elevadas, necessárias ao desenvolvimento harmônico da vida, serão tão comuns quanto hoje o
são as ações
inferiores a que somos impelidos pelo desejo; nessa fase, portanto, a antítese entre egoísmo e altruísmo
não terá mais sentido {Data ofEthics, § 46). Pode-se dizer que a É. do evolucionismo não passa da
expressão, em termos de otimismo positivista, da É. fundada no princípio da autoconservaçâo que Telésio
e Hobbes reintro-duziram no mundo moderno.
Na filosofia contemporânea, essa concepção de É. não sofreu mudanças nem apresentou progressos
substanciais. Bertrand Russell limitou-se a repropô-la na forma mais simples e grosseira, afirmando que
"a É. não contém afirmações verdadeiras ou falsas, mas consiste em desejos de certa espécie geral"
{Religion and Science, 1936). Dizer que alguma coisa é um bem ou um valor positivo é outro modo de
dizer "agrada-me" e dizer que algo é mau significa exprimir igualmente uma atitude pessoal e subjetiva.
Contudo, Russell acha que é possível influir nos próprios desejos, reforçando alguns e reprimindo ou
destruindo outros. E julga também que isso deve ser feito por quem almejar a felicidade ou o equilíbrio da
vida. Mas está claro que essa posição é contraditória: se a É. nada tem a ver com desejos, faltam motivos
ou critérios para que um deles prevaleça sobre os outros. Na E. de Russell, perdeu-se um dos aspectos
fundamentais da É. inglesa tradicional: a exigência do cálculo de tipo benthamiano, ou seja, da disciplina
na escolha dos desejos, ou melhor, das alternativas possíveis de conduta. No entanto, foi justamente a esse
ponto de vista tão mutilado que se filiou a concepção de É. predominante no positivismo lógico, segundo
a qual os juízos éticos expressam tão-somente "os sentimentos de quem fala, sendo portanto impossível
encontrar um critério para determinar a sua validade" (AYER, Language, Truth and Logic, p. 108; cf.
STEVENSON, Ethics and Language, p. 20). O que, obviamente, é o ponto de vista de Russell, para quem a
É. trata de desejos e não de asserções verdadeiras ou falsas; é um ponto de vista que marca a renúncia à
compreensão dos fenômenos morais, e não um avanço em sua compreensão. Mostra-se mais frutífero o
ponto de vista de Dewey, cuja E. se vincula à noção de valor. Dewey tem em comum com boa parte da
filosofia do valor (v.) a crença de que os valores são não só objetivos, mas também simples e, portanto,
indefiníveis, mas não a crença de que eles são absolutos ou necessários. Para Dewey, os valores são
qualidades
ÉTICA
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ETIOLOGIA
imediatas sobre as quais, portanto, nada há a dizer; só em virtude de um procedimento crítico e reflexivo
é que podem ser preferidos ou preteridos {Jheory of Valuation, 1939, p 13). Mas eles são fugazes e
precários, negativos e positivos, além de infinitamente diferentes em suas qualidades. Daí a importância
da filosofia, que, como "crítica das críticas", em primeiro lugar tem o objetivo de interpretar
acontecimentos para deles fazer instrumentos e meios da realização dos valores, e em segundo lugar, o de
renovar o significado dos valores (Experien-ce and Nature, pp. 394 ss.). Essa tarefa da filosofia é
condicionada pela renúncia à crença na realidade necessária e no valor absoluto. "Abandonar a busca da
realidade e do valor absoluto e imutável pode parecer um sacrifício. Mas essa renúncia é a condição para
o empenho numa vocação mais vital. Na busca dos valores que podem ser garantidos e compartilhados
por todos, porque vinculados aos fundamentos da vida social, a filosofia não encontrará rivais, mas
coadjutores, nos homens de boa vontade" {The Questfor Certainty, p. 295). Essas considerações de
Dewey certamente circunscrevem o quadro em que a investigação ética contemporânea deve mover-se,
mas não lhe oferecem instrumentos eficazes. Ainda falta na É. contemporânea uma teoria geral da moral
que corresponda à teoria geral do direito (v.), ou seja, uma teoria que considere a moral como técnica de
conduta e se dedique a considerar as características dessa técnica e as modalidades com que ela se realiza
em grupos sociais diferentes. Obviamente, uma teoria geral da moral não partiria de compromisso prévio
com determinada tábua de valores; seu compromisso seria simplesmente com a consideração da
constituição das tábuas dos valores que se oferecem ao estudo histórico e sociológico da vida moral, com
a descoberta, se possível, das condições formais ou gerais de tal constituição. Mas poderia (e deveria)
utilizar amplamente a É. do séc. XVIII e, em geral, a É. da motivação, apresentando-se como a
continuação dessa concepção.
A propósito das relações entre moral e direito, cabe aqui reafirmar o que se disse a propósito do direito,
ou seja, que tais relações podem configurar-se de varias maneiras, mas nunca se especificam como
relações de hetero-geneidade ou independência recíprocas. A É. como técnica de conduta à primeira vista
parece mais ampla que o direito como técnica de
coexistência, mas se refletirmos que toda espécie ou forma de conduta é uma forma ou espécie de
coexistência, ou vice-versa, logo veremos que a distinção dos dois campos é apenas circunstancial, com
vistas a delimitar problemas particulares, grupos de problemas ou campos específicos de consideração e
estudo.
ÉTICAS, VIRTUDES (gr. r|6iKai; áperaí; lat. Virtutes morales; in. Ethical Virtues, fr. Vertus morales; ai.
Ethische Tugenden; it. Virtú eti-ché). Segundo Aristóteles, são as virtudes que correspondem à parte
apetitiva da alma, na medida em que esta é moderada ou guiada pela razão {Et. nic, I, 13, 1102 b 16), e
que consistem no justo meio (v. MEIO) entre dois extremos, dos quais um é vicioso por excesso, o outro
por deficiência {Ibid., II, 6, 1107 a 1). As virtudes É. são: coragem, temperança, li-beralidade,
magnanimidade, mansidão, franqueza e justiça; esta última é a maior de todas {Ibid., III-V); cf. os
verbetes respectivos.
ETICIDADE (ai. Sittlichkeif). Hegel fez uma distinção entre moralidade, que é a vontade subjetiva,
individual ou pessoal, do bem, e a E., que é a realização do bem em realidades históricas ou institucionais,
que são a família, a sociedade civil e o Estado. "A E.", diz Hegel, "é o conceito de liberdade, que se
tornou mundo existente e natureza da autoconsciência" {Fil. do dir., § 142). As instituições éticas têm
uma realidade superior à da natureza, porque constituem uma realidade "necessária e interna" (Ibid., §
146). A mais elevada manifestação da E., o Estado, é Deus, que ingressou no mundo, um "Deus real"
{Ibid., § 258, Zusatz). Essa distinção entre moralidade e E. só foi repetida entre os seguidores da escola
hegeliana.
ÉTICO-RELIGIOSAS, ANTINOMIAS (ai. Etisch-religiose Antinomien). Antíteses em que se expressa
o conflito entre o ponto de vista ético e o ponto de vista religioso. Foram enunciadas por Nicolai
Hartmann do seguinte modo: 1Q
a ética está radicada nesta existência, enquanto a religião tende a uma
existência radicada além desta; 2° a ética está voltada para o homem, a religião para Deus; 3Q
a ética
afirma a autonomia dos valores, a religião os subordina à vontade de Deus; 4
a
a ética funda-se na
liberdade humana, a religião transfere toda iniciativa a Deus (Etbik, 1926, 3a
ed., 1949, pp. 811-17).
ETIOLOGIA (in. Etiology, fr. Étiologies-, ai. Aetiologie, it. Etiologid). Pesquisa ou determinação das
causas de um fenômeno. Esse
r
ETNOGRAFIA 388 EU
termo é usado quase exclusivamente em medicina.
ETNOGRAFIA (in. Ethnograph; fr. Ethno-grafie, ai. Ethnographie, it. Etnografid). O mesmo que
ETNOLOGIA. Às vezes, o primeiro estágio da pesquisa antropológica: observação e descrição, trabalho de
campo (LÉVT-STRAUSS, An-thropologie structurale, 1958, cap. XVII).
ETNOLOGIA (in. Ethnology, fr. Ethnologie, ai. Ethnologie, it. Etnologia). Uma das disciplinas do
tronco sociológico. Tem por objeto os modos de vida de grupos sociais ainda existentes ou dos quais
ainda se conserve abundante documentação. A E. se interessa sobretudo pelo estudo da cultura dos povos
"primitivos". Distingue-se da sociologia apenas pela forte tendência, observada em seus cultores, a insistir
nas características individuais dos grupos estudados e, portanto, a não levar em conta os problemas
sociológicos gerais. Lévi-Strauss considera a E. como o primeiro passo, depois da descrição etnográfica,
para a síntese antropológica: a síntese etnológica pode ser geográfica, histórica ou sistemática
(Anthropologie structurale, 1958, cap. XVII).
ETOLOGIA1
(do gr. ê6oç; in. Ethology, fr. Ethologie, ai. Ethologie, it. Etologid). Termo cunhado por
Wundt para designar o estudo histórico descritivo dos costumes e das representações morais {Logik, II, 2,
369). Esse termo não teve muita repercussão e raramente é empregado. O estudo descritivo dos costumes
é parte integrante da sociologia.
ETOLOGIA2
(do gr. rjeoç; in Ethology, fr. Ethologie, ai. Ethologie, it. Etologid). Termo cunhado por
Stuart Mill para designar a ciência que estuda as leis da formação do caráter. Essas leis derivariam das leis
gerais da psicologia, aplicadas às influências que as circunstâncias ambientais exercem sobre a formação
do caráter. A E. se distinguiria da sociologia porquanto a primeira seria a ciência do caráter individual, e a
segunda a ciência do caráter social ou coletivo {Logic, VI, 5, § 3). Essa palavra não teve repercussão,
tendo sido quase universalmente aceita para designar a mesma ciência a palavra caracterologia (v.) .
EUOat. Ego, in. /, Self; fr. Moi; ai. Ich; it. Io). Este pronome, com que o homem se designa a si mesmo,
passou a ser objeto de investigação filosófica a partir do momento em que a referência do homem a si
mesmo, como reflexão sobre si ou consciência, foi assumida como definição do homem. Foi isso que aconteceu com Descartes, que foi o primeiro a formular em termos
explícitos o problema do eu. "O que sou eu então?", perguntava Descartes. "Uma coisa que pensa. Mas o
que é uma coisa que pensa? É uma coisa que duvida, concebe, afirma, nega, quer ou não quer, imagina e
sente, Certamente não é pouco que todas essas coisas pertençam à minha natureza. Mas por que não lhe
pertenceriam?... É de per si evidente que sou eu quem duvida, entende e deseja, e que não é preciso
acrescentar nada para explicá-lo" (Méd., II). Como se vê, aqui o problema do eu é imediatamente
acompanhado pela sua solução: o eu é consciência, relação consigo mesmo, subjetividade. Esta é a
primeira das interpretações historicamente dadas do eu. Podem ser enumeradas as outras interpretações
seguintes: eu como autocons-ciência; eu como unidade; eu como relação.
I
a A definição cartesiana do eu como consciência foi imediatamente acolhida e incorporada à tradição
filosófica. Locke adotou-a e a reelaborou com o fim de justificar uma característica formal do eu: unidade
ou identidade. Dizia: "Quando vemos, ouvimos, cheiramos, provamos, tocamos, meditamos ou queremos
uma coisa, percebemos que a fazemos. O mesmo ocorre com nossas sensações e percepções atuais, e
nesse caso cada um é para si mesmo o que ele chama de si mesmo, não se levando aqui em conta o fato de
que o mesmo eu continue nas mesmas substâncias ou em substâncias diferentes. E como o pensamento é
sempre acompanhado pela consciência do pensamento, sendo ela que faz que cada um seja aquilo que
cada um chama de si-mesmo, distinguin-do-se assim de todas as outras coisas pensantes, nisso apenas
consiste a identidade pessoal" (Ensaio, II, 27, 11). Em outros termos, segundo Locke, a identidade do eu
não se funda na unidade ou na simplicidade da substân-cia-alma, mas unicamente na consciência, e é,
aliás, essa consciência que se reconhece na diversidade das suas manifestações. Leibniz, embora insistisse
na importância daquilo que ele chamava de consciência ou sentimento do eu, não acreditava que ela
apenas constituísse a identidade pessoal, e lhe acrescentava "a identidade física e real" (Nouv. ess., II, 27,
10). Este ponto de vista encontra-se freqüentemente expresso na filosofia moderna e contemporânea, que
às vezes acentuou o caráter ativo ou volitivo da consciência. Foi o que fez, p. ex., Maine de Biran: "A
causalidade ou a força (ou
EU
389
EU
seja, o eu), que se manifesta para si mesma só por meio de seu efeito ou do sentimento imediato do
esforço que acompanha todo movimento ou ato voluntário, é precisamente como o primeiro raio, a
primeira luz captada pela visão interior da mente" (Nouv. ess. d'anthro-pologie, II, 1). Assim, para Maine
de Biran, o eu é a consciência originária do esforço. Mas a melhor expressão da doutrina do eu como
consciência foi dada por Kant, que dizia: "Eu, como pensante, sou um objeto do sentido interno, e me
chamo alma. O que é objeto do sentido externo se chama corpo. Portanto, a expressão eu, como ser
pensante, designa já o objeto da psicologia que se pode chamar de doutrina racional da alma, quando eu
não quero saber mais da alma do que aquilo que, independentemente da experiência (que me determina
mais de perto e concretamente), se pode concluir a partir desse conceito do eu, presente em cada
pensamento" {Crít. R. Pura, Dialética, II, cap. 1). Ao lado desse eu como "objeto do sentido interno", ou
seja, consciência (cf. Prol., § 46), Kant admite uma outra espécie de eu, que marca a transição para uma
segunda interpretação desse conceito. A interpretação do eu como consciência foi freqüente na filosofia
moderna e contemporânea. 'Rosmini dizia: "A palavra eu une ao conceito geral de alma a relação da alma
consigo mesma, relação de identidade; contém, portanto, um segundo elemento, distinto do conceito de
alma: é uma alma que se apercebe de si mesma, se pronuncia, se exprime" {Psicol., § 6).
2
a
A interpretação do eu como Autocons-ciência nasce da distinção que Kant fizera entre o eu como
objeto da percepção ou do sentido interno e o eu como sujeito do pensamento ou da apercepção pura, isto
é, o eu da reflexão {Antr., I, § 4, nota; cf. AUTOCONSCIÊNCIA). Esta distinção, que, em Kant, jamais teria
conduzido à substancialização metafísica do eu, dada a funcionalidade que Kant atribui ao eu, deveria ser
assumida por Fichte como ponto de partida para a doutrina doEu absoluto, Segundo KanCT o eu
da"rêfIêxâo~Õú da_jiEgja^2CJü3j3u_ra éji_ condição última do conhecer; Fichte faz dele o criador da
realidade. 'Torser absoluto", diz ele, ''o"~~E"u__é infinito e ilimitado^le dispçxTtudo o que é: e o que ele
não dispõe não é (para ele; mas fora dele nada existe). Mas tudo o que dis-põe, ele dispõe como Eu; e
dispõe o eu como tudo o que dispõe. Portanto, nesse aspecto, o Eu abarca em sijoda a realidade, uma
realidade infinita e ilimitada" {Wissenschaftslehre, 1794, III, § 5, II; trad. it., p. 207). Essas teses foram adotadas
e ampliadas por Schelling, graças a quem se tornaram expressões características do romantismo. Na obra
O eu como princípio da filosofia ou o incondicionado no saber hu-mano (1795), ele identifica o Eu de
Fichte com a Substância de Spinoza. "Nessa época", Schelling escreveu a Hegel, "tornei-me adepto de
Spinoza. Quer saber como? Para Spinoza o mundo é tudo, para mim tudo é o Eu." E embora Hegel
negasse essa tese, considerando como saber absoluto (e, portanto, também como realidade absoluta) o
saber em que desapareceu a distinção entre Eu e não-Eu, entre subjetivo e objetivo, também ele
compartilha da tese do caráter infinito do Eu. Disse: "O Eu, essa consciência imediata de si, aparece em
primeiro lugar, por um lado, como imediato, por outro como conhecido em sentido muito mais elevado do
que qualquer outra representação. Todas as outras coisas conhecidas pertencem de fato e certamente ao
Eu, mas ao mesmo tempo são diferentes dele e, portanto, ganharam conteúdo acidental; o Eu, porém, é a
simples certeza de si. Mas o Eu em geral é também, ao mesmo tempo, um concreto, ou melhor, o Eu é o
concretíssimo, a consciência de si como de um mundo infinitamente múltiplo" {Wissenschaft der Logik, I,
livro I; trad. it., I, pp. 65-66). Gen-tile apenas repetia a colocação fichtiana e romântica quando dizia: "O
eu é certamente o indivíduo, mas o indivíduo como sujeito que nada tem a contrapor a si mesmo e que
encontra tudo em si; por isso, é o concreto atual e universal. Ora, esse Eu, que é o próprio absoluto, é
enquanto se põe; é causa sui" {Teoria generale dello spirito, XVII, § 7).
3
a
Já na interpretação do eu como consciência e como autoconsciência insiste-se às vezes no caráter
formal do eu, ou seja, em sua unidade ou identidade. Viu-se que, para Locke, o eu é a consciência que
funda a identidade pessoal, e para Kant o eu da reflexão é "a unidade da apercepção pura" {Crít. R. Pura,
§ 16; v. APERCEPÇÃO). O próprio Hume vira em certa forma de unidade, ainda que fictícia, o caráter
fundamental do eu, que ele comparara a uma república em que podem ocorrer mudanças nos homens que
a governam, em sua constituição e em suas leis, sem que por isso ela perca a identidade. O homem, do
mesmo modo, pode mudar suas impressões e suas idéias, permanecendo o mesmo eu {Treatise, I, 4, 6).
Todavia
EU
390
EUBUIIA
para Hume, como se vê por essa mesma imagem, a unidade não é absoluta nem rigorosa: é formal e
aproximativa, fundada na constância relativa de certas relações entre as partes ou momentos do eu. Esse
ponto de vista, talvez mais do que o outro que afirma a rigorosa unidade do eu, evidencia os limites e os
perigos aos quais o eu está sujeito na experiência efetiva.
4
S
o conceito do eu como inter-relação nasce do reconhecimento do caráter mais evidente com que o eu
se apresenta nessa experiência: o caráter de problematicidade, em virtude do qual ele é uma formação
instável que pode estar sujeita à doença e à morte. A noção de inter-relação é, de fato, mais genérica e
menos comprometedora do que a noção de unidade. A unidade é uma forma de inter-relação necessária,
imutável e absoluta, uma inter-relação pode ser mais ou menos firme e romper-se. Foi sob o ângulo da
"doença mortal" do eu, a desesperação, que Kierkegaard definiu o eu como "relação que se relaciona
consigo mesma". O homem é uma síntese de alma e corpo, de infinito e finito, de liberdade e necessidade,
etc. Síntese é inter-relação, e a reversão dessa inter-relação, ou seja, a relação da relação consigo mesma,
é o eu do homem iDie Krankheit zum Tode, 1849, cap. I). Kierkegaard acrescentava que precisamente por
relacionar-se consigo mesmo, o eu é relacionar-se com outro: com o mundo, com os outros homens e com
Deus. É nesta segunda inter-relação que por vezes os filósofos contemporâneos insistem. Santayana dizia:
"Quando digo eu, esse termo sugere um homem, um entre os muitos que vivem em um mundo que está
em conflito com o seu pensamento, mas que o domina" (Scepti-cism and Animal Faith, 1923, ed. 1955,
p.22). De um ponto de vista diferente, Scheler chega a um conceito análogo do eu: "À palavra eu está
associada a alusão ao tu, por um lado, e a um mundo externo, por outro. Deus, p. ex., pode ser uma
pessoa, mas não um eu, já que para ele não há tu nem mundo externo" (Formalismus, etc, p. 405). É
precisamente da inter-relação que Heidegger lança mão para definir o eu. "A assunção 'Eu penso alguma
coisa' não pode ser adequadamente determinada se o 'alguma coisa' ficar indeterminado. Se, porém, o
'alguma coisa' for entendido como ente intramundano, então trará em si, não expressa, a pressuposição do
mundo. E é justamente esse o fenômeno que determina a constituição do ser do eu, quando pelo menos ele deve poder ser algo, como em 'Eu penso alguma coisa'.
Dizer eu refere-se ao ente que eu sou enquanto sou-no-mundo" (Sein und Zeit, § 64). De forma só
aparentemente paradoxal, Sartre afirmava, num ensaio de 1937, que "o eu não está, nem formal nem
materialmente, na consciência; está fora, no mundo. É um ser do mundo, assim como o eu de um outro"
{Recherches Philosopbiques, 1936-37; trad in., The Transcendence of the Ego, Nova York, 1958, p. 32).
No mesmo sentido, afirma Mer-leau-Ponty: "A primeira verdade é, sem dúvida, 'eu penso', mas sob a
condição de que com isso se entenda 'eu sou para mim mesmo' sendo no mundo" {Phenoménologie de Ia
per-ception, 1945, p. 466). Considerado em sua relação com o mundo, o eu às vezes é determinado a
partir do seu caráter ativo, da sua capacidade de iniciativa, do seu poder projetante ou antecipador. Dewey
diz: "Dizer de modo significante 'Eu penso, creio, desejo', em vez de dizer somente 'Pensa-se, crê-se,
deseja-se', significa aceitar e afirmar responsabilidades e expressar pretensões. Não significa que o eu é a
origem ou o autor do pensamento ou da afirmação nem que é sua sede exclusiva. Significa que o eu,
como organização concentrada de energias, identifica-se (no sentido de aceitar as conseqüências) com
uma crença ou sentimento de origem exterior e independente" (Expe-rience and Nature, p. 233). São
exatamente esses caracteres que constituem hoje o esquema geral para o estudo experimental da
personalidade, que é um dos principais objetos da psicologia. O eu só se distingue da personalidade (que
é a organização dos modos como o indivíduo inteligente projeta seus comportamentos no mundo) por ser
a parte da personalidade conhecida pelo indivíduo interessado e à qual, portanto, ele faz referência ao
dizer "eu". A personalidade, por outro lado, é mais vasta: inclui também as zonas escuras ou de penumbra,
as esferas de ignorância mais ou menos voluntária ou involuntária, que caracterizam o projeto total das
relações do indivíduo com o mundo (v. PERSONALIDADE).
EUBUIIA (gr. eOPouXíot; lat. Eubuliá). Segundo Aristóteles, é a boa deliberação, o juízo correto sobre a
correspondência entre meios e fim. O bem deliberar é dos sábios, e sabedoria consiste no juízo verdadeiro
sobre a correspondência entre meios e fim {Et. nic, VI, 9, 1142 b
EUCOSMIA
391
EVENTO
5). No mesmo sentido, esse termo é definido por S. Tomás (S. Th., I, II, q. 57, a. 6).
EUCOSMIA (gr. eÒKOCLiíoO. Comportamento regrado, boa conduta (cf. ARISTÓTELES, Pol. IV, 1299 b
16).
EUCRASIA(gr. eÜKpaoía). Temperamento. Propriamente, justa mescla dos elementos que compõem o
corpo (ARISTÓTELES, Depart. an., 673 b 25; GALENO, VI, 31, etc).
EUDEMONIA. V. FELICIDADE.
EUDEMONKMO(in. Eudemonism- fr. Eudemonism; ai. Eudàmonismus; it. Eudemonismó). Qualquer
doutrina que assuma a felicidade como princípio e fundamento da vida moral. São eudemonistas, nesse
sentido, a ética de Aristóteles, a ética dos estóicos e dos neopla-tônicos, a ética do empirismo inglês e do
Ilu-minismo. Kant acredita que o E. seja o ponto de vista do egoísmo (v.) moral, ou seja, da doutrina "de
quem restringe todos os fins a si mesmo e nada vê de útil fora do que lhe interessa" (Antr., I, § 2). Mas
esse conceito de E. é demasiado restrito, pois no mundo moderno, a partir de Hume, a noção de felicidade
tem significado social, não coincidindo portanto com egoísmo ou egocentrismo (v. FELICIDADE).
EUNOMIA (gr. eúvoLtícc). A "boa ordem humana" contraposta à hybris, que é a atitude de quem
desconhece os limites dos homens e a situação de subordinação que eles têm no mundo (PLATÃO, Sof.,
216 b).
EU PENSO. V. COGITO.
EUPRAXIA (gr. eúJtpaÇtoc). Bom comportamento, ou seja, comportamento regrado, ou segundo as leis.
Xenofonte designa com essa palavra o ideal moral de Sócrates (Mem., III, 9, 14). Aristóteles emprega a
mesma palavra em oposição a dispraxia, que indica a conduta desregrada; Et. nic, VI, 5, 1140 b 7).
EUTAXIA (gr. euxocÇía). A conduta bem regrada ou conforme à ordem cósmica. É um conceito estóico
(Stoicorum fragmenta, III, 64), que Cícero se deteve a ilustrar (De officis, I, 40, 142).
EUTIMIA (gr. eú(h)Liía; lat. Tranquillitas). Era o título de uma das obras de Demócrito; significava a
satisfação tranqüila, diferente do prazer, que consiste na ausência de temores, superstições e emoções
(DióG. L., IX, 45). Os latinos traduziram o termo por tranquillitas (SÊNECA, De tranquillitate animi, II,
3).
EU TRANSCENDENTAL (in. Transcendental Ego-, fr. Moi transcendental; ai. Transzendentales Ich; it. Io trascendentalê). O mesmo que Eu absoluto (v. Eu).
EVANGELHO ETERNO (lat. Evangelium aeternum). Orígenes empregou essa expressão para designar
a revelação das verdades superiores que Deus faz aos sábios em todas as épocas do mundo, capaz de
integrar e corrigir a revelação contida no E. histórico (Deprinc, IV, 1; Injohann., I, 7).
EVEMERISMO (in. Euhemerism; fr. Évhé-mérisme, ai. Evhemerismus; it. Evemerismó). Doutrina de
Euevêmero ou Evêmero de Mes-sina (sécs. IV-III a.C), autor de uma Sagrada Escritura traduzida para o
latim por Enio, na qual se queria demonstrar que os deuses são homens corajosos, ilustres ou poderosos,
divi-nizados depois da morte (CÍCERO), De nat. deor, I, 119).
EVENTO (in. Event; fr. Événement; ai. Ges-chehen; it. Evento). Na física contemporânea, uma porção
do contínuo espácio-temporal. Nesse sentido, uma coisa, p. ex., um corpo, é um evento. Esse conceito foi
esclarecido por Einstein em 1916 (Teoria restrita egeral da relatividade, § 27). Desde então, é conceito
fundamental da física: o E. é, propriamente dito, o objeto específico da física, aquele a que se referem os
seus meios de observação: caracteriza-se pelas três coordenadas espaciais e pela temporal. "O mundo dos
E. pode ser descrito dinamicamente por uma imagem que mude com o tempo, observada sobre o fundo do
espaço tridimensional. Mas também pode ser descrito por meio de uma imagem estática, projetada sobre
o fundo do contínuo espácio-temporal em quatro dimensões. Do ponto de vista da física clássica, as duas
imagens, a dinâmica e a estática, são equivalentes. Mas do ponto de vista da relatividade, a imagem
estática é mais conveniente e mais objetiva (EINSTEIN-INFELD, Evolution of Physics, III; trad. it., p. 218).
Generalizando o conceito de Einstein, Whitehead falou de "E. puntiformes", que possuem posição, um em
relação ao outro. Tais E. constituiriam os pontos de um sistema espácio-temporal. Todo sistema teria um
grupo particular de pontos, ou seja, uma definição própria da "posição absoluta" (ConceptofNature, 1920,
cap. 5). Essas notas constituem uma tentativa de Whitehead de traduzir a física contemporânea para uma
metafísica evolucionista. Por sua vez, P. W. Bridgmann pôs em dúvida a importância da noção de E., por
não achar que todos os resultados das medidas físicas pudessem ser
EVIDÊNCIA
392
EVOLUÇÃO
expressos em termos de coincidências espácio-temporais. Nesse sentido observa, p. ex., que a diferença
entre um elétron negativo e um positivo não é contemplada na especificação das coordenadas (Logic of
Modem Physics, 1927, cap. III; trad. it., p. 153). Mas, apesar dessas reservas, o conceito de evento
continua tendo uma importância fundamental na física contemporânea e continua sendo considerado
pelos físicos como a melhor caracterização do seu objeto.
EVIDÊNCIA (gr. èvápTEioc, lat. Evidentia-, in. Evidence, fr. Evidence, ai. Evidenz; it. Evi-denzd).
Apresentação ou manifestação de um objeto qualquer como tal. Era assim que os antigos entendiam a E.,
especialmente epi-curistas e estóicos, que a assumiam como critério de verdade. Os epicuristas
identificavam a E. com a própria ação dos objetos sobre os órgãos dos sentidos (DIÓG. L., X, 52). Os
estóicos entendiam por E. o apresentar-se ou dar-se das coisas aos sentidos ou à inteligência, de tal modo
que estas resultem "compreendidas" (SEXTO EMPÍRICO, Pirr. hyp., II, 7). A representação cataléptica (v.)
é justamente a representação evidente. Desse ponto de vista, a E. não é um fato subjetivo, mas objetivo:
não está ligada à clareza e distinção das idéias, mas ao apresentar-se e manifestar-se do objeto (qualquer
que seja). Assim, nem mesmo os céticos recusam o que se apresenta como evidente, embora evitem a
asserção correspondente (SEXTO EMPÍRICO, Pirr. hyp., II, 10).
Descartes, porém, deu um conceito subjetivo de evidência. A "norma da E.", que ele expõe no Discurso,
prescreve "nunca aceitar alguma coisa como verdadeira a menos que seja reconhecida evidentemente
como tal; isso significa evitar diligentemente a precipitação e a prevenção e só incluir nos juízos o que se
apresenta tão clara e distintamente ao espírito, que não haja motivo algum para ser posto em dúvida"
(Discours, II). Nessa regra a E. foi reduzida à clareza e distinção (v.) das idéias, e os problemas
correlativos se deslocaram do domínio do objeto para o da idéia, reapresentando-se neste último como
problemas objetivos. O próprio Descartes (sobretudo em Regras para a direção do espírito) vinculara a
E. à faculdade da intuição, não entendendo com essa palavra o testemunho dos sentidos ou o juízo da
imaginação, mas "a concepção firme de um espírito puro e atento que nasce apenas da luz da razão e que,
sendo mais simples, é também mais
segura que a dedução" (Regulae ad directionem ingenii, III). A E. seria, assim, o caráter da intuição e
constituiria a certeza própria desta última, assim como a necessidade racional constitui a certeza da
dedução. Esses conceitos dominaram grande parte da filosofia moderna, mesmo porque foram aceitos
tanto por Locke, para quem "a certeza e a E. do nosso conhecimento provêm da intuição da concordância
ou da discordância entre as idéias" (Ensaio, IV, 2, 1), quanto por Leibniz (Nouv. ess., IV, 11, 10). O
caráter subjetivo da E. e sua conexão com uma faculdade humana mais ou menos misteriosa chamada
intuição permaneceram em toda a filosofia moderna; só a filosofia contemporânea entendeu retornar ao
antigo conceito de E. objetiva.
A crítica da E. como "uma voz mística que de um mundo melhor nos grite: aqui está a verdade!" foi feita
por Husserl, que encontrou para a E. a definição de "preenchimento da intenção". Significa que há E.
quando a intenção da consciência, voltada para um objeto, é preenchida pelas determinações graças às
quais o objeto se individualiza, se define e finalmente se apresenta à consciência em carne e osso
(Logische Untersuchungen, II, § 39; Ideen, I, § 145; Erfahrung und Urteil, p. 12). Portanto, em toda a
filosofia contemporânea que se inspira na fenomenologia, a E. readquiriu caráter objetivo, voltando a
designar a apresentação ou manifestação de um objeto como tal, qualquer que seja o objeto e quaisquer
que sejam os métodos com os quais se pretende certificar ou garantir sua presença ou manifestação. Nesse
sentido, Scheler falou de "E. preferencial" para indicar as inter-relações hierárquicas e objetivas dos
valores que guiam e sugerem as escolhas humanas (Formalismus, p. 87). No mesmo sentido, às vezes são
qualificadas de evidentes as proposições analíticas ou tauto-lógicas cuja verdade resulta dos seus próprios
termos, como, p. ex., "O triângulo tem três lados".
EVOLUÇÃO (in. Evolution; fr. Evolution; ai. Evolution; it. Evoluzioné). Essa palavra ainda conserva o
sentido genérico de desenvolvimento (v.), mas, com mais freqüência, é usada para designar uma doutrina
particular que se chama "teoria da E.". Ora, por essa expressão podem ser entendidas duas coisas
diferentes: I
a
teoria biológica da transformação das espécies vivas umas nas outras, que é a hipótese
fundamental das disciplinas biológicas de um século a esta par-
EVOLUÇÃO 595
EVOLUÇÃO
te; 2- teoria metafísica do desenvolvimento progressivo do universo em sua totalidade, que é uma
hipótese admitida ou pressuposta por muitas doutrinas filosóficas modernas e contemporâneas. Embora
esses dois significados tenham interagido ao longo da história da filosofia, é oportuno mantê-los
separados. (Para o segundo v. EVOLUCIONISMO.)
O termo E. foi introduzido provavelmente por Spencer no seu ensaio sobre o Progresso, de 1857, mas
essa palavra, assim como o conceito, não teriam gozado de tanto sucesso sem o êxito do transformismo
biológico, que teve início com Origem das espécies, de Charles Darwin (1859). A obra de Darwin era, de
um certo ponto de vista, mais uma conclusão que um princípio (o que é demonstrado pelo êxito sem
precedente): conclusão de um longo trabalho de pesquisas e de várias tentativas de generalização. A
doutrina tradicional da imutabilidade (ou fixidez) das espécies vivas fora reflexo, no domínio biológico,
da doutrina da substância (v.), ou seja, da necessidade da estrutura ontológica do mundo, que prevalecera
graças a Aristóteles na filosofia e na ciência antiga e medieval; isso explica por que a hipótese de
transformação das espécies apresentada por Anaximandro (Ps. PLUT., Strom., 2) e por Empédocles (Fr.
56-61, Diels), ainda que de forma fantástica,: não deixou vestígios. Segundo a metafísica aristotélica,
todas as formas substanciais são imutáveis porque necessárias; isso significa que não podem ser criadas
nem destruídas. Como formas substanciais, as espécies vivas compartilham de tais características. Esse
princípio aristotélico, cuja única exceção é a criação de Deus, durante muitos séculos constituiu o
arcabouço da pesquisa filosófica e científica. Foi só a partir do início do séc. XVIII que alguns
naturalistas começaram a considerar a possibilidade da transformação das espécies biológicas. Buffon
admitia essa hipótese, mas declarava-se explicitamente partidário da fixidez das espécies {Histoire
naturelle, YIA9-1804). É provável que Kant se tenha inspirado nele quando, em 1790, levantou a hipótese
de "parentesco real" entre as formas vivas, que proviriam de uma "mãe comum", e de desenvolvimento
contínuo da natureza desde a nebulosa primitiva até os homens (Crít. do Juízo, § 80). Mas essas eram
apenas intuições genéricas, não confirmadas por nenhum sistema coordenado de observações. O primeiro
a apresentar cientificamente a doutrina do transformismo biológico foi Jean-Baptiste Lamarck, em Philosophie zoologique (1809), para quem todavia a
E. dos organismos devia-se às diferenças neles produzidas pelo maior ou menor uso dos órgãos, e que
depois teriam sido fixadas pela hereditariedade. Sabe-se hoje que as mudanças nascidas dos hábitos não
podem ser herdadas; portanto, o mérito de Lamarck não é o de ter descoberto o princípio da E., mas o de
ter insistido na doutrina geral e em alguns aspectos importantes dela, como o da adaptação ao ambiente.
Foi só com Origem das espécies (1859), de Charles Darwin, que se iniciou a moderna teoria da E.
biológica. A teoria de Darwin admite duas ordens de fatos: I
a
existência de pequenas variações orgânicas
que se verificam nos seres vivos em intervalos irregulares de tempo e que, pela lei da probabilidade,
podem ser vantajosas para os indivíduos que as apresentam; 2- luta pela vida entre os indivíduos vivos,
que se deve à tendência de cada espécie a multiplicar-se segundo uma progressão geométrica. Este último
pressuposto foi sugerido a Darwin pela doutrina de Malthus (.Essay on Population, 1798). Dessas duas
ordens de fatos resulta que os indivíduos nos quais se manifestem mudanças orgânicas vantajosas têm
maiores probabilidades de sobreviver na luta pela vida, e, em virtude do princípio de hereditariedade,
haverá neles acentuada tendência a deixar os caracteres acidentais como herança aos seus descendentes.
Essa é a lei da seleção natural, que Darwin considerou o esteio da doutrina da E. {Or. das espécies, IV,
18).
Enquanto a doutrina de Darwin sofria, por um lado, os ataques dos partidários da velha metafísica e, por
outro, era estendida e generalizada como teoria da E. cósmica, eram apresentadas novas hipóteses, em
conflito com o princípio da seleção natural, que procuravam esclarecer como ocorreria a E. Por um lado,
os neolamarckianos (entre os quais, especialmente, o francês Giard [1846-1908] e o americano Cope
[1840-97]) insistiam na relação do organismo com o ambiente, atribuindo a essa relação a capacidade de
produzir as novidades orgânicas que depois seriam transmitidas por herança. Por outro lado, os
neodarwinianos, que se agruparam especialmente em torno do biólogo alemão Weissmann (1834-1914),
insistiam na importância da seleção natural como único princípio da evolução. Ambas essas correntes, no
esforço de demonstrar suas próprias
EVOLUÇÃO 394
EVOLUÇÃO
teses, produziram fatos e observações novos em favor da teoria geral da E., mas pode-se dizer que
nenhuma delas logrou demonstrar a falsidade das teses da outra. Hoje se sabe que tanto a adaptação ao
ambiente (tese dos lamarckianos) quanto a seleção natural (tese dos darwinianos) exercem funções
importantíssimas na E. da vida e que uma coisa não exclui a outra. Nessa incerteza, inseriram-se as novas
formas do vitalismo (v.), doutrina que, considerando que a vida não é explicável, em princípio, por fatores
físico-químicos, reconhece como fundamento dela um princípio espiritual que age de modo finalista. O
vitalismo dá ênfase àquilo que parece ser um dos caracteres fundamentais da E. biológica: o finalismo.
Este, que está estreitamente vinculado à doutrina da estrutura substancial do mundo, ou seja, à metafísica
aristotélica, é a parte dessa metafísica que mais resiste à morte. Como já notava Kant, seu campo
privilegiado é o dos fenômenos vitais. Esses fenômenos não parecem ocorrer por acaso. Ainda que De
Vries tenha observado o súbito e casual surgimento de novas variedades de plantas e tenha assumido esse
fato como base real da E. {Teoria das mutações, 1901), sempre pareceu difícil defender o caráter casual e
arbitrário de todo o processo evolutivo. Foi graças a essa dificuldade que as teorias vitalistas ganharam
força. A mais famosa delas, no mundo contemporâneo, é a de Bergson, que atribui a E. ao élan vital, isto
é, a uma grande corrente de consciência que é lançada na matéria e tende a dominá-la, tendo mais sucesso
numa direção, menos em outra, e progredindo sobretudo nas duas direções fundamentais: do instinto nos
artrópodes e da inteligência no homem (Évol. créatr., 1907). Mas, mesmo rejeitando a idéia de um plano
total previamente disposto ou predeterminado (que, segundo Bergson, seria "um mecanicis-mo às
avessas"), a teoria bergsoniana da E. ainda é finalista e passível das mesmas obje-ções que Bergson faz ao
vitalismo: assumir como princípio de explicação a ignorância da explicação. Como observou Huxley,
atribuir a E. a um élan vital explica a história da vida tanto quanto atribuir o movimento de uma máquina
a vapor a um élan locomotif explica o funcionamento dessa máquina. O recurso a um termo metafísico,
que só faz cobrir uma zona de ignorância, mascarando-a como saber e, portanto, afastando ou
desencorajando a pesquisa positiva tendente a diminuí-la, também é evidente nas outras formas de vitalismo contemporâneo. Assim, Driesch recorre à enteléquia, velho
conceito aristotélico, à qual atribui a função diretiva na construção do organismo {Philosophie des
Organischen, 1908-09).
Os estudos de genética (v.) encaminharam a teoria da E. para um terreno positivo de pesquisas,
transformando-a num quadro que abrange os instrumentos e as possíveis direções da pesquisa biológica e
evitando a dogmatização de princípios parcialmente provados, que fora a característica da fase
precedente. Os fundamentos da moderna teoria da E. podem ser assim resumidos:
1
Q
Separação da idéia de E. da idéia de progresso. E. não é necessariamente progresso, e muito menos
progresso unilinear, necessário e constante. Seja qual for o critério escolhido para julgar o curso da E.,
ver-se-á que a história da vida oferece exemplos não só de progressos, em relação a esse critério, mas
também de retrocessos e degenerações. Huxley sugeriu como critério objetivo de progresso o da
dominação sucessiva de um grupo biológico: critério que levaria a constituir uma sucessão de idades:
"Idade dos invertebrados", "Idade dos peixes", "Idade dos anfíbios", "Idade dos répteis", "Idade dos
mamíferos" e "Idade do homem" (£., The Modern Synthesis, 1942). Mas também essa sucessão de idades
tampouco é objetiva, porque obviamente é sugerida pelo critério de aproximação ao homem. Podem ser
definidas outras linhas de progresso com base na expansão vital ou na adaptação ao ambiente, critérios
que sugerem a organização das espécies animais segundo o grau de sucesso na realização de alguma
dessas duas coisas. Outro critério que os biólogos utilizam com freqüência é a chamada lei de Willinston,
segundo a qual "o número de partes de um organismo tende a reduzir-se e sua função tende a especializarse", ou seja, há uma tendência à simplificação mais do que à complicação. Outros indicam como critério a
energia geral do organismo ou o nível do processo vital (SEWERTZOFF, Mor-phologische
Gesetzmassigleeiten der E, 1931). Cada um desses critérios leva a organizar as espécies vivas ou seus
maiores grupos de um modo que coincide apenas parcial e ocasionalmente com a organização resultante
dos outros critérios.
2
S
Exigência de que os fatores invocados para explicar a E. não só expliquem o que ocorre segundo um
plano na organização da vida, mas
EVOLUCIONISMO
396
EVOLUCIONISMO
lha das hipóteses e dos resultados da teoria biológica da evolução, sua tese vai muito além de tudo o que
qualquer possível teoria científica possa legitimamente atestar. Nesse sentido, o E. foi assumido como
esquema fundamental de muitas metafísicas, tanto materialistas quanto espiritualistas. A característica
fundamental que essas metafísicas distinguem na evolução é o progresso. Para elas, evolução significa
essencialmente progresso. Certamente essa foi a visão de Spencer, que deu início à série de metafísicas
evolucionistas com um ensaio publicado em 1857 e intitulado Progresso. Segundo Spencer, o progresso
reveste todos os aspectos da realidade. No ensaio citado, escreve "Quer se trate do desenvolvimento da
Terra, quer se trate do desenvolvimento da vida sobre sua superfície, do desenvolvimento da sociedade,
do governo, da indústria, do comércio, da língua, da literatura, da ciência, da arte, no fundo de todo
progresso está sempre a mesma evolução que vai do simples ao complexo, através de diferenciações
sucessivas." Nos Primeiros princípios, Spencer definia assim a evolução: "é uma integração de matéria e
a dissipação concomitante de movimento, durante a qual a matéria passa da homogeneidade indefinida e
incoerente à heteroge-neidade definida e coerente, e o movimento conservado sofre transformação
paralela" (First Principies, § 145). Essa determinação da evolução como passagem do homogêneo indiferenciado para o heterogêneo diferenciado sem dúvida era sugerida a Spencer pela evolução biológica,
que parece ir da ameba aos organismos superiores. Segundo Spencer, o sentido geral da evolução é
otimista. A evolução é progresso e, ademais, progresso necessário, que, no que se refere ao homem, só
terminará com "a máxima perfeição e a mais completa felicidade" (Ibid., § 176). Ao contrário do que
ocorreu na teoria da evolução biológica, que logo desvinculou a noção de evolução da de progresso, no E.
filosófico o sentido otimista e necessarista da noção de progresso continua constituindo por muito tempo
a característica fundamental da evolução. O E. materialista e o E. espiritualista têm isso em comum.
Nenhuma dessas correntes chega a reela-borar o conceito em exame. Quando Ardigó define a evolução
como "a passagem do indistinto ao distinto" (Opere, 1884, II, p. 350), assumindo portanto como modelo
evolutivo
o desenvolvimento psíquico e não o biológico, as características formais da evolução não mudam: ela
continua sendo apenas progresso universal necessário. O maior representante do E. materialista foi o
biólogo alemão Ernst Haeckel. Sua obra Enigmas do mundo (1899), nos primeiros decênios do séc. XX,
foi o catecismo desse materialismo, que via em todas as formas da realidade graus de evolução da
matéria, organizados de modo progressista. Por outro lado, o E. espiritualista, que vê nas várias formas da
realidade graus de desenvolvimento de um princípio espiritual, teve início com Wilhelm Wundt, que
reconheceu esse princípio espiritual na vontade (System der Phil, 1889). Pensamento análogo inspirava a
obra do francês Alfred Fouillée, que via na idéia-força o substrato da evolução (L 'É. des idées-forces,
1890). Mas sem dúvida a mais notável manifestação do E. espiritualista é a doutrina de Bergson, que viu
na evolução o produto de um elã vital, que é consciência, liberdade e criação (Évol. créatr., 1907). Em
sentido análogo^. Lloyd Morgan falou de Evolução emergente (1923), entendendo que as fases da
evolução não são simples resultantes mecânicas das fases precedentes, mas contêm um elemento novo
que denuncia o caráter progressista e criativo da evolução.
Mas o conceito de evolução como progresso constitui ainda o fundo ou o pressuposto de outras doutrinas
que, no entanto, não tomam a evolução por tema fundamental das suas elaborações. Assim a noção de
evolução emergente é assumida por Alexander em seu livro Espaço, tempo e deidade (1920) para explicar
o desenvolvimento global da realidade, cuja substância seriam espaço e tempo (que estão entre si como
matéria e espírito). Outrossim, o conceito de processo, considerado fundamental por White-head (Process
and Reality, 1929), outra coisa não é senão o mesmo conceito de evolução contaminado pelo conceito
hegeliano de devir, ao mesmo tempo que a evolução em sentido naturalista fundamenta toda a obra de
Santayana (cf. especialmente o Realm ofMind, 1940). Essas citações devem ser consideradas apenas
exemplos da vastíssima difusão do E. na filosofia contemporânea, e portanto em todas as formas da vida
intelectual. A crença de que a realidade é um processo único, contínuo e necessariamente progressista está
nas entrelinhas de doutrinas filosóficas díspares e influenciou poderosamente a postura de certas
pesquisas
EXATO
397
EXEMPIIFICAÇÂO
históricas, sociológicas, morais, etc. Essa crença, porém, não é corroborada por nada, e no único domínio
em que a teoria da evolução é corroborada por provas de fato, o biológico, a evolução perdeu justamente
os caracteres que os filósofos mais demonstraram apreciar: unidade, continuidade, necessidade e
progresso. Nenhum desses caracteres é hoje aceito no contexto da evolução biológica. Portanto, a
hipótese de que a realidade constitui um processo integrado por esses caracteres não é confirmada pelos
conhecimentos científicos e deve ser considerada simples hipótese metafísica, não possível de
verificação, ainda que indireta. No entanto, essa hipótese continua a gozar de certo prestígio junto a
cientistas-filósofos. Assim, Teilhard de Char-din reconheceu na evolução o postulado geral ao qual devem
adequar-se teorias, hipóteses ou sistemas; conseqüentemente, considerou a evolução da substância viva
espalhada pela terra como a de um único organismo gigantesco. O termo final da evolução seria um
"Ponto Ôme-ga", uma "Superconsciência Universal" formada pela pluralidade unificada de pensamentos
individuais que se combinam e reforçam no ato do Pensamento unânime (Le phenomène humain, 1955).
Em especulações semelhantes é evidente o caráter metafísico da evolução
EXATO (in. Exact; fr. Exact; ai. Exakt; it. Esattó). Assim é qualificado o procedimento (ou operação) no
qual se reduza ao mínimo a probabilidade ou margem de erro que a situação comporta. Nesse sentido,
diz-se que é E. a medida que tem um grau suficiente de aproximação (isto é, um mínimo de erro) ou uma
previsão que tenha sido suficientemente verificada pelos fatos. Em geral, a exatidão nesse sentido é
garantida pela observância das normas técnicas que orientam o uso dos procedimentos válidos em dado
campo: assim, diz-se que é E. todo procedimento realizado em conformidade com sua própria técnica. As
ciências "E." são as que se valem exclusivamente de tais procedimentos.
EXCEÇÃO (in. Exception; fr. Exception; ai. Ausnahme, it. Eccezioné). 1. Apesar de se encontrarem na
Antigüidade alguns vestígios de uma ética da E., como a expressa por Cálicles em Gôrgias e por
Trasímaco em A República de Platão, ou seja, de uma ética que não vale para "a maioria" (oi pollot), é só
na filosofia contemporânea que o caráter da "excepcio-nalidade" assume não só importância moral ou
religiosa, mas também ontológica e metafísica.
Esse foi um tema introduzido por Kierkegaard e por Nietzsche; em Temor e tremor, o primeiro insistiu no
caráter de "E. justificada" que o eleito de Deus representa em relação à lei moral (como é o caso de
Abraão); o segundo insistiu no caráter de excepcionalidade do super-homem, a quem a "vontade de
potência" confere um destino que foge a qualquer regra. Dos existencialistas, foi Jaspers quem insistiu na
"excepcionalidade da existência", que é sempre individual, singular, inconfundível e, por isso, não pode
tornar-se objetiva e submeter-se a limites ou normas (Phil, II, 1932, p. 360). 2. Em significado lógico, v.
QUANTIFICAÇÃO
DO PREDICADO.
EXCEPTIVA, PROPOSIÇÃO (fr. Propo-sition exceptive, it. Proposizione eccettuativd). A Lógica de
Port-Royal deu esse nome à proposição "que afirma uma coisa sobre um sujeito, salvo de uma parte
dele"; p. ex.: "Segundo os estóicos, todos os homens são loucos, salvo os sábios" (ARNAULD, Log., II, 10,
2).
EXCLUSIVA, PROPOSIÇÃO (fr Proposi-tion exclusive). A Lógica de Port-Royal deu esse nome à
proposição que afirma que um atributo convém a um e a um só sujeito; p. ex. "A virtude é a única
nobreza" (ARNAULD, Log., II, 10, 1).
EXEMPLAR (in. Exemplary, fr. Exemplaire, ai. Exemplarisch; it. Esemplaré). O que funciona como
modelo ou arquétipo, no sentido de ser objeto de imitação e, portanto, causa formal ou ideal daquilo que a
imitação produz. Algumas vezes as idéias de Platão foram chamadas de causas exemplares, pela forma de
causalidade que lhes é atribuída enquanto modelos. Kant observou que alguns produtos do gosto valem
como exemplares. "Por aí se vê que o modelo supremo, o protótipo do gosto, é uma simples idéia que
cada um deve extrair de si mesmo e segundo a qual deve julgar tudo o que é objeto de gosto" (Crit. do
Juízo, § 17).
EXEMPLARISMO (in. Exemplarism; fr. Exemplarisme, ai. Exemplarismus; it. Esem-plarismó).
Doutrina segundo a qual as coisas e os seres do mundo são imagens ou cópias de exemplares ou
arquétipos que constituem o "mundo inteligível" ou que subsistem na mente divina. É uma doutrina que
se acha no pla-tonismo, no neoplatonismo, em S. Agostinho e na Escolástica.
EXEMPLIFICAÇÃO (in. Exemplification; ai. Exemplifizierung; it. Esemplificazione), Em
EXEMPLO
398
EXISTÊNCIA
geral, a referência de um objeto qualquer a um conceito (significado, essência, classe, etc).
EXEMPLO (in. Example, fr. Exemple, ai. Beispiel; it. Esempió). Em Aristóteles, o napcc-8ei7Jiaé uma
indução aparente ou retórica, que parte de um enunciado particular e passa por um enunciado geral em
que a primeira premissa é generalizada. Na Lógica medieval, por simetria com o entimema (v.), "E." foi
usado para designar uma generalização indutiva que parte do particular e termina no particular, omitindo
a premissa universal.
EXISTÊNCIA (gr. TO Ú7iápxevv; lat. Existen-tia; in. Existence, fr. Existence, ai. Existenz; it. Esistenzd).
Em geral, qualquer delimitação ou definição do ser, ou seja, um modo de ser de algum modo delimitado e
definido. Este, que é o significado mais geral, também pode ser considerado um dos significados
particulares do termo, do qual é possível, então, enunciar três significados: le
o modo de ser determinado
ou determinavel; 2Q
o modo de ser real ou de fato; 39
o modo de ser próprio do homem.
l
e
Como modo de ser determinado ou definido de certo modo, esse termo costuma ser usado na linguagem
comum e nas diversas linguagens científicas. Fala-se, com efeito, da E. de entes matemáticos e há, em
matemática, um "teorema de E.". Analogamente, fala-se de E. "lógica" ou "conceituai" ou ainda de E.
"fantástica", do mesmo modo que os escolásticos falavam da E. "no intelecto" ou da E. "na realidade";
fala-se também de E. "em si" (da substância) ou de E. "em outra coisa" (das qualidades ou acidentes da
substância). Todos esses casos só não têm em comum certa delimitação do significado de ser que, nas
ciências exatas, baseia-se em definições precisas. Assim, no campo da matemática, a partir de Hilbert, E.
é entendida como ausência de contradição; quando se afirma que a solução de um problema existe,
pretende-se dizer simplesmente que nenhuma contradição impede admitir a E. da solução. Um teorema de
E. é a prova rigorosa de que a solução existe (nesse sentido), mesmo que ainda não tenha sido descoberta.
Esse é, pelo menos, o critério ao qual continua ligada certa escola de matemáticos contemporâneos, a dos
formalistas, encabeçados por Hilbert. A outra escola, a dos intuicionistas, que tem à frente Brouwer e
Heyting, assume como critério de E. em matemática a possibilidade da construção e julga que não se
pode falar de entes matemáticos que não possam ser
construídos. Em um sentido ou em outro, porém, o conceito de E. é definido com precisão em matemática
e não se fala de E. em sentido diferente, nessa disciplina. Por outro lado, é fácil ver que esse mesmo
conceito de E. não tem sentido fora da matemática e, portanto, não pode ser estendido a campos
diferentes. Se passarmos da matemática à física logo veremos que a E. dos entes de que ela fala é sempre
implicitamente definida pelas operações de medida ou verificação que servem para estabelecer a
observação desses entes. Analogamente, ainda, a E. de que se pode falar no domínio da lógica é a
definida pelas operações a que o objeto lógico pode ser submetido e se reduz, em última análise, à
ausência de contradição. As chamadas ciências "morais" também se fundam em definições implícitas ou
explícitas da E. Em direito, uma lei "existe" se foi formulada, aprovada e promulgada nos modos e nas
formas previstos na Constituição do Estado. E um fato existe do ponto de vista jurídico se pode ser
"provado" nas formas ou nos modos de lei, e qualificado em conformidade com as próprias leis. De forma
semelhante, em economia, a E. de um evento consiste na possibilidade de ele ser observado como
uniformidade estatística ou quase estatística. Em geral, toda ciência ou disciplina define de algum modo,
explícita ou implicitamente, o significado a ser dado à palavra "existência" em seu âmbito.
Carnap distinguiu o problema interno da E. (interno a determinado campo, p. ex., à matemática, à física
ou à lógica) e o problema externo da mesma E. O problema interno sempre pode ser resolvido
empiricamente (quando se refere à realidade de fato) ou logicamente, quando se refere a proposições
analíticas. O problema externo é, ao contrário, o que se refere à "E. ou realidade do sistema total das
entidades". Assim, p. ex., existir ou não dado número primo é um problema interno da aritmética. Mas se
existe ou não o sistema dos números ou qual é a realidade dos números em seu conjunto são problemas
externos que não têm resposta, sendo, por isso, pseudo-problemas, semelhantes ao da realidade do mundo
externo ou à disputa entre nomina-lismo e realismo, que o Círculo de Viena já declarara desprovidos de
sentido {Meaning and Necessity, A 3). O caráter inevitável do compromisso antológico, ou seja, da
decisão acerca do significado ou dos significados que devem ser atribuídos à E. nos diferentes campos de
inda-
EXISTÊNCIA
399
EXISTÊNCIA
gação, foi evidenciado por Quine, que também ressaltou o fato de esse compromisso ontoló-gico não ser
meramente lingüístico, mas se assemelhar à aceitação de uma teoria científica {From a Logical Point
ofView, 1). A exigência desse compromisso obviamente é maior no domínio da pesquisa científica. A
linguagem comum é muito menos precisa ao definir o modo de ser dos objetos aos quais atribui alguma
espécie de existência. Seria por certo embaraçoso explicar com precisão o que se pretende dizer quando
se afirma, p. ex., que o objeto x tem E. "puramente fantástica" ou "puramente ideal", assim como é difícil
dizer que tipo de E. cabe a um valor qualquer, como, p. ex., à beleza. Mas o que interessa aqui destacar é
que, mesmo quando falta determinação precisa, como muitas vezes ocorre na linguagem comum, sempre
está presente no uso da palavra "E." a referência a uma esfera limitada do ser ou à possibilidade de
delimitá-la. Em geral, podemos dizer: à) a palavra "E." possui significado próprio no âmbito de cada
disciplina, que é explicitamente expresso ou implicitamente definido pelas operações ou pelos
procedimentos peculiares à disciplina; b) tal significado em geral só é válido no âmbito a que se estendem
os instrumentos ou procedimentos da disciplina, ou seja, no campo específico dos objetos dessa
disciplina, mas não tem significado fora desse campo e não pode ser estendido a campos diferentes, que
não tenham relações defi-níveis com o campo em questão.
2
e
O significado de E. como E. de fato, vale dizer, aquilo que na realidade é ou subsiste, é o mais
freqüente na história da filosofia. Aristóteles usava essa palavra com esse sentido ao dizer: "A ciência dá a
razão de ser tanto de uma coisa quanto da sua privação, embora de modo diferente; a razão de ser é de
ambas as coisas, mas especialmente daquilo que existe" {Met., IX, 2, 1046 b 6; cf. De cael, II, 14, 247 b
22). Do mesmo modo, a palavra é usada por S. Tomás com o fim de definir a subsistência {subsis-tentid)
própria da substância, porquanto esta "existe não em outra coisa, mas em si mesma" (5. Th., I, q. 29, a. 2),
ou de definir "o que é existente por si", quer dizer, o que é real sem ser qualidade ou acidente de outro
real {Ibid., I, q. 75, a. 2). Obviamente, para S. Tomás, mesmo aquilo que não é "por si" pode ser
considerado existente, como p. ex. um acidente real. A esfera da E. como realidade de fato é definida mais
explicitamente por Henrique de Gand,
que introduz a distinção entre esse essentiae e esse existentiae. O ser da essência é o grau ou modo de ser
que cabe à essência como tal, independentemente do ser da E.; o ser da E. é a realidade efetiva que pode
sobrevir ou não ao ser da essência. Uso análogo dessa palavra encontra-se em Spinoza {Et., 1,7), e em
Leibniz {Nouv. ess., II, 7), além de Locke, que, para evitar equívocos, fala de "E. real" {Ensaio, II, 3, 21).
E. também é realidade para Berkeley {Principies of Knowledge, 3) e Hume {Treatise, I, 3, 7). Justamente
por considerar a E. como realidade de fato, Kant nega que ela possa ser reduzida a um predicado
conceituai {Crít. R. Pura, Analítica, II, cap. 2, seç. 3, 4). Na filosofia contemporânea, a palavra é usada
no mesmo sentido. Quando Dewey define a metafísica como "conhecimento das características genéricas
da E." e fala da pretensão dos filósofos "de lidar com o conhecimento da E. e não com a imaginação",
entende por esse termo a realidade de fato, independentemente do embelezamento e da deformação que
ela sofre na descrição dos filósofos {Experience and Nature, cap. II). Para mais detalhes sobre esse
significado, v.
SER; FATO; REALIDADE.
3
a
O terceiro significado específico desse termo é o que restringe ao modo de ser do homem no mundo.
Esse significado encontra-se no existencialismo (v.) como filosofia, cujo tema é a análise desse modo de
ser. Já nos séculos XVIII e XIX a alguns filósofos ocorreu insistir no significado específico da E. como
modo de ser das criaturas finitas, dos entes criados. Viço observou que Descartes não deveria ter dito
"Penso, logo sou", mas "Penso, logo existo"; a E. é o modo de ser próprio da criatura, porquanto significa
estar embaixo ou em cima, e supõe substância, ou seja, o Ser divino que a sustem e a cria {Prima Risp. ai
Giorn. dei Lett., § 3). Essa distinção foi aceita e adotada por Gioberti {Intr. alio studio delia fil., 1840, II,
cap. 4), mas não era suficiente para fazer da E. o tema de uma nova especulação. Outro passo nessa
direção pode ser visto na chamada "filosofia da fé" de Hamann e Jacobi, que insistiu na irredutibilidade
da E. à razão. Para Jacobi, a filosofia de Spinoza era o protótipo de toda filosofia que identifica E. com
razão e, portanto, não deixa lugar à fé. Contra Spinoza, recorre a Hume, que identificou a E. com a fé, ou
melhor, com a crença {Hume, über den Glauben, 1787). Schelling aderiu a essa tese na última fase de sua
filosofia, que ele chamou de
EXISTÊNCIA
400
EXISTÊNCIA
filosofia positiva e expôs nas obras intituladas Filosofia da mitologia e Filosofia da revelação. Para
Schelling, a razão só consegue determinar as condições negativas da E., as condições que determinam o
modo em que a E. deve ser pensada, dado que o seja. Mas a condição positiva, graças à qual o ser existe,
extrapola a filosofia negativa ou racional porque é criação, vontade de Deus de revelar-se; só essa diz
respeito ao quodsit, à E. (Werke, II, III, pp. 57 ss.). A polêmica de Schelling dirigia-se contra Hegel, assim
como a de Jacobi visava a Spinoza. Mas mesmo nessas polêmicas a E., conquanto não fosse considerada
solúvel pela razão ou pelo conceito, não é identificada com o modo de ser específico do homem e própria
dele apenas. Esse passo foi dado por Kierkegaard, que também preparou o instrumento fundamental para
a análise da E.: o conceito de possibilidade. Kierkegaard remete-se explicitamente à polêmica, a que já
aludimos, contra a redução de E, a conceito: "A E. corresponde à realidade individual, ao indivíduo (o que
Aristóteles já ensinou); está fora do conceito, que, de qualquer forma, não coincide com ela. Para um
animal, uma planta, um homem, a E. (ser ou não ser) é algo de muito decisivo; o indivíduo por certo não
tem uma E. conceituai" {Diário, X
2
, A 328). Mas a E. como individualidade é apenas a E. humana. No
mundo animal, é mais importante a espécie do que o indivíduo; no mundo humano o indivíduo não pode
ser sacrificado à espécie. Nesse sentido, a singularidade da E. torna-a o modo de ser fundamental do
homem. Tal modo de ser foi analisado por Kierkegaard no seu tríplice aspecto de relacionar-se com o
mundo, consigo mesmo e com Deus. Mas nesses três aspectos o relacionar-se nada tem de necessário: é
instável e precário. Em todo caso, não é constituído por laços fortes e imutáveis, mas por simples
possibilidades que até podem ser perdidas. Aos olhos de Kierkegaard, portanto, a E. como modo de ser
constituído pelas relações do homem consigo mesmo, com o mundo e com Deus é analisável em um
conjunto de possibilidades cujo caráter é justamente não possuir, por si mesmo, nenhuma garantia de
realização. Certamente Deus pode conferir segurança e infalibilidade a tais possibilidades (porque para
Ele "tudo é possível"), mas até mesmo o relacionar-se do homem com Deus é apenas possível, e não
necessário. Dessa interpretação da E. em termos de possibilidade nascem as características fundamentais
da
E., que são a angústia, como relacionamento do homem com o mundo, desesperação, como
relacionamento do homem consigo mesmo, e paradoxo, como relacionamento do homem com Deus (v.
EXISTENCIALISMO).
Com isso, são estabelecidas as características da noção de E., no significado em que geralmente é
empregada pela corrente existencialista da filosofia contemporânea. A E. é: 1B
) o modo de ser próprio do
homem; 2e
) o relacionamento do homem consigo mesmo e com o outro (mundo e Deus); 3B
)
relacionamento que se resolve em termos de possibilidade. Essas características constituem a inspiração
fundamental e comum das teorias da E. na filosofia contemporânea. Em virtude da segunda delas, diz-se
que a E. é um modo de ser em situação, entendendo-se por situação o conjunto de relações analisáveis
que vinculam o homem às coisas do mundo e aos outros homens. Na filosofia contemporânea, foi
Heidegger o primeiro a formular uma análise da E. com bases nessas características. Em primeiro- lugar,
ele restringiu rigorosamente o significado de E. ao modo de ser do homem, empregando, para indicar o
ser dos outros entes finitos, o termo "presença" (Vorhandenheii): "A natureza do Ser-aí consiste na sua E.
As características que podem ser extraídas desse ente nada têm a ver portanto com as 'propriedades' de
um ente presente 'que tem este ou aquele aspecto', mas são sempre e somente possíveis modos de ser.
Toda modalidade de ser desse ente é primordialmente ser. Por isso, o termo Ser-aí [Dasein], pelo qual
indicamos tal ente, exprime o ser, e não a qüididade, como ocorre quando se diz pão, casa, árvore" {Sein
und Zeü, § 9). Heidegger afirmava com igual clareza a resolubilidade da E., assim entendida em suas
possibilidades. "O Ser-aí", diz ele, "é sempre a sua possibilidade, e ele não a 'tem' do mesmo modo como
um ente presente [isto é, uma coisa] possui uma propriedade. Por ser essencialmente possibilidade, o Seraí pode, em sendo, 'escolher-se' e conquistar-se, ou então perder-se, ou seja, não se conquistar, ou só se
conquistar aparentemente. Ele só pode perder-se ou não se ter ainda conquistado porque, em seu modo de
ser, comporta uma possibilidade de autenticidade, ou seja, de apropriar-se de si mesmo" {Ibid., § 9). Da
natureza possível da E. deriva, portanto, para a E. a alternativa entre o modo de ser inautêntico, que é o da
E. cotidiana e impessoal, dominada pela tagarelice, pela
EXISTÊNCIA
401
EXISTÊNCIA
curiosidade e pelo equívoco (v.), e a E. autêntica, que é a de quem reconhece e escolhe a possibilidade
mais própria do seu ser. Essa possibilidade própria é a da morte: essa conclusão constitui a característica
da filosofia de Hei-degger (v. EXISTENCIALISMO). Mas as análises de Heidegger evidenciaram algumas
características da E. que se mostraram válidas para compreendê-la e interpretá-la, mesmo fora dos
compromissos ontológicos ou metafísicos de que partiam aquelas análises. A E. como possibilidade é
transcendência para o mundo e, como tal, é ato de projetar. Mas o ato de projetar é, ao mesmo tempo,
inclusão do ser-aí pro-jetante no mundo e sua submissão às condições do mundo. "O projeto de
possibilidades, em conformidade com sua essência, vai ficando cada vez mais rico do que a posse em que
o projetante se achava anteriormente. Mas semelhante posse só pode pertencer ao ser-aí porque este,
enquanto projetante, sente-se imerso no meio do ente. Mas, com isso, e em conseqüência de sua
efetividade, o ser-aí já perde outras possibilidades. Mas é justamente essa perda de determinadas
possibilidades do po-der-ser-no-mundo, implícita na inclusão no ente, que põe adiante do ser-aí com seu
mundo as possibilidades realmente alcançáveis no projeto do mundo" (Wesen des Grundes, III; trad. it., p.
68). Para quem observa não só outras formas de existencialismo, mas também outras doutrinas
contemporâneas (instrumen-talismo, naturalismo, neo-empirismo) e a postura das ciências modernas em
suas pesquisas sobre o homem (biologia, psicologia, sociologia), parece extremamente importante e
fecunda essa interpretação da E. como ato de projetar, em que o projetante já está condicionado pelas
coisas ou pelos entes de cujas relações parte seu projeto, encontrando-se por isso diante de possibilidades
limitadas. Essa interpretação também serve de base para entender a liberdade finita do homem. Heidegger
diz: "prova transcendental da finitude da liberdade do ser-aí é que o projeto concreto do mundo, em seu
impulso, ganha força e só se torna posse com a perda [de possibilidades determinadas], Será que nisso
não se mostra com clareza a essência finita da liberdade em geral?" (Ibid., III; trad. it., p. 69).
Essas características da E. são reconhecidas, ainda que com tônicas diferentes, pelas outras formas do
existencialismo contemporâneo. Para Jaspers, também a E. é E. possível, definida pelas relações consigo mesma e com a Transcendência (Phil., I, p. 13). Mas são as relações com a
Transcendência que dominam a E. na filosofia de Jaspers: as relações do homem consigo mesmo e com o
mundo são consideradas apenas formas imperfeitas, aproximadas e, em última análise, ilusórias e
desastrosas do relacionamento do homem com a Transcendência. Mas o relacionamento com a
Transcendência não se inclui entre as possibilidades humanas: desse modo, essas possibilidades são
examinadas e avaliadas com base naquilo que, para o homem, é uma impossibilidade efetiva e suprema
(Jbid., III, pp. 4 ss.). Possibilidade, transcendência, projeto são também os termos com que a E. é
analisada por Sartre, que, romanticamen-te, vê nela a aspiração para o infinito, definindo o homem como
'o ser que projeta ser Deus" {Eêtreetlenéant, 1943, p. 653). Embora a possibilidade existencial tenha sido
o tema dominante do existencialismo contemporâneo, com muita freqüência suas características
específicas foram esquecidas ou negadas. Tais características podem ser assim expostas-, I
a Uma
possibilidade sempre tem dois aspectos inseparáveis, em virtude dos quais é, simultaneamente,
possibilida-de-de-sim e possibilidade-de-não. Nada garante a realização infalível de uma possibilidade,
mas tampouco nada exclui infalivelmente a sua realização. Reduzir uma possibilidade ao seu aspecto
positivo significa transformá-la em determinação necessitante, em alguma coisa que não pode não ser.
Reduzir a possibilidade ao seu aspecto negativo significa transformá-la em uma determinação negativa
igualmente necessitante, ou seja, em alguma coisa que não pode ser. Em ambos os casos, abandona-se o
terreno da possibilidade para entrar no da necessidade (v.). 2- A possibilidade é uma determinação finita,
sujeita a limites e condições que, ao mesmo tempo em que a efetivam e validam, delimitam seu âmbito.
Portanto, a frase "possibilidade infinita" deve ser considerada contraditória: uma possibilidade infinita é,
na verdade, possibilidade de nada porque não comporta definição nem delimitação. Analogamente, a frase
"todas as possibilidades" deve ser considerada sem sentido, se tomada sem outras determinações (do tipo,
p. ex., "de que xdispõe" ou "que a situação ^comporta"), visto que a totalidade absoluta das possibilidades
constituiria a garantia infalível da realização de cada uma delas, privando-as precisamente do caráter de
possibilidade. 3â
Com os procedimentos disponíveis identifica-se um
EXISTENCIAL e EXISTENCIÁRIO
402
EXISTENCIALISMO
campo de possibilidades para estabelecer a distinção entre as possibilidades efetivas ou autênticas e as
fictícias. Os domínios da indagação científica e da atividade humana em geral podem ser considerados
campos de possibilidades nesse sentido (cf. ABBAGNANO, Struttura delVE., 1939; Introduzione
alVesistenzialismo, 1942, 4a ed., 1956; Possibilita e liberta, 1957).
EXISTENCIAL e EXISTENCIÁRIO (ai. Exis-tential, existentielt). A diferença entre esses dois termos
foi estabelecida por Heidegger, no sentido de que o primeiro significa uma determinação constitutiva da
existência, uma característica ou um caráter essencial dela (correspondente à categoria para as coisas),
cuja determinação cabe à ontologia, ao passo que o segundo designa a compreensão que cada homem tem
de sua própria existência ao decidir sobre as possibilidades que a constituem ou escolhê-las (Sein undZeit,
§§ 4, 9). A análise de Heidegger é existencial porque tende a rastrear as características essenciais e
peculiares à existência, ou seja, a construir uma ontologia cujo objeto é o ser da existência. A análise de
Jaspers, ao contrário, mantém-se, e quer manter-se, no plano existenciãrio. Jaspers, com efeito, repudia a
ontologia no sentido de ciência objetiva que considera os caracteres essenciais da existência iPhil., I, 24)
e julga que a única análise possível da existência é ao mesmo tempo escolha e decisão, ou seja,
pensamento existenciário ilbid., I, 13 ss.; II, 1 ss., etc).
EXISTENCIALISMO (in. Existentialism; fr. Existentialisme, ai. Existentialismus; it. Esisten-zialismó).
Costuma-se indicar por esse termo, desde 1930 aproximadamente, um conjunto de filosofias ou de
correntes filosóficas cuja marca comum não são os pressupostos e as conclusões (que são diferentes), mas
o instrumento de que se valemia análise da existência. Essas correntes entendem a palavra existência (v.)
no significado 39
, vale dizer, como o modo de ser próprio do homem enquanto e um modo de ser
nojnundQ, em deterrnTnada situação, analisâveí em termos de possibilidade. A análise existencial é,
portanto, a análise das situações mais comuns ou fundamentais em que o homem vem a encontrar-se.
Nessas situações, obviamente, o homem nuncaf éj& nunca encerra pm sj a totalidade infinita, o mundo, o
ser ou a natureza. Portanto, para o E., q,termo existência tem significado completamente diferente do de
outros termos como consciência, espírito, pensamento, etc, que servem para interiorizar ou, como se diz, tornar "imanente" no homem a
realidade ou o mundo em sua totalidade. Existir significa relacion ar-se com o mundo, ou seja, com as
coisas e com os outros homens, e como se trata de relações não-necessárias em suas várias modalidades,
as situações em que elas se configuram só podem ser analisadas em termos de possibilidades (v.). Esse
tipo de análise foi possibilitada pela fenomenologia (v.) de Husserl, que elaborou o conceitó~de
transcendência (v.). Segundo esse conceito, nas relações entre sujeito cognoscente e objeto conhecido ou,
em geral, entre sujeito e objeto (não só no conhecimento, mas também no desejo, na vo-lição, etc), o
objeto não está dentnido_sujei-tjc^_majS_]2e£manece fora, e dá-se a ele "em carne e osso" (Ideen, í, §
43). Esse conceito manteve-se rigoroso na filosofia de Husserl, ^ mas exerceu grande influência no E.,
para o $ qual as relações entre o ser-aí (isto é, o ente <,j_que existe, o homem) e o mundo sempre se
configuraram como transcendência.
Essa formulação do problema filosófico opõe o E. a todas as formas, positivistas ou idealistas, do
romantismo oitocentista. O romantismo afirma que no homem age uma força infinita (Humanidade,
Razão, Absoluto, Espírito, etc.) de que ele é apenas manifestação. Oji^ afirma que o homem é uma
realidade finita. que existe e age por sua própria conta e risco. CTrómantismo afirma que o mundo em que
o homem se encontra, como manifestação da .força infinita que age no homem, tem uma ? ordem que
garante necessariamente o êxito L final das ações humanas. Q„E^ afirma que o 'L homem_gstá "lançado no
mundo",lxTsejãreRIre~ í> Sue ao determinismo do mundo, qjjepodetor-■S nar
vãs ou impossíveis, as
suas iniciativas. O ^ romantismo afirma que a liberdade, como ação v
do princípio infinito, é infinita,
absoluta, criadora e capaz de produções novas e originais a cada momento. O E^ajirma que a liberdade do
homem é condicionada, finita e õbstada por mlflfásTImitações qüe a todõjmõrnento_pqdem torná-la
estéril e fazê-la reincidir no que já foi oujáToi feito. O romantismo afirma o progresso contínuo e fatal da
humanidade. O E. desconhece ou ignora a noção de progresso porque não pode entrever nenhuma
garantia dele. O romantismo tem sempre certa tendência espiritualista, tende a exaltar a importância da
inte-rioridade, da espiritualidade e dos valores ditos
EXISTENCIAUSMO
403
espirituais, em detrimento do que é terrestre, material, mundano, etc. O E. reconhece, sem pudores^ a
importância e o peso guie têm para ,i
o homem a çytenrtrtffãrfp ^"materialidade, a/j
''mundanidade" em geral, donde as condições dá realidade humana que estão compreendidas sob esses
termos-, necessidades, uso e produção das coisas, sexo, etc. O romantismo considera insignificantes
certos aspectos negativos da experiência humana, como a dor, o fracasso, a doença, a morte, porque não
dizem respeito ao princípio infinito que se manifesta no homem e, portanto, "não existem" para ele. O E.
considera tais aspectos particularmente significativos para a realidade humana e insiste neles ao
interpretá-la. ; A antítese^ entre os_tema^un^rnentais do v IL_£jos^ojrQjnarjJtisjno. é ín^rejiasjüferentes
cSí§§2ÍIÍíLSÍ£--^.£--^^
mãojpara interpretar a realidade, entendendosé por categonâ~um instrumento de análise^õu sejajjamjnstjmnentode descnpü51;Thre~rpreta-~ ção da
realidade. Dissemos que a análise existencial é analise de relações: estas se acentuam em torno do
homem, mas imediatamente vão para além dele, porque o vinculam (de diversos modos, que é preciso
determinar) à realidade e ao mundo de que faz parte ou, em outras palavras, aos outros homens ou às
coisas. Ora, essas relações não têm natureza estática, não são, p. ex., apenas relações de identidade,
semelhança, etc. As relações do homem com as coisas são constituídas pelas possibilidades de que o
homem dispõe (em maior medida ou menor grau, conforme as diversas situações naturais e históricas)
para usãFã£5iz_ sãlTêTnanlpüIa-lãsTcorn o trabalho), a fim_de proverias suas^nécêssidades. E as
relações com oslxitros hõmèhsT consistem em possibilidades de colaboração, solidariedade,
comunicação, amizade, etc, que têm também graus e formas diferentes, conforme as diversas condições
naturais, sociais e históricas. Ora, dizer que alguma coisa é possível significa prever e projetar ativamente.
Portanto as possibilidades humanas geralmente têm mesmo um caráter de antecipação (porque voltado
para o futuro) das expectativas ou dos projetos, e as normas que as disciplinam — desde as normas da
ciência e da técnica até as dos costumes, da moral, do direito, da religião, etc. — servem para dar certo
fundamento e certa garantia de êxito às expectativas e aos projetos. Assim, p. ex., as normas técnicas
servem para garantir que ce"ftõ~õt5jeTõ
EXISTENCIAUSMO
(uma casa, uma máquina) possa ser construído ou produzido de modo a satisfazer determinada
necessidade; as normas morais servem para garantir que as relações humanas possam desenrolar-se da
forma mais pacifica e orde-nada possível^ etc. As~êxpectativas óu""prõ]ê"-tos, porém, continuam sendo
o que são: possibilidades cuja realização é mais ou menos segura, mas nunca infalível (uma casa pode
cair, sua comodidade pode ser maior ou menor; uma máquina pode sair com defeito ou inútil; as relações
humanas podem passar da ordem à desordem, da paz à hostilidade, etc). Por isso, a categoria descritiva e
interpretativa fundamental de que o E. se vale é a da possibilidade.
As várias tendências do E. podem ser reconhecidas e distinguidas a partir do significado que dão
à(cãtégõn|>da possibilidade e dõ~uso que dela fazem. Assim, é possível distinguir três tendências
principais, cujos fundamentos são, respectiva mente- Q
0
) impossihiljdade Ho possívek2
g
i3e£ej5sidade do
possível! 3Q
.f>ossibj-lidade do possível.
1
Q
Já em meados do séc XIX, Kierkegaard insistira na importância da categoria da possibi-lidade, e por
isso é a ele que os filósofos da existência costumam reportar-se. Mas Kierkegaard também insistira no
agfjecto nadificante jdçvpcKsíyel, que torna problemáticas e negativas tanto as relações do homem com o
mundo quanto as relações do homem consigo mesmo ê com Deus. De fato, segundo Kierkegaard^ as
relações do homem com o_mundo são domina-dag_p eja angúsHãJque leva o homem a perceber que a
possibilidade corrói e destrói as expectativas ou capacidades humanas além de destroçar cálculos e
habilidades com a ação do acaso e das possibilidades insuspeitas (Conceito da angústia, 1844). A relação
do homem consigo mesmo, que constitui o eu, é dominada pela desesperação, ou seja, pela condição na
qual o homem desencontra porque percorreu uma possibilidade após outra sem deter-se ou porque
esgotou suas limitadas possibilidades, e o futuro se fecha diante dele (A doença mortal, 1849). A própria
relação com Deus — que parece oferecer ao homem um caminho de salvação da angústia e do desespero
(porque "para Deus tudo é possível") —, por não ter garantias absolutas e por ser dominada pelo
paradoxo, não pode oferecer certeza nem repouso (Temor e tremor, 1843; Diário, passim). Desse modo,
ao analisar a existência humana com
EXISTENCIAUSMO
404
EXISTENCIAUSMO
base na lratégoria_do_gossível, Kierfcegaardj entendia o possível exclusivamente em seu aspecto
ameaçador^ negativo, vendo nele "aquilo que é impossível realizar-se", mais do que "aquilo que pode não
se realizar". A filosofia de Heidegger adota essa mesma interpreta-NO ção. Não há dúvida de que, em
análises que se 5 tornaram clássicas, Heidegger deixouj:laro que l a existência é Ltrãnsç.endência[i!
Èr9JâOÍ .njas_ ^ também mostrou quelranscendência e projejo .-s
sãou afinal, impossíveis, porque a_
transcendi' dência fica aquérn_ do que deveria transcender ' e o projeto é dominado e. anulado por
aquilo qu£Já_é_ou jájlão.é mais. O caráter da existên-""^ cia que acaba prevalecendo na filosofia de
Hei-, J deg^gx^jjg^€^55^1pu(factualidãoSjdj3_s^rraX_ ^t /awffldojTÕjnundpTem meio aos outros
entes, no mesmo nível deles e por isso à mercê de ser o que de fato é. Desse modo, a existência só pode
ser aquilo que já passou. Suas possibilidades não são' aberturas para o futuro, mas reincidência no
passado e só fazem reapre-sentar o passado como futuro. Por isso,_o (/ J ítranscender, o projetar, é uma
impossibilida-{Í -, ■' I de~rã7Jicairurn"fTãdã~nádíBcanie, Não resta ou-e
w''tra aTtenTãtiva autêntica
anão ser antecipar ou .(y projetar esse mesmo nada. Isso é o "viver-pa-,A. ^rarâzinorte", ou seja, para
"a possibilidade da \. ■ s -' impossibilidadeda^existêncía" XSein und Zeit, x
•' § 53). A "possibilidade
da impossibilidade" seria uma contradição em termos, se possibilidade não
sjgjiiji^s^e^j^ui^compreensãò"/^ existência é essencial e radicalmente impossí-vel; õque é possível é a
çonipreensão^dessiL impossíbilidaderviver para a mor£e_Ê^precisaj_ mente7tal compreensão.
ComcTsê viu, acaíacterística da filosofia de Heidegger (ao menos na sua primeira fase, a única que pode
ser chamada de existencialista) /éjjr^sjormação do conceito dejjossibilidaX [ de^como instrumento de
análise da exlstenciay no de impossíblTidade. Ó mesmo fato verifica-se na fiíosofTãlÜê^Tãspers. De um
extremo a outro de sua FilosõJícÇJãspers fala da existên-çia__gossível e sua análise é, explicitamente,
análisè~cIãs~possibilidades da existência. Mas, assim como para Heidegger, rio fundo tais possibilidades
não são mais do que outras tan^ tãslmpossibilidãdes. Eu não posso ser senão o que sou (JPhil., II, p. 182),
não posso tornar-me senão o que sou; não posso querer senão o que sou; e o que sou é a situação em que
me encontro e sobre a qual nada posso ilbid. I, p. 145). Jaspers diz explicitamente que as expressões "eu escolho", "eu quero" significam na realidade "eu devo" ilch muss; Phil, II, p. 186), o que
significa que a possibilidade de ser, de agir, de querer, de escolher, na realidade é a impossibilidade de
agir, escolher e querer de modo diferente daquilo que se é, isto é, das condições de fato implícitas na
situação que nos constitui.
O mesmo predomínio do conceito de possibilidade e a mesma transformação final em impossibilidade
podem ser encontrados no E. de Sartre, Para esse E., a possibilidade última da realidade humanaTa sua
escolha originaria, é~õ~ projeto fundamental em que se inserem todos os" atos e as volições de um ser
humano. Tal projeto ê fruto de uma liberdade sem limites, absoluta e incondicionada: de uma liberdade
que faz do homem uma espécie de Deus criador do seu mundo e o torna responsável pelo mundo. O
homem é, de fato, definido por Sartre como "g_ser qujjjjrojejtjysejJDejas" (L'être et le néant, p.
653),_ina^jrata;s^_d^jm2Deus_ felid^^e^i^irojetoj^sojve-seeíi^ftacasso. Aquilo que na doutrina de
Heidegger e de Jaspers é obra da necessidade factual que limita e destrói qualquer possibilidade de
transcender o fato, na doutrina de Sartre é obra da infinidade de possibilidades que se eliminam e se
destroem reciprocamente, num jogo fútil e vão que provoca náusea: pois nenhuma delas possui maior
validade ou solidez que a outra, sendo, pois, impossível escolher uma ou outra, a não ser cegamente. Uma
escolha absoluta ou "absolutamente livre", como a que Sartre atribui ao homem, é perfeitamente idêntica
à "não-escolha" ou à "escolha da escolha" de Heidegger e Jaspers, no sentido <le que não é uma escolha,
mas a própria impossibilidade de escolher. Mais uma vez, o conceito do possível se transformou subrepticiamente no do impossível.
Dessa tendência deriva a noção de existen-cialismo como "filosofia negativa", "filosofia da angústia" ou
"do fracasso", o que não é de todo exato, pois refere-se a apenas uma das correntes existencialistas e,
ainda assim, apenas a alguns de seus aspectos. Dessa noção comum derivou o uso generalizado desse
termo não só para designar certas correntes literárias e artísticas, mas também certos costumes, atitudes e
até modos de vestir. Esse uso generalizado, apesar de ser ainda mais impróprio do que a noção comum
que lhe deu origem, pode ser explicado observando que, na maior parte dos casos, serve para chamar a
atenção sobre os as-
EXISTENCIALISMO
405
EXISTENCIALISMO
pectos mais desfavoráveis, negativos e des-concertantes da vida humana, ou seja, sobrei os aspectos da
vida humana enquanto é umj _s imples poder ser, completamente desprovido de qualquer garantia de
estabilidade e certeza. A chamada literatura existencialista tende, de fato, a dar destaque às vicissitudes
humanas menos respeitáveis e mais tristes, pecaminosas e dolorosas,,bem como à inçerte^a^dosjejngreen-
^ dimentoslbqnsi.Qyjmaus e à ambigüidade do bem, que pode dar origem ao seu contrário. De modo
semelhante, atitudes, costumes e modas eram qualificados de "existencialistas" quando pretendiam ser
formas de protesto contra o otimismo superficial e a respeitabilidade burguesa da sociedade
contemporânea. Seja qual for o julgamento que se faça sobre essas manifestações, cujo caráter superficial
e grotesco muitas vezes é evidente, mas cuja responsabilidade não deve recair sobre a corrente filosófica
de que estamos falando, está claro que, dessa forma, o E. representou uma poderosajorça de destruição
dg^i3grjaaJásjxio_a.bsolutista do seç. XIX, dos seus mitos otimistas e do seu falso sentimento de
segurança, aliás tão duramente desmentidos pelas vicissitudes dos últimos decênios. Não pairam dúvidas,
pois, quanto à função resolutiva e libertadora que essa forma de E. exerceu nos últimos vinte anos, mas
tampouco pairam dúvidas quanto à sua incapacidade de preparar instrumentos válidos que contribuam
para a solução positiva dos problemas humanos.
2- Se a primeira interpretação reduz as possibilidades humanas a reais impossibilidades, a segunda
interpretação as considera, no extremo oposto, como potencialidades, no sentido aristotélico do termo.
Assim entendidoTcvpõssí-vêTpeKlê~séTr aspecto negativo e preocupante, já que uma potencialidade está
sempre "destinada a realizar-se" (LAVELLE, DU temps et de Véternité, 1945, p. 26l). Essa transformação
do possível, de categoria de instabilidade e incerteza problemática para categoria de estabilidade e
certeza, é obtida graças à vinculação das possibilidades existenciais a uma Realidade absoluta da qual elas
aufeririam garantia de realização infalível. Para [LaveTIel essa realidade absoluta é o Ser (De l'êfrê^l928;
De 1'acte, 1937; Du temps et de Véternité, 1945), para\GT \^TíTné,' (Obstacle et valeur, 1934), a
realidade "absoluta é entendida como valor infinito. A realidade absoluta também como Ser é entendida
poiflvErcel,: que porém acredita que o ser
só se revela no mistério de que se circunda e que, por isso, a única atitude possível do homem diante dele
é a de amor e fidelidade (Journal Métaphysique, 1927; Être et avoir, 1935; Du refus à 1'invocation,
1940). Mas, qualquer que seja o modo de entender a realidade absoluta, por se fundarem nela as
possibilidades existenciais transformam-se em ró-seas perspectivas de sucesso, e assim nada do que o
homem realmente éjyiejjhjamjdqs seus valores fundamentais podem perder-se, já que elas têm garantia
absoluta e trãm^cêTTclcrP feT 'Essã"corréritè cTó ET, que tem caráter e finalidade religiosa, do ponto de
vista filosófico tem o defeito de constituir um panegírigo da realidade humana, e não uma tentativa de
compreendê-la e de propiciar uma justificação post factum da experiência humana, muito semelhante à
tentada pelas filosofias românticas. A . se admitir que todas as possibilidades existenciais estão destinadas
a realizar-se, porquanto S fundadas no Ser ou no Valor, só se estarão o encobrindo os insucessos e as
misérias do ho-£ mem com um manto verbal. A se admitir, ao ó~ contrário, que nem todas as
possibilidades hu-_ manas_estão fundadas no Ser e no Valor, e que nem todas estão destinadas a realizarse, pro-por-se-á o embaraçoso problema de fornecer um critério para reconhecer quais são as
possibilidades realmente fundadas: problemas para cuja solução o pressuposto do fundamento
transcendente dessas possibilidades em nada contribui.
3
e
Enfim, para uma terceira interpretação. própria do E. italiano, as possibilidades existenciais devem ser
assumidas e mantidas como tais, sem serem^t£aj^formada^em_irnpossibilidades nem em potencialidades.
Nesse caso, a perspectiva aberta por uma possibilidade não é nem a realização infalível nem a
impossibilidade radical, mas a busca_ tendente a estabelecer os limites e.jjs_çp.ndições da
própria,p_os_sibJlida-de_.e, portanto, o grau de garantia relativa ou parcial que ela pode oferecer. Essa
corrente do E. acentua a tendência naturalista e empirista já presente — ainda que de forma disfarçada ou
imperfeita — nas outras correntes (N. ABBAG-NANO, Struttura delVesistenza, 1939; Introdu-zione
alVesistenzialismo, 1942; Filosofia, reli-gione, scienza, 1948; Possibilita e liberta, 1956; E PACI, Principi
di una filosofia deWessere, 1939; Pensiero, esistenza, valore, 1940; Tempo e relazione, 1954). Segundo
essa tendência, a investigação dos limites e das condições a que as
EXOTÊRICO
406
EXPERIÊNCIA
possibilidades humanas estão submetidas só pode ser feita com a utilização de técnicas de verificação e
controle de que a indagação positiva ou científica dispõe em todos os campos. Se uma hipótese, uma
teoria ou uma proposição não passam de um ^poder ser" que abre pers-pectiva para o futuro, sua validade
consiste não só em poderem ser postas à prova, mas também em poderem ser repropostas depois da
prova, ainda como um "poder ser" para o futuro. Por isso, os critérios utilizados pelas ciêjTaas_em_ge^ ^
ral e discipIiriaiT èm parficular,~com o fim de de- p cidifsõBrê a_validade das suas proposições
..e_da_i<F realidade dos seus objetos, podem ser assumi- '{í dos como determinações ou especificações
do critério da possibilidade; ou, reciprocamente, este último pode ser assumido como a generali-. zação
de critérios específicos. Desj>e_j3ontojíe_ , '/vista, o homemnerné lançado sem defesas_con-3^tra a
falência„e afracasso, nem estájjestinado ao ji" triimfojinal; contudo, possui as garantias par-,j$i> ciais e
limitadas que lhe são oferecidas por suas £ ^técnicas, por seus modos de vida experimen-è\~tados e pelas
possibilidades, ^jue_jelas_lhe_ r& abrem, de encontrar e experimentar novas j? ^ possibilidades. Cf. Á.
SANTUCCI, E. e filosofia \~italiana, 1959.
EXOTÉMCO. V. ESOTÉRICO. EXPECTATIVA (in. Expectation; fr. Attente-, ai. Erwartung; it.
Aspettazioné). Antecipação de um acontecimento futuro (v. FUTURO). Uma das formas da atenção ou
atenção expectante, que é o preparo para a ação e a disposição das condições mentais capazes de enfrentála (v. ATENÇÃO). Quando a E. é mantida no estágio de excitação, com inibiçâo das disposições à
realização da ação, torna-se um estado semipato-lógico ou patológico, devido à exaltação das emoções.
(P. JANET, De Vangoisse à l'êxtase, pp. 1Ó8 ss.).
EXPERIÊNCIA (gr. è|i7ceipí(X; lat. Experien-tia; in. Experience, fr. Experience, ai. Erfah-rung; it.
Esperienzà). Este termo tem dois significados fundamentais: le
a participação pessoal em situações
repetíveis, como quando se diz: "x tem E. de S", em que S é entendido como uma situação ou estado de
coisas qualquer que se repita com suficiente uniformidade para dar a x a capacidade de resolver alguns
problemas; 2
a
recurso à possibilidade de repetir certas situações como meio de verificar as soluções que
elas permitem: como quando se diz "a E. confirmou x", ou então: "a proposição p pode ser confirmada
pela E.". No
primeiro desses dois significados, a E. tem sempre caráter pessoal e não há E. onde falta a participação da
pessoa que fala nas situações de que se fala. No segundo significado, a E. tem caráter objetivo ou
impessoal: o fato de a proposição p ser verificável não implica que todos os que fazem tal afirmação
devam participar pessoalmente da situação que permite confirmar a proposição p. O elemento comum dos
dois significados é a possibilidade de repetir as situações, e isso deve ser considerado fundamental na
significação geral do termo. Essa determinação implica que: d) esse termo não é usado com propriedade
quando se fala de uma E. "excepcional" ou até mesmo "única", a menos que esses adjetivos sejam (como
de fato muitas vezes são na linguagem comum) exageros retóricos para indicar a pouca freqüência com
que certa situação se repete ou a impro-babilidade de que ela se repita para o mesmo indivíduo; b) esse
termo não se restringe necessariamente a indicar situações "sensíveis", mas pode indicar situações de
qualquer natureza em que se possa contar com suficiente repetibilidade. Além disso, o uso desse termo no
significado 2- supõe uma condição fundamental, sem a qual a E. não pode exercer nenhuma ação de
averiguação; qual seja: c) a E. a que se recorre para a averiguação deve ser independente das crenças que
é chamada a averiguar, de tal modo que as crenças não acabem por determinar a averiguação. Sem essa
importante limitação, uma ilusão repetida ou repetível poderia ser assumida como prova de validade.
Portanto, pode-se falar (como muitas vezes se faz na linguagem contemporânea) de "E. religiosa" ou "E.
mística", etc, só no significado 1Q
do termo, mas essas fôrmas de E. não podem ser utilizadas para
verificar as crenças de que partem, pelo fato de que são inteiramente dependentes de tais crenças e não
podem ocorrer sem elas. Dos dois significados enunciados, o 2° é o comum a todas as correntes do
empirismo (v.), ao passo que o le
é historicamente anterior e ainda hoje é compartilhado por algumas
correntes da filosofia.
I
a A primeira e mais evidente característica da primeira noção de E. é constituída pela oposição entre, por
um lado, arte, e ciência ou conhecimento racional, por outro. Essa contraposição foi claramente enunciada
por Platão a propósito da medicina. Platão diz que os médicos dos escravos "não averiguam as doenças" e
"prescrevem o que lhes parece melhor pela
EXPERIÊNCIA
407
EXPERIÊNCIA
E. como se tivessem uma ciência perfeita", comportando-se "como um tirano soberbo", O médico dos
homens livres, ao contrário, "estuda as doenças, mantém os doentes desde o princípio em observação,
procura a natureza do mal, estabelece relações estreitas com o doente e com seus familiares e, ao mesmo
tempo, aprende com os doentes e ensina-lhes o que é possível" {Leis, IV, 720 c-d). O empirismo moderno
consideraria compatível com a E. precisamente o comportamento que, nesse trecho, Platão contrapõe à
própria E. Mas essa observação mostra a diferença que separa os dois significados de E. aqui enunciados.
Aristóteles deu forma clássica a essa doutrina no primeiro capítulo de Metafísica e no último de
Analíticos posteriores. Sua tese fundamental é a redução da E. à memória. Aristóteles diz que todos os
animais têm "uma capacidade seletiva inata", que é a sensação. Em alguns deles, a sensação não persiste;
para estes, não há conhecimento fora da sensação. Outros, porém, finda a sensação, podem conservar
alguns vestígios dela na alma. Nesse caso, depois de muitas sensações dessa natureza, determina-se em
alguns animais uma espécie diferente de conhecimento, que é o conhecimento racional. De fato, "a partir
da sensação desenvolve-se aquilo que chamamos de lembrança, e da lembrança repetida de um mesmo
objeto nasce a E., assim, lembranças que são numericamente múltiplas constituem uma experiência.
Dessa E. ou do conceito universal que se fixou na alma como uma unidade que, estando além da
multiplicidade, é una e idêntica em todas as coisas múltiplas, nasce o princípio da arte e da ciência: da
arte, em relação ao devir; da ciência, em relação ao ser" (An. post., II, 19, 100 a 4). Assim entendida, a E.
contrapõe-se à arte e à ciência, ao mesmo tempo em que é condição delas. É condição delas porquanto é
ela que suscita a inteligência dos primeiros princípios da arte, da ciência. "Esses hábitos", diz Aristóteles,
"não subsistem em nós separadamente, nem são produzidos por outros hábitos mais cognoscitivos, mas
pela própria sensação, do mesmo modo como, p. ex., se um exército está fugindo e um soldado pára, pára
também o soldado que o segue e depois o outro, e assim por diante, até o princípio da fila" (An. post., II,
19, 100 a 9). Nessa comparação, a parada do primeiro soldado é a permanência de certa sensação na
memória (p. ex., do homem Cálias), a parada de outro soldado depois de várias filas
já é um conceito (p. ex., homem), e a parada do princípio da fileira corresponde aos conceitos últimos e
simples, que são os princípios da arte e da ciência e intuições pelo intelecto (Ibid., II, 19, 100 a 9). Notese que o próprio uso do verbo "parar" com que Aristóteles expressa a persistência ou a estabilidade da
lembrança — que constitui a E. e por fim leva à inteligência dos princípios — corresponde àquilo que é a
característica objetiva da E.: a possibilidade de repetir as situações. Pela ação condi-cionante que a E.
exerce sobre a inteligência dos princípios, Aristóteles chega a dizer que "conseguimos reconhecer os
princípios primeiros com a indução; e, com efeito, a sensação produz desse modo o universal" (Ibid., 100
b 3 ss.). Mas é claro que entre um soldado qualquer parar e a primeira fila de soldados parar há uma
diferença radical: a parada da primeira fila é a inteligência dos primeiros princípios, que são
necessariamente verdadeiros, independentemente de qualquer confirmação que a E. possa dar. Eles são,
aliás, indiferentes à confirmação ou à refutação e justamente por isso são objeto de um órgão específico,
que é o intelecto. O reconhecimento desse órgão obviamente é sugerido a Aristóteles pela exigência de
fundar a validade necessária dos primeiros princípios, ou seja, de tornar esses princípios independentes de
qualquer confirmação ou refutação empírica. Esta estabelece o quase sempre, não o sempre. Portanto, em
face da inteligência, que apreende os princípios, o processo preparatório que vai das sensações à E. é
puramente acidental e só apresenta a vantagem de ser o mais cômodo e óbvio para o homem. Mas para
Aristóteles a E. permanece o que era para Platão: consiste em conhecer o fato que ocorre repetidamente,
mas não a razão pela qual ocorre: assim, é conhecimento do particular e não do universal, de tal modo que
saber e conhecer cabem à arte e à ciência, não à E. (Met., I, 1, 981 a 24). Portanto, em Aristóteles está
totalmente ausente a noção (própria do significado 2Q
, de E. como possibilidade de verificação e de
averiguação das verdades alcançáveis pelo homem. Aristóteles não pode, portanto, ser chamado
empirista. Para ele, a E. se reduz à repetição freqüente, mas não absolutamente constante de certas
situações memorizáveis.
Ao longo da história da filosofia, esse conceito de E. permanece como uma das alternativas possíveis,
cujas características às vezes também influenciam o outro conceito. Os
EXPERIÊNCIA
408
EXPERIÊNCIA
escritores medievais, em geral, o repetem (S. TOMÁS, S. Th., I, q. 54, a. 5; II, I, q. 40, a. 5, etc); como o
repetem Spinoza (Et., II, 40, scol. 2) e Leibniz (Théod., Disc, § 65; Monad., §§ 28-29).
2
a
O recurso à E. como critério ou cânone da validade do conhecimento é característico do empirismo,
distinguindo-o do sensacionis-mo(v.). Este consiste simplesmente em asserir a natureza intuitiva, portanto
privilegiada, do conhecimento sensível, mas sem que tal conhecimento se constitua em guia e controle do
conhecimento em geral. Os estóicos, p. ex., foram sensacionistas, mas não empiristas; os epicuristas, que,
ao contrário, elaboraram e defenderam uma teoria da indução, foram também empiristas. No âmbito desse
significado da palavra, é possível distinguir duas interpretações fundamentais, quais sejam: a) teoria da E.
como intuição, b) teoria da E. como método.
a) A teoria da E. como intuição considera a E. como o relacionar-se imediato com o objeto individual,
usando como modelo de E. o sentido da visão. Desse ponto de vista um objeto "conhecido por E." é um
objeto presente em pessoa e na sua individualidade. A tese fundamental dessa concepção é a seguinte:
existem unidades empíricas elementares. A concepção leva a admitir que existem dados elementares
originários aos quais é confiada em última análise a função de verificação do conhecimento. Por sua vez,
a existência das unidades empíricas elementares permite estabelecer uma classe privilegiada de
proposições, que são as que exprimem diretamente essas unidades.
O recurso à E., quando formulado pela primeira vez no plano filosófico, no séc. XIII, foi um recurso à
intuição. "Sem a E.", dizia Roger Bacon, "nada se pode conhecer suficientemente. Os modos de conhecer
são dois: a argumentação (argumentum) e a experiência. A demonstração conclui e nos faz concluir a
questão, mas não dá certezas e não remove a dúvida, já que a alma não se aquieta na intuição da verdade
se não a encontrar por via da E." (Opus maius, VI, 1). Essas palavras de Bacon já incluem o recurso à E.
como averiguação e norma da verdade humana. Mas também incluem o conceito intuitivo da experiência.
É verdade que, para Bacon, a intuição não é somente sensível: ao lado da E. sensível, que é fonte ou
critério das verdades naturais, Bacon admite uma E. "interna" ou sobrenatural, devida à iluminação divina e que é a fonte das virtudes sobrenaturais. Mas o caráter intuitivo da E.
permaneceria mesmo depois que a E. sobrenatural foi posta de lado pelo desenvolvimento ulterior do
empirismo. Segundo Ock-ham, a E., que é "o princípio da arte e da ciência", é o conhecimento intuitivo
perfeito, que tem por objeto as coisas presentes, dife-renciando-se por isso do imperfeito, que tem por
objeto as coisas passadas (In Sent., II, q. 15, H; Prol., q. 1, 2). Intuitivo é o conhecimento "era virtude do
qual se pode saber se uma coisa existe ou não. Se existe, imediatamente o intelecto julga que existe. Além
disso, intuitivo é o conhecimento mediante o qual se sabe que uma coisa inere em outra, que um lugar
dista de outro, que uma coisa tem certa relação com a outra ou, em geral, uma verdade contingente
qualquer, especialmente a respeito do que está presente" (Ibid., Prol., q. 1, Z). Ockham considera que se
pode ter conhecimento intuitivo não só das coisas exteriores, mas também dos estados internos do
homem, como as 'inte-lecções, as volições, a alegria, a tristeza e semelhantes, de que o homem pode ter E.
em si mesmo, mas que não são sensíveis para nós" (Ibid., Prol. q. 1, HH). Essa segunda espécie de
conhecimento intuitivo corresponde exatamente à reflexão de Locke. No espírito do ockha-mismo, Jean
Buridan declarava imperfeita a arte "doutrinai", ou seja, a que despreza a E.; essa arte, notava ele, não
conhece o significado dos seus princípios, nem das suas conclusões, sendo perfeita apenas a arte que
conhece pela E. tanto os princípios, que a arte doutrinai se limita a pressupor, quanto as conclusões
particulares a que eles conduzem (In Met., I, q. 8). A limitação da E. à intuição sensível foi reforçada, a
partir do Renascimento, pelo anti-racionalis-mo. Como as verdades pretensamente válidas, sem
verificação ou averiguação, eram atribuídas à "razão", a exigência de averiguação implícita no recurso à
E. parecia só poder voltar-se para a intuição sensível. Esta aparecia como fonte de verdades ou de
procedimentos independentes da. razão, logo capaz de exercer uma ação de freio ou limite sobre as
pretensões da razão. A partir do séc. XVI, o recurso à E. passa a ter significado claro de limite ou negação
das pretensões da razão. Telésio justificava o sensacionismo identificando "o que a natureza revela" com
"o que os sentidos testemunham" (De rer. nat., proêmio), argumentando que a natureza se revela à parte
do homem que é na-
EXPERIÊNCIA
409
EXPERIÊNCIA
tureza, ou seja, à sensibilidade. E Leonardo da Vinci afirmava que "a sabedoria é filha da E." e que a E.
nunca engana, apesar de poder enganar-se o juízo sobre ela {Cod. Ati, foi. 154 r). Mas tanto em Leonardo
da Vinci quanto em Galilei, ao lado da E. sensível aparece outro fundamento ou cânon do conhecimento
humano: o raciocínio matemático. Ao lado da "sensata E.", Galilei colocava explicitamente as
"demonstrações necessárias" da matemática como outra via através da qual a natureza se revela ao
homem {Carta à Grand. Cristina, em Op., V, p. 316). Essa já era uma limitação importante à
interpretação da E. como intuição sensível, pois as demonstrações matemáticas não transcendem o
domínio da natureza (que, segundo Galilei e Kepler, está escrita inteiramente em caracteres matemáticos),
sendo portanto constitutivas da E. natural. Aliás, é significativo que o verdadeiro fundador do empirismo
moderno, Francis Bacon, não seja de modo algum sensacionista e que, para ele, o guia do conhecimento
humano não é a simples E., que procede ao acaso e sem diretrizes, mas o experimento, que é a E. guiada e
disciplinada pelo intelecto {Nov. Org., 1,82). A interpretação intuitiva da E. deveria, porém, prevalecer no
empirismo setecentista graças a Locke e Hume. A teoria da E. de Locke pode ser resumida nos seguintes
pontos: 1Q
'redução da E. à intuição das coisas externas (sensação) ou dos atos internos (reflexão); 2S
resolução da sensação e da intuição em elementos simples, entendidos cartesianamente como idéias, 3
Q
uso da noção de E. como critério ao mesmo tempo limitativo e fundamentador do conhecimento humano,
já que este não pode ir além da E. que lhe fornece as idéias e, ao mesmo tempo, recebe da E., com o
material indispensável e com os nexos que esse material apresenta, o critério da sua validade {Ensaio, IV,
cap. 3-4). Esse último aspecto é enfatizado por Locke inclusive como norma limitativa das pretensões
cognoscitivas do homem porque assumido como limite da possível extensão do conhecimento humano.
Na realidade, se considerarmos o fato de Locke ter imposto esse limite não só ao domínio do
conhecimento, mas também ao da política, da moral e da religião, campos em que o conceito de relação
direta com o objeto não tem sentido, deveremos concluir que, no conjunto de sua filosofia, ele realizou
uma atitude empirista que vai além de sua teoria da experiência. Com Locke, delineou-se a concepção de
E.
como totalidade do mundo humano, ou seja, como conjunto de sistemas de averiguação instituíveis nele,
que é a característica da concepção metódica da experiência. Mas está claro que em Locke também se
encontra, pela primeira vez, a definição das unidades empíricas elementares, que são as idéias e as
relações imediatas entre as idéias. A mesma assunção, com outras palavras, encontra-se na teoria de
Hume. O ponto de vista deste filósofo está expresso com toda clareza nas últimas frases de Investigação
sobre o intelecto humano: "Se tomarmos um volume qualquer, como p. ex. de teologia ou de metafísica
escolástica, perguntaremos: contém algum raciocínio abstrato sobre quantidades ou números? Não.
Contém algum raciocínio experimental sobre questões de fato ou de existência? Não. Então, ponha-o no
fogo, pois só contém sofismas e ilusões." De fato, para Hume, todos os objetos da investigação humana
dividem-se em duas grandes classes: as relações entre as idéias e as coisas de fato. As relações entre
idéias "podem ser descobertas com uma operação pura do pensamento, sem depender de coisas que
existem em algum lugar do universo. Ainda que não existisse nem sequer um círculo ou um triângulo na
natureza, as verdades demonstradas por Euclides conservariam certeza e evidência" {Inq. Cone. Underst., IV, 1). Portanto, as verdades dessa natureza (que constituem a geometria, a álgebra, a aritmética e,
em geral, a matemática) não precisam de averiguação, mas sua verificação está à disposição do homem a
qualquer momento e sem recurso a confirmações experimentais. No que concerne aos conhecimentos da
realidade de fato, ao contrário, o seu único fundamento é a relação entre causa e efeito. Mas, por sua vez,
o fundamento dessa relação é a E., e se perguntarmos qual é o fundamento das conclusões tiradas da E., a
resposta a ser dada, segundo Hume, é que esse fundamento nada tem de racional, mas é simples instinto.
De fato, "todas as nossas conclusões experimentais fundam-se na suposição de que o futuro será
conforme ao passado. Mas buscar a prova desta última suposição com argumentos prováveis ou referentes
à existência deve ser, evidentemente, um círculo vicioso, e tomar por admitido o que é duvidoso" {Inq.,
cit., IV, 2). Portanto, o que nos resta é o instinto, a aconselhar-nos a aceitar como boa uma inferência — a
do passado para o futuro — que não pode ter justificação racional nem empírica. O fundamento dessa
crítica é a
EXPERIÊNCIA
410
EXPERIÊNCIA
redução da E. às impressões e à relação entre as impressões, relação que também é intuída, ou seja,
percebida aqui e agora, portanto, desprovida de qualquer significado ou referência que transcenda a
instantaneidade das impressões. Hume operou a mais radical redução da . E. à intuição, porque reduziu a
intuição a intuição instantânea, que nada significa fora de si. Desse ponto de vista, a construção de
procedimentos ou de esquemas de previsão é impossível: como censurou Kant, Hume tornava impossível
a formação de uma ciência qualquer. Todavia, foi justamente a teoria da E. de Hume que, através de
Mach, tornou-se o pressuposto do neo-empirismo contemporâneo. Mach resolvera o fato empírico em
elementos considerados últimos e originários: as sensações. Um fato físico ou um fato psíquico não passa
de um conjunto relativamente constante de elementos simples: cores, sons, calor, pressão, espaço, tempo,
etc. Desse ponto de vista, a diferença substancial entre o físico e o psíquico desaparece. "Uma cor", diz
Mach, "é um objeto físico enquanto considerarmos, p. ex., sua dependência das fontes luminosas (outras
cores, calor, espaço, etc), mas se a considerarmos em sua dependência da retina é um objeto psíquico,
uma sensação" (Die Analyse derEmp-findungen, 9
a
ed., 1922, p. 14). Essa doutrina conferia à noção de
unidade empírica elementar a forma com a qual ela exerceu e ainda exerce função central no neoempirismo contemporâneo. Wittgenstein valeu-se dela em Tractatus logico-philosophicus (1922). Nessa
obra, aceitava-se a distinção de Hume entre verdades de razão e verdades de fato, expri-mindo-a na forma
da oposição entre as proposições da matemática e da lógica, que são "analíticas", "tautológicas", "não
dizem nada" {Tractatus, 6,1; 6,11), e as proposições elementares das ciências naturais que representam os
"estados de coisas" (Sachverbalte) ou "fatos atômicos" Ubid., 4, 1), os quais nada mais são do que as
impressões de Hume ou as sensações de Mach: unidades empíricas elementares. Por sua vez, em Visão
lógica do mundo (1928), Carnap tentava reduzir todo o conhecimento científico aos termos da E.
intuitiva, e a unidade empírica elementar a que recorria era a "Vivência elementar" (Elementarerlebnis),
considerada como um elemento neutro, anterior à distinção entre objetivo e subjetivo CAufbau, § 67),
segundo o modelo da "sensação" de Mach. Mas essa concepção de E., precisamente como a de Hume (que, no fundo, era idêntica), impossibilitava a ciência ao impossibilitar a
formulação de regras para a previsão dos fenômenos. Foi essa, justamente, a crítica dirigida a Carnap pelo
próprio Círculo de Viena (cf. K. Popper, Logik der Forschung, 1934; cf. a nova edição inglesa, The Logic
of Scientific Discovery, 1959). Conseqüentemente, Carnap modificou seu conceito de verificabilidade
empírica. No texto Testabüity and Meaning (1936), diz ele: "Os positivistas acreditavam que todo termo
descritivo da ciência podia ser definido por termos de percepção e, portanto, que todo enunciado da
linguagem pudesse ser traduzido em um enunciado sobre as percepções. Essa opinião foi expressa nas
primeiras publicações do Círculo de Viena, inclusive na minha, de 1928, mas hoje penso que não era de
todo adequada: a redutibilidade pode ser afirmada, mas não a ilimitada possibilidade de eliminação e
retradução" ("Testabüity and Meaning", em Readings in thePhil. of Science, 1953, p- 67). Esse
reconhecimento eqüivale a uma restrição da tese da verificabilidade empírica dos enunciados científicos,
tese que Carnap exprime dizendo: "Todo predicado descritivo da linguagem da ciência é confirmável com
base em predicados-coisa observáveis" Ubid., p. 70). A confirmabilidade, com efeito, é uma exigência
mais fraca e menos rigorosa do que a experimentabilidade: um enunciado pode ser confirmável sem ser
experimenta vel: isso ocorre, por exemplo, quando sabemos que uma observação x nos daria condições de
confirmar ou invalidar o enunciado, mas não estamos em condições de efetuar a observação x. Mas essa
restrição, que sem dúvida amplia o domínio dos enunciados significativos e dá à ciência o direito de
empregar enunciados que não tem condições de pôr à prova, não constitui uma retificação do conceito de
experiência. O complexo aparato que Carnap propõe como instrumento de redução de qualquer enunciado
científico a enunciado experimentável ou, pelo menos, confirmável, apóia-se na crença de que existe
correspondência estreita entre um enunciado verdadeiro e determinada E. intuitiva. O modo como ele
define o predicado observável realmente faz referência à E. imediata, visto que Carnap declara, p. ex., que
um campo elétrico não é absolutamente observável Ubid., pp. 63-64). Em outros termos, nessa segunda
fase do pensamento de Carnap, os "predicados observáveis" constituem as unida-
EXPERIÊNCIA
411
EXPERIÊNCIA
des empíricas elementares que servem de fundamento aos enunciados sintéticos. Portanto, nessa segunda
fase, com a distinção entre enunciados analíticos e enunciados sintéticos, permanece ainda a noção
intuitiva de E. e, com isso, a crença na existência de unidades empíricas elementares. O que mudou foi
apenas a qualificação de tais unidades elementares, que deixam de ser experiências subjetivas ou
percepções, mas determinações objetivas ou qualidades sensíveis. Essa fase do pensamento de Carnap
pode ser considerada como o desenvolvimento máximo da noção de E. como intuição. De fato, o
reconhecimento, por parte de Quine, dos "dois dogmas do empirismo" (natureza intuitiva da E. e
distinção entre enunciados analíticos e enunciados sintéticos) constitui a passagem para uma concepção
diferente da experiência. Entrementes, é significativo o fato de a teoria da E. como intuição ser
compartilhada não só por empiristas, mas também por seus adversários, como p. ex. Husserl, que censura
no empirismo a ignorância ou o desconhecimento das "essências" e julga, portanto, que o verdadeiro
procedimento cognoscitivo é a "visão essencial" do matemático. Segundo Husserl, a E. do naturalista,
que, para ele, é "um ato fundamentador, que não pode ser substituído pela simples imaginação", é apenas
visão, intuição do individual (Icleen, I, §§ 7, 20). Esse conceito é confirmado por ele nas obras póstumas,
onde se lê que a E., "no seu significado primeiro e mais pregnante", deve ser considerada "relação direta
com o individual" {Erfahrung und Urteil, 1954, § 6).
b) A teoria da E. como método considera-a operação (mais ou menos complexa, nunca elementarmente
simples) capaz de pôr à prova um conhecimento e capaz de orientar sua retificação. Uma operação que
atinge esse objetivo é repetível ou recorre a situações repetíveis, portanto nunca é: le
uma atividade
pessoal ou incomunicável (p. ex., subjetiva ou mental), que não possa ser repetida por qualquer pessoa; 2Q
intenção, imaginação ou anúncio de operação, mas a operação efetiva. Nesse sentido, "perceber" não é
operação empírica quando se refere à sensação que x tem do vermelho, mas sim quando é operação
tendente a confirmar ou averiguar se, p. ex., há um objeto vermelho nesta sala, desde que essa operação
possa ser realizada por qualquer pessoa nas condições adequadas. Portanto, o objeto empírico não é a
"sensação" ou a "impressão" de
vermelho (como Carnap parece crer), mas a coisa vermelha, como p. ex. o livro ou a luz cuja presença
pode ser confirmada nesta sala, seja com operações perceptivas normais (que podem ser praticadas por
qualquer pessoa que tenha visão normal), seja com instrumentos (p. ex., um espectroscópio, etc). A
sensação "vermelho" não é levada em conta; isso porque, mesmo não sendo diretamente acessível a
alguns indivíduos (os daltônicos), um objeto vermelho não deixa de ser um objeto empírico para todos,
inclusive para os daltônicos. A empiricidade de um objeto consiste no fato de ele poder ser verificado ou
averiguado por quem quer que esteja na posse dos meios adequados; e o fato de existirem certos meios
capazes de propiciar essa averiguação significa que eles podem ser utilizados tanto por quem crê quanto
por quem não crê na existência do objeto, e que a eficácia dos meios não depende de uma ou de outra
crença. Em sentido negativo, essa noção de E. é caracterizada por: lfi ausência de distinção entre verdades
de razão e verdades de fato, ou entre enunciados analíticos e enunciados sintéticos, 2° pela ausência de
postulação de uma unidade empírica elementar.
Pode-se dizer que essa noção de E. foi delineada pela própria prática da pesquisa científica desde seus
primórdios. A "sensata E." de Galilei, que nunca estava separada do raciocínio matemático, tem esse
caráter prático de averiguação e não pode ser interpretada como recurso à intuição imediata. O próprio
fundador do empirismo moderno, Francis Bacon, entendeu a E. como campo das verificações e das
averiguações intencionalmente executadas. Dizia Bacon: "Quando a E. vem ao nosso encontro
espontaneamente, chama-se acaso; se procurada deliberadamente, tem o nome de experimento. Mas a E.
vulgar outra coisa não é. senão um proceder às apalpadelas como quem vaga à noite de lá para cá na
esperança de topar com o caminho certo, quando seria muito mais útil e prudente esperar o dia ou acender
um candeeiro para achar o caminho. A ordem verdadeira da E. começa com acender o candeeiro, com o
que se ilumina o caminho, co-meçando-se com a E. organizada e madura, e não com uma E. irregular e às
avessas; primeiro, deduz os axiomas, depois procede a novos experimentos" (Nov. Org., I, 82). Em outros
termos, para valer como fonte de aferição dos conhecimentos, a E. deve incluir uma ordem,
EXPERIÊNCIA
412
EXPERIÊNCIA
que, para Bacon, é de natureza intelectual, embora depois deva servir de freio e norma ao próprio
intelecto {Ibid., I, 101). A característica fundamental dessa concepção é a ausência de distinção entre
verdades de razão e verdades de fato, ou seja, entre verdades que se fundam unicamente nas inter-relações
de idéias e verdades que derivam da experiência. A ciência moderna, a partir de Galilei, ignora essa
distinção, que tampouco é reproduzida pela distinção kantiana entre juízos analíticos e sintéticos, porque
tal distinção não concerne à validade dos juízos, mas à diferença entre juízos explicativos e juízos
extensivos, entre juízos que nada acrescentam ao conhecimento do sujeito e juízos que lhe acrescentam
novas notas {Crit. R. Pura, Intr., 4). De fato, Kant elabora um conceito de E. segundo o qual a E. é
irredutível à simples intuição sensível. Para Kant, a E. é o conhecimento efetivo e, por isso, inclui a
totalidade das suas condições. Kant diz: "Toda E. encerra, além da intuição dos sentidos para a qual algo é
dado, o conceito de um objeto que é dado ou aparece na intuição, por isso, na base de todo conhecimento
experimental há conceitos de objetos em geral como condições a priori; por conseguinte, a validade
objetiva das categorias, como conceitos apriori, dever-se-á ao fato de que só graças a elas é possível a E.
(segundo a forma do pensamento)" {Ibid., Analítica, § 14). E ainda: "A E. apóia-se na unidade sintética
dos fenômenos, numa síntese, segundo conceitos, do objeto dos fenômenos em geral, sem a qual nunca
seria um conhecimento, mas uma rapsódia de percepções que nunca poderiam adaptar-se umas às outras,
no contexto regular de uma (possível) consciência inteiramente unificada, portanto, nem à unidade
transcendental necessária da percepção. A E. tem, pois, como fundamento os princípios da sua forma a
priori, ou seja, as normas universais da unidade da síntese dos fenômenos, normas cuja realidade objetiva
sempre pode ser encontrada na E., como aquela das condições necessárias dela, aliás, da sua própria
possibilidade" {Ibid., Analítica, II, 2, seç. 2). A E. não é, portanto, a "rapsódia" de percepções sensíveis,
mas a ordem e a regularidade do conhecimento que constituem a contraparte subjetiva (ou "formal") da
ordem e da regularidade da natureza. Justamente como tal, a E., ou melhor, a possibilidade da E., é o
critério último da legitimidade de qualquer conhecimento possível. Para Kant um conhecimento que não
é uma E. possível não é um conhecimento objetivo, ou seja, autêntico {Ibid., Analítica, II, 2, seç. 2). Mas
se esse é o conceito de E. que Kant elabora nem sempre é o que utiliza ao longo de sua obra. Se, de fato,
esse significado fosse rigorosamente observado, Kant não poderia dizer, como diz bem no início da
Razão Pura (Intr., 1): "Se bem que todos os nossos conhecimentos comecem com a E., nem por isso
derivam todos da E." O conhecimento não pode derivar nem deixar de derivar da E., se ele éa experiência.
Donde resulta que todo o conceito kantiano do a priori como o que é "independente da E." deriva do uso
ambíguo desse termo, que, ao contrário da definição explícita que Kant lhe dá, às vezes se limita a indicar
a intuição sensível, de tal modo que a ordem, a regularidade, as categorias e os princípios não se incluem
em seu âmbito e devem ser considerados apriori. Está bem claro que, se a E. inclui ordem, regularidade,
etc, os princípios que garantem tal ordem, ou seja, a forma da E., não podem ser chamados de a priori,
"independentes da'E.", tampouco sendo possível assim designar o conteúdo da E., isto é, o seu material
sensível.
O significado dessa doutrina está na tese de que o conhecimento efetivo é o que se organiza segundo o
princípio de causalidade, ou seja, segundo uma ordem necessária. Fichte exprimia com exatidão essa tese
kantiana ao dizer: "O sistema das representações acompanhadas pelo sentimento da necessidade chama-se
também E., seja ela interna ou externa. Por isso, a filosofia tem a função de explicar toda E." {Erste
Einleitung in die Wissenschaftslehre, 1797, § 1, em Werke, I, 1, pp. 419 ss.). Desse ponto de vista, o
método de explicação causai é, por excelência, o método empírico. Por isso, a concepção da E. como
método tem sentido restrito em Kant: a E. como método identifica-se com a explicação causai. Na
filosofia contemporânea, o conceito de E. como método foi defendido pelo pragmatismo e pelo
instrumentalismo. Peirce dizia: "cuidamos somente da E. possível, E. na plena acepção do termo, como
algo que não só afete os sentidos, mas seja também o sujeito do pensamento" {Chance, Love and logic, II,
2; trad. it., p. 131). Dewey, por sua vez, nega que a E. seja "um conteúdo objetivo" ou que se identifique
com um objeto singular. "Na E. efetiva, nunca se dá tal objeto singular ou evento isolado; um objeto ou
evento é sempre uma parte, um momento ou um aspecto especial de um
EXPERIÊNCIA
413
EXPERIÊNCIA
mundo ambiental experimentado, isto é, de uma situação. O objeto singular tem grande destaque devido à
posição focai e crucial que ocupa em dado momento, quando se visa determinar alguns problemas de uso
e fruição que o ambiente global apresenta. É sempre em certo campo que se verifica a observação deste
ou daquele objeto." Por conseguinte, "os juízos de E. e os juízos formais acerca de objetos ou de eventos
não se dão para nós quando isolados, mas só quando vinculados a um contexto abrangente, que se chama
situação" (Logic, III; trad. it., p. 111). As características que Dewey atribui à E. podem ser assim
resumidas: I
a
a E. não é consciência, logo não pode ser reduzida à intuição (Experience andNature, 1925,
cap. I); 2
3
a E. não é somente conhecimento, embora inclua o conhecimento, mas compreende tudo o que,
a qualquer título, pode ser experimentado pelo homem (essa extensão já fora feita por Peirce, que
entendera por E. "o curso da vida" [Coll. Pap., 3, 4351 ou "a história pessoal" [Ibid., 4, 91]); ò- a E. é o
campo de toda pesquisa possível e da projeção racional do futuro: nela, por isso, "a razão tem
necessariamente função construtiva" (Phil. and Civilizatíon, 1931, pp. 24-25). Por importantes que sejam
esses pontos, que exprimem algumas das exigências para uma teoria metodológica, constituem uma
abordagem genérica demais dessa teoria. Para isso, por outro lado, constitui condição preliminar a crítica
feita por Quine aos dois "dogmas" fundamentais do empirismo, quais sejam, à distinção entre enunciados
analíticos e enunciados sintéticos e reducionismo sensacionista. Quanto ao primeiro, Quine distinguiu os
enunciados lógicos (p. ex., "Nenhum homem não casado é casado"), cuja verdade permanece inalterada
enquanto permanecer inalterado o uso das partículas lógicas (não, se, então, etc), e as outras verdades
chamadas analíticas (p. ex., "Nenhum solteiro é casado"), que têm esse nome porque certas palavras são
assumidas como sinônimos (nesse caso: "solteiro" e "não casado"). Ora, os procedimentos para
estabelecer a sinonímia são dois: le
definição: mas esta, salvo no caso de novas notações introduzidas com
convenções explícitas, não faz mais que esclarecer relações precedentes de sinonímia; 2-
intercambialidade salva veritate (que é o critério proposto por Leibniz): mas "nada garante que a
coincidência extensiva entre 'solteiro' e 'não casado' se baseie no significado e não em um estado de fato
acidental, como ocorre na coincidência extensiva
de 'criatura com um coração' e 'criatura com rins'" (Prom a Logical Point of View, II, 3). A
intercambiabilidacle pressupõe a sinonímia, mas não a funda, assim como a analiticidade não pode
fundar-se nas regras semânticas de uma linguagem artificial, já que tais regras definem o que é analítico
para a linguagem em questão, mas não o significado de analiticidade, que está pressuposto. A conclusão
de Quine é que não foi demarcado "um limite entre enunciados analíticos e enunciados sintéticos. Que tal
distinção deva ser feita é dogma não empírico dos empi-ristas, artigo metafísico de fé" (Ibid., II, 5). O
segundo dogma dos empiristas é a redução dos enunciados empíricos a termos de E. imediata, ou seja, a
dados sensíveis. Quine mostra a relação dessa tese, tanto na forma mais ampla quanto na mais restrita,
correspondentes às duas fases do pensamento de Carnap, com a distinção entre analítico e sintético. "Os
dois dogmas", diz ele, "são idênticos na raiz. Vemos que, em geral, a verdade dos enunciados depende
obviamente tanto da linguagem quanto do fato extralin-güístico e notamos que essa circunstância óbvia
acaba produzindo, não lógica mas naturalmente, o sentimento de que a verdade de um enunciado é
analisável em um componente lingüístico e um componente factual. Se formos empiristas, o componente
factual deverá conduzir-nos a um conjunto de E. verificadoras. No outro extremo, onde o componente
lingüístico é o único que interessa, será verdadeiro o enunciado analítico. Minha opinião é que isso é uma
tolice e que a raiz dessa tolice consiste em falar de um componente lingüístico e de um componente
factual na verdade de todos os enunciados individuais. Tomada coletivamente, a ciência tem dupla
dependência, da linguagem e da E., mas essa dualidade não pode ser estendida aos enunciados isolados da
ciência" (Ibid., II, 5). Desse ponto de vista, o saber pode ser comparado a um tecido cinzento, que é preto
para os fatos e branco para as convenções lingüísticas nele entrelaçadas, mas no qual não há fios
totalmente brancos nem fios totalmente pretos (Carnap e a verdade lógica, em "Riv. di Fil.", 1957, ns
1);
ou então a um campo de força cujas condições limítrofes são a experiência. "Um conflito com a E. na
periferia", diz Quine, "ocasiona uma reacomodação no interior do campo. Os valores de verdade devem
ser redistribuídos sobre algumas das nossas asser-çôes. A reavaliação de umas asserções implica a
reavaliação de outras, em virtude das suas cone-
EXPERIÊNCIA
414
EXPERIMENTO
xões lógicas, ao mesmo tempo que as leis lógicas são outras tantas asserções do sistema, outros tantos
elementos do campo... Mas o campo total é tão subdeterminado pelas condições limítrofes, ou seja, pela
E., que há grande amplitude na escolha das asserções a serem reavaliadas à luz de uma E. contrária
isolada" (From a Logical Point of View, II, 6). Portanto, mesmo uma afirmação muito próxima da
periferia pode ser considerada verdadeira se comparada a uma E. recalcitrante, considerando esta como
ilusória ou reformando algumas das asserções chamadas de leis lógicas (como ocorreu, p. ex., com o
princípio do terceiro excluído). Mas nenhuma asserção está imune à revisão. É significativo que
justamente um dos maiores lógicos contemporâneos tenha liquidado o pressuposto lógico da doutrina da
E. como intuição, e que um dos maiores expoentes do neo-empirismo contemporâneo tenha procurado
liqüidar esse mesmo conceito de experiência. Na realidade, este segundo intento não foi levado a cabo por
Quine. Admitir para o campo total do saber a composição de conceito e sensação que se nega aos
componentes individuais do saber só pode ser considerada uma posição provisória. Quine fala ainda do
"fluxo de E." (Ibid., II, 6) no mesmo sentido em que Hume podia falar do fluxo das impressões, e afirma
que os objetos físicos, destacados desse fluxo, por seu caráter mítico, não são diferentes dos deuses de
Homero. Nesse aspecto, ele sofre a influência da obra de Duhem (La théorie phy-sique, 1906). Mas pelas
mesmas observações feitas por Quine o fluxo da E. deve ser considerado um conceito mítico, pois seria
uma sucessão ou corrente de intuições instantâneas, um suceder-se de unidades empíricas elementares, e
suporia, portanto, a existência de tais unidades elementares que a crítica de Quine contribuiu para
eliminar.
Em conclusão, hoje se entrevê a exigência de passar da teoria gnosiológica da E. para uma teoria
metodológica. Para a teoria gnosiológica, a E., como forma, elemento ou categoria em si, é formada por
elementos próprios, característicos e irredutíveis, aos quais, portanto, deve ser reduzido, direta ou
indiretamente, todo enunciado empírico. Uma teoria desse gênero tem como pressuposto uma
classificação preliminar e rígida das formas de conhecimento e também, portanto, das formas de atividade
humana (teoria-prática; lógica/linguagem/razão-E.; enunciados empíricos-unidades empíricas elementares; lógica centro-E. periferia). Uma teoria metodológica da E. deveria, ao contrário, prescindir de
qualquer classificação preliminar e, em todo caso, de qualquer rigidez classifica-tória das atividades
humanas em seu conjunto. Suas análises deveriam ser aplicadas aos procedimentos efetivos de
verificação e averiguação de que o homem dispõe, seja como organismo, seja como cientista. A análise
desses procedimentos deveria determinar as condições e os limites de validade de cada um. Só desse
modo, o exame dos componentes lógico-lingüísticos nunca se separaria do exame dos componentes
factuais, segundo a exigência de Quine. A própria distinção entre tais componentes deveria ser supérflua
em qualquer nível. Infelizmente, embora a psicologia contemporânea esteja bem à frente na análise dos
procedimentos de verificação e confirmação de que o homem dispõe como organismo (pense-se
sobretudo nas contribuições que a psicologia funcional tem dado à análise da percepção), a metodologia
científica, ou seja, o exame dos procedimentos de verificação e confirmação de que o homem dispõe na
ciência, ainda não passa de intenção. Está claro que, do ponto de vista de uma tal metodologia, a E. seria
somente o conjunto dos campos em que as técnicas de verificação ou averiguação de que o homem dispõe
se revelassem eficazes.
EXPERIÊNCIA PURA. V. EMPIRIOCRITICISMO.
EXPERIMENTO (lat. Experimentum; in. Experiment; fr. Experiment; ai. Experiment; it. Esperimentó).
Embora essa palavra às vezes seja usada para indicar a experiência em geral, seu valor específico é o de
experiência controlada ou dirigida, ou seja, de observação (v.). Já na Idade Média esse termo foi usado
com esse sentido (cf., p. ex., OCKHAM, In Sent., Prol., q. 2, G), mas esse significado só foi fixado por
Bacon, que contrapôs o E. como experientia litterata, ou seja, guiada e sustentada por uma hipótese, à
experiência que vai espontaneamente ao encontro do homem e é casual (Nov. Org., I, 83, 110). Wolff, por
sua vez, dizia: "O E. é uma experiência que diz respeito a fatos naturais que só acontecem quando
intervém nossa ação" (Psychol. Empir., § 456). Kant falava no mesmo sentido de um "E. da razão pura",
que consistia em ver se a hipótese da existência do incon-dicionado conduz ou não a contradição; se
conduz a contradição, o E. demonstra que a razão não pode superar os limites da experiência
EXPERIMENTO CRUCIAL 415
EXPLICAÇÃO2
(Crít. R. Pura, Prefácio à 2- edição). Ainda aqui se trata de uma experiência controlada. Claude Bernard,
porém, às vezes chamava o E. de experiência, entendendo com isso "uma observação provocada com o
fim de dar origem a uma idéia" {lntroduction á Vétude de Ia médecine expérimentale, 1865, I, § 6).
EXPERIMENTO CRUCIAL. V. CRUCIAL
EXPIAÇÃO (gr. 5ÍKr|; lat. Expiatio; in. Atonement; fr. Expiation; ai. Siihne, it. Espia-zioné). Efeito
salutar da pena. Platão considerou a E. como o meio de curar as doenças da alma e acreditou que, assim
como a economia liberta da pobreza e a medicina liberta da doença, também a justiça liberta da intemperança e da injustiça (Górg., 478 a) (v. PENA).
EXPLICAÇÃO1
(lat. Explicatio; in. Explication; fr. Explication; ai. Auslegung; it. Espli-cazioné). O
contrário de complicação (v.).
EXPLICAÇÃO2
(in. Explanation, Explication; fr. Explication; ai. Erklãrung; it. Spiega-zioné). Em
geral, todo processo tendente a determinar o porquê de um objeto, a tornar um discurso ou uma situação
clara e acessível ao entendimento ou a eliminar dificuldades e conflitos de uma situação. Esse termo, já
usado por Cícero nesse sentido (Definibus, III, 4, 14; De nat. deor., III, 24, 62, etc), foi retomado por
Nicolau de Cusa no sentido de manifestação: "Deus é a complicação de todas as coisas, porque todas as
coisas estão nele; e é a explicação de todas as coisas porquanto ele está em todas as coisas" {De docta
ignor., II, 3). Sob a metáfora do "aplainar", "entender", "tornar explícito", esse termo oculta uma
multiplicidade de significados que podem ser distinguidos segundo as situações a que fazem referência.
Temos, então, que:
l
e
em face de um termo, explicar significa determinar seu significado, interpretá-lo (v. INTERPRETAÇÃO);
2
S
em face de um enunciado analítico, explicar significa substituir o enunciado em questão por um
enunciado menos vago, mais exato ou, se possível, próprio de uma linguagem formal (CARNAP, Meaning
and Necessity, § 2).
3
S
em face de uma situação humana de conflito, explicar significa eliminar as causas ou os motivos do
conflito;
4
Q
em face de um objeto em geral, seja ele coisa, evento ou pessoa, explicar significa fornecer o porquê
de ele ser ou acontecer.
Desses quatro significados, é ao quarto que se refere o problema específico da natureza da
E. As várias doutrinas que a filosofia e a metodologia da ciência apresentaram sobre a natureza da E.
versam todas sobre o significado do porquê e sobre as possíveis respostas que ele pode ter. Desse ponto
de vista, podem ser distinguidas duas espécies fundamentais de técnicas explicativas: Á) técnica
explicativa causai; B) técnicas explicativas condicionais.
A) Existem dois tipos de E. causai, correspondentes aos dois conceitos fundamentais de causalidade que
se alternaram na tradição filosófica e científica (v. CAUSALIDADE): d) o conceito de causalidade como
dedutibilidade, b) o conceito de causalidade como uniformidade. Como esses dois conceitos de
causalidade têm a pretensão de possibilitar uma previsão infalível, por E. causai pode-se entender, em
geral, toda técnica que permita a previsão infalível de um objeto. Mas como a previsão infalível só é
possível quando se trata de objetos necessários, ou seja, que não podem não ser ou não podem ser
diferentemente do que são, a E. causai é, em todos os casos, a demonstração da necessidade do seu
objeto. Desse ponto de vista, afirmar que "x foi explicado" significa afirmar "x foi demonstrado em sua
necessidade" e portanto "x era infalivelmente previsível". Sobre essa base comum, é possível distinguir:
d) técnica explicativa causai que recorre à dedutibilidade; b) técnica explicativa causai que recorre à
uniformidade.
d) A técnica explicativa que recorre à dedutibilidade é a da metafísica clássica, sobretudo de Aristóteles.
Embora tenha distinguido quatro espécies de causas, Aristóteles reconhece, para efeito de E., o primado
da causa final como razão de ser, substância ou forma do objeto (Depart. an., I, 1, 639 b, 14; 642 a, 17;
cf. CAUSALIDADE) Desse ponto de vista, a E. finalista é primordial e fundamental, coincidindo com
aquela que, em termos modernos, se chama E. genética, por recorrer à causa eficiente, que, em última
análise, coincide com a causa final. Nesse sentido, a E. causai identifica-se com a demonstração (v.),
porquanto é demonstração da necessidade. Nesse aspecto, Hegel só fazia repetir o ensinamento de
Aristóteles, quando afirmava ser tarefa da filosofia especulativa "a demonstração da necessidade", vendo
só nela a satisfação da necessidade própria da razão. Mas esse conceito de E. não se encontra apenas na
metafísica: foi freqüentemente estendido para a ciência. Quando, contra a análise positivista da ciência, E.
Meyerson
EXPLICAÇÃO2
416
EXPLICAÇÃO2
afirmava que a ciência não procura só a previsão, mas a E. dos fenômenos, estava reduzindo a E. à
identificação, porque só a identificação permite a dedução do fenômeno. E diz: "Em virtude da causa ou
da razão e com a ajuda de operação pura de raciocínio, devemos poder concluir no fenômeno. É o que se
chama uma dedução. A causa, então, pode ser definida como ponto de partida de uma dedução de que o
fenômeno é o ponto de chegada" (De 1'explication dans les sciences, 1927, p. 66; cf. Identitéet réalité,
1908). Por outro lado, o próprio positivismo remetera a E. ao domínio da dedução. Stuart Mill escreve:
"Diz-se que determinado fato está explicado quando se indica a sua causa, ou seja, a lei ou as leis de
causação cujo exemplo é sua produção... De modo semelhante, diz-se que uma lei ou uniformidade de
natureza está explicada quando se indica outra lei, ou outras leis, de que aquela lei é um caso e das quais
ela pode ser deduzida" (Logic, III, 12, 1). Além disso, uma das tentativas mais conhecidas da "lógica da
E.", no âmbito do positivismo lógico, que é a de C. G. Hempel e P. Oppenheim, obedece à mesma
inspiração. Dando o nome de explanandum ao enunciado que descreve o fenômeno a ser explicado e de
explanam à classe dos enunciados aduzidos na consideração do fenômeno (a preferência dada ao termo
explanation e seus derivados, na literatura anglo-saxônica atual, é determinada pela exigência de reservar
o termo expli-cation à análise dos enunciados), Hempel e Oppenheim assim descrevem as "condições
lógicas da adequação": "(R 1) O explanandum deve ser conseqüência lógica do explanans, em outras
palavras, deve ser logicamente de-dutível da informação contida no explanans, senão este não constituirá
o fundamento adequado para o explanandum. (R 2) O explanans deve conter leis gerais, e estas devem ser
realmente necessárias à derivação do explanandum. (R 3) O explanans deve ter um conteúdo empírico, ou
seja, pelo menos em princípio, deve ser suscetível de comprovação por experimento ou observação". A
essas condições lógicas Hempel e Oppenheim acrescentam uma "condição empírica", que é a seguinte:
"(R 4) Os enunciados que constituem o explanans devera ser verdadeiros" ("The Logic of Explanation",
1948, em Readings in the Philosophy of Science, ed. Feigl e Brodbek, 1953, pp. 321-22). Essa doutrina da
E. está em oposição à concepção que reduz a E. a princípios ou elementos familiares, à qual recorrem os adeptos do segundo tipo de E. causai (Ibid., p. 330).
Essa mesma doutrina foi estendida por Hempel ao campo da história ("The Function of General Laws in
History", em Journal of Philosophy, 1942, pp. 35-48), com a exigência de que a E. causai seja
acompanhada pelo prognóstico infalível do fenômeno explicado (Ibid., p. 38). Observou-se com justiça
que toda a sua teoria da E. pode ser adaptada à física newtoniana, mas é completamente incapaz de dar
conta daquilo que se deve entender por E. na física quântica (N. R. HANSON, "On the Symmetry between
Explanation and Predic-tion", em The Philosophical Review, 1959, pp. 349-58). Com maior razão, esse
tipo de E. não pode ser considerado adequado no domínio da história e, em geral, das ciências (v. mais
adiante).
b) O segundo tipo de E. causai é o que recorre ao conceito de causa como uniformidade de interconexão
dos fenômenos. Esse é o conceito introduzido por Hume e utilizado por Comte como fundamento da E.
"positiva" dos fenômenos. Comte contrapôs à tentativa metafísica de descobrir "os modos essenciais de
produção" dos fenômenos a tarefa puramente descritiva da ciência positiva, que se limita a descobrir as
leis dos fenômenos, ou seja, suas relações constantes (Cours dephil. positive, 4
a ed., 1887, II, pp. 169,
268, 312, etc). No estágio positivo, dizia Comte, "a E. dos fatos, reduzida aos seus termos reais, não é
mais do que o nexo estabelecido entre os diversos fenômenos particulares e alguns fatos gerais cujo
número o progresso da ciência tende cada vez mais a diminuir" (Ibid., I, p. 5). Esse ponto de vista herdava
a contraposição estabelecida pelos ilu-ministas, especialmente D'Alembert, entre o espírito de sistema e a
descrição científica da natureza. Este é muito menos ambicioso do que o outro, pois não lança mão da
dedu-tibilidade de um fenômeno (ou da sua descrição) a partir de sua causa (ou de um conjunto de leis
gerais), mas recorre à uniformidade ou constância das relações entre fenômenos e, portanto, à redução do
fenômeno a ser explicado a tais relações constantes. É esse o valor dado, p. ex., à técnica explicativa
causai por P. W. Bridgman: "A essência de uma E. causai consiste em reduzir uma situação a elementos
de tal modo familiares que possamos aceitá-los como coisa óbvia e satisfazer a nossa curiosidade.
Reduzir uma situação a elementos significa,
EXPLICAÇÃO2
417
EXPLICAÇÃO2
do ponto de vista operacional, descobrir correlações familiares entre os fenômenos de que a situação se
compõe" {The Logic of Modem Physics, 1927, cap. II; trad. it., p. 50). Em sentido análogo, R. B.
Braithwaite disse: "Quando se pergunta a causa de determinado evento, o que se quer é a especificação do
evento precedente ou simultâneo que, conjugado a alguns fatores causais que têm natureza de condições
permanentes, seja suficiente para determinar a ocorrência do evento a ser explicado, de acordo com uma
lei causai, num dos significados habituais de lei causai" {Scientific Explanation, 1953, p- 320). Como, por
leis causais, Braithwaite entende as generalizações empíricas que afirmam concomitâncias de sucessão ou
simul-taneidade (Ibid., cap. IX), uma E. que "esteja de acordo com uma lei causai" é uma E. que faz
referência a uma uniformidade empiri-camente constatada. Esse ponto de vista é repetido de várias
formas na filosofia contemporânea, ainda que nem sempre nitidamente separado do precedente.
B) As técnicas explicativas causais, tanto a fundada na dedução quanto a fundada na conexão uniforme,
pretendem conferir à E. causai um caráter infalível e global que corresponde ao caráter de previsão certa
atribuído ao nexo causai. A técnica explicativa que pode ser chamada de condicional elimina do esquema
explicativo justamente essas características. Os primórdios desse conceito podem ser encontrados na
doutrina de Kant, que também empregou em sentido próprio o conceito de condição (v.). Kant contrapõe
a E. científica dos fenômenos à "hipótese transcendental" da metafísica. Diz: "Para a E. dos fenômenos
dados, não podem aduzir coisas e princípios que não se relacionem com os fenômenos dados, segundo as
já conhecidas leis dos fenômenos. Uma hipótese transcendental em que, para a E. das coisas naturais, se
empregasse uma simples idéia da razão não seria absolutamente uma E., porque aquilo que não é
suficientemente entendido com princípios empíricos seria explicado com algo de que não se entende coisa
alguma" (Crít. R. Pura, Doutr. do método, cap. I, seç. 3). Mas foi sobretudo no campo da metodologia
histórica que esse tipo de E. foi elaborado; quem o introduziu de modo explícito foi Max Weber: "A
consideração do significado causai de um fato histórico começará, antes de mais nada, com a seguinte
questão: excluindo esse fato do conjunto de fatores assumidos
como condicionantes, ou mudando-o em determinado sentido, o curso dos acontecimentos, tomando
como base as regras gerais da experiência, poderia ter tomado uma direção de algum modo diferente, nos
pontos decisivos para o nosso interesse?" Se pudermos responder afirmativamente, o fato em questão
deverá ser considerado um dos fatores condicionantes do processo histórico; se a resposta for negativa,
deverá ser excluído de tais fatores {Kritische Studien auf dem Gebiet der kulturwissenschaftlichen Logik,
1906, II; trad. it., em // métododellescienze storico-sociali, p. 223). A moderna metodologia da história é
unânime em abandonar os esquemas de E. causai e em aceitar um esquema condicional que se configura
de maneiras diferentes, segundo o metodologista. Quando, na doutrina de S. Mill sobre a natureza da E.,
K. Popper observa que "Mill e seus companheiros historicistas não consideram que as tendências gerais
dependem das condições iniciais e tratam tais tendências como se fossem leis absolutas", ao passo que a
explicação deve dar conta, se possível, das "condições nas quais elas persistem" {ThePoverty
ofHistoricism, 1944, § 28), está procurando transformar o esquema causai em um esquema condicional.
Mas talvez a melhor formulação do esquema condicional, no que se refere ao seu possível uso nas
disciplinas históricas, seja a de W. Dray. "Em alguns contextos, a exigência de E. estará suficientemente
satisfeita se mostrarmos que o ocorrido foi possível, não havendo necessidade de mostrar, além disso, que
era necessário. Embora explicar uma coisa, como diz o professor Toulmin, significa muitas vezes 'mostrar
que ela podia ser esperada' [ThePlace ofReason in Ethics, 1950, p. 96], o critério apropriado para um
importante domínio de casos é mais amplo do que este; para explicar uma coisa às vezes basta mostrar
que ela não devia causar surpresa" {Laws and Explanation in History. 1957, p. 157). Dray contrapõe esse
esquema explicativo, que ele chama de como-possivel-mente (how-possibly) ao causai, do por quenecessariamente (why-necessarily), porquanto os dois esquemas são logicamente diferentes e respondem
a duas espécies diferentes de perguntas, de sorte que, "no caso da explicação como-possivelmente, exigir
um conjunto de condições suficientes seria mudar a questão" {Ibid., p. 169). Esse ponto de vista, apesar
de elaborado para as disciplinas históricas, está igualmente apto a entender a natureza da E.
EXPLÍCITO
418
EXPRESSÃO
que se verifica agora no âmbito das ciências naturais, especialmente da mais avançada delas, que é a
física quântica. Uma vez que nela também falta, além da condição de previsibilidade infalível, a conexão
causai necessitante, o único esquema possível de E. é a E. condicional, que se limita a determinar a
possibilidade do explanandum. Nesse sentido, pode-se dizer que a E. é a determinação da possibilidade
determinada e verificável do objeto; onde determinada significa individualizada e reconhecível com um
método ou procedimento apropriado e, às vezes, mensurável segundo um esquema de probabilidade, e
verificável significa repetível em condições adequadas (ABBAGNANO, Possibilita e liberta, 1957, VI, §§
4-5; Problemi di sociologia, 1959, VIII, §§ 1-5).
Deve-se observar, por fim, que o próprio procedimento da E. lógica, na forma descrita por Carnap e
Reichenbach, inclui-se na categoria de E. condicional. Segundo Carnap, a E. consiste em substituir um
termo originário chamado explicandum, que é um conceito vago ou familiar, por um novo conceito exato,
que Carnap chama de explicatum e Reichenbach de explicans. Isso posto, a E. consiste, segundo
Reichenbach, em determinar o significado do termo, e o significado se reduz a uma possibilidade lógica,
física ou técnica, mas, em todo caso, a uma possibilidade (REICHENBACH, "Verifiability Theory of
Meaning", em Pro-ceedings ofthe American Academy ofArts and Sciences, 1951, pp. 46 ss.; CARNAP,
Meaning and Necessity, § 2) (v. POSSÍVEL; SIGNIFICADO; VERIFICAÇÃO).
EXPLÍCITO (in. Explicit; fr. Explicite, ai. Explicit; it. Esplicitó). Expresso ou claramente expresso.
"Tornar E." ou "explicitar" o significado de um termo ou de uma proposição é expressá-lo ou reexpressálo com mais clareza. O termo oposto, "implícito", significa portanto o que não é expresso, mas somente
sugerido ou não expresso claramente.
EXPONÍVEL (in. Exponible, fr. Exponible, ai. Exponibel; it. Esponibilé). Na Lógica medieval
exponibilia eram proposições obscuras porque, embora tivessem forma gramatical de proposições
simples, na realidade ocultavam uma composição cuja análise (expositio) resolvia sua obscuridade. Em
Kant, "E." tem sentido análogo, porém mais específico, de proposição constituída por uma afirmação com
uma negação disfarçada, que a exposição evidencia (Lo-gik, § 31). G.
P.
EXPOSIÇÃO (lat. Expositio-, in. Exposition; fr. Exposition; ai. Erôrterung; it. Esposizionè). 1. Análise
de um conceito ou seu esclarecimento. Kant chama de E. transcendental "a definição de um conceito
como princípio a partir do qual se possa ver a possibilidade de conhecimentos sintéticos a priorf (Crít. R.
Pura, § 3). Nesse sentido, a E. transcendental do conceito de espaço mostrará a possibilidade dos
conhecimentos a priori que podem provir desse conceito, isto é, a possibilidade da geometria.
2. Na lógica terminista medieval, é a prova de um silogismo de terceira figura por meio de um silogismo
da mesma figura, no qual um termo médio singular exerce a função que, no primeiro, era exercida por um
termo médio comum. P. ex., o silogismo "Alguns homens são dotados de virtudes, Todo homem é animal,
Alguns animais são dotados de virtudes" pode ser exposto assim: "Sócrates é dotado de virtude, Sócrates
é animal, Alguns animais são dotados de virtude" (OCKHAM, Summa log., III, 1, 13; JUNGIUS, Log., III,
15),
EX PRAECOGNITIS ET PRAECONCES-SIS. Fórmula com que se abrevia o princípio exposto por
Aristóteles no início de Analíticos posteriores. "Toda doutrina e toda disciplina discursiva nascem de um
conhecimento preexistente" (An.post, I, 1, 71 a 1). Boécio ressaltava a importância dessa máxima (P. L.,
(A- col. 741), que se tornara lugar-comum da esco-lástica. Locke julgava-a falaz, pois estava convicto de
que o fundamento do conhecimento é o conhecimento intuitivo (Ensaio, IV, 2, 8). Mas Leibniz
reivindicava, contra Locke, a validade da máxima, porquanto expressa o procedimento da matemática
(Nouv. ess., IV, 2, 8).
EXPRESSÃO (lat. Expressio; in. Expression; fr. Expression; ai. Ausdruck, it. Espressioné). Em sentido
geral e moderno, manifestação por meio de símbolos ou comportamentos simbólicos. Esse termo foi
introduzido no uso filosófico na segunda metade do séc. XVII, quando começou a substituir o termo
aparência para indicar a relação entre Deus e mundo, graças à qual o mundo é "manifestação" de Deus.
Spi-noza e Leibniz usam o termo nesse sentido. Spinoza diz que um modo da extensão e a idéia desse
modo são "uma só e mesma coisa expressa de duas maneiras; o que parece ter sido vagamente entrevisto,
por alguns hebreus, que apresentam Deus, o intelecto divino e as coisas por ele percebidas como uma e
mesma
EXPRESSÃO 419
EXPRESSÃO
coisa" {Et., II, 7, scol). Leibniz, por sua vez, considera as substâncias espirituais ou môna-das como "E.
ou manifestações" de Deus (Disc. de mét., § 9,14; Monad., § 60). Mas com Leibniz começa também a
história moderna desse termo, que do domínio metafísico passa para o domínio antropológico, onde é
empregado para designar o comportamento tipicamente humano de falar por símbolos ou utilizá-los.
Leibniz diz: "O modelo de uma máquina expressa a máquina e, assim, um desenho plano em perspectiva
expressa um corpo com três dimensões, uma proposição exprime um pensamento, um sinal expressa um
número e uma equação algébrica expressa um círculo ou outra figura geométrica: todas essas E. têm em
comum o fato de que da simples consideração das relações da E. pode-se chegar ao conhecimento das
propriedades correspondentes da coisa que se quer expressar. Disso resulta que não é necessário pensar
numa semelhança recíproca entre E. e coisa, contanto que seja mantida uma certa analogia de todas as
relações" (Quid sil Idea, Op., ed. Gerhardt, VII, p. 263). Essas considerações de Leibniz marcam a
extensão do termo E. a toda espécie ou forma da relação entre o símbolo e o que ele designa e constituem,
portanto, também o início do uso desse termo para significar "frase", "enunciado", "fórmula", etc. No
trecho citado, Leibniz continua observando que "algumas E. possuem fundamento natural, ao passo que
outras, como as palavras da linguagem e os sinais de qualquer gênero, dependem, ao menos em parte, de
uma convenção arbitrária". E acrescenta que a idéia é uma E. nesse sentido: "Embora a idéia da
circunferência não seja semelhante à circunferência tal como esta é, na natureza da primeira podem ser
deduzidas verdades que serão, sem dúvida, confirmadas pela experiência referente à circunferência real"
ijbid., p. 263). Começava a história moderna desse termo; com Kant ele entraria no domínio da estética.
Com efeito, Kant utilizou o conceito de E. para classificar as belas-artes. "Em geral, pode-se dizer que a
beleza (da natureza ou da arte) é a E. das idéias estéticas; a diferença entre natureza e arte é que na arte a
idéia pode ser ocasionada por um conceito, ao passo que na bela natureza basta a reflexão sobre uma
intuição dada, sem o conceito do que deve ser o objeto, para suscitar e comunicar a idéia, cuja E. o objeto
é considerado." Portanto, para classificar as belas-artes, podemos utilizar "a mesma espécie de E.
que os homens utilizam para falar, para comunicar do melhor modo possível não só seus conceitos, mas
também suas sensações". E como essa espécie de E. consiste na palavra, no gesto e no tom, Kant
distingue as artes da palavra, as artes figurativas e as artes musicais. E acrescenta: "Poder-se-ia também
conduzir essa divisão dicotomicamente, distinguindo as belas-artes nas que exprimem o pensamento e nas
que exprimem a intuição; e estas últimas, segundo a forma ou a matéria" iCrít. do Juízo, § 51). Desse
modo, a noção de E. servia a Kant para interligar arte e linguagem, o que se manteria e reforçaria na
estética contemporânea.
Por outro lado, o conceito de E. era cada vez mais empregado para designar a relação entre as
manifestações corpóreas das emoções e as próprias emoções: relação que, a partir da obra de Darwin (A
E. das emoções no homem e nos animais, 1872), mostrou-se essencial à teoria das emoções (v. EMOÇÃO).
Mas nem esse uso do termo, nem o uso ainda mais amplo que dele se fez em estética contribuíram muito
para determinar o seu significado, que na maioria das vezes é pressuposto pelas investigações estéticas ou
psicológicas, mas não é questionado nem esclarecido em suas possibilidades constitutivas. P. ex., não
esclarece muito o significado de E. a identidade estabelecida por Benedetto Croce, como fundamento da
sua estética, entre intuição e E. {Estética, cap. I). Veremos, aliás, que a tendência a identificar essas duas
coisas constitui a fase primitiva do comportamento expressivo. Tampouco são esclarecedoras as
determinações de Dewey, segundo as quais a E. é "o aclaramento de uma emoção turva", sendo, pois, a
"objetivação da emoção" (Ari asExperience, 1934, cap. IV). É provável que essas características possam
ser atribuídas legitimamente à E. estética, mas ainda não a descrevem suficientemente. Sem dúvida, é
fonte de confusão a observação de Wôlfflin de que "a arte é E., a história da arte é história da alma" (Das
Erklãren von Kunst-werken, 1921, § 3). Mais profícua foi a investigação sobre o conceito de E. feita em
campo estritamente filosófico. Dilthey já ressaltava em Construção do mundo histórico (1910) a função
da E. e, em primeiro lugar, da linguagem em relação ao pensamento discursivo do juízo (Aufbau, III, 1). E
Husserl via na E. a consecução perfeita dos atos significativos próprios da consciência teórica. Como tal,
a E. não é meio nem instrumento, mas um estado final, uma
EXPRESSÃO
420
ÊXTASE
conclusão. "O estrato da E", diz Husserl, "sem considerar que fornece E. a todos os outros elementos
intencionais é — e isso constitui a sua peculiaridade — improdutivo. Ou, se se quiser, sua produtividade,
sua ação normativa, esgota-se na expressão e na forma do conceituai, que sobrevém nova com ele"
(Ideen, I, § 124). Desse modo, Husserl acolhia em sua filosofia uma das características que hoje são
consideradas próprias da E.: ela não se limita a provir daquilo que expressa, mas, de certo modo, realiza-o
e aperfeiçoa-o. Heidegger insistiu nesse caráter afirmando que "ao falar, o ser-aí se expressa, mas não
porque esteja antes de tudo envolto num dentro oposto a um fora, mas porque, enquanto ser-no-mundo, já
está fora, na sua compreensão". Isso eqüivale a definir o homem com base em sua possibilidade de
expressar-se, o que os gregos entreviram ao definir o homem como "animal racional" (em que razão
eqüivale a "discurso") (Sein und Zeit, § 34). Mas os esclarecimentos mais importantes sobre o conceito de
E. foram feitos por Cassirer. Ele mostrou a função constitutiva que as formas simbólicas exercem na
construção da vida espiritual, de que não são aspectos acidentais e derivados, mas fatores condicionan-tes.
Cassirer também foi quem mais contribuiu para esclarecer os caracteres e as condições da expressão.
Distinguiu no desenvolvimento das formas lingüísticas três estágios, que designou, respectivamente, E.
mimética, E. analógica e E. simbólica. Na E. mimética ainda não há tensão entre o signo lingüístico e o
conteúdo intuitivo ao qual se refere: as duas coisas tendem a resolver-se uma na outra e a coincidir. "Só
gradualmente encontramos uma distância, uma diferenciação crescente entre signo e conteúdo, e só então
se realiza o fenômeno característico e fundamental da linguagem, a separação entre som e significado. Só
quando essa separação ocorre, a esfera do significado lingüístico constitui-se como tal. No início, a
palavra pertence à esfera da mera existência: o que se aprende não é um significado, mas um ser
substancial ou uma força sua" (Phil. dersym-bolischen Formen; trad. in., I, pp. 186 ss.; II, p. 237). Do
mesmo modo, o mito não aparece, no início, como imagem ou "E. espiritual", mas como uma realidade
objetiva ou arte essencial dessa realidade. Essa característica da E. certamente é fundamental e constitui a
confirmação, no plano antropológico, da diversidade entre a E. e seu conteúdo, já evidenciada por
Leibniz.
Podemos então resumir do seguinte modo as características fundamentais da E., tais como esclarecidas
pela investigação moderna:
I
a
a E. é uma consecução, um termo final, mais do que um instrumento ou um meio;
2
a
a E. consiste em manifestar-se por meio de símbolos, sendo, por isso, um comportamento característico
e próprio do homem;
3
a
a E., ao menos em sua forma madura, implica diversidade, "distância", ou seja, alteri-dade entre
símbolo e conteúdo simbólico (ou, como também se diz, entre símbolo e intuição correspondente) .
Pela primeira característica, a E. se diferencia da comunicação, que tem valor instrumental: a linguagem
como E. não é um simples meio de comunicação, mas um modo de ser ou de realizar-se do homem.
Nesse sentido, diz-se que a arte é E.: nela, com efeito, os instrumentos de comunicação assumem valor
final. Nesse sentido, Scheler afirma que o ato sexual é "um movimento de E., não um movimento com
vistas a um objetivo".. De fato, não se quer, no amor, o ato sexual (querê-lo significa inibi-lo), mas é o ato
que exprime o amor, que é o seu modo de realização (Sympatbie, I, cap. 7; trad. fr., p. 182). Pela segunda
característica, a E. é própria de qualquer espécie de comportamento que consista na produção ou no uso
dos símbolos, estando, pois, ligada ao conceito geral de linguagem (v.). Pela terceira característica, a E. é
diferente da intuição e de todas as relações de identificação.
ÊXTASE (gr. EKCJTOCOIÇ; lat. Extasis; in. Ecs-tasy, fr. Êxtase, ai. Ekstase, it. Estasi). Fase su-praintelectual da ascensão mística para Deus, fase em que a busca intelectual de Deus cede lugar a um
sentimento de estreita comunhão ou mesmo de identificação com ele. Essa palavra (que na linguagem
comum significa, além de arrebatamento, pasmo ou exaltação) foi empregada no sentido acima enunciado
por várias correntes religiosas da filosofia alexandrina e especialmente pelos neopla-tônicos. Fílon
caracterizava o Ê. como "transformação da inteligência", uma transformação que não é realizada pela
própria inteligência, mas diretamente por Deus (Ali. leg., II, 31-32). Ploti-no caracteriza o Ê. como a
supressão da alterida-de entre aquele que vê e a coisa vista, e como identificação total e entusiástica da
alma com Deus. "Não é mais uma visão", diz ele, "mas um modo diferente de ver: Ê. é simplificação e
doação de si mesmo, desejo de contato, repou-
EXTENSÃO
421
EXTENSÃO
so e compreensão de conjunção" (Enn., VI, 9, 11). A linguagem do amor, especialmente do amor
entendido como unidade (v. AMOR), é freqüentemente empregada pelos místicos para descrever o estado
de êxtase. E o que muitas vezes faz Plotino (p. ex., Enn., VI, 7, 34), e o que farão os místicos medievais,
para quem essa noção foi transmitida sobretudo graças às obras do pseudo Dionísio Areopagita. Para ele,
o grau mais elevado da ascensão mística é a deificação(v), ou seja, a transformação do homem em Deus
(De mystica theol., I, 1). É desse modo que Bernardo de Clara vai (séc. XI) entende o Ê., chamando-o
também de excessus mentise considerando-o supremo grau da contemplação, em que a alma se une a
Deus assim como uma gota d'água que cai no vinho dissolve-se e adquire o sabor e a cor do vinho (De
diligendo Deo, 11, 28). É também dessa maneira que os místicos de S. Vítor consideram o Ê. Segundo
Ricardo de S. Vítor, Ê. é o ápice do último grau da ascensão a Deus, ou seja, da alienação da mente de si
mesma (De prae-paratione ad contemplationem, V, 2). E S. Boaventura, por sua vez, vê no Ê. a elevação
acima de si mesmo, até a fonte do amor supra-intelectual. É um estado de douta ignorância, no qual a
obscuridade dos poderes cog-noscitivos transforma-se em luz sobrenatural (BrevUoquium, V, 6)". Essa
noção passou sem mudanças para os místicos alemães do séc. XIV (Eckhart, Suso, Tauler). Giordano
Bruno utilizou a terminologia mística do Ê. (raptus mentis, excessus mentis) no seu diálogo Degli eroici
furori para indicar a conjunção do intelecto "heróico" com "o seu objeto, que é a primeira verdade ou a
verdade absoluta" (I, 4), aliás, a própria natureza.
Na Idade Moderna, o Ê. nesse sentido atraiu sobretudo a atenção dos psicólogos e dos psiquiatras, que
não conseguiram perceber nenhuma diferença, a não ser no conteúdo intelectual, entre o Ê. religioso e o
Ê. produzido por condições anormais da vida psíquica ou por drogas (cf. J. H. LEUBA, The Psychology of
Religious Mysticism, 1925, especialmente cap. IX). Segundo Pierre Janet, em todos os casos o Ê.
caracteriza-se por: le
supressão quase completa da atividade motora e disposição à imobilidade; 2-
atividade mais ou menos intensa do pensamento interno; 3e
grande sentimento de alegria (De 1'angoisse ã
Vextase, 1928, p. 497).
EXTENSÃO (gr. oiáÇiocoiç;; lat. Extensio; in. Extension; fr. Extension; ai. Ausdehnung; it.
Estensioné). Caráter fundamental dos corpos físicos dotados das três dimensões do espaço. Com base
nesse caráter, Aristóteles definiu o corpo (Fís., III, 5, 204 b 20). Descartes nada mais fez do que exprimir
esse mesmo conceito quando viu na E. "a natureza da substância material, assim como o pensamento
constitui a natureza da substância pensante" (Princ. phil., I, 53) Para Spinoza, E. era um dos atributos
fundamentais de Deus, da Natureza (Et, II, 2). Mas Ockham, no séc. XIV, evidenciava o caráter
fundamental da E. como atributo dos corpos: "É impossível que a matéria não tenha E.: não há matéria
que não tenha uma parte distante da outra, donde resulta que, embora as partes da matéria possam
interligar-se como as da água ou do ar, nunca poderão existir no mesmo lugar. Ora, a distância recíproca
das partes da matéria é a E." (Summulaephysicorum, I, 19). Precisamente como característica do corpo,
para Hobbes a E. é o espaço real, ou seja, a grandeza do corpo, diferente do espaço imaginário, que é o
espaço puro e simples, ou espaço vazio (De corp., 8, 4). As considerações de Leibniz não são muito
diferentes. Ao lado da antitipia (v.), a E. é uma das características fundamentais da matéria. É a
continuidade no espaço, graças à qual suas modificações constituem a variedade das dimensões e das
configurações (Op., ed. Erdmann, p . 463). Locke identificava, como já Descartes, a E. com o espaço
(Ensaio, II, 13, 3).
Com Berkeley, a E. começa a reduzir-se a fenômeno subjetivo. É definida por ele como uma idéia, que
existe enquanto é percebida (Principies ofKnowledge, I, § 9): afirmação que Hume reforçou dizendo que
a E. nada mais é que uma cópia de alguma impressão (Treatise. I, 2, 3). Essa subjetivação da E., realizada
pelo empirismo setecentista do ponto de vista da intuição sensível, no idealismo romântico parte do ponto
de vista da razão especulativa. Schel-ling pretende demonstrar a priori por que "se deve considerar
necessariamente que a matéria se estende segundo três dimensões", e faz essa suposta demonstração
deduzindo as três dimensões do espaço do modo de operar da força de atração e de repulsão (System des
trans-zendentale Idealismus, 1800, III, 2, Dedução da matéria, Cor.). De modo análogo, Maine de Biran
julgava poder deduzir "necessariamente" a idéia de E. da idéia de esforço e resistência que ele implica, no
sentido de que a E. seria uma "continuidade de resistência" (Fond. de Ia
EXTENSÃO e INTENSÃO
422 EXTERIOREDADE, INTEMORIDADE
Psychologie, CEuvres, ed. Naville, II, p. 272). Tentativa semelhante é a de Bergson, que procura entender
a E. como o movimento oposto ao da vida, ou seja, como o movimento em que o eu, entregando-se à
fantasia caprichosa, espalha-se numa multiplicidade de sensações externas umas às outras. A E. seria a
distensâo do esforço do eu {Évol. créatr., 8
a
ed., 1911, p. 220). Conceitos semelhantes aos expostos por
Schelling, Maine de Biran e Bergson são muito comuns na filosofia da segunda metade do século passado
e dos primeiros decênios do séc. XX. Mas esse tipo de especulação perdeu interesse filosófico ou
científico nos últimos decênios, devido às mudanças na noção de corpo (v.) produzidas pela física
relativista. A noção de corpo como intensidade particular de um campo de energia não precisa mais ser
definida em termos de E.; em outras palavras, a E. pode ser entendida só como possibilidade de medir a
intensidade de energia em dado campo.
EXTENSÃO e INTENSÃO. V. INTENSÃO e EXTENSÃO.
EXTENSIONALIDADE, TESE DA (in The-sis of extensionality, fr. Thèse d'extensionalité, it. Tesi delia
estensionalita). Assim foi chamada por Russell {Principia mathematica, I
2
, XIV, pp. 659 ss.) e por
Carnap {Logische Syntax der Sprache, 1937, § 67, trad. in., pp. 245 ss.) a tese segundo a qual "para cada
sistema não ex-tensional há um sistema extensional no qual o primeiro pode ser traduzido". Como os
enunciados intensionais mais importantes são os modais, a tese em questão afirma a tradutibi-lidade dos
enunciados modais em enunciados não-modais. P. ex., os enunciados "A é possível", "A = não A é
impossível", "A ou não A é necessário", "A é contingente" eqüivaleriam respectivamente aos seguintes
enunciados: "'A' não é contraditório", '"A = não A' é contraditório", "'A ou não A' é analítico", "'A' é
sintético" {Logische Syntax der Sprache, § 69; trad. in., pp. 250 ss.) O próprio Carnap, todavia,
apresentava a tese da E. como simples suposição, embora plausível, e a exprimia paradoxalmente, com
um enunciado modal: "Uma linguagem universal da ciência pode ser extensional {Ibid., § 67; trad. in., p.
245). Mesmo depois Carnap não se pronunciou sobre a validade da tese {Meaning and Necessity, 1957, §
32).
EXTENSIVO e INTENSIVO (in. Extensive and intensive, fr. Extensifet intensif; ai. Exten-siv und
intensiv, it. Estensivo ed intensivo). A distinção entre grandeza E. e grandeza intensiva
foi feita por Kant, para quem E. é "a quantidade na qual a representação das partes possibilita a
representação do todo (portanto, precede-a necessariamente)"; p. ex., as partes do espaço ou do tempo são
quantidades E. nesse sentido, porque as quantidades espaciais ou temporais são sempre intuídas como
agregados ou multiplicidade de partes dadas previamente. A quantidade intensiva, ao contrário, é a "que
se apreende somente como unidade e em que a multiplicidade só pode ser representada por aproximação à
negação = O". Quer dizer: a quantidade intensiva é a que sempre tem graus; p. ex., o vermelho tem um
grau que, por pequeno que seja, nunca é mínimo, o mesmo ocorrendo com o calor, o peso, etc. Essas são
as qualidades contínuas ou, como diz Kant com termo newtoniano, fluentes {Crít. R. Pura, II, 2, seç. 3,
Axiomas da intuição).
EXTEMORTOADE, INTEMORIDADE (in. Exteriority, interiority, fr. Exteriorité, intêriorité, ai.
Aeusserlichkeit, Innerlichkeit; it. Esteriorità, interioritã). O tema filosófico da oposição entre
interioridade e E. nasce juntamente com a noção de consciência (v.) e expressa a oposição entre o que é
alheio à consciência e o que lhe é próprio. Foi a pregação popular estóica que explorou pela primeira vez
esse tema, o que se repete com freqüência nas páginas de Epicteto, Marco Aurélio e Sêneca. Epicteto diz:
"É estado e marca do homem comum nunca esperar benefício ou prejuízo de si mesmo, mas das coisas de
fora. Estado e marca do filósofo é esperar ou temer de si mesmo toda e qualquer utilidade ou dano"
{Manual, 48). E Marco Aurélio: "As coisas por si mesmas não chegam a tocar a alma, a ela não têm
acesso nem podem mudá-la ou removê-la. Mas é a alma que por si muda e modifica-se, e sejam quais
forem os juízos que ela se julgar digna de fazer sobre as coisas que a rodeiam, do mesmo modo ela fará
que para ela sejam as ditas coisas" {Memórias, V, 19). Sêneca contrapõe "a alegria que nasce do interior"
à que deriva das coisas exteriores {Ep., 23). Neoplatonismo e cristianismo são responsáveis pela
identificação da interioridade com a esfera da consciência e da E. com a esfera do mundo a que pertencem
as coisas naturais e os outros seres. O tema da oposição entre interioridade e E. tornou-se, assim, um tema
clássico de toda filosofia que recorre à consciência como esfera de realidade privilegiada tanto pela sua
certeza quanto pelo seu valor. A linguagem comum acolheu os signifi-
EXTRAPOLAÇÃO 423 EXTRÍNSECO,
INTRÍNSECO
cados filosóficos das duas palavras, com a significação de contraposição entre o que é consciência e o que
não é. A metafísica do espiritualismo (v.) e o método da introspecção (v.) utilizam igualmente esse lema
tradicional. Seria muito fácil mostrar o caráter puramente metafórico (portanto, a ausência de significado
preciso) das expressões em que aparecem esses termos ou os adjetivos correspondentes. "Realidade
interna" e "realidade externa", "mundo interior" e "mundo exterior", "objetos internos" e "objetos
externos" são expressões que, a rigor, não têm sentido, seja porque não se faz referência ao âmbito
fechado em relação ao qual um "externo" e um "interno" possam ser determinados, seja porque tal âmbito
fechado, quando determinado, não é espacial, pois é a própria consciência. Hegel utilizou
abundantemente esses termos que, justamente por meio de sua obra, penetraram na terminologia
filosófica. Ele identificava o interior com a "razão de ser" e o exterior, com sua manifes^ tação (Ene, §§
138-39). Mas tinha o bom senso de acrescentar: "Assim como o homem é externamente, ou seja, em suas
ações (por certo não na sua E. somente corpórea), também é interno; e quando ele é só interno —
virtuoso, moral, só em intenções, disposições, etc. — e o seu exterior não é .idêntico a tudo isso, então um
é tão vazio quanto o outro" (Ibid., § 140). EXTRAPOLAÇÃO (in. Extrapolation; fr. Extrapolation; ai.
Extrapolation-, it. Estrapola-zionè). 1. Cálculo dos valores de uma função com argumentos que estão
além daqueles para os quais já se conhecem os valores da função.
2. O mesmo que analogia (v.).
EXTREMO (gr. xò êoxaTOV; lat. Extremum, in. Extreme, fr. Extreme, ai. Aeusserste, it. Estremo). O que
é primeiro ou último em qualquer série. Foi assim que Aristóteles entendeu esse termo, notando que os E.
não são substâncias, mas limites (Met., XIV, 3, 1090 b 9). Nesse sentido, diz-se que o ponto é o E. da
linha, a linha é o E. do plano e o plano é o E. do sólido. No mesmo sentido, fala-se de uma espécie E.
(última), que é a mais próxima do indivíduo (Ibid., III, 3, 998 b 15). E. (último) é também o motor
imóvel, porque é o primeiro na série dos movimentos (Fís., VIII, 2, 244 b 4). E. sâo também os dois
termos do silogismo que aparecem na conclusão e cuja relação é estabelecida pelo termo médio (An.pr., I,
4, 25 b 30). Pode-se dizer que essa palavra conserva o mesmo significado até hoje (v. ÚLTIMO).
EXTRÍNSECO, INTRÍNSECO (in. Extrin-sical, intrinsical; fr. Extrinsèque, intrinsèque, ai.
Aeusserlich, innerlich; it. Estrinseco, intrínseco). Em geral, diz-se que é intrínseco o que pertence à
essência ou à natureza de uma coisa e E. o que lhe é estranho. Segundo a lógica tradicional, é intrínseco a
um objeto o caráter que entra na definição desse objeto; p. ex., a racionalidade, se o homem é definido
como "animal racional". Do ponto de vista de uma lógica que não se funde na noção de essência
necessária ou de substância (v.), as determinações E. ou intrínseco têm um significado muito mais
flexível, porque relativas aos vários significados de um objeto qualquer (v. SIGNIFICADO).
F
F. Na lógica medieval, os silogismos cujos nomes mnemônicos começam com essa letra são redutíveis ao
quarto modo da primeira figura (cf. PEDRO HISPANO, Summ. log., 4. 20).
FABRICAÇÃO (fr. Fabricatiori). A atividade própria da inteligência, segundo Bergson. Essa é, com
efeito, "a faculdade de fabricar objetos artificiais, especialmente utensílios para fazer outros utensílios, e
de variar indefinidamente sua F.". Desse ponto de vista, a verdadeira definição do homem não é Homo
sapiens, mas Homofaber(Évol. créatr., 11- ed., 1911, p. 151; Lapensée et le mouvant, 3
a
ed., 1934, p. 97).
FÁBULA (lat. Fábula, in. Fable, fr. Fable, ai. Fahel; it. Favolà). A partir do Renascimento, a convicção
de que as "F. antigas" tinham valor de sintoma ou revelação indireta da verdade levou a reinterpretar os
mitos antigos, emprestando-lhes por vezes (como se vê nas obras de Bruno) significados filosóficos.
Quanto ao valor das F., Bacon e Viço representam atitudes fundamentais. Bacon achava que as F. estão
entre o silêncio e o esquecimento das idades perdidas e a memória e a evidência das idades mais
próximas, de que possuímos documentos escritos. "As F.", escreveu ele, "não são produto das suas épocas
nem fruto da invenção poética, mas uma espécie de relíquia sagrada e tênue aura de tempos melhores, que
da tradição das nações mais antigas chegaram até as trompas e as flautas dos gregos" (De sapientia
veterum, 1609, Pref.). Portanto, Bacon propendia a entrever nas F. um significado alegórico intencional.
Essa tese é negada e combatida, um século depois, por Viço, para quem as F. são tais só do ponto de vista
dos doutos, ao passo que para os povos primitivos que as criaram eram narrações verdadeiras. "Os
filósofos", diz Viço, "atribuíram às F. interpretações físicas, morais, metafísicas ou de outras ciências,
segundo lhes animassem a fantasia o ouro, os
compromissos ou o capricho; assim, com o auxílio das suas alegorias eruditas supuseram-nas como
fábulas. Mas os primeiros autores dessas F. não entenderam tais sentidos doutos, nem, pela sua natureza
rústica e ignorante, podiam entendê-los: antes, por essa mesma natureza, conceberam as F. como
narrações verdadeiras... das suas coisas divinas e humanas" (Sc. nuova, II, Delia* metafísica poética).
Essa idéia de VIÇO ficou como fundamento da moderna filosofia das formas simbólicas (v. MITO).
FABULAÇÃO (fr. Fabulation). Bergson designou desse modo a faculdade ou o ato criador de ficções ou
superstições, em que consiste essencialmente a religião estática, que, mediante ficções mais ou menos
consoladoras, procura defender a vida contra o poder desa-gregador da inteligência (Deuxsources, cap.
II).
FACTICIDADE (in. Facticity, fr. Facticité, ai. Faktizitãt; it. Effettivitã). Segundo Heideg-ger, o que
caracteriza a existência como lançada no mundo, ou seja, à mercê dos fatos, ou no nível dos fatos e
entregue ao determinismo dos fatos. O "fato", que é simplesmente a presença das coisas utilizáveis, é
objeto de "constatação intuitiva". A F. da existência, ao contrário, só é acessível através da "compreensão
emotiva" (Sein undZeit, § 29). Nesse sentido, a F. é um modo de ser próprio do homem e diferente da
factualidade (v.), que é o modo de ser das coisas. De modo análogo, Sartre deu o nome de F. ao fato da
liberdade, ou seja, ao fato de que a liberdade não pode não ser livre e não pode não existir: nesse caso,
liberdade identifica-se com necessidade do fracasso (Vêtre et le néant, p. 567).
FACTÍCIO (in. Factitious; fr. Factice-, ai. Gemacht; it. Fattizio). Termo que se emprega quase
exclusivamente com referência à classificação cartesiana das idéias em inatas, adventi-
FACTUALTOADE
425
FACULDADE
cias e factícias; as últimas são as idéias "feitas e inventadas" por nós (Méd., III).
FACTUALIDADE (in. Factuality, ai. Tatsách-lichkeit; it. Fatticita). Husserl deu esse nome ao modo de
ser do fato, enquanto essencialmente "casual", ou seja, porquanto pode ser diferente do que é (Ideen, I, §
2). Heidegger fez a distinção entre a "F. do factum brutum de uma simples presença", de uma coisa, e a
facti-cidade(y.) da existência (Sein und Zeit, § 29).
FACULDADE (gr. v|/t)XnÇ etôoç ou uópiov; lat. Facultas-, in. Faculty, fr. Faculte, ai. Ver-môgen; it.
Facoltã). 1. Entendem-se por esse nome os poderes da alma, ou seja, as espécies ou partes em que é
possível classificar e dividir suas atividades ou princípios aos quais são atribuídas tais atividades. A
distinção entre os poderes da alma, bem como a própria noção de um poder que se refere à alma, nascem
da óbvia consideração da diferença entre as operações atribuídas à alma e do fato de que essas operações
podem opor-se entre si. Com esse fundamento, Platão distinguiu três poderes, que ele chamava de
espécies (eYÔT), Rep., IV, 440 e) da alma: poder racional, graças ao qual a alma raciocina e domina os
impulsos corpóreos; poder concupiscível ou irracional, que preside aos impulsos, aos desejos, às
necessidades e concerne ao corpo; poder irascí-vel, que é auxiliar dd princípio racional e indigna-se e luta
por aquilo que a razão julga justo (Rep., IV, 439-40). Já Aristóteles distinguiu: d) parte (Lióptov)
vegetativa, que é a potência nutritiva e reprodutiva própria dos seres vivos, a começar pelo homem; b)
parte sensitiva, que compreende a sensibilidade e o movimento, e é própria do animal; c) parte intelectiva
(dia-noética), que é própria do homem. O princípio mais elevado pode fazer as vezes dos inferiores, mas
não vice-versa. Assim, no homem a alma intelectiva também cumpre as funções que nos animais são
realizadas pela alma sensitiva e nas plantas pela vegetativa (Dean., II, 2, 413 a 30 ss.). Por sua vez, o
princípio dianoético ou alma intelectiva divide-se em duas partes que são, respectivamente, a parte
apetitiva ou prática (a vontade) e a parte intelectiva ou contemplativa (o intelecto) (Ibid., III, X, 433 a 14;
Et. nic. VI, 1, 1139 a 3; Pol., 1133 a). Essa divisão seria aceita e difundida durante muitos séculos. Os
estóicos, todavia, haviam proposto outra, consistente em quatro princípios: a) princípio diretivo ou
hegemônico, que é a razão; b) sentidos; c) princípio seminal ou espermático; d) linguagem (DiÓG. L., VII, 157; SEXTO EMPÍRICO, Adv. math., IX, 102). Na filosofia
medieval, a partição aristotélica, que acaba por prevalecer no fim da Escolástica e é repetida por muitos
pensadores (p. ex., Alberto Magno, S. Tomás, Duns Scot, Ockham), entrelaça-se com o tipo de partição
que fora inaugurado por S. Agostinho e que consiste em julgar que as partes da alma têm como modelo a
Trindade divina. S. Agostinho distinguira, com efeito, três faculdades da alma: memória, inteligência e
vontade, correspondentes às três pessoas da Trindade, definidas respectivamente como Ser, Verdade e
Amor (De Trin., X, 18). Esta divisão e outras análogas encontram-se freqüentemente na Escolástica (é
repetida, p. ex., por S. ANSELMO, MonoL, 67). A partir de Descartes, a única divisão admitida foi a que
Aristóteles considerara própria da alma intelectiva ou dia-noética, entre vontade (apetição ou desejo) e
intelecto propriamente dito, ou seja, a divisão fundada no uso prático e no uso teórico da razão. Para
Descartes, a alma é apenas a alma "racional", já que as funções vegetativa e sensitiva não pertencem à
alma racional nem a outra espécie de alma, porquanto são funções mecânicas, explicadas pelo mecanismo
corpóreo (Discours, V). A divisão entre intelecto e vontade é enunciada por Descartes (Pass. de Vâme, I.
17) como entre as ações da alma, que compreendem todos os desejos, entre os quais Descartes inclui a
vontade (Ibid., 18), e as paixões. que compreendem "todas as espécies de percepções ou formas de
conhecimento". Essa divisão é elucidada pelo modo como Descartes a utiliza na sua teoria do erro.- este
depende do concurso de duas causas, do intelecto e da vontade. Com o intelecto o homem não afirma nem
nega nada, mas concebe tão-somente as idéias que pode afirmar ou negar. O ato de afirmar ou negar é
próprio da vontade. Ora, a vontade é livre e como tal é muito mais ampla que o intelecto e pode, portanto,
afirmar ou negar até o que o intelecto não consegue perceber clara e distintamente (Méd., IV; Princ. phil,
I, 34). Com isso estabelecia-se a distinção entre intelecto e vontade, o que seria aceito até Kant. É bem
verdade que Spinoza negou a existência de F. separadas na alma, aduzindo que elas "são fictícias,
entidades metafísicas ou universais que formamos a partir das coisas particulares" (Et., II, 48). Mas isso
significa que para ele "vontade e intelecto são a mesma coisa" (Ibid., 49, corol.), sendo a distinção
pressupôs-
FACULDADE
426
FALIBILISMO
ta com fins polêmicos. O próprio Locke a reconhece quando, a propósito da idéia de força, afirma que a
vontade e o intelecto são as duas forças que explicam as transformações que ocorrem no nosso espírito
(Ensaio, II, 21, §§ 5-6). Leibniz diz que os dois princípios agentes na mônada são a percepção e a
apetição (Monad., §§ 14-15). Wolff, por sua vez, reconhecia no conhecimento e na apetição as duas
funções fundamentais do espírito humano e, com base nessa divisão, modelava a divisão da filosofia nos
dois ramos fundamentais, filosofia teórica ou metafísica e filosofia prática (Log., Disc. Prael, §§ 60-62).
Kant, somando as análises dos empiristas ingleses, interpunha entre o intelecto e a vontade uma terceira
F., que chamava de "sentimento de prazer e desprazer". Com isso, as F. da alma elevaram-se a três (F. de
conhecer, F. de sentir, F. de desejar) (Crít. do Juízo, Introd., IX), numa divisão que se tornaria clássica e
freqüentemente seria apoiada por um suposto testemunho da consciência (v. EMOÇÃO; SENTIMENTO).
Entretanto, nenhuma dessas doutrinas implicava que as F. da alma fossem poderes distintos e
independentes. Como já os antigos, tanto Descartes (Regulae, XII, 79) quanto Locke (Ensaio, II, 21, 6) e
Leibniz (Nouv. ess., II, 21, 6) reconhecem explicitamente que a divisão das F. é uma abstração que não
destrói a unidade da atividade mental. Assim, não representam grandes novidades a crítica de Herbart à
doutrina das F. e a sua tese de que essas F. (intelecto, sentimento e vontade) são simples "conceitos de
classe" mediante os quais se ordenam os fenômenos psíquicos (Einleitung in die Phil, § 159). A
psicologia associacionista compartilhava esse ponto de vista, mas mantinha a mesma tripartição (p. ex.,
BAIN, Mental and Moral Science, 1868, p. 2; Logic, II, 275), e o Neocri-ticismo da Escola de Marburgo
(Cohen, Natorp) reconhecia só três ciências filosóficas (lógica, estética e ética), correspondentes às três
atividades do espírito.
Foi só na psicologia e na filosofia contemporâneas, especialmente por influência do beha-viorismo e da
Gestalt, que a doutrina das partes da alma, qualquer que fosse o modo de entendê-la, perdeu importância,
deixando de constituir tema de investigação e debates. Como objeto de indagações, de fato, o
comportamento implica a prática e a fusão simultâneas de todos os princípios ou partes distintas ou
distinguíveis da atividade da alma, da consciência ou do organismo, de tal modo que tais distinções deixam de ter interesse e fala-se de "comportamento
racional" ou "comportamento emocional", num sentido em que essa distinção não tem mais razão de ser
(v. BEHAVIORISMO; COMPORTAMENTO) .
2. No significado mais geral, o mesmo que Poder (v.).
FALÁCIA (gr. ocxpiana; lat. Fallacia; in. Fallacy, fr. Sophisme, ai. Fallacie, it. Fallacia). Termo com
que os escolásticos indicaram o "silogismo sofistico" de Aristóteles. Pedro Hispano disse: "F. é a
idoneidade fazendo crer que é aquilo que não é, mediante alguma visão fantástica, ou seja, aparência sem
existência" (Summ. log., 7.03). Aristóteles dividira os raciocínios sofísticos em duas grandes classes: os
atinentes ao modo de expressar-se, ou, como dizem os escolásticos, in dictione, e os independentes do
modo de expressar-se, ou extra dictionem. Os primeiros são seis, a saber: equivocação, anfibologia,
composição, divisão, acentuação, figura dictj.onis. Os outros são sete: acidente, secundüm quid,
ignorantia elenchit, petição de princípio, non causa pro causa, conseqüente, interrogação múltipla (El.
sof., 4). A doutrina das F. foi uma das partes mais cultivadas da lógica medieval, mas perdeu quase toda
importância na lógica moderna. Cerca de metade das Summulae logicales(séc. XIII) de Pedro Hispano é
dedicada à refutação das falácias. Mas já na Lógica de Port-Royal a ela é dedicado um único capítulo (o
XIX da parte III), que constitui cerca da vigésima parte do tratado. Na lógica contemporânea esse assunto
desapareceu de todo, já que não podem ser reduzidas a sofismas as antinomias (v.) de que ela trata. Nos
verbetes referentes a cada um dos sofismas encontrar-se-á o que a lógica antiga e medieval entendia por
eles.
G. P.-N. A.
FALANSTÉRIO (in. Phalanstery, fr. Pha-lanstère, it. Falansterio). Termo empregado por Charles
Fourier para designar a organização social utópica por ele prevista: um grupo de cerca de 1.600 pessoas
vivendo em regime comunista, com liberdade de relações sexuais e regulamentação da produção e do
consumo dos bens (Tratado de associação doméstica e agrícola ou teoria da unidade universal, 1822).
FALIBILISMO (in. Fallibilism). Termo criado por Peirce para indicar a atitude do pesquisador que julga
possível o erro a cada instante
FALSEABEUDADE
427
FANATISMO
da sua pesquisa e, portanto, procura melhorar os seus instrumentos de investigação e de verificação iColl.
Pap., 1.13; 1.141-52). Dewey ressaltou a importância dessa atitude (Logic, cap. II; trad. it., p. 79). Esse
termo agora é empregado com freqüência por escritores americanos.
FALSEABILIDADE (in. Falsifiability, fr. Fal-sificabilité, ai. Fãlschungsmõglichkeit; it. Falsificabilitâ). É o critério sugerido por Karl Popper para acolher as generalizações empíricas. O método
empírico, segundo Popper, é o que "exclui os modos logicamente admissíveis de fugir à falseação". Desse
ponto de vista, as asserções empíricas só podem ser decididas em um sentido, o da falseação, e só podem
ser verificadas por tentativas sistemáticas de colhê-las em erro. Desse modo desaparece todo o problema
da indução e da validade das leis naturais (Logic ofScientific Discovery, § 6). Cf. EXPERIÊNCIA;
VERIFICAÇÃO).
FALSO (gr. Y|/euôr|Ç; lat. Falsum; in. False, fr. Faux, ai. Falsch; it. Falso). V. FALIBILISMO; VERDADE.
FAMÍLIA (in. Family, fr. Famille, ai. Fami-lie, it. Famiglid) Aqui só nos interessa registrar o uso lógico
e metodológico desse conceito, que é recentíssimo. Uma "F. de conceitos" é um conjunto de conceitos
entre os quais se estabelecem relações diversas que não sejam redutí-veis a um só conceito ou princípio. É
precisamente o que ocorre entre os membros de uma F. humana, os quais nem sempre têm uma única
propriedade comum, e, mesmo quando têm, ela não resume nem esgota toda a semelhança familiar. O uso
dessa noção implica, portanto, o esforço de procurar sempre novas relações entre os conceitos, sem que
seja necessário reduzir essas relações a um só tipo. O primeiro a propor e a empregar essa noção foi
WITTGEN-STEIN (PhilosophicalLnvestigations, § 110). Essa obra foi publicada em 1953, mas alguns anos
antes seus conceitos fundamentais já eram conhecidos; o conceito de F. foi utilizado por Weismann em
Introdução ao pensamento matemático (Einführung in das mathematische Denken, 1936; trad. it., 1939).
Cf. sobre o mesmo conceito: ABBAGNANO, Possibilita e liberta, 1956, passim.
FANATISMO (in. Fanaticism-, fr. Fanatis-me, ai. Fanatismus, it. Fanatismo). Esta palavra (defanum =
templo) foi empregada a partir do séc. XVIII com o mesmo valor de entusiasmo (v.) para indicar o estado
de exaltação de quem se crê possuído por Deus e, portanto, imune ao
erro e ao mal. No uso moderno e contemporâneo, "F." acabou prevalecendo sobre "entusiasmo" para
indicar a certeza de quem fala em nome de um princípio absoluto e, portanto, pretende que suas palavras
também sejam absolutas. Já Shaftesbury dizia: "E é esse [entusiasmo] que dá origem à denominação F. no
sentido inicial, usado pelos antigos, de aparição que arrebata o espírito" (Letter on Enthusiasm, 7; trad. it.,
Garin, pp. 78-79)- Na verdade, Cícero já fala de "filósofos supersticiosos e quase fanáticos" (Dedivin., 2,
57, 118). Leibniz chamava de fanática a filosofia que atribui todos os fenômenos a Deus "imediatamente,
por milagre" (Nouv. ess., Avant-propos, Op., ed. Erdmann, p. 204). Mas certamente a melhor definição
filosófica do F. foi dada por Kant. No sentido mais geral, F. "é uma transgressão, em nome de princípios,
dos limites da razão humana". Há, além disso, o F. moral, que é "o ultrapassar dos limites que a razão
pura e prática impõe à humanidade, que impede de atribuir o motivo determinante e subjetivo das ações
ditadas pelo dever, ou seja, o móvel moral delas, em qualquer outra coisa que não seja a própria lei". O F.
mo-ral consiste na pretensão de fazer o bem por inspiração, por entusiasmo, por um impulso benéfico da
própria natureza, portanto em substituir a virtude, que é "a intenção moral em luta", pela "pretensa
santidade de quem acredita possuir perfeita pureza de intenções da vontade" (Crít. R. Prática, 1,1, 3). O
fanatismo, nesse sentido, sempre foi objeto de polêmica na obra de Kant, que identificou e combateu suas
principais manifestações no esforço de determinar os limites dos poderes humanos e a validade desses
poderes nos seus limites. Num texto de 1786, O que significa orientar-se no pensar, Kant advertia contra
a pretensão de superar os limites da razão recorrendo a faculdades ou poderes supostamente "superiores".
Sua polêmica referia-se a Jacobi e a Mendelssohn, mas ele via a mesma pretensão no spinozismo, e,
contra este e o fanatismo, reafirmava a exigência de determinar com precisão os limites da razão. Essas
observações de Kant, para quem as considere hoje, parecem uma crítica antecipada ao romantismo, que,
nesse aspecto, foi o grande retorno ao spinozismo. Todavia, o próprio Hegel falou de F., restringindo-o,
porém, ao campo político e religioso. No campo político, "o F. quer uma coisa abstrata, não uma
organização": seu exemplo é a Revolução Francesa (Fil. do dir, § 5, Zusatz). No campo
FANTASIA
428
FAPESMO
religioso, o F. consiste em subordinar o Estado à religião, de tal modo que seu lema é: "Aos religiosos não
se imponha nenhuma lei" (Ibid., § 270, Zusatz). Mas Hegel não se dá conta de que a onipotência do
Estado, que ele teorizou, é um fanatismo.
A palavra F. conserva hoje o significado de atitude, ponto de vista ou doutrina que, em qualquer campo ou
domínio, despreze ou ignore as limitações humanas. Nossa época conheceu outra forma de F. mais
sinistra: o F. político, que, embora não sendo uma novidade do ponto de vista doutrinai, aboliu os limites
humanos em política e, conseqüentemente, exaltou ou divinizou certas concepções políticas e os
indivíduos que as encarnavam. A própria palavra F., na terminologia de alguns movimentos políticos,
perdeu a conotação negativa que recebera desde a Antigüidade, passando a ter o valor de fidelidade a toda
prova, que ignora objeções ou limites. A experiência mostrou que essa fidelidade é a mais frágil de todas
e, na primeira oportunidade, transforma-se em seu contrário. Como já dizia Kant, a razoabilidade, com o
reconhecimento dos limites que ela implica, é a única garantia de compromisso autêntico, seja ele teórico
ou prático.
FANTASIA (in. Fancy; fr. Fantaisie; ai. Phantasie, it. Fantasia). 1. O mesmo que imaginação.
2. A partir do séc. XVIII o uso simultâneo dos termos F. e imaginação favoreceu a distinção dos
significados, e F. começou a indicar a imaginação desregrada ou desenfreada. Já na Lógica de Port-Royal
diz-se que a imaginação é "a maneira de conceber as coisas mediante a aplicação do nosso espírito às
imagens que estão pintadas no nosso cérebro" (o que é um conceito cartesiano exposto na Regula XII), e
essas imagens, que são as idéias das coisas, distinguem-se das imagens "pintadas na fantasia" (I, 1). Em
outros termos, contrapõem-se as imagens que são idéias, próprias da imaginação, às imagens fictícias,
próprias da fantasia. Analogamente, Kant dizia que a F. é "a imaginação que produz imagens sem querer",
donde "fantasista" é a pessoa que se habituou a julgar tais imagens como experiências internas ou
externas (Antr., I, § 28). E observava: "Muitas vezes gostamos de brincar com a imaginação, mas a
imaginação, que é F., freqüentemente também brinca conosco, e às vezes com mau gosto" (Ibid., § 31, a).
Nesse sentido, a F. é a
imaginação desregrada e desenfreada. Este é um dos significados dessa palavra até hoje, sobretudo na
linguagem comum.
3. Ao lado desse significado, o romantismo elaborou um outro, segundo o qual a F. é entendida como
imaginação criadora, diferente, em qualidade mais do que em grau, da imaginação reprodutora comum.
Nesse sentido, Hegel via a F. como "imaginação simbolizadora, alegorizadora e poetante", logo "criadora"
(Ene, §§ 456-57). Os românticos exaltaram a F. assim entendida. Para Novalis, ela é "o máximo bem"
(Fragmente, 535). "A F.", dizia ele, "é o sentido maravilhoso que em nós pode substituir todos os
sentidos. Se os sentidos externos parecem submeter-se a leis mecânicas, a F. evidentemente não está
ligada ao presente nem ao contato de estímulos anteriores" (Ibid., 537). Desse modo, o caráter
desordenado ou rebelde da imaginação fantasiosa, em virtude do qual essa forma de imaginação parecia
inferior às outras no séc. XVIII, no séc. XIX passa a ser elemento positivo, um mérito, uma característica
da liberdade criadora. A estética romântica ateve-se a essa valorização da fantasia. Croce diz: "A estética
do séc. XIX forjou a distinção, encontrada em não poucos dos seus filósofos, entre F. (que seria a
faculdade artística peculiar) e imaginação (que seria faculdade extra-artística). Acumular imagens,
selecioná-las, esmiuçá-las, combiná-las, pressupõe a produção e a posse de cada uma das imagens pelo
espírito; a F. é produtora, enquanto a imaginação é estéril, apta a combinações extrínsecas, mas não a
gerar o organismo e a vida" (Breviario di estética, 1913, pp. 35-36). Em sentido análogo, Gentile
chamava de F. a atividade artística como puro sentimento ou "forma subjetiva inatual" do espírito (Fil.
deWarte, § 5). Mas, nesse significado romântico, a F. deixa de ser uma atividade ou uma operação
humana, definivel ou descritível nas suas possibilidades e nos seus limites, para, como manifestação de
atividade infinita, tornar-se ela também infinita, situando-se portanto além de qualquer possibilidade de
análise e de verificação. Trata-se, em outros termos, de conceito mágico-metafísico que não pode ser
utilizado fora do clima romântico que o criou ou privilegiou.
FANTASMA. V. IMAGEM.
FAPESMO. Palavra mnemônica usada pelos escolásticos para indicar o oitavo dos nove modos do
silogismo de primeira figura, mais precisamente o que tem como premissa uma propo-
FATALIDADE ou FATUM
429
FATO
sição universal afirmativa e uma proposição universal negativa e como conclusão uma particular
negativa, como no exemplo: "Todo animal é substância; nenhuma pedra é animal; logo, algumas
substâncias não são pedras" (PEDRO HISPANO, Summ. log., 4.09; ARNAULD, Log. III, 8)
FATALIDADE ou FATUM (in. Fate, fr. Fata-lité, ai. Fatum; it. Fato). Destino, no significado I
a
do
termo, como necessidade desconhecida, portanto cega, que domina os seres do mundo enquanto partes da
ordem total. A noção de fatalidade foi distinguida da noção de destino quando, entre as causas que
constituem este último, se quis incluir a vontade e a ação humana. Nesse sentido, Leibniz contrapôs fatum
mahometanum, que considera os acontecimentos futuros que não dependem do que o homem pode querer
ou fazer, à noção de destino (ou de providência), segundo a qual o que acontecerá no futuro também é
determinado, pelo menos em parte, pela ação humana (Théod., I, § 55). Em sentido análogo, Kant
contrapõe a F. à necessidade condicional, logo inteligível, da natureza (Crít. R. Pura, Postulados do
pensamento empírico). Na filosofia moderna, a noção de F. é polêmica, pois quem a emprega não a
considera válida; por isso, pode-se dizer que é espúria em filosofia. Mas não tem esse significado
pejorativo na expressão amor fati, que é a definição moderna de destino (v.). Peirce também procurou
isentá-la do significado pejorativo dizendo: "F. significa simplesmente aquilo que com certeza acontecerá
e que não pode ser absolutamente evitado. É superstição supor que certa espécie de acontecimentos está
submetida à F., assim como é superstição supor que a palavra F. nunca possa livrar-se do caráter
supersticioso. É F. que todos nós morreremos" (Chance, Love and Logic, I, cap. 2, § 4, nota; trad. it., p.
41).
FATALISMO (in. Fatalism-, fr. Fatalisme, ai. Fatalismus, it. Fatalismó). Leibniz já distinguira do fatum
estóico e cristão o 'fatum mahometanum" ou "fatalidade maometana", segundo a qual "os efeitos
aconteceriam mesmo se a causa fosse evitada, pois são dotados de necessidade absoluta" (Op., ed.
Erdmann, pp. 660, 764). Wolff empregava, para indicar essa dou-trina;por ele atribuída a Spinoza, o
termo F. no texto De differentia nexus rerum sapientis et fatalis necessitais(112$), que é justamente
dirigido contra Spinoza. Na verdade, porém, todas as concepções de fatalidade (destino) elaboradas pelos filósofos admitem que dela fazem parte outras causas determinantes, mas que estas são, por sua
vez, determinadas pelas antecedentes, que são as próprias ações humanas, voltadas a evitar ou a alcançar
certos resultados. E é, portanto, um termo polêmico com o qual os filósofos em geral designam a forma
de necessitarismo de que não compartilham. Com mais rigor, esse termo pode ser adotado não para
designar uma doutrina filosófica, mas a atitude de quem se entrega aos acontecimentos sem procurar
alterá-los nem reagir.
FATO (in. Fact- fr. Fait; ai. Talsache, it. Fattó). Em geral, uma possibilidade objetiva de verificação,
constatação ou averiguação, portanto também de descrição ou previsão - objetiva no sentido de que todos
podem fazê-la nas condições adequadas. "É F. que x" significa que x pode ser verificado ou confirmado
por qualquer um que disponha dos meios adequados, e que pode ser descrito ou previsto de forma
passível de aferição. A noção de F. é moderna, sendo mais restrita e específica que a de realidade; nasceu
sobretudo para indicar os objetos da pesquisa científica, que devem poder ser reconhecidos por qualquer
pesquisador competente. Portanto, no que se refere à sua validade, o F. é independente de opiniões,
preconceitos e mesmo de juízos e valorações que não sejam inerentes ao uso dos instrumentos capazes de
confirmá-lo. Assim, tem duas características fundamentais: d) referência a um método apropriado de
confirmação ou verificação; b) independência em relação a crenças subjetivas ou pessoais de quem
emprega o método. Precisamente em vista dessas duas características, a capacidade de "olhar os fatos", de
"considerar os fatos" ou de "aceitar os fatos" hoje é considerada um dos requisitos fundamentais não só
do cientista e do pesquisador em geral, mas de qualquer cidadão.
Não obstante a importância que assumiu na cultura moderna, essa noção raramente foi alvo da atenção
dos filósofos. A história de suas análises dessa noção é parca, podendo-se dizer que começa no séc. XVII,
quando, com a distinção entre "verdade de razão" e "verdade de F.", também se começa a distinguir — ao
menos implicitamente — a esfera própria do fato. O primeiro a fazer essa distinção foi Hobbes: "Há duas
espécies de conhecimento, das quais uma é o conhecimento de F. e outra é o conhecimento da
conseqüência de uma afirmação relativamente a outra. A primeira é apenas senti-
FATO
430
FATO
do e memória, sendo conhecimento absoluto, como quando vemos um F. acontecer ou o lembramos; esse
é o conhecimento exigido de uma testemunha. A outra tem o nome de ciência e é condicional..."
(Leviath., I, 9)- Assim como Hobbes, Leibniz e Hume concordam em considerar que essa esfera é a
experiência. Segundo Leibniz, as verdades de F. são contingentes, ao passo que as de razão são
necessárias porque baseadas no princípio de contradição, de tal modo que seu contrário é impossível
(Nouv. ess., IV, 2, 1). Para Hume, é sempre possível o contrário das verdades de F., pois nunca implica
contradição, sendo concebido pelo espírito com a mesma facilidade e clareza que há na conformidade à
realidade (Inq. Cone. Underst., IV, 1). Tanto Leibniz quanto Hume concordam em julgar que o
fundamento da verdade de F. é o princípio da causalidade. Dessa análise resulta portanto que o fato é: a)
uma realidade contingente, atingida ou testemunhada pela experiência; b) uma realidade fundada em certa
conexão causai. Uma noção de fato assim configurada é a que hoje se chamaria de noção de
acontecimento, ou seja, de realidade contingente que pertence à ordem da natureza. Essa última
qualificação é a que se expressa quando se julga que a verdade de F. baseia-se no princípio causai.
Portanto, essa ainda não é uma noção de F. suficientemente ampla, que possa valer em toda a extensão da
pesquisa científica: para ela, as verdades matemáticas não seriam verdades de fato. A extensão dessa
noção foi realizada por Kant, para quem "os fatos são os objetos dos conceitos cuja realidade objetiva
pode ser provada tanto pela razão quanto pela experiência: no primeiro caso, com base em dados teóricos
ou práticos; em qualquer caso, por meio de uma intuição correspondente" {Crít. do Juízo, § 91)-Nesse
sentido, segundo Kant, são fatos: as propriedades geométricas das grandezas, porquanto podem ser
demonstradas a priori; as coisas ou as qualidades das coisas que possam ser provadas pela experiência ou
por testemunhas; a idéia da liberdade, cuja realidade, como uma espécie particular de causalidade, pode
ser mostrada a partir da experiência moral ilbid., § 91). Essa análise de Kant é importante porque: d)
permite distinguir nitidamente a noção de F. da noção de acontecimento como noção mais geral,
correlativa à possibilidade de uso de qualquer instrumento de verificação; desse ponto de vista, o
acontecimento é uma espécie
particular de F., mais precisamente um F. natural; b) permite reconhecer o caráter empírico do F. como
algo diferente do seu confinamento à esfera da sensibilidade: a própria razão deve tratar com fatos que
não são externos a ela nem impostos do exterior, mas que encontra em si mesma, como condições do seu
funcionamento.
A partir daí, a noção de F. às vezes se aproxima da noção de fenômeno e outras vezes de um elemento ou
condição da razão. Aproxima-se do fenômeno quando se fala de "F. puro", "cru" ou de "simples F.", pois
nesse caso alude-se ao dado imediato, à aparência simples ou grosseira, da forma como ela se apresenta à
primeira vista. Mas está claro que não se pode ir muito longe nessa identificação. F. não é fenômeno: p.
ex., o desvio da imagem de um bastão na água é um fenômeno, mas não um fato. Também é fenômeno o
movimento aparente dos céus, que desde o princípio a astronomia procurou, de vários modos, reduzir a
"F". O F. implica uma disposição ou uma interpretação do fenômeno qüe provoque uma mudança capaz
de tornar o fenômeno descritível, previsível e verificável. O próprio Comte, que na maioria das vezes
emprega as duas palavras indiferentemente, parece aludir a uma distinção, como no seguinte trecho: "Esse
F. geral (a gravitação) nos é apresentado como simples extensão de um fenômeno eminentemente familiar,
que portanto consideramos perfeitamente conhecido, o peso dos corpos na superfície da terra" (Phil. Pos.,
I, § 4). Mas no próprio âmbito do positivismo Claude Bernard acentuou a subordinação dos fatos à razão:
"Sem dúvida, admito que os fatos são as únicas realidades que podem dar a fórmula à idéia experimental
e, ao mesmo tempo, servir para aferi-la, mas isso sob a condição de que a razão os aceite... No método
experimental, como em tudo, o único critério real é a razão. Um F. não é nada por si mesmo, mas vale
apenas pela idéia a ele ligada ou pela prova que fornece" (lntr. à 1'étude de Ia médecine experimental, I,
2, 7). Essa interpretação do fato pareceu confirmada quando se notou o papel preponderante
desempenhado pela teoria na construção do "F. científico" (P. DUHEM, La théoriephysique: son objet e sa
strueture, 1906).
A estreita conexão entre F. e atividade racional, expressa de vários modos, em geral é reconhecida pela
filosofia contemporânea. A feno-menologia elaborou a noção de estado de
FATO
431
FÉ
coisas (Sacbverhali) como objeto correspondente de cada juízo válido e considerou como fato o estado de
coisas em que está envolvida uma existência individual. Nesse sentido, uma coisa não é um F., mas é F.
que essa coisa existe e que tem este ou aquele caráter, etc. (HUSSERL, Ideen, I, § 6). A noção de estado de
coisas foi retomada por Wittgenstein em Tractatus logico-philosophicus, mas com uma concepção
diferente sobre a relação deste com o fato, porque viu no "estado de coisas" o elemento simples que entra
na composição do fato. O estado de coisas seria, portanto, o "F. atômico", o componente elementar dos
fatos (Tractatus, 2). O que há de característico nessas concepções é a definição de fato (ou dos seus
componentes) como objeto do juízo ou da proposição válida. Segundo Wittgenstein, o estado de coisas ou
F. atômico não é senão o objeto de uma proposição elementar (Ibid., 4, 21). Entende-se então por que, na
linha de desenvolvimento dessa concepção, os fatos chegaram a ser identificados com proposições. A
identificação foi proposta por Ducasse (em "Journal of Philosophy", 1940, pp. 701-11) e aceita por
Carnap, no sentido de que F. seria uma proposição: I
a
verdadeira, 2a
dotada de certo grau de completitude,
ou seja, de determinação (Meaning and Necessity, § 6, 1). É preciso notar que, para Carnap, o termo
proposição não significa expressão lingüística nem acontecimento mental ou subjetivo, mas algo de
objetivo que pode ou não encontrar exemplo na natureza, sendo portanto comparável a "propriedade"
(Ibid., § 6). Portanto, a "proposição verdadeira", que Carnap identifica com o F., significa simplesmente
"objeto válido" ou um "estado de F." real. O esclarecimento que deriva dessas reduções lingüísticas é
puramente verbal e, se chega a ter alguma utilidade num tratamento lógico, pouco ou nada diz sobre a
natureza ou os caracteres do fato. Denuncia, no máximo, a tendência a reportar o F. a condições
conceituais ou lingüísticas. Por outro lado, com De-wey, o pragmatismo insistiu no caráter "operacional"
do F., no sentido de que os F. "são apenas resultados de operações e de observações efetuadas com a
ajuda dos órgãos sensoriais e de instrumentos auxiliares produzidos pela técnica, sendo portanto
escolhidos e organizados no intuito expresso de utilizá-los como dados para uma pesquisa ordenada"
(Logic, VI, 5, § 4).
Portanto, a análise que hoje se faz dessa noção ignora a antítese entre fato e razão. A eliminação dessa
antítese sem dúvida também se faz
sentir na elaboração do conceito de razão (v.). No que tange à noção de F. em relação à noção de razão, o
F. configura-se como condição li-mitativa das escolhas racionais. Por exemplo, em física F. é todo objeto
passível de observação, ou seja, todo estado ou situação que pode ser verificada e examinada com os
instrumentos de que a física dispõe. Mas os fatos físicos, nesse sentido, são os limites ou as condições da
atividade racional no campo da física, ou seja, de qualquer construção teórica ou hipótese. Do mesmo
modo, no campo da lógica, as implicações analíticas ou tautológicas valem como fatos, ou seja, como
condições ou limites da investigação lógica (ABBAGNANO, Possibilita e liberta, VI, 7). Em geral, pode-se
dizer que, enquanto é uma "possibilidade de verificação" que em cada campo assume o aspecto específico
ditado pelos instrumentos de investigação disponíveis, em relação à razão o F. também é condição de
outras possibilidades, ou seja, de escolhas ou operações que, por sua vez, são determinadas ou
especificadas segundo a natureza de cada campo de indagação.
FAUSTISMO (ai. Faustismus). Segundo Spengler, o caráter da cultura ocidental, em contraposição ao
apolinismo da cultura antiga. A alma fáustica tem como símbolo o espaço puro ilimitado. Fáusticos são,
segundo Spengler, a dinâmica de Galilei, a dogmática católica e a protestante, as grandes dinastias com
sua política de gabinete, o destino de Lear e o ideal de Nossa Senhora, que vai desde a Beatriz de Dante
até o fim do segundo Fausto de Goethe (Untergang desAbendlandes, I, 3, 2, § 6). Trata-se obviamente de
uma caracterização arbitrária e fantasiosa.
FÉ (gr. Ttíaxtç; lat. Fides-, in. Faith; fr. Foi; ai. Glaube, it. Fede). Crença religiosa, como confiança na
palavra revelada. Enquanto a crença, em geral, é o compromisso com uma noção qualquer, a F. é o
compromisso com uma noção que se considera revelada ou testemunhada pela divindade. Nesse sentido,
essa palavra já era utilizada por Sexto Empírico, ao falar dos raciocínios que parecem provir "da F. e da
memória", tais como o seguinte: "Se um Deus te disse que esse homem ficará rico, ele ficará rico. Mas
este Deus aqui (e indico, suponhamos, Zeus) te disse que esse homem ficará rico. Logo, ficará rico."
Nesses casos, nota Sexto, damos assentimento à conclusão não pela necessidade das premissas, mas
porquanto temos F. na declaração da divindade (Pirr. hyp.,
FÉ
432
FE
II, 141). S. Paulo resumiu as características fundamentais da F. religiosa nas célebres palavras: "F. é a
garantia das coisas esperadas e a prova das que não se vêem" (Hebr, II, I). S. Tomás esclareceu da
seguinte forma as palavras de S. Paulo: "Quando se fala de prova, distingue-se a F. da opinião, da suspeita
e da dúvida, coisas em que falta a firme adesão do intelecto ao seu objeto. Quando se fala de coisas que
não se vêem, distingue-se a fé da ciência e do intelecto, nos quais alguma coisa se faz aparente. E quando
se diz garantia das coisas esperadas faz-se a distinção entre a virtude da F. e a F. no significado comum
[isto é, crença em geral], que visa à bem-aventurança esperada" (S. Th, II, 2, q. 4, a. 1). Os escolásticos
ativeram-se, com poucas variantes, a essa descrição da fé. Com o misticismo alemão do séc. XIV,
começou a tomar corpo a doutrina do caráter privilegiado da F. como via de acesso original, direta e
imediata às realidades supremas, especialmente a Deus. Mestre Eckhart vê na F. o meio pelo qual o
homem atinge a realidade última de si e de Deus: a F., diz ele, é o nascimento de Deus no homem. Esse
tema retornou na chamada "filosofia da F." do séc. XVIII: Hamann e Jacobi atribuem à F. o mesmo status
privilegiado, a mesma capacidade de colocar o homem diretamente em contato com as realidades últimas
e especialmente com Deus, transpondo os limites e as incertezas da razão. Embora Jacobi inclua na fé
religiosa também a parte que mais propriamente diz respeito à crença ("Nós cremos que temos corpo;
cremos na existência das coisas sensíveis", Werke, IV, 211; III, 411), para ele é no caráter religioso que se
funda a certeza da F.: toda F. é necessariamente F. da revelação e esta é necessariamente F. em Deus,
religião (Ibid., II, 274, 284, ss.). Os românticos reafirmaram amiúde esse status privilegiado da fé. Foi o
que fez Fichte, que exaltou a F. nas obras populares do segundo período, como p. ex. em Missão do
homem (1800), em que afirma que "a F., dando realidade às coisas, impede-as de ser vãs ilusões: é a
sanção da ciência", repetindo as palavras de Jacobi: "Todos nascemos na F." (Werke, II, pp. 254-55). Nos
textos de Schelling muitas vezes o tom é análogo (Werke, I, 10, 183), enquanto Novalis diz que a ciência
é somente uma das metades e que a F. é a outra metade (Fragmente, 391)-
No último período da Escolástica começou a acentuar-se outro aspecto da F.: seu caráter prático, que não
consiste na sua dependência
da vontade, mas na sua capacidade de dirigir a ação. Duns Scot foi o primeiro a insistir nesse caráter: "A
F. não é um hábito especulativo, assim como crer não é um ato especulativo e a visão que segue a crença
não é uma visão especulativa, mas prática" (Op. Ox., prol., q. 3). Por "prático" Duns Scot entende o que
serve para dirigir a conduta; portanto para ele a teologia é prática, pois as verdades que ela ensina não são
teóricas, ou seja, necessárias e de-monstráveis, mas servem unicamente para dirigir o homem para a bemaventurança (Ibid., prol., q. 4, n. 42). A mesma antítese entre o habitusáà F. e o habitusáà ciência era
admitida por Ockham, que reputava os dois hábitos incompatíveis entre si, observando que não se pode
dizer que quem crê em alguma coisa cuja demonstração esqueceu realmente tem "F.", porque o objeto de
sua crença continua sendo a demonstração (In Sent., III, q. 8 R). No mundo moderno, o caráter prático da
F. foi defendido por Spinoza: "A F. consiste em ter, em relação a Deus, os sentimentos que são eliminados
quando se elimina a obediência a Deus, e que estão presentes necessariamente quando está presente tal
obediência" (Tract. theol.-pol, 14). Portanto, a F. é o conjunto de crenças que condicionam a obediência à
divindade, segundo Spinoza. Esse conceito seria retomado por Kant, para quem a crença teoricamente
insuficiente pode, sobretudo em seu aspecto prático, ser chamada de F. Kant generaliza o conceito prático
da F., reconhecendo nela a atitude compromissada que pode dirigir tanto a habilidade, ou seja, a atividade
que tem em vista fins arbitrários e acidentais, quanto a moralidade, que visa a fins absolutamente
necessários. A F. que dirige a habilidade é a F. pragmática, cujo interesse raramente enfrenta desafios. Ao
contrário, a F. doutrinai é mais compromissada, mas tampouco chega à certeza da F. moral. Esta última
espécie de fé dá uma certeza que não pode ser comunicada; não é, pois, de natureza lógica, mas constitui
uma "certeza moral" que se baseia em fundamentos subjetivos. "Assim, nunca devo dizer: é moralmente
certo que Deus existe, etc, mas: estou moralmente certo, etc. Ou seja, a fé em Deus e em outro mundo
está tão profundamente entrelaçada com meu sentimento moral que, assim como não corro o risco de
perder este, tampouco temo que aquela me seja retirada" (Crít. R. Pura, Cânone da Razão Pura, seç. 3).
Segundo Kant, a F. religiosa pode ser "F. religiosa pura", que é a própria F.
FÉ
433
FELAPTO
moral, ou "F. histórica", que é fé nas leis estatutárias, que são as que indicam o modo como Deus quer ser
honrado e obedecido. (Religion, III, I, § 6).
Aquilo que os escolásticos chamavam de caráter prático da F., para Kant (e para os modernos) tornou-se o
caráter compromissivo da F., ou seja, o caráter graças ao qual a F. é antes de mais nada um ato existencial,
uma orientação dada à vida do indivíduo, capaz de transformá-la e não isenta de riscos. Estes traços
aparecem claros na última grande teoria da fé que a filosofia elaborou: a de Kierkegaard. Para ele, o
cristianismo inverteu a relação entre F. e ciência. Na Antigüidade clássica, a F. é algo inferior à ciência
porque se refere ao verossímil; no cristianismo, a F. é superior à ciência porque indica a certeza mais
elevada, certeza que se refere ao paradoxo, portanto ao inverossímil: ela é "a consciência da eternidade, a
certeza mais apaixonada que impele o homem a sacrificar tudo, mesmo a vida" (Diário, X
4
, A 635). O
caráter compromissivo da F. consiste em seus laços com a existência: ter fé significa existir de certo
modo: "Para ter F., é preciso que haja uma situação que deve ser produzida com um passo existencial do
indivíduo" (Ibid., X
4
, A 114). "Esse passo marca a ruptura com o mundo e com seu ideal de
inteligibilidade. O que é crer? É querer (o que se deve e por que se deve), em obediência reverente e
absoluta, de fender-se do vão pensamento de querer compreender e da vã imaginação de poder
compreender" (Ibid., X', A 368). Sob este ponto de vista, a F. não é feita de certezas, mas de decisão e
risco. A F., diz Kierkegaard em Temor e tremor, é a certeza angustiante, a angústia que se torna segura de
si e de uma relação oculta com Deus. O homem pode rogar a Deus que lhe conceda a F., mas a
possibilidade de rogar não é em si mesma um dom divino? Assim, há na fé uma inegável contradição, que
a torna paradoxal. O homem é colocado num dilema: crer ou não crer. Por um lado, a ele cabe escolher, e
por outro qualquer iniciativa é impossível, porque Deus é tudo, e dele deriva inclusive a fé. Esse conceito
foi substancialmente retomado por Karl Barth, que interpretou a F. como inserção da Eternidade no
tempo, da Transcendência na existência (Comentário à Epístola aos romanos, 1919). Rudolf Bultmann
também atribui a fé à iniciativa divina, apesar de afirmar a exigência de libertar a F., sobretudo cristã, dos
mitos cosmológicos com que ela tradicionalmente aparece unida, procedendo à sua desmitificaçâo (v.). Indo mais longe, Dietrich Bonhoeffer
contrapôs a F. à religião (v.), considerada como expressão mítica e contingente da F., inaceitável nesta
época dominada pelo ra-cionalismo, pela ciência e pela tecnologia. Desse ponto de vista, acentua-se o
caráter prático da F., que se transforma em moral natural e humana, fundada na unidade entre mundo e
Deus, entre humanidade e Cristo (Ética, 1949; Resistência e rendição, 1951). É nesse conceito de F.,
entendida como ação renovadora do mundo humano, que se inspira o panteísmo humanista dos chamados
"novos teólogos" (v. DEUS e DEUS, MORTE DE). Karl Jaspers insistiu na identidade entre existência e fé
sob o aspecto filosófico, mas, na esteira de Kierkegaard, continuou reconhecendo na F. uma relação direta
com a Transcendência (Der phi-losophische Glaube, 1948).
FÉ, FILOSOFIA DA (ai. Glaubensphiloso-phié). Com este nome ou com o de "filosofia do
conhecimento imediato" indica-se a filosofia de um grupo de filósofos alemães da segunda metade do séc.
XVIII, que fizeram parte do Sturm undDrang(y.). As principais figuras desta filosofia foram J. J. Hamann
(1730-88), chamado "o mago do Norte", J. G. Herder (1744-1803) e F. E. Jacobi (1743-1819), a quem se
deve a expressão "filosofia da F.". De Kant, essa filosofia aceitava a doutrina dos limites da razão
somente para afirmar a superioridade da fé sobre a razão. Considerava a F. como uma relação imediata —
portanto não sujeita a incertezas ou dúvidas — com as realidades superiores e especialmente com Deus.
Jacobi expressou essas idéias em Cartas sobre a doutrina de Spinoza a Moisés Mendelssohn (1785), e no
ensaio DavidHume eaF. (1787). Na lógica da Enciclopédia, Hegel considerou a doutrina de Jacobi como
"Terceira posição do pensamento sobre a objetividade", e criticou o imediatismo, que considerou o caráter
fundamental da F. de que falava Jacobi (Ene, §§ 6l;74).
FÉ ANIMAL (in. Animal faittí). Assim San-tayana chamou a crença na realidade produzida no homem
pelas experiências animais: fome, sexo, luta, etc. (Scepticism and Animal Faith, 1923) (v. CRENÇA).
FÉ E CIÊNCIA. V. ESCOLÁSTICA.
FELAPTO. Palavra mnemônica usada pelos escolásticos para indicar o segundo dos seis modos do
silogismo de terceira figura, mais
FELICIDADE
434
FELICIDADE
precisamente o que consiste em uma premissa universal negativa, uma premissa universal afirmativa e
uma conclusão parcial negativa, como no exemplo: "Nenhum homem é pedra; todo homem é animal;
logo algum animal não é pedra" (PEDRO HISPANO, Summ. log. 4. 14).
FELICIDADE (gr. eòôcciuovíoc; lat. Feliciteis, in. Happiness; fr. Bonheur, ai. Glückseligkeit; it.
Felicita). Em geral, estado de satisfação devido à situação no mundo. Por esta relação com a situação, a
noção de F. difere de bem-aventu-rança{v.), que é o ideal de satisfação independente da relação do
homem com o mundo, por isso limitada à esfera contemplativa ou religiosa. O conceito de F. é humano e
mundano. Nasceu na Grécia antiga, onde Tales julgava feliz "quem tem corpo são e forte, boa sorte e
alma bem formada" (DIÓG. L., I, 1, 37). A boa saúde, a boa sorte na vida e o sucesso da formação
individual, que constituem os elementos da F., são inerentes à situação do homem no mundo e entre os
outros homens. Demócrito, de maneira quase análoga, definia a F. como "a medida do prazer e a
proporção da vida", que era manter-se afastado dos defeitos e dos excessos (Fr. 191, Diels). De qualquer
maneira, F. e infelicidade pertencem à alma {Fr., 170, Diels), uma vez que somente a alma "é morada do
nosso destino" {Fr. 171, Diels). A relação que muitas vezes se estabeleceu entre F. e prazer tem o mesmo
significado, ou seja, é a conexão entre o estado definido como F. e a relação com o próprio corpo, com as
coisas e com os homens. A tese segundo a qual a F. é o sistema dos prazeres foi expressa com toda a
clareza por Aristipo, que fez a distinção entre prazer e felicidade. Somente o prazer é bem, porque só ele é
desejado por si mesmo, sendo portanto fim em si. "O fim é o prazer particular, a F. é o sistema dos
prazeres particulares, em que se somam também os passados e os futuros" (DIÓG. L., II, 8, 87). Egesias,
que negava a possibilidade de F., negava-a justamente pelo fato de que os prazeres são demasiado raros e
passageiros {Ibid., II, 8, 94). Por outro lado, Platão negava que a felicidade consistisse no prazer e a
julgava, ao contrário, relacionada com a virtude. "Os felizes são felizes por possuírem a justiça e a
temperança; os infelizes são infelizes por possuírem a maldade", diz ele em Górgias(508 b); no Banquete
(202 c) são chamados de felizes "aqueles que possuem bondade e beleza". Mas justiça e temperança são
virtudes; "possuir bondade e beleza" significa ainda ser virtuoso;
e a virtude outra coisa não é, segundo Platão, senão a capacidade da alma de cumprir seu próprio dever,
ou seja, de dirigir o homem da melhor maneira {Rep., I, 353 d. ss.). Portanto, também a noção platônica
de F. é relativa à situação do homem no mundo e aos deveres que aqui lhe cabem. Quanto a Aristóteles,
insistiu no caráter contemplativo da F. em seu grau superior, a bem-aventurança (v.), mas apresentou uma
noção mais ampla de F., definin-do-a como "certa atividade da alma, realizada em conformidade com a
virtude" {Et. nic, I, 13, 1102 b); ela não exclui, mas inclui a satisfação das necessidades e das aspirações
mundanas. As pessoas felizes, segundo Aristóteles, devem possuir as três espécies de bens que se podem
distinguir, quais sejam, os exteriores, os do corpo e os da alma (Jbid., 1153 b, 17 ss.; Pol., VII, 1, 1323 a
22). É verdade que "os bens exteriores, assim como qualquer instrumento, têm um limite dentro do qual
desempenham sua função utilitária de instrumentos, mas além do qual se tornam prejudiciais ou inúteis
para quem os possui. Os bens espirituais, ao contrário, quanto mais abundantes, mais úteis". Mas em geral
pode-se dizer que "cada qual merece a F., na medida da virtude, do tino e da capacidade de bem agir que
possui, podendo se tomar como exemplo a divindade, que é feliz e bem-aventurada não graças aos bens
exteriores, mas por si mesma, por aquilo que ela é, por natureza" {Pol., VII, 1, 1323 b 8). A F. é portanto
mais acessível ao sábio que mais facilmente se basta a si mesmo {Et. nic, X, 7, 1777, a 25), mas é a isso
que devem tender todos os homens e as cidades.
A ética pós-aristotélica, ao contrário, ocupa-se exclusivamente da F. do sábio; a nítida distinção feita
pelos estóicos entre sábios e loucos torna obviamente inútil preocupar-se com estes últimos. O sábio é
aquele que basta a si mesmo e que acha a F. em si mesmo, o que melhor se chamaria bem-aventurança.
Plotino censura na noção aristotélica de F. o fato de ela consistir em que cada ser desempenhe sua função
e atinja seus próprios objetivos, podendo ser perfeitamente aplicada não só aos homens, mas também aos
animais e às plantas {Enn., I, 4,1 ss.). Nos estóicos Plotino critica a incoerência que consiste em
considerar a F. independente das coisas externas ao mesmo tempo que aponta essas mesmas coisas como
objeto da razão. Para Plotino, a F. é a própria vida; por isso, enquanto pertence a todos os seres vi-
FELICIDADE
435
FELICIDADE
vos, pertence eminentemente à vida mais completa e perfeita, que é a da inteligência pura. O sábio, em
quem tal vida se realiza, é um bem para si mesmo: só tem necessidade de si para ser feliz e não busca as
outras coisas ou então as busca somente porque são indispensáveis às coisas que lhe pertencem (por
exemplo, ao corpo), e não a ele mesmo. A F. do sábio não pode ser destruída pela má sorte, pelas doenças
físicas ou mentais, nem por qualquer circunstância desfavorável, assim como não pode ser aumentada
pelas circunstâncias favoráveis (Ibid., I, 4, 5 ss.): por isso, é a própria bem-aventurança de que gozam os
deuses. A filosofia medieval adotou e enfatizou esses conceitos, adaptando a eles por vezes (como fez S.
Tomás) a própria doutrina aristotélica, mas es-tendendo-os à totalidade dos homens.
A partir do humanismo, a noção de F. começa a ser estritamente ligada à de prazer, como já havia
ocorrido com os cirenaicos e com os epicuristas. A obra De voluptate de Lourenço Valia gira em torno
dessa conexão, que se acentua no mundo moderno. Locke e Leibniz concordam nesse aspecto. Locke diz
que a F. "é o maior prazer de que somos capazes, e a infelicidade o maior sofrimento; o grau ínfimo
daquilo que pode ser chamado de F. é estar tão livre de sofrimentos e ter tanto prazer presente que não é
possível contentar-se com menos" {Ensaio, II, 21, 43). E Leibniz: "Creio que a F. é um prazer durável, o
que não poderia acontecer sem o progresso contínuo em direção a novos prazeres" {Nouv. ess., II, 21, 42).
A noção de F. como prazer ou como soma, ou melhor, "sistema" de prazeres, segundo a expressão do
velho Aristipo, começa a adquirir significado social com Hume: a F. torna-se um prazer que pode ser
difundido, o prazer do maior número, e dessa forma a noção de F. torna-se a base do movimento
reformador inglês do séc. XTX. Entrementes, Kant, que julgava impossível considerar a F. como
fundamento da vida moral, esclarecia eficazmente a noção de F. sem recorrer à de prazer: "A F. é a
condição do ser racional no mundo, para quem, ao longo da vida, tudo acontece de acordo com seu desejo
e vontade" {Crít. R. Prática, Dialética, seç. 5). Trata-se, portanto, de um conceito que o homem não haure
dos instintos e que não deriva daquilo que nele é animalidade, mas que ele constrói para si de maneiras
diferentes, que ele pode alterar com freqüência, muitas vezes arbitrariamente {Crít. do Juízo, § 83). Kant
julga
que a F. é parte integrante do bem supremo, que para o homem é a síntese de virtude e felicidade. Mas
como tal o bem supremo não é realizável no mundo natural, seja porque nada garante neste mundo a
perfeita proporção entre moralidade e F., em que consiste o bem supremo, seja porque nada garante a
satisfação plena de todos os desejos e tendências do ser racional, em que consiste a F. Portanto, para Kant,
a F. é impossível no mundo natural, sendo transferida para um mundo inteligível, que é "o reino da graça"
{Crít. R. Pura, Doutrina do Método, cap. II, seç. 2). Em primeiro lugar, Kant teve o mérito de enunciar
com rigor a noção de F. e, em segundo lugar, de mostrar que essa noção é empiricamente impossível,
irrea-lizável. De fato, não é possível que sejam satisfeitas todas as tendências, inclinações e voli-ções do
homem, porque de um lado a natureza não se preocupa em vir ao encontro do homem, com vistas a essa
satisfação total, e de outro porque as próprias necessidades e inclinações nunca se aquietam no repouso da
satisfação {Crít. do Juízo, § 83). Associada ao conceito de satisfação absoluta e total — em que Hegel
também insiste {Ene, § 479-480) —, a F. torna-se o ideal de um estado ou condição inatingível, a não ser
no mundo sobrenatural e por intervenção de um princípio onipotente. Não é de admirar, portanto, que
toda a parte da filosofia moderna que passou pelo filtro do kan-tismo tenha desprezado a noção de F. e
não a tenha utilizado na análise daquilo que a existência humana é ou deve ser. Todavia, com Hume, o
empirismo inglês havia iniciado (como já foi dito) um novo desenvolvimento dessa noção em sentido
social, o que é próprio do utilitarismo. Hume observara que, "quando se elogia alguma pessoa bondosa e
humana", nunca se deixa de dar destaque "à F. e satisfação da sociedade humana em poder contar com sua
ação e com seus bons serviços" {Inc. Cone. Morais, II, 2). Portanto, identificara o que é moralmente bom
com o que é útil e benéfico. Depois dele, Bentham retomava como fundamento da moral a fórmula de
Beccaria: "A maior felicidade possível, no maior número de pessoas", fórmula em que também se
inspiraram James Mill e Stuart Mill, acentuando cada vez mais o seu caráter social. Nesses autores não se
encontra um conceito rigoroso de F., mas tampouco se encontra neles a rigidez e o absolutismo que essa
noção sofrerá com Kant, o que a tornara impraticável. Eles sabem que a
>
FELICIDADE
436
FENÔMENO
F., por depender de condições e circunstâncias objetivas além das atitudes do homem, não pode pertencer
ao homem em sua individualidade, mas só ao homem enquanto membro de um mundo social. E embora
relacionem F. com prazer, distinguem os vários tipos de prazer, admitindo a identificação apenas com os
prazeres socialmente partilháveis. Na tradição cultural inglesa e americana, a noção de F. permaneceu
viva com essa forma e, além do pensamento filosófico, inspirou o pensamento social e político. O
princípio da maior felicidade continuou por muito tempo sendo a base do liberalismo moderno de cunho
anglo-saxônico. A Constituição americana incluiu entre os direitos naturais e inalienáveis do homem "a
busca da F.". A esta tradição liga-se Bertrand Russell, que foi um dos poucos a defender a noção de F.,
ainda que numa obra de caráter popular {A conquista da F., 1930). O que Russell acrescenta de novo à
noção tradicional de F. (além de uma convincente análise das situações atuais de "infelicidade") é uma
condição que ele julga indispensável: a multiplicidade dos interesses, das relações do homem com as
coisas e com os outros homens, portanto a eliminação do "egocentrismo", do fechamento em si mesmo e
nas paixões pessoais. Trata-se de uma condição que coloca a F. em posição diametralmente oposta à da
auto-suficiência do sábio, que os antigos consideravam o grau mais elevado de F.
Por outro lado, não conseguindo mais utilizar a noçào de F. como fundamento ou princípio da vida moral,
os filósofos desinteressaram-se dessa noção. Para esse desinteresse também contribuiu a tendência, que
nasceu com o Romantismo e predominou por muito tempo, de exaltar a infelicidade, a dor, os estados de
perturbação e insatisfação como experiências positivas e intrinsecamente regozijadoras. Com efeito, nos
graus e nas formas em que pode ser considerada realizável, a F. é um estado de calma, uma condição de
equilíbrio pelo menos relativo, de satisfação parcial e todavia efetiva, que é exatamente o oposto da
inquietude romântica. A filosofia contemporânea ainda não se deteve para analisar a noção de F. nos limi-
~s em que ela pode servir para descrever situações humanas e orientá-las. Contudo, a importância dessa
noção é hoje evidenciada pelo interesse que algumas noções negativas como "frustração", "insatisfação",
etc, têm na psicologia individual e social, normal e patológica. Estas noções e outras análogas indicam, pois, a ausência mais ou menos grave da condição de
satisfação pelo menos relativa que a palavra F. tradicionalmente designa. A importância destas para a
análise de estados ou condições mais ou menos patológicos evidencia a importância que a noção positiva
correspondente tem para as condições normais da vida humana.
FENOMÊNICO, FENOMENOLÓGICO (in. Phenomenal, phenomenological; fr. Phéno-ménal,
phénomenologique-, ai. Phànomenal, Phãnomenologisch; it. Fenomenico, fenomeno-logicó).A distinção
entre os dois adjetivos, que não devem ser confundidos, foi bem exposta por Heidegger: "Por fenomenico
entende-se aquilo que é dado e pode ser explicitado segundo o modo de encontro com os fenômenos, daí
falar-se em estruturas fenomênicas. Fenomenológico é tudo aquilo que é inerente ao modo de demonstrar
e de explicitar e tudo aquilo que exprime a conceituação implícita na presente investigação" (Sein und
Zeit, § 7). Em outros termos, pode-se falar de um "objeto fenomenico" ou "realidade fenomênica", mas
deve-se falar em "investigação fenomenológica", em "epoché fenomenológica", etc. O adjetivo
fenomenico qualifica o objeto que se revela no fenômeno, o adjetivo fenomenológico qualifica a
manifestação do objeto em sua "essência", bem como a busca que possibilita essa manifestação.
FENOMENISMO (in. Phenomenalism; fr. Phénoménisme, ai. Phãnomenalismus; it. Fe-nomenismó).
Doutrina segundo a qual o conhecimento humano limita-se aos fenômenos, no segundo sentido do termo.
Essa palavra designa tanto as filosofias que também admitem a existência de uma realidade diferente do
fenômeno (como as de Kant ou Spencer) quanto as filosofias que negam qualquer realidade que não seja
fenômeno (Renouvier, Hodgson). Esse termo foi cunhado no séc. XIX, mas a filosofia fenomenista
nasceu no séc. XVIII; é a filosofia do Iluminismo.
FENÔMENO (gr. xà (pcavóuxva; in. Phe-nomenon; fr. Phénomene-, ai. Phãnomen; it. fenômeno). 1. O
mesmo que aparência (v.). Nesse sentido o F. é a aparência sensível que se contrapõe à realidade,
podendo ser considerado manifestação desta, ou que se contrapõe ao fato, do qual pode ser considerado
idêntico (v. FATO). É este o sentido que essa palavra normalmente assume na linguagem comum
FENÔMENO
437
FENOMENOLOGIA
(mesmo quando esta faz alusão a uma aparência paradoxal e insólita, como por exemplo a monstruosa),
sendo também o significado encontrado em Bacon (no De interpretatione naturaeproemium, 1603), em
Descartes iPrinc. phil., III, 4), em Hobbes (Decorp., 25, § D e em Wolff (Cosm., § 225).
2. A partir do séc. XVIII, em virtude da reabilitação da aparência como manifestação da realidade aos
sentidos e ao intelecto do homem, a palavra F. começa a designar o objeto específico do conhecimento
humano que aparece sob condições particulares, características da estrutura cognoscitiva do homem.
Neste sentido, a noção de F. é corre-lativa com a de coisa em si(y.), a ela remetendo por oposição
contrária. À medida que se reconhece que os objetos do conhecimento se revelam segundo os modos e as
formas próprias da estrutura cognoscitiva do homem, e que por isso eles não são as "coisas em si
mesmas", as coisas como são ou poderiam ser fora da relação cognoscitiva com o homem, o objeto do
conhecimento humano configura-se como F., ou seja, como coisa aparente nessas condições, o que
obviamente não significa coisa enganosa ou ilusória. É na filosofia do séc. XVIII que se dá este passo.
Hobbes, que, em princípio, reavaliou o F. como aparência geral (De corp. 25, § 1; V. APARÊNCIA), não
atribuiu qualquer significação limitativa ou corretiva à palavra F., com a qual designa qualquer objeto
possível do conhecimento humano. Mau-pertuis, que nas Cartas de 1752 afirma que a extensão é um
fenômeno como todas as coisas corpóreas (CEuvres, 1756, II, 198 .ss.), exprime contudo a convicção,
bastante comum em seu tempo, da limitação do conhecimento humano, e foi desta convicção que Kant
partiu para sua distinção entre F. e númeno. Segundo Kant, o F. é, em geral, o objeto do conhecimento
enquanto condicionado pelas formas da intuição (tempo e espaço) e pelas categorias do intelecto. Diz: "F.
é o que não pertence ao objeto em si mesmo, mas se encontra sempre na relação entre ele e o sujeito, e é
inseparável da representação que este tem dele. Por isso mesmo, os predicados do espaço e do tempo são
atribuídos aos objetos dos sentidos como tais, e nisso não há ilusão. Ao contrário, se atribuo à rosa em si a
cor vermelha, a Saturno os anéis ou a todos os objetos externos em si a extensão, sem levar em conta a
relação desses
objetos com o sujeito e sem limitar meu juízo a esta relação, então nasce a ilusão" (Crít. R. Pura, Estética
Transcendental, § 8, Obs. ger., nota). Tal significado, no qual se estabelecia um filosofema muito
difundido no séc. XVIII, permaneceu como um dos significados fundamentais desse termo, mais
precisamente aquele com relação ao qual se fala de fenomenismo. Esse significado caracteriza-se pela
limitação de validade do conhecimento humano. Neste sentido, F. não é o objeto que se manifesta, mas o
objeto que se manifesta ao homem nas condições limitativas específicas que essa relação implica.
3. Todavia, na filosofia contemporânea, a partir das Investigações lógicas (1900-1901) de Husserl, F.
começou a indicar não só o que aparece ou se manifesta ao homem em condições particulares, mas aquilo
que aparece ou se manifesta em si mesmo, como é em si, na sua essência. É verdade que para Husserl o
fenômeno neste sentido não é uma manifestação natural ou espontânea da coisa: exige outras condições,
que são impostas pela investigação filosófica como fenomenologia (v.). O sentido fenomenológico de F.
como revelação de essência (HUSSERL, Ideen, I, Intr.) soma-se portanto ao significado crítico de F., sem
contudo eliminá-lo. Nele insistiu Heidegger, considerando o F. como o aparecer puro e simples do ser em
si e distin-guindo-o assim da simples aparência (Erschei-nung ou blosse Erscheinung), que é indício do
ser ou alusão ao ser (que contudo permanece escondido) e que, por isso, é o não manifestar-se ou o
esconder-se do ser (Sein und Zeit, § 7, A). Obviamente neste sentido a noção de F. não se opõe mais à de
coisa em si: o F. é o em si da coisa em sua manifestação, não constituindo, pois, uma aparência da coisa,
mas identificando-se com seu ser.
Podemos agora resumir da seguinte maneira os três significados atualmente em uso da palavra F.: 1)
aparência pura e simples (ou fato puro e simples), considerada ou não como manifestação da realidade ou
fato real; 2) objeto do conhecimento humano, qualificado e delimitado pela relação com o homem; 3)
revelação do objeto em si.
FENOMENOLOGIA (in. Phenomenology, fr. Phénoménologie, ai. Phãnomenologie, it.
Fenomenologia). Descrição daquilo que aparece ou ciência que tem como objetivo ou projeto essa
descrição. É provável que esse termo tenha sido cunhado pela escola de Wolff. Lambert uti-
FENOMENOLOGIA
438
FENOMENOLOGIA
liza-o como título da 4a
parte do seu Novo Organon (1764) e com ele entende o estudo das fontes de erro.
Aqui, a aparência, cuja descrição é a F., é entendida como aparência ilusória. Kant, porém, utiliza esse
termo para indicar a parte da teoria do movimento que considera o movimento ou o repouso da matéria
somente em relação com as modalidades em que eles aparecem ao sentido externo (Metaphysische
Aufangsgründe der Natur wissenschaft, 1786, Pref.). Por sua vez, Hegel chamou de "F. do espírito" a
história romanceada da consciência, que, desde suas primeiras aparências sensíveis, consegue aparecer
para si mesma em sua verdadeira natureza, como Consciência Infinita ou Universal. Nesse sentido,
identifica a F. do espírito com o "devir da ciência ou do saber", e nela descobre o caminho através do qual
o indivíduo repercorre os graus de formação do Espírito Universal, como figuras já abandonadas ou
etapas de um caminho já traçado e aplanado (Phãnomen. des Geistes, Pref., ed. Glockner, p. 31).
Hamilton atribuiu outro significado a esse termo (Lectures on Logic, 1859-1860,1, p. 17), o de psicologia
descritiva; foi com tal significado, de pura descrição da aparência psíquica, preliminar à explicação dos
fatos psíquicos, que esse termo foi usado com freqüência pela cultura filosófica alemã da segunda metade
do séc. XIX e nos primeiros anos do séc. XX. Hartmann intitulou F. da consciência
moraKPhânomenologie des sittliche Bewusstseins, 1879) a coletânea de dados empíricos da consciência
moral, independentemente de sua interpretação especulativa. Mas a única noção hoje viva de F. é a
anunciada por Husserl em Investigações lógicas (1900-1901, II, pp. 3 ss.), correlativa ao 3a
significado de
fenômeno e depois desenvolvida por ele mesmo nas obras seguintes. O próprio Husserl preocupou-se em
eliminar a confusão entre psicologia e fenomenologia. Esclareceu que psicologia é a ciência de dados de
fato; os fenômenos que ela considera são acontecimentos reais que, juntamente com os sujeitos a que
pertencem, inserem-se no mundo espácio-temporal. A F. (que ele chama de "pura" ou "transcendental") é
uma ciência de essências (portanto, "eidética") e não de dados de fato, possibilitada apenas pela redução
eidética, cuja tarefa é expurgar os fenômenos psicológicos de suas características reais ou empíricas e
levá-los para o plano da generalidade essencial. A redução eidética, vale dizer, a transformação dos
fenômenos em essências,
também é redução fenomenológica em sentido estrito, porque transforma esses fenômenos em
irrealidadesUdeen, I, Intr.). Com esse significado, a F. constitui uma corrente filosófica particular, que
pratica a filosofia como investigação fenomenológica, ou seja, valendo-se da redução fenomenológica e
da epoché(v.). Os resultados fundamentais a que esta investigação levou, em Husserl, podem ser
resumidos da maneira seguinte: 1Q
O reconhecimento do caráter intencional da consciência (v.), em
virtude do qual a consciência é um movimento de transcendência em direção ao objeto e o objeto se dá
ou se apresenta à consciência "em carne e osso" ou "pessoalmente"; 2
a
evidência da visão (intuição) do
objeto devida à presença efetiva do objeto; 3S
generalização da noção de objeto, que compreende não
somente as coisas materiais, mas também as formas de categorias, as essências e os "objetos ideais" em
geral Qdeen, I, § 15); 4Q
caráter privilegiado da "percepção imanente", ou seja, da consciência que o eu
tem das sua,s próprias experiências, porquanto nessa percepção aparecer e ser coincidem perfeitamente,
ao passo que não coincidem na intuição do objeto externo, que nunca se identifica com suas aparições à
consciência, mas permanece além delas (Ibid., §38).
Nem todos estes princípios são aceitos pelos pensadores contemporâneos que se valem da investigação
fenomenológica: apenas o primeiro deles (caráter intencional da consciência, em virtude do qual o objeto
é transcendente em relação a ela e todavia presente "em carne e osso") tem crédito não só entre esses
pensadores como também junto a grande número de filósofos contemporâneos. Foi com base na
investigação fenomenológica que Nicolai Hartmann fundou seu realismo (v.) metafísico; o mesmo
fizeram Scheler para a análise das emoções (v.) e Heidegger (como método para sua ontologia). Este
último expressa com toda a clareza o caráter próprio da F. quando afirma: "A palavra 'F.' significa antes de
mais nada um conceito de método. Ela não caracteriza a consistência de fato do objeto da indagação
filosófica, mas seu como... Esse termo expressa um lema que poderia ser assim formulado: às coisas
mesmas! — por oposição às construções soltas no ar e aos achados casuais; em oposição à admissão de
conceitos apenas aparentemente verificados e aos falsos problemas que se impõem de geração em geração
como pro-
FENÔMENO ORIGINÁRIO
439
FEncmsMo
blemas verdadeiros" (Sein und Zeit, § 7). Portanto, o que a F. mostra é aquilo que, acima de tudo e na
maior parte dos casos, não se manifesta, o que está escondido, mas que é capaz de expressar o sentido e o
fundamento daquilo que, acima de tudo, e na maior parte dos casos, se manifesta. Nesse sentido, a F. é a
única ontologia possível {lbid., § 7 C). A F. é entendida de maneira análoga por Sartre (Z 'être et le néant,
Intr., §§ 1-2) e por Merleau-Ponty (Pbénoménologie de Ia perception, Pref.). A formulação
fenomenológica da filosofia não implica, portanto, a redução da existência à aparência e não pode ser
confundida de maneira nenhuma com o fenomenismo (v:). O próprio conceito de fenômeno a que se faz
referência é diferente neste caso. Por outro lado, tampouco implica a eliminação da diferença entre
parecer e ser, embora esse antigo dualismo seja eliminado. Sartre diz: "O fenômeno de ser exige a
transfenomenalidade do ser, Isto não quer dizer que o ser está escondido atrás dos fenômenos (vimos que
o fenômeno não pode mascarar o ser), nem que o fenômeno é uma aparência que remete a um ser distinto
(só enquanto aparência o fenômeno é, ou seja, ele se indica sobre o fundamento do ser). Segue-se que o
ser do fenômeno, conquanto coextensivo ao fenômeno, deve escapar à condição fenomênica — de só
existir na medida em que se nos revela — e, por conseguinte, excede e fundamenta o conhecimento que
se tem dele" (Vêtreetle néant, Intr., § 2). A relação entre aparência e ser, na ontologia fenomenológica,
pode ser definida ou analisada de maneiras diferentes, mas não se amolda à tradição que relaciona
aparência e realidade.
FENÔMENO ORIGINÁRIO. V. URPHÀNO
MENON.
FERIO. Palavra mnemônica usada pelos escolásticos para indicar o quarto modo da primeira figura do
silogismo, mais precisamente o que consta de uma premissa universal negativa, de uma premissa
particular afirmativa e de uma conclusão particular negativa, como no exemplo "Nenhum animal é pedra;
alguns homens são animais; logo, alguns homens não são pedra" (Pedro Hispano, Summ. log., 4.07).
FERISON. Palavra mnemônica usada pelos escolásticos para indicar o sexto dos seis modos do
silogismo de terceira figura, mais precisamente o que consta de uma premissa universal negativa, de uma
premissa particular afirmativa e de uma conclusão particular negativa, como no exemplo: "Nenhum homem é pedra; alguns homens são animais; logo, alguns animais
não são pedra" (PEDRO HISPANO, Summ. log., 4. 15).
FESPAMO. Palavra mnemônica usada pela Lógica de Port-Royal para indicar o oitavo modo do
silogismo de primeira figura (isto é, Fapesmó), com a modificação que consiste em tomar por premissa
maior a proposição em que está contido o predicado da conclusão. O exemplo é o seguinte: "Nenhuma
virtude é uma qualidade natural; toda qualidade natural tem a Deus por primeiro autor; logo, há
qualidades naturais que têm Deus por autor e não são virtudes" (ARNAULD, Log., III, 8).
FESTINO. Palavra mnemônica usada pelos escolásticos para indicar o terceiro dos quatro modos da
segunda figura do silogismo, mais precisamente o que consta de uma premissa universal negativa, de uma
premissa particular afirmativa e de uma conclusão particular negativa, como no exemplo: "Nenhuma
pedra é animal; alguns homens são animais; logo, alguns homens não são pedra" (PEDRO HISPANO,
Summ. log., 4.11).
FETICHISMO (in. Fetisbism; fr. Fétichisme, ai. Fetichismus; it. Feticismó). Crença no poder
sobrenatural ou mágico de certos objetos materiais (it. feticci; v. port. feitiço = artificial). Mais
geralmente, atitude de quem considera animados os objetos materiais, e os tipos de religião ou de filosofia
baseados nesta crença. Neste segundo sentido, esse termo não é mais usado, por ter sido substituído por
animismo (v.). Em geral, os filósofos empregam essa palavra em sentido depreciativo; por exemplo, Mach
chamou de F. a crença nos conceitos de causa e de vontade iPopulárwissenschaftliche Vorlesungen, 1896,
p. 269). Comte exaltara o F., por encontrar nele alguma afinidade com o positivismo, porquanto ambos
vêem em todos os seres uma atividade análoga ou semelhante à humana, e assim estabelecem a unidade
fundamental do mundo que se expressa na teoria do Grande Ser (Politiquepositive, III, p. 87; IV, p. 44).
Kant, por outro lado, chamou F. a religião mágica, de quem realiza certas ações que por si nada contêm
de agradável a Deus, nada têm de moral, com o fim de obter favores divinos e satisfazer desejos pessoais.
Neste sentido, o sacerdócio é "a constituição de uma igreja em que reina o culto fetichista, onde o
fundamento e a essência do culto não são constituídos por princípios de moralidade, mas por disposições
FICÇÃO
440
FIGURA
estatutárias, regras de fé e observâncias" (Reli-gion, IV, seç. 2, § 3)-
FICÇÃO (in. Fiction; fr. Fiction; ai. Fiktion; it. Finzioné). Uma filosofia da F., ou ficcionis-mo
{Fiktionalismus), é a "Filosofia do como se" (1911) de Vaihinger, que se propõe demonstrar que todos os
conceitos, as categorias, os princípios e as hipóteses de que lançam mão o saber comum, as ciências e a
filosofia são F. destituídas de qualquer validade teórica, freqüentemente contraditórias, que são aceitas e
conservadas enquanto úteis. Vaihinger não acha que essa situação seja patológica, mas normal, e que a
única alternativa viável é utilizar as F. conscienciosamente. Está claro que, nesse sentido, a F. não é uma
hipótese, pois não exige verificação; aproxima-se mais do conceito de mitoiy). A filosofia da F. é um dos
desdobramentos do conceito kantiano do como se (v.) na filosofia contemporânea.
FICHTISMO. V. ROMANTISMO.
FIDEÍSMO (in Fideism, fr. Fidéisme, ai. Fideismus-, it. Fideismó). Designou-se com este termo a
concepção filosófica e religiosa defendida nas primeiras décadas do séc. XIX pelo abade Bautain, por
Huet, por Lamennais (este último especialmente na obra Essais sur l'in-différence en matière de religion,
1817-1823); essa concepção consiste em opor à razão "individual" uma razão "comum", que seria uma
espécie de intuição das verdades fundamentais, comum a todos os homens. Esta intuição teria origem
numa revelação primitiva que se transmitiria através da tradição eclesiástica; assim, serviria de
fundamento da fé católica. Essa doutrina visava justificar o primado da tradição eclesiástica. Na realidade,
negava à Igreja a prerrogativa de ser a única depositária da tradição autêntica e negava à tradição o apoio
da razão. Depois da condenação da Igreja (1834), entre os escritores católicos esse termo assumiu
conotação pejorativa, mas continua sendo usado até hoje para indicar, em geral, quaisquer atitudes que
considerem a fé como instrumento de conhecimento superior à razão e independente dela.
FIGURA (gr. a^riLicc; lat. Figura-, in. Figure, fr. Figure, ai. Figur, Gestalt; it. Figura). 1. Com este
termo são designadas tradicionalmente as formas fundamentais do silogismo, diferentes dos modos (v.),
que são especificações de tais formas. Aristóteles distinguiu as diferentes figuras do silogismo segundo a
função do termo médio, que serve para mostrar a inerência do
predicado ao sujeito da conclusão. Na primeira F., o termo médio serve de sujeito na premissa maior e de
predicado na premissa menor. Na segunda F., serve de predicado em ambas as premissas, uma das quais
negativa, e a conclusão também é negativa. Na terceira F., serve de objeto em ambas as premissas e a
conclusão é particular. A tradição atribui a Galeno, famoso médico e filósofo aristotélico do séc. II d.C, a
distinção de uma quarta F., em que o termo médio serve de predicado na premissa maior e de sujeito na
premissa menor: os modos dessa F. haviam sido incluídos por Aristóteles entre os da primeira. A
separação foi feita porque se definiu como premissa maior a que compreende o predicado da conclusão, e
como premissa menor a que compreende o sujeito da conclusão (PRANTL, Geschichte der Logik, I, pp.
570 ss.). Cada F., por sua vez, divide-se em certo número de modos, conforme a qualidade e quantidade
das proposições que constituem as premissas e a conclusão, ou seja, segundo as premissas e a conclusão,
consideradas individualmente, sejam universais ou particulares, afirmativas ou negativas. Como na
Escolástica se usou a letra A para indicar a proposição universal afirmativa, a letra E para indicar a
proposição universal negativa, a letra /para indicar a proposição particular afirmativa e a letra O para
indicar a proposição particular negativa (daí os versos: A affirmat, negat E, sed uníversalüer amhae,
Ifirmat, negat O, sed particulariter ambaé), formaram-se palavras mnemônicas para indicar os vários
modos do silogismo, palavras nas quais as duas primeiras vogais indicam as premissas e a terceira, a
conclusão. Assim, os nove modos da primeira F. foram indicados pelas palavras Barbara, Cela-rent,
Darii, Ferio, Baralipton, Celantes, Debitis, Fapesmo, Frisemorum. Os quatro modos da segunda F. foram
indicados pelas palavras Cesare, Camestres, Festino, Baroco. Os seis modos da terceira F. foram
indicados pelas palavras Darapti, Felapto, Disamis, Datisi, Bocardo, Fe-rison. Os últimos quatro modos
da primeira F. são os que se atribuem à quarta F., quando distinguida. As iniciais das palavras
mnemônicas também têm significado. Todos os modos indicados por uma palavra que comece com B
podem ser reduzidos ao primeiro modo da primeira F.; os indicados por uma palavra que comece com C
são redutíveis ao segundo modo da primeira F.; os indicados por uma palavra com D inicial são redutíveis
ao terceiro modo da primeira F.; e os indicados por uma palavra
FIGURAE DICTIONIS (FALÁCIA)
441
FILOLOGIA
com .F inicial reduzem-se ao quarto modo da primeira F. (cf., sobre o uso das palavras mnemônicas,
PEDRO HISPANO, Summ. log., 4.18 ss.). Para cada modo, ver as palavras relativas.
2. Com esse mesmo termo, que traduz o alemão Gestalt, indicam-se as determinações da fenomenologia
do espírito de Hegel. Tais determinações são "figuras da consciência" (Phãnomen. des Geistes, pref., ed.
Glockner, pp. 36 e passini) ou "graus do caminho já traçado e batido" pelo Espírito Universal, ou seja,
etapas através das quais a consciência chegou à consciência de si como Consciência Infinita e Absoluta.
Como se sabe, entre as F. da fenomenologia Hegel inclui também criações fantasistas, o que estabelece
uma diferença entre essas F. e as categorias, que são objeto da Enciclopédia. Com efeito, as categorias
são determinações necessárias e necessariamente reais.
FIGURAE DICTIONIS (FALÁCIA). Para-logismo in dictione (v. FALÁCIA), que consiste no uso
gramatical errôneo nas premissas, gerando conseqüências paradoxais ou gramaticalmente impossíveis (
"Omnis homo est albus, mulier est homo, ergo mulier est albus"). Cf. ARISTÓTELES, El. sof., 4, 166 b 10;
PEDRO HISPANO, Summ. log., 7.34 ss.; JUNGIUS, Lógica hamb., VI, 7, etc.
G. P.
FILANTROPIA (gí. cpilav6po7tí(X; lat. Phi-tanthropia; in. Philanthropy, fr. Philanthropie, ai.
Philanthropie, it. Filantropia). Amizade do homem para com outro homem. Essa palavra foi assim
entendida por ARISTÓTELES (Et. nic, VIII, 1, 1155, a. 20) e pelos estóicos, que atribuíram essa amizade ao
vínculo natural, graças ao qual toda a humanidade constitui um único organismo. "Daí deriva", diz
Cícero, "que também é natural a solidariedade recíproca entre os homens, graças à qual, necessariamente,
um homem não pode ser alheio a outro homem, pelo próprio fato de ser homem" (Definibus, III, 63).
Diógenes Laércio atribui o conceito de F. também a Platão, que o teria dividido em três aspectos:
saudação, ajuda, hospitalidade (DIÓG. L., III, 98). Na linguagem moderna, a significação desse termo
restringiu-se ao segundo dos aspectos distinguidos por Platão. A atitude geral de benevolência para com
os outros homens hoje é freqüentemente chamada de altruísmo (v.).
FILÁUCIA. V. AMOR SUL
FILODOXIA (gr. (piÀoôo^ía; lat. Philodoxia, Philodoxy, fr. Philodoxie, ai. Philodoxie, it. Filodossid). Essa palavra (que significa mais exatamente "amor pela glória") foi usada por Platão para indicar
os "amantes da opinião", em oposição aos "amantes da ciência", que são os filósofos. Os amantes da
opinião são aqueles que gostam de ouvir belas vozes, olhar belas cores, etc, mas que não consideram o
belo como um ser em si (Rep., V, 480 a). Kant chamou de F. a atitude daqueles que rejeitam não só o
método da crítica, por ele proposto, mas também o método da fundamentação de Wolff, que consiste em
proceder estabelecendo princípios, definindo conceitos e buscando o rigor das demonstrações (jCrít. R.
Pura, Prefácio da 2a
edição).
FILOGÊNESE. V. BIOGENÉTICA, LEI.
FILOLOGIA (gr. (piA.OA.07ia; lat. Philologia; in. Philology, fr. Philologie, ai. Philologie, it.
Filologia). Para Platão, essa palavra significava amor aos discursos (Teet., 161 a); na idade moderna,
passou a designar a ciência da palavra, ou melhor, o estudo histórico da língua. Viço opôs F. e filosofia:
"A filosofia contempla a razão de onde parte a ciência do verdadeiro; a F. observa a autoridade, o arbítrio
humano, de onde parte a consciência do certo" (Scienza nuova, dign. 10). Seria tarefa dos filólogos o
"conhecimento das línguas e dos feitos dos povos". F. e filosofia completam-se no sentido de que os
filósofos deveriam "conferir" suas razões com a autoridade dos filólogos, e os filólogos deveriam
"confirmar" sua autoridade com a razão dos filósofos. No conceito moderno, F. é a ciência que tem por
objetivo a reconstituição histórica da vida do passado através da língua, portanto dos seus documentos
literários. Por conseguinte, os projetos e os resultados dessa ciência, do modo como ela se formou,
sobretudo no séc. XLX, vão muito além da humilde tarefa à qual desejaram limitá-la os filósofos do
idealismo romântico. Hegel já se opunha aos "filólogos", historiadores que faziam seu trabalho em nome
da história filosófica, única história capaz de descobrir apriorio plano providencial do mundo
(Philosophie der Geschichte, ed. Lasson, pp. 8 ss.). No mesmo sentido, Croce chamava de história
filológica a história dos historiadores, à qual contrapunha a história "especulativa", que identificava com a
filosofia (CROCE, Teoria e storia delia storiografia, 1917; La storia comepensiero e come azione, 1938).
Na realidade, a história filológica é a história dos historiadores, ao passo que a história especulativa nada
mais é que a concepção providencialista do mundo histórico, que nada
FILOSOFEMA
442
FILOSOFIA
tem a ver com a historiografia científica (v. HISTORIOGRAFIA). O adjetivo filológico não pode sequer ser
usado para designar formas monótonas e mal realizadas de historiografia, pois a F. não é em nada
responsável por elas. Tampouco a função de conservação e recons-tituição do material documentário e
das fontes, que Nietzsche chamou de história arqueológica (v.), é um tipo inferior de história, porque só é
possível quando um interesse inteligente guia as escolhas oportunas e as torna úteis à tarefa da crítica e da
reconstituição históricas.
FILOSOFEMA (gr. (piAoGÓ<pr|ua; lat. Phi-losophema; in. Philosopheme, fr. Philosophème, ai.
Phüosophem, it. Filosofemd). Em geral, discurso filosófico. Na lógica de ARISTÓTELES (Top., VIII, 11,
162 a 15) é o "raciocínio demonstrativo". Fora da lógica: conceito ou lugar-comum filosófico. Neste
segundo sentido é usado pelo próprio ARISTÓTELES (De cael, II, 13, 294 a 19) e pela tradição posterior.
G. P.-N. A.
FILOSOFIA (gr. (piÀ.oooq)í(X; lat. Philosophia; in. Philosophy, fr. Pbilosophie, ai. Philosophie, it.
Filosofia). A disparidade das F. tem por reflexo, obviamente, a disparidade de significações de "F.", o que
não impede reconhecer nelas algumas constantes. Destas, a que mais se presta a relacionar e articular os
diferentes significados desse termo é a definição contida no Eutidemo de Platão: F. é o uso do saber em
proveito do homem. Platão observa que de nada serviria possuir a capacidade de transformar pedras em
ouro a quem não soubesse utilizar o ouro, de nada serviria uma ciência que tornasse imortal a quem não
soubesse utilizar a imortalidade, e assim por diante. É necessária, portanto, uma ciência em que
coincidam fazer e saber utilizar o que é feito, e esta ciência é a F. (Eutid., 288 e 290 d). Segundo esse
conceito, a F. implica: ls posse ou aquisição de um conhecimento que seja, ao mesmo tempo, o mais
válido e o mais amplo possível; 2a
uso desse conhecimento em benefício do homem. Esses dois elementos
recorrem freqüentemente nas definições de F. em épocas diversas e sob diferentes pontos de vista. São
reconhecíveis, por exemplo, na definição de Descartes, segundo a qual "esta palavra significa o estudo da
sabedoria, e por sabedoria não se entende somente a prudência nas coisas, mas um perfeito conhecimento
de todas as coisas que o homem pode conhecer, tanto para a conduta de sua vida quanto para a
conservação de sua saúde e a invenção de todas as artes" (Princ. phil., Pref.). Encontram-se
igualmente na definição de Hobbes, segundo a qual a F. é, por um lado, o conhecimento causai e, por
outro, a utilização desse conhecimento em benefício do homem (De corp., I, § 2, 6), bem como na de
Kant, que define o conceito cósmico da F. (o conceito que interessa necessariamente a todos os homens)
como o de "ciência da relação do conhecimento à finalidade essencial da razão humana" (Crít. R. Pura,
Doutr. transe, do método, cap. III). Essa finalidade essencial é a "felicidade universal"; portanto, a F.
"refere tudo à sabedoria, mas através da ciência" (Ibid., infiné). Não tem significação diferente a definição
de F. dada por Dewey, como "crítica dos valores", no sentido de "crítica das crenças, das instituições, dos
costumes, das políticas, no que se refere seu alcance sobre os bens" (Experience and Nature, p. 407).
Estas definições (aqui citadas apenas como exemplos) podem ser remetidas à fórmula de Platão, citada no
início, cuja vantagem é nada estabelecer sobre a natureza e os limites do saber acessível ao homem x>u
sobre os objetivos para os quais ele pode ser dirigido. Portanto pode-se entender esse saber tanto como
revelação ou posse quanto como aquisição ou busca, podendo-se entender que seu uso deva orientar-se
para a salvação ultraterrena ou terrena do homem, para a aquisição de bens espirituais ou materiais, ou
para a realização de retificações ou mudanças no mundo. Portanto, essa fórmula revela-se igualmente apta
a exprimir as diferentes tarefas que a F. foi assumindo ao longo de sua história. Por exemplo, exprime
igualmente bem tanto a tarefa das F. positivas ou dogmáticas quanto a das F. negativas ou cépticas.
Quando o cepticismo antigo se propõe realizar a imperturbabilidade da alma pela suspensão do
assentimento (SEXTO EMPÍRICO, Pirr. hyp., I, 25-27), não faz senão entender a F. como uso de
determinado conhecimento para conseguir uma vantagem. Analogamente, quando, na F. contemporânea,
Wittgenstein afirma que o propósito da F. é levar ao desaparecimento dos problemas filosóficos, eliminar
a própria F. ou se "curar" dela (Philosophícal Investigations, § 133), não está recorrendo a conceito
diferente de F.: libertar dá F. é a utilidade que o uso do saber (neste caso a retificação lingüística deste)
pode proporcionar.
Os dois elementos encontrados na definição de F. considerada apta a constituir o quadro
FILOSOFIA 443
FILOSOFIA
das principais articulações dos significados desse termo constituem por si mesmos a primeira dessas
articulações. Em outras palavras, é possível distinguir os significados historicamente dados desse termo:
I
a
com relação à natureza e validade do conhecimento ao qual a F. se refere; 2- com relação à natureza do
alvo para o qual a F. pretende dirigir o uso desse saber; 3Q
com relação à natureza do procedimento que se
considera próprio da filosofia.
I. A filosofia e o saber— O uso do saber ao qual o homem tem acesso de algum modo é, em primeiro
lugar, um juízo sobre a origem ou a validade desse saber. E a propósito do juízo sobre a validade do saber
surgem imediatamente duas alternativas fundamentais, que estabelecem a distinção entre dois tipos
diferentes e opostos de filosofia. A primeira alternativa estabelece a origem divina do saber: para o
homem, ele é uma revelação ou um dom. A segunda alternativa estabelece a origem humana do saber: ele
é uma conquista ou uma produção do homem. A primeira alternativa é a mais antiga e a mais freqüente no
mundo, prevalecendo de há muito nas filosofias orientais. A segunda alternativa surgiu na Grécia e foi
herdada pela civilização ocidental.
A) De acordo com a primeira alternativa, o saber é uma revelação ou iluminação divina, com que se
privilegiaram a um ou mais homens, transmitida por tradição num grupo também privilegiado de homens
(casta, seita ou igreja). Portanto, não é acessível aos mortais comuns, a não ser através daqueles que são
seus depositários; tampouco é possível aos mortais, comuns ou não, aumentar seu patrimônio ou julgar de
sua validade. Faz parte integrante dessa interpretação da origem do saber a crença de que seu uso em
benefício do homem — neste caso a "salvação" — também é ditado ou prescrito pela revelação ou
iluminação divina. Portanto, esta interpretação parece eliminar ou tornar supérfluo o "trabalho" filosófico,
que versa precisamente sobre esse uso. Mas na prática isso é raro. A exigência de aproximar a verdade
revelada da compreensão humana comum, de adaptá-la às circunstâncias e de fazer que ela atenda aos
problemas novos ou modificados que os homens se propõem, de defendê-la de negações, desvios,
increduli-dades declaradas ou ocultas, faz que o trabalho fÜosófico encontre nesse conceito do saber um
vasto campo para desenvolver-se e tarefas multiformes para enfrentar. Contudo, esse trabalho é subalterno e ancilar: não é nem pode ser decisivo quando se trata de interpretações fundamentais e
de instâncias últimas. Na revelação e na tradição, encontra limites intransponíveis que vedam qualquer
possibilidade de desenvolvimento em direções diferentes das já determinadas. Não pode combater e
destruir as crenças estabelecidas, opor-se frontalmente à tradição, promover ou planejar transformações
radicais. Sua função é conservar as crenças estabelecidas, e não renová-las ou aperfeiçoá-las, portanto,
sua função é subordinada e instrumental, destituída de autonomia e da dignidade de força diretiva.
Já se disse que quase todas as F. orientais são dessa natureza, o que por vezes levou a duvidar de que
pudessem ser chamadas de filosofias. Mas, na verdade mesmo o mundo ocidental muitas vezes oferece
exemplos de F. desse tipo, ainda que nenhuma delas apresente os caracteres ora expostos em todo o seu
rigor. A partir do nome do mais importante desses exemplos, as formas que esse tipo de F. assumiu no
mundo ocidental podem ser chamadas de escolásticas, Uma escolástica, ao contrário de uma filosofia de
puro tipo oriental, pressupõe uma F. autônoma e vale-se dela para a defesa e a ilustração de uma verdade
religiosa para confirmar ou defender crenças cuja validade se julga estabelecida de antemão,
independentemente de confirmações ou defesas. Uma escolástica, como a própria palavra diz, é
essencialmente um instrumento de educação: serve para aproximar o homem, na medida do possível, de
um saber considerado imutável em suas linhas fundamentais, portanto não susceptível de aperfeiçoamento
ou renovação. Entre as tarefas — aliás, múltiplas, assim como são múltiplos os caminhos de acesso do
homem à verdade, bem como os obstáculos encontrados nesse caminho — assumidas por uma F.
escolástica, não está o eventual abandono das crenças de que ela é intérprete. As seitas filosó-ficoreligiosas do séc. II a.C. (p. ex., os es-sênios), as doutrinas de Fílon de Alexandria (séc. I d.C.) e de
muitos neoplatônicos, a F. islâmica e judaica, a Patrística e a Escolástica, bem como, no mundo moderno,
o ocasiona-lismo, o imaterialismo, a direita hegeliana e boa parte do espiritualismo contemporâneo são
escolásticos no sentido ora esclarecido: F. que consistem em utilizar determinada doutrina (platonismo,
aristotelismo, cartesianismo, em-pirismo, idealismo, etc.) para a defesa e a inter-
FILOSOFIA
444
FILOSOFIA
pretação de crenças que não podem ser postas em dúvida, corrigidas ou negadas por esse trabalho.
Certamente, essas diferentes escolásticas possuem graus diferentes de liberdade e esses graus às vezes
variam, em cada uma delas, de uma época para outra. P. ex., S. Tomás, apesar de conferir à "F. humana"
certa autonomia, na medida em que lhe atribui a consideração e o estudo das coisas criadas como tais, ou
seja, sua natureza e suas próprias causas {Contra Gent., II, 4), considera impossível que ela possa
contradizer as afirmações da fé cristã, que deve ser tomada como norma do procedimento correto da razão
ilbid., I, 7). Ainda que as F. desse tipo possam conseguir resultados importantes, que passam a fazer parte
do patrimônio filosófico comum, seu campo é rigidamente limitado pelo problema em torno do qual elas
giram, de defesa de crenças tradicionais: suas possibilidades não se estendem à correção e renovação de
tais crenças.
J5) Para a segunda alternativa, o saber é uma conquista ou uma produção do homem. O fundamento desta
concepção é que o homem é um "animal racional" e, portanto, como diz Aristóteles no início da
Metafísica (980 a 21), "todos os homens tendem, por natureza, ao saber": "tendem" significa que não
somente desejam o saber, mas também podem obtê-lo. O saber, sob esse ponto de vista, não é privilégio
ou patrimônio reservado a poucos; qualquer um pode contribuir para sua aquisição e para seu
enriquecimento, tendo, por isso, direito de julgá-lo, aprová-lo ou rejeitá-lo. Sob esse ponto de vista, a
tarefa fundamental da F. é a busca e a organização do saber. Quando Tucídides (II, 40) atribui a Péricles a
frase "Amamos o belo com moderação e filosofamos sem timidez", certamente está expressando a atitude
e o espírito grego, do qual nasceu a F. nesta segunda acepção do termo. Péricles não fazia alusão a uma
disciplina específica, mas à busca do saber conduzida sem compromissos preconcebidos ou com um
único compromisso de experimentar e pôr à prova toda crença possível. Neste sentido, a F. é uma criação
original do espírito grego e uma condição permanente da cultura ocidental. É um compromisso no sentido
de que qualquer investigação, em qualquer campo, deve obedecer somente às limitações ou às normas que
ela mesma reconheça como válidas em função de suas possibilidades ou de sua eficácia em descobrir ou
confirmar. Neste sentido, F. opõe-se a tradição, preconceito,
mito e, em geral, à crença infundada que os gregos chamavam de opinião. É na diferença entre opinião e
ciência, entre amor à opinião e amor à sabedoria, que Platão mais insiste ao esclarecer o conceito de F.
(Rep., V, 480 a). A F. como investigação é contraposta por Platão, por um lado, à ignorância e, por outro,
à sabedoria. A ignorância é ilusão de sabedoria e des-trói o incentivo à investigação (O Banq., 204 a). Por
outro lado, a sabedoria, que é a posse da ciência, torna inútil a investigação: os Deuses não filosofam
(Ibid. 204 a; Teet., 278 d). A investigação é o que define o status de F. Já Heráclito dissera: "É necessário
que os homens filósofos sejam bons investigadores de muitas coisas" (Fr. 35, Diels). Enquanto
investigação, a F. é "conquista", como dizia Platão (Eutid., 288 d), ou esforço, como diziam os estóicos
(SEXTO EMPÍRICO, Adv. math., IX, 13), ou "atividade", como diziam os epicuristas (Ibid., XI, 169).
Mas se a F. é o compromisso de fazer do saber investigação, condiciona o saber efetivo, que é
"conhecimento" ou "ciência". No juízo que a própria filosofia emite sobre ele, esse condicionamento pode
assumir três formas que definem três concepções fundamentais da F., a metafísica, a positivista e a crítica.
I
a Para a primeira delas, a F. é o único saber possível, e as outras ciências, enquanto tais, coincidem com
ela, são partes dela ou preparam para ela. 2-Para a segunda delas, o conhecimento cabe às ciências
particulares, e à F. cabe coordenar e unificar seus resultados. 3a
Para a terceira delas, F. é juízo sobre o
saber, ou seja, avaliação de suas possibilidades e de seus limites, em vista de seu uso pelo homem.
I
a A primeira concepção da F. é a metafísica, que dominou na Antigüidade e na Idade Média, distinguindo
ainda hoje muitas correntes filosóficas. Sua característica principal é a negação de qualquer possibilidade
de investigação autônoma fora da F. Um conhecimento ou é filosófico ou não é conhecimento. Admite-se
muitas vezes que, fora da F., existe um saber imperfeito, provisório e preparatório, mas nega-se que tal
saber possua validade cognos-citiva própria. Assim, Platão, por um lado, chama a geometria e as outras
ciências de F., referindo-se em especial à sua função educativa {Teet., 143 d; Tini., 88 c), e por outro lado
considera tais ciências (aritmética e geometria, astronomia e música) simplesmente propedêuticas para a
F. propriamente dita, ou seja, para
FILOSOFIA
445
FILOSOFIA
a dialética, que teria, entre outras, a tarefa de "descobrir a comunhão e o parentesco entre as ciências e de
demonstrar as razões pelas quais estão interligadas" {Rep., VII, 531 d). Aristóteles define a F. como
"ciência da verdade" {Met., II, 1, 993 b 20), no sentido de que ela compreende todas as ciências teóricas,
ou seja, a F. primeira, a matemática e a física, e exclui somente a atividade prática: mas também esta deve
recorrer à F. para esclarecer sua natureza e seus fundamentos. Tanto Platão quanto Aristóteles admitem
como ciência primeira uma disciplina determinada, que para Platão é a dialética e para Aristóteles a F.
primeira ou teologia, mas para eles essa disciplina determinada também é a mais geral. Com efeito,
conforme já se viu, a dialética permitia compreender a ligação e a natureza comum das ciências, e a F.
primeira, como ciência do ser enquanto ser, tem por objetivo específico a essência necessária ou
substância que a cada ciência cabe indagar em seu campo particular {De pari. an., I, 5, 645 a 1). Outras
vezes, ao contrário, a F. resolve-se nas disciplinas particulares, sem privilégio de nenhuma delas. Era o
que faziam os epicuristas, que a dividiam em canônica, física e ética (DIÓG. L, X, 29-30), e os estóicos,
que a dividiam em lógica, física e ética (AÉCio, Plac, I, 2), considerando que essas três partes eram
interligadas como os membros de um animal (DIÓG. L, VII, 40).
Esta concepção, que identifica o saber integral com a F. e se recusa a reconhecer que haja ou possa haver
um saber autêntico fora dela sobreviveu à constituição das ciências particulares como disciplinas
autônomas e conservou-se substancialmente inalterada em certas correntes filosóficas até nossos dias. A
definição que Fichte deu da F. como uma "ciência da ciência em geral" (Überden Begriff der
Wissenschaftslehre oder der sogernannten Philosophie, 1794, § 1) não deixa qualquer autonomia às
ciências particulares, uma vez que, segundo essa definição, a doutrina da ciência "deve dar sua forma não
só a si mesma, mas também a todas as outras ciências possíveis", e constituir assim o "sistema acabado e
único do espírito humano" {Ibid., § 2). Essa pretensão manteve-se inalterada em todas as definições que o
idealismo romântico deu da filosofia. Não é outro o significado das observações de Schelling, para quem
a tarefa da F. é aclarar a concordância (que finalmente é identidade) entre objetivo e subjetivo, ou seja,
entre natureza
e espírito, cumprindo, assim, a "tendência necessária de todas as ciências naturais" {System des
transzendentalen Idealismus, 1800, Intr., § 1). Hegel afirmaria explicitamente que "as ciências
particulares se ocupam dos objetos finitos e do mundo dos fenômenos" {Geschichte der Philosophie, Intr.,
A, § 2; trad. it., I, p. 69); e que "uma coisa são o processo de origem e os trabalhos preparatórios de uma
ciência e outra coisa é a própria ciência", na qual eles desaparecem para serem substituídos pela
"necessidade do conceito" {Ene, § 246). Isso significa que só a F., é ciência, porque só ela demonstra "a
necessidade do conceito", utilizando e manipulando a seu modo (como Hegel realmente fez) o material
preparado pelas chamadas ciências empíricas. Portanto, Hegel reservava para a F. o privilégio de ser a
"consideração pensante dos objetos" {Ibid., § 2). O conhecimento preliminar ou preparatório assenta em
representações; tem-se conhecimento propriamente dito quando, com a F., "o espírito pensante através das
representações e trabalhando sobre elas progride para o conhecimento pensante e o conceito" {Ibid., § 1).
Está claro que, expresso desta maneira, o conceito de F. como totalidade do saber é uma manifestação de
arrogância filosófica, inexistente nesse mesmo conceito no período clássico. Naquela época, com efeito,
esse conceito agia como compromisso específico das disciplinas científicas, que graças a ele ingressavam
na esfera da investigação desinteressada, recebendo dele incentivo e sustentação em sua constituição
conceituai. Mas na concepção do idealismo romântico, as ciências específicas eram rebaixadas à função
de trabalho braçal destituído de validade intrínseca. A essa mesma função a ciência é reduzida tanto pelo
idealismo quanto pelo espiritualismo. A definição de F. como "teoria geral do espírito" leva Gentile a
considerá-la como a consciência que o Eu absoluto tem de si mesmo: dessa consciência, os
conhecimentos empíricos, baseados na distinção entre objeto e sujeito e entre os próprios objetos, são
uma falsa abstração {Teoria generale dello spirito, 1916, cap. 15, § 2). Outrossim, apesar da formulação
menos berrante, a definição dada por Croce de F. como "metodologia da historiografia" implica a mesma
arrogância filosófica. Para Croce, o conhecimento histórico é o único possível, visto que a história é a
única realidade: portanto, a redução da F. a metodologia desse conhecimento eqüivale a negar que o saber
científico seja
FILOSOFIA
446
FILOSOFIA
conhecimento; de fato, para CROCE, ele não é um saber, mas um conjunto de expedientes práticos (La
storia, 1938, p. 144; Lógica, 1908, I, cap. 2). Por outro lado, o espiritualismo contemporâneo segue, em
sua maior parte, esse mesmo caminho. Para Bergson, a intuição é o órgão da F. por ser a intuição a "visão
direta do espírito por parte do espírito" (La pensée et le mouvant, 3
a
ed., 1934, p. 51), ou seja, o
instrumento para atingir, imediata e infalivelmente, a "duração real" que é a realidade absoluta. Seu
reconhecimento da ciência como conhecimento adequado ao mundo material ou das "coisas" é puramente
fictício: para Bergson, nem a matéria nem as coisas têm realidade como tais, porque não são senão
consciência, e a consciência só pode ser autenticamente conhecida pela própria consciência: "Ao sondar
sua própria profundidade, a consciência não estaria penetrando também no íntimo da matéria, da vida, da
realidade em geral? Isso só poderia ser contestado se a consciência se acrescentasse à matéria como um
acidente, mas nós acreditamos ter demonstrado que essa hipótese é absurda ou falsa, conforme o lado
pelo qual é considerada, contraditória em si mesma e desmentida pelos fatos" (Ibid., pp. 156-57). O
conceito de F. como conhecimento privilegiado (seja qual for o aspecto em que assente o privilégio) nada
mais é que uma das tantas expressões do antigo conceito de F. como saber único e absoluto. As tendências
do pensamento moderno que costumam ser chamadas de "metafísicas" caracterizam-se precisamente por
esse conceito de filosofia. Husserl expõe assim o ideal cartesiano da F. que ele declara adotar:
"Lembremos a idéia diretiva das Meditações de Descartes. Ela visa a uma reforma total da F., para tornála uma ciência de fundamentos absolutos. Isto implica, para Descartes, uma reforma paralela de todas as
ciências, visto serem estas membros de uma ciência universal que outra não é senão a própria F. É só na
unidade sistemática desta que elas realmente podem tornar-se ciências" (Cart. Med., 1931, § 1). Em sua
última obra, Husserl estabelecia como primeira condição da F. "uma 'epoché' de qualquer pressuposto das
ciências objetivas, de qualquer tomada de posição crítica em torno da verdade ou da falsidade da ciência,
uma 'epoché' até da idéia diretiva da ciência, da idéia do conhecimento objetivo do mundo" (Krisis, § 35).
Não obstante o amplo reconhecimento da validade do método científico, as considerações de Jaspers
sobre a natureza da F. redundam na mesma negação da ciência, uma vez que negam autonomia estrutural e validade às ciências
específicas (Phil., § 1, pp. 53 ss.; Existenzphil., 1938, Intr.). Uma desvalorização ainda mais radical das
ciências específicas é realizada por Heidegger, para quem os pressupostos da ciência moderna são o
esquecimento do ser, a redução do homem a sujeito e do mundo a representação (Brief über den "Humanismus", em PlatosLebre von der Wahrheit, 1947, p. 88).
2
a
A segunda concepção de F. como juízo sobre o saber é a que tende a resolvê-la nas ciências específicas,
atribuindo-lhe às vezes a função de unificar as ciências ou de reunir seus resultados numa "visão de
mundo". A origem desta concepção pode ser vista em Bacon, que concebeu a F. como uma ciência que,
em primeiro lugar, dividiria e classificaria as ciências particulares e depois conferiria a tais ciências a
posse de seus métodos, do material de que elas disporiam e das técnicas para a utilização desse material
em proveito do homem. Em De dignitate et augmentis scientiarum (1623), esboçando o plano de uma
enciclopédia das ciências em bases experimentais, Bacon atribuía à "F. primeira", por ele considerada
como "ciência universal e mãe das outras ciências", a tarefa de reunir "os axiomas que não são próprios
das ciências particulares, mas comuns a várias ciências" (Deaugm. scient., III, 1). Hob-bes, por sua vez,
identificava a F. com o conhecimento científico: "A F. é o conhecimento adquirido através do raciocínio
correto, dos efeitos ou fenômenos, a partir de suas causas ou origens; ou, reciprocamente, o conhecimento
adquirido sobre as origens possíveis a partir dos efeitos conhecidos" (Decorp., 1, § 2). Deste conceito de
F. coincidente com o conhecimento científico, e no esforço de esclarecê-la e estendê-la, proveio o sentido
do termo em inglês, para o qual Hegel já chamava a atenção (Ene, § 7 e nota; Geschichte derPhil., Intr.,
A, 2; trad. it., I, p. 70): segundo ele, esse termo não se aplicava somente à ciência da natureza, mas ainda
a certos instrumentos, como termômetros, barômetros, etc, além dos princípios gerais da política; este
último uso conservou-se nos países anglo-saxônicos. Para o próprio Descartes, a F. compreendia "tudo
aquilo que o espírito humano pode saber", e assim coincidia em grande medida com as pesquisas
científicas, que, aliás, para Descartes deveriam ser remetidas a certos princípios fundamentais
FILOSOFIA
447
FILOSOFIA
{Princ.phil, Pref.). Todo o Iluminismo participou do conceito de filosofia como conhecimento científico.
"Filósofo, amante da sabedoria, da verdade", dizia Voltaire (Dict. Phil., art. Philosophe). E Wolff mesmo
admitia, ao lado das ciências "racionais" em que dividia a F., ciências empíricas correspondentes, dotadas
de um método autônomo, que é o experimental. P. ex., ao lado da cosmologia geral ou científica, Wolff
admite uma cosmologia experimental "que haure das observações a teoria que é estabelecida ou que deve
ser estabelecida na cosmologia científica" (Cosm., § 4), e reconhece que é possível, embora difícil, que
toda a teoria da cosmologia geral derive dessas observações (Ibid, § 5).
Dentro desse significado, o positivismo deu destaque à função da filosofia de reunir e coordenar os
resultados das ciências específicas com vistas a criar um conhecimento unificado e generalíssimo. Esta é
a tarefa atribuída à F. por Comte e Spencer. Comte acha que, ao lado das ciências particulares, deve haver
um "estudo das generalidades científicas", que, para ele, corresponde à "F. primeira" de Bacon. Esse
estudo deveria "determinar exatamente o espírito de cada ciência, descobrir as relações e a concatenação
entre as ciências, resumir talvez todos os princípios dessas ciências no menor número possível de
princípios comuns, sempre em conformidade com as máximas fundamentais do método positivo" (Cours
de phil. positive, I
a
lição, § 7; 2a
lição, § 3). O conceito de F. como ciência generalizadora e unificadora
dos resultados das outras ciências foi e continua sendo corrente na filosofia moderna e contemporânea.
Foi aceito não só por correntes positivistas, mas também por doutrinas espiritualistas; estas últimas
acrescentaram-lhe em certos casos uma determinação ou condição limitadora: a generalização e a
unificação devem corresponder a uma imagem do mundo que satisfaça às necessidades do coração. Essa
é precisamente a definição de F. dada por Wundt, que reconheceu como função sua a "síntese dos
conhecimentos específicos em uma intuição do mundo e da vida que satisfaça as exigências do intelecto e
as necessidades do coração" (Syst. der Phil., 4
a
ed., 1919, 1. p. 1; Einleitung in diePhil., 3
a
ed., 1904, p.
5). Desse ponto de vista, a F. "é a ciência universal que deve unificar num sistema coerente os
conhecimentos universais fornecidos pelas ciências particulares": conceito muito freqüente na literatura filosófica das últimas décadas do séc. XTX e das primeiras do séc. XX, porquanto permite que a F.
aproveite amplamente os resultados obtidos pela investigação positiva tanto no campo das ciências
naturais quanto no das ciências do espírito. Por vezes, tende-se a acentuar, nesse sentido, o caráter
unitário e totalitário desta ciência universal; nesse caso, assim como na definição de Wundt, ela é
considerada intuição ou visão do mundo. Tal conceito é uma determinação ulterior do conceito de F.
como "ciência universal", unificadora e generalizadora. Mach diz: "O filósofo tenta orientar-se no
conjunto de fatos de um modo universal, o mais completo possível... Somente a fusão das ciências
especiais mostrará a concepção do mundo para a qual tendem todas as especializações" {Erkenntniss und
Irrtum, cap. I, trad. fr., pp. 14-15). Dilthey demonstrou bem esta conexão entre F. e ciências especiais
quando escreveu: "A história da F. transmite ao trabalho filosófico sistemático os três problemas da
fundamentação, justificação e conexão das ciências específicas, juntamente com a tarefa de enfrentar a
necessidade inexaurível de reflexão última sobre o ser, o fundamento, o valor, a finalidade e suas
interconexões na intuição do mundo, sejam quais forem a forma e a direção em que tal tarefa é realizada"
{Das Wesen der Philosophie, ao fim; trad. it., em Critica delia ragione storica, p. 487). Para Simmel, a
relação entre fundamentação/unificação das ciências e intuição do mundo (em que consiste propriamente
a metafísica) configura-se como a distinção entre os dois limites que definem o campo da investigação
filosófica. "Um deles compreende as condições, os conceitos fundamentais, os pressupostos da pesquisa
específica, que não podem ser satisfeitos nesta porque, de certo modo, já constituem a sua base; no outro,
essa pesquisa específica é levada a cabo em conexão e em relação com questões e conceitos que não têm
lugar na experiência e no saber objetivo imediato. Aquela é a teoria do conhecimento, esta é a metafísica
do campo específico em questão" (Soziologie, 1910, p. 25; cf. P. Rossi, Lo storicismo tedesco
contemporâneo, Torino, 1956, pp. 242 ss.). Ora, a primeira destas tarefas é aquela que a filosofia crítica
havia atribuído à F. (v. adiante); a segunda delas é a que havia sido atribuída à F. pela corrente positivista
que remonta a Bacon. A última manifestação deste conceito de F. no pensamento contemporâneo é a
noção de "ciência unificada", pró-
FILOSOFIA
448
FILOSOFIA
pria do neo-empirismo, à qual é dedicada a Enciclopédia internacional da ciência uni-flcadaiàe 1938 em
diante). Contudo, nesta obra o próprio conceito de unificação é dúbio, sendo defendido de maneiras
diversas pelos diferentes adeptos. Neurath entende-a como a combinação dos resultados das várias
ciências e a axiomatização deles num sistema único; Dewey, como exigência de estender a posição e a
função da ciência à vida humana; Russell, como unidade de método; Carnap, como unidade formal ou
lingüística; Morris, como doutrina geral dos signos (Intern. Encycl. qf Unified Science, I, 1, pp. 20, 33, 6l,
70). Apesar de tudo, o conceito de filosofia como unificação e generalização do saber científico continua
sendo proposto no mundo contemporâneo; é defendido, p. ex., por Whitehead (Adventures ofldeas, 1933,
IX, § 2).
3
a
A terceira concepção de F. como juízo do saber pode ser chamada de crítica e consiste em reduzir a F.,
sob esse ponto de vista, a doutrina do conhecimento ou a metodologia. Segundo esta concepção, a
filosofia não aumenta a quantidade do saber, portanto, não pode ser chamada propriamente de
"conhecimento". Sua tarefa é verificar a validade do saber, determinando seus limites e condições, suas
possibilidades efetivas. O iniciador desse conceito de F. foi Locke. Todo o Ensaio nasceu — como ele
adverte na "Epístola ao Leitor", que o precede — da necessidade de "examinar a capacidade da mente
humana e ver que objetos estão ao seu alcance e quais os que estão acima de sua compreensão". Mais
exatamente ainda, a F. tende a descobrir quais são as possibilidades da inteligência, qual a magnitude
dessas possibilidades, a que tipo de coisas elas se ajustam e onde nos falta seu socorro (Ensaio, Intr., § 4).
Os limites das capacidades humanas são resumidos claramente por Locke no terceiro capítulo do IV livro
do Ensaio. Mas é no último capítulo da obra, dedicado à divisão das ciências, que esses limites ficam
mais claros. Distinguem-se três ciências principais: a F. natural ou física, cuja tarefa é "o conhecimento
das coisas como elas são em seu ser próprio, sua constituição, suas propriedades e operações"; a F. prática
ou ética, que é "a arte de bem dirigir nossos pode-res e nossos atos para a consecução das coisas boas e
úteis"; e a doutrina dos sinais, semiótica ou lógica, cuja tarefa é "considerar a natureza dos signos
utilizados pelo espírito para o entendimento das coisas ou para transmitir a outrem seu conhecimento" (Ibid., IV, 21, §§ 2-4). Nesta divisão das ciências falta a F.: isto quer dizer que,
para Locke, a F. não é uma ciência no mesmo sentido da física, da ética ou da lógica, ou seja,
conhecimento de objetos, mas é juízo sobre a ciência, é crítica. Esse ponto de vista constitui um dos filões
principais da filosofia moderna e contemporânea. Hume identificava a tarefa da F. acadêmica ou cética,
por ele professada, com a "limitação de nossas investigações às matérias que mais se adaptam à limitada
capacidade da inteligência humana" (Inq. Cone. Underst., XII, 3). Em Kant, a limitação do conhecimento
é considerada fundamento da validade do próprio conhecimento, segundo conceito já utilizado por Locke.
Com efeito, para Kant, tanto as condições a priori do conhecimento (intuições puras, categorias) quanto
suas condições a posteriori (dado empírico ou intuição) determinam e limitam as possibilidades
cognoscitivas no sentido de que não só excluem certos campos de indagação, mas também fundamentam
a validade ou a efetividade das próprias possibilidades. Kant expressava o campo da F. com as seguintes
perguntas: I
a
o que posso saber?; 2a
que devo fazer?; 3a
o que posso esperar?; 4a
o que é o homem? E
acrescenta: "A metafísica responde à primeira questão; a moral, à segunda; a religião, à terceira; a
antropologia, à quarta. Mas, no fundo, poder-se-ia reduzir tudo à antropologia, uma vez que as três
primeiras questões remetem à última. Conseqüentemente, o filósofo deve poder determinar: I
a
a fonte do
saber humano; 2S
o campo de aplicação possível e útil do saber; 3a
os limites da razão" (Logik, Intr., III).
A objeção de Hegel a esse ponto de vista — "querer conhecer antes de conhecer é tão absurdo quanto o
prudente propósito de certo aluno, que queria aprender a nadar antes de entrar na água" (Ene, § 10) — é
pura boutade, uma vez que a F. como crítica supõe que já se saiba nadar, que já exista um saber
constituído (o da ciência), a partir do qual se podem investigar as possibilidades de conhecer e determinar
seus limites. Na doutrina kantiana, o neocriticismo contemporâneo modificou o tópico referente à religião
e, mantendo inalterado o conceito de F. como crítica do saber, reconheceu três disciplinas filosóficas,
quais sejam, lógica, ética e estética; entendeu, por lógica, na maioria das vezes, a teoria do conhecimento.
Essa doutrina foi defendida pela chamada escola de Marburgo (Cohen, Natorp,
FILOSOFIA
449
FILOSOFIA
Cassirer) e também pelo criticismo francês (Renouvier, Brunschvicg). A posição de destaque de que a
gnosiologia ou teoria do conhecimento tem gozado na filosofia contemporânea (e não só entre as
correntes neocriticistas) é conseqüência do conceito de filosofia como crítica do conhecimento. A
gnosiologia ou teoria do conhecimento (v.), todavia, é caracterizada por pressupostos e problemas
particulares; portanto, o conceito de F. como crítica do saber não implica a identificação da F. com a
doutrina do conhecimento ou gnosiologia. De fato, mesmo depois da crise e do abandono da gnosiologia
oitocentista, esse conceito continua na forma da análise dos procedimentos efetivos do conhecimento
científico e de determinação de seus limites e de sua validade. Esta análise é tema característico da
metodologia (v.). Portanto, a metodologia pode ser considerada a última encarnação da F. como crítica do
saber. Como parte da metodologia, ou como restrição de seu objetivo, pode-se entender a definição de F.
como "análise da linguagem", proposta pela primeira vez por Wittgenstein, em Tractatus logicophilosophicus (1922). Atribuindo "a totalidade das proposições verdadeiras" à ciência natural,
Wittgenstein nega que a F. seja uma ciência natural: esta palavra, diz ele, "deve significar alguma coisa
que está acima ou abaixo das ciências da natureza, não ao lado delas" {Tractatus, § 4, 111). Torna-se
então tarefa da F. o aclaramento lógico da linguagem. "A F. não é uma doutrina, mas uma atividade. Uma
obra filosófica consiste essencialmente em elucidações. Os frutos da F. não são proposições filosóficas,
mas o aclaramento das proposições. A F. deve aclarar e delimitar com precisão as idéias que, de outro
modo, seriam turvas e confusas" Ubid., 4, 112).
II. A filosofia e o uso do saber— O segundo ponto de vista sob o qual se podem buscar constantes nos
significados historicamente atribuídos à F., para em seguida realizar divisões ou articulações de tais
significados, é o que ficou expresso na 2- parte da definição usada como ponto de partida deste artigo,
qual seja, a F. como uso do saber pelo ser humano. Ao longo da história têm sido dadas duas
interpretações fundamentais desse conceito de F. d) a. F. é contemplativa e constitui uma forma de vida
que é fim em si mesma; b) a F. é ativa e constitui o instrumento de modificação ou de correção do mundo
natural ou humano. Segundo a primeira interpretação, a F. exaure-se no indivíduo que filosofa; para a segunda interpretação, a F. transcende o indivíduo e concerne às relações com a
natureza e com os homens, portanto à vida humana social. Para usar um termo de clara significação
histórica, pode-se chamar de "iluminista" esta segunda interpretação da filosofia.
d) O conceito de F. como contemplação é típico, em primeiro lugar, das F. de tipo oriental, que
estabelecem como objetivo da F. a salvação do homem. Com efeito, a salvação é a libertação de qualquer
relação com o mundo, portanto a realização de um estado em que qualquer atividade é impossível ou sem
sentido. No Ocidente, o conceito de F. como contemplação não foi a primeira forma assumida pelo
trabalho filosófico (que foi, ao contrário, o da "sabedoria", da F. ativa e militante), mas foi a primeira
caracterização explícita desse trabalho. Seu fundamento é a natureza "desinteres-sa'da" da investigação
filosófica. Quando em Heródoto (I, 30) o rei Creso diz a Sólon: "Ouvi falar das viagens que, filosofando,
tens empreendido a fim de ver muitos países", obviamente está aludindo ao caráter desinteressado dessas
viagens, que não foram realizadas com objetivos lucrativos ou políticos, mas visando apenas ao
conhecimento. O próprio Platão contrapõe o espírito científico dos gregos ao amor e ao lucro, típico dos
egípcios e dos fenícios (Rep., IV, 435 e). E que a busca do saber não pode ser subordinada ou submetida a
finalidades alheias a ela é fato que resulta da própria noção dessa busca, a maneira como ela se foi
configurando na Grécia antiga (cf. I, B). Mas já na narração atribuída a Pitágoras, que provém de um
texto de Heráclides Pôntico (DióG. L., Proemium, 12) com que se pretende justificar o nome de F., há
algo mais que a simples exigência de desinteresse na investigação. Segundo essa tradição, transmitida por
Cícero em Tusculanae (V, 9), Pitágoras comparava a vida com as grandes festas de Olímpia, aonde alguns
se dirigem a negócio, outros para participar das competições, outros para divertir-se e, finalmente, alguns
somente para vero que acontece: estes últimos são os filósofos. Aqui se evidencia a distinção entre o
filósofo, interessado apenas em ver, e o comum dos homens, dedicado a suas ocupações. Portanto, a
superioridade da contemplação sobre a ação está implícita nessa narração, que, provavelmente, tinha o
objetivo de enobrecer, pela alusão a Pitágoras, o conceito de F.
FILOSOFIA
450
FILOSOFIA
que se ia formando na escola de Aristóteles. O caráter contemplativo da F. (que nada tem a ver com o
caráter desinteressado da investigação em geral), como uma das possíveis respostas ao problema do uso
do saber pelo ser humano, foi afirmado e justificado pela primeira vez por Aristóteles. Esse caráter fundase na natureza necessária do objeto da F., aquilo que "não pode ser senão o que é" (.Et. nic, VI, 3, 1139 b
19). Sob este ponto de vista, a F. é saber e não sabedoria, já que a sabedoria consiste em bem deliberar,
porém nada há que deliberar a respeito de coisas que não podem ser de outra maneira (Jbid., VI, 5, 1140 a
30). Com base nisso, Aristóteles estabelece uma oposição entre sabedoria e sapiência (v.). Homens como
Anaxágoras e Tales são sapientes, mas não sábios: não indagam acerca do bem humano, não conhecem o
que é útil a eles mesmos, mas apenas coisas excepcionais, maravilhosas, raras e divinas. "Ninguém", diz
Aristóteles, "delibera sobre aquilo que não pode ser de outra maneira ou sobre coisas que não têm um fim
ou cujo fim não é um bem realizável" (Ibid., VI, 7, 1041 b 10). Mas, desse ponto de vista, qual é o uso
possível do saber? Somente um: a realização de uma vida contemplativa, dedicada ao conhecimento do
necessário. Portanto, para Aristóteles, a atividade contemplativa é a mais alta e bea-tífica das atividades:
faz do homem algo superior ao próprio homem porque se conforma ao que de divino existe nele {Ibid., X,
7, 1177 b 26). Assim, a doutrina de Aristóteles fixou os seguintes pontos no que se refere ao uso do saber
pelo ser humano: le
a F., tendo como objeto o necessário, não propicia ao homem nada a fazer; portanto, é
contemplação; 2Q
a contemplação é uma forma de vida individual privilegiada, pois é a bem-aventurança.
As duas teses são típicas desta concepção da F., que aparece com freqüência na história do pensamento
ocidental e domina em toda a F. grega pós-aristotélica, que cultiva o ideal do "sapien-te", ou seja, daquele
em quem se realiza a vida contemplativa. Epicuristas, estóicos, cépticos e neoplatônicos concordam em
julgar que só o sapiente pode ser feliz, porque só ele, como contemplador puro, é auto-suficiente. A
finalidade que esses filósofos atribuem à F. é individual e pessoal: a realização de uma forma de vida que
fecha o sapiente em si mesmo e na sua contemplação solitária. Também desse ponto de vista obviamente
a F. é um esforço de transformação ou de retificação da vida humana; portanto, não se deve tomar ao pé da letra a afirmação de Aristóteles de que ela não dá o que fazer.
Essa afirmação significa apenas que ela não modifica a estrutura do mundo, do conhecimento concernente
ao mundo e das formas de vida social, mas pode modificar a vida do indivíduo, tornando-o sapiente e
bem-aventurado.
A partir dessas características, é fácil conhecer a atitude contemplativa em filosofia. Quando Spinoza diz:
"O homem forte considera principalmente que todas as coisas procedem da necessidade da natureza
divina e que, portanto, tudo o que ele julga molesto e ruim e tudo aquilo que aparenta ser ímpio, horrível,
injusto e torpe nasce do fato de ele conceber as coisas de maneira obscura, parcial e confusa" (Et., XIV,
73, scol.), está expressando o conceito contemplativo da F. em sua forma clássica. E quando Hegel afirma
que a F., assim como a coruja de Minerva que começa a voar ao cair da noite, sempre chega quando tudo
já está feito, portanto demasiado tarde para dizer como deve ser o mundo, está expressando o mesmo
conceito (Fil. do dir., Pref.). Com efeito, para Hegel, assim como para Aristóteles e Spinoza, o objetivo da
F. é o necessário; sua tarefa é precisamente mostrar a necessidade do que existe, ou seja, a racionalidade
do real (Ene, § 12). Sob esse ponto de vista, a F. é a justificação racional da realidade, entendendo-se por
realidade não só a da natureza, mas também a das instituições histórico-sociais, a do mundo humano. Sob
esse prisma, não era muito diferente o conceito que Schopenhauer tinha de F.: "Espelhar em conceitos, de
modo abstrato, universal e límpido toda a essência do mundo e assim, qual imagem reflexa, depositá-la
nos conceitos da razão, permanentes e sempre assentados: isso é F., não outra coisa" (Die Welt, I, §68).
Na F. contemporânea, o conceito de F. como contemplação permanece na fenomenologia e no
espiritualismo. A fenomenologia é o esforço de realizar, por meio da "epoché", o ponto de vista do
"espectador desinteressado", do sujeito que não esteja submetido às mesmas condições limitativas que
toma em consideração. Husserl diz: "O eu da meditação fenomenológica pode tornar-se o espectador
imparcial de si mesmo, não só nos casos particulares, mas em geral; esse 'si mesmo' compreende qualquer
objetividade que exista para ele, tal qual existe para ele" (Cart. Med., § 15). E na última obra Husserl
FILOSOFIA
451
FILOSOFIA
vê a filosofia como "movimento histórico da revelação da razão universal, inata como tal na humanidade"
(Krisis, § 6), atribuindo-lhe a tarefa de levar a razão "à autocompreensão, a uma razão que se compreenda
concretamen-te a si mesma, que compreenda que é um mundo, um mundo que é, em sua própria verdade,
universal" ilbid., § 73). Por outro lado Bergson, ao distinguir a F. como intuição ou consciência da
duração temporal (do devir da consciência) da ciência como conhecimento dos fatos, vê a ciência como
"auxiliar da ação" e a F. como atividade contemplativa. "A norma da ciência", diz ele, "é a que foi
proposta por Bacon: obedecer para comandar. O filósofo não obedece nem comanda: procura simpatizar"
{La pensée et le mouvant, 3
a
ed., 1934, p. 158). A idolatria do "sapiente", como condição humana
privilegiada ou perfeita, e da F., como forma final e conclusiva do ser, são dois traços característicos para
se conhecer a concepção da F. como contemplação. A esta concepção pertencem as formas do cepticismo
antigo e moderno. Quando Sexto Empírico aponta como finalidade da F. céptica a imperturbabilidade que
ela permite realizar (Pirr. hyp., I, 25), ou quando Hume reduz o motivo de seu filosofar — que ele julga
incapaz de agir sobre as crenças mais arraigadas no homem — ao prazer que dele extrai ÇTreatise, I, 4, 7;
Inq. Cone. Underst., XII, 3), ambos estão atribuindo à F. uma função contemplativa que se exaure no
âmbito da vida individual. E nesse mesmo âmbito exaure-se a função da F. como "terapia" da F., isto é,
como libertação das dúvidas filosóficas, de que falam Wittgenstein (Phüosophical Investigations, § 133) e
alguns filósofos ingleses, seus seguidores (cf. Revolution inPhil., 1956, pp. 106, 112 ss.). De fato, não
parece que esses filósofos atribuam à terapia filosófica outra função a não ser a de libertar o indivíduo de
suas dúvidas filosóficas permitindo que ele se "sinta melhor", do mesmo modo que Hume se sentia
melhor com suas dúvidas cépticas.
b) O conceito de F. como atividade diretiva ou transformadora já está presente na lenda dos Sete Sábios,
que foi citada pela primeira vez por Platão iProt., 343 a). Os Sete Sábios foram moralistas e políticos, e
seus ditados referem-se à conduta de vida e às relações com os homens (v. SÁBIOS). Mas o primeiro
grande exemplo de F. explicitamente concebida com a finalidade de transformar o mundo humano é a de
Platão, destinada a modificar a forma da vida social e a
baseá-la na justiça. Para ela, a educação do filósofo não culmina na visão do bem, mas no "retorno à
caverna": porquanto o filósofo deve colocar à disposição da comunidade os resultados de sua especulação
e utilizá-los para a direção e a orientação da mesma. "Cada um de vós", diz Platão, "deve descer para a
habitação comum e acostumar-se a contemplar os objetos nas trevas: porque, acostumando-se a elas, verá
bem melhor que aqueles que sempre estiveram lá e reconhecerá os caracteres e o objeto de cada imagem,
porque viu os verdadeiros exemplares da beleza, da justiça e do bem. Assim, nós e vós constituiremos e
governaremos a cidade despertos, e não sonhando, como acontece agora na maior parte das cidades por
culpa daqueles que guerreiam por causa de sombras e disputam o poder como se fosse um bem" (Rep.,
VII, 520 c). A F. platônica é totalmente dominada por esse compromisso educativo e político: para Platão,
a tarefa da F. não é dar a certo número de homens a bem-aventurança da contemplação, mas dar a todos a
possibilidade de viver segundo a justiça (Jbid., 519 e). Esta concepção ativa da F. permaneceu inoperante
por muito tempo. Foi só no Renascimento que os humanistas a retomaram, entendendo F. como
sabedoria. Em De nobilitate legum et medicinae, Coluccio Salutati (1331-1406) dizia: "Muito me admira
afirmares que a sabedoria consiste na contemplação, cuja serva seria a prudência, havendo entre elas a
mesma relação que há entre o administrador e o senhor, e dizeres que a sapiência é a maior das virtudes,
pertencente à melhor parte da alma, que é do intelecto, e que a felicidade consiste em agir conforme a
sapiência. E acrescentas que, sendo a metafísica a única ciência livre, o filósofo quer que a especulação
preceda em tudo a ação... Mas a verdadeira sapiência não consiste, como crês, na especulação pura. Se
tirares a prudência, não acharás nem sapiente nem sapiência... Chamarias porventura de sapiente a quem
houvesse conhecido coisas celestes e divinas, sem que houvesse provido a si mesmo, sem que houvesse
sido útil aos amigos, à família, aos parentes e à pátria?" No mesmo espírito, Leonardo Bruni, em
Isagogicon moralis disciplinae (1424), afirmava a superioridade da F. moral sobre a F. teórica.
Posteriormente, a consolidação desta concepção ativa da F. caracteriza o início da Idade Moderna. Os
humanistas acreditavam que só a F. moral era ativa; para Bacon também é ativa a F. que tem por objeto a
natureza, porque se
FILOSOFIA
452
FILOSOFIA
destina a dominar a natureza. E Bacon não hesitou em chamar de "pastoral" a F. de Telésio, que muito
apreciava e em parte seguia, por parecer-lhe que ela "contemplava o mundo placi-damente e quase por
ócio" (Works, III, p. 118). Hobbes insistia na mesma função da F. (De corp., I, § 6). Descartes, por sua
vez, julgava-a apta a obter sabedoria e ciência de tudo aquilo que é útil e vantajoso para o homem (Princ.
phil, Pref.) A mesma finalidade diretiva e corretiva foi atribuída à F. por Locke e pelos iluministas. Com
Locke, a F. torna-se crítica do conhecimento e esforço de libertação do homem de ignorâncias e
preconceitos. A mesma concepção se mantém no Iluminismo do séc. XVIII, que vê a F. como esforço da
razão para assenhorear-se do mundo humano, libertá-lo dos erros e fazê-lo progredir. D'Alembert
descrevia assim a ação que a F. exercia em seu tempo: "Dos princípios das ciências profanas aos
fundamentos da revelação, da metafísica às questões de gosto, da música à moral, das disputas
escolásticas dos teólogos, aos objetos de comércio do direito dos príncipes ao direito dos povos, da lei
natural às leis arbitrárias das nações, numa palavra, das questões que mais nos preocupam às que menos
nos interessam, tudo foi discutido e analisado, ou pelo menos cogitado. Nova luz sobre alguns objetos,
nova obscuridade sobre outros foram os frutos ou o resultado dessa efervescência geral dos espíritos,
assim como o efeito do fluxo e do refluxo do oceano é levar para a margem alguns objetos e dela afastar
outros" (CEuvres, ed. Condorcet, p. 218). O conceito iluminista de F. era compartilhado por Kant, para
quem a F., determinando as possibilidades efetivas do homem em todos os campos, deve iluminar e
dirigir o gênero humano em seu obrigatório progresso rumo à felicidade universal (Recensão de "Idéias
sobre a F. da história"'de Herder, 1784-85; cf. Crít. R. Pura, Doutrina transcendental do método, capítulo
III ao final).
Ao insistir no caráter necessário, porque racional, do ser, o Romantismo constituiu, em seu conjunto, um
retorno à concepção contemplativa da F. O próprio positivismo, que pretendia explicitamente remeter-se à
doutrina de Bacon, do saber como possibilidade de domínio da natureza, nem sempre se mantém fiel ao
reconhecimento do caráter ativo da F. Se para o positivismo (v.) de cunho social (St.-Simon, Proudhon,
Comte, Stuart Mill) a F. é principalmente um meio de transformação da sociedade
humana, para o positivismo evolucionista a F. tem mais caráter contemplativo do que ativo. A defesa do
mistério, que Spencer coloca entre as tarefas da F., ou seja, o reconhecimento da insolubilidade dos
chamados problemas últimos, põe a F. no mesmo plano contemplativo da religião. A discussão sobre a
solubilidade ou insolubilidade dos chamados "enigmas do mundo" incide inteiramente no plano da F.
contemplativa. O positivismo de Ardigò, o mo-nismo materialista (Haeckel) e o evolucionismo
espiritualista (Wundt, Morgan, etc.) são igualmente contemplativos. Na realidade, o clima romântico está
presente tanto no positivismo quanto no idealismo e orienta tanto àquele como a este para o conceito de F.
como contemplação de uma realidade necessária. Contra tal conceito insurge-se o "novo materialis-mo"
de Marx, que, ao mesmo tempo, opõe-se ao materialismo teórico de Feuerbach. "Os filósofos", dizia ele,
"até agora só fizeram interpre-taro mundo de diversas maneiras: trata-se agora de transformá-lo" (Tese
sobre Feuerbach, 11). Mas por mais que Marx insista no esforço de transformação que deve caracterizar a
F. como tal, o próprio fundamento da F. como contemplação permanece firme em sua doutrina. Esse
fundamento é, com efeito, a necessidade do real; para Marx, a transformação da sociedade, ou seja, a
passagem da sociedade capitalista para a sociedade sem classes, acontecerá "com a mesma fatalidade que
caracteriza os fenômenos da natureza" (Capit., I, 24, § 7). Desse ponto de vista, a tarefa da F. apresenta-se
como a de uma profética Cassandra, não de promover e orientar a transformação. Nesse aspecto, é o
neocriticismo que por vezes escapa ao clima romântico. Em Uchronie, Renou-vier propôs-se eliminar "a
ilusão da necessidade preliminar, segundo a qual o fato consumado seria o único, entre todos os outros
imagináveis, que poderia realmente acontecer" (Uchronie, 2- ed., 1901, p. 411). Segundo ele, a "F.
analítica da história" tem a tarefa de determinar as concatenações gerais dos fatos históricos para dirigir o
desenvolvimento da história (Intr. à Ia phil. analytique de 1'histoire, 1864, pp. 551-52). Por outro lado, a
determinação de "visão do mundo", imposta à F. na segunda metade do séc. XIX por pensadores de
procedência neocriticista ou positivista, tem claro significado contemplativo. Foi contra a interpretação
contemplativa da F. que o pragmatismo, desde a origem, assestou suas armas, como se
FILOSOFIA
453
FILOSOFIA
pode ver no ensaio Como tornar claras nossas idéias (1878) de C. S. Peirce. Nesse ensaio, Peirce
afirmava que toda a função do pensamento é produzir hábitos de ação (ou crenças) e que, portanto, o
significado de um conceito consiste exclusivamente nas possibilidades de ação que ele define. Mas essas
afirmações de Peirce são importantes também de outro ponto de vista. Peirce negava explicitamente o
pressuposto da F. como contemplação, vale dizer, o caráter necessário do real. Mostrava que a
regularidade e a ordem dos acontecimentos, bem como suas inter-relações condicionais, nada têm a ver
com a necessidade, o que implicaria a possibilidade de previsão infalível (Chance, Love and Logic, II,
cap. 2). A definição dada por Dewey de F. como "crítica dos valores" (Experience and Nature, p. 407)
expressa, precisamente sobre pressupostos estabelecidos por Peirce, a função diretiva da filosofia.
Segundo Dewey, a tarefa da F. é a antiga, que está inscrita no próprio significado etimológico da palavra:
procura da sabedoria, em que sabedoria difere de conhecimento por ser "a aplicação daquilo que é
conhecido pela conduta inteligente das ações da vida humana" iProblems of Man, 1946, p. 7). Não tem
significado diferente a definição dada por Morris: "Uma F. é uma organização sistemática que
compreende as crenças fundamentais: crenças sobre a natureza do mundo e do homem, sobre o que é
bem, sobre os métodos a seguir no conhecimento, sobre o modo como a vida deve ser vivida" (Signs,
Language and Behavior, 1946, VIII, § 6; trad. it., p. 314). Para Morris, assim como para todo o
pragmatismo, crença não passa de norma de comportamento: a F., como organização das crenças
fundamentais, constitui por isso aquilo que Sartre chamou de "projeto fundamental de vida". Na própria
obra de Sartre pode-se perceber a passagem da concepção contemplativa de F., expressa em Vêtre et le
néant (1943), para a concepção ativa ou iluminista, expressa em Critique de Ia raison dialectique (1960).
Na primeira obra, Sartre projetava uma investigação chamada "psicanálise existencial", cuja finalidade
era "evidenciar, de maneira rigorosamente objetiva, a escolha subjetiva graças à qual cada pessoa se faz
pessoa, ou seja, se faz anunciar a si mesma aquilo que é" (Vêtre et le néant, p. 662). O resultado de uma
investigação desse gênero deveria ter sido, segundo Sartre, a classificação e a comparação dos vários
tipos possíveis de conduta, portanto o esclarecimento definitivo da realidade humana como tal (Jbid., p. 663). É evidente o caráter contemplativo
de semelhante disciplina. Mas em sua segunda obra Sartre entende por F. a "totalizaçâo do saber, método,
idéia reguladora, arma ofensiva e comunidade de linguagem", e ao mesmo tempo como instrumento que
age sobre as sociedades decadentes para transformá-las, podendo constituir a cultura e até mesmo a
natureza de uma classe inteira (Critique de Ia raison dialectique, p. 17). No primeiro caso, a F. não dava o
que fazer ao homem, porque o homem nada podia fazer: Sartre definia o homem como "paixão inútil"
como paixão impossível de ser Deus (L 'être et le néant, p. 708). No segundo caso, a F. insere-se no
mundo como força humana finita mas eficaz, e tende a transformá-lo. Subtraída ao destino de fracasso e
de sucesso, a noção de projeto presta-se a expressar o caráter diretivo e operante atribuído à F. pelas
correntes neo-iluministas contemporâneas. Com efeito, um projeto parte dos conhecimentos disponíveis e
determina seu uso possível, a fim de garantir a existência e a coexistência dos homens. Uma F. que
projete neste sentido (aliás, já esclarecido por Platão) o uso humano do saber obviamente é a
determinação de técnicas de vida que podem ser postas à prova, corrigidas ou rejeitadas .
III. A filosofia e seus procedimentos — O terceiro ponto de vista para identificar constantes de significado
que permitam reconhecer articulações fundamentais nas interpretações do conceito de F., ao longo da
história, é o que se refere ao procedimento ou método atribuído à F. Desse ponto ele vista, as F. podem ser
divididas em a) F. sintéticas ou criativas, que produzem conceptualmente seu objeto, sem impor limites
ou condições a esse trabalho de construção; e b) F. analíticas, que reconhecem a existência de dados, que
elas descrevem ou analisam. A característica das F. analíticas é a limitação a que elas se julgam
submetidas por parte do dado, seja qual for a maneira como o concebem. A característica das F. sintéticas,
ao contrário, consiste em não reconhecer essa limitação e em pretender que seu método seja inteiramente
construtivo, capaz de exaurir todo o objeto da filosofia.
d) O procedimento sintético não pode lançar mão da verificação de situações, fatos ou elementos que
sejam independentes dele; sua característica, portanto, é valer como verifica-
FILOSOFIA
454
FILOSOFIA
ção de si mesmo. Sempre que uma filosofia pressupõe que a validade de seus resultados depende
exclusivamente de sua própria organização interna, podendo, pois, ser reconhecida e estabelecida de uma
vez por todas, sem necessidade de que esses resultados sejam postos à prova e confirmados por técnicas
ou procedimentos independentes dela, seu método pode ser considerado sintético. Com efeito, neste caso,
seu modo de proceder eqüivale à criação ou composição ex novo de seu objeto, de forma que não exige
confirmações nem teme desmentidos. A F. de Hegel constitui a encarnação mais pura desse tipo. Quando
Hegel diz: "A F. não tem a vantagem de que gozam as outras ciências, de poder pressupor que seus
objetos são dados imediatamente pela representação e (de poder pressupor) como já admitido seu método
de conhecer no ponto de partida e no procedimento seguinte" {Ene, § 1), está afirmando precisamente a
exigência de que a F. construa seu objeto e seu método por si mesma e inteiramente. Mas, produzindo por
si mesma tanto o objeto quanto o método, ela não tem de prestar contas de seus resultados, quaisquer que
sejam, a outras ciências ou a outros pontos de vista eventuais. Hegel insiste no caráter absolutamente
independente ou incon-dicionado de seu método. "O método", diz ele, por exemplo, "assim como o
conceito na ciência, desenvolve-se por si mesmo e é apenas uma progressão imanente e uma produção de
suas determinações" {Fil. do dir., § 31). E ainda: "A mais elevada dialética do conceito é produzir e
entender a determinação não só como limite ou posição, mas haurindo dela conteúdo e resultado
positivos, pois unicamente com isso ela é desenvolvimento e progresso imanente. Essa dialética não é um
fazer externo do pensamento objetivo, mas a própria alma do conteúdo, que faz brotar seus ramos e seus
frutos or-ganicamente" {Ibid., § 31). A diferença entre esse método produtor, ou melhor, criador de seu
objeto e o método analítico, que Hegel identifica nas ciências depois de Descartes, é expressa por ele da
seguinte maneira: "O método iniciado por Descartes rejeita todos os métodos interessados em conhecer
aquilo que, por natureza, é infinito; entrega-se, portanto, ao desenfreado arbítrio das imaginações e
asserções, à presunção de moralidade, ao orgulho de sentimentos ou ao excesso de opiniões e raciocínios,
veementemente assestados contra a F. e os filosofemas" {Ene, § 77).
Essa concepção atribui ao procedimento filosófico a produção de seu objeto, tomando como objeto o
infinito, o Absoluto ou Deus, que resolve ou anula em si todos os fatos ou todas as coisas finitas. Antes de
encontrar em Hegel sua forma típica, essa concepção havia sido exposta por Fichte como exigência de
que a F., como doutrina da ciência, confira forma sistemática não só a si mesma, mas também a todas as
outras ciências possíveis e garanta para todas a validade dessa forma (Über den Begriffder
Wissenschaftslebre [Sobre o conceito da teoria da ciência], 1794, § 1). Com efeito, Fichte considerava
que, juntamente com a forma, a doutrina da ciência deveria produzir também o conteúdo e que o conteúdo
da doutrina da ciência deveria encerrar qualquer possível conteúdo, que seria portanto "o conteúdo
absoluto" {Ibid., § 1). Retrocedendo um pouco mais, vemos que a concepção do método sintético pode
ser encontrada em Spinoza, para quem o procedimento filosófico (que denomina conhecimento intuitivo,
terceiro gênero de conhecimento ou amor intelectual a Deus) é o que tem por objeto a necessidade com
que todas as coisas resultam da natureza divina. O amor intelectual a Deus é o mesmo amor com que
Deus se ama a si mesmo {Et., V, 36) e isso significa que o conhecimento da necessidade com que as
coisas provêm de Deus é o conhecimento mesmo que Deus tem de si. Desse ponto de vista, o
procedimento matemático da Ética assume importância fundamental na filosofia de Spinoza: não é um
artifício expositivo, mas a adequação do método da F. ao procedimento necessário com que as coisas
provêm de Deus. Assim considerado, o método sintético revela-se em sua característica mais evidente: a
pretensão de valer como uma vista d'olhos divina sobre o mundo, como o conhecimento que Deus tem de
si e dos seus efeitos criados. E fácil perceber, então, por que essa pretensão foi tão freqüente em F.
Aristóteles dizia: "Somente esta ciência é divina, e em sentido duplo: porque própria de Deus e porque
concernente ao divino. Só a ela couberam esses dois privilégios; Deus aparece como a causa e o princípio
de todas as coisas e só uma ciência semelhante, ou sobretudo ela, pode ser própria de Deus" {Met., I, 2,
983 a 5). Aristóteles chamava de teologia a F. primeira. Verdade é que a F. primeira é tal por sua
universalidade e que ela é universal somente na medida em que é ciência do ser enquanto ser {Ibid., VI, I,
FILOSOFIA
455
FILOSOFIA
1026 a 30). Mas a ciência do ser enquanto ser é teologia porque é a ciência da causa ou razão de ser a esta
causa ou razão de ser é Deus. Por isso, a F. aristotélica possui caráter declaradamente sintético e, aliás,
pode ser considerada o primeiro e clássico exemplo do procedimento sintético. Obviamente, não é
sintética só porque tem Deus como objeto de sua investigação, mas também porque se considera
coincidente com o conhecimento que Deus tem de si. E por essa característica pode-se reconhecer
facilmente uma F. sintética.
b) O procedimento analítico da F. reconhece-se negativamente pela ausência de pretensão de valer como
conhecimento divino do mundo e, positivamente, pelo reconhecimento de limites para suas possibilidades
e de verificação de seus resultados. O procedimento analítico não é, por conseguinte, a construção ex
novo do seu objeto, mas a resolução dele nos elementos que permitem sua compreensão, ou seja, em suas
condições. Nestes termos, a determinação do procedimento filosófico por Kant foi feita primeiramente
num texto de 1764, Sobre a distinção dos princípios da teologia natural e da moral, e depois na segunda
parte principal da Crítica da Razão Pura. No primeiro texto, Kant contrapunha o método analítico da F.
ao método sintético da matemática: "Aos conceitos gerais pode-se chegar por dois caminhos: pela ligação
arbitraria dos conceitos ou isolando os conhecimentos que foram esclarecidos por subdivisão. A
matemática sempre chega às definições seguindo o primeiro caminho... As definições filosóficas, ao
contrário, são completamente diferentes. Nelas, o conceito das coisas já foi dado, mas de maneira confusa
e não suficientemente determinada. É preciso subdividi-lo, comparar nos vários casos as notas que foram
separadas com o conceito dado, para depois determinar e levar a termo a idéia abstrata" iUntersuchung
über die Deu-tlichkeit der Grundsãtze der natürlichen Theo-logie und der Moral, I, I, § 1). Na Crítica da
Razão Pura, Kant distinguiu o conhecimento filosófico, como conhecimento por conceitos, do
conhecimento matemático, que consiste na construção de conceitos. Kant diz que a matemática pode
construir conceitos porque dispõe de uma intuição pura que é a do espaço-tem-po. A F., porém, não
dispõe de uma intuição pura, mas somente de uma intuição sensível: os objetos da F. devem, pois, ser
dados e por isso só podem ser analisados, e não
construídos, pelo procedimento filosófico {Crít. R. Pura, Doutrina do método, cap. I, seç. 1). Kant,
portanto, acautela os filósofos contra a pretensão de querer organizar sua ciência segundo o modelo
matemático. Em F., não há propriamente definições (que sejam construções de conceitos), nem axiomas,
que são verdades evidentes, nem demonstrações, que são provas apodíticas. Em relação a estas últimas
Kant diz: "A experiência nos ensina o que existe, mas não que isso não pode ser de outra maneira.
Princípios empíricos de prova não podem dar-nos nenhuma prova apodítica. De conceitos a priori (no
conhecimento discursivo) nunca pode nascer uma certeza intuitiva, uma evidência, mesmo que o juízo
possa ser apodi-ticamente certo" ilbid., Doutrina do método, cap. 1, seç. 1). Deste ponto de vista, o
procedimento da F. está bem longe da possibilidade de dar ao homem um conhecimento comparável ao
possuído por Deus. "A determinação dos limites de nossa razão só pode ser feita segundo princípios a
priori, mas a limitação da razão, que vem a ser o conhecimento, mesmo que indeterminado, da ignorância
que nunca pode ser completamente eliminada, também pode ser conhecida aposteriori; vale dizer que, em
todo conhecer, sempre nos resta o que conhecer" ilbid., Da impossibilidade da satisfação cética). A F.
nunca é uma ciência perfeita, que se possa ensinar ou aprender. "Pode-se apenas aprender a filosofar, a
exercitar o talento da razão na aplicação dos seus princípios universais a determinadas investigações, mas
sempre com a ressalva de que é direito da razão investigar esses princípios em suas fontes, para confirmálos ou recusá-los" ilbid., Doutrina do método, cap. III).
Essas considerações de Kant constituem um conceito relativamente acabado ou maduro do procedimento
analítico em filosofia. Seu precedente imediato é Locke, que disse: "Não nos cabe neste mundo conhecer
todas as coisas, mas sim as que concernem à nossa conduta de vida. Se pudermos então achar as normas
graças às quais um ser racional como o homem, considerado no estado em que se encontra neste mundo,
possa e deva conduzir suas opiniões e as ações que dela dependam, se pudermos chegar a tanto, não
devemos ficar aflitos se outras coisas escapam ao nosso conhecimento" iEnsaio, Intr., § 6). O conceito de
F. como procedimento analítico, com vistas a determinar as condições e, assim, os limites das
FILOSOFIA
456
FILOSOFIA
atividades humanas, inspirou todo o Iluminismo setecentista. Mas nesse aspecto, ressalvadas as
diferenças devidas aos meios culturais disponíveis, o Iluminismo setecentista retomava o ideal ao
Iluminismo antigo dos Sofistas e de Sócrates, para os quais a F. visava à formação do homem na
comunidade. O próprio conceito que Platão tem da F. pode ser considerado manifestação desse
Iluminismo, segundo o qual a F. é instrumento do homem. Platão de fato negava que a F. pudesse
pertencer à divindade. Tanto quanto o amor, ela é falta, porque desejo de sabedoria por parte de quem não
possui a sabedoria pela própria natureza. O homem é filósofo porque "está no meio, entre aquele que sabe
e aquele que ignora", ao passo que a divindade, que já possui o saber, não precisa filosofar (O Banq., 204
a-b). Por outro lado, a dialética, método da F., é concebida por Platão como análise, como um
procedimento que permite distinguir o discurso verdadeiro do falso, mostrando as coisas que podem
combinar-se e as que não podem combinar-se (Sof., 252 d-e). Para mostrar quais são as coisas que podem
e quais não podem combinar-se, a dialética procede compondo várias determinações em um único
conceito e depois dividindo esse conceito nas suas articulações como faz um hábil trinchador (Fed., 265
e). Portanto, a cada passo, supõe a escolha oportuna das determinações, a serem compostas num único
conceito, e dos aspectos segundo os quais dividir esse conceito; essa escolha, como qualquer outra, supõe
uma utilização de elementos, pelo que o método platônico foi, com justiça, considerado empírico (Taylor,
Plato, 4
a
ed., 1937, p. 377).
A concepção analítica tem como característica considerar a F. como atividade humana, ou seja, limitada
em termos de alcance e validade, cuja função é fazer escolhas, e não construir in totó seu objeto. Destas
duas características provém a terceira, talvez a mais óbvia e visível: que consiste em ser esse método,
entre outras coisas e em primeiro lugar, reconhecimento e utilização de dados, ou seja, de fatos,
elementos ou condições, que não são produzidos pelo próprio método. A escolha dos dados e sua
elaboração com vistas a uma solução possível constitui o problema (v.). As F. analíticas são, em geral,
marcadas pelo fato de que nelas a noção de problema é fundamental, ao passo que não existe ou é
considerada secundária e negligenciável nas F. sintéticas (como acontece
nas de Aristóteles e Hegel). Outra determinação dessa concepção (que ela só adquire no mundo
contemporâneo) é a que concerne ao campo do qual a F. pode ou deve tirar seus dados e com o qual a
interpretação desses elementos pode e deve ser confrontada. É recente a idéia de que os resultados da F.,
assim como os de qualquer outra investigação, não são definitivos, mas precisam ser provados e
experimentados. Devido a isso, Dewey chamou a F. de crítica das críticas. Disse: "A alguns pode parecer
uma traição conceber a F. como o método crítico para desenvolver os métodos da crítica. Mas até esse
conceito de F. espera ser provado, e a prova que o confirmará ou condenará consiste no resultado final. A
importância do conhecimento que adquirimos e da experiência que foi revivificada pelo pensamento
consiste em evocar e justificar a prova" {Experience and Nature, p. 437).
Entretanto, essa exigência torna-se operante só quando se determina o campo do qual a F. extrai seus
dados e no qual encontra possibilidades de confirmação. A determinação deste campo constitui a
característica da F. analítica dos nossos tempos. Ora, os campos aos quais podemos referir-nos são apenas
dois: ls
existência individual; 2- existência social.
1
Q
As F. que recorrem à existência individual para a busca de dados e eventual prova das soluções
consideram habitualmente a existência individual como consciência e vêem a consciência como domínio
da filosofia. No mundo contemporâneo, a mais conhecida e típica F. desse tipo é a de Bergson, que se
organiza explicitamente como busca dos "dados imediatos da consciência" e utiliza esses dados para
soluções que, por sua vez, só podem ser postas à prova no âmbito da consciência. A esse tipo de F. liga-se
também a fenomenologia concebida por Husserl como "um retorno radical ao ego cogito puro, para fazer
reviverem os valores eternos que dele procedem" (Cart. Med., § 2). O defeito metodológico desse tipo de
F. consiste no fato de que nelas o dado, que deve servir como limitação ou verificação do procedimento
analítico, na verdade não é independente desse procedimento, porque só pode ser descoberto ou assumido
com base nos pressupostos que o inspiram.
2
S
F. que recorrem à existência social têm como precursora a F. de Platão, que pretendia provar os
resultados da F. na vida social. Ao mesmo gênero pertence a F. de Kant, segundo
FILOSOFIA PRIMEIRA
457
FENAIISMO
a qual os resultados da F. devem ser provados no domínio moral e político, ou seja, no campo das
relações humanas em geral, e devem constituir um instrumento de progresso nesse campo [cf. os textos
Se o gênero humano está progredindo constantemente para o melhor, de 1798, Sobre o Iluminismo, 1784,
bem como os citados antes neste verbete, II, b]. É também à experiência inter-humana que Dewey se
refere para submeter à prova resultados da F., ou seja, propostas que ela formula para a conduta de vida
inteligente {Experience and Nature, cap. X). Por outro lado, o existencialis-mo de Heidegger, embora não
planeje pôr à prova os resultados de suas análises, toma os dados desta análise na existência cotidiana
comum, naquilo que acontece entre os homens "acima de tudo e na maioria das vezes" (Sein undZeit, §
9)- Finalmente, podemos inserir nesse mesmo panorama a F. considerada como análise da linguagem, que
discerne nesta o fato intersubjetivo fundamental e, portanto, na acla-ração e na retificação da linguagem o
instrumento mais apto a eliminar equívocos e a retificar relações intersubjetivas. Esta pelo menos
pareceria a significação mais importante de tal F. Mas não se tem essa significação quando ela é entendida
simplesmente como "terapia", cujo objetivo é livrar das dúvidas (consideradas fictícias) produzidas peía
filosofia. Neste caso, uma vez que ninguém, salvo o interessado, pode julgar se está suficientemente
"curado", a prova a que se submeteria a F. teria como campo a vida privada do indivíduo.
FILOSOFIA PRIMEIRA (gr. jtpÓTT| q>l\o-aoqríct; lat. Prima philosophia; in. First philoso-phy, fr.
Philosophie première, ai. Ersten Phi-losophie, it. Filosofia prima). Foi esse o nome que por vezes
Aristóteles deu à F. como ciência do ser (ou teologia), para distingui-la da física (F. segunda) e da
matemática (Fís., I, 9, 191 a 36; Met., VI, 1, 1026 a 16; etc). Bacon usou esse termo para indicar a
"ciência universal", que seria uma árvore da qual partem, como tantos ramos, as ciências específicas, que
tem por objeto os princípios comuns às ciências (Deaugm. scient., III, 1) (v. FILOSOFIA). Na significação
aristotélica, esse vocábulo foi substituído por metafísica (v.).
FIM (gr. zékoç, ou êvera; lat. Finis; in. End, Putpose, fr. Fin, But; ai. Zweck, it. Fine). Esta palavra tem as
seguintes significações principais:
I
a
limite, no sentido com que Aristóteles diz: "a natureza procura sempre o F.", ou seja,
"foge do infinito" (De gen. an., I, 1, 715 b, 16, 15). Dewey usou essa palavra no mesmo sentido:
"Podemos conceber o F. como devido ao cumprimento, à consecução perfeita, à saciedade, à exaustão, à
dissolução, a alguma coisa que diminuiu ou cedeu"; em outras palavras, os F. são só "termos ou
conclusões de episódios temporais" favoráveis ou desfavoráveis, bons ou ruins (Experience and Nature,
pp. 97 ss.);
2
a
término ou perfeição, com o sentido que freqüentemente tem a palavra grega télos. Neste sentido diz-se
que uma coisa "chegou ao F." sobre uma coisa que foi terminada;
3
a
motivo ou causa final, no sentido da quarta das quatro causas aristotélicas (v. CAUSALIDADE). Neste
sentido a palavra italiana scopo, a francesa but, a inglesa purpose são mais bem empregadas, pois têm
caráter objetivo, quer se entenda o F. como imanente à natureza, quer se entenda como motivo de um
comportamento humano: é o termo final do projeto ou do plano ao qual se refere;
4
a
intuito ou alvo, ou seja, F. em seu aspecto subjetivo, como aquilo que tem em mira certa intenção, mas
que pode ser diferente do alvo atingido na realidade.
FINALIDADE (in. Purposiveness, Finality, fr. Finalité, ai. Zweckmãssigkeit; it. Finalita).
Correspondência entre um conjunto de coisas ou de acontecimentos e um fim. Assim, p. ex., a F. de um
plano ou de um projeto é a correspondência ou a adequação desse plano ao fim a que visa. A F. da
natureza é a correspondência da natureza com os seus supostos fins, etc. Essa palavra não se aplica, pois,
exclusivamente à causalidade dos fins da natureza (à qual se aplica a palavra finalismo), mas em geral
designa certa forma de organização ou ordem.
FINALISMO (in. Finalism; fr. Finalisme, ai. Finalismus; it. Finalismo). Doutrina que admite a
causalidade do fim, no sentido de que o fim é a causa total da organização do mundo e a causa dos
acontecimentos isolados. Essa doutrina implica duas teses: I
a
o mundo está organizado com vistas a um
fim; 2a
a explicação de qualquer evento do mundo consiste em aduzir o fim para o qual esse evento se
dirige. Essas duas teses freqüentemente estão unidas ou confundidas, mas às vezes elas são diferentes e
procura-se admitir uma sem admitir a outra. Segundo relato de Platão e de Aristóteles, Anaxágoras foi o
primeiro dos antigos a admitir a causalidade do fim (PLATÃO, Fed., 97C; ARISTÓTELES, Met., I, 3, 984 b
18). Platão apre-
FINAUSMO
458
FINAUSMO
senta sua própria doutrina como uma conseqüência do princípio de Anaxágoras de que a inteligência é a
causa ordenadora do mundo. "Se a inteligência ordena todas as coisas e dispõe cada coisa do modo
melhor", diz ele, "achar a causa graças à qual cada coisa é gerada, destruída ou existe significa descobrir
qual é a sua melhor maneira de existir, modificar-se ou agir" (Fed., 97C). Desse ponto de vista o "melhor"
ou o "excelente" é a "verdadeira" causa das coisas, ao passo que são causas secundárias ou concausas as
de natureza física habitualmente aduzidas (Tim., 46 d; Fil., 54 c). Mas a doutrina graças à qual prevaleceu
a concepção finalista na metafísica antiga e recente é a aristotélica. As duas teses próprias do F. são partes
integrantes da metafísica aristotélica. Por um lado, Aristóteles afirma que "tudo aquilo que é por natureza
existe para um fim" (De an., III, 12, 434 a 31) e identifica o fim com a mesma substância, "forma ou
razão de ser da coisa" (Met., VIII, 4, 1044 a 31). Por outro lado, julga que o universo inteiro está
subordinado a um único fim, que é Deus, do qual depende a ordem e o movimento do universo (Ibid.,
XII, 7, 1072 b). Com base nisso, Aristóteles defende a causalidade do fim contra a tese que ele chama de
"necessidade", consistente em admitir que as coisas não acontecem com vistas ao seu resultado melhor,
mas que, às vezes, o resultado melhor é o efeito acidental da necessidade. De fato, assim como se diz que,
dadas certas causas, necessariamente choveu, e que a chuva provocou acidentalmente a perda da colheita,
sem que esta fosse a finalidade da chuva, po-der-se-ia tentar explicar do mesmo modo a forma dos
organismos animais (Fís., II, 8, 198 b 17). Contra esse modo de raciocinar, Aristóteles observa que aquilo
que acontece sempre ou geralmente não pode ser explicado com o acaso, mas supõe a necessidade da
ação do fim (Ibid., II, 9, 200 a 5). Não encontramos, porém, em Aristóteles aquela forma popular da teleologia iniciada com os estóicos, que consiste em demonstrar que as coisas do mundo são feitas pela
natureza em proveito do homem. O fundamento desta teleologia foi expresso por Cícero-, "Para quem
então poderíamos dizer que o mundo foi realizado? Evidentemente para os seres vivos dotados de razão,
ou seja, para os deuses e para os homens; nada há de fato que seja mais excelente que eles, em virtude de
a razão ser superior a tudo: assim, é crível que o mundo e tudo o que no mundo existe foi feito
para os deuses e para os homens" (De nat. deor., II, 133). Em vista de sua estreita conexão com a teologia,
entende-se por que o F. sempre serviu de fundamento para a metafísica teológica. Os escolásticos insistem
sobre a superioridade causai do fim, que chamam de "causa das causas". S. Tomás, seguindo as pegadas
de Aristóteles, resolve na causalidade do fim a necessidade própria dos movimentos naturais. "A
necessidade natural que inere nas coisas e as dirige"; escreve ele, "chega às coisas imprimida por Deus,
que as destina a um fim, do mesmo modo como a necessidade com que a flecha se desloca e graças à qual
se dirige para o alvo foi-lhe imprimida por quem a lançou e não pertence à flecha" (S. Th., I, q. 103, a. 1).
Este é o pensamento fundamental que domina e torna extraordinariamente uniformes todas as teorias
finalistas, tão abundantes na história da F. até os nossos dias. Hegel considerou uma grande inovação a
sua doutrina do fim como do "próprio conceito em sua existência", e da finalidade como determinação
imanente à natureza; contrapôs essa doutrina a outra que considerava tradicional, para a qual um intelecto
"terreno" impõe, de fora, seus fins à natureza (Wissenschaft der Logik, III, seç. II, cap. III; trad. it., pp.
216 ss.). Mas na realidade, como os textos até agora citados provam na história da F., não existe doutrina
de finalidade extrínseca e imposta por um intelecto extraterreno, visto que, por finalidade do mundo, tanto
Aristóteles quanto os estóicos e S. Tomás entendem a razão de ser do mundo, sua necessidade imanente:
S. Tomás identifica explicitamente a impressio de Deus sobre a natureza com a "necessidade inerente às
coisas". Como tal, a necessidade é sempre imanente à totalidade cuja organização constitui. E como já
observava Aristóteles, sob este aspecto o F. não muda, quer se trate de totalidades naturais, quer se trate
de totalida-des artificiais; na construção de uma casa o fim penetra o material utilizado e não inere a ele
de maneira diferente daquele com que inere às partes de um organismo (Fís., II, 9, 200 a 34). Em todos os
casos, para usar a expressão de Hegel, o F. é o próprio conceito na sua existência: a realização de um
conceito que desde o início dirige e governa essa mesma realização. Portanto, a polêmica de Hegel contra
"o intelecto extraterreno" é teológica — contraposição de uma tese panteísta a uma tese teísta —, mas não
concerne ao finalismo. Significação diferente tem a distinção entre finalidade interna e
FINALISMO
459
FINALISMO
finalidade externa feita por Schopenhauer, que no entanto mantém inalterado o conceito tradicional de F.,
apesar de sua tese sobre o caráter irracional e desordenado da força que rege o mundo. Para
Schopenhauer, finalidade interna é "a harmonia de todas as partes de um organismo, de tal modo que a
conservação deste e de sua espécie seja objetivo desta harmonia". Finalidade externa é, pelo contrário, a
"relação da natureza inorgânica com a orgânica ou de partes da natureza orgânica entre si, o que
possibilita a conservação da natureza orgânica toda e das espécies individuais" iJJie Welt, I, § 28). Por
outro lado, nesse aspecto a doutrina de Bergson não constitui uma inovação do F. tradicional. No que se
refere à finalidade orgânica, Bergson declarou-se contrário ao "mecanismo radical" e ao "F. radical",
reconhecendo em ambos a negação do caráter "imprevisível" ou "criador" da evolução vital. A harmonia
— diz ele — deve encontrar-se atrás e não à frente dessa evolução. "O futuro não está contido no presente
sob a forma de um fim representado. Entretanto, uma vez realizado, explicará o presente assim como o
presente o explicava, e ainda melhor; deverá ser considerado fim, mais que resultado. Nossa inteligência
tem o direito de considerá-lo abstratamente do seu ponto de vista habitual, visto que ela mesma é uma
abstração realizada sobre a causa da qual emana" (Évol. créatr., 8
a
ed., 1911, cap. I, p. 57). Mas tampouco
esta determinação feita por Bergson inova muito o conceito clássico de F., cuja natureza não consiste,
como julga Bergson, em negar os caracteres imprevisíveis ou novos que emergem durante a realização do
fim, mas unicamente em admitir a causalidade do fim e em considerar essa causalidade como princípio de
explicação. A doutrina de Bergson não contribui para inovar esses dois aspectos, podendo, pois, ser
reintegrada na concepção clássica de F., assim como podem ser reintegradas nessa concepção as doutrinas
que, apesar de admitir o mecanismo, consideram-no compreendido no F. geral da natureza, e a ele
subordinado, como fazem Leibniz (Op., ed. Gerhardt, III, p. 607; IV, p. 284), Lotze {Mikro-kosmus, 1856,
I) e, com eles, muitos espiritualistas contemporâneos.
É só com a interpretação de Kant que o F. se inova significativamente. Essa interpretação nega a 2- tese
do F., segundo a qual explicar um fenômeno significa aduzir o objetivo. Para Kant, a explicação dos
fenômenos só pode ser causai, e
o juízo teleológico é reflexivo, não determinante, ou seja, não apreende um elemento constitutivo das
coisas, mas um modo subjetivo, porquanto inevitável para o homem representá-las. "Há uma diferença
absoluta entre dizer que a produção de certas coisas da natureza, ou mesmo de toda a natureza, só é
possível por meio de uma causa que se determina a agir segundo fins, e dizer que, segundo a natureza
particular de minha faculdade cognoscitiva, só posso julgar da possibilidade das coisas e de sua produção
concebendo uma causa que aja segundo fins, portanto um ser que produza de modo análogo à causalidade
de um intelecto. No primeiro caso quero afirmar alguma coisa do objeto, e- sou obrigado a demonstrar a
realidade objetiva do conceito que admito; no segundo caso a razão só faz determinar o uso de minhas
faculdades cognoscitivas, de acordo com sua natureza e com as condições essenciais de seu alcance e de
seus limites" {Crít. dojuizo, § 75). Do segundo ponto de vista, que é o proposto por Kant, o F. não passa
de conceito regulador do uso do intelecto humano: uso oportuno e necessário pelo fato de que o intelecto
humano encontra limites bem precisos na explicação mecânica do mundo, sendo, pois, levado a recorrer a
uma consideração complementar. Esta, contudo, nunca pode valer como explicação, e sua única função é
ajudar a procurar as leis particulares da natureza (Ibid., § 78). Esse ponto de vista kantiano (recentemente
renovado por N. HARTMANN, Philosophie der Natur, 1950), enquanto nega ao F. qualquer valor
cognoscitivo e científico, atribuiu-lhe uma espécie de validade subjetiva, entre estética e moral, que se
deve à limitação inevitável do conhecimento humano. Obviamente, a interpretação kantiana do F. repousa
na tese dos adversários do F., que nega poder explicativo ao F. Só esta negação constitui, na realidade, o
abandono do F. e só as razões que o apoiam constituem uma autêntica crítica a ele. Na realidade, o F. não
é uma generalização empírica a partir da consideração de certo número de exemplos teleológicos;
tampouco uma "disteleologia", ou seja, uma lista de casos contrários ao F., é uma crítica decisiva ao F. A
doutrina de Platão e de Aristóteles a respeito, particularmente a deste último, mostra claramente o
fundamento do F.: a crença em que a única explicação possível dos acontecimentos é a que aduz o
objetivo pelo qual aconteceram. Para Platão e para Aristóteles, o objetivo é a forma ou a razão de ser da
coisa, e a
FINALISMO
460
FINALISMO
determinação do objetivo é a explicação causai da coisa. Começou-se a duvidar desse princípio só na
idade moderna. O epicurismo, que, com Lucrécio, negava o F. aduzindo que ele põe antes o que vem
depois (p. ex., a visão antes do olho [LUCRÉCIO, De rer. nat., IV, 829 ss.]), não constitui a negação desse
princípio. A primeira crítica a ele pode ser encontrada na Escolástica do séc. XIV, em G. Ockham, que,
em primeiro lugar, mostra que a ação do fim só pode consistir em impelir a causa eficiente a agir e, em
segundo lugar, que essa ação é puramente metafórica (In Sent., II, q. 3 G). Ockham observa que a ação do
fim só poderia consistir em ser desejado ou amado e que isso demonstra o caráter metafórico dessa ação.
Não tem sentido perguntar a causa final das ações naturais, que se verificam com uniformidade; p. ex.,
não tem sentido perguntar com que fim o fogo é gerado, pois não é preciso que haja um fim para que o
efeito se produza (Quodl., IV, q. 1). Esta talvez tenha sido a primeira crítica feita ao valor explicativo do
F. Alguns séculos depois, a causa final era completamente desprezada na explicação que Telésio tentava
dar do mundo natural (De rer. nat., 1565). E Bacon excluía explicitamente da investigação experimental a
consideração do fim (Nov. Org., II, 2). Dizia: "A investigação das causas finais é estéril: assim como uma
virgem, consagrada a Deus, nada gera" (Deaugm. scient, III, 5). Por sua vez, Galilei (Op., VII, p. 80) e
Descartes (Princ.phil, III, 3) eliminaram da ciência a consideração da causa final, e Spinoza contrapôs a
necessidade com que as coisas provêm da natureza divina ao F., que considerou um preconceito, contrário
à ordem do mundo e à perfeição de Deus (Et., I, 36, Ap.). A partir dessa época, que marca a origem da
ciência moderna, o F. deixou de valer como procedimento de explicação científica.
Verdade é que sempre se insinuou nas lacunas deixadas pela explicação mecanicista do mundo e sempre
foi considerado complemento desta explicação, além dos limites por ela alcançados. Isso aconteceu
principalmente no domínio das ciências biológicas ou na especulação filosófica sobre os resultados dessas
ciências. Apesar dos sucessos obtidos nesse campo pelo estudo físico-químico dos fenômenos biológicos,
freqüentemente se reconheceu o malogro ou mesmo a impossibilidade de se reduzirem esses fenômenos a
princípios mecanicistas. As várias formas de vitalismo (v.) são caracterizadas por esse reconhecimento,
portanto, pelo recurso da uma explicação teleológica dos fenômenos vitais. Esse recurso, todavia, pareceu inevitável só na
medida em que cientistas e filósofos formularam hipóteses globais sobre a origem e a natureza da vida,
uma vez que o trabalho propriamente científico, ao qual se devem os sucessos da biologia e da medicina
contemporânea, não empregou outros instrumentos, materiais ou conceituais, que não pertencessem às
ciências naturais. Esse trabalho, portanto, nunca precisou da hipótese finalista. Por outro lado, a situação
hodierna é caracterizada por: ls reconhecimento da originalidade dos fenômenos orgânicos em relação aos
fenômenos físico-químicos, sem que tal originalidade represente um caráter finalista (v. EVOLUÇÃO;
VITALISMO); 2Q
abandono do ideal da explicação mecânica, de tal modo que deixou de existir a diferença
radical que, com base no êxito dessa explicação, vinha-se estabelecendo entre fenômenos físicos de um
lado e fenômenos biológicos e antropológicos de outro lado (V. CAUSALIDADE; EXPLICAÇÃO). Em virtude
desta situação, por um lado alijou-se a causalidade do fim do domínio da evolução orgânica, e por outro
lado a ação dessa causalidade, tal qual se admite no homem, pode não ser considerada diferente da ação
da causalidade natural. Sobre a primeira questão, Simpson afirma: "Objetivo e plano não são
características da evolução orgânica e não constituem a chave para nenhuma de suas operações, mas são
características da nova evolução [social ou histórica] porque o homem tem objetivos e planos. Aqui
objetivo e plano entram definitivamente na evolução, como resultado e não como causa dos processos que
a longa história da vida nos mostra. Os objetivos e os planos são nossos, não do universo, que nos
apresenta indícios convincentes da ausência deles" (TheMeaning ofEvolution, 1952, p. 292). Mas, por
outro lado, os objetivos e os planos não constituem uma forma de causalidade à parte, que faça do mundo
no qual se verificam um domínio privilegiado ou especial do ser. No mundo humano a causalidade do fim
foi reintegrada na motivação (v.) que não difere formalmente da explicação causai (C. G. HEMPEL-P.
OPPENHEIM, "The logic of explanation", em Readings in the Phil. of Science, 1953, pp. 327-28); ou foi
descrita em termos de comportamento que implicam ainda menos referência a um tipo de explicação
específica (Roseblueth-Wiener-Bigelow, em Philosophy of Science, 1943, pp. 18 ss.).
HNTTISMO
461
FINS, REINO DOS
Em conclusão, o F., hoje considerado inútil em todos os campos de explicação científica, permanece
como característica das correntes metafísicas que consideram modesta demais para a filosofia a tarefa de
criticar os valores para corrigi-los ou conservá-los, propondo-se a tarefa de demonstrar que os valores são
garantidos pela própria estrutura do mundo onde o homem vive e que eles constituem o fim dessa
estrutura. O F. perdeu completamente o caráter científico que possuía originariamente na Grécia antiga e
permanece apenas como uma das tantas esperanças ou ilusões às quais o homem recorre na falta de
procedimentos eficazes ou em substituição deles.
FUSinSMO (in. Finitism; fr. Finitisme, ai. Finitismus, it. Finitismó). Com este termo, usado raramente,
entende-se toda doutrina que afirme a finitude do mundo, que adote as teses das antinomias cosmológicas
expostas na Crítica da Razão Pura de Kant.
FINTTO (gr. Tcerapaauévov; lat. Finitus; in. Finite, fr. Fini; ai. Endlich; it. Finitó). Esse termo tem as
seguintes significações principais, das quais as duas primeiras correspondem aos sentidos de infinito:
I
a Como disposição ou qualidade de uma grandeza em sentido matemático, F. é: d) o que está completo ou
é exaurível, ou seja, não tem partes fora de si: o contrário de infinito potencial; b) o conjunto não autoreflexivo, ou seja, não equipotente a uma de suas partes ou subconjuntos (no sentido estabelecido pela
teoria dos conjuntos de Cantor e Dedekind).
2
a
No sentido teológico, aquilo que encontra limites ou obstáculos à sua possibilidade de ser, à sua
potência. Esse conceito de F. remonta a Plotino, que foi o primeiro a entender o infinito como nãolimitação da potência (Enn., IV, 3, 8; VI, 6, 18). Mas foi principalmente nesse conceito que o
Romantismo se baseou para afirmar a realidade do infinito. Para Hegel, o infinito é a própria realidade
enquanto potência ilimitada de realização, enquanto Absoluto. F. é aquilo que não tem potência suficiente
para realizar-se, o ideal, o dever-ser (Ene, § 95; Wissenschaft der Logik, cap. II, seç. I; trad. it., I, p. 163).
Deste ponto de vista, F. é "irreal" e encontra realidade só no infinito e como infinito.
3
a
Aquilo que pode ser ou agir em determinadas condições. Esse é o sentida com o qual essa palavra foi
entendida por Kant. Ele chama o homem de "ser pensante F.", porquanto suas
possibilidades cognoscitivas são limitadas pela intuição sensível, ou seja, por uma intuição que depende
de objetos dados (Crít. R. Pura, % 8, IV). Do ponto de vista moral, o homem é um ser F. porquanto sua
vontade não se identifica com a razão e a lei desta vale para a vontade só como imperativo (Crít. R.
Prática, § 1, scol.). Enfim, a faculdade de juízo estético e teleo-lógico funda-se na natureza F. do homem,
na limitação de suas possibilidades cognoscitivas, porquanto não determinam completamente seu objeto,
mas apenas a forma deste (Crít. do Juízo, § 77). Essa significação da palavra permaneceu em expressões
como "intelecto F.", "ser F.", "natureza F.", etc.: nas quais F. não expressa uma limitação espacial ou
temporal, mas o caráter condicional de certas possibilidades que não são aptas a garantir a onisciência, a
onipotência e a infalibilidade. Com esta significação, esse termo foi aceito pelo existencialismo
contemporâneo. Heidegger vê o caráter F. do homem no fato de que qualquer projeto seu de mundo já
está dominado pelo próprio mundo, que limita as possibilidades projetáveis. Heidegger diz: "O projeto de
possibilidades, em conformidade com sua essência, está cada vez mais rico da posse na qual o projetante
se encontrava anteriormente. Mas uma posse assim só pode pertencer ao ser-aí porque ele, enquanto
projetante, sente-se imerso no meio do ente. Mas, com isso, já estão sendo subtraídas ao ser-aí outras
possibilidades, e isso em conseqüência de sua facticidade... Prova transcendental da finitude da liberdade
do ser-aí é que o projeto concreto do mundo só adquire força e se torna posse na subtração. Será que nisso
não se evidencia a essência F. da liberdade em geral?" (Vom Wesen des Grundes, III; trad. it., pp. 68-69).
Nesse sentido, "F.' é qualidade própria só do homem ou das possibilidades humanas, e finitude é o termo
abstrato correspondente. Toda filosofia da existência é uma filosofia do F. porque interpretação da
existência em termos de possibilidades condicionadas (v. EXISTÊNCIA, 3Q
).
FBVS, REINO DOS (ai. Reich der Zwecké). Segundo Kant, é a comunidade ideal dos seres racionais que
obedecem unicamente às leis da razão. O reino dos F. — diz Kant — é "o conceito em virtude do qual
todo ser racional deve considerar-se fundador de uma legislação universal por meio de todas as máximas
de sua vontade, de tal modo que possa julgar-se a si mesmo e às suas ações desse ponto de vista"
FÍSICA
462
FÍSICA
(Grundlegung zur Met. der Sitten, II). Nesse reino, entendido como "a união sistemática de vários seres
racionais sob leis comuns", cada membro é, ao mesmo tempo, legislador e súdito, valendo, portanto,
como "fim em si mesmo" (Ibid., II). V. DIGNIDADE.
FÍSICA (gr. (puoiKií; lat. Physica; in. Physics; fr. Physique, ai. Physik, it. Física). Disciplina que tem por
objeto o estudo da natureza; portanto, suas características e seus métodos estão em relação com aquilo
que entendemos por natureza (v.). Como disciplina específica, pode-se dizer que nasceu com Aristóteles,
que a considerou a "filosofia segunda" e, no grupo das ciências teóricas, distinguiu-a da teologia e da
matemática (Met., XI, 7, 1064 b 1). Podemos distinguir três conceitos fundamentais dessa ciência, que se
sucederam ao longo da história: le
F. como teoria do movimento; 2a
F. como teoria da ordem necessária; 3a
F. como previsão do observável.
1
Q
Quando nasceu, com Aristóteles, a F. era a teoria do movimento e como tal se manteve até as origens
da ciência moderna. Para Aristóteles, a F. tem por objeto "a substância que tem em si mesma a causa de
seu movimento" {Met., VI, 1, 1025 b 18); portanto, o modo como a F. considera as substâncias depende
da natureza dos movimentos dos quais elas são dotadas. Dos quatro movimentos distinguidos por
Aristóteles (substancial: geração e corrupção; qualitativo: mudança; quantitativo: aumento ou
diminuição; local translação [Fis., VIII, 7, 261 a 26]), o de translação é o primeiro e fundamental: todos
os outros podem ser explicados pela translação dos corpos (Ibid., VIII, 7, 260a-b). A determinação das
várias substâncias físicas deve, por isso, ser feita com base no movimento de translação que é próprio de
cada uma delas. O movimento de translação é de três espécies: do alto para o centro do mundo, do centro
para o alto, em tomo do centro ou circular. Os primeiros dois movimentos são contrários entre si e (como
a geração e a corrupção consistem na passagem de um contrário ao outro) próprios dos corpos sujeitos à
geração e à corrupção, ou seja, dos corpos terrestres ou sublunares, compostos por quatro elementos:
água, ar, terra e fogo. O movimento circular não tem contrários, porque mover-se da direita para a
esquerda ou da esquerda para a direita circularmente não modifica a atividade circular do movimento (De
cael., 1,4); esse movimento é próprio da substância que compõe os corpos não-geráveis e incorruptíveis,
que são os corpos celestes, e essa substância é o éter. Dos quatro elementos que compõem o mundo
sublunar, dois (ar e fogo) movem-se de baixo para cima; dois (água e terra), de cima para baixo. A F.
aristotélica, portanto, é qualitativa por considerar que determinado movimento é próprio de determinado
elemento, estabelecendo assim nítida divisão qualitativa entre os elementos e entre estes e o éter. Desta
postura segue-se o princípio geral da F. aristotélica, que é: "Todo elemento move-se para a sua esfera, se
não for impedido" (Fís., IV, 1, 208 b 10); esse princípio implica ou estabelece a existência de lugares
absolutos, que são sedes naturais dos elementos para as quais os elementos retornam quando delas são
afastados. Esses lugares, segundo Aristóteles, são determinados pelo peso dos elementos. No centro do
mundo está a terra, que é o elemento mais pesado (como se conclui, p. ex.. do fato de a pedra cair na água
ou afundar na água). Em torno da terra está a esfera da água, e em torno da esfera da água está a do ar,
que é mais leve ainda, como demonstra o fato de a bolha de ar que se rompe na água subir à superfície.
Em torno da esfera do ar está a do fogo, que é elemento mais leve, como prova o fato de as chamas que
estão na superfície da terra tenderem para o alto, para a esfera que está acima do ar. Com base nisso,
Aristóteles determina os caracteres do mundo.-único porque os elementos se condensam cada um em sua
esfera; finito porque acabado e perfeito; como tal, ordenado para um único fim, que é Deus. Esta
doutrina, que se baseia em pequeno número de experiências comuns e é admirável por sua elegância e
simplicidade, foi a maior expressão, no pensamento antigo, da síntese dos conhecimentos naturais. Diante
dela, a F. atomista dos epicuristas e a F. panteística dos estóicos têm mais caráter de especulação que de
conhecimento científico. Foi realmente isso que os cientistas antigos pensaram, pois deixaram-nas
completamente de lado remeten-do-se constantemente à F. aristotélica; com ela Ptolomeu (séc. II)
elaborou sua astronomia. A F. aristotélica dominou sem rival durante muitos séculos, e, apesar das
dúvidas levantadas por alguns escolásticos no séc. XIV, só foi abandonada com Leonardo da Vinci,
Copérnico, Kepler e Galilei, aos quais se deve a primeira organização da ciência moderna.
2- O segundo conceito fundamental da F. considera-a como estudo da ordem experimen-tável da natureza.
Para esse conceito contribuí-
FÍSICA
463
FÍSICA
ram os aristotélicos do Renascimento, com a defesa da necessidade da ordem natural, os platônicos do
Renascimento, em especial Nicolau de Cusa, com a afirmação do caráter matemático da ordem natural, e
a magia, com a pretensão de atingir e exercer domínio efetivo sobre a natureza. O conceito da natureza,
que já está claro em Galilei, é de ordem objetiva, escrita em caracteres matemáticos, necessária e
destituída de finalidade, atingível por meio do experimento. Sobre este conceito de ordem fundava-se a
noção de harmonia, que para Kepler era a base da ciência da natureza (Harmonices mundi, 1619, IV, I). A
obra de Newton conduzia à maturidade o conceito correspondente de F. Passava a ser tarefa da F.,
explícita e unicamente, a descrição da ordem natural. A F. aristotélica, como teoria do movimento, era
dirigida ao estudo das causas do movimento, que coincidiam com as substâncias (formas ou causas finais)
das coisas. Newton esclarecia em que sentido a determinação da ordem natural deve ser objeto da ciência,
chegando a negar, em oposição à ciência aristotélica, que a F. fosse ciência das causas (Optice, 1740, III,
q. 31). Em 1764 Kant assim descrevia o conceito newtoniano de ciência: "Com experiências seguras e, no
caso, com o auxílio da geometria também, devem ser procuradas as regras segundo as quais ocorrem
certos fenômenos da natureza" (Untersuchung über die Deutlichkeit der Grundsãtze der na-türlichen
Theologie und der Moral, 1763, II). Estas regras são as leis naturais, que traçam a ordem dos fenômenos
naturais, ou seja, o modo necessário, portanto uniforme e constante, de interconexão entre eles. Descrever
essa conexão é tarefa da F. O iluminismo e o positivismo aplicaram esse conceito de F., que foi enfatizado
por D'Alembert (Élements dephil, 1759, § 4) e serve de base para a noção de ciência expressa por Comte:
"O caráter fundamental da F. positiva é considerar todos os fenômenos como submetidos a leis naturais
invariáveis, cuja descoberta exata e cuja redução ao mínimo número possível constituem os objetivos de
todos os nossos esforços, considerando-se absolutamente inacessível e sem sentido a busca daquilo a que
se dá o nome de causas, sejam estas primárias ou finais" (Coursdephil.positive, liç. I, § 4). As leis nada
mais são que expressões da ordem necessária da natureza.
O conceito de F. como teoria da ordem natural contrapõe-se ao conceito de F. como teoria do movimento por pretender limitar-se a descrevera natureza em sua ordem, em vez de explicá-la
emí£yas causas. A partir de Newton a descrição opõe-se à explicação, como tarefa própria da F. Ou então
— o que dá no mesmo —, considera-se que a explicação à qual a F. deve aspirar legitimamente é a
determinação da relação entre dois fenômenos, de acordo com uma lei, o que, sob um outro aspecto, é
simples descrição. Portanto, a característica desse conceito de F. é o reconhecimento das conexões
necessárias entre os fenômenos, nas quais se concretiza ou ganha corpo a ordem natural, bem como a
crença na experimentação, na verificação empírica dessa conexão. O conceito de ordem natural coincide
com o da causalidade necessária (V. CAUSALIDADE) e portanto com o de previsibilidade infalível dos
fenômenos naturais. Se a natureza é a ordem necessária, a F. como estudo dessa ordem pode estabelecer
regras que permitam a previsão infalível dos fenômenos. Essa é a crença que serviu de base para a F.
clássica até os primeiros decênios do séc. XX e que também sustentou sua hipótese fundamental: o
mecanicismo (v.). Esta hipótese tinha, entre outras, a vantagem de possibilitar a descrição visual do curso
dos fenômenos, descrição que recorria a imagens visuais com as quais pretendia representar (por meio de
partículas em movimento) a estrutura efetiva dos fenômenos. Mas foi exatamente essa pretensão que deu
origem às primeiras dificuldades, quando, com a F. relativista, o conceito de campo (v.) começou a
substituir a representação visual das partículas em movimento. "Era necessária uma corajosa imaginação
científica", observam Einstein e Infeld, "para reconhecer que o essencial para a ordenação e a
compreensão dos acontecimentos pode não ser o comportamento dos corpos, mas o comportamento de
alguma coisa que se interpõe entre eles, vale dizer, o campo" (The Evolution of Physics, IV; trad. it., p.
302). A F. quântica representava mais um passo para a destruição da possibilidade de uma descrição
visualizante. Bohr notava: "Na adaptação da exigência relativista ao postulado do quantum devemos
preparar-nos para uma renúncia à visualização (no sentido comum do termo) ainda mais radical que a
encontrada na formulação das leis quânticas consideradas até hoje. Encontramo-nos no caminho encetado
por Einstein ao adaptarmos nossos modos de percepção, derivados das sensações, ao conhecimento cada
vez mais
FÍSICA
464
FISICALISMO
profundo das leis naturais" (Atomic Theory and the Description ofNature, 1934, p. 90). A renúncia à
visualização na realidade também era renúncia à descrição, uma vez que a impossibilidade de visualizar o
curso completo dos fenômenos é impossibilidade de descrever sua ordem necessária em sua integridade.
De fato, essa impossibilidade foi reconhecida na F. com a introdução do chamado "princípio de
indeterminação" de Heisenberg (1927), com o qual a causalidade rigorosa dos fenômenos físicos era
negada pela primeira vez, em virtude da impossibilidade de prever com exatidão o comportamento das
partículas atômicas (v. CAUSALIDADE; INDETERMINAÇÃO). Com a queda da pretensão à causalidade
rigorosa e, por conseguinte, da descrição da ordem total dos fenômenos, a F. não podia mais ser entendida
como teoria da ordem necessária da natureza.
3
S
O terceiro conceito de F., que começou a ser traçado a partir de 1930, parte de uma determinação já
considerada fundamental pela noção de F. que a precedeu. Na esteira de Bacon, Comte já insistira na
exigência de a ciência estabelecer previsões que permitissem o domínio sobre a natureza: "Ciência, donde
previsão; previsão, donde ação" {Cours de phil. positive, liç. II, § 3). Em 1894, Hertz, em Princípios de
mecânica, dá ênfase ao mesmo conceito: "O mais imediato e, em certo sentido, o mais importante
problema que o nosso conhecimento da natureza deve capacitar-nos a resolver é a previsão dos
acontecimentos futuros, graças à qual poderemos organizar nossas ocupações presentes". À medida que a
tarefa da descrição total da ordem dos acontecimentos ia sendo considerada fora das possibilidades da F.,
a tarefa da previsão ia adquirindo maior relevância. A limitação a essa tarefa aumentou enormemente o
poder de ação ou de transformação da F. O princípio de complementaridade expresso por Bohr em 1927
marca o abandono definitivo da pretensão de que a F. pudesse valer como teoria da ordem necessária.
Segundo esse princípio, "não é possível realizar simultaneamente a descrição espácio-temporal rigorosa e
a conexão causai rigorosa dos processos individuais: uma ou outra deve ser sacrificada". Isso significa
que a cadeia de causas e efeitos só poderia ser quantitativamente verificada se o universo inteiro fosse
considerado como um sistema único, mas neste caso a F. desapareceria e ficaria apenas um esquema
matemático (HEISENBERG, Diephysikalis-chen Prinzipien der Quantentheorie, 1930, IV,
§ 1). Deste ponto de vista, embora não se possa descrever todo o curso de um fenômeno, pode-se calcular
com exatidão o resultado de uma observação futura. Heisenberg diz: "Meçam-se, em certo instante, certas
grandezas físicas com a máxima exatidão possível, ter-se-ão então, em cada instante seguinte, grandezas
cujo valor pode ser calculado exatamente, ou seja, para as quais o resultado de uma medição pode ser
previsto com exatidão, contanto que o sistema observado não seja submetido a nenhuma perturbação,
exceto à própria medição" (Ibid., TV, § 1). Dirac enunciou o mesmo conceito dizendo: "O único objeto da
F. teórica é o de calcular resultados que possam ser comparados com a experimentação, sendo
completamente inútil fazer uma descrição satisfatória de todo o desenvolvimento do fenômeno"
{Principies qf Quantum Mechanics, 1930, p. 7).
Assim, a F. transforma-se em teoria da previsão dos eventos observáveis e abandona as exigências
descritivas de sua segunda fase, além das explicativas de sua fase anterior. Do ponto de vista filosófico,
esse caráter fundamental da F. contemporânea foi perfeitamente expresso por Heisenberg quando disse
que a F. do nosso tempo não nos fornece mais "uma imagem da natureza, mas uma imagem das nossas
relações com a natureza" {Das Natur-bild der heutigen Physik, 1955, p. 21).
FISICALISMO (in. Physicalism; fr. Physica-lisme, ai. Physikalismus-, it. Pisicalismó). Nome proposto
por Neurath (em Erkenntnis, 1931. p. 393) como denominação do Círculo de Viena, que via na linguagem
o campo de indagação da filosofia, para acentuar o caráter físico da linguagem. Esse termo foi aceito por
Car-nap, para indicar o primado da linguagem física e sua capacidade de valer como linguagem universal:
"A linguagem da física", diz Carnap, "é uma linguagem universal, pois abrange os conteúdos de todas as
outras linguagens científicas. Em outras palavras, cada proposição de um ramo da linguagem científica é
eqüipolente a algumas proposições da língua fisicalista e pode, portanto, ser traduzida para ela sem mudar
seu conteúdo" (Philosopby and Logical Syntax, 1935, p. 89). Essa tradu-tibilidade das proposições
significantes para uma proposição da física foi chamada F., que constituiu a idéia diretiva da
Enciclopédia da ciência unificada (v. EMPIRISMO LÓGICO; ENCICLOPÉDIA). Contudo, num segundo
momento,
FÍSICA SOCIAL
465
FORÇA
Carnap interpretou o F. como a redutibilidade de todas as expressões lingüísticas à linguagem coisal (v.) e
não à forma particular de linguagem coisal, que é linguagem física ("Testability and Meaning", em
Readings in the Phil. of Science, 1953, pp. 69-70).
FÍSICA SOCIAL (in. Social physics; fr. Phy-sique sociale, ai. Sozial Physik, it. Física so-cialé). Com
este nome, Comte designou o estudo dos fenômenos sociais, a sociologia, cuja autonomia científica ele
foi o primeiro a afirmar (Cours de phil. positive, liç. 46) (v. SOCIOLOGIA).
FÍSICO-TEOLÓGICA, PROVA. V. DEUS, PROVAS DE.
FISIOCRACIA. V. ECONOMIA POLÍTICA.
FISIOGNOMONIA (gr. (pucaoYVCOUÍa; in. Physiognomonics; fr. Physiognomonie, ai. Physiognomik-, it. Fisiognomicà). Arte de julgar o caráter do homem, seu modo de sentir e de pensar, a partir
de sua aparência visível, especialmente a partir dos traços fisionômicos. Aristóteles (seguido por muitos
escritores antigos e medievais) já admitira a possibilidade de julgar a natureza de uma coisa com base em
sua forma corpórea (An. pr., II, 27, 70 b 7). Cícero falava de um fisiognomonista, Zopiro, que se
vangloriava de conhecer a natureza e o caráter dos homens pelo exame de seu corpo, ou seja, de seus
olhos, seu rosto e sua testa (De Fato, V, 10). Mas foi principalmente no Renascimento que essa arte foi
cultivada, a começar por Giambattista delia Porta, que, em 1580, publicou o livro Sulla F. umana. Esse
tipo de estudo foi muito difundido no séc. XVIII por Lavater (Fragmentos F., 1775-78). O próprio Kant
reconheceu o valor da F. (Antr., 11, cap. III). Hegel distingue-a das más artes e dos estudos inúteis porque
ela afirma a unidade entre interior e exterior (Phànomen. des Geistes, I, parte 1, cap. V; trad. it., p. 281).
Nos tempos modernos a F. também tem defensores não só entre os psicólogos e caracterologistas, mas
também entre filósofos. Spengler disse: "A mor-fologia do que é mecânico e amplo, ciência que descobre
e ordena relações causais, é chamada de sistemática. A morfologia do que é orgânico, da história e da
vida, de tudo aquilo que traz em si direção e destino, é chamada F." (Untergang des Abendlandes, I, p.
134). R. Kassner afirmou a identidade entre psicologia e F., alegando que a antiga distinção entre ser e
aparecer não tem valor: "A psicologia deve então ser F. e qualquer outra é tediosa e banal,
pois, como tudo consiste na visão, nada há que precise ser mais investigado ou descoberto, retirando uma
camada de aparência depois da outra" (Dasphysiognomische Weltbild, Intr.; trad. it. em Os elementos da
grandeza humana, 1942, pp. 6l ss.).
FISIOGNOSE (in. Physiognosy). Termo usado por Peirce para indicar o conjunto das ciências físicas
(Coll. Pap., 1.242).
FISIOLOGIAün. Physiology, fr. Physiologie, ai. Physiologie-, it. Fisiologid). No sentido com que
Aristóteles e outros escritores antigos empregam essa palavra, estudo da natureza: o mesmo que física.
Algumas vezes Kant também a usou com essa significação (Crít. R. Pura, Doutr. transe, do mét., cap. III).
FISIOLOGIA PSICOLÓGICA ou PSICO-FISIOLOGIA. V. PSICOLOGIA, B.
FISSISMO (it. Fissismó). Termo italiano, que não encontra correspondência nas outras línguas, com o
qual se designa a doutrina da imutabilidade das espécies vivas, em contraposição a evolucionismo (v.
EVOLUÇÃO). Sua tradução literal seria fixismo.
FLECHA (gr. òiOTOÇ; in. Arrow, fr. Flèche, ai. Pfeil; it. Freccid) O terceiro dos quatro argumentos
aduzidos por Zenão de Eléia em oposição ao movimento. O argumento baseia-se em dois pressupostos: 1Q
o tempo é formado de instantes; 2S
em cada instante a F. só pode ocupar um espaço igual ao seu
comprimento. Por esta segunda tese, a F. é imóvel no instante, e como todo tempo é formado por
instantes, durante todo tempo em que se move a F. está imóvel (ARISTÓTELES, FÍS., VI, 9, 239 b 29).
Aristóteles também indicou corretamente o pressuposto desse argumento, ou seja, a tese de que o tempo é
constituído de instantes. V. DICOTOMIA; AQUILES; ESTÁDIO.
FOGO (gr. 7túp; lat. Ignis; in. Fire, fr. Feu, ai. Fuer, it. Fuocó). Substância que compõe o mundo,
segundo Heráclito. Este considerava o F. dotado de inteligência e causa primeira do governo do universo
(Fr. 65, Diels). Parmênides, nos discursos "segundo a opinião", assumia a dualidade F.-trevas (equivalente
à dualidade quente-frio [v.]) como princípio de explicação da aparência sensível (Fr. 8, Diels). Os estóicos
identificaram o F., situado na extremidade do universo, com o éter, que constitui a primeira esfera imóvel
e as esferas móveis dos céus (DióG;. L., VII, 137).
FORÇA (lat. Vis; in. Force, fr. Force, ai. Kraft; it. Forzd). Precisamente a ação causai, não no sentido de
explicar ou justificar (como
FORÇA
466
FORÇA
razão de ser), mas de produzir infalivelmente um efeito. Portanto, de forma mais geral, toda técnica apta a
garantir infalivelmente um efeito ou que pretenda garanti-lo. Nesse sentido, diz-se "o direito como F." ou
"o Estado como F." para destacar a infalibilidade da realização do direito ou da vontade do Estado. Em tal
sentido Kant dizia que há quatro espécies de combinações da F. com a liberdade e a lei: a) lei e liberdade
sem F.: anarquia; ti) lei e F. sem liberdade: despotismo; c) F. sem liberdade e sem lei: barbárie; d) F. com
liberdade e lei: república (Antr., II, Delineação do caráter do gênero humano, 2). Em sentido análogo
Hegel falou de "F. da existência" no domínio das relações jurídicas entre os Estados, aludindo à frase de
Na-poleão: "A república francesa não tem necessidade de reconhecimento" (Fil. do dir., 331, Apênd.).
A noção de F. deve ser considerada sob dois aspectos fundamentais, a saber: I
a
no seu uso pela ciência; 2S
na interpretação dada pela filosofia.
I
a Consideramos aqui a noção de F. exclusivamente da forma como se veio configurando desde os
primórdios da ciência moderna, excluindo de seu âmbito as noções de potência, de causa eficiente ou
formal, de qualidade oculta, etc, todas de caráter metafísico ou teológico às quais se pode referir,
retrospectiva e grosseiramente, o termo F. Todos esses termos têm uma amplitude histórica e problemática
completamente diferente do termo em questão, de tal maneira que não podem lançar luzes sobre seu
significado ou aos problemas a ele atinentes. Portanto, entenderemos com o termo F. a ação causai
infalível considerada como: a) diferente ou independente de qualquer agente ou forma metafísica; ti)
diferente ou independente de qualquer forma ou agente psíquico; c) suscetível de tratamento matemático.
A noção de F. também deve ser distinguida da noção de energia, apesar de os próprios cientistas terem por
vezes confundido os dois termos, ao falarem (como, p. ex., Mayer e Helmholtz) de conservação da F.,
quando se trata da conservação da energia.
Neste sentido, pode-se discenir o nascimento da noção de F. nas observações de Kepler, que considerou a
virtude (virtus), à qual se devem os movimentos gravitacionais, como sujeita a todas as "necessidades
matemáticas" (Astronomia nova, III, p. 241), negando que ela pudesse ser identificada com a alma
(Mysterium cosmographicum, 1621, em Opera, ed. Frisch, I, p. 176). Mas essa noção só foi definida quando se definiu
com precisão o princípio da inércia como princípio fundamental da física, com Descartes. Galilei utilizoua com freqüência (p. ex., nos Disc. sulle nuovescienze, em Op., VIII, pp. 155, 344, 345, 442, 447, etc),
mas não a define, como tampouco define a noção de inércia, que também utiliza. Em relação direta com
esta última, a F. é definida por Descartes, que diz: "A F. com que um corpo age contra outro corpo ou
resiste à sua ação consiste apenas em que toda a coisa persiste, enquanto pode, no mesmo estado em que
se encontra, de acordo com a primeira lei já exposta [lei da inércia]. De tal maneira, um corpo unido a
outro corpo possui F. para impedir que seja dele separado e, quando é separado, há uma F. que impede a
união; assim, quando se encontra em repouso, tem F. para permanecer em repouso e para resistir àquilo
que poderia fazê-lo mudar; assim, se se move, há uma F. para continuar mo vendo-se com a. mesma
velocidade e para o mesmo lado" (Princ. phil., II, 43). Mas foi Newton quem generalizou a noção de F.,
dando-lhe expressão matemática precisa. O segundo princípio da dinâmica newtoniana, ou seja, a
proporcionalidade entre F. e aceleração imprimida (F = ma), faz da F. uma relação entre duas grandezas,
sem nenhuma referência às essências ou qualidades ocultas, cuja inutilidade para a física era declarada
pelo próprio Newton: "Pretendo dar somente uma noção matemática das forças, sem considerar suas
causas ou suas sedes físicas" (Philosophiae naturalisprincipia mathematica, 1760, p. 5). A generalização
newtoniana permitia falar de F. da gravidade, de F. elétrica ou de F. magnética, de tal modo que, na
segunda metade do séc XVIII, o conceito de F. tornou-se um dos mais populares e difundidos. Contudo,
despertou a desconfiança dos cientistas, que muitas vezes se recusavam ver nele algo mais que simples
relação causai. D'Alembert observou que, se a relação entre causa e efeito não for considerada de natureza
lógica, mas apenas baseada na experiência, a F. a distância (gravidade) não representa um enigma maior
do que a transmissão do movimento através do choque, e de fato nada mais faz que expressar, assim como
esta última, uma relação confirmada pela experiência (Élements de phil., 1759, § 17). Pelos mesmos
motivos Maupertuis queria que o conceito de F. como "causa da aceleração" fosse eliminado da
FORÇA
467
FORÇA
mecânica e substituído pelas simples determinações da medida da aceleração (Examen phi-losophique de
lapreuve de 1'existence de Dieu, 1756, II, §§ 23, 26). Kant não fez mais que expressar o mesmo conceito
ao dizer que "F. nada mais é que a relação entre a substância A e qualquer outra coisa B' e que tal relação
só pode ser dada pela experiência {De mundi sensibilis et inteligibilis forma et principiis, 5 28), ou que a
F. não é mais que "a causalidade da substância", ou seja, "a relação do sujeito da causalidade com o
efeito" {Crít. R. Pura, Anal. dos Princípios, cap. II, seç. III, Segunda analogia da experiência). Deste
ponto de vista, a interpretação da F. como agente causai misterioso e inacessível, tal como se encontra, p.
ex., em Spencer (First Principies, § 26), é alijada de ciência.
Contudo, com os significados atribuídos por Galilei ou Newton, a noção de F. também não predominou
por muito tempo na ciência. Leibniz já descobrira e esclarecera o conceito de F. viva, que é o produto da
massa pelo quadrado da velocidade, conceito que constitui o ponto de partida para a moderna noção de
energia (Mathematische Schriften, ed. Gerhardt, VT, pp. 218 ss.). Sua doutrina acerca da superioridade da
F. sobre a matéria, que serve de termo médio para a resolução da matéria em energia espiritual (V.
adiante), baseia-se precisamente nesse conceito de energia. Porém, no século seguinte, a descoberta da
conservação da energia (1842) por Robert Mayer e a obra de Helmholtz e de Hertz conduziram à
formulação daquilo que se chamou energismo da mecânica (cf. POINCARÉ, La science et Vhypothèse, p.
148). O energismo nega que a F. seja a "causa" do movimento e que, portanto, esteja presente antes áo
movimento, e considera a idéia de energia anterior à de F. Esta última é introduzida através de simples
definição e suas propriedades são deduzidas a partir da definição e das leis fundamentais. Portanto, no
energismo a idéia de F. já não implica dificuldade alguma: é um simples conceito convencional. Na
mesma linha encontram-se os Princípios de mecânica (1894) de Hertz, que só consideram como
fundamentais as idéias de tempo, espaço e massa, considerando derivadas as idéias de F. e de energia.
Contudo, o conceito de energia continuava sendo importante em física, sobretudo com referência ao
conceito de campo (v.), enquanto o conceito de F. continuava sendo o mesmo demonstrado pelo
energismo: um nome para definir certas relações entre algumas grandezas físicas. A este propósito Russell disse: "Supõe-se
que a F. seja causa da aceleração... Mas a aceleração é uma simples ficção matemática, um número, não
um fato físico... Portanto, se a F. é causa, é causa de um efeito que não se produz" (Principies of
Mathematics, 1903, p. 474)
2- As interpretações filosóficas do conceito de F. seguem à distância e com pouca fidelidade o
desenvolvimento científico do seu conceito. Todas elas obedecem a um esquema uniforme e consistem
em integrar a noção de F. na experiência humana. Esta redução pode ter duplo significado. Pode: d) ser
entendida como justificação da noção e transformá-la em conceito metafísico; b) ser entendida como
crítica à noção e mostrar, com o caráter antropomórfico, a falta de fundamento. Leibniz é o iniciador das
tentativas no primeiro sentido e Locke, no segundo sentido.
d) Em Système nouveau de Ia nature (1695) Leibniz narra que, depois de se libertar do jugo de
Aristóteles, acreditara no vácuo e nos átomos, mas que, depois de muitas meditações, concluíra que as
unidades últimas não podem ser materiais e que, portanto, não podem ser átomos de matéria, mas de
espírito. E acrescenta: "Era necessário, portanto, reabilitar as formas substanciais tão desacreditadas hoje
em dia, mas de tal maneira que fossem inteligíveis e permitissem uma separação entre o uso que delas se
deve fazer e o abuso que delas se tem feito. Descobri, então, que a natureza delas consiste na F. e que
disto resulta algo análogo à consciência e ao apetite, sendo, assim, necessário concebê-las à imitação da
noção que temos das almas" (Systeme, etc, § 3). Isto mostra as bases do primado que Leibniz sempre
concedeu à noção de F. em suas interpretações físicas e metafísicas: a F. é algo análogo à consciência
(sentimeni) e ao apetite, ou seja, a experiências internas do homem. É certo que Leibniz entendeu por F. a
vis activa que, como se disse, é energia. Mas isso não faz diferença do ponto de vista de sua metafísica,
que é uma metafísica da F. espiritual (cf. Nouv. ess., II, 21, § 1). Esta doutrina torna-se arquétipo de toda a
corrente filosófica cujo segundo fundador foi Maine de Biran, no início do séc. XIX. Este considera a
percepção interna e imediata, vale dizer, a consciência que o eu tem de si, como F. volitiva e ativa, como
revelação do mesmo caráter originário da realidade, que, por isso
FORÇA
468
FORMA
mesmo, seria ela mesma F. Diz: "A percepção interna ou imediata é a consciência de uma F. que é meu
próprio eu e que serve de exemplo para todas as noções gerais e universais de causa e de F." (Nouveaux
essais d'anthro-pologie, 1823-24, em (Euvres, ed. Naville, III, p. 5). Praticamente na mesma época
Schopen-hauer realizava a mesma passagem da psicologia para a metafísica, reconhecendo como única F.
constitutiva da essência do mundo a que o homem percebe imediatamente em si mesmo, ou seja, a
vontade (Die Welt ais Wille und Vorstellung, 1819). Isso deve ser entendido no sentido de que ao homem
mostra-se como vontade a mesma potência ativa que nas outras partes da natureza se manifesta como F.:
"Se, portanto, eu disser que a F. que faz a pedra cair no chão, em sua essência, em si e fora de qualquer
representação, é vontade, não se deverá atribuir a essa afirmação o insensato significado de que a pedra se
move segundo um motivo conhecido pelo fato de que no homem a vontade se manifesta deste modo"
(Ibid., I, § 19). Esta identificação da F. que o homem conhece pela experiência interior com a F. que age
no mundo continua constituindo a base das filosofias espiritualistas. A doutrina de Bergson, segundo a
qual um elã vital, que se revela à consciência humana como duração real, dá origem à vida penetrando e
organizando a matéria (Évol. créatr., cap. I), obedece ao mesmo critério fundamental. Mas essa postura
também é assumida pelas doutrinas materialistas: admitir, a exemplo de Haeckel (Die Wel-tràtsel, 1899),
uma única F. que explica todo devir do universo e é análoga à que se revela na consciência do homem
significa obedecer à mesma interpretação da noção de F.
b) Por outro lado, a redução dessa noção a experiência interna por vezes significou uma crítica à própria
noção, porque considerada como sinal do seu caráter arbitrário. A este respeito, Locke evidenciara que a
idéia de poder (Power) derivara da reflexão do espírito sobre suas operações (Ensaio, II, 21, 4). Com o
fim de defender sua concepção do universo como linguagem ou manifestação de Deus, Berkeley foi
levado a retirar o caráter realista dos conceitos da ciência: "F., gravidade, atração e termos semelhantes
convém ao fim de raciocinar e de fazer cálculos sobre o movimento e sobre todos os corpos que se
movem, mas não ao fim de compreender a natureza do próprio movimento" (De motu, § 17; Siris, § 234).
Hume por sua
vez demonstrou que nem da experiência interna nem de qualquer outra fonte o espírito pode extrair uma
idéia clara e real de F.: "E certo que ignoramos a maneira como os corpos agem um sobre o outro, e que
sua F. ou energia nos é de todo incompreensível, porém somos igualmente ignorantes sobre a maneira ou
F. com que uma mente, conquanto suprema, age sobre si mesma e sobre os corpos. De qual dessas coisas,
pergunto, conseguimos fazer uma idéia?... O que é mais difícil conceber: que o movimento nasce de um
choque ou que nasce de um ato de vontade? Tudo o que conhecemos é nossa ignorância profunda em
ambos os casos" (Inq. Cone. Underst, VII, 1). Essa crítica de Hume é clássica e, sob certo aspecto,
definitiva. Mach considerou "fetichismo" o uso do conceito de F., aliás tanto quanto o de causa, que
desejava substituir pelo conceito de função (Analyse der Empfindungen, 9
a
ed., 1922, p. 74;
Populãwissenschaftlichen Vorlos-sugen, 1896, p. 259; trad. in., 1943, p. 254). Por outro lado, pelo fato de
esse conceito ter deixado de despertar o interesse da ciência também deixou de ter interesse para a crítica
metodológica. Portanto, hoje se apresenta como conceito científico antiquado, que serve de pretexto
(embora cada vez mais raramente) para especulações metafísicas (cf. MAX JAMMER, Concepts of Force,
1957: obra rica de informações conquanto dúbia e confusa ao delimitar a noção de que trata).
FORMA (gr. nopípií, eiSoç; lat. Forma; in. Fomi; fr. Forme, ai. Form; it. Forma). Esse termo tem as
seguintes significações principais:
\- Essência necessária ou substância das coisas que têm matéria. Nesse sentido, que está presente em
Aristóteles, F. não só se opõe a matéria, mas a pressupõe. Aristóteles usa, portanto, esse termo com
referência às coisas naturais que são compostas de matéria e F., e observa que a F. é mais "natureza" que a
matéria, uma vez que de uma coisa diz-se aquilo que ela é em ato (a F.), e não o que é em potência (Fís.,
II, 1, 193 b 28; Met., IV, 1015 a 11). Desse ponto de vista, não se pode dizer que são F. as substâncias
imóveis (Deus e as inteligências motrizes), que são isentas de matéria, mas são F. as substâncias naturais
em movimento. Donde a polêmica de Aristóteles contra o plato-nismo, com o objetivo de afirmar a
insepa-rabilidade entre F. e matéria. Os escolásticos não se ativeram rigorosamente a essa terminologia
aristotélica e estenderam o termo F. a
FORMA
469
FORMA
qualquer substância, falando de "F. separadas" para indicar as idéias existentes na mente de Deus
(ALBERTO MAGNO, S. Th., I, q. 6; S. TOMÁS, S. Th., I, q. 15 a. 1) e de "F. subsistentes" para indicar os
anjos que não têm corpo e, portanto, não têm matéria (S. TOMÁS, S. Tb., I, q. 50 a. 2). Além disso,
falavam de "F. substanciais ou de F. acidentais" {Ibid., I, q. 76 a. 1), sendo esta última expressão, do ponto
de vista aristotélico, no mínimo contraditória. Gil-' berto Porretano (séc. XII), em Desexprincipiis,
separara as F. inerentes, correspondentes às primeiras quatro categorias de Aristóteles (substância,
qualidade, quantidade, relação) das F. assistentes, correspondentes às outras categorias aristotélicas, de
caracteres que não constituem a substância das coisas. Em todos os casos, a F. conserva os caracteres que
Aristóteles lhe havia atribuído: é causa ou razão de ser da coisa, aquilo em virtude do que uma coisa é o
que é; é ato ou atualidade da coisa, por isso o princípio e o fim do seu devir.
O conceito de F. assim entendido foi e continua sendo empregado também fora do aristo-telismo e de seus
derivados. Não possui determinações diferentes das aqui apontadas a F. de que fala Bacon como objeto da
ciência natural: essa F. é ato e causa eficiente, tanto quanto a F. aristotélica {Nov. Org. II, 17), e distinguese desta apenas porque, como pensava Aristóteles, não pode ser apreendida pelo procedimento dedutivo
ou pelo intelecto intuitivo, mas só pela indução experimental. Descartes refere-se à significação
tradicional da palavra quando nega que existam "as F. ou qualidades sobre as quais se discute nas escolas"
{Discours, V). E é com o mesmo significado que essa palavra é usada por Bergson, ao afirmar que "F. é
um instantâneo de uma transição", ou seja, uma espécie de imagem intermediária da qual se aproximam
as imagens reais em sua mudança e que é pressuposta como "a essência da coisa ou a coisa mesma"
{Évol. créatr., IV ed., 1911, p. 327).
Deste conceito de F. aproxima-se o sentido com que essa palavra é usada por Hegel, como "totalidade das
determinações", que é a essência no seu manifestar-se como fenômeno {Ene, § 129). Nesse sentido, F. é o
modo de manifestar-se da essência ou substância de uma coisa, na medida em que esse modo de
manifestar-se coincide com a própria essência. É nesse sentido que Hegel empregava habitualmente essa
palavra, p. ex. quando dizia: "O
conteúdo humano da consciência, produzido pelo pensamento, nâo aparece primeiro em F. de
pensamento, mas como sentimento, intuição, representação, F. que devem ser dis-tinguidas do
pensamento como F." {Ene, § 2). Foi exatamente com esse sentido que Croce e Gentile falaram de
"formas do espírito", seja para estabelecer, seja para negar sua diversidade.
2- Uma relação ou um conjunto de relações (ordem) que pode conservar-se constante com a variação dos
termos entre os quais se situa. P. ex., a relação "Se p, então q" pode ser assumida como a F. da inferência,
porque permanece constante quaisquer que sejam as proposições pe centre as quais se situa. Assim, diz-se
habitualmente que a matemática é uma ciência formal porque o que ela ensina nâo vale apenas para certos
conjuntos de coisas, mas para todos os conjuntos possíveis, já que versa sobre certas relações gerais que
constituem o aspecto formal das coisas. Nesse sentido, a palavra F. foi usada pela primeira vez por Tetens,
para indicar as relações estabelecidas pelo pensamento entre as representações sensíveis que, por sua vez,
constituiriam a "matéria" do conhecer {Philoso-phische Versuche über die menschliche Natur, 1776, I, p.
336). Kant fez distinção análoga na dissertação de 1770: "À representação pertence, em primeiro lugar,
alguma coisa que se pode chamar de matéria, que é a sensação, e, em segundo lugar, aquilo que se pode
chamar de F. ou espécie das coisas sensíveis, que serve para coordenar, por meio de certa lei natural da
alma, as várias coisas que impressionam os sentidos" {De mundi sensibilis et intelligibilis forma et
ratione, § 4). Essa distinção entre matéria e F. foi o ponto de partida de toda a filosofia kantiana, mas
Kant nunca alterou o significado de F., que continuou sendo relação ou conjunto de relações, isto é,
ordem. Escreveu em Prolegômenos (§ 17): "O elemento formal da natureza é a regularidade de todos os
objetos da experiência." Analogamente, a F. dos princípios morais é a simples relação na qual uma lei se
encontra com os seres racionais, ou seja, sua validade para todos esses seres, sua universalidade {Crit. R.
Prática, § 4). A partir de Kant o sentido dessa palavra nunca deixou de ser o de relação generalizável,
ordem, coordenação ou, mais simplesmente, universalidade. Nesse sentido, Kant distinguiu matéria e F.
no conceito: "A matéria do conceito é o objeto; a F. dele é a universalidade" {Logik.,
FORMA
470
FORMAL
Elementarlehre, § 2). É neste sentido que hoje os lógicos utilizam essa palavra para caracterizar o objeto
de sua ciência. Era a ele que Peirce se referia (Coll. Pap., 4.611), e é a ele que, mais recentemente,
referem-se Strawson (Lntr. to Logical Theory, 1952, p. 41), Prior (Formal Logic, 1955, § 1) e Church
(Lntroduction to Mathematical Logic, 1956, § 00). Carnap disse: "Uma teoria, uma regra, uma definição
ou coisas semelhantes devem ser chamadas de formais quando não fazem nenhuma referência ao
significado dos símbolos (p. ex., das palavras) ou ao sentido das expressões (p. ex., dos enunciados), mas
unicamente às espécies e à ordem dos símbolos com os quais as expressões são construídas" (Logische
Syntax der Sprache, 1934, § 1).
É a esse significado de ordem ou relação que está ligado o uso da palavra F. (Gestali) na psicologia
contemporânea, ao se ressaltar o fato experimental de que impressões simultâneas não são independentes
umas das outras, como se fossem pedaços de um mosaico, mas constituem uma unidade com ordem
definível (v. PSICOLOGIA). NO mesmo sentido, Born propôs que sejam consideradas como "F. das coisas
físicas as invariantes das equações, que têm a mesma realidade objetiva das coisas que nos são familiares"
(Experiments and Theory in Physics, 1943, pp. 12-13). Na própria estética há pelo menos uma
significação na qual a palavra F. pode ser reintegrada na significação de ordem ou organização das partes;
é a significação esclarecida por Dewey: "Só quando as partes constitutivas de um todo têm o fim único de
contribuir para a perfeição de uma experiência consciente é que o desenho e a imagem perdem o caráter
sobreposto e tornam-se F." (Art as Experience, cap. VI; trad. it., p. 140). Aproxima-se dessa mesma
significação o uso da palavra por Focillon: "As relações formais em uma obra e entre as várias obras
constituem uma ordem, uma metáfora do universo" (Viedesformes, 1934, trad. it., p. 53). Em geral, podese dizer que, no âmbito desse significado, passa-se à consideração da F. todas as vezes em que certa
relação é generalizada, vale dizer, considerada válida para certo número de termos ou de casos possíveis,
ou quando não são considerados os termos entre os quais está uma ordem, para atribuir importância ou
significado somente a essa ordem.
3
a
Uma norma de procedimento. Nesse sentido, fala-se de F. em direito, no sentido de que
uma "questão de F." diz respeito à relação entre o caso em exame e as normas de procedimento, e não ao
problema que constitui a substância ou o mérito do caso. Às vezes o recurso à "F." expressa a exigência
de autonomia num procedimento ou numa técnica. Esta é, freqüentemente, a significação da insistência
no caráter formal da arte. Quando, em arte, o recurso à F. não expressa exigência de organização e ordem
(que diz respeito ao significado 2Q
), expressa a exigência de que os procedimentos ou as técnicas da arte
sejam independentes dos procedimentos ou das técnicas de outras atividades, como o conhecimento, a
moral, etc. (cf. CROCE, Bre-viãrio de estética, p. 53). Nesse sentido, passa-se a considerações formais, em
certo campo, quando se reconhece a independência entre as técnicas utilizáveis nesse campo e as
empregadas em outros campos.
FORMA, PSICOLOGIA DA. V. PSICOLOGIA
FORMAÇÃO (ai. Bildung). No sentido específico que esta palavra assume em filosofia e em pedagogia,
em relação com o termo alemão correspondente, indica o processo de educação ou de civilização, que se
expressa nas duas significações de cultura, entendida como educação e como sistema de valores
simbólicos (v. Cultura).
FORMAIS, CIÊNCIAS. V. CIÊNCIAS, CLASSIFICAÇÃO DAS.
FORMAL (in. Formal; fr. Formei; ai. Formal; it. Formalé). 1. Em correspondência com o 1B significado
de forma: aquilo que pertence à essência ou substância da coisa, por isso essencial, substancial, atual.
Nesse sentido essa palavra foi empregada pelos escolásticos, por Descartes (Méd., III, // Réponses, def.
IV) e por Spinoza (Et., II, 8). A esta significação refere-se também o uso que Duns Scot faz do termo nas
expressões "distinção F." ou "razão F.". Distinção F. é uma distinção de essência ou natureza, mas sem
implicar separação numérica: ela intercede, p. ex., entre a natureza comum e a individualidade das coisas
ou entre as várias perfei-ções de Deus (Op. Ox., I, d. 8, q. 4, n. 17).
2. Em correspondência com o 2- significado de forma: o que pertence a uma relação ge-neralizável ou
então à ordem ou coordenação das partes. Nesse sentido, essa palavra é empregada na lógica, na
matemática moderna e na estética.
Em lógica esse termo foi amplamente utilizado num sentido intuitivamente claro, mas nunca
FORMALISMO
471
FORTALEZA
determinado completamente. Na lógica medieval, formalis tem a significação fundamental de "inerente à
forma", portanto "essencial", mas também — por conseguinte — "universal", "válido para todo conteúdo
empírico relativo a certa forma"; por esta razão, como última significação, "independente da natureza
empírica dos conteúdos". Foi com esse sentido que esse termo passou para a lógica moderna e
contemporânea: a partir de Leibniz, os termos "forma" (p. ex., os arguments en forme na terminologia
leibniziana) e "F." indicam certos esquemas, fórmulas, etc, em que os termos descritivos são substituídos
por símbolos ("variáveis"), e portanto as propriedades, as relações, as conseqüências, etc, do esquema ou
fórmula vigoram independentemente de qualquer possível designação dos termos significativos nela
presentes.
3. Em correspondência com o 3a
significado da palavra "forma": aquilo que pertence ao procedimento,
seja legal, de etiqueta, etc.
G. P.-N. A.
FORMALISMO (in. Formalism; fr. Formalis-me,ai. Formalismus, it. Formalismó).Todadoutrina que
recorra à forma, em qualquer das significações do termo. No fim do séc XIV, foram chamados de
"formalistas" os partidários da metafísica de Duns Scot, que se opunham aos "terministas", partidários de
Ockham (GERSON, De conceptibus, p. 806). Foi qualificado de F. o ponto de vista kantiano em ética, por
recorrer às formas gerais das máximas, sem considerar os fins a que se destinam. Em matemática foi
chamado de F. o procedimento que pretende prescindir dos significados dos símbolos matemáticos,
especialmente a corrente de Hilbert. Também é considerada F. a grande importância atribuída aos
procedimentos legais ou a certas normas de comportamento nas relações entre os homens.
FORMALIZAÇÃO (in. Formalisation; fr. Formalisation; ai. Formalisation; it. Formaliz-zazioné). Este
termo é característico da lógica e da filosofia da ciência contemporânea. Com "F. de uma teoria" entendese o procedimento com que é construído um sistema meramente sintático de símbolos S, regido por
alguns axio-mas (e, eventualmente, por regras práticas de formação e derivação das fórmulas), dos quais,
de acordo com as normas sintáticas do próprio sistema, derivam fórmulas que constituem transformações
tautológicas do grupo de axio-mas. Esse sistema sintático puro S constitui uma F. de dada teoria T (p. ex.,
da aritmética dos números inteiros, da teoria dos conjuntos, ou do cálculo lógico elementar) sempre que 7 seja uma
interpretação verdadeira e possivelmente Z-verdadeira de S. Em geral, todas as teorias fundamentais das
matemáticas puras contemporâneas foram alvo de F.; ainda não está completamente resolvido o problema
da F. da lógica e, em geral, das metalinguagens empregadas para a F. das teorias matemáticas. Entre
outras coisas, uma das maiores dificuldades para essa formalização de segundo grau é representada por
um conhecido teorema (de Gõdel), segundo o qual uma teoria formalizada não pode conter a prova de sua
própria não contradição (v.
AXIOMATIZAÇÃO; MATEMÁTICA). G. P.
FORMALIZADA, LINGUAGEM. V SISTEMA
LOGÍSTICO.
FORMAS, PLURALIDADE DAS. V AGOS
TINISMO.
FÓRMULA (in. Formula; fr. Formule, ai. Formei; it. Formula). 1. Elemento de um cálculo (v.). Nesse
sentido, a F. distingue-se da proposição, que é o elemento de um sistema semântico (CARNAP,
Foundations of Logic and Mathematics, § 9).
2. O mesmo que enunciado ou proposição.
3. Mais em geral: uma seqüência finita linear de símbolos primitivos. Foi assim que A. Church definiu a
F., chamando de "F. bem formada" a F. que atende a certas regras fundamentais de uma linguagem ilntr.
to Mathe-matical Logic, 1956, § 7).
FÓRMULA IDEAL. Foi essa denominação dada por Gioberti à "proposição que expressa a Idéia de
modo claro, simples e preciso", como a seguinte: "O Ente cria o existente, o existente retorna ao Ente"
(Jntr. ao estudo da filosofia, 1840, II, pp. 147, 174; III, p. 3). A F. I. expressa o conceito neoplatônico de
que o mundo provém de Deus e voltará a Deus através do homem.
FORO ÍNTIMO (fr. For intérieur). Esta expressão origina-se da antiga frase francesa, ainda usada, e
significa o tribunal da consciência (v.).
FORONOMIA (in. Phoronomics; fr. Pho-ronomie, ai. Phoronomie, it. Foronomid). Palavra criada por
Lambert para indicar a doutrina que estuda as leis do movimento iNeues Or-ganon, 1764), e retomada por
Kant com sentido análogo (Metaphysische Anfangsgründe der Naturwissenschaft, 1786).
FORTALEZA. V. CORAGEM.
FORTUNA
472
FUNÇÃO
FORTUNA. V. SORTE.
FORTUITO. O que é devido à sorte ou ao acaso (v.).
FRENOLOGLA (in. Phrenology, fr. Phréno-logie, ai. Phrenologie, it. Frenologid). Doutrina que estuda
as correspondências entre as disposições espirituais e a forma do crânio, especialmente suas
protuberâncias. Essa doutrina foi sistematizada por F. J. Gall num livro intitulado Anatomia efisiologia do
sistema nervoso {Anatomie etphysiologie du système nerveux, 1810). Hegel deu muita importância a esta
pretensa ciência, enquanto dava muito menos importância a ciências mais sérias, discutindo-a longamente
em Fenomenologia do espírito (I, parte 1, cap. V). Na verdade, esta obra (1807) é anterior à publicação da
obra de Gall, mas o conteúdo desta última era conhecido graças às exposições que Gall fazia durante suas
viagens à Europa.
FREUDISMO. V. PSICANÁLISE.
FRISESOM (ORUM). Palavra mnemônica usada pelos escolásticos para indicar o nono modo da
primeira figura do silogismo, precisamente o que consiste em uma premissa particular afirmativa, uma
premissa universal negativa e uma conclusão particular negativa, como no exemplo: "Alguns animais são
substância; nenhuma pedra é animal; logo, algumas substâncias não são pedra" (PEDRO HISPANO, Summ.
log., 4. 09)
FRISESOSOM. Palavra mnemônica usada pela Lógica de Port-Royal para indicar o nono modo do
silogismo de primeira figura (Frisesomorum) com a diferença de assumir como premissa maior a
proposição em que está o predicado da conclusão. O exemplo é o seguinte: "Nenhum infeliz está
contente; há pessoas contentes que são pobres; logo, há pobres que não são infelizes" (ARNAULD, Log.,
III, 8).
FRUIÇÃO (lat. Fruitio-, in. Fruition; fr. Frui-tion; ai. Genus, it. Fruizioné). Na Escolástica medieval foi
assim chamado o usufruto de Deus por parte do homem ou, em geral, por parte das criaturas racionais, na
medida em que Ele constitui o fim último delas (cf. S. TOMÁS, S. Th., II, 1, q. 11, a. 3). A distinção entre a
F. de Deus e uso das coisas já fora considerada fundamental por Pedro Lombardo, servindo de base as
seções de seu Livro das sentenças (séc. XII). Também encontramos a distinção entre uso e F. em Hobbes:
"Do bem que desejamos por si mesmo não fazemos uso, visto que o uso
é das coisas que servem de meios e de instrumentos, mas a fruitio é como o fim da coisa proposta" {De
bom., XI, § 5). Às vezes essa palavra é usada em sentido análogo na filosofia contemporânea, p. ex. por
Dewey (Experience and Nature, 1926, cap. 3), outras vezes com significação diferente como em S.
Alexander {Space, Time andDeity, 1920), indicando a percepção imediata que a consciência tem de si
mesma (percepção imanente no sentido de Husserl) (v. CONSCIÊNCIA). Whitehead falou de autofruição
{Autofruitiori) como característica da vida, porquanto esta se apropria dos processos físicos da natureza
{Nature and Life, 1934, II).
FUGA (ai. Fluchi). Heidegger chamou de F. de si mesmo o homem entregar-se à banalidade da existência
cotidiana. O retorno dessa F. é a angústia (v.), na qual o homem enfrenta sua maior possibilidade, que é a
da morte {Sein undZeit, §§ 40, 41). Para o conceito de "F. do mundo", cf. ABBAGNANO, Introdução ao
exis-tencialismo, 1942, IV, § 4.
FULGURAÇÃO (in. Fulguration; fr. Fulgu-ration; it. Fulgurazioné). Termo com o qual Leibniz indicou
o modo como as mônadas dimanam de Deus, porquanto nascem "por assim dizer por meio de F. contínuas
da divindade de momento em momento" {Monad., § 47). Esse termo pretende ressaltar a continuidade da
criação divina.
FUNÇÃO (in. Function; fr. Fonction-, ai. Funktion; it. Funzioné). Esse termo tem duas significações
fundamentais:
I
a Operação. Neste significado o termo corresponde à palavra grega ergon, do modo como é empregada
por Platão, quando diz que a F. dos olhos é ver, a F. dos ouvidos é ouvir, que cada virtude é uma F. de
determinada parte da alma e que a F. da alma, em seu conjunto, é comandar e dirigir {Rep., I, 352 ss.). F.,
nesse sentido, é a operação própria da coisa, no sentido de ser aquilo que a coisa faz melhor do que as
outras coisas {Ibid., 353 a). Aristóteles emprega esse termo com o mesmo sentido, quando, em Ética a
Nicômaco, procura descobrir qual é a F. ou a operação própria do homem como ser racional {Et. nic, I, 7).
Além disso, insiste no caráter finalista e realizador da F.: "a F. é o fim, e o ato é a F." {Met., IX, I, 1050 a
21). Essa palavra é usada freqüentemente com esta significação tanto na linguagem científica quanto na
comum. Em filosofia, Kant chamou de F. os conceitos que "se baseiam na
FUNÇÃO
473
FUNÇÃO
espontaneidade do pensamento, assim como as intuições sensíveis se baseiam na receptividade das
impressões". Em outras palavras, os conceitos são F. porque são atividade, operações, e não modificações
passivas como as impressões sensíveis. A F. conceptual é definida por Kant como "unidade do ato de
ordenar diversas representações sob uma representação comum" \Crit. R. Pura, Anal. transe, cap. I, seç.
1). Com sentido análogo, Husserl entende por F. a atividade da consciência que tenha um fim, de tal
modo que a consideração funcional substitui a descrição e a classificação das vivências individuais pela
consideração "do ponto de vista teleológico de sua F., que é a de possibilitar uma unidade sintética"
(Ideen, I, § 86). A distinção introduzida por C. Stumpf entre aparições e F. psíquicas tem o mesmo
fundamento: as F. são operações, enquanto as aparições são modificações passivas (Erscheinungen und
psy-chische Funktionen, 1907). Scheler introduziu a mesma distinção entre estados e F. emotivas: em
relação ao estado emotivo, a F. é a reação ativa no sentido, p. ex., de que a simpatia é uma F. que não
pressupõe uma modificação emotiva passiva na pessoa que a sente (Sym-pathie, I, cap. 3; trad. fr., p. 69).
O conceito de operação para um fim ou capaz de realizar um fim também está implícito no uso dessa
noção pelas ciências biológicas e sociais. Em biologia, F. é a operação por meio da qual uma parte ou um
processo do organismo contribui para a conservação do organismo total (cf., p. ex., BERTALANFFY,
Modem Theories ofDevelopment, Nova York, 1933, pp. 9 ss., 184 ss.). Em sociologia a F. foi definida por
Durkheim {Règles de Ia méthode sociologique, 1895) como a correspondência entre uma instituição e as
necessidades de um organismo social, vale dizer, como a atividade pela qual uma instituição contribui
para a manutenção do organismo. Com o mesmo espírito, Radcliffe-Brown define a F. de uma atividade
social recorrente (como, p. ex., a punição dos crimes ou uma cerimônia funerária) como "o papel que ela
desempenha na vida social como um todo e, por isso, a contribuição que ela dá para a manutenção da
continuidade estrutural" (Structure and Function in Primitive Society, 1952, p. 180). A significação de
operação ou de ação dirigida para um fim e capaz de realizá-lo predomina em todas essas noções.
2
a
Relação. No final do séc. XVI, o grupo de matemáticos ao qual pertencia Leibniz — e talvez por iniciativa pessoal deste último (v. Mathematische Schriften, ed. Gerhardt, I, p. 268) — inferiu do
significado acima o conceito matemático de F., mas a primeira tentativa de defini-lo foi feita por Johann
Bernouilli em 1718 (cf. Opera, 1742, II, p. 241). Hoje em dia, as definições que os matemáticos dão desse
conceito de F. variam muito, mas em geral podemos dizer que se trata de uma regra que une as variações
de certo termo ou de um grupo de termos com as variações de outro termo ou grupo de termos. Na F.
distingue-se a variável dependente, que é a própria F., e as variáveis independentes ou argumentos (v.),
cujas variações são consideradas dadas ou determináveis arbitrariamente. Peirce afirma: "Dizer que uma
quantidade é a F. dada de certas quantidades que valem como argumentos significa dizer simplesmente
que os valores deles estão em dada relação com os valores dos argumentos, ou que uma proposição dada é
verdadeira em todo o conjunto de valores de sua ordem. Dizer simplesmente que uma quantidade é uma
F. de certas outras significa nada dizer, já que se pode dizer o mesmo de cada conjunto de valores. Isso
todavia não torna inútil a palavra F., assim como dizer que um conjunto de coisas que têm entre si alguma
relação não torna inútil a palavra relação." Desse ponto de vista, F. é a operação de aplicar efetivamente a
regra que interliga as variações de dois conjuntos de quantidades de tal modo que se encontrem os valores
de algumas dessas quantidades quando os outros são dados (Coll. Pap., 4, 253). A lógica contemporânea
adotou o conceito matemático de função; emprega o símbolo matemático de F.,f(x), para indicar
proposições da forma "a baleia é um mamífero", em que o símbolo x representa o argumento, o sujeito do
qual se fala (a baleia ou outro mamífero qualquer), ef corresponde à propriedade que se lhe atribui
(mamífero). O sinal/também é chamado de F. proporcional ou predicado. O objeto ao qual ele
corresponde, ou seja, a propriedade denotada, chama-se também F. situacional. Ser mamífero é, p. ex., a
propriedade ou F. situacional denotada pelo predicado ou F. proposicional "mamífero".
O uso do conceito de F. nas ciências tende a suplantar o do conceito de causa, podendo ser considerado
eqüipolente ao uso do conceito de condição. Expressa a interdependência dos fenômenos e permite a
determinação quantitativa dessa interdependência sem pressupor ou
FUNÇÃO PROPOSICIONAL
474
FUNDAMENTO
assumir nada sobre a produção de um fenômeno por parte de outro. Já em 1886 Mach teria sugerido que o
conceito de F. deveria suplantar o conceito tradicional de causalidade, por entender a dependência
recíproca dos fenômenos (Analyse der Empfindungen, 9
a
ed., 1922, p. 74). Num estudo de 1910
(Substanzbegriff und FunktionsbegrifJ) Cassirer mostrava a re-dutibilidade de boa parte das noções
científicas ao conceito de função. Mais recentemente, Dewey insistiu na diferença de significado que esse
conceito tem em física e em matemática. Quando se diz "o volume de um gás é F. da temperatura e da
pressão", descobre-se e verifica-se esta fórmula com operações de observação experimental: portanto, a
fórmula é contingente, assim como é contingente a relação que ela determina. Contudo, no caso da
proposição y = x2
, cada operação que confere um valor a x ouaj) institui necessariamente uma
modificação correspondente no valor do outro membro da equação, e a operação de atribuir um valor é
inteiramente determinada pelo sistema do qual a equação faz parte (Logic, cap. XX, § 5; trad. it., p. 539).
Mas obviamente esta diferença não modifica o próprio conceito de F., cujas características permanecem
constantes em todas as ciências contemporâneas que o utilizam amplamente.
FUNÇÃO PROPOSICIONAL (in. Proposi-tional function-, fr. Fonction propositionnelle, ai. Funktion; it.
Funzioneproposizionalé). Esta noção, introduzida por Frege (1879) e mais tarde amplamente
desenvolvida por Russell e Whitehead em Principia mathematica, hoje é o objeto de um dos capítulos
fundamentais da Lógica. A F. proposicional é uma F. que, conforme o número das variáveis
independentes, é chamada de monádica, diádica..., n-ádica, cuja substituição por símbolos denotados
produz proposições que são seus valores. P. ex.: "Sócrates é mortal" é um valor da F. proposicional
monádica, "x é mortal". Se a F. proposicional é monádica, também é chamada de predicado (Russell) ou
de propriedade, de outra maneira, é chamada de relação (diádica, triádica..., n-ádica). A F. proposicional
também é passível de outras operações (e nisso reside seu grande interesse para a Lógica) que a
transformam em símbolos designantes: assim, uma F. "í> x" é transformada pelo operador "todos" [na
notação de Russell, "(x)."] na proposição universal "todos os xsão O" [na notação de Russell, "Ge) O x"];
pelo operador existencial [na notação de
Russell, "(3x)"], na proposição particular "pelo menos um xé í>" [na notação de Russell, "(3x). Ox"]\ pelo
operador "x" (na notação de Russell) ou X (na notação mais recente) é transformada na descrição abstrata
da classe dos x que são 3> [na notação de Russell, "x í> x" ou "\<S>x"].
FUNCIONAL (in. Functional; fr. Fonction-nel; ai. Funktional; it. Funzionalé). As significações deste
adjetivo correspondem às significações fundamentais do substantivo correspondente. Ao I
a
significado
correspondem os das expressões "psicologia F." ou "análise sociológica F.". Ao 2a
significado
correspondem os significados das expressões "correlação F." ou "cálculo F.". A psicologia F., cujos
fundamentos foram defendidos especialmente por Peirce, James, Mead e Dewey, considera os processos
mentais como operações através das quais o organismo biológico adapta-se ao ambiente e o domina (cf.
MORRIS, Six Theories o/Mind, Chicago, 1932, cap. VI). A análise F. em sociologia tende a mostrar "o
papel que as instituições, desempenham na totalidade de um sistema cultural", como afirma Malinowski,
ou, em outros termos, a contribuição que uma instituição dá para a manutenção do conjunto social de que
faz parte (MERTON, Social Theory and Social Structure, 1957, pp. 20 ss.). Por outro lado, "correlação F."
é uma relação de dependência recíproca, de acordo com o 2a
significado de função. "Cálculo F." é aquela
parte da lógica que analisa a estrutura interna das proposições, indicadas pelo símbolo f (x).
FUNCIONALISMO. V. PSICOLOGIA, F.
FUNCTOR (in. Functor, fr. Functor, ai. Funktor, it. Funtoré). Com esse termo os lógicos indicam o sinal
de uma função não proposicional, isto é, numérica (REICHENBACH, Elements ofSymbolic Logic, 1947, p.
312; CAR-NAP, Meaning and Necessity, § 2).
FUNDAMENTO (gr. aixía, Kójoç, lat. Ratio, in. Foundation; fr. Fondement; ai. Grund; it. Fondamentó),
Causa, no sentido de razão de ser. Esta é uma das significações principais do termo "causa", graças à qual
contém a explicação e justificação racional da coisa da qual é causa. Aristóteles diz: "Acreditamos
conhecer um objeto de maneira absoluta — não acidentalmente ou de modo sofistico — quando
acreditamos conhecer a causa por que a coisa é e acreditamos conhecer que ela é causa da coisa e que esta
não pode ser de outra maneira" (An. post., I, 2, 71b 8). Nesse senti-
FUNDAMENTO
475
FUNDAMENTO
do, causa é razão, logos {De part an., I, 1, 639 b 15), pois não só permite compreender a ocorrência de
fato da coisa, mas também o seu "não poder ser de outra maneira", sua necessidade racional. Na doutrina
aristotélica, portanto, assim como em todas as que dela provêm, a causa-razão é um conceito ontológico
que expressa a necessidade do ser enquanto substância. É nesse sentido que Hegel usa esse conceito: "O
F. é a essência que é em si e esta é essencialmente F.; e F. só é como F. de alguma coisa, de um outro"
{Ene, § 121). De fato, nesse sentido F. é "a essência posta como totalidade" {Ibid., % 121), a razão da
necessidade de uma coisa, como julgava Aristóteles.
Em Leibniz, todavia, essa noção adquiriu sentido diferente e específico, distinguindo-se nitidamente da
noção de causa essencial ou substância necessária: passa a designar uma conexão falha de necessidade,
mas capaz de possibilitar o entendimento ou a justificação da coisa; o princípio desta conexão é chamado
de princípio de razão suficiente (Princi-pium rationis sufficientis, Satz vom zureí-chenden Grunde).
Leibniz chega à formulação desse princípio através da contraposição entre a conexão livre mas
determinante e a conexão necessitante. Ele diz: "A conexão ou concate-nação é de duas espécies: uma é
absolutamente necessária, de tal modo que seu contrário implica contradição, e tal conexão verifica-se nas
verdades eternas, como as da geometria; a segunda só é necessária ex hypothesi e, por assim dizer, por
acidente, sendo contingente em si mesma, uma vez que o seu contrário não implica contradição." Esta
segunda conexão verifica-se na relação entre uma substância individual e suas ações: p. ex., o fundamento
do fato de César ter atravessado o Rubicão está, sem dúvida, na própria natureza de César, mas isso não
indica que esse acontecimento seja necessário em si mesmo ou que o seu contrário implique contradição.
Da mesma maneira, Deus sempre escolhe o melhor, mas escolhe-o livremente, e o contrário do que
escolhe não implica contradição. "Toda verdade fundada nesses tipos de decretos é contingente,
conquanto certa, porque esses decretos não mudam a possibilidade das coisas; e apesar de Deus, como já
disse, sempre escolher indubitavelmente o melhor, isso não impede que o que é menos perfeito não seja e
continue possível em si mesmo, ainda que não aconteça, porque não é sua impossibilidade que o faz
repelir, mas sua
imperfeição. Ora, nada é necessário cujo oposto seja possível" {Disc. de mét., 1686, § 13). Como
mostram os textos de Leibniz, o F. ou razão suficiente tem uma capacidade explicativa diferente da causa
ou razão de ser de Aristóteles. Esta última explica a necessidade das coisas, por que a coisa não pode ser
diferente do que é. O fundamento ou razão suficiente explica a possibilidade da coisa, explica por que a
coisa pode ser ou comportar-se de certa maneira. Foi exatamente por isso que Leibniz destinou o
princípio de razão suficiente a servir de fundamento das verdades contingentes, continuando a admitir,
como fizera Aristóteles, o princípio de contradição como base das verdades necessárias {De scientia
universali, em Opera, ed. Erdmann, p. 83). Todavia, foi só Kristian Wolff que atribuiu ao princípio do F.
(ou princípio da razão suficiente) a condição de princípio de toda a filosofia e do seu método. Foi com
base nele que Wolff definiu a filosofia como "ciência das coisas possíveis e enquanto podem existir"
{Log., Disc. prael., § 29) e considerou como tarefa fundamental dela dar a "razão pela qual as coisas
possíveis podem chegar a ser" (Jbid., § 31). Desse ponto de vista, toda a atividade filosófica consiste na
determinação do F. {ratio, Grund), entendendo por F. "a razão pela qual alguma coisa é ou acontece"
{Ibid., § 4). Wolff, todavia, reintegrava o princípio de razão suficiente na significação necessarista. Distinguia o principium essendi, que contém a razão da possibilidade da coisa, do principium fiendi (ou do
acontecer) que contém a razão da realidade {Ont., § 874), bem como o principium cognoscendi, com o
qual entendia "a proposição por meio da qual se conhece a verdade de outra proposição" {Ibid., § 876).
Está claro que tanto o principium fiendi (que é o princípio da causalidade) quanto o principium
cognoscendi (que é a demonstração) têm caráter necessitante, aliás também presente na obra de
Baumgarten, que tende a integrá-lo no de contradição {Met., § 20). Esta tendência era predominante na
escola wolfiana (cf. CASSIRER. Erkenntnissproblem, VII, cap. 3; trad. it., II, pp. 596 ss.) e só sofreu a
oposição de Crusius, que insistia na distinção do princípio de razão suficiente do princípio de causalidade,
justamente para excluir do primeiro o caráter necessitante {De usu et limitibusprincipii rationis determinantis, 1743, § 4), correção que Kant aceitou numa de suas primeiras obras {Principionim primorum
cognitionis metaphysicae nova
FUNDAMENTO
476
FUTUROLOGIA
dilucidatio, 1755). Depois de Crusius, todavia, o caráter não necessitante do princípio de razão suficiente
— caráter que convencera Leibniz de admiti-lo como um princípio em si — desapareceu completamente.
A mesma distinção estabelecida por Crusius entre princípio de razão suficiente e princípio de causalidade
serviu para considerar os dois princípios como duas expressões do princípio de necessidade. Esse foi
justamente o caminho seguido por Schopen-hauer em sua obra Die vierfache Wurzel des Satzes vom
zureichenden Grunde (1813). Schopenhauer enumerava quatro formas do princípio de razão suficiente, ou
seja, ao lado das duas distinguidas por Crusius, punha o princípio de razão suficiente do ser, que rege as
relações entre os entes matemáticos, e o princípio de razão suficiente do agir, que rege as relações entre as
ações e seus motivos. Contudo, o caráter não necessitante do F. é confu-samente reconhecido nos seus
usos metafísicos. Schelling, em Untersuchungen überdas Wesen der menschlichen Freiheit(\809),
entendeu por F. o desejo ou a vontade de viver, de que depende tanto a existência do homem quanto a de
Deus. Neste sentido, F. não é, obviamente, uma causa necessitante. Com sentido análogo, Heidegger
disse: "a liberdade é o F. do F.". Explica: "A liberdade, por ser o fundo deste F., também é o abismo (sem
fundo) do ser-aí. Não que seja infundado o relacionamento individual e livre, mas no sentido de que a
liberdade, em sua natureza essencial de transcendência, põe o ser-aí, como poder-ser em possibilidades
que se estendem diante de sua escolha finita, ou seja, em seu destino" (Vom Wesen des Grundes, 1928, III;
trad. it., pp. 77-78). Em outras palavras, para a existência humana o F. é o enraizamento no mundo, em
virtude do que possibilidades projetadas são limitadas e comandadas pelo próprio mundo. O F. expressa o
condicionamento que o mundo exerce sobre o homem em virtude do seu enraizamento no mundo.
Emerge claramente desses textos o traço característico da noção em exame, que é expressar um
condicionamento não necessitante. Essa é de fato a significação mais comum e geral do termo tanto na
linguagem comum quanto na filosófica. F. é o que explica uma preferência, uma escolha, a realização de
uma alternativa e não de outra. Fala-se em F. todas as vezes em que a preferência ou a escolha é
justificada ou quando a realização da alternativa é explicável.
Do mesmo modo, princípio "fundamental" é o que estabelece a condição primeira e mais geral pela qual
alguma coisa possa existir, e ciência fundamental é a que contém as condições que tornam possíveis as
outras ciências (nesse sentido Wolff chamava a ontologia de Grundwissenschafi). Pode-se dizer, portanto,
que no uso moderno essa palavra não tem significação diferente de condição (v.).
O iluminismo alemão do séc. XVIII, que elaborou o conceito de F., também elaborou a noção de método
do F. (ai. Grundlichkeii), cujas regras foram ditadas por Wolff no IV capítulo do Discurso preliminar de
Philosophia rationalis, e assim resumidas por Kant no prefácio da segunda edição da Crítica da Razão
Pura: "Algum dia, no sistema futuro da metafísica, cumprirá seguir o método do célebre Wolff, o maior
dos filósofos dogmáticos, o primeiro a dar exemplo (graças ao qual se tornou, na Alemanha, o criador do
espírito de Grundlichkeit que ainda persiste) de como se pode tomar o caminho seguro da ciência
estabelecendo os princípios com regularidade, determinando os conceitos com clareza, procurando o rigor
das demonstrações e negando-se a dar saltos na dedução das conseqüências." O método da
fundamentação consiste em aduzir o F., ou seja, a razão justificativa, a cada passo do filosofar, e dele a
filosofia ainda pode esperar uma salvaguarda do arbítrio.
FUROR HERÓICO. V. ENTUSIASMO.
FUSÃO (in. Fusion; fr. Fusion; ai. Fusion; it. Fusioné). Termo usado em psicologia para indicar uma
forma de associação. Scheler vê na F. afetiva uma indicação da unidade metafísica do mundo da vida;
essa unidade, porém, não elimina a diversidade das pessoas, mas sim exige-as (Sympathie, I, cap. 4, §§ 3-
5; trad. fr. pp. 108 ss.).
FUTURIÇÃO (in. Futurition; fr. Futurition; it. Futurizionè). Leibniz designa assim a determinação dos
acontecimentos futuros, possibilitando a Deus a sua previsão infalível (Théod., I, § 37) (v.
PREDETERMINAÇÃO). Ortega y Gasset usa esse termo para indicar a orientação da vida humana em
direção ao futuro.
FUTURO (in. Future, fr. Avenir, ai. Zukunft; it. Aweniré). Quanto ao primado do F. sobre as outras
determinações do tempo em algumas formas de filosofia contemporânea, v. TEMPO.
FUTUROLOGIA (in. Futurology, fr. Futu-rólogie, a\ Futunim\ogVe,\\. PuturoVogYri)."temo empregado
por O. K. Flechtheim, a partir de 1943, para designar a ciência das perspecti-
FUTUROLOGIA
477
FUTUROLOGIA
vas prováveis do futuro destino do homem, da sociedade e da cultura. Essa ciência não pretende tomar
como base apenas os dados das ciências exatas, mas introduzir "hipóteses de
grande alcance e teorias referentes às perspectivas do universo, à futura evolução da Terra e do clima, da
flora e da fauna" (History and Futurology, 1966).
G
GARANTIA (in. Security; fr. Assurance; ai. Assecuranz, it. Assicurazioné). Royce sugeriu um sistema de
G. para realizar o que ele chamava a "Grande comunidade" humana. A G. é, com efeito, uma associação
baseada no princípio triádico da interpretação: assim como nesta há o intérprete que interpreta alguma
coisa para alguém, assim na G. existem, na relação, o que é garantido, o garantidor e o beneficiário {A
esperança na Grande comunidade, 1916). Royce também sugeriu a G. contra a guerra (Guerra e G.,
1914).
GEGENSTANDSTHEORIE. Teoria dos objetos, especialmente na forma que assumiu na obra de A.
Meinong (v. OBJETO).
GENERALIZAÇÃO (in. Generalization; fr. Généralisation; ai. Verallgemeinerung; it. Generalizzazione). Operação de abstração que dá ensejo a um termo ou uma proposição geral. Algumas
vezes também se dá o nome de G. à indução (v.) ou à construção de uma hipótese (v.) que com mais
propriedade deveriam ser chamadas de operações de universalização. Fala-se de G. principalmente em
matemática. "Ampliar um domínio com a introdução de novos símbolos, de tal modo que as leis válidas
no domínio originário continuem valendo no domínio mais amplo, é um dos aspectos do característico
procedimento matemático de G. A G. a partir dos números naturais para os racionais satisfaz tanto a
necessidade teórica de remover as restrições para a subtração e a divisão, quanto a necessidade prática de
que os números expressem os resultados de certas medidas. Essa ampliação do conceito de número
tornou-se possível com a criação de novos números sob forma de símbolos abstratos, como 0, - 2, 3/4"
(COURANT-ROBBINS, What is Mathematics?, II, § 2; trad. it., p. 109).
GÊNERO (gr. "/évoç; lat. Genus; in. Genus; fr. Genre; ai. Gattung; it. Genere). Aristóteles distinguiu
três significações desse termo: I
a
geração, particularmente "a geração contínua de seres que têm a mesma
espécie", e neste sentido diz-se "G. humano"; 2- estirpe ou raça como "primeiro motor" ou "aquilo que
deu ser às coisas de uma mesma espécie"; neste sentido fala-se do G. dos helenos porque descendem de
Heleno ou do G. dos jônios porque descendem de Jônio; 3a
o sujeito ao qual se atribuem as oposições ou
as diferenças específicas, e neste sentido o G. é o primeiro constituinte da definição (Met., V, 28, 1024 a
30 ss.). Essas três significações já haviam sido usadas ocasionalmente por Platão (para a primeira delas,
v., p. ex., O Banq., 190 c; para a segunda, OBanq., 191 c; Ale. I., 120 e). Platão deu maiores explicações
sobre o terceiro sentido, que é o mais estritamente filosófico, dizendo: "Cada figura é semelhante a outra
figura, porque no gênero todas as figuras formam um todo. No entanto, as partes do gênero ou são
contrárias umas às outras ou são diferentíssimas entre si" (Fil., 12 e). Para Aristóteles essa significação
também é a mais importante e, em vista disso, pode-se dizer que o G. (juntamente com a espécie) é
substância segunda. Aristóteles diz: "Só as espécies e os G., além das substâncias primeiras, são
chamadas substâncias segundas: só eles manifestam a substância primeira das coisas às quais se atribuem
predicados. Será possível explicar o que é um homem só aduzindo a espécie ou o G.; e dizendo-se que é
um homem, estaremos explicando melhor do que se o chamássemos simplesmente animal? No caso de se
aduzir algum outro predicado, dizendo, p. ex., que ele é branco ou que corre, estar-se-á dizendo alguma
coisa que é alheia ao objeto em questão" (Cat., 5, 2 6 28 ss.). Em outros termos, os G. e as
GENÉTICA
479
GENÉTICA
espécies são "substâncias segundas" porque entram na composição da definição da "substância primeira",
ou seja, da essência necessária (v. SUBSTÂNCIA). "Como a substância é a essência necessária e a
expressão desta é a definição (...) e como a definição é um discurso e um discurso tem partes, foi
necessário distinguir quais são as partes da substância e quais não são, e se estas também são partes da
definição; assim vemos que nem o universal nem o G. é substância" (Met., VIII, I, 1042 a 16 ss.). O G.
não é substância, mas componente necessário da essência necessária, que é a substância.
Dessa formulação de Aristóteles nasceu a contenda medieval dos universais (v.). Os universais são de fato
o G. e a espécie. A outra alternativa fundamental para a solução da discussão foi proposta pelos estóicos,
que definiram o G., de modo nominalista, como "a conjunção de noções diferentes e permanentes, como
p. ex. animal, que abrange como suas espécies todos os animais" (DIÓG. L. VII, 60). Na filosofia moderna
e contemporânea a palavra G., assim como a palavra espécie, ainda é esporadicamente empregada, mas
sem as implicações ontológicas que possuía em Platão e Aristóteles. Além disso, em lógica, foi
completamente suplantada pelo conceito de classe (v.).
GENÉTICA (in. Genetics; fr. Génétique; ai. Genetik; it. Genética). Uma das ciências biológicas mais
recentes e mais bem organizadas, que contribuiu decisivamente para o progresso dos estudos biológicos.
Seu objeto específico é a transmissão das características hereditárias dos organismos de uma geração para
outra e, por conseguinte, a mutação que os organismos sofrem em suas características hereditárias. O
fundador da G. moderna foi o abade austríaco Gregor Mendel, que em 1866 publicou os resultados de
algumas de suas experiências sobre a hibridação de diferentes espécies de ervilhas e formulou as leis que
até hoje recebem seu nome. Essas leis exprimem um fato experimental que desmentia as crenças
universalmente aceitas até aquele momento. Acreditava-se, p. ex., que dois indivíduos, um genitor de pele
branca e um outro de pele negra, gerassem filhos de pele morena, e que estes indivíduos, unidos com
outros de pele morena, gerassem filhos morenos, como se os dois caracteres ou tipos de "sangue" se
houvessem misturado para sempre, assim como o leite se mistura ao café e não podem mais ser separados. As leis de Mendel afirmam que os filhos provenientes da união de indivíduos que têm caracteres
diferentes apresentam, pois, uma mistura de tais caracteres, mas não os transmitem a seus descendentes,
nos quais esses caracteres vão se separando em proporções estatísticas bem definidas. A G. moderna
indica com o nome de gene o corpúsculo germinal portador de determinada característica física. O gene é
uma unidade, ou seja, não se mescla. As características herdadas de um organismo representam o
resultado da ação recíproca de seus genes. Habitualmente um ou dois pares de genes são os principais
responsáveis pelas variações que se observam em determinados caracteres do organismo. Os genes
dispõem-se em ordem definida nas partes da célula chamadas cromossomos.
Nem todas as características de um organismo apto são determinadas pelos genes; por outro lado, em
decorrência da ação recíproca entre os genes alguns caracteres tendem a desaparecer (são chamados
recessivos) e outros a fortalecer-se (são chamados dominantes). Portanto, um único gene pode exercer
efeitos díspares sobre o organismo, e o mesmo efeito pode ser produzido por combinações díspares de
genes. Estas duas verificações privam a transmissão das características orgânicas do caráter de
necessidade. Os geneticistas usam a palavra expressividade para indicar a medida em que o efeito de
determinado gene se manifesta no indivíduo que o possui, e a palavra penetração do gene para indicar a
porcentagem de indivíduos que, possuindo o gene, manifestam seus efeitos. O emprego desses termos
demonstra que, entre a posse do gene e seu efeito (uma característica física), não há relação de
necessidade, mas só uma relação estatística, cujas condições podem ser determinadas em cada caso. O
gene não age como causa infalível, como força que produz necessariamente determinados efeitos. As
condições que delimitam seus efeitos são: I
a
interação de todos os genes; 2a
ambiente.
Esses conceitos da G. foram confirmados e desenvolvidos decisivamente pela bioquímica. Hoje se sabe
que o principal componente dos cromossomos é o ácido desoxirribonu-clêico (DNA), cuja estrutura
molecular foi definida por Watson e Crick em 1953 como um par de espirais que, quando separadas,
podem, individualmente, reunir em torno de si os resíduos moleculares necessários à reconstrução
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GEMO
da espiral dupla original. O DNA é composto por quatro bases nucleotídicas que costumam ser indicadas
com as letras C, T, G e A, consideradas um alfabeto genético. Assim como as formas, poucas das quais
constituem palavras e frases significantes (capazes de comunicar informações), os elementos do alfabeto
genético podem combinar-se em numerosas formas, algumas das quais transmitem a mensagem genética,
ou seja, determinam com certa probabilidade a transmissão de caráter hereditário. Portanto, o material
genético é semelhante a uma mensagem escrita que, uma vez recebida pelo organismo, dirige e controla
seu desenvolvimento. Viu-se também que cada palavra do código genético é constituída por uma série de
três de suas bases (.tripletó); o gene é então concebido como uma seqüência de tripletos no DNA, e a
mutação consiste na substituição de uma das letras do tripletó por outra. Essas substituições ocorrem
aleatoriamente e constituem a única origem possível das modificações do texto genético e, portanto, das
estruturas hereditárias do organismo. Quando tais modificações são nocivas à adaptação do organismo ao
ambiente, produzem em escala macroscópica a senescência ou a morte do organismo.
Contra a disseminação da G. moderna, um grupo de cientistas russos sustentou durante certo tempo a
doutrina de Michurin, que, graças ao apoio de Lysenko, teve aprovação oficial da ciência soviética
durante os anos de estalinismo. A doutrina de Michurin é uma forma de lamarckismo, pois parte da crença
no poder criativo do ambiente biológico. "A herança", diz Lysenko, "é efeito da concentração das
condições externas, assimiladas pelo organismo durante uma série de gerações anteriores." Isso nada mais
é que o postulado da rigorosa causalidade do ambiente. A doutrina de Michurin nega, portanto, todos os
instrumentos conceptuais do probabilismo mendeliano: a não-hereditariedade dos caracteres adquiridos e
até a existência do gene. Contra a tese fundamental de Michurin, J. Huxley observou: "Os lamarckianos e
os partidários de Michurin têm razão quando sustentam que há uma relação entre o ambiente e os
caracteres da adaptação do organismo. Enganam-se, porém, quando supõem que essa relação é simples e
direta. Ela é complexa e indireta: as mutações ocorrem aleatoriamente e a seleção conserva as poucas
mutações que favorecem os indivíduos naquele ambiente específico. Este é um dado de fato
científico, que nenhuma consideração apriori pode alterar" (Soviet Genetics and World Science, trad. it.,
p. 151). Os conceitos de mutação aleatória e de seleção continuam sendo fundamentais na G. moderna.
Monod escreveu: "As alterações genéticas são acidentais, ocorrem aleatoriamente. E como constituem a
única origem possível das modificações do texto genético, que, por sua vez, é o único depositário das
estruturas hereditárias do organismo, segue-se necessariamente que o acaso é a única origem de qualquer
novidade e de qualquer criação na biosfera" (Le hasard et Ia necessite, 1970, p. 127).^
GENÉTICO (in. Genetio, fr. Génétique; ai. Genetiscb, it. Genético). Aquilo que pertence à geração ou
efetua-se através da geração. Neste último sentido, Hobbes falou de definição genética ou por
generationem: "A razão pela qual as coisas que têm causa e geração devem ser definidas através da causa
e da geração é esta: o fim da demonstração é a ciência das causas e da geração das coisas, e, se não se
tiver essa ciência na definição, não se poderá tê-la tampouco na conclusão do silogismo que dela parte"
{De corp., VI, § 13). Essa noção passou mais tarde para a lógica de Wolff, que entendeu por definição
genética "a definição que expõe a gênese de uma coisa, ou seja, a maneira como ela pode realizar-se"
(Log., § 195). O conceito desta definição está ligado ao princípio exposto por Hobbes em De homineQí, §
5), qual seja: só se pode ter ciência demonstrativa das coisas que podem ser produzidas (como os entes
matemáticos e os entes morais ou jurídicos), porque delas se conhece seguramente a causa. A partir da
segunda metade do séc. XIX esse adjetivo, particularmente quando se referia a ciências ou a partes de
ciências, passou a ter significado ligado ao de evolução (v.); uma teoria genética geralmente é a
consideração do desenvolvimento evolutivo da coisa à qual a teoria se refere (p. ex., "psicologia genética"
= estudo da evolução psíquica).
GÊNIO (in. Genius-, fr. Génie; ai. Genie; it. Genió). A partir da segunda metade do séc. XVII passou-se
a indicar com esse termo (que, segundo Varrão, na origem indicava "a divindade que é preposta a cada
uma das coisas geradas e que tem a capacidade de gerá-las", S. AGOSTINHO, De civ. Dei, VII, 13) o
talento inventivo ou criativo nas suas manifestações superiores. Pascal já usa essa palavra com esse
sentido: "Os grandes gênios têm seu império,
GÊNIO
481
GÊNIO
seu esplendor, sua grandeza, suas vitórias e não precisam das grandezas carnais, que não têm relação com
o que eles procuram" {Pensées, 793). E La Bruyère dizia: "E menos difícil para os grandes gênios topar
com coisas grandes e sublimes do que evitar qualquer espécie de erro" {Caracteres, 1687, cap. 1). A
estética do séc. XVIII reduziu a noção de G. ao domínio da arte. Kant (provavelmente inspirado numa
obra inglesa de GERARD, Essay on Genius, 1774) defende este ponto de vista: "O talento de descobrir
chama-se gênio. Mas esse nome só se dá ao artista, àquele que sabe fazer alguma coisa, não àquele que
conhece e sabe muito; e não se dá ao artista que imita apenas, mas àquele que é capaz de produzir sua
obra com originalidade; enfim, só se dá quando seu produto é magistral, quando, por mérito, merece ser
imitado" (Antr., § 57). Esse é o sentido da definição de G. que Kant dá na Crítica do Juízo como de
"talento (dom natural) que dita regras à arte". Gomo talento, o G. foge a qualquer regra; mas como criador
de exemplares distingue-se de qualquer extravagância. É natureza porque não age racionalmente; e é
natureza que dita regras à arte. Kant observa que, justamente devido a estas últimas características, "a
palavra G. derivou de genius, que significa o próprio espírito do homem, o que lhe foi dado ao nascer, que
o protege e o dirige, dé cuja sugestões provêm as idéias originais" {Crítica do Juízo, § 46). Esse ponto de
vista era aceito por Schopenhauer, que, considerando a arte como a visão das idéias platônicas, que são a
primeira "objeti-vação" da vontade de viver, vê na arte a "contemplação pura" e, por isso, a essência do
G. na preponderante aptidão para tal contemplação. "Visto que esta", diz ele, "requer esquecimento total
de si mesmo e de suas relações, decorre daí que a genialidade é a mais completa objetividade, ou seja, a
direção objetiva do espírito, que se opõe à direção subjetiva tendente à própria pessoa, à vontade." Por
conseguinte, enquanto para o homem comum o patrimônio cognoscitivo é "a lanterna que ilumina o
caminho", para o G. ele é "o sol que revela o mundo" {Die Welt, I, § 36). Essas observações de
Schopenhauer constituem uma contribuição para aquilo que poderíamos chamar de culto romântico do
gênio. Obviamente, esse culto não se limita ao G. artístico. Fichte mostrava já a conexão do G. com a
filosofia. A inventividade do filósofo requer "um obscuro sentimento da verdade" e esse sentimento é
exatamente o gênio. Para Fichte, mesmo que um dia a filosofia progredisse a ponto de conter uma "teoria
da invenção, não seria possível chegar a isso a não ser por meio do G." {Werke, ed. Medicus, I, p. 203).
Fichte reconheceu no G. as mesmas características que Kant lhe atribuíra: inventividade e naturalidade. O
G. "é um favor especial da natureza, que não se pode explicar ulteriormente" {Ibid., ed. Medicus, III, p.
92; cf. PAREYSON, A estética do idealismo alemão, I, pp. 333 ss.). O obscuro sentimento da verdade, que
Fichte atribui ao G., transforma-o naquilo que Schlegel chamava de "mediador entre o Infinito e o finito",
aquele que "percebe em si o divino e, anulando-se, dedica-se a anunciar esse divino a todos os homens, a
participar dele e a representá-lo nos costumes e nas ações, nas palavras e nas obras" {Ideen, 1800, § 44).
É verdade que, assim como Kant, Schelling afirmava que o G. é sempre e somente estético, mas ao
mesmo tempo considerava a intuição estética o órgão da filosofia e, em geral, da ciência. O G. é, pois, o
absoluto que se revela no homem e não pertence só a uma parte do homem {Werke, I, III, pp. 618 ss.).
Hegel, por sua vez, dizia que a palavra G. era empregada para designar não só os artistas, mas também os
grandes líderes e os heróis da ciência {Vorlesungen über die Àsthetik, ed. Glockner, I, p. 378), mas
pessoalmente reservava esse vocábulo para os artistas, definindo o G. como "a capacidade geral de
produzir autênticas obras de arte, acompanhada pela energia necessária à sua realização" {Ibid., p. 381).
Na realidade, aqueles que Fichte chamava de "doutos" ou de "videntes" (cf. Vorlesungen über die
Bestimmung des Gelehrten, 1794), Hegel de "indivíduos da história cósmica" e outros de heróis (v.) são
simplesmente expressões diferentes do mesmo conceito que, no domínio da arte, o Romantismo designou
com o termo G., ou seja, encarnação do Infinito no mundo, mediadores entre o finito e o Infinito (como
dizia Schlegel), instrumentos da realização ou da revelação do Absoluto. O próprio Kierkegaard, que por
muitos aspectos pode ser considerado antagonista do Romantismo, partilhou esse conceito de G. Disse:
"O G. é um An-sich onipotente que, como tal, gostaria de sacudir o mundo inteiro. Por isso, para salvar a
ordem, nasce com ele outra figura: o destino. Mas o destino é nulo, porque é ele mesmo que o descobre, e
quanto mais profundo for o G., mais profundamente o descobre; por-
GENTES, DIREITO DAS
482
GEOMETRIA
que o destino nada mais é que a antecipação da providência" (Der Begriff der Angst, III, § 2; trad. Fabro,
p. 123).
Na cultura contemporânea, o conceito do G. se manteve com essas características românticas, que não
desapareceram nem com a aproximação entre G. e loucura, tentada por alguns antropólogos,
particularmente por Cesare Lom-broso. Essa aproximação baseava-se na consideração dos chamados
"fenômenos regressivos da evolução", em virtude dos quais os grandes avanços em uma certa direção são
acompanhados, na maioria das vezes, por uma parada nas outras direções. Por isso, Lombroso julgava
encontrar formas mais ou menos atenuadas de loucura ou perversão nos indivíduos geniais (G. e
degeneração, 1897), mas com isso não punha em dúvida a realidade do conceito, sem dúvida pressuposta.
Por outro lado, quando, no fim de Duas fontes da moral e da religião (1932), Bergson auspicia o advento
de um "G. místico", que possa "arrastar atrás de si uma humanidade imensamente encorpada", vê nesse G.
a encarnação ou a realização do elã vital que é o princípio do mundo (Deux sources, IV; trad. it., pp. 343
ss.). Como todo G. romântico, o G. preconizado por Bergson também é a encarnação do Absoluto e
destina-se a realizar o Absoluto no mundo. Todavia, Kant já havia advertido para o perigo inerente ao uso
desse conceito, que parece dispensar alguns homens da aprendizagem, da pesquisa e dos deveres comuns,
e propusera a questão sobre quem contribui mais para o progresso efetivo do homem: os grandes gênios
ou "os cérebros mecânicos" que se apoiam na bengala da experiência (Antr., § 58).
GENTES, DIREITO DAS (lat. Ius gentium; in. Law qfnations-, fr. Droit des gens; ai. Vól-kerrecht; it.
Diritto delle gentf). 1. Identificado por Gaio (séc. II) com o direito natural, o direito das G. foi distinguido
deste por Ulpiano (séc. III); para ele, o direito das gentes é "aquele que todos os seres humanos utilizam e
só estes", enquanto o direito natural é aquele que a natureza ensinou a todos os animais e por isso não é
próprio só do gênero humano (Di-gesto, 1,1,1-4). Essa distinção permaneceu substancialmente a mesma
até o jusnaturalismo moderno.
2. A partir de Grócio, entende-se por direito das G. a norma não escrita que regulamenta as relações entre
os Estados ou entre cidadãos de
Estados diferentes, ou seja, o direito natural internacional (v. DIREITO).
GEOMETRIA (gr. 7E(0U.etpía; lat. Geometria; in. Geometry, fr. Géométrie; ai. Geometrie; it.
Geometria). Em geral, a ciência que estuda as possibilidades métricas dos conjuntos. A estrutura métrica
dos conjuntos pode ser considerada: \- única e necessária, como foi considerada até a descoberta das
geometrias não-euclidianas: nesse caso, a G. será a descrição das determinações necessárias de tal
estrutura (o espaço euclidiano) e assumirá a forma de um sistema dedutivo único e perfeito; 2a multíplice
ou indefinidamente variável: nesse caso serão possíveis G. diferentes, cujo objeto serão estruturas
métricas espaciais diferentes ou dotadas de graus diferentes de generalidade. A primeira forma da G.
iniciou-se com Pitágoras e com Platão, tornando-se modelo das ciências dedutivas. A segunda iniciou-se
com a descoberta das G. não-euclidianas e sua expressão mais clara foi o "programa de Erlangen".
;
l
e
Segundo relato de Proclo (In Eucl., 65, 11, Friedlein), foi Pitágoras quem "deu forma de educação
liberal ao estudo da G., procurando seus princípios primeiros e investigando seus teoremas do ponto de
vista conceptual e teórico". Mas sabemos que é sobretudo a Platão que se deve a guinada conceptual e
teórica da geometria. Platão contrapõe explicitamente ao uso prático da G., ou seja, ao uso que a
subordina às necessidades cotidianas e portanto às exigências de construtores, estrategistas, etc, seu fim
teorético, em virtude do qual ela tende a conhecer "aquilo que sempre é e não o que nasce e perece"
(Rep., VII, 527b). Como todas as outras ciências propedêuticas, pertencentes à esfera do conhecimento
racional ou dianóia, a G. vale-se de "hipóteses" que sabe justificar; tudo o que ela fáz é entrelaçar
coerentemente "conclusões e proposições intermediárias" (Ibid., VII, 533c). Aristóteles também insistiu
no procedimento abstrativo utilizado pela geometria. Disse: "O matemático constrói sua teoria eliminando
todos os caracteres sensíveis, como o peso e a leveza, a dureza e seu contrário, o calor e o frio, bem como
os outros contrários sensíveis, e fica apenas com a quantidade e a continuidade, às vezes em uma só
dimensão, às vezes em duas, outras em três, bem como com os atributos dessas entidades que sejam
quantitativos e contínuos; e não os considera
GEOMETRIA
483
GEOMETRIA
sob nenhum outro aspecto" (Met., XI, 1061 a 29). Mas foi também graças a Aristóteles que a G. ganhou
organização lógica; de fato, essa organização, que se realizou plenamente nos Elementos de Euclides, no
séc. III a.C, tem como modelo a ordem que, no Organon, Aristóteles considerara própria de toda ciência,
qual seja: o ponto de partida são os primeiros princípios (definições, axiomas e postulados), passando-se à
dedução rigorosa a partir desses princípios, sem recorrer à experiência ou a qualquer intuição. Mas essa
mesma formulação lógica da G. antiga esclarece a natureza de seu objeto. Como dizia Aristóteles, esse
objeto é a quantidade contínua; e como dissera Platão, é "alguma coisa que é sempre", ou, na
terminologia de Aristóteles, é uma substância ou essência substancial que, justamente por ser tal, pode ser
definida, e cujas propriedades fundamentais o intelecto pode intuir, expressando-as nos axiomas. É
preciso lembrar que, segundo Aristóteles, o procedimento dedutivo ou silo-gístico deve partir de
premissas evidentes, intuídas pelo intelecto, e que essa intuição só pode existir com relação a
propriedades ou a determinações necessárias da substância. O caráter substancial do objeto da G., no
sentido exato e técnico que a palavra "substancial" tem em Aristóteles (v. SUBSTÂNCIA), é o pressuposto
fundamental dessa fase conceptual da geometria. Isto quer dizer que o contínuo espacial, que é o objeto
da G., é pressuposto, em seu modo de existência específica e em suas determinações necessárias, a partir
das operações geométricas que a tomam como objeto. Esse contínuo é independente de tais operações
porque é uma substância, porque é necessariamente o que é e não pode ser diferente. A necessidade
intrínseca das definições e dos axiomas e o caráter indispensável dos postulados (que tampouco podem
ser mudados) expressam, no âmbito desta fase conceptual, a necessidade do objeto da G., ou seja, do
espaço. Este tem essência necessária, cujos princípios expressam as determinações imutáveis e cuja
dedução silogística põe em evidência as determinações implícitas (mas igualmente necessárias). A
interpretação do espaço feita por Kant, como "forma da intuição" ou "intuição pura", não constitui (e nem
Kant teve essa intenção) uma inovação do conceito de geometria. Segundo Kant, o espaço como intuição
pura devia exatamente servir para garantir à G. seu papel de ciência que determina as propriedades
do espaço apriori, ou seja, independentemente da experiência, e para garantir a tais propriedades seu
caráter apoditico, ou seja, sua necessidade (Crít. R. Pura, § 3).
2- A segunda fase conceptual da G. só começou quando se realizou plenamente o significado da
descoberta das G. não-euclidianas. O V postulado de Euclides provocara discussões desde a Antigüidade.
No séc. XVIII, especialmente graças a Saccheri e de Lambert, e nos primeiros decênios do séc. XIX,
graças a Legendre, essas discussões se acirraram, mas não levaram a conclusões, porque se achou absurdo
admitir a possibilidade de uma G. diferente da de Euclides. Só Gauss, Lobacevskij e Bolyai reconheceram
e puseram em prática essa possibilidade. Em 1855, uma dissertação de RIEMANN, Sobre as hipóteses que
fundamentam a G., mostrava como, com mudanças oportunas no V postulado, seria possível obter não só
a G. de Euclides e a G. de Lobacevskij e Bolyai, mas também uma terceira G. (que mais tarde foi
chamada de Riemann). O V postulado de Euclides exige que só haja uma paralela para uma reta dada; a
G. de Lobacevskij e Bolyai exige que haja infinitas paralelas para uma reta dada. Riemann supôs que não
houvesse paralela nenhuma para uma reta dada, o que produz uma G. simetricamente oposta à de
Lobacevskij e de Bolyai. A G. euclidiana é válida para o espaço de curvatura constante nula. A G. de
Lobacevskij vale para o espaço de curvatura constante negativa. A G. de Riemann vale para o espaço de
curvatura constante positiva. Nesta última G., uma reta não pode ser prolongada até o infinito, mas é
finita e fechada, e é a G. que vigora na superfície da esfera (supondo-se que se considerem somente duas
dimensões), portanto o modo mais natural de um navegador descrever o mundo. Assim, a G. euclidiana
tornava-se um caso particular de uma G. bem mais ampla e geral, mas a verdadeira significação dessa
descoberta só ficou clara alguns anos depois, em virtude do emprego de um conceito que fora utilizado
desde o início pela chamada G. projetiva. o conceito de transformação. A G. projetiva, cujas primeiras
menções se encontram nos trabalhos de Gas-pard Monge (1746-1818), introduzia uma nova operação —
a projeção —, que permite transformar uma figura em outra, cujas propriedades podem ser deduzidas das
propriedades da primeira. O caráter peculiar dessas propriedades, como foi mostrado por Poncelet
(.Tratado
GEOMETRIA
484
GERAL
das propriedades projetivas das figuras, 1822), consistia em sua invariância, ou seja, em permanecerem
as mesmas ao longo das transformações que as figuras sofriam com a projeção. Em 1847, a G. de posição
de Staudt, realizando uma exposição rigorosa da G. descritiva, mostrava que ela podia absorver em si toda
a ciência geométrica. Nessa mesma linha, o passo decisivo foi dado por Felice Klein com seu programa
de Erlangen, que constituiu a aula inaugural dada nessa Universidade em 1872. Segundo Klein, a G. nada
mais é que o estudo das propriedades invariáveis em relação a um grupo de transformações, entendendo
por grupo de transformações um conjunto de transformações em que, ao lado de cada transformação
também está a transformação inversa (a que destrói o efeito da primeira). Desse ponto de vista, as
propriedades a serem consideradas "geométricas" dependem do grupo de operações considerado
fundamental. Quando este último varia, também varia o significado do termo geometria. Cayley
demonstrou que o grupo fundamental da G. projetiva é mais amplo do que o das G. métricas. Outra
ampliação realiza-se quando se passa da G. descritiva à topologia (ou anafysissitusW.]), que estuda as
propriedades invariantes em relação ao grupo generalíssimo das transformações contínuas.
É fácil, portanto, perceber a diferença de postura conceptual da G. contemporânea em relação à clássica.
Ao contrário desta última, a G. contemporânea não pressupõe o objeto de seu estudo (o espaço), ou seja,
não pressupõe que tal objeto tenha propriedades necessárias, expressáveis em definições unívocas, em
axio-mas evidentes e em postulados inevitáveis. São consideradas objeto da G. as propriedades que se
mostrem invariantes por meio dos grupos de transformações, mas ao mesmo tempo procuram-se realizar
tipos de transformações sempre diferentes e considerar, portanto, invariâncias cada vez mais gerais. A
estrutura lógica dessa G. obviamente nada mais tem a ver com a lógica aristotélica e com a estrutura da G.
euclidiana. Poincaré descreveu essa estrutura como de sistemas hipotético-dedutivos (v. CONVENCIONALISMO). Ao mesmo tempo em que a forma lógica de tais sistemas é extremamente rigorosa e evita
recorrer a elementos ou a operações intuitivas, essa G. perdeu o caráter de necessidade racional que
caracterizava a G. clássica: seu objeto não é uma substância racional, mas
as invariâncias que podem ser obtidas por meio de operações oportunas livremente escolhidas.
GERAÇÃO (gr. TÉveciÇ; lat. Generatio-, in. Generation; fr. Génération; ai. Erzeugung; it.
Generazioné). Segundo Aristóteles, "a mudança que vai do nâo-ser ao ser do sujeito, segundo a
contradição": a passagem da negação da coisa à coisa. A G. pode ser absoluta, e nesse caso é a passagem
do não-ser ao ser da substância, ou qualificada, e nesse caso é a passagem do não-ser ao ser de uma
qualidade da substância (Fís., V, I225al2ss.).0 oposto de G. é corrupção (v.). G. e corrupção constituem a
primeira das quatro espécies de mudança, mais precisamente a mudança substancial Clbid, 225 a 1) (v.
DEVIR).
GERAL (in. General; fr. General; ai. Ge-meingültig; it. Generale). Essa palavra foi introduzida no uso
moderno pelo empirismo inglês que, por meio dela, designou o resultado de uma operação de abstração;
por isso, é algo diferente de universal, interpretado como natureza originária ou forma substancial. "As
palavras", diz Locke, "tornam-se G. pelo fato de fazermos delas signos de idéias G.; e as idéias tornam-se
G. quando delas são afastadas as circunstâncias de tempo e de lugar, bem como de qualquer outra idéia
que possa determiná-las no sentido desta ou daquela existência particular. Com esse meio da abstração,
elas adquirem a capacidade de representar mais indivíduos, cada um dos quais, tendo em si conformidade
com aquela idéia abstrata, é (como dizemos) daquela espécie" {Ensaio, III, 3, § 6). A idéia é G., então,
quando é o resultado da abstração; a generalidade é obra do intelecto, embora a ela corresponda a
semelhança das coisas naturais. Como não existem naturezas ou formas universais, o universal reduz-se
ao G., e às vezes Locke emprega os dois termos como sinônimos {Ibid., III, 3, § 11)- Esse termo era
aceito com este sentido por Berkeley {Principies of Knowledge, Intr., § 12) e por Hume {Treatise, I, 1,7).
Leibniz aceitava essa palavra e seu conceito, apesar de afirmar que desse conceito não derivava a negação
das essências universais. Dizia: "A generalidade consiste na semelhança das coisas individuais entre si, e
essa semelhança é uma realidade" {Nouv. ess., III, 3, 11). Stuart Mill aceitava essa terminologia,
distinguindo substantivos individuais ou singulares e substantivos G.: estes últimos possibilitariam
afirmar proposições G., ou seja, "afirmar ou negar alguns predicados de um número indefini-
GESTALTPSYCHOLOGIE
485
GNOSTICISMO
do de coisas ao mesmo tempo" {Logic, I, 2, § 3). Essa significação não prevaleceu na lógica
contemporânea, que considera singular o termo cuja conotação impede sua aplicação a mais de uma coisa
real, sendo G. o termo que não é singular nesse sentido. Lewis diz: "Saber se um termo concreto é
singular ou geral é questão de conotação, não de denotação, ainda que um termo singular não possa
denotar mais de uma coisa. 'O objeto vermelho da minha mesa' é um termo singular, e 'Objeto vermelho
sobre minha mesa' é um termo G., independentemente dos objetos vermelhos que se encontram em cima
da minha mesa" {Analysis of Knowledge and Valuation, p. 45). Nesse sentido, o G. nada tem a ver com o
universal: este é obtido com o uso do operador todos e refere-se à denotação, não à conotação de um
termo. Por conseguinte, proposição G. é a que se chama função pro-posicional (v. FUNÇÃO), na qual o
sujeito fica indeterminado. Dewey também insistiu na diferença entre G. e universal, negando que a
proposição "se humano, então mortal" seja equivalente à proposição "todo homem é mortal". "São coisas
radicalmente diferentes", disse Dewey, "formular proposições sobre traços ou características que
descrevem uma espécie fazendo abstração de cada exemplar da espécie e formular proposições abstratas
sobre abstrações" {Logic, XIX, § 2; trad. it., p. 497-98).
GESTALTPSYCHOLOGIE. V. PSICOLOGIA.
GIMNOSOFISTAS (gr. Yuuvoaoípiatí; lat. Gymnosophistae; in. gymnosophists, fr. Gymno-sophistes-,
ai. Gymnosophisten; it. Gimnosofisti). Os "sábios nus" da índia; assim foram chamados os faquires pelos
escritores gregos (ARISTÓTELES, Fragm., 35; ESTRABÃO, 16, 2, 39; PLU-TARCO, Alex., 64, etc). Pirro, o
fundador do cepticismo, visitou os G. na índia e imitou seus costumes (DiÓG. L., IX, 61).
GIOBERTISMO. V. ONTOLOGISMO.
GLÓRIA (lat. Gloria; in. Glory; fr. Gloire; ai. Glorie; it. Gloria). Na terminologia bíblica e escolástica,
G. é, por um lado, a homenagem que o homem faz a Deus e, por outro, a recompensa que Deus dá ao
homem, acolhendo-o em Sua fruição. Com esta última significação S. Tomás diz que a G. é "a perfeita
fruição de Deus" {S. Th., III, q. 53, a. 3). Foi com esse sentido que Spinoza identificou o amor intelectual
de Deus com a G. da qual fala a Bíblia: "Esse amor ou beatitude é chamado de G. nos livros sagrados, não
sem razão. Pois tal amor, refira-se ele a Deus, ou à mente, pode ser chamado
de satisfação da alma, que na realidade não se distingue da G." {Et., V, 36, Schol.). Descartes atribuíra
significado puramente mundano a esse termo, considerando a G. como "uma espécie de G. fundada no
amor que se sente por si mesmo e deriva da impressão da esperança de louvor por parte dos outros"
{Pass. de Vâme, art. 204).
GNÔMICO (in. Gnomical; fr. Gnomique; ai. Gnomiscb, it. Gnomicó). Quem se expressa por meio de
breves sentenças morais, como fizeram os Sete Sábios (v. SÁBIOS), que, por isso, foram chamados de
Gnômicos.
GNOSIOLOGIA. V. TEORIA DO CONHECIMENTO.
GNOSTiaSMO (gr. YVãxnç; in. Gnosticism; fr. Gnosticisme; ai. Gnosticismus, it. Gnosticis-mò). Foram
assim designadas algumas correntes filosóficas que se difundiram nos primeiros séculos depois de Cristo
no Oriente e no Ocidente. A literatura que produziram era rica e variada, mas perdeu-se, à exceção de
poucos textos conservados em traduções coptas, chegando até nós apenas através dos trechos
mencionados e, ao mesmo tempo, refutados pelos Padres Apologistas. O G. é uma primeira tentativa de
filosofia cristã, feita sem rigor sistemático, com a mistura de elementos cristãos míticos, neoplatônicos e
orientais. Em geral, para os gnósticos o conhecimento era condição para a salvação, donde esse nome,
que foi adotado pela primeira vez pelos Ofitas ou Sociedade da Serpente, que mais tarde se dividiram em
numerosas seitas. Estas utilizavam textos religiosos atribuídos a personalidades bíblicas, tal como o
Evangelho de Judas, mencionado por Irineu {Adv. haer., I, 31, !)• Outros textos dessa espécie foram
encontrados em traduções coptas; entre eles, o mais importante é Pistis Sophia (publicado em 1851), que
expõe em forma de diálogo entre o Salvador ressuscitado e seus discípulos, especialmente Maria
Madalena, a queda e a redenção de Pistis Sophia, ser pertencente ao mundo dos Eons (v.), bem como o
caminho da purificação do homem por meio da penitência. Os principais gnósticos dos quais temos
notícia são: Basílides, Carpó-crates, Valentim e Bardesane, cujas doutrinas são conhecidas pelas
refutações feitas por Clemente de Alexandria, Irineu e Hipólito. Uma das teorias mais típicas do G. é o
dualismo dos princípios supremos (admitido, p. ex., por Basilides), ligado a concepções orientais. A
tentativa de união entre os dois princípios,
GNOSTOLOGIA
486
GOVERNO, FORMAS DE
bem e mal, tem como resultado o mundo, no qual as trevas e a luz se unem, mas com predomínio das
trevas.
GNOSTOLOGIA (lat. Gnostologià). Termo cunhado por Calov em Scripta Philosophica (1650), para
designar uma das duas disciplinas auxiliares da metafísica (a outra é a Noologia, [v.]), mais precisamente
a que tem por objeto "o cognoscível enquanto tal". Foram chamados de gnostólogos alguns aristotélicos
protestantes que ensinaram nas universidades alemãs na primeira metade do séc. XVII. Sobre eles, cf.
PETERSEN, Geschichte der aristotelischen Philo-sophie im protestantischen Deutschland, Leip-zig, 1921;
CAMPO, Cristiano Wolff, Milão, 1939, I, pp. 144 ss.
GOSTO (in. Taste; fr. Goüt; ai. Geschmack; it. Gustó). Critério ou cânon para julgar os objetos do
sentimento. Visto que só a partir do séc. XVIII o sentimento (v.) começou a ser reconhecido como
faculdade autônoma, distinta da faculdade teorética e da prática, a noção de G. foi-se determinando, no
mesmo período, em correlação com a noção do critério ao qual essa faculdade, em suas valorações, está
adequada ou deve adequar-se. A faculdade do sentimento logo recebeu como atribuição a atividade
estética: assim, entende-se por G. sobretudo o critério do juízo estético, e foi com esse sentido que essa
palavra se incorporou no uso corrente. Em seu sentido mais geral, o G. é definido por Vauvenargues como
"disposição para julgar corretamente os objetos do sentimento" (Intr. ã Ia connaissance de 1'esprit
humain, 1746, 12); e por Kant, que declara, em Antropologia (§ 69): "O G. (enquanto uma espécie de
sentido formal) leva a compartilhar com outros os sentimentos de prazer e dor e implica a capacidade —
agradável, graças a esse mesmo compartilhar — de sentir satisfação (complacen-tid) em comum com
outrem". Em alguns de seus Ensaios morais e políticos (1741), Hume entendeu o G. em sentido mais
estritamente estético, conquanto também ligue o G. estreitamente com o sentimento em geral. A beleza é
de fato um sentimento, e, como todo sentimento é justo, não se referindo a nada além de si mesmo, cada
espírito percebe uma beleza diferente. Isso, porém, não impede que haja um critério do G., pois existe
uma espécie de senso comum que restringe o valor do velho ditado "Gosto não se discute". Pode-se
determinar um critério do G. recorrendo às experiências e às observações dos sentimentos comuns da
natureza humana, sem pretender que em todas as ocasiões os sentimentos dos homens se conformem a esse
critério. "Em cada criatura", diz Hume, "há um estado são e um estado de doença; só o primeiro nos dá o
verdadeiro critério de G. e de sentimento. Se no estado de saúde do organismo houver uniformidade
completa ou considerável de sentimentos entre os homens, poderemos daí inferir uma idéia da beleza
perfeita, do mesmo modo como a aparência dos objetos, à luz do dia e aos olhos de um homem em bom
estado de saúde, é considerada a cor verdadeira e real dos objetos, ainda que tanto durante o dia quanto
durante a noite a cor seja apenas um fantasma dos sentidos" (Essays, I, p. 272). Por sua vez, E. Burke
dizia: "Pela palavra G. entendo apenas a faculdade, ou faculdades, da mente que são impressionadas pelas
obras da imaginação e pelas belas-artes, formulando um juízo sobre elas" 04 Phi-losophical Inquiry into
the Origin ofOurldeas qfthe Sublime and Beautiful, 1756, Intr.; trad. it., p. 47). Para Kant, o G. é uma
espécie de senso comum (v.), aliás o senso comum em seu significado mais exato, porque pode ser
definido como "a faculdade de julgar aquilo que torna universalmente comunicável o sentimento
suscitado por dada representação, sem a mediação do conceito" (Crít. do Juízo, § 40). Portanto, a
universalidade do juízo de G. não é a mesma do juízo intelectual, pois não se baseia no objeto, mas na
possibilidade de comunicação com os outros. Em outros termos, o juízo de G. só é universal porque se
fundamenta na co-municabilidade do sentimento (Crít. do Juízo, § 39). Kant também fez a distinção entre
o G. como faculdade de julgar e o gênio como faculdade de produzir (Ibid., § 48). Croce identifica essas
duas faculdades, considerando idênticos o processo de criação e o de reprodução de uma obra de arte
(Estética, cap. 16). Mas com isso o conceito de G. não muda; na realidade, a estética moderna e
contemporânea conservou ou reproduziu, com modificações irrelevantes (do ponto de vista conceptual), a
noção de G. elaborada pelos tratadistas do séc. XVIII, cujas características fundamentais expusemos.
GOVERNO, FORMAS DE (gr. o%T)iiaza nokiTEÍaç; lat. Reipublicae formae, in. Forms qf
govemment; fr. Formes de gouvemement; ai. Staatsverfassung; it. Forme di governo). Uma das mais
antigas doutrinas políticas, talvez a mais antiga, é a distinção das três formas de G.
GOVERNO, FORMAS DE
487
GOVERNO, FORMAS DE
(de um só, de poucos, de todos), enunciadas porHeródoto por meio da discussão de sete personagens
persas, mas na realidade expondo noções populares de sabedoria grega. Heró-doto pergunta: "Como
poderia ser um G. bem instituído o domínio de um só homem, se ele pode fazer o que quer sem dar
satisfação a ninguém? O monarca tende a tornar-se tirano. Por outro lado, o G. do povo é com certeza o
melhor, porque nele todos são iguais, mas também tende a degenerar e a tornar-se desenfreada
demagogia. Por isso, a melhor forma de G. é uma boa monarquia" (III, 80-82). Em República, Platão
punha acima dessa classificação o Estado idealmente perfeito, a aristocracia ou G. dos filósofos. A
primeira degeneração da aristocracia é a timocracia, ou seja, o G. fundado na honra que nasce quando os
governantes se apropriam de terras e de casas. A segunda é a oligarquia, governo baseado no patrimônio,
no qual os ricos mandam. A terceira forma é a democracia, na qual a todo cidadão é lícito fazer o que
quer. Finalmente, a forma extrema de degeneração política é a tirania, que muitas vezes nasce da
excessiva liberdade da democracia {Rep., VHI-IX). De modo mais sistemático, em O Político, Platão
distinguiu três formas de regime político: G. de um só, G. de poucos e G. de muitos; essas formas,
segundo sejam regidas por leis ou desprovidas de leis, motivam respectivamente o G. régio ou tirania, a
aristocracia ou oligarquia e as duas formas da democracia, a regida por leis e a demagógica (Pol., 291 de). Essa classificação foi repetida por Aristóteles iPol., III, 7, 1279 a 27), que, no entanto, alude a outra
divisão, na qual as formas fundamentais seriam duas: "democracia, quando os livres governam, e
oligarquia, quando os ricos governam e, em geral, os livres são muitos e os ricos poucos" (Ibid., IV, 4,
1290b, I): classificação que seria simétrica a outras classificações diádicas, cuja autoria Aristóteles
declara. Contudo a classificação triádica veio a ser tradicional e a ela os escritores políticos da Idade
Média, do Renascimento e da Idade Moderna se referem constantemente. A Bodin deve-se a observação
de que as diversas formas de ordenamento estatal são diversas formas de G., não formas diferentes de
Estado (donde a permanência da expressão "formas de G." em francês, italiano e inglês). A soberania, que
é o caráter fundamental do Estado, é una e indivisível: o Estado consiste na posse da soberania. O G., ao
contrário, consiste no aparato por meio do qual esse poder é exercido. Na monarquia, a soberania reside no rei, mas este pode
delegar amplamente seu poder e governar de modo democrático, ao mesmo tempo que, numa democracia,
o governo pode ser despótico (Six livres de Ia Republique, 1576). Hobbes parte do mesmo princípio: a
diferença das formas de G. depende da diversidade das pessoas às quais é confiado o poder soberano.
Têm-se democracia, aristocracia ou monarquia, segundo o poder soberano seja confiado ao povo, aos
nobres ou ao rei. Quanto às chamadas degenerações das formas de G., elas são apenas "três denominações
diferentes dadas por quem odiava o governo ou os governantes" {De eive, 7, §§ 1-2). Montesquieu
modificou a divisão tradicional, afirmando que o G. pode ser republicano (um conjunto de democracia e
aristocracia), monárquico e despótico. Cada uma dessas três formas é regida por um "princípio" que,
portanto, condiciona sua conservação e seu funcionamento. O G. popular baseia-se na virtude cívica e no
espírito público do povo; a monarquia no sentimento de honra da classe militar; o despotismo, no temor
(Esprit des lois, 1748, III). Com base nessa mesma doutrina de Montesquieu, a antiga tripartição das
formas de G. começa a perder importância. Montesquieu viu claramente que a liberdade da qual os
cidadãos gozam num Estado não depende da forma de G. desse Estado, mas da limitação dos poderes
garantida pela ordenação do Estado. Disse: "A democracia e a aristocracia não são Estados livres por
natureza. A liberdade política encontra-se nos G. moderados. Mas nem sempre existe nos Estados
moderados: permanece só quando não há abuso de poder... Para que não seja possível abusar do poder, é
preciso que, pela disposição das coisas, o poder refreie o poder. Uma constituição pode ser de tal forma
que ninguém seja obrigado a cumprir as ações às quais a lei não obrigue nem a deixar de cumprir as que a
lei permite" (Ibid., XI, 6). Essas palavras são verdadeiras ainda hoje, assim como eram verdadeiras no
tempo de Montesquieu. A experiência histórica do mundo moderno e contemporâneo mostrou que a
liberdade e o bem-estar dos cidadãos não dependem da forma de G., mas da participação que os G.
oferecem aos cidadãos na formação da vontade estatal e da presteza com que eles são capazes de
modificar e de retificar suas diretrizes políticas e suas técnicas administrativas. Por esses motivos, na
moderna teoria po-
GRAÇA1
488
GRAÇA2
lítica geral, a distinção ou classificação das formas de G. não tem grande relevância; pode-se dizer que é a
mesma de Heródoto, mas que deixou de expressar um problema efetivo da teoria e da prática da política.
GRAÇA1
(in. Grace, fr. Grâce; ai. Anmut; it. Grazid). Uma espécie particular de beleza distinguida pela
estética do séc. XVIII: a beleza em movimento. Edmund Burke dizia: "A G. é uma idéia não muito
diferente da beleza, constituída pelos mesmos elementos. A G. é uma idéia relativa à postura e ao
movimento: para serem graciosos, não devem dar a impressão de dificuldade; bastam a leve flexão do
corpo e a harmonia das partes, de tal maneira que não se estorvem reciprocamente e que não se mostrem
separadas por ângulos bruscos e distintos. Nesta facilidade, harmonia e delicadeza de postura e de
movimento consiste todo o encanto da G., o seu não-sei-quê'" 04 Philosophical Inquiry into the Origin of
our Ideas of the Sublime and Beautiful, 1756, II, 22). Essas idéias eram repetidas com freqüência pelos
tratadistas do séc. XVIII. Num Ensaio sobre a beleza (1765), ao caráter da G. descrito por Burke,
Giuseppe Spalletti acrescentava outro: a expressividade. "Já grandes autores observaram que essas
qualidades (agilidade e robustez) consistem nas flexões, nas curvas e na mistura delas, que, se forem
acompanhadas por transparência que indique a conformidade com os movimentos internos causados
pelos afetos da alma, parecerão graciosas: prerrogativa cuja importância o feliz possuidor do gosto natural
entende com tanta facilidade quanto lhe parece difícil explicar" (Op. cit., 37). Mas o maior teórico da G.
foi certamente Schiller, que viu nesse conceito a mais consumada harmonia entre a liberdade moral e a
necessidade natural. Schiller começa distinguindo a beleza imóvel ou arquitetônica, que é produzida
pelas forças plásticas da natureza por meio da lei da necessidade, da beleza em movimento, que é
produzida por um espírito segundo condições de liberdade. A beleza arquitetônica honra o criador da
natureza; a beleza em movimento honra quem a possui. A beleza em movimento assim é chamada porque
uma modificação da alma só pode manifestar-se como movimento no mundo sensível (Über Anmut und
Würde, 1793; Werke, ed. Karpeles, XI, p. 183). Esta segunda espécie de beleza é justamente a G., definida
por Schiller como "a beleza de uma figura movida pela liberdade" (Ibid., XI, p. 184; cf. L. PAREYSON, Vestetica deli'idealismo tedesco, Turim, 1950, 1, pp. 227
ss.). Essas observações tornaram-se clássicas e até hoje são repetidas, mesmo fora do contexto filosófico
em que Schiller as inseria, o qual caiu completamente em desuso.
GRAÇA2
(gr. xápiç; lat. Gratia; in. Grace, fr. Grâce, ai. Gnade; it. Grazid). Em geral, dom gratuito, sem
retribuição; mais especificamente, em sentido teológico, o dom da salvação ou de alguma condição
essencial da salvação que Deus oferece ao homem, independentemente dos méritos (se existirem) do
próprio homem. Nesses termos, a G. foi descrita na Epístola aos romanos, de S. Paulo. O problema da
magnitude e dos limites da G. sempre foi fundamental no cristianismo. Marcou o ponto culminante da
atividade filosófica e teológica de S. Agostinho e, depois de inúmeras discussões medievais, representou
um dos maiores conflitos entre a Reforma e o Catolicismo pós-tridentino. Reduzido a seus termos
essenciais, o problema pode ser expresso da seguinte maneira. É doutrina fundamental do cristianismo
que a salvação não é possibilidade humana. A revelação e a encarnação do Cristo são os instrumentos
indispensáveis que, suprindo a deficiência da natureza humana, reduzida ou corrompida pelo pecado
original, lhe retribuem a possibilidade de salvação. Mas a revelação e a participação dos méritos de Cristo
podem ser concedidas e, em princípio, o são a todos os homens enquanto tais; por isso, a admitir-se
(como fazem muitos padres da Igreja oriental) que no fim dos tempos todos os homem serão salvos
(doutrina da apocatástase [v.]), a noção de G. não dá origem a graves problemas. Mas surge o problema
quando se admite que nem todos os homens se salvarão e que no fim dos tempos ainda haverá justos e
perversos, portanto, eleitos e condenados. Nesse caso, surge a pergunta: quem determina a salvação de
cada homem, o próprio homem ou Deus? Diante desse problema só há duas respostas possíveis e, na
realidade, são duas as doutrinas típicas da G.: I
a
a G. é determinante, ou seja, é Deus mesmo que,
conferindo-a a uns e negando-a a outros, determina os hábitos e as disposições que tornarão o homem
justo e o levarão à salvação; 2a
a G. não é determinante, no sentido de que sua concessão por parte de
Deus, mesmo sendo condição necessária da salvação, não determina a própria salvação,
GRAÇA2
489
GRAÇA2
que exige a contribuição do homem. Essas duas soluções, ou melhor, esses dois tipos de soluções,
permaneceram substancialmente inalterados ao longo da história dessa controvérsia, apesar da variedade
das expressões, atenuações ou nuanças que receberam durante esse tempo.
I
a A primeira solução é apresentada por S. Agostinho na polêmica contra Pelágio, pela Reforma
protestante e pelo jansenismo. Consiste em julgar que a humanidade toda pecou com Adão e em Adão e
que, portanto, o gênero humano é uma só "massa condenada", a cuja punição nenhum membro pode
escapar, a não ser pela misericórdia e pela G. não obrigatória de Deus (S. AGOSTINHO, De civ. Dei, XIII,
14). O fundamento dessa solução é que a verda-deira liberdade do homem coincide com a ação
agraciadora de Deus. Segundo S. Agostinho, a vontade só é livre quando não dominada pelo vício e pelo
pecado e é essa a liberdade que só pode ser devolvida ao homem pela G. de Deus (Ibid., XTV, 11). Desse
ponto de vista, o homem não possui méritos próprios, válidos perante Deus: seus méritos são dons divinos
que devem ser atribuídos a Deus e nào a si mesmo (Degratia et libero arbítrio, 6). O De servo arbítrio
(1525) de Lutero, admitindo esse ponto de vista agostiniano, nega que o homem seja livre. Segundo
Lutero, não se pode admitir ao mesmo tempo a liberdade divina e a humana. A presciência e a
predestinação divina implicam que nada acontece sem a vontade de Deus, e isso exclui que no homem ou
em qualquer outra criatura haja livre-arbítrio. À óbvia objeção que, nesse caso, Deus é o autor do mal,
Lutero responde com a doutrina já defendida pela última Escolástica (p. ex., por OCKHAM, In Sent., I, d.
17, q. 1 M): Deus não se submete a normas: ele não deve querer uma coisa ou outra porque é justa, mas o
que ele quer é justo por si mesmo {De servo arb., 152). Calvino expressava mais cruamente o mesmo
conceito quando afirmava: "Digamos que o Senhor decidiu, em seu parecer eterno e imutável, a quais
homens conceder salvação e quais deixar em ruína. Digamos que os chamados à salvação são recebidos
por sua misericórdia gratuita, sem nenhuma consideração pela dignidade deles. Ao contrário, o ingresso
na vida está fechado para todos os que ele qugr entregar à condenação, e isso acontece em virtude de seu
juízo oculto e incompreensível, embora justo e equânime" {Institution de Ia religion
cbrétienne, 1541, 7). Augustinus (164V) de Jan-sênio contém tese idêntica a esta sobre a G. (v.
JANSENISMO).
2
a O segundo ponto de vista foi formulado durante a Idade Média e está exposto, p. ex., na obra de
Anselmo, Concordância da presciência da predestinação e da G, de Deus com o livre-arbítrio (1109).
Anselmo afirma que a predestinação de Deus leva em conta a liberdade humana, já que Deus não
predestina ninguém violentando sua vontade, mas deixa sempre a salvação em poder do predestinado.
Todavia, em virtude de sua presciência, ele predestina só aqueles cuja boa vontade conhece
antecipadamente (De concórdia prescien-tiae, etc. q. 2, 3). Solução análoga é dada por S. Tomás: "A
preparação do homem para a G. tem Deus como móbil, o livre-arbítrio como movimento. Ela pode ser
considerada sob dois aspectos: no primeiro, depende do livre-arbítrio e não implica a necessidade de obter
a G. porque o dom da G. excede qualquer preparação da virtude humana; no segundo aspecto, tem Deus
como móbil e implica a necessidade de obter a G. que é determinada por Deus, embora não se trate de
uma necessidade proveniente de coação, mas da infalibilidade, porquanto a intenção de Deus não pode
deixar de ter efeito" (S. Th., III, q. 112, a 3). No período da Contra-Reforma, Luís de Molina, no texto
Liberi arbitri cum gratiae donis, divina praes-cientia, providentia, praedestinatione et repro-batione
concórdia, voltou a propor a solução tomista, distinguindo a G. suficiente, dada a todos os homens como
condição necessária da salvação, da G. eficaz, que é infalível e segue a boa vontade humana. Em
realidade esta e análogas distinções só servem para justificar o caráter não rigorosamente determinante da
G., no sentido de que, em todo caso, ela deixa a salvo a liberdade humana e, com isso, também deixa aos
réprobos (e somente a eles) a responsabilidade de sua condenação. Toda a disputa gira em torno do
significado de liberdade iy.), e, já que ambas as partes consideram a liberdade como autocausalidade —
mas nenhuma delas considera tal causalidade — primária ou absoluta —, a substância da disputa reduz-se
a bem pouco do ponto de vista conceptual. Para uma ou outra doutrina, a causa primeira de tudo, e,
portanto, também da liberdade ou da salvação humana, é Deus. Contudo, essa disputa não é realmente
conceptual, mas religiosa ou eclesiástica. A defesa de certo grau de liberdade
GRAMÁTICA
490
GRAMÁTICA
humana em relação à G. tende a acentuar a importância da ação mediadora da Igreja, na qual o homem
sempre pode achar, desse ponto de vista, a concessão compreensiva da G., ou seja, a ajuda sobrenatural
para a salvação. Por outro lado, a acentuação do caráter determinante ou necessitante da G. tende a
colocar o homem diretamente diante de Deus e de sua vontade inescrutável, já que o pecado, desse ponto
de vista, não pode ser remido por ação mediadora, mas, ao contrário, é sinal evidente de não-concessão da
G., portanto, da futura condenação. Entende-se por que este segundo ponto de vista, assim como ocorreu
com o janse-nismo, surge no próprio seio do catolicismo quando, em nome de certo rigorismo moral, se
deseja insistir na gravidade do pecado e não se está disposto a considerá-lo um obstáculo fácil à salvação.
GRAMÁTICA (gr. ypa\i\iaxiyd] xéxvt|; lat. Grammatica; in. Grammar-, fr. Grammaire; ai. Grammatik;
it. Grammatica). Segundo uma tradição registrada por Diógenes Laércio (III, 25), Platão foi o primeiro a
"teorizar a possibilidade da G.". De fato, é freqüente nos textos de Platão a referência à G., cuja natureza
é definida com mais precisão no Crãtilo. O fundamento dessa definição é a analogia entre a G. e a arte
figurativa. Assim como um artista procura reproduzir os traços dos objetos com o desenho e as cores, o
gramático procura fazer a mesma coisa com as sílabas e as letras. Seu objetivo é "imitar a substância das
coisas". Se ele chegar a reproduzir tudo o que pertence a essa substância, sua imagem será bela, mas, se
deixar alguma coisa fora ou se acrescentar algo não pertinente, sua imagem não será bela. Nesse aspecto,
o gramático é um "artífice de nomes, portanto um legislador que pode ser bom ou mau" {Crat., 431 b ss.).
Esse é o primeiro conceito de G. formulado, e é normativo porque, segundo ele, o gramático não
descreve, mas prescreve: é um "legislador". Parece ser análogo o conceito de Aristóteles, que define a G.
como "ciência do ler e do escrever" {Top., VI, 5, 142 b 31). Esse conceito praticamente não foi alterado
até a Idade Moderna. No fim da Escolástica começou-se a falar de uma "G. especulativa" (Tomaseu de
Erfurt compôs uma que foi atribuída a Duns Scot), e Campanella incluiu uma G. semelhante em sua
Philosophia rationalis (1638), que inclui Poética, Retórica e Dialética. No século seguinte, Wolff pôs
entre as outras ciências a G. especulativa ou filosofia
da G., "na qual se explicam as regras gerais pertencentes à G. em geral, sem levar em conta os
particularismos das línguas especiais" (Log., Disc. prael., 1735, § 72).
Foi só com Humboldt que surgiu um novo conceito de G., no famoso texto Sobre a diversidade da
constituição da linguagem humana (1836), a partir do qual a G. começou a ser concebida como uma
disciplina não normativa ou legislativa, mas descritiva, sendo seu objetivo investigar, na língua, as
uniformidades que constituem regras ou leis. Por esse conceito moldaram-se todos os estudos modernos
da G., que passaram a utilizar cada vez mais as considerações estatísticas (cf, p. ex., G. HER-DAN,
Language as Choice and Chance, Grõ-ningen, 1956). No campo filosófico, Heidegger encarou a
exigência de libertar a G. da lógica que toma as coisas como modelo, ou seja, o "instrumental
intramundano": "A tarefa de libertar a gramática da lógica exige uma compreensão preliminar e positiva
da estrutura a priori do discurso como existencial. Essa tarefa não pode ser cumprida subsidiariamente
por meio de correções e complementações do que foi legado pela tradição. Nesse propósito, devem-se
questionar as formas fundamentais em que se funda a possibilidade semântica de articulação do que é
suscetível de compreensão e não apenas dos entes intramundanos conhecidos teoricamente e expressos
em frases" iSein undZeit, § 34). Desse ponto de vista, não basta realizar uma "G. geral" baseada na
generalização das regras de todas as línguas, visto que mesmo essa G. geral pode ser restrita demais no
que diz respeito às formas lógicas em que se molda. Heidegger acrescenta: "A semântica tem raízes na
ontologia do ser-aí: sua sorte está ligada ao destino deste" (Jbid., % 34). Em outros termos, Heidegger
desejaria uma G. que levasse em conta não só e não tanto a estrutura das coisas, em que se molda a
estrutura da oração, mas também e sobretudo a estrutura da existência humana, que é específica e
diferente da estrutura das coisas. Esse também parece ser o pressuposto da G. gerativa e
transformacional de que fala Chomsky; com efeito, este se refere freqüentemente a Descartes e, em geral,
aos filósofos do séc. XVII, que ressaltaram o caráter especificamente humano e criativo da linguagem.
Essa G. gerativa deveria solucionar o problema de "construir uma teoria da aquisição lingüística e de
explicar as habilidades inatas específicas que possibilitam essa aquisição"
GRANDEZA
491
GRAU
(Aspects ofthe Theory ofSyntax, 1956, I, § 4). Uma G. desse tipo, por um lado, seria "um modelo
explicativo, ou seja, uma teoria da intuição lingüística do falante nativo" e, por outro, mostraria que "as
estruturas profundas são muito semelhantes de uma língua para outra e as regras que as manipulam e
interpretam também parecem derivar de uma classe muito restrita de operações formais concebíveis"
(Ensaios lingüísticos, trad. it., III, 1969, pp. 19 e 272). Essa G. seria, assim, a matriz de qualquer G.
possível e também apresentaria os critérios para a escolha de determinada G. na constituição de uma
linguagem.
GRANDEZA (gr. |ÍÍTE9OÇ; lat. Magnitudo; in. Size, Magnitude; fr. Grandeur, ai. Grôsse, it. Grandezzá).
Segundo Aristóteles, quantidade mensurável, distinta da multiplicidade, que é a quantidade numerável, e a
ela correspondente. Aristóteles acrescenta que, enquanto a multiplicidade é potencialmente divisível em
partes não contínuas, a G. é divisível em partes contínuas. Portanto, são G. o comprimento, a largura, a
profundidade (Met., V, 13, 1020 a 7). Kant fez da G. um princípio da Razão Pura, mais precisamente um
"axioma da intuição", mas não mantém imutável esse conceito. "A percepção de um objeto como
fenômeno", diz Kantj "só é possível por meio da unidade sintética da multiplicidade da intuição sensível
dada, graças à qual a unidade da composição da multiplicidade homogênea é pensada no conceito de uma
G.; os fenômenos são todos G., aliás G. extensivas porque devem ser representados como intui-ções no
espaço e no tempo". Segundo Kant, dizer G. extensivas significa que "a representação das partes torna
possível a representação do todo e por isso a precede"; conceito que torna a matemática aplicável aos
objetos da experiência (Crít. R. Pura, Anal. dos princ, cap. II, seç. III, 1). Tudo isso significa que a G. é
uma quantidade empírica que pode ser aplicada à matemática, ou seja, que é mensurável. No pensamento
matemático moderno a relação entre a noção de G. e a de mensurabilidade se mantém, mas às vezes se
inverte. É o que ocorre em Russell, para quem G. é a "propriedade que várias coisas mensuráveis podem
possuir em comum". E acrescenta: "A crença de que haja semelhante propriedade, pertencente a cada um
dos termos de dado grupo, eqüivale logicamente à crença de que haja uma relação simétrica e transitiva
entre os
componentes de cada par de termos desse grupo" (Human Knowledge, IV, 6; trad. it., p. 411) (v.
QUANTIDADE).
GRAU (lat. Gradus; in. Degree, Grade; fr. Degré; ai. Grad; it. Grado). A importância desta noção se
deve à sua relação com a noção de infinitésimo e, por isso, só começa com Leib-niz, que utiliza essa
palavra com sentido metafísico, e não matemático ou físico. Os escolás-ticos, porém, usavam essa palavra
ao falarem de "G. de perfeição" do universo e, portanto, da "prova dos G." da existência de Deus (v.
DEUS, PROVAS DE). Bacon falava de uma "tábua dos G." (v. TÁBUA), Locke aludia aos G. das idéias
simples (Ensaio, IV, 2, 11) e, em sentido mais preciso e moderno, Galilei observava: "Segue-se que,
diminuindo sempre nessa razão a velocidade antecedente, não haverá G. de velocidade tão pequeno, ou
melhor, de lentidão tão grande, no qual não se tenha constituído o mesmo móvel depois da partida da
infinita lentidão, ou seja, do repouso, etc." (Disc. delle nuove scienze, III; Op., VIII, p. 199). Mas foi só
com a lex continui, estabelecida por Leib-niz, que a noção de G. passou a ser conceito fundamental da
matemática, da física e da metafísica. Segundo a lei da continuidade, passa-se por G. do grande ao
pequeno, do repouso ao movimento ou vice-versa, assim como se passa por G. das percepções evidentes
às que são pequenas demais para serem observadas (Nouv. ess., 1703, pref.). A partir de Leibniz o G.
passa a ser noção fundamental da metafísica. Definida por Wolff como "quantidade das quantidades"
(Ont., § 747) e por Baumgarten nos mesmos termos (Met., § 246), Kant erigiu essa noção em "princípio
da razão pura", expressando-a do seguinte modo: "Em todos os fenômenos o real, que é objeto da
sensação, tem uma grandeza intensiva, ou seja, um G.". Para Kant, é nesse princípio, que serve de base às
"antecipações" da percepção, que se funda o conceito de continuidade tanto em física quanto em
matemática (Crít. R. Pura, Anal. dos princípios, seç. 3, 2fi). Na realidade, a noção de contínuo e a de G.
não são diferentes. Como observava Leibniz, a lex continui leva a considerar, por exemplo, o repouso
como um G. do movimento e, em geral, qualquer qualidade como um G. da qualidade oposta. Hegel
expressou essa idéia ao falar da transformação da quantidade em qualidade ou vice-versa: "À primeira
vista, a quantidade aparece como tal contrapondo-se à qualidade; mas
GROTESCO
492
GUERRA
a quantidade também é uma qualidade, uma determinação que, em geral, se refere a si, distinta de sua
outra determinação, a qualidade como tal. Contudo ela não é apenas qualidade, mas a verdade da
qualidade é a quantidade; aquela mostra-se em transposição nesta (...). Para chegar-se à totalidade, é
necessária a transição dupla, não só a transição de uma determinação para a sua outra determinação, mas
também a transição desta outra, o seu retorno, para a primeira" (Wissenschaft der Logik, I, I, seç. II, cap.
III, C; trad. it., I, p. 391). Engels enumera essa tese de Hegel como a primeira lei fundamental da dialética
(v. DIALÉTICO, MATERIA-LISMO), interpretando-a em sentido materialista: "Lei da conversão da
quantidade em qualidade e vice-versa. No que se refere aos nossos objetivos, podemos expressá-la no fato
de que, na natureza, só podem ocorrer variações qualitativas acrescentando ou subtraindo matéria ou
movimento (a chamada energia), e isso de modo rigorosamente válido para qualquer caso" (Dialektik der
Natur, Dialética-, trad. it., p. 57).
Na filosofia contemporânea, a noção de G. foi absorvida pela noção de continuidade.
GROTESCO (in. Grotesque; fr. Grotesque; ai. Groteske; it. Grottescó). Uma espécie do cômico,
distinguida pelos tratadistas modernos. É caracterizado por Santayana como "um efeito interessante,
produzido pela transformação de um tipo ideal, que exagere um dos seus elementos ou o combine com os
de outros tipos". Nesse caso considera-se "a sua divergência em relação ao tipo natural, e não em relação
sua possibilidade interna" {Sense of Beauty, 1896, § 64).
GRUPO (in. Group-, fr. Groupe; ai. Gruppe; it. Gruppó). 1. No significado matemático, a palavra foi
usada pela primeira vez por Evariste Galois, em 1830. O conceito elaborado posteriormente pela
matemática serviu poderosamente para a unificação das matemáticas e para a sua elucidação conceituai.
Um G. é uma classe ou um conjunto dotado das seguintes características: d) seus elementos podem ser
entidades aritméticas, geométricas, físicas ou indefinidas; b) o número de tais entidades pode ser finito ou
infinito; c) as regras de combinação de tais entidades podem ser as aritméticas ou geométricas ou podem
não ser definidas; d) a regra de combinação deve ser associativa, mas pode ser tanto comutativa ou nãocomutativa; é) todo elemento do conjunto deve ter o seu inverso. A classe dos números inteiros positivos
e negativos, inclusive o zero, constitui um G. nesse sentido. Os dois conceitos fundamentais da teoria dos
G. são os de transformação (v.), que é entendido no sentido mais lato, e o de invariância (v. INVARIANTE),
em virtude do qual se chamam invariantes as propriedades de um objeto que permanecem as mesmas, por
meio da transformação.
2. No significado sociológico, um conjunto de pessoas caracterizadas por uma atitude comum ou
recorrente. É esse o termo mais geral para indicar um objeto qualquer da pesquisa sociológica: de fato, o
grupo pode ser definido dos modos mais diversos, e a diversidade desses modos garante as dimensões de
liberdade da própria pesquisa; cf. R. K. MERTON, Social Theory and Social Structure, 3
a
ed., 1957, cap.
VHI-LX; ABBAGNANO, Problemi di sociologia, 1959, III, 8.
GUERRA (gr. nóte\ioq; lat. Bellum; in. War; fr. Guerre; ai. Krieg; it. Guerra). Alguns filósofos da
Antigüidade atribuíram um valor cósmico à G., uma função dominante na economia do universo. Foi o
que fez Heráclito, que chamou a G. de "mãe e rainha de todas as coisas" (Fr. 53, Diels), afirmando que "a
G. e a justiça são conflitos e, por meio do conflito, todas as coisas são geradas e chegam à morte" (Fr. 80,
Diels). Foi o que fez também Empédocles, que, ao lado da Amizade (ou Amor), como força que une os
elementos constitutivos do mundo, pôs o Ódio ou a Discórdia que tende a desuni-los (Fr. 17, Diels).
Outros filósofos, como Hobbes, afirmaram que o estado de G. é o estado "natural" da humanidade, no
sentido de que é o estado a que ela seria reduzida sem as normas do direito, ou do qual procura sair
mediante essas regras (Leviath., I, 13). Mas, não obstante essas idéias ou semelhantes, os filósofos
esforçaram-se constantemente por evidenciar e encorajar os esforços dos homens para evitar as G. ou para
diminuir as situações que lhes dão origem. Por vezes, ocuparam-se em formular projetos nesse sentido (v.
PAZ). A exceção a essa regra é representada por Hegel, que considerou a G. como uma espécie de "juízo
de Deus", do qual a providência histórica se vale para dar a vitória à melhor encarnação do Espírito do
mundo. Hegel afirma, por um lado, que, "assim como o movimento dos ventos preserva o mar da
putrefação à qual o reduziria a quietude duradoura, a isso reduziria os povos a paz duradoura ou perpétua"
(Fil. do dir., § 324), e por outro lado julga que, no plano providencial da história do
GUERRA
493
GUIA, PRINCÍPIO
mundo, um povo sucede ao outro no encarnar, realizar ou manifestar o Espírito do mundo, dominando,
em nome e por meio dessa superioridade, todos os outros povos. A G. pode ser um episódio dessa
alternância, desse juízo de Deus proferido pelo "Espírito do mundo", "Em geral", diz Hegel, "a isso está
ligada uma força externa que destitui com violência o povo do domínio e faz que ele deixe de ter
primazia. Essa força exterior, porém, só pertence ao fenômeno; nenhuma força externa ou interna pode
impor sua eficácia destruidora em face do Espírito do povo, se este já não estiver exânime, extinto" {Phi-losophie der
Geschichte, ed. Lasson, p. 47). Essas afirmações de Hegel eqüivalem a justificar qualquer G. vitoriosa
que, como tal, estaria nos planos providenciais da Razão. Constituem, portanto, uma monstruosidade
filosófica que, entretanto, não deixou de ter defensores e seguidores, dentro e fora do círculo da filosofia
hegeliana.
GUIA, PRINCÍPIO. V PRINCÍPIO.
H
HÁBITO1
(gr. ê9oç; lat. Consuetudo; in. Habit, Custom; fr. Habitude, ai. Gewohnheit; it. Abitudiné). O
mesmo que COSTUME1
. Em geral, a repetição constante de um acontecimento ou de um comportamento,
devido a um mecanismo de qualquer gênero (físico, fisiológico, biológico, social, etc.) Na maioria das
vezes, esse mecanismo se forma por meio da repetição dos atos ou dos comportamentos e, portanto, no
caso de acontecimentos humanos, por meio do exercício. Diz-se que "as coisas habitualmente acontecem
assim" para indicar qualquer uniformidade nos acontecimentos, mesmo não humanos, conquanto não seja
uma uniformidade rigorosa e absoluta, mas apenas aproximada e relativa, contudo capaz de permitir uma
previsão provável. Nesse sentido Aristóteles disse (Ret., I, 10, 1369b 6): "Faz-se por hábito aquilo que se
faz por se ter feito muitas vezes", e acrescenta que "O hábito é, de certa forma, muito semelhante à
natureza, já que 'freqüentemente' e 'sempre' são próximos: a natureza é daquilo que é sempre; o hábito é
daquilo que é freqüentemente" (Ibid., I, 11, 1 370a 7). Com isso Aristóteles viu no hábito uma espécie de
mecanismo análogo aos mecanismos naturais, que garante, de certa forma, a repetição uni-fonne dos
fatos, atos ou comportamentos, eliminando ou reduzindo nestes últimos o esforço e o trabalho, tornandoos, assim, agradáveis.
Com esse significado esse termo foi e é constantemente usado em várias disciplinas (biologia, psicologia,
sociologia) e, em filosofia moderna, tem sido tomado freqüentemente como princípio de explicação de
problemas gnosiológicos ou metafísicos. O primeiro a usar esse conceito com essa finalidade foi Pascal,
que insistiu na influência do hábito na crença: "É o costume (.coutumé) que torna as nossas provas mais
sólidas e dignas de crédito: ele redobra o automatismo, que arrasta o intelecto sem que este se aperceba. É preciso conquistar
uma crença mais fácil, que é a do hábito {habitude) e que, sem violência, sem arte, sem provas, faz-nos
crer nas coisas e inclina todas as nossas forças para essa crença, de tal forma que nossa alma nela incide
naturalmente" (Pensées, n
Q
252). Foi esse o ponto de vista que, um século depois, serviu de base à
filosofia de Hume. Ele definiu o costume como a disposição, produzida pela repetição de um ato, a
renovar o mesmo ato, sem a intervenção do raciocínio (Inq. Cone. Underst., V, 1). E valeu-se desse
conceito de hábito (costume) para explicar a função das idéias abstratas, que ele considerou como idéias
particulares assumidas como signos de outras idéias particulares semelhantes. O costume de considerar
interligadas idéias designadas por um único nome faz que o nome desperte em nós nem uma nem todas
dessas idéias, mas sim o costume de considerá-las juntas, portanto uma ou outra, delas de acordo com as
ocasiões. (Treatise, I, 1, 7). Hume recorre ao hábito para explicar a conexão causai: por termos visto
várias vezes juntos dois fatos ou objetos, como p. ex. a chama e o calor, o peso e a solidez, somos levados
pelo costume a prever um quando o outro se apresenta. O conjunto de nossa vida diária funda-se no
hábito. "Sem o hábito" — diz Hume (Inquiry, cit., V, I) — "ignoraríamos inteiramente quaisquer questões
de fato, além daquelas que se nos apresentam imediatamente à memória ou aos sentidos. Não saberíamos
adaptar os meios aos fins, nem empregar nossos poderes naturais para produzir qualquer efeito. As ações
terminariam, terminando também a parte principal da especulação".
HÁBITO1
495
HÁBITO2
De modo análogo, mas em campo diferente, Bergson (talvez retomando uma idéia de Renouvier,
Nouvelle monadologie, p. 298) utilizou a noção de hábito/costume para explicar as obrigações morais,
que não seriam exigências da razão, mas costumes sociais que garantem a vida e a solidez do corpo social
(Deux sources, p. 21).
A interpretação do hábito como ação origi-nariamente espontânea ou livre que depois se fixa com o
exercício, de tal forma que pode ser repetida sem a intervenção do raciocínio e da consciência, portanto
mecanicamente, possibilitou o «50 metafísico dessa noção: uso que aparece com bastante freqüência na
filosofia moderna e contemporânea, especialmente no idealismo e no espiritualismo. O primeiro a tirar
proveito desse uso para a construção de uma metafísica da experiência interior foi Maine de Biran, em
sua obra Influência do hábito sobre a faculdade de pensar(1803) . Enquanto os hábitos passivos, que
dizem respeito às sensações, reduzem a consciência, os hábitos ativos, que dizem respeito às operações,
facilitam e aperfeiçoam a consciência, constituindo, por isso, um instrumento para que o espírito se liberte
dos mecanismos que tendem a formar-se mediante a repetição dos seus esforços.
Essa noção de hábito/costume, que, mesmo sendo expressa nos termos da denominada "experiência
interior" ou "sentido interior", já tem alcance metafísico (pois Maine de Biran acredita que os dados dessa
experiência revelam a própria realidade) e encontra correspondência na doutrina de Hegel, que lhe
dedicou alguns parágrafos da sua seção sobre o espírito subjetivo, na parte dedicada à alma senciente
{Ene, §§ 409-10). Hegel diz que, graças ao hábito, a alma "toma posse do seu conteúdo e conserva-o de
tal forma que, nessas determinações, ela não está como sensitiva, não está em relação com elas, mas
distingue-se delas, nem está nelas imersa, mas as possui sem sensação e sem consciência, movendo-se
dentro delas. A alma, portanto, está livre delas, porquanto por elas não se interesse e com elas não se
preocupe; e existindo nestas formas como em poder de si, está concomitantemente aberta a qualquer outra
atividade e ocupação (tanto da sensação quanto de consciência espiritual em geral)". Por esta função do
hábito, de oferecer à alma a posse de certo conteúdo, de tal forma que ela possa utilizar esse conteúdo
"sem sensação e sem consciência" (de modo que sensação e consciência tornam-se livres novamente disponíveis para outras operações), Hegel ressaltou a
importância do hábito para a vida espiritual. "O hábito" — disse ele — "é mais essencial para a existência
do que qualquer espiritualidade no indivíduo, para que o sujeito exista como sujeito concreto, como
idealidade da alma; para que o conteúdo religioso, moral, etc, pertença a ele como ele mesmo, a ele como
a essa alma; para que não esteja nele apenas em si (como disposição), nem como sensação e como
representação transitória, nem como interiorida-de abstrata separada do fazer e da realidade. mas no seu
ser". Isto quer dizer que o hábito incorpora certo conteúdo no próprio ser da alma individual, como uma
posse efetiva, que se traduz em ação real.
Na esteira de Maine de Biran, Ravaisson propôs uma metafísica do hábito, que expõe num famoso
trabalho (Sobre o hábito, 1838). No hábito, Ravaisson viu uma idéia substancial, ou seja, uma idéia que
se transformou em substância, em realidade, e que age como tal. O hábito não é um mecanismo puro, mas
uma "lei de graça", porquanto indica o predomínio da causa final sobre a causa eficiente. Permite. pois,
que se entenda a própria natureza como espírito e como atividade espiritual, uma vez que demonstra que
o espírito pode tornar-se natureza e a natureza, espírito. Permite organizar todos os seres numa série cujos
limites extremos são representados pela natureza e pelo espírito. "O limite inferior é a necessidade, o
destino, se quisermos, mas na espontaneidade da natureza; o limite superior é a liberdade do intelecto. O
hábito desce de um para outro, reaproxima esses contrários e, reaproximando-os, revela sua essência
íntima e sua conexão necessária." A partir de Bergson, esses conceitos foram retomados com freqüência
no espiritualismo contemporâneo, para explicar de certa forma o "mecanismo da matéria" e reintegrá-lo
na espontaneidade espiritual.
HÁBITO2
(gr. e^tç; lat. Habitus, in. Habit; fr. Disposition; ai. Fertigkeit; it. Abito). É preciso distinguir o
significado deste termo do significado de costume (v. HÁBITO1
), com o qual é freqüentemente confundido.
Significa uma disposição constante ou relativamente constante para ser ou agir de certo modo. P. ex., o
"hábito de dizer a verdade" é a disposição deliberada, neste caso um compromisso moral de dizer a
verdade. É coisa bem diferente do "costume de dizer a verdade", que implicaria o mecanismo
HARMONIA
496
HECCEIDADE
de repetir freqüentemente essa ação. Assim, "o hábito de levantar-se cedo pela manhã" é uma espécie de
compromisso que pode representar esforço e sofrimento; "o costume de levantar-se cedo pela manhã" não
representa esforço algum, porque é um mecanismo rotineiro.
Essa palavra foi introduzida na linguagem filosófica por Aristóteles (Met., V, 20, 1022b, 10), que a
definiu como "uma disposição para estar bem ou mal disposto em relação a alguma coisa, tanto em
relação a si mesmo quanto a outra coisa; p. ex., a saúde é um hábito, porque é uma dessas disposições".
Nesse sentido, Aristóteles julga que a virtude é um hábito, por não ser "emoção" (como a cupidez, a ira, o
medo, etc), nem "potência", como seria a tendência à ira, do sofrimento, à piedade, etc. A virtude é, antes,
a disposição para enfrentar, bem ou mal, emoções e potências; p. ex., dobrar-se aos impulsos da ira ou
moderá-los (Et. nic, II, 5). O mesmo significado é retomado por S. Tomás, que o expõe da seguinte
maneira (Contra Gent, IV, 77): "O hábito difere da potência porque não nos capacita a fazer alguma coisa,
mas torna-nos hábeis ou inábeis para agir bem ou mal".
Esse conceito manteve-se praticamente inalterado até nossos dias. Dewey assim o expõe: "A espécie de
atividade humana que é influenciada pela atividade precedente e, neste sentido, é adquirida; que contém
em si certa ordem ou certa sistematização dos menores elementos da ação; que é projetante, dinâmica em
qualidade, pronta para a manifestação aberta; e que é atuante em qualquer forma subordinada e oculta,
mesmo quando não é atividade obviamente dominante. Hábito, mesmo em seu emprego ordinário, é o
termo que denota mais esses fatos do que qualquer outra palavra" ÇHuman Nature and Conduct, 1921,
pp. 40-41). Dewey achava que os termos "atitude" e "disposição" também eram apropriados a esse
conceito; na verdade, estes dois últimos termos são usados com mais freqüência que hábito e com
significados muito semelhantes.
HARMONIA (gr. ápu.oví(X; lat. Harmonia; in. Harmony, fr. Harmonie, ai. Harmonie, it. Armonid). A
ordem ou a disposição finalista das partes de um todo, como p. ex. do mundo, ou da alma, foi denominada
"Harmonia", pelos pitagóricos, por ser proporção ou mescla dos elementos corpóreos (cf. PLATÀO, Fed.,
86 c). Empédocles valeu-se desse conceito para definir a natureza do esfero (Fr. 122, Diels). Esse
termo foi usado por Leibniz na expressão Harmonia preestabelecida, para designar determinado sistema
de comunicação entre as substâncias espirituais (manadas) que compõem o mundo. Leibniz acredita que
tais substâncias não podem influenciar-se reciprocamente, já que cada uma está "fechada em si mesma", e
assim exclui a doutrina comumente aceita, da influência recíproca. Exclui também a doutrina por ele
denominada assistência, que é própria do sistema das causas ocasionais de Guelinx e Malebranche,
segundo a qual a comunicação entre as várias mônadas seria estabelecida cada uma por sua vez
diretamente por Deus. A Harmonia preestabelecida é a doutrina segundo a qual as várias mônadas, como
muitos relógios perfeitamente construídos, estão sempre de acordo entre si, mesmo seguindo cada uma
sua própria lei. Assim, a alma e o corpo vivem cada um por conta própria, contudo em harmonia, porque
Deus coordenou as leis de ambos. O corpo segue a lei mecânica, a alma segue sua própria
espontaneidade: a H. entre eles foi predisposta por Deus no ato da criação (Phil. Schriften, ed. Gerhardt,
IV, p. 500).
Esse termo encontra-se com freqüência no espiritualismo, especialmente em Ravaisson. Whitehead
utilizou-o para explicar a beleza, a verdade, o bem, assim como a liberdade, a paz e toda "a grande
aventura cósmica". "A grande H." — diz ele (Adv. ofldeas, p. 362) — "é a H. de individualidades
duradouras conexas na unidade do fundamento. É por essa razão que a noção de liberdade nunca
abandona as civilizações mais avançadas; a liberdade, em cada um de seus muitos sentidos, é a exigência
de vigorosa auto-afirmação".
HECCEIDADE (lat. Haecceitas; in. Hae-cceity, fr. Heccéité, it. Ecceitã). Termo criado por Duns Scot a
partir do adjetivo haec, com que se indica uma coisa particular, para designar a individualidade-, esta
consiste na "realidade última do ente", que determina e "contrai" a natureza comum (composta de matéria
e forma) numa coisa particular, ad esse hanc rem. Esse princípio é invocado por Duns Scot para explicar
de que maneira a coisa individual se origina da "natureza comum", que é indiferente tanto à
universalidade quanto à individualidade. Esse termo não se encontra em Opus Oxoniense, que é o maior
comentário de Duns Scot às Sentenças, de Pietro Lombardo, mas em Reportataparisiensia (II, d. 12, q. 5,
n.
HEDONISMO
497
HERMENÊUTICA
1, 8, 13, 14); foi muito usado pela escola escotíSta (v. INDMDUAÇÃO).
HEDONISMO (in. Hedonism-, fr. Hédonis-me, ai. Hedonismus; it. Edonismó). Termo que indica tanto a
procura indiscriminada do prazer, quanto a doutrina filosófica que considera o prazer como o único bem
possível, portanto como o fundamento de vida moral. Essa doutrina foi sustentada por uma das escolas
so-cráticas, a Cirenaica, fundada por Aristipo; foi retomada por Epicuro, segundo o qual "o prazer é o
princípio e o fim da vida feliz" (DIÓG. L, X, 129). O hedonismo distingue-se do utilita-rismo do séc.
XVIII porque, para este último, o bem não está no prazer individual, mas no prazer do "maior número
possível de pessoas", ou seja, na utilidade social.
HEGEIIANISMO (in. Hegelianism; fr. Hé-gélianisme, ai. Hegelianismus; it. Hegelismó). Doutrina de
Hegel (1770-1831), na forma como agiu na cultura contemporânea, com maior difusão e profundidade.
Pode ser assim resumida:
l
fi Identidade entre racional e real, em virtude da qual a realidade é tudo aquilo que deve ser, ou seja,
justifica-se absolutamente em todas as suas manifestações, que, portanto, são "necessárias" no sentido de
não poderem ser diferentes daquilo que são. Desse ponto de vista, contrapor à realidade o "dever ser",
uma norma ou um ideal à qual ela não se adequaria, significa simplesmente erigir em juiz da realidade o
intelecto finito (o interesse ou o arbítrio do indivíduo humano), e não a razão.
2
S
Interpretação da necessidade racional em termos de processo dialético, entendendo-se por dialética (v.)
a síntese dos opostos.
3
Q
Reconhecimento, como termo último desse processo, de uma autoconsciência absoluta, que também
será chamada pelos partidários de Hegel de Espírito, Conceito Puro, Consciência Absoluta, Superalma,
etc.;
4
e
Interpretação da história como realização de um plano providencial no qual os povos vencedores
encarnam, altemadamente, o Espírito do mundo, ou seja, a Autoconsciência ou Deus.
5
a
Interpretação do Estado como encar-nação ou manifestação do Espírito do mundo ou, em outros
termos, como realização de Deus no mundo.
Apesar de esses pontos básicos constituírem o espírito da filosofia hegeliana, nem todos entraram na
constituição do patrimônio
das correntes filosóficas que se inspiraram no hegelianismo. A direita hegeliana insistiu sobretudo nas
teses 2a
, 3B
e 5a
; a esquerda, nas teses 1B
e 2.a
. O neo-hegelianismo italiano, nas teses ls
, 2a
e 4e
(v.
ABSOLUTO; DIREITA HEGELIANA;
IDEALISMO; ESQUERDA HEGELIANA)
HEGEMÔNICO (gr. IÍYELLOVIKÓV; lat. Prín-cipatus-, it. Egemonicó). Segundo os estóicos, a razão que
anima e governa o mundo. "Chamo de parte regedora ou governo aquilo que os gregos denominam H., da
qual pode e deve estar o mais excelente em cada gênero de coisas. Assim, é preciso que também a parte
em que está o governo de toda a natureza seja entre todas a melhor e a mais digna do poder e do domínio
sobre todas as coisas" (CÍCERO, De nat. deor., II, 29).
HELENÍSTICA, FILOSOFIA. Entende-se, com esta expressão, a filosofia da época alexandrina —
período seguinte à morte de Alexandre Magno (323 a.C) —, que compreende as três grandes linhas
mestras: Estoicismo, Epicurismo e Ceticismo — v. os respectivos termos, bem como ALEXANDRINISMO.
HENOTEÍSMO (ai. Henotheismus). Termo cunhado por Max Müller (Lect. on the Ortgin and Growth of
Religion, 1878) para indicar a crença segundo a qual, mesmo havendo uma única divindade para o povo
ou nação a que se pertence, existem outras divindades para os outros povos e as outras nações.
HERACLITISMO (in. Heracliteanism-, fr. Héraclitisme, ai. Heraklitismus, it. Eraclitismó). Indica-se,
com este termo, o ponto mais relevante da doutrina de Heráclito de Efeso (séc. V a.C), ou seja, o
princípio do devir incessante das coisas, expresso no famoso fragmento: "Não é possível entrar duas
vezes no mesmo rio, nem tocar duas vezes uma substância mortal no mesmo estado; graças à velocidade
do movimento, tudo se dispersa e se recompõe novamente, tudo vem e vai." {Fr. 91, Diels). Heráclito,
todavia, admitia um princípio único, subjacente ao movimento: o fogo; admitia, outrossim, uma ordem
rigorosa nas mudanças, que garantia um retorno constante e periódico.
HERANÇA SOCIAL. V. TRADIÇÃO.
HERMENÊUTICA (in. Hermeneutics; fr. Herméneutique, ai. Hermeneutik; it. Erme-neutica). Qualquer
técnica de interpretação. Essa palavra é freqüentemente usada para indicar a técnica de interpretação da
Bíblia (v. INTERPRETAÇÃO).
HERMETISMO
498
HETEROGONIA DOS FINS
HERMETISMO (in. Hermetism-, fr. Hermé-tisme, ai. Hermetismus-, it. Ermetismó). Indica-se com este
termo a doutrina filosófica contida em alguns textos místicos que apareceram no séc. I d.C. e chegaram
até nós com o nome de Hermes Trismegisto. Esses escritos tendem a reintegrar a filosofia grega na
religião egípcia. Hermes é identificado com o deus egípcio Theut ou Thot. Esses textos são escritos em
tom místico e defendem contra o cristianismo o paganismo e as religiões orientais. No séc. XV, foram
traduzidos para o latim por Marsílio Ficino e impressos pela primeira vez em 1471 (Mercuri trismegisti
liber de potestate et sapientia Dei, Treviso, 1471) .
H. e o adjetivo "hermético" passam, pois, a designar qualquer doutrina abstrusa, difícil ou acessível
apenas a quem possua uma chave para interpretá-la.
HERÓI (gr. fípCOÇ; lat. Heros; in. Hera, fr. Héros; ai. Heros-, it. Eroé). Segundo Platão, os H. são
semideuses nascidos de um deus que se apaixonou por uma mulher mortal ou de um homem mortal que
se apaixonou por uma deusa (Crat., 398c). Obviamente, com essa definição Platão relegava a noção de H.
à esfera do mito, assim como pertence ao mito a "idade dos H." de que falavam Hesíodo e o próprio
Platão (v. IDADE); com isso, expungia essa noção, pelo menos implicitamente, do campo da filosofia.
Aristóteles admitia essa expunção, quando observava: "Se houvesse duas categorias de homens tais que a
primeira diferisse da segunda tanto quanto se julgava que os deuses e os heróis diferiam dos homens,
sobretudo pela valentia física e pelas qualidades da alma, então sem dúvida ficaria evidente a
superioridade dos governantes sobre os governados, etc." (Poi, VII, 14, 1332b 17). Foi só com o
Romantismo que se começou a acreditar na existência de indivíduos excepcionais, nos quais se encarna a
Providência Histórica e que, portanto, estão destinados a cumprir tarefas predominantes. Hegel vê nos
heróis, ou "indivíduos da história do mundo", os instrumentos das mais altas realizações da história. São
videntes; sabem qual é a verdade do seu mundo e do seu tempo, qual é o conceito, o universal próximo a
surgir; os outros reúnem-se em torno da bandeira deles, porque eles exprimem aquilo cuja hora é chegada.
Aparentemente, tais indivíduos (Alexandre, César, Napoleão) nada mais fazem que seguir sua própria
paixão, sua própria ambição; mas, segundo Hegel, trata-se de astúcia
da Razão-, esta utiliza os indivíduos e suas paixões como meios para realizar seus próprios fins. O
indivíduo, em certo ponto, perece ou é levado à ruína pelo sucesso: a Idéia Universal, que provocara esse
sucesso, já alcançou seu fim (Phil. der Geschichte, ed. Lasson, p. 83). Nos heróis, age a mesma
necessidade da história, e por isso resistir a eles é inútil. "Eles são levados irresistivelmente a cumprir sua
obra" (Ibid., p. 77). Em conceito análogo inspirava-se T. Carlyle em sua obra Os heróis e o culto dos
heróis e o heróico na história (1841): "A história universal, a história daquilo que o homem realizou neste
mundo, substancialmente outra coisa não é senão a história dos grandes homens que aqui agiram. Foram
estes grandes homens os líderes da humanidade, os inspiradores, os campeões, e, lato sensu, os artífices
de tudo aquilo que a multidão coletiva dos homens cumpriu e conseguiu" (Heroes, liç. 1). Esse "culto dos
Heróis", como Carlyle denominava, tem dois pressupostos: 1Q
o caráter providencial da história, que,
segundo se crê, destina-se a realizar um plano perfeito e infalível em cada uma de suas partes; 2Q
o
privilégio, concedido a alguns homens, de serem os principais instrumentos da realização desse plano.
Estas duas crenças constituem as características da concepção romântica da história; subsistem e caducam
com ela (v. HISTÓRIA).
HERÓICA, IDADE. V. IDADE.
HERÓICO, FUROR. V. ENTUSIASMO.
HETEROGENEIDADE, LEI DE. V. HOMOGENEIDADE.
HETEROGONIA DOS FINS (ai. Hetero-gonie derZwecke). Wundt batizou com o nome solene de "lei
da H. dos fins" a observação não muito original de que os fins que a história realiza não são os mesmos
que os indivíduos ou as comunidades se propõem, mas resultam da combinação, da correlação e do
conflito das vontades humanas entre si e com as condições objetivas (Ethik, 1886, p. 266; System derPhii,
1889, 1, p. 326; II, pp. 221 ss.). Podemos lembrar que Viço expressara o mesmo conceito numa página
famosa: "Porque os homens fizeram este mundo de nações (que foi o primeiro princípio incontestável
desta Ciência, depois do que perdemos a esperança de reencontrá-la em filósofos e filólogos), mas esse
mundo, sem dúvida, saiu de uma mente amiúde diferente e por vezes de todo contrária, e sempre superior,
a esses fins particulares que os homens se haviam proposto; esses fins restritos, transforma-
HETEROLÓGICO
499
HDLOZOÍSMO
dos em meios para servir a fins mais amplos, foram sempre usados para conservar a geração humana
nesta Terra" {Sc. nuova, 1744, Concl. da obra).
HETEROLÓGICO. V. AUTOLÓGICO.
HETERONOMIA. V. AUTONOMIA.
HETEROZETESE(lat. Heterozetesis). O mesmo que Ignoratio Elenchi (v.).
HEURÍSTICA. Palavra moderna originada do verbo grego eúpíoKO) = acho: pesquisa ou arte de
pesquisa. Diferente de Erística (v.).
HIERARQUIA (gr. íepapxícc; lat. Hyerar-cbia; in. Hierarchy, fr. Hiérarchie, ai. Hierar-cbie, it.
Gerarchia). Em sentido próprio, ordem das coisas sagradas, dos entes e dos valores supremos. O conceito
(se não o termo) é neo-platônico (v., p. ex., PLOTINO, Enn., III, 2, 17), mas foi introduzido na filosofia
ocidental através dos dois textos do Pseudo-Dionísio, o Areopagita, que apareceram no começo do séc.
VI, intitulados Sobre a H. celeste e Sobre a H. eclesiástica. O primeiro desses textos contém a
organização das inteligências angélicas (v. ANGELOLOGIA); o segundo estabelece a correspondência entre
a H. angélica e a eclesiástica, que também se divide em três ordens. A primeira é constituída pelos
mistérios: Batismo, Eucaristia, Ordem Sacra. A segunda é constituída pelos órgãos que administram os
mistérios: bispo, sacerdote, diácono. A terceira é constituída por aqueles que, através desses órgãos, são
levados ao estado de Graça: catecúmenos, energúmenos, penitentes. Mais genericamente, nos dias de hoje
indica-se com esse termo qualquer organização de valores ou de autoridade: p. ex., "H. de valores", "H.
burocrática", "H. partidária", etc.
MLÉTICOS, DADOS (ai. Hyletische Data). Na terminologia de Husserl, dados constituídos pelos
conteúdos sensíveis, que compreendem, além das sensações denominadas externas, também os
sentimentos, impulsos, etc. Nesse sentido, as considerações e as análises feno-menológicas voltadas para
esse elemento material são chamadas de hilético-fenomenológicas, assim como as relativas aos
correspondentes momentos noéticos são denominadas noético-fenomenológicas (Ideen, I, § 85).
HILOMORFISMO (in. Hylomorpbism- fr. Hylomorphisme, ai. Hylomorphismus; it. Ilo-morfismo). Termo
moderno, usado para indicar a doutrina do filósofo judeu Avicebron (Ibn-Gebirol, 1020-1069), em Fons
vitae. Segundo essa doutrina, aliás haurida em Liber de causis, de inspiração neoplatônica, tudo o que é compõese de matéria e forma. Donde se deduz que a substância espiritual, como p. ex. a alma, também não é
forma pura, mas um composto de matéria e forma. Avicebron, portanto, identificava a matéria com a
substância, ou seja, com a primeira das categorias aristotélicas, que sustem {sustinei) as outras nove
categorias {Fons vitae, II, 6).
HILOPATIA (in. Hylopathy). Foi assim que C. S. Peirce denominou o "monismo idealista", doutrina
segundo a qual a matéria é "espírito que se tornou estéril" {Chance, Love and Logic, II, cap. I; trad. it. p.
121) .
HILOZOÍSMO (in. Hylozoism-, fr. Hylozois-me, ai. Hylozoismus; it. Ilozoismo). Crença ou doutrina
segundo a qual a matéria vive por si mesma, ou seja, possui originariamente animação, movimento,
sensibilidade ou qualquer grau de consciência. Essa doutrina não eqüivale à negação da matéria e à sua
resolução em forças ou elementos espirituais (como faz o pampsiquismo[v.]); ao contrário, costuma ser
uma expressão do materialismo, doutrina que reconhece a matéria como única realidade. A expressão
"H." já se encontra em Cudworth. Kant definiu o H. como a forma de "realismo da finalidade da
natureza", para o qual "os fins da natureza se fundam no análogo de uma faculdade que age com intenção,
a vida da matéria (que existe na própria natureza, ou é produzida por um princípio animador interno, uma
alma do mundo)" {Kritik der Urteils-kraft, § 72; Metaphysische Anfangsgründe der Naturwissenschaft,
Teor. 3, nota).
Neste sentido, são hilozoístas todos os físicos pré-socráticos (Tales, Anaximandro, Anaxi-menes,
Parmênides, Heráclito, Empédocles), para os quais no princípio ou nos princípios materiais que admitem
há alma e sensibilidade. Hilozoístas são os estóicos, para os quais o princípio constitutivo corpóreo do
universo, ou seja, o fogo, é um sopro ou espírito animador e ordenador (DIÓG. L., VII, 156; CÍCERO, De
nat. deor., II, 24). O H. antigo foi retomado pela filosofia da natureza e pela magia do Renascimento.
Segundo Telésio, o calor e o frio, que são os dois princípios que agem na "massa corpórea" inerte, devem
ser providos de sensibilidade porque, se não percebessem suas próprias impressões e as ações do
princípio oposto, não poderiam combater-se; conseqüentemente, todas as coisas da natureza são
HIPERBÓLICO
500
HIPÓTESE
dotadas de sensibilidade. Essa doutrina é repetida nos mesmos termos por Campanella {Del senso delle
cose, I, 1) e por G. Bruno, em cujos Diálogos latinos, porém, encontra-se uma acentuação no sentido
pampsíquico do H. O H. é, pois, o pressuposto da magia, como tentativa direta para dominar as forças
animadas da natureza através de encantos (v. MAGIA).
As últimas manifestações do H. são observadas no materialismo oitocentista: Haeckel, p. ex., acredita que
os átomos são animados e que a matéria e o éter são dotados de sensibilidade e vontade {Die Weltrãtsel,
1899) . Na filosofia contemporânea pode-se dizer que o H. desapareceu, permanecendo o pampsiquismo
(v.), que é a metafísica do espiritualismo (v.).
HIPERBÓLICO. V. DÚVIDA.
HIPERORGÂNICO (fr. Hyperorganiqué). Termo com que os escritores positivistas caracterizaram o
mundo propriamente humano, ou seja, psíquico e social.
HTPERURÂNIO (gr. úrcepcupávioç). A região "além do céu", na qual, segundo o mito encontrado em
Fedro (247 ss.), residem as substâncias imutáveis que são objeto da ciência. Trata-se de uma região não
espacial, já que, para os antigos, o céu encerrava todo o espaço e além do céu não haveria espaço. Essa
expressão, portanto, é puramente metafórica; em República, o próprio Platão zomba dos que se iludem
achando que verão os entes Inteligíveis olhando para cima: "Não posso atribuir a outra ciência o poder de
fazer a alma olhar para cima, senão à ciência que trata do ser e do invisível; mas se alguém procurar
aprender alguma coisa sensível olhando para cima, com a boca aberta ou fechada, digo que não aprenderá
nada porque não há ciência das coisas sensíveis e sua alma não está olhando para cima, mas para baixo,
mesmo que ele estude ficando de costas na terra ou no mar" {Rep., VII, 529 b-c).
HEPOLEMA (in. Hypolemmd). Foi esse o nome dado por W. Hamilton à premissa menor do silogismo,
porquanto está subsumida na premissa maior ou tema {Lectures on Logic, I, p. 283);
HIPÓSTASE (gr. ÚTtócrracnç; in. Hypostasis, fr. Hypostase, ai. Hypostase, it. Ipostast). Com este termo
Plotino denominou as três substâncias principais do mundo inteligível: o Uno, a ' Inteligência e a Alma
{Enn., III, 4, 1; V, 1, 10), que ele comparava, respectivamente, à luz, ao sol e à lua (Jbid., V, VI, 4). A
transcrição latina desse substantivo é "substância", que, todavia,
foi usada pela tradição filosófica com significado totalmente diferente (v. SUBSTÂNCIA). Nas discussões
trinitárias dos primeiros séculos, esse termo foi preferido a pessoa (Ttpóaomov), que, por significar
propriamente máscara, parecia evocar a imagem de algo fictício. A partir dessas discussões, o substantivo
H. passou a designar a substância individual, a pessoa. S. Tomás diz: "Para alguns, a substância, na
definição de pessoa, eqüivale a substância primeira, que é a H.; todavia, não é supérfluo acrescentar
individual, uma vez que com as palavras H. ou substância primeira se exclui a relação entre o universal e
a parte. De fato, não se diz que o conceito de homem ou a mão são H." (5. Th., I, q. 29, a. 1).
Na linguagem moderna e contemporânea, esse termo é usado (mas raramente) em sentido pejorativo, para
indicar a transformação fa-laz e sub-reptícia de uma palavra ou um conceito em substância, ou seja, numa
coisa ou num ente. Neste sentido fala-se também de hipostasiar (fr. hypostasier).
HIPÓTESE (gr. Ú7tÓ8éotç; in. Hypothesis- fr. Hypothèse, ai. Hypothese, it. Ipotesí). Em geral, um
enunciado (ou conjunto de enunciados) que só pode ser comprovado, examinado e verificado
indiretamente, através das suas conseqüências. Portanto, a característica da H. é que ela não inclui nem
garantia de verdade nem a possibilidade de verificação direta. Uma premissa evidente não é uma H., mas,
no sentido clássico do termo, um axioma. Um enunciado verificável é uma lei ou uma proposição
empírica, não uma hipótese. Uma H. pode ser verdadeira, mas sua verdade só pode resultar da verificação
de suas conseqüências. Era neste sentido que Aristóteles entendia a H., pois mesmo usando vez por outra
esse termo em sentido muito amplo, como premissa de demonstração (compare, p. ex., Met., V, 1, 1013 a
16; 1913 b 20; Fts., II, 3, 195 a 18), define-a em seu significado específico, excluindo-a do campo das
premissas necessárias: "Aquilo que é necessário que seja e que é necessário que pareça necessário, não é
hipótese nem postulado" {An. post, 1,10, 76 b 23). Axiomas e definições constituem as premissas
necessárias do silogismo; H. e postulados são as premissas não necessárias. Em particular, as H.
estabelecem a existência das coisas definidas. As definições — diz ele — devem apenas levar-nos a
compreender aquilo de que se fala; as H. estabelecem sua existência, para deduzir as conclusões {Ibid., I,
HIPÓTESE
501
HIPÓTESE
10, 76b 35 ss.). Conseqüentemente, os raciocínios fundados em H. pressupõem uma espécie de
convenção ou acordo preliminar (An.
: pr., I, 44, 50 a 33) e não têm o valor probatório dos que se fundam em definições (Ibid., I, 23,
; 40b 22).
• Esta determinação da H. como premissa de j grau ou qualidade inferior, isenta da necessidade
própria das premissas autênticas, é caracte-
■ rístíca da posição de Aristóteles. Não se encontra em Platão, para quem as premissas devem ser
escolhidas com base no juízo comparativo, : que se orienta para aquela que é "a mais forte" : ou "a
melhor" entre elas (Fed., 100a; lOld). Platão observa que a matemática e, em geral, as disciplinas
propedêuticas não partem de H., mas que "deixam-nas intocadas por não serem capazes de explicá-las"
(Rep., VII, 533c). Em Parmênides são chamadas de H. todas as pos-\ síveis vias de investigação, não
se privilegiando í nenhuma com nome diferente (Parm., 135 e). Platão declara às vezes que "investiga
através da H.", como fazem os geômetras, ou seja, raciocinando assim: "Em certas condições, obter-se-á
determinado resultado, mas se as condições forem outras, o resultado será diferente" : (Men., 87a). O
uso das H. em filosofia estabelece uma diferença importante entre a filosofia de Platão e a de Aristóteles,
no que concerne
• ao procedimento da própria filosofia e, em : geral, do saber científico. Essa diferença, porém,
incide nos termos da noção geral de H.,
;. como acima expressa. No âmbito dessa no-
• ção, é possível distinguir os seguintes significados específicos:
l
s
O antecedente de uma proposição hipotética ou condicional, de um raciocínio anapo-dítico ou de um
silogismo hipotético. A lógica estóica, ao contrário da aristotélica, privilegiou as proposições hipotéticas e
os raciocínios anapodíticos, em conformidade com a formulação geral da lógica como dialética (v.
LÓGICA; DIALÉTICA; CONDICIONAL; CONSEQÜÊNCIA; IMPLICAÇÃO).
2
a Uma proposição originária assumida
como fundamento de um discurso científico,
[ como p. ex. um postulado ou um axioma de
matemática. Realmente, não se afirma nem se
nega a verdade desses postulados ou axiomas,
mas reconhece-se sua validade se e na medida
' em que possibilitam o discurso matemático.
Neste sentido, a matemática é denominada
"sistema hipotético-dedutivo". Mas é possíi. vel encontrar proposições análogas aos postulados ou axiomas da matemática — e como eles assumidos por H. — em todas as ciências que
alcançaram certo grau de elaboração conceituai.
3
Q
Uma condição qualquer. Este é o significado do termo na expressão ex bipothesi: Aristóteles fala
daquilo que é "necessário por H.", ou seja, em virtude de determinada condição (Fís., II, 9, 199b 34 e ss.).
4
S
A explicação causai dos fenômenos. Neste sentido, essa palavra foi usada freqüentemente nos sécs.
XVII e XVIII. Locke advertia "para que a palavra princípio não nos engane nem se nos imponha,
fazendo-nos aceitar como verdade incontestável aquilo que, no melhor dos casos, nada mais é que uma
conjectura muito duvidosa, como ocorre com a maioria das H. da filosofia natural, para não dizer todas"
(Ensaio, IV, 12, 13). E óbvio que, para Locke, H. é o que anuncia os "princípios", as causas dos
fenômenos. Ainda mais explicitamente Leibniz dizia: "A arte de descobrir as causas dos fenômenos, ou as
H. verdadeiras, é como a arte de decifrar, na qual muitas vezes uma conjectura engenhosa abrevia em
muito o caminho" (Nouv. ess., IV, 12, 13), onde "H. verdadeiras" e "causas dos fenômenos" são
identificadas. A renúncia de Newton ("hypotheses nonfingo" [não formulo hipóteses]) refere-se
exatamente a esse significado de hipótese. O texto de Newton é o seguinte: "Até agora, não pude deduzir
dos fenômenos as razões dessas propriedades da gravidade, e não formulo hipóteses. Tudo o que não se
deduz dos fenômenos deve ser chamado de H., e as H., tanto metafísicas quanto físicas, sejam elas de
qualidades ocultas ou mecânicas, não têm lugar na filosofia experimental." A essas H. ele contrapõe as
causas verdadeiras, que são as "necessárias para explicar os fenômenos" (Philo-sophiae naturalis
principia mathematica, 1687, ao final). Em Óptica (1704), Newton dizia que formular H. é recorrer às
qualidades ocultas, assumidas como causas da metafísica aristotélica, às quais ele contrapunha os
princípios (gravidade, fermentação, coesão), "que não considero qualidades ocultas, supostamente
resultantes das formas específicas das coisas, mas leis naturais gerais, pelas quais as coisas são formadas
e cuja verdade se nos manifesta pelos fenômenos, mesmo que suas causas não tenham sido descobertas"
(Opticks, III, 1 q. 31). Portanto, a renúncia de Newton às H. nada mais é que a renúncia à explicação em
favor da
HIPÓTESE
502
HISTÓRIA
descrição. Em meados do séc. XIX, a oposição entre descrição e explicação hipotética era reforçada pelo
físico inglês J. Macquorn Rankine: "Segundo o método abstrato, uma classe de objetos e de fenômenos é
definida por descrição, ou seja, mostrando-se que determinado conjunto de propriedades é comum a todos
os objetos ou fenômenos da classe, e considerando-os tais como os sentidos no-los dão a perceber, sem
nada introduzir de hipotético e só lhes atribuindo um nome ou símbolo. Pelo método hipotético, a
definição de uma classe de objetos ou de fenômenos é deduzida de uma concepção conjectural acerca de
sua natureza." E Rankine previa o abandono gradativo das teorias hipotéticas e sua substituição pelas
teorias abstratas (Outlines ofthe Science of Energetics, 1865, em Miscellaneous Scientifics Papers, p. 210;
cf. P. DUHEM, La théorie physique, 1906, pp. 80-81) .
5
B
Um procedimento especial que substitui a indução, para a formulação de princípios a serem verificados
experimentalmente. Para Stuart Mill, o procedimento científico é composto por três partes: indução,
raciocínio e verificação. Ora, "o método hipotético suprime o primeiro desses três passos, a indução, para
comprovar a lei, e limita-se às outras duas operações, raciocínio e verificação: a lei sobre a qual se
raciocina é presumida, em vez de ser provada" (Logic, III, 14, 4). No mesmo sentido, Peirce põe a H. ao
lado da dedução e da indução, como um tipo de raciocínio válido que se distingue da indução porque,
enquanto esta "procede como se todos os objetos que têm determinados caracteres fossem conhecidos", a
H. é "a inferência que procede como se todos os caracteres necessários à determinação de certo objeto ou
classe fossem conhecidos". Enquanto a indução pode ser considerada como a inferência da premissa
maior do silogismo, a hipótese pode ser considerada como a inferência da premissa menor a partir das
outras duas ("Some Consequences of Fourlncapacities", em Values in a Universe of Chance, pp. 44 ss.).
Este significado do termo tornou-se raro.
6
Q
O argumento de um discurso, enquanto proposto ou enunciado no início do discurso (ARISTÓTELES,
Ret. adAl, 30, 1436 a 36; Ret., II, 18, 1391 b 13).
7^ Uma teoria científica ou parte de uma teoria científica. Nesse sentido, Mach diz: "Chamemos de H.
uma explicação provisória que tem por objetivo fazer compreender mais facilmente os fatos, que foge à prova dos fatos" (Er-kenntniss und Lrrtum, cap. 14; trad. fr., p. 240). Para este
significado, v. TEORIA.
HIPOTÉTICO (gr. Ú7to0exiKÓç; lat. Hypothe-ticus; in. Hypothetical; fr. Hypothétique, ai.
Hypothetisch; it. Lpoteticó). Este termo tem significado correspondente ao do substantivo. Para
proposição hipotética, v. CATEGÓRICO; para silogismo hipotético, v. SILOGISMO. V. também
ANAPODÍTICO; RACIOCÍNIO; CONDICIONAL; CONSEQÜÊNCIA.
HTPOTIPOSE (gr. ÚKOTÚTTCOCIÇ; ai. Hypoty-posé). Este termo, que significa bosquejo ou esboço
(neste sentido é encontrado no título da obra de SEXTO EMPÍRICO, Pirr. hyp.), foi usado pelos retóricos
para indicar a figura em virtude da qual um assunto é vividamente descrito em palavras (QUINTILIANO,
lnst., IX, 2, 40). Kant utilizou essa palavra em sentido análogo, para expressar a relação entre a beleza e a
moralidade: a beleza, como símbolo da moralidade, é a H. dela, ou seja, sua vigorosa manifestação
intuitiva. Enquanto as palavras e os outros signos são simples expressões dos conceitos, as H. são
exibições ou manifestações do conceito em forma intuitiva (Crít. do Juízo, § 59).
HISTÓRIA (gr. ícrcopía; lat. Historia-, in. History, fr. Histoire, ai. Geschichte, it. Storid). Esse termo,
que em geral significa pesquisa, informação ou narração e que já em grego era usado para indicar a
resenha ou a narração dos fatos humanos, apresenta hoje uma ambigüidade fundamental: significa, por
um lado, o conhecimento de tais fatos ou a ciência que disciplina e dirige esse conhecimento (historia
rerum gestaruni) e, por outro, os próprios fatos ou um conjunto ou a totalidade deles (resgestaê). Essa
ambigüidade está presente em todas as atuais línguas cultas (cf. H. I. MARROU, De Ia connaissance
historique, 1954, pp. 38-39). Mas, em vista do maior uso do termo historiografia para indicar o
conhecimento histórico em geral, ou ciência da H. (e não a arte de escrever H.), pode-se colocar no
verbete historiografia o tratamento dos significados atribuídos à H. ao longo do tempo, (como
conhecimento) e incluir neste verbete só os significados que foram dados à realidade histórica como tal.
Tais significados são os seguintes: I
a H. como passado; 2S
H. como tradição; 3a
H. como mundo histórico;
4- H. como objeto da historiografia.
1
B
A H. interpretada como passado pode, com boas razões, ser considerada uma tauto-
HISTÓRIA
503
HISTÓRIA
logia, mas o sentido em que Heidegger entendeu essa interpretação (Sein und Zeit, § 73), não parece
puramente tautológico. Quando se diz: "Isto pertence à H.", entende-se que pertence ao passado, a um
passado que tem pouca eficácia sobre o presente. Por outro lado, quando se diz: "Não podemos subtrairnos à H.", entende-se ainda a H. como passado, mas como um passado que age inevitavelmente sobre o
presente. Assim também, dizer que "algo tem H." significa afirmar que tem passado e que é fruto desse
passado. Nestas e em semelhantes expressões, o significado desse termo permanece estritamente
genérico: remete a uma dimensão do tempo e às relações que podem ser estabelecidas entre ela e as outras
dimensões. _ 2Q
Em segundo lugar, a H. pode ser entendi- \ da
como tradição, em que crenças e técnicas i são transmitidas e conservadas através do tem-' po, seja tal
legado verificável pela historiografia, seja considerado como "evidente", mesmo permanecendo obscuro e
não verificável. I Ao conceito de tradição pode vincular-se o 7 conceito de Heidegger sobre a
historicidade \ autêntica, que é a escolha, para o futuro, das possibilidades que já foram, sendo, pois, a í
transmissão de tais possibilidades da existência ;' para si mesma, uma repetição decidida, quej Heidegger
chama também de destino. "A deci~ são constitui a fidelidade da existência a si mesma. Enquanto decisão
permeada de angústia, a fidelidade é ao mesmo tempo o possível respeito em face da única autoridade que
um existir livre pode reconhecer, ou seja, em face das possibilidades repetíveis da existência" {Sein und
Zeit, § 75) . "Se o ser-aí só é autenticamente^ real na existência, sua factualidade constitui-se justamente
no decidido autoprojetar-se para um poder-ser que já foi escolhido. Mas então o que foi autenticamente
um fato é a possibilidade existenciária em que se determinam efetivamente o destino, a destinação
comum e mundanamente histórica" (Ibid., § 76). Às vezes, porém, a tradição é entendida como
conservação infalível e progressiva de todos os resultados ou conquistas do homem; nesse caso, o
conceito identifica-se com o de H. como plano providencial (v. TRADIÇÃO).
3
Q
O terceiro significado de H. é o mais relevante filosoficamente; para ele, H. é o mundo histórico, a
totalidade dos modos de ser e das criações humanas no mundo, ou a totalidade da "vida espiritual" ou das
culturas. Nesse sentido, a H. contrapõe-se a "natureza", que é a totalidade do que é independente do homem ou que não pode
ser considerado produção ou criação sua, mas permanece aparentado com a natureza pelo seu caráter de
totalidade, de mundo. É no âmbito desse conceito que se podem distinguir as interpretações "filosóficas"
da H., que constituem a chamada "filosofia da H.". Entre estas interpretações podem-se considerar
principais as seguintes: d) H. como decadência; ti) H. como ciclo; c) H. como reino do acaso; d) H. como
progresso; ê) H. como ordem providencial.
d) A interpretação da H. como decadência é própria da Antigüidade, que a expressou com a doutrina das
idades (v.) do gênero humano. A sucessão das cinco idades, descrita por He-síodo, vai da idade de ouro,
na qual os homens "viviam como deuses", à idade dos homens, na qual estes estão sujeitos a toda espécie
de males, passando pela idade de prata, de bronze e dos heróis, que assinalam a decadência gradual do
estado do gênero humano (Op., 109-79). Platão reduziu a três as idades, enumerando somente a idade dos
deuses, dos heróis e dos homens, mas conservando o caráter de decadência sucessiva que as idades
apresentam quanto às condições materiais e morais dos homens (Crítias, 109b ss.). Retomada no mundo
moderno (Viço, Fichte e outros), essa doutrina perdeu o significado pessimista e tornou-se otimista: as
idades estão em ordem de progresso e não de decadência. Mas não há dúvida de que, para os gregos, essa
doutrina constitui uma interpretação da H. como decadência (v. IDADE).
ti) A noção da H. como ciclo está ligada à de ciclo do mundo, bastante difundida na Antigüidade grega.
Para os estóicos a repetição do ciclo cósmico incluía a repetição da H. humana no seu conjunto. Segundo
eles, de fato, em cada novo ciclo do mundo, "haverá de novo Sócrates de novo Platão e de novo cada um
dos homens com os mesmos amigos e concidadãos, as mesmas crenças, os mesmos assuntos discutidos, e
toda cidade, vilarejo ou campo igualmente retornarão" (NEMÉSIO, De nat. bom., 38). Pode-se ver na obra
de Spen-gler uma revivescência moderna desse conceito de H. Para ele, os ciclos históricos, as culturas,
não se repetem de modo idêntico, como julgavam os estóicos, mas a sua forma repete-se identicamente:
nascimento, crescimento e morte. "Toda cultura, todo surgimento, pro-
HISTÓRIA
504
HISTÓRIA
gresso e declínio, bem como cada um dos seus graus e dos seus períodos inteiramente necessários têm
duração determinada, sempre igual, sempre recorrente, com forma de símbolo" (Der Untergang des
Abendlandes, 1932, I, p. 147) (v. CICLO).
c) O conceito da H. como reino do acaso não é freqüente na interpretação filosófica da história. Parece,
contudo, que Aristóteles não estava muito longe dele quando contrapôs o historiador ao poeta, dizendo
que a este último cabia representar o universal, "as coisas tais quais poderiam acontecer segundo a
verossimilhança e a necessidade", ao passo que caberia ao historiador representar as coisas "realmente
acontecidas", "o particular" e, como p. ex. "o que fez Aquiles e o que lhe aconteceu" (Poet., IX, 1451b 2-
10). Não se deve esquecer que, para Aristóteles, só o universal é objeto de conhecimento científico e que
o particular não pertence à ciência (Met., III, 6, 1003 a 15). Mais explicitamente, Schopenhauer dizia: "A
H. do gênero humano, a intimidade de acontecimentos, a mudança dos tempos, os múltiplos aspectos da
vida humana em países e séculos diferentes, tudo isso é apenas a forma casual assumida pela
manifestação da Idéia, que não pertence a esta, na qual está apenas a objetividade adequada da vontade,
mas ao fenômeno que fica sendo conhecido pelo indivíduo; e é tão estranha, tão inessencial e indiferente
à Idéia quanto são estranhas às nuvens as figuras que representam, ao rio a forma dos seus sorvedouros e
das suas espumas, e ao gelo suas figuras de árvores e flores" (Die Welt, I, § 35). Não se pode considerar,
porém, neste tópico, o conceito da H. expresso por Maquiavel ao dizer que "a sorte pode ser árbitro da
metade das nossas ações, contanto que nos deixe ainda governar a outra metade, ou quase"; comparando a
sorte a um rio que, quando irado, arrasta tudo, mas cujo ímpeto não é prejudicial ou causa menos danos
quando o homem faz, a tempo, reparos e diques (Princ, 25). De fato, para Maquiavel, a sorte é o conjunto
de condições que limitam, impedem ou frustram a ação do homem na H., mas não é a totalidade da H. No
entanto, para A. Cournot o acaso servia para definir o domínio da H., que ele contrapôs ao da natureza,
que é o domínio da ordem e da lei (Essai sur les fondements de Ia con-naissance, 1851).
d) O conceito de H. como progresso tem a característica de afirmar o caráter problemático e não inevitável do progresso, pois, se o progresso é necessário, a H. é sobretudo uma ordem
providencial cujos momentos são todos igualmente perfeitos, porquanto indispensáveis à perfeição ou ao
aperfeiçoamento do conjunto. A H. como progresso problemático é uma idéia iluminista que supõe a
medida do progresso, ou seja, uma norma ou um ideal de que a H. procura aproximar-se, ou que ela
procura realizar, mas não encontrando jamais em si uma adequação perfeita. G. B. Viço expressou esse
ideal no conceito de H. ideal eterna "sobre a qual transcorrem no tempo as H. de todas as nações, com
surgimentos, progressos, estados, decadências e fins" {Sc. nuova, De'principi). A H. ideal eterna é a
ordem universal e eterna à qual a H. temporal, ou melhor, as várias H. temporais dos vários tempos e
nações tendem a adequar-se, sem nunca conseguirem por completo, aliás, às vezes precipitando-se na
confusão e na ruína (Ibid., Conclusão da obra). Viço entendia a H. ideal eterna como sucessão
progressiva de três idades (dos deuses, dos heróis, dos homens) e a permanência indefinida na última, que
é a conclusão do ciclo. Voltaire, ao contrário, considerou como norma e medida do progresso histórico a
ilustração; a libertação da razão humana dos preconceitos e a sua posição de guia da vida individual e
social do homem (cf. especialmente o Essai sur les moeurs, 1740; Philosophie de 1'histoire, 1765). Kant
seguiu o mesmo critério, suge-rindo-o, porém, apenas como "fio condutor" para orientar-se
filosoficamente na H. dos povos. Escreveu: "À medida que as limitações à atividade pessoal forem sendo
abolidas e que a liberdade religiosa for concedida a todos, pro-duzir-se-á gradualmente, ainda que com
intervalos de ilusões e fantasias, a ilustração como um grande bem que a espécie humana poderá fazer
derivar até dos objetivos ambiciosos de poder dos seus dominadores" (Jdeezu einer allgemeinen
Geschichte, 1784, tese VIII). Segundo Jaspers, o único fim projetável da H. é a unidade da humanidade,
não alcançável por meio da ciência ou da uniformidade lingüística ou cultural, mas da "ilimitada
comunicação daquilo que é diferente historicamente, tal como se pode realizar num diálogo incessante,
numa luta amorável" (Vom Ursprung und Ziel der Geschichte, 1949). Certamente é possível propor outros
critérios ou normas
«STORIA
505
HISTORIA
como medida do progresso na H., mas as características dessa noção não mudam enquanto se admite a
inevitabilidade do progresso.
e) Com a afirmação da inevitabilidade do progresso', o próprio progresso torna-se inconcebível (como viu
Hegel), porque, se a H. é necessária, cada momento dela é tudo o que deve ser e não pode ser melhor nem
pior do que os outros. A concepção da necessidade da H. é a concepção da H. como plano providencial. A
noção de plano providencial está implícita em todas as formas de milenarismo ou quiliasmo (v.> toda
doutrina desse tipo inclui a idéia de desenvolvimento necessário dos feitos humanos até a consecução de
um estado definitivo de perfeição. Foi esse, p. ex., o conceito de H. em Orígenes: para ele, os mundos
sucedem-se no tempo como escolas nas quais os seres decaídos se reeducam (Deprinc, III, 6, 3), e o ciclo
total da H. é o retorno do mundo a Deus, que culmina na apocatástase, na restituição de todos os seres à
sua perfeição originária (Jnjohann., XX, 7). Mas o primeiro a formular claramente o conceito de plano
providencial foi S. Agostinho, que viu na H. a luta entre a cidade celeste e a cidade terrena-, luta
destinada a acabar com o triunfo da cidade celeste. Para esse triunfo, segundo S. Agostinho, Deus faz que
também contribuam o mal e a má vontade (Deciv. Dei, XI, 17). Os três períodos em que, para S.
Agostinho, a H. se divide não são mais que o desenvolvimento do plano providencial. No primeiro, os
homens vivem sem leise ainda não há luta contra os bens do mundo. No segundo, os homens vivem sob a
lei e por isso combatem contra o mundo, mas são vencidos. O terceiro período é o tempo da graça, em
que os homens combatem e vencem (Ibid., XIX, 15-26). No séc. XII, a profecia de Gioacchino da Fiore
parte do mesmo conceito de H. e tem como modelo a divisão das idades feita por S. Agostinho.
Gioacchino acredita que, depois da idade do Pai, que é a da lei, e da idade do Filho, que é a do Evangelho,
virá a idade do Espírito, que é a da Graça, da inteligência plena da verdade divina (Concórdia novi et
veteris testamento, V, 84, 112).
Todavia, o plano providencial da H., embora infalível e necessário, é, do ponto de vista religioso,
imperscrutável em seus detalhes. O homem religioso crê nele e na sua perfeição, mas sabe que não pode
compreender os caminhos pelos quais se vai realizando. Posto diante do mal, confia em que o mal, em última instância, não triunfará, mas sabe que não pode dizer como
isso acontecerá. Quando, no Romantismo, a doutrina do plano providencial da H. se transforma em
doutrina filosófica, o não-sa-ber religioso transforma-se em certeza racional. Hegel afirmou muitas vezes
que a diferença entre religião e filosofia é que a segunda demonstra, na sua determinação, essa relação
entre Deus e o mundo, esse plano providencial, e a primeira se limita a reconhecê-los (Ene, § 573;
Philosophie der Geschichte, ed. Lasson, I, p. 55). Entretanto, o ingresso dessa noção em filosofia deve-se
sobretudo a Fichte. Em Caracteres da Idade Contemporânea (1806), Fichte afirmava energicamente a
necessidade da H. e a sua redução a um plano providencial: "Qualquer coisa que realmente exista existe
por absoluta necessidade: e existe necessariamente na forma precisa em que existe" (Ibid., EX). E
distinguia dois elementos no processo de civilização da espécie humana: um elemento apriori, que é o
plano do mundo ou ordem providencial, e um elemento a poste-riori, temporal ou empírico, constituído
pelos fatos. A resultante dessa concepção é que "Nada é como é porque Deus queira arbitrariamente
assim, mas porque Deus não pode manifestar-se de outro modo. Reconhecer isso, submeter-se
humildemente e ser feliz, na consciência da nossa identidade com a força divina, é tarefa de todo homem"
(Ibid., IX; trad. it. Cantoni, p. 67). Com essa distinção, Fichte parece atribuir certa autonomia (embora
fictícia) aos "fatos"da H., em face do plano providencial de que devem participar. Mas mesmo essa
autonomia fictícia dos fatos desaparece na doutrina de Hegel: "Deus prevalece, e a H. do mundo não
representa nada além do plano da providência. Deus governa o mundo: o conteúdo do seu governo, a
execução do seu plano é a H. universal... A filosofia quer conhecer o conteúdo, a realidade da idéia divina
e justificar a realidade vilipendiada. Com efeito, a razão é a percepção da obra de Deus" (Philosophie der
Geschichte, ed. Lasson, I, p. 55). Foi esse conceito de H. que Croce retomou e defendeu nos primeiros
decênios do séc. XX. Para ele, o sujeito da H. é o Espírito do Mundo ou a Razão, não o homem (Teoria e
storia delia storiografia, 1917, p. 87). A H. é uma ordem progressiva que não conhece decadência,
interrupção ou morte (La storia come pensiero e come azione, 1938, p. 38). Ela é sempre jus-
HISTÓRIA
506
HISTÓRIA
tificadora, nunca justiceira; e "só poderia tornar-se justiceira tornando-se injusta, ou seja, confundindo o
pensamento com a vida" (Teoria estória delia storiografia, p. 77). Para Hegel e para Croce o caráter
necessário e providencial da H. deriva da crença de que a H. é obra de uma Razão Absoluta cuja perfeição
e cuja potência não conhecem limites.
Uma forma levemente atenuada dessa concepção é a que considera a H. como revelação de Deus. Esse
conceito não é estranho ao próprio Hegel, para quem revelação de Deus no mundo e realização de Deus
coincidem. Mas ele assinala a atenuação da relação entre os dois conceitos de revelação e realização. Essa
atenuação já estava em Schelling, que definia a H. como "a revelação do Absoluto que se desenrola
contínua e gradualmente", distinguindo três períodos: o primeiro, em que a providência aparece como
destino ou força cega-, o segundo, em que ela aparece como natureza; o terceiro, em que ela aparece
como providência (System des transzendentalen Idealis-mus, seç. PV, Adendos, III, C; trad. it., p. 283 ss.).
O conceito de revelação foi usado freqüentemente no fim do Romantismo do séc. XTX, bem no
Espiritualismo e Idealismo do séc. XX. Nessas suas manifestações, conservou a conexão da idéia de
progresso que Schelling lhe atribuíra. Tal conexão, porém, não é indispensável. A revelação de Deus na
H. pode não ser gradual, mas total e completa em cada ponto da H. Cada época, cada momento seu é,
nesse caso, uma revelação completa de Deus, segundo as palavras de Goethe: "O instante é a eternidade"
e, segundo a frase do historiador Ranke, "Cada época está em relação imediata com Deus". Nesta forma,
o conceito romântico da H. como ordem providencial também foi aceito por alguns historicistas alemães
como E. Troeltsch (Der Historismus und seine Probleme, 1922) e F. Meinecke (Die Entstehung der
Historismus, 1936; Vom geschichtlichen Sinn und vom Sinn der Geschichte, 1939), preocupados em
salvar da mobilidade e da relatividade da H. o caráter absoluto dos valores e o caráter divino do
cristianismo (cf. PIETRO Rossi, Lo storicismo tedesco contemporâneo, 1956, parte VI).
Por outro lado, não é indispensável que o conceito da H. como ordem providencial se baseie na crença de
uma providência de natureza divina, imanente ou transcendente. "Ordem providencial" significa "ordem
necessária e perfeita": e uma ordem semelhante também é atribuída à H. por doutrinas que negam o conceito religioso de providência, como o positivismo social e o
marxismo. Comte considerava a H. como o desenvolvimento progressivo da Humanidade ou Grande Ser,
que é "o conjunto dos seres passados, futuros e presentes que concorrem livremente para aperfeiçoar a
ordem universal" (Politiquepositive, 1854. IV, p. 30), e reconhecia que De Maistre tivera o mérito de
contribuir para preparar a verdadeira teoria do progresso com a sua revalorização da Idade Média, já que
só depois dessa revalorização a continuidade da tradição providencial foi restabelecida (Ibid., I, p. 64).
Por outro lado, o marxismo considera a H. como um processo unilinear e progressivo que, por meio da
luta de classes, necessariamente desembocará na sociedade sem classes, que é a sociedade perfeita. Marx
diz, a propósito, que a passagem para a nova sociedade ocorrerá "com a mesma fatalidade que preside aos
fenômenos da natureza" (DasKapital, I, 24, § 7). Mas fatalidade significa necessidade e trata-se de uma
necessidade providencial porque dela advirá o modo de vida definitivo e perfeito do gênero humano.
4
Q
As interpretações filosóficas da H. gravitam quase todas em torno da noção da H. como totalidade ou
mundo histórico. Na verdade, só essa noção permite falar da H. como objeto único e simples, avaliável
em seu conjunto uma vez por todas. A noção de mundo histórico, como todas as noções totalitárias e a
própria noção de mundo (v.), está além das capacidades efetivas de investigação e compreensão de que o
homem dispõe. A H. como objeto da historiografia nunca é um mundo nesse sentido, isto é, a totalidade
absoluta dos acontecimentos humanos. Por vezes, um período histórico ou um conjunto de instituições é
chamado de mundo (p. ex., "mundo antigo", "mundo oriental", etc.) apenas no sentido de totalidade
relativamente homogênea de culturas, e não em sentido absoluto. A própria expressão "mundo histórico",
se tiver o significado de "objeto geral das disciplinas historio-gráficas", não designa uma totalidade
absoluta, mas o campo relativamente homogêneo no qual atuam e se encontram as técnicas das
disciplinas historiográficas. Por isso, quando se entender por "realidade histórica" simplesmente o objeto
do conhecimento histórico, estar-se-á renunciando ipsofacto ao conceito de mundo histórico como
totalidade absoluta e a qualquer juízo sobre essa totalidade. Estar-se-á re-
HISTÓRIA
507
HISTORIA
iiunciando, também, a considerar todos os fatos corrío fatos históricos, visto que a afirmação de que todos
os fatos são históricos (presente, p. ex., em CROCE, La storia comepensiero e come azione, 1938, p. 19) é
apenas outro modo de expressar a noção de H. como totalidade absoluta. Por outro lado, se a H. não é o
mundo histórico, não existe a história. Toda H., desse ponto de vista, é a H. de alguma coisa (um período,
uma instituição, uma personalidade), mas não é um processo ou uma substância única ou universal que
compreenda tudo dentro de si (cf. J. H. RANDAL JR., Nature andHistorical Experience, 1958, p. 28).
Desse ponto de vista, as expressões "objeto histórico" ou "realidade histórica" são apenas nomes comuns
para indicar qualquer tema de investigação historiográfica. A metodologia historio-gráfica
contemporânea, que historiadores e filósofos (em acordo fundamental) fizeram avançar notavelmente
nestes últimos tempos, permite atribuir no objeto histórico os seguintes caracteres:
l
e
Individualidade ou unicidade, em virtude da qual o fato histórico se apresenta como algo único e não
repetível. O reconhecimento explícito deste caráter deve-se ao historicismo alemão. Já afirmado por
Dilthey (Gesammelte Schriften, V, p. 236), foi ressaltado por Windelband {Pràludien, IP, p. 145) e por
Rickert (Die Grenzen der naturwissens-cbafllichen Begriffsbildung, 1896-1902, pp. 251,420, etc.) como
conseqüência da distinção entre o procedimento generalizador das ciências da natureza e o procedimento
indivi-dualizador das ciências do espírito. Este caráter da H. às vezes suscitou desconfiança nos
metodizadores porque pareceu um caráter "metafísico" (cf., p. ex., C. G. HEMPEL, em Rea-dings in
Philosophical Anatysis, ed. Feigl e Sellars, 1949, p. 46l; GARDINER, The Nature of HistoricalExplanation,
1952, p. 43). Por outro lado, ninguém nega que um acontecimento histórico seja único no sentido de estar
individualizado pelos dois parâmetros fundamentais, a cronologia e a geografia (cf. o mesmo GARDINER,
loc. cit), e além disso muitos reconhecem unicidade no acontecimento histórico, no sentido "de ser
diferente dos outros, com os quais seria naturalmente agrupado sob um termo classificador, sendo
também diferente quanto aos modos pelos quais desperta o interesse dos historiadores que procuram
explicá-lo" (W. DRAY, Laws and Explanation inHistory,
1956, p. 46). O caráter de unicidade do acontecimento provém das próprias técnicas historio-gráficas que
servem para verificá-lo e ilustrá-lo, sendo reflexo dessas técnicas. O acontecimento histórico só se mostra
único e não repetível quando sua abordagem historiográfica é conduzida a bom termo, de tal modo que o
ditado "a H. não se repete" exprime mais o ideal historiográfico (aliás, difícil de ser alcançado) do que um
suposto caráter do processo histórico.
2
Q
A correlação do fato com os outros fatos, graças à qual o fato é "explicado" ou "compreendido".
Também quanto a este segundo caráter, a metodologia histórica contemporânea chegou a um ponto de
concordância satisfatória. Ainda que não falte quem queira interpretar a conexão entre os fatos históricos
como conexão causai (cf., p. ex., HEMPEL, loc. cit., p. 462 ss.) no intuito de mostrar que tanto a H. quanto
as ciências naturais fazem uso de um único tipo de explicação, hoje já está bem claro que os historiadores
rejeitaram a explicação causai tanto quanto os estudiosos da Física (cf., sobre este ponto,
HISTORIOGRAFIA, e também CAUSALIDADE; CONDIÇÃO; EXPLICAÇÃO). Com a recusa do esquema causai
elimina-se também da H. a noção de lei que está ligada a ele, já que uma lei só faz expressar uma
sucessão causai de fatos. E com a eliminação do conceito de lei também se eliminou o conceito de
necessidade az história. Nesse aspecto, é preciso lembrar que Kierkegaard foi o primeiro a reconhecer na
H. a categoria da possibilidade: "O passado não é necessário ao momento em que vem a ser; não veio a
ser necessário vindo a ser (o que seria uma contradição); e vem a sê-lo ainda menos por meio da
compreensão que se tem dele (...) Se o passado viesse a ser necessário por meio da compreensão,
ganharia aquilo que a compreensão perderia, pois então esta última compreenderia uma coisa diferente e
seria uma incompreensão" (PhilosophiscbeBrocken, 1844, IV, § 4).
3
9
O significado ou a importância que o acontecimento possui como opção historiográfica. Também este
caráter é quase universalmente reconhecido na metodologia contemporânea. Pode ser considerado
conseqüência do caráter precedente, visto que a importância de um acontecimento consiste na capacidade
por ele demonstrada de condicionar de um modo qualquer os outros acontecimentos, isto é, de produzir,
no seu decorrer, variações que podem
HISTÓRIA IDEAL ETERNA
508
HISTORICISMO
ser atribuídas ao acontecimento em questão. Fica suficientemente claro, porém, que o significado de um
acontecimento (no sentido agora esclarecido) não é uma qualidade que lhe seja inerente de modo absoluto
e que o acompanhe em qualquer contexto historiográfico, mas pode variar segundo os contextos ou as
escolhas que os regem: de tal modo que um acontecimento importante em um deles terá menos ou
nenhuma importância em outro.
O primeiro dos caracteres acima arrolados, a individualidade, pode ser utilizado para distinguir o objeto
historiográfico do objeto sociológico ou, em geral, do objeto das ciências sociais, que possui o caráter
oposto de repe-tibilidade (cf. ABBAGNANO, Problemi di sociologia, 1959, II, 5). E o conjunto dos três
caracteres serve para distinguir o fato histórico do fato jornalístico comum, que não é individualizado, não
tem conexões suficientes com outros fatos e não é significativo.
HISTÓRIA IDEAL ETERNA. V. HISTÓRIA HISTÓRIA UNIVERSAL. V. HISTORIO
GRAFIA.
HISTÓRICAS, FONTES (in. Historical sour-ces; fr. Sources historiques; ai. Historische Quellen; it.
Fonti storiché). Com esta expressão indica-se comumente o material da pesquisa historiográfica. As
fontes H. costumam ser divididas em restos e tradições. Os restos são: 1) o que ficou das obras
produzidas pelo homem (casas, pontes, teatros, utensílios, etc); 2) os modos de vida das comunidades
(usos, costumes, ordenações jurídicas, políticas, etc); 3) as obras literárias e filosóficas; 4) os documentos
em geral.
Os restos da produção humana cujo objetivo seria transmitir a memória de um acontecimento chamam-se
monumento. O mesmo se diz dos documentos, cuja finalidade é transmitir para o futuro a conclusão de
um fato, e das inscrições, medalhas, moedas, etc.
Fontes de tradição são aquelas através das quais se transmitiu a memória dos fatos passados; podem ser
orais e escritas (cf. G. G. DROYSEN, Grundzüge der Historik, 1882, § 20-24).
mSTORICIDADE (in. Historicity, fr. His-toricitè, ai. Geschichtlichkeít; it. Storicitã). 1. O modo de ser
do mundo histórico ou de qualquer realidade histórica.
2. A existência de fato no passado; neste sentido se diz, p. ex., "a H. de Jesus", para
indicar que Jesus foi uma pessoa real, não um mito.
3. A importância histórica que, às vezes, se atribui também a fatos presentes e contemporâneos.
HISTORICISMO (in. Historicism- fr. Histo-ricisme, ai. Historismus-, it. Storicismó). Por esse termo,
empregado pela primeira vez por Novalis (Werke, III, p. 173), podem ser entendidas três linhas de
pensamento diferentes, a saber:
I
a Doutrina segundo a qual a realidade é história (desenvolvimento, racionalidade e necessidade) e que
todo conhecimento é conhecimento histórico; foi expressa por Hegel (cf. especialmente Geschichte der
Philosophie, I, intr.) e por Croce {La storia come pensiero e come azione, 1938, p. 51). Essa é a tese
fundamental do idealismo romântico (v.), que supõe a coincidência entre finito e infinito, entre mundo e
Deus, e considera a história como realização de Deus. Pode chamar-se H. absoluto.
2- Uma variante da doutrina precedente, que vê na história a revelação de Deus no sentido de considerar
que cada momento da história está em relação direta com Deus e é permeado dos valores transcendentes
que Ele incluiu na história. Foi o ponto de vista defendido por E. Troeltsch e F. Meinecke (cf. o verbete
HISTÓRIA, 3, e). Pode-se chamar essa doutrina de H. fidetsta porque a revelação de Deus no H. ocorre
substancialmente por meio da fé.
3
a
A doutrina para a qual as unidades cuja sucessão a história constitui (Épocas ou Civilizações) são
organismos globais cujos elementos, necessariamente vinculados, só podem viver no conjunto; afirma,
portanto, a relatividade entre os valores (que são alguns desses elementos) e a unidade histórica a que
pertencem; sendo inevitável a morte desses elementos com a morte dessa unidade. Esse é o ponto de vista
de Spengler e de outros, e pode chamar-se H. relativista. Existe também, pelo menos em polêmica, uma
noção vulgar desse H., segundo a qual a história seria um movimento incessante que empolga tudo,
mesmo a verdade e os valores, imediatamente depois do instante em que florescem. A doutrina mais
próxima dessa concepção é defendida por G. Simmel; para ele, a vida é um fluir incessante que resolve e
concilia todas as coisas dentro de si: "O bem e o mal que fazemos e que recebemos, o belo que nos deleita
e o feio de que fugimos, as séries acabadas e as que foram inter-
HISTORIOGRAFIA
509
HISTORIOGRAFIA
rompidas na nossa vida, todas estas coisas, por mais díspares que sejam, constituem elementos da vida,
como cenas de um destino, na conexão das vivências que continuam incansável e ininterruptamente: em
«ma vida, cujo sentido, justamente como vida, supera todas as oposi-ções que seus conteúdos possam
apresentar, segundo outros critérios" (Hauptprobleme der Philosophie, 1910, IV; trad. it., p. 201) . O
mesmo Simmei, porém, admitia alguma coisa que é mais que vida (v.), é a forma da própria vida que dela
emerge e para ela retorna (Lebensans-chauung, 1918, pp. 22-23) .
4
a
A corrente da filosofia alemã que, nos últimos decênios do séc. XIX e nos primeiros do séc. XX,
debateu o problema crítico da história. O fato de, no séc. XIX, as disciplinas históricas terem sido alçadas
ao nível de ciência criava um problema análogo ao que Kant se propusera a respeito das ciências naturais:
o problema da possibilidade da ciência histórica, ou seja, da sua validade. Esse problema foi debatido na
Alemanha a partir dos textos de Dilthey, especialmente Einleitung in die Geisteswissens-chaften (1883),
em que ele procura estabelecer a diferença entre as disciplinas historiográficas e as ciências naturais,
indicando como instrumento principal das disciplinas históricas a "psicologia analítica e descritiva", cujo
instrumento fundamental é a vivência (v.). Windelband e Rickert contribuíram, por sua vez, para delimitar
conceitualmente o domínio das disciplinas historiográficas, distinguindo entre as ciências nomotéticas ou
generalizantes, que são as naturais, e as ciências idiogrãficas ou indivi-dualizantes, que são as históricas
(v. CIÊNCIAS, CLASSIFICAÇÃO DAS). OS problemas da explicação (v.) e da compreensão (v.) da realidade
histórica eram também debatidos nessas escolas não só por Dilthey, Windelband e Rickert, mas também
por Simmei, Troeltsch e Meinecke; contudo, a sua contribuição mais substancial veio de Max Weber, que
encarou sobretudo o problema da explicação histórica e da causalidade da história. A herança dessa
escola, que iniciou a elaboração da metodologia histórica, foi recebida pelos modernos metodizadores da
história (sobre os quais, V. HISTORIOGRAFIA) (cf. R. ARON, La philosophie critique de Vhistoire, Essais
sur une théorie allemande de Vhistoire, 2- ed., 1950; P. Rossi, Lo storicismo tedesco contemporâneo,
1956).
HISTORIOGRAFIA (lat. Historiographia; in. History, fr. Histoire, ai. Geschichte, às vezes
Historie, it. Storiografid). O termo historiogra-phus aparece em Cornélio Agripa {De in-certitude et
vanitate scientiarum, 1527, Cap. V, em Opera, II, p. 2,27) e o termo historiographie é encontrado num
idílio em prosa do poeta inglês Nicholas Breton (Wits Trenchmour, 1597). Foi adotado por T. Campanella
para indicar "a arte de escrever corretamente a história" {Phi-losophiae Rationalis partes quinque,
videlicet Grammatica, Dialectica, Rethorica, Poética, Historiographia, iuxta própria principia, 1638, p.
243). Permaneceu com esse significado em inglês e em francês (o alemão usa HistoriM), ao passo que em
italiano passou a significar, na esteira de Croce, o conhecimento histórico em geral ou o conjunto das
ciências históricas. Dada a ambigüidade do termo história, é oportuno dispor de um termo adequado para
indicar o conhecimento histórico, na sua distinção da realidade histórica.
As interpretações dadas sobre esse conhecimento são fundamentalmente duas, que podem ser qualificadas
como A) historiografia universal; E) historiografia pluralista. A interpretação do conhecimento histórico
como história universal corresponde à interpretação da realidade histórica como mundo. A interpretação
dela como história pluralista corresponde à interpretação da realidade histórica como objeto definível ou
verificável só através dos instrumentos de pesquisa de que se dispõe.
A) A história universal, ou melhor, cósmica (ai. Weltgeschichtè), é o conhecimento do plano providencial
do mundo histórico (cf. HEGEL, Phil. der Geschichte, ed. Lasson, p. 52). Tem duas características
fundamentais:
I
a É tarefa do filósofo, e não do historiador, e a obra do historiador pode servir-lhe apenas como auxílio
não indispensável. Fichte, que a chama "história apriori", afirma: "Compreender com clara inteligência o
universal, o absoluto, o eterno e o imutável que guia a espécie humana é tarefa do filósofo. Fixar de fato a
esfera sempre cambiante e mutável dos fenômenos através dos quais marcha em passo firme a espécie
humana, é tarefa do historiador, cujas descobertas são só casualmente recordadas pelo filósofo"
(Grundzüge des gegenwârtigen Zeitalters, 1806, IX; trad. it., Cantoni, p. 67). Hegel, em polêmica com os
grandes historiadores do seu tempo, degradados a "filólogos" (v. FILOLOGIA), afirmava: "Para conhecer o
substancial, é preciso ter acesso a ele por meio da razão... A filosofia, na certeza de que o que impera é a
razão, ficará
HISTORIOGRAFIA
510
HISTORIOGRAFIA
convencida de que o ocorrido encontrará lugar no conceito e não alterará a verdade, como hoje é moda
particularmente entre os filólogos que, usando aquilo que chamam de acuidade, introduzem na história
elementos francamente apriorísticos" (Op. cit., p. 8). Era isso que tinham em mente Croce, ao identificar
filosofia e história {Teoria estória delia storiografia, 1917, pp. 71 ss.), e Gentile, ao identificar história e
história da filosofia (Teoriageneraledellospirito, 1920, XIII, 14).
2- É independente das limitações do material historiográfico e dos instrumentos de pesquisa, podendo,
pois, prescindir de qualquer história que tenha sido ou que possa ser escrita. Fichte considerava a história
a priori completamente independente da história a poste-riori, que é do historiador (Op. cit). Hegel
afirmava que, para reconhecer a realidade substancial da história, é preciso "trazer consigo a consciência
da razão: não olhos físicos, não um intelecto finito, mas o olho do conceito, da razão", e portanto confiar
no modo de proceder rigorosamente apriorístico" (Phil. der Geschichte, I, p. 8). Croce falava de uma
"anam-nese" do Espírito Universal que teceu a história e para o qual as fontes da história servem apenas
como motivos de recordação (Teoria e storia delia storiografia, p. 16). O próprio Heidegger compartilha
desta concepção da história cósmica; adverte que "história cósmica" significa em primeiro lugar "o
historicizar-se do mundo na sua essencial unidade existencial com o Ser-aí"; em segundo lugar, "o
historicizar-se intra-mundano dos instrumentos e das coisas"; em ambos os sentidos, a história cósmica é
independente do conhecimento historiográfico (Sein und Zeit, § 75), de tal sorte que é a escolha implícita
na historicidade do Ser-aí que determina a escolha historiográfica (Ibid., § 76).
B) A H. pluralista caracteriza-se, em primeiro lugar, pelo abandono de conceitos como "mundo histórico"
ou "história universal" e pelo reconhecimento da pluralidade das formas do conhecimento histórico e da
sua dependência em relação ao material documentário disponível e aos princípios que orientam a escolha
historiográfica. Deste ponto de vista, o conhecimento histórico autêntico versa sempre sobre objetos
delimitados ou delimitáveis, nunca sobre a totalidade da história; e nunca é juízo sobre essa totalidade, de
sorte que exclui, como desprovidos de sentido, os conceitos de progresso, decadência, etc, entendidos em
sentido absoluto. Embora a antigüidade grega nos tenha legado exemplos excelentes de H. nesse sentido
(p. ex., a obra de Tucídides e de Políbio), os fundamentos do que hoje se chama metodologia
historiográfica começaram a aclarar-se só a partir do Renascimento e a ser definidos por historiadores e
filósofos só nos últimos anos. Tais fundamentos podem ser resumidos do seguinte modo:
1
Q
O conhecimento histórico é perspec-tivista- mantém afastamento em relação ao passado e quer
entendê-lo no seu tempo e lugar, sem assimilá-lo ou reduzi-lo ao presente. O reconhecimento da
alteridade entre a experiência histórica e a realidade histórica, entre o sujeito histórico e o objeto
histórico, ou entre o presente e o passado, é uma das condições fundamentais da pesquisa histórica.
Constitui a contribuição do Humanismo para a metodologia histórica. Pois, enquanto a Idade Média
ignorava a perspectiva histórica, transformando os fatos e os acontecimentos mais heterogêneos e
distantes em fatos eacontecimentos contemporâneos, o Humanismo procurou entender o passado como
passado, a antigüidade como antigüidade, o outro como outro (cf. E. GARIN, Medioevo e Rinascimento,
1954, II, 5). A exigência de "reviver" o passado, de fazê-lo "voltar", seria falsificadora da história, se
tomada ao pé da letra (cf. H. 1. MARROU, De Ia connaissance historique, 1954, pp. 43 ss.), assim como
seria falsificadora da história, se tomada ao pé da letra, a exigência apresentada por Croce (Teoria e storia
delia storiografia, pp. 3 ss.; La storia comepensiero e come azione, 1938, p. 5), de que toda história seja
entendida como "história contemporânea". Um corolário da exigência da perspectiva histórica é o
afastamento em relação ao passado, que Nietzsche atribuía à história crítica (ao lado da história
arqueológica, que "conserva e venera", e da história monumental, que exalta e encoraja, Unzeitgemãsse
Betrachtungen, 1873, II), afastamento que Nietzsche entendia como abandono do passado e
encaminhamento do presente para novos caminhos, e que certamente é um dos ensinamentos da
historiografia. Mas há também um afastamento em relação ao presente, inerente à atitude historiográfica
preconizada sobretudo pelo Iluminismo, e expressa por P. Bayle em palavras que ficaram famosas: "O
historiador deve esquecer que pertence a certo país, que foi criado em certa comunidade, que seu destino
se deve a isto ou àquilo e que fulano e
WTORIOGRAFIA 511
HISTORIOGRAFIA
. ricrano são seus parentes ou seus amigos. Um ' htítoriador, enquanto tal, assim como Mel-=~
quisedeque, não tem pai, mãe, nem genealogia" '-- {fiktíonnaire, art. Usson, rem. F.). O ideal pro-• posto
por Bayle é difícil, para não dizer impos-Í ^vel, porque, como os historiadores hoje reco-í fhecem (cf., p.
ex., MARROU, op. cit., cap. II), a - interferência ativa dos interesses e das tendências do historiador
sempre condiciona, em cer-; femedida, os resultados da sua investigação e 9Sé mesmo a descoberta dos
fatos. Entretanto, a técnica da investigação historiográfica não tende mais a descarnar ou desumanizar o
historiador, como queria Bayle, mas a limitar e a disciplinar a interferência dos seus interesses na
pesquisa.
2
fi O conhecimento histórico é individualizante, porque individualizantes são os ins-tfymentos de que se
vale. A individualidade ouunicidade (não-repetibilidade), amiúde atribuída aos fatos históricos, na
verdade é reflexo dos instrumentos que os examinam (v. HISTÓRIA). Em primeiro lugar, todo
acontecimento histórico é individualizado pelos dois parâmetros fundamentais: cronologia e geografia.
Em segundo lugar, a documentação da H. tem caráter individualizante. Um documento, uma moeda, uma
inscrição sempre se referem a um único fato; o mesmo ocorre com o relato. Em terceiro lugar, têm caráter
individualizante os critérios de escolha historiográfica, porque tendem a pôr em evidência um fato entre
outros, a ressaltar seu significado ou sua importância, portanto o seu caráter de algum modo "singular" ou
"único". A unicidade do fato histórico às vezes foi criticada como caráter supostamente metafísico da
realidade histórica (cf. os textos citados no verbete HISTÓRIA, 4, 1), mas não poderá suscitar objeções, se
for entendida como resultado do caráter individualizante dos instrumentos historiográficos. Pode-se dizer
que o grau de individualidade do fato histórico deriva do grau de êxito que a investigação historiográfica
logra obter. Um fato se mostra não-repetível quando a investigação historiográfica consegue reconstruí-lo
em sua individualidade completa, mas essa individualidade é ideal historiográfico, mais que fato.
3
S
O conhecimento histórico é seletivo. Este é um dos pontos pacíficos na metodologia historiográfica (R.
ARON, Introduction à Ia philosophie de 1'histoire, 1948; ed. 1952, pp. 131 ss.; P. GARDINER, The Nature
of Histórica! Ex-planation, 1952, pp. 104 ss.; M. BLOCH, Apologie
pour 1'histoire, 1952, p. 2; H. I. MARROU, De Ia connaissance historique, 1954, pp. 209 ss.; W. DRAY,
Laws and Explanation in History, 1957, pp. 98 ss.; J. H. RANDALL, Nature andHistorical Experience,
1958, pp. 25, 45, etc). O caráter seletivo da H. também é reconhecido por K. POPPER, The Poverty of
Historicism, 1944, § 31, e pelo marxista L. GOLDMANN, Sciences humaines et philosophie, 1952, p. 4. J.
H. Randall ilustrou deste modo a função seletiva da H.: "O historiador deve fazer uma escolha. Na infinita
variedade de relações revelada pelos acontecimentos passados, deve escolher o que é importante ou
fundamental para a sua história. Para que a seleção não seja apenas aquilo que parece importante para ele,
para não ser subjetiva e arbitrária, deve ter um foco objetivo em alguma coisa que deve ser feita, em
alguma coisa que ele considere obrigatória ou imposta aos homens, em algum Aufgabe ou faciendum, em
algum trabalho que deve ser feito" {op. cit., p. 60). A possibilidade da escolha não implica a possibilidade
de que o passado mude. "Não que o passado em si mesmo possa mudar; o que pode mudar é a seleção que
o presente faz do passado. O que é significante e relevante no passado de cada coisa muda à medida que a
própria coisa muda e se desenvolve" {op. cit, p. 36). A escolha historiográfica é feita, em primeiro lugar,
em relação aos fatos, mas também, e simultaneamente, em relação às hipóteses que estão incorporadas na
própria verificação dos fatos. A escolha de uma hipótese não é necessariamente sugerida ao historiador
por suas próprias simpatias ou tendências; às vezes, como ocorre no caso de Tucídides, a hipótese que ele
apresenta e acha comprovada pelos fatos é contrária a todos os seus desejos. O pluralismo das escolhas,
isto é, a possibilidade de efetuar opções historiográficas diferentes e de mudar e corrigir as já efetuadas, é
uma das condições do conhecimento histórico. Por vezes, os filósofos tentaram limitar, por princípio, a
pluralidade das escolhas, ou seja, estabelecer um princípio que orientasse unilateralmente, em cada caso,
a seleção historiográfica. Foi o que fez Hegel, ao afirmar que a história é "história do espírito", obrigando
assim a escolha do historiógrafo a deter-se nas idéias e a declarar historicamente inexistente todo o resto.
Foi o que fez também o materíalismo histórico (v.), ao afirmar que a história é, em primeiro lugar,
história das "relações de produção de trabalho", e que todo o resto é "superestrutura", que
HISTORIOGRAFIA
512
HOMEM
não determina, mas decorre. Não há dúvida de que essas tentativas de limitação da escolha
historiográfica, especialmente a marxista, chamaram a atenção para fatos que podiam ser ou que eram
negligenciados, aguçando, por assim dizer, o olhar do historiador para caminhos menos trilhados. Em
última análise, porém, e se assumidos como princípios absolutos para a limitação das escolhas, negariam
a pluralidade das escolhas, impediriam a sua retificação, e acabariam por falsear a história, ocultando
esferas de fatos que não são os privilegiados por essa tendência.
4
S
O conhecimento histórico não visa à explicação causai, mas à explicação condicional. Embora não
falte quem ainda insista no caráter causai da explicação histórica (cf., p. ex. HEM-PEL, em Readings in
Philosophical Analysis, ed. Feigl. e Sellars, 1949, pp. 459 ss.; GARDINER, op cit., pp. 65 ss.), tende a
prevalecer entre os metodizadores da história a opinião de que as noções de causa e de lei têm pouca
possibilidade de aplicação no domínio historiográfico (como também, aliás, no domínio da física). Nesse
sentido, a obra citada de W. Dray é particularmente significativa (v. o verbete EXPLICAÇÃO). A
preferência pela explicação condicional reduz a importância da oposição entre explicação e compreensão,
que por certo tempo pareceu expressar a oposição entre ciências da natureza e ciências do espírito. De
fato, tanto a explicação quanto a compreensão consistem na determinação da possibilidade do objeto (v.
COMPREENSÃO).
5
a
O conhecimento histórico visa à determinação de possibilidades retrospectivas. Esta é uma
conseqüência da renúncia da H. ao esquema causai (que supõe a necessidade do objeto histórico) e do seu
recurso ao esquema condicional. Este esquema consiste na determinação de possibilidades, ou melhor, de
probabilidades retrospectivas. Essa característica já foi atribuída ao conhecimento histórico por Max
Weber: "A consideração do significado causai de um fato histórico começará com a seguinte pergunta:
excluindo os acontecimentos do conjunto de fatores considerados condicio-nantes, ou mudando-os para
determinado sentido, e tomando como base regras gerais da experiência, seu curso teria podido tomar
direção de algum modo diferente, nos aspectos decisivos para o nosso interesse?" (Kritische Studien auf
dem Geliet der kulturwissenschaftlichen Logik, 1906; trad. it. em // método delle scienze
storico-sociali, p. 223). Por certo, qualquer historiador julgaria sem sentido a tentativa feita por
Renouvier, em Uchronie, de imaginar "o desenvolvimento da civilização européia tal com poderia ter
sido, mas não foi". Contudo, como diz R. Aron: "Todo historiador, para explicar o que foi, pergunta-se o
que poderia ter sido. A teoria limita-se dar forma lógica a essa prática espontânea do homem comum"
(op. cit., p. 164; cf. MARROU, op. cit., p. 181). Por mais que os historiadores e os metodizadores da
história continuem a falar de "causa", o sentido que dão a essa palavra nada tem que ver com seu
significado tradicional: por isso, seria interessante que, à mudança conceituai já ocorrida, se seguisse a
mudança terminológica (Cf. uma bibliografia selecionada sobre a metodologia historiográfica em Theory
and Practice in Historical Study: a Report ofthe Committee on Historiography, 1942, e cf. sobre os
autores tratados neste verbete: P. Rossi, Storia estoricismo nelIa filosofia contemporânea, 1960).
HOLISMO (in. Holism-ír. Totalisme, ai. Ho-lismys; it. Olismó). 1. Uma variante da doutrina da evolução
emergente (v.), que consiste na inversão da hipótese mecanicista e em considerar que os fenômenos
biológicos não dependem dos fenômenos físico-químicos, mas o contrário. Esta hipótese nada mais é que
uma forma mal disfarçada de vitalismo. Cf. J. C. SMUTS, Holism and Evolution, 1927; J. S. HAL-DANE,
The Philosophical Basis of Biology, 1931; DRIESCH, Zur Kritik des Holismus, 1936.
2. K. Popper denominou H. a tendência dos historicistas em sustentar que o organismo social, assim como
o biológico, é algo mais que a simples soma dos seus membros e é também algo mais que a simples soma
das relações existentes entre os membros (The Poverty of Historicism, 1944, § 7).
HOLOMERIANOS (in. Holomerians; ai. Ho-lomerianer, it. Olomeriant). Henri Moore denominou
assim os que acreditam que a alma reside na totalidade do corpo, e não em parte dele. (Enchiridion
metaphysicum, I, 27, 1).
HOMEM (gr. &v8pCú7TOÇ; lat. Homo-, in. Man; fr. Homme, ai. Mench; it. Uomó). As definições de H.
podem ser agrupadas sob os seguintes títulos: ls
definições que se valem do confronto entre o H. e Deus;
2
Q
definições que expressam uma característica ou uma capacidade própria do H.; 3B
definições que
expressam a capacidade de autoprojetar-se como própria do H.
HOMEM
513
HOMEM
I
a As definições do primeiro grupo são de natureza religiosa e teológica, mas também podem ser
encontradas em doutrinas que nada têm de religioso e teológico. Qualquer definição desse gênero baseiase na expressão do Gênese. "E Deus disse: façamos o H. à nossa imagem e semelhança" (Gên., I, 26).
Esta expressão servia freqüentemente de ponto de partida para especulações sobre a alma, especialmente
sobre suas divisões (v. ALMA): na realidade, ela é a definição explícita do H. e, como tal, foi considerada
pelos teólogos da Reforma. Por outro lado, Aristóteles, ao tratar da vida contemplativa, falou de um
"elemento divino" do H., que, na mesma medida em que excede no todo que constitui o H., torna o H.
virtuoso e bem-aventurado (Et. nic, X, 6, 1177b 26). Mas esse tipo de definição do H. na tradição
filosófica teve como inspiração constante a Bíblia. Viram o H. como imagem de Deus: CAL-VINO
(Institutie, I, 15, 8) e ZWÍNGLIO (Deutsche Schrifter, I, 56). Através das ricas amplificações dejACOB
BOEHME (cf, p. ex., Aurora oder die Morgenrôthe im Aufgang, VI, I), esse conceito passou para a
filosofia romântica alemã. Spinoza dizia que "a essência do H. é constituída por certas modificações dos
atributos de Deus" (Et., II, 10. Corol.). Nas lições sobre a Destinação do douto, em 1794, Fichle apontava
como tarefa do H. adequar-se à unidade e à imutabilidade do Eu absoluto, segundo a máxima "age de tal
forma que possas considerar a máxima da tua vontade uma lei eterna para ti" (Über die Bestimmung des
Gelehrten, 1794, I). Mas o Eu absoluto é o princípio ou a substância do H., e sua unidade e sua
imutabilidade são apenas a unidade e a imutabilidade de Deus, de tal forma que a melhor maneira de
expressar a doutrina de Fichte a esse respeito é que o H., em seu princípio ideal, é Deus e deve esforçar-se
por tornar-se tal. Analogamente, para Hegel o H. é essencialmente Espírito e o Espírito é Deus. Diz:
"Conquanto considerado finito por si mesmo, o H. é também imagem de Deus e fonte da infinidade em si
mesmo, pois é o fim de si mesmo e tem em si mesmo o valor infinito e a destinação para a eternidade"
(Philosophie der Geschichte, ed. Gloekner, p. 427). Hegel define cristianismo como a posição de
"unidade do H. e de Deus" (Ibid., p. 416). Nessas definições de H., a relação do H. com Deus é vista de
forma positiva.
Mas essa relação pode ser vista de modo negativo ou invertido, permanecendo substancialmente a mesma. Feuerbach, p. ex., diz que o H. se revela e se define no seu conceito de Deus. "O ser
absoluto, o Deus do H., é o ser do H.", diz ele (Wesen des Christentum, § 1). Aquilo que o H. pensa de
Deus é a definição de H.: "Pensas o infinito? Então pensas e afirmas a infinidade do poder do
pensamento. Sentes o infinito? Sentes e afirmas a infinidade do poder do sentimento" (Ibid?). As teses de
existência ou inexistência de Deus não influem nessas definições de H., que se ancoram ao confronto
entre o H. e Deus. Assim, em Nietzsche, após a proclamação de que "Deus morreu", Zaratustra anuncia o
Super H., como aquilo que está além do H. "A grandeza do H. está no fato de que ele é ponte e não fim: o
que pode fazê-lo amar é o fato de ser ele uma passagem e um ocaso" (Alsosprach Zarathustra, Prol., § 4).
Em sentido análogo ao de Feuerbach e Nietzsche, mas acrescido do conceito de fracasso ao qual o H. está
destinado, Sartre disse: "Se o H. possui uma compreensão pré-ontológica do ser de Deus, ela não lhe foi
conferida pelos grandes espetáculos da natureza nem pelo poderio da sociedade: mas Deus, valor e
objetivo supremo da transcendência, representa o limite permanente a partir do qual o H. se anuncia
aquilo que ele é. Ser H. é tender para Deus; ou, se assim preferirem, o H. é fundamentalmente desejo de
ser Deus" (Uêtre et le néant, pp. 653-54).
2
S
As definições que exprimem uma característica ou uma capacidade atribuída ao H. são numerosas; a
primeira e mais famosa é a definição de H. como "animal racional". Essa definição expressa bem o ponto
de vista do Iluminismo grego e o espírito das filosofias de Platão e Aristóteles. Mas não se encontra
explicitamente em Platão, que teria dito somente que o H. é animal "capaz de ciência" (Def., 415a),
determinação que Aristóteles repete, considerando-a como peculiaridade do H. (Top., V, 4, 133 a 20). Mas
em Política Aristóteles afirma que "o H. é o único animal que possui razão", e que a razão serve para
indicar-lhe o útil e o pernicioso, portanto também o justo e o injusto (Pol, I, 2, 1253a 9; cf. VII, 13,
1382b, 5). Aceita pelos estóicos (SEXTO EMPÍRICO, Pirr. hyp., II, 26; J. STOBEO, Ecl, II, 132), essa
definição tornou-se clássica e a ela recorrem habitualmente os escritores medievais (cf, p. ex., S. TOMÁS,
S. Th., II, 1, q. 71, a. 2; II, 2, q. 34, a. 5). É essa a única definição que penetrou na cultura comum, e os
filósofos também se referem a ela
HOMEM
514
HOMEM
para introduzir variações que se coadunem com o sentido específico que dêem à palavra razão. P. ex., a
definição de Rosmini, "o H. é um sujeito animal dotado da intuição do ser ideal indeterminado"
(Antropologia, § 23), expressa a mesma coisa que a definição tradicional, porque, para Rosmini, a
"percepção do ser ideal indeterminado" é a razão (Nuovo saggio, § 396). A definição de De Bonald,
famosa por algum tempo, "o H. é uma inteligência servida por órgãos" (CEuvres, 1864,1, p. 41; III, p.
149), também nada mais é que uma paráfrase da definição tradicional, porquanto nela o "serviço dos
órgãos" é equivalente a "animalidade". É ainda mais famosa a definição de Pascal, "o H. nada mais é que
um junco, o mais frágil da natureza, mas é um junco pensante" (Pensées, 347), que também pode ser
considerada variante da definição tradicional, em que a conotação da fragilidade natural do H. tomou o
lugar da "animalidade". Por outro lado, Descartes dispensara a animalidade e reduzira o H. a pensamento,
como consciência imediata: "Para falar com precisão, sou apenas uma coisa que pensa, um espírito, um
intelecto ou uma razão" (Méd., II). Mas, na definição tradicional, a animalidade servia, por um lado, para
explicar a óbvia limitação da atividade pensante do H. e, por outro, para reconhecer no H. um ser terrestre
ou mundano, que necessita de órgãos. Em sentido cartesiano, Husserl disse: "Se o H. é um ser racional
(.animal rationalé), só o é na medida em que toda a sua humanidade é uma humanidade racional, na
medida em que é la-tentemente orientado para a razão ou abertamente orientado para a enteléquia que se
revelou e guia, conscientemente e por necessidade essencial, o devir humano" (Krisis, 1954, § 6). A
última e mais atualizada versão da antiga definição diz que o H. é um animal simbólico, ou seja, um
animal que fala (CASSIRER, Essay on Man, cap. II). Esta característica, na verdade, estava presente no
mesmo termo grego que significa razão: logos, que é o discurso racional ou a razão que se faz discurso.
Na filosofia contemporânea, essa definição serve para expressar o poder condicionante da linguagem, do
comportamento sígnico em todas as atividades do homem. Esse poder dificilmente poderia ser exagerado,
e a definição em pauta está, com justiça, entre as mais difundidas e aceitas na filosofia contemporânea.
Contudo, não pode ser compreendida sem levar em conta a característica da autoprojetabilidade, que o terceiro grupo de definições atribui ao homem.
Uma segunda e mais específica determinação, que tem servido freqüentemente para definir o H., é sua
natureza política, sociável. Já mencionada por Platão (De/., 415a), esta determinação é estreitamente
ligada por Aristóteles à natureza racional do homem. "Quem não pode fazer parte de uma comunidade ou
quem não precisa de nada, bastando-se a si mesmo, não é parte de uma cidade, mas é fera ou Deus" (Pol.,
I, 2, 1253 a 27). Obviamente, para Aristóteles, é estreita a conexão entre racionalidade e política,
podendo-se dizer o mesmo de todos aqueles que, depois dele, adotarem a mesma definição. Hobbes, que
combatia essa definição, interpretava-a como se significasse: "O H. está apto, desde o nascimento, a viver
em sociedade"; afirmava que, nesse sentido, ela é falsa, porque o H. só se torna apto para a vida social
graças à educação (De eive, I, 2, e nota). Mas o significado mais óbvio dessa definição é que o H. não
pode deixar de viver em sociedade; nesse sentido, nem mesmo Hobbes duvida de sua fundamental
exatidão. No entanto, essa definição não foi proposta para determinar a natureza do H. em sua totalidade.
Quem tem a pretensão de expressar a totalidade do H. é Bergson: "Se pudéssemos despir-nos do nosso
orgulho, se, para definir nossa espécie, nos ativéssemos estritamente àquilo que a história e a pré-história
nos apresentam como característica constante do H. e da inteligência, talvez não disséssemos Homo
sapiens, mas Homofaber. Em conclusão, a inteligência, considerada naquilo que parece ser a sua tarefa
original, é a faculdade de fabricar objetos artificiais, particularmente utensílios para fazer utensílios, e de
variar indefinidamente a fabricação deles" (Évol. créatr., 8
a
ed., 1911, p. 151). Na realidade, porém, o
próprio Bergson admite que em torno da inteligência há um "halo de instinto", considerando possível o
retorno da inteligência ao instinto, por meio da intuição-. isso deveria significar que o H. não é apenas
Homo faber.
3
S
O terceiro grupo de definições compreende as que interpretam o homem como possibilidade de
autoprojeção. Quase todas as definições do segundo grupo, mesmo partindo de uma única determinação
do H., considerada própria e fundamental, interpretam-na, explícita ou implicitamente, como
possibilidade,
HOMEM
515
HOMEM
como capacidade ou disposição. Ao defender a definição do H. como animal racional, Leibniz observa
que o fato de os idiotas carecerem da razão não é uma objeção contra ela: basta que eles, mesmo que
apenas com seu corpo, mostrem um indício de racionalidade (Nouv. ess., HI, 6, 22). Mas, na realidade, já
em Aristóteles está suficientemente claro que a razão é uma possibilidade ou capacidade de juízo, não
uma determinação necessitante, que somente a esse título constitui a definição do homem. O caráter
indeterminado do H. talvez estivesse disfarçado na expressão de Demócrito: "O H. é aquilo que todos nós
sabemos" (Fr. 165, Diels), mas está claramente expresso nas especulações dos neoplatônicos da
Antigüidade e do Renascimento sobre a "natureza média" ou "central" do homem. Plotino já afirmava a
este propósito: "O lugar do H. é no meio, entre os deuses e os animais; às vezes tende para uns, às vezes
para outros; alguns homens assemelham-se aos deuses; outros, às feras; a maioria fica no meio" (Enn., III,
2, 8). Esse pensamento foi ilustrado no séc. EX por Scotus Erigena: "Não foi sem razão que o H. foi
denominado oficina de todas as criaturas, de fato, todas as criaturas estão nele contidas. Ele entende
como o anjo, raciocina como o H., sente como o animal irracional, vive como um germe, constitui-se de
alma e corpo e não está isento de coisa alguma criada" (De divis. nat., III, 37). Esses pensamentos são
repetidos no Renascimento por Nicolau de Cusa (De visione Dei, 6; Exci-tationes, V; De ludo globi, II) e
por Marsílio Ficino (Theol. Plat, III, 2), e ambos transferem-nos para a alma do H.; Ficino chama a alma
de cópula do mundo. Mas estão expressos de maneira clássica na oração De hominis dig-nitate, de Pico
delia Mirandola, em que Deus diz: "Não te dei, Adão, um lugar determinado, um aspecto próprio, nem
prerrogativa alguma, porque esse lugar, esse aspecto e essas prerrogativas que venhas a desejar, tudo
segundo tua vontade e teu discernimento, deves obter e conservar. A natureza limitada dos outros está
contida em leis por mim prescritas. Tu determi-narás as tuas sem seres impedido por barreiras, segundo o
teu arbítrio, a cujo poder te confiei. — Pus-te no meio do mundo, para que de lá avistasses tudo o que
nele existe. Não te fiz celeste nem terreno, mortal nem imortal, para que, como livre e soberano artífice de
ti mesmo, te plasmasses e esculpisses na forma que melhor te aprouvesse. Poderás degenerar para
as coisas inferiores; poderás, segundo o teu desejo, regenerar-te nas coisas superiores, que são divinas"
(De hom. dign., f. 131 r). Com certeza, a ilimitada capacidade de autoprojeção do H. nunca mais foi
exaltada com tanta eloqüência e com otimismo tão confiante quanto nesta página de Pico delia Mirandola.
Todavia, o conceito iluminista de H. como razão projetante, limitada e impedida, mas eficaz, pode ser
considerado decorrente do conceito renascentista do homem. Kant dizia: "Numa criatura, a razão é o
poder de entender além dos instintos naturais as normas e os fins de uso de todas as suas atividades; ela
não conhece limites para os seus desígnios. No entanto, a razão não age instintivamente, mas por
tentativas, com o exercício e aprendendo, para elevar-se pouco a pouco e passar de um grau de
conhecimento a outro" (Idee zu einer allgemeinen Geschichte in Weltbürgerlicher Absicht, 1784, tese II).
Kant julga, portanto, que só através da história da espécie humana na terra o homem realiza a sua
natureza, que é a liberdade de autopro-jetar-se com a razão, especialmente de projetar para si uma
sociedade civilizada alicerçada totalmente no direito. Essas idéias expressam bem o ponto de vista do
iluminismo, ao qual o próprio Kant as atribuía. Com maior clareza ainda, Kant assim descrevia o caráter
da espécie humana: "Para poder atribuir ao H. o seu lugar no sistema da natureza viva e assim caracterizálo, só resta dizer que ele tem o caráter que ele mesmo faz, porquanto sabe aperfeiçoar-se segundo os fins
por ele mesmo criados; por isso, de animal capaz de raciocinar (animal rationabilé), pode tornar-se
sozinho animal que raciocina (animal rationalé)" (Antr., II, e). Na filosofia contemporânea, esse conceito
de homem foi herdado pelo existencialismo e pelo instrumentalismo americano. Por um lado, eles frisam
que o H. é aquilo que ele mesmo pode e quer tornar-se, e por isso é constantemente problema para si
mesmo e solução para esse problema, que projeta continuamente seu modo de ser ou de viver e que este
projeto passa a constituir, em algum grau ou medida, seu modo de ser ou de viver efetivo. Por outro lado,
ambas as correntes reconhecem as limitações dessa possibilidade de projetar, que agem especialmente no
fato de que, em certa medida, cada projeto já encontra como dados(como relativamente não modificáveis)
os elementos que utiliza, que tudo o que ele pode projetar para o futuro já foi, de qualquer modo ou
HOMEOMERIAS
516
HOMO HOMO
forma, no passado, e que, portanto, o passado condiciona, em certos limites (considerados mais ou menos
amplos), o futuro do homem. É neste sentido que Heidegger disse que o projeto é o modo de ser
fundamental do H. {Sein undZeit, § 31) e Sartre falou de um projeto fundamental do mundo {Vêtreetle
néant, p. 540). No mesmo sentido, John Dewey falou da mu-tabilidade da natureza humana e dos seus
chamados instintos ou impulsos fundamentais {Human Nature and Conduct, pp. 95 ss.; 106 ss.).
Heidegger insistiu também sobre a limitação da possibilidade de projetar, uma vez que todo projeto
incidiria e se achataria naquilo que já foi, nisso consistindo a facticidade do H. (v. PROJETO). Sartre
insistiu na liberdade absoluta da possibilidade de projetar e considerou puramente arbitrária ou gratuita a
escolha de um projeto qualquer {L'être et le néant, p. 721). Por outro lado, Dewey retomou o conceito
iluminista de racionalidade (que é ao mesmo tempo condicionamento e liberdade) dos projetos humanos,
e o existencialismo positivo deu ênfase aos mesmos caracteres de auto-projeçâo (cf. ABBAGNANO,
Possibilita e liberta, 1956,1, 7; II, 3; etc). Aliás, hoje parece que até os biólogos compartilham dessa
concepção. G. G. Simpson diz: "O H. pode optar por desenvolver suas capacidades como animal superior
e tentar erguer-se ainda mais, ou sua escolha pode ser outra. A escolha é responsabilidade sua e apenas
sua. Não existe automatismo que o eleve sem escolha ou esforço, nem existe uma tendência unilateral na
direção certa. A evolução não tem objetivos; o H. deve dar objetivos a si mesmo" {The Meaning of Evolution, 6
a
ed., 1952, p. 310).
HOMEOMERIAS (gr. ÓLioiOLiépetou; in. Homeomeries; fr. Homéoméries; ai. Homoio-merien; it.
Omeomerié). Com esta palavra, que significa "partes semelhantes", Aristóteles denominou as partículas,
ou seja, as partes (que não são elementos, porque sempre divisíveis) que, segundo Anaxágoras, compõem
um corpo e que são semelhantes a esse corpo. Assim, mesmo que em cada corpo existam partículas ou
grãos de todos os outros corpos, em cada um predomina certa espécie de partículas, que dá nome ao corpo
(ARISTÓTELES, De cael., III, 3, 302b 3; Met., I, 3, 984a 14; cf. DIÓG. L., II, 8; LUCRÉCIO, De rer. nat., I,
830; SEXTO EMPÍRICO, Adv. math., X, 25).
HOMINISMO (ai. Hominismus). Termo criado por Windelband para designar o relativismo, doutrina em que o homem é a medida de todas as coisas (v. RELATIVISMO).
HOMO FABER. É a definição de homem feita por Bergson, que viu na inteligência, característica
fundamental do homem, a faculdade de fabricar instrumentos inorganizados {La pensée et le mouvant,
1934, p. 105) (v. INTELIGÊNCIA).
HOMOGENEIDADE (in. Homogeneity, fr. Homogénéité, ai. Homogeneitàt; it. Omogenei-ta). Relação
entre coisas que pertencem ao mesmo gênero (p. ex., branco e preto), ou que têm a mesma composição (p.
ex., as partes de um objeto composto do mesmo material), ou que têm entre si partes semelhantes, que se
correspondem termo a termo (p. ex., dois relógios construídos da mesma maneira). Spencer usou esse
termo no sentido de não diferenciação e definiu a evolução como a passagem do homogêneo para o
heterogêneo, ou seja, do que não é diferenciado para o que é diferenciado em partes entre si diferentes
{First Principies, § 145).
Kant denominou "princípio da H." a norma da razão de procurar unificações conceptuais cada vez mais
amplas, gêneros cada vez mais elevados; essa norma seria a contraposição simétrica da norma de
especificação (v.), com esta confluindo na lei de afinidade (v.) {Crít. R. Pura, Apêndice à dialética
transcendental). Hamilton repetiu substancialmente essas noções de Kant e denominou "lei de H." o
enunciado segundo o qual "dois conceitos, por mais diferentes que sejam um do outro, sempre podem
subordinar-se a um conceito superior; em outros termos, as coisas mais dessemelhantes devem, em alguns
aspectos, ser semelhantes". Ao lado desta, Hamilton enunciou também "a lei de heterogeneidade",
segundo a qual "todo conceito contém abaixo de si outros conceitos e por isso, quando dividido, desce
sempre para outros conceitos, nunca para indivíduos; em outros termos, as coisas mais homogêneas ou
semelhantes devem, sob certos aspectos, ser heterogêneas ou dessemelhantes". Segundo Hamilton, essas
duas leis governam toda a classificação das coisas em gêneros e espécies (HAMILTON, Lectures on Logic,
§ 40; vol. I, 2- ed., 1865, pp. 209-10).
HOMO HOMO. É a definição de sábio feita pelo humanista francês Charles de Bouelles (1470 ou 1475-
1553 aproximadamente) em seu livro De sapiente. O sábio é a perfeição do homem porque é o homem
que se formou com a
HOMOIUSIA OU HOMUSIA
517
HORIZONTE
sua inteligência e adquiriu consciência de si mesmo e do mundo (De sapiente, 22).
HOMOIUSIA ou HOMUSIA (gr. ÓLtoiouaía, ójiouoía). Diz-se que toda a disputa teológica, que
culminou com o Concilio de Nicéia (325), girava em torno de uma semivogal, ou seja, da diferença entre
homoiusia, doutrina de Ário que admitia apenas a semelhança entre a substância de Deus-Pai e a do
Logos, e a homusia, doutrina de Atanásio, que admitia a identidade da substância de Deus-Pai com a do
Logos. A decisão do Concilio a favor da homusia estabeleceu a principal base dogmática da teologia
cristã.
HOMOLOGIA (gr. óuota)YÍ(X; in. Homology, ir. Homologie, ai. Homologie, it. Ontologia). 1. Para os
estóicos, este era o termo técnico para designar a conformidade com a natureza como norma fundamental
de conduta (J. STOBEO, Ecl, D, 76, 3); termo que Cícero traduziu por cow-venientia (Definibus, III, 6, 21).
2. Hoje, H. é um conceito científico que tem várias definições nas diferentes disciplinas. Em geometria
denominam-se homólogos os elementos de duas figuras semelhantes que se correspondem. Em biologia
são chamados homólogos os órgãos que se correspondem pela sua situação em relação ao organismo
todo, mesmo não exercendo a mesma função, como se verifica com os órgãos análogos (v. ANALOGIA).
HOMONIMIA (in. Homonymy, fr. Homony-mte, ai. Homonymie, it. Omonimiá). Aristóteles designa
assim a ambigüidade de um termo, ou seja, o fato de um mesmo termo ser usado para denotar coisas
diferentes. A H. de frase denomina-se anfibolia (v.) (v. EQUÍVOCO; UNÍVOCO). HOMOTEÍSMO (in.
Homotheism; ai. Ho-motheismus; it. Omoteismo). O mesmo que an-tropomorfismo (v.). Termo criado por
Ernest Haeckel.
HONRA (gr. mu.r|; in. Honor, fr. Honneur, ai. Ehre, it. Onoré). Toda manifestação de consideração e
estima tributada a um homem por outros homens, assim como a autoridade, o prestígio ou o cargo de que
o reconheçam investido. Os antigos consideravam a H. como um dos bens fundamentais da vida social;
Aristóteles reconheceu que há uma virtude em relação à H. assim como há uma virtude (libe-ralidade) em
relação ao dinheiro. Essa virtude é a magnanimidade (v.), cujo excesso é a ambição e cuja deficiência é a
pusilanimidade (Et. nic, II, 7,1107b 20). Essa grande importância atribuída à H., considerada "o prêmio
da
virtude e do bem fazer" (Ibid., VIII, 14, 1163 b 3), provém da ética grega, da qual passou para os
costumes e o direito da tradição ocidental, em sua formulação aristocrática. No mundo moderno, a
"respeitabilidade" é o análogo desse antigo conceito. E óbvio, todavia, que "o bem fazer" (eúepTEOÍa) —
cujo prêmio, segundo Aristóteles, deveria ser a H., além de sê-lo para a virtude — inclui boa dose de
conformismo aos preconceitos dominantes no grupo ou na classe social que confere a H. e ao análogo
moderno da H. a respeitabilidade, não incluída uma dose menor de conformismo. Portanto, não é de
surpreender que a H. tenha freqüentemente sugerido e continue sugerindo ações imorais, maléficas, ou
verdadeiros delitos, tanto na vida privada quanto nas relações entre os povos, em que a H. muitas vezes
desempenha papel predominante no nascimento e na perpetuação de conflitos.
HORIZONTE (gr. rcepiéxov; lat. Horizon; in. Horizon; fr. Horizon; ai. Horizont; it. Oriz-zonté). Limite
que circunscreve as possibilidades de uma investigação, de um pensamento ou de uma atividade qualquer:
limite que pode deslocar-se, mas que volta a mostrar-se após cada deslocamento. Esse termo foi
introduzido na filosofia por Anaximandro (séc. VI a.C), que considerou o Princípio (infinito ou apeirorí)
como aquilo que "abarca todas as coisas e as dirige" (ARISTÓTELES, FÍS., III, 4, 203b 11).
No sentido moderno, esse conceito foi elucidado por Kant, que entendeu por horizonte o limite ou a
medida de extensão do conhecimento e distinguiu o horizonte lógico, referente aos poderes cognoscitivos
em relação ao interesse do intelecto, o horizonte estético, referente ao gosto em relação ao interesse do
sentimento, e o horizonte pratico, referente ao útil em relação ao interesse da vontade. Em geral, "o
horizonte concerne ao juízo e à determinação daquilo que o homem pode saber, consegue saber e deve
saber"; pode ser objetivo, sendo então histórico ou racional, ou subjetivo, sendo então universal ou
absoluto, particular ou privado (Logik, Einleitung, § VI, A).
Essa noção foi retomada na filosofia contemporânea primeiramente por Husserl, que entendeu o H. como
limite temporal (compreendido como presente ou agora), no qual estão todas as vivências (Ideen, I, § 82),
e depois por Jaspers, graças a quem passou para o atual uso filosófico. Jaspers diz: "Sempre vivemos e
pensamos num H. circunscrito. Pelo fato
HOMEOMERIAS
516
HOMO HOMO
forma, no passado, e que, portanto, o passado condiciona, em certos limites (considerados mais ou menos
amplos), o futuro do homem. É neste sentido que Heidegger disse que o projeto é o modo de ser
fundamental do H. (Sein undZeit, § 31) e Sartre falou de um projeto fundamental do mundo (Lêtreetle
néant, p. 540). No mesmo sentido, John Dewey falou da mu-tabilidade da natureza humana e dos seus
chamados instintos ou impulsos fundamentais (Human Nature and Conduct, pp. 95 ss.; 106 ss.).
Heidegger insistiu também sobre a limitação da possibilidade de projetar, uma vez que todo projeto
incidiria e se achataria naquilo que já foi, nisso consistindo a facticidade do H. (v. PROJETO). Sartre
insistiu na liberdade absoluta da possibilidade de projetar e considerou puramente arbitrária ou gratuita a
escolha de um projeto qualquer (Vêtre et le néant, p. 721). Por outro lado, Dewey retomou o conceito
iluminista de racionalidade (que é ao mesmo tempo condicionamento e liberdade) dos projetos humanos,
e o existencialismo positivo deu ênfase aos mesmos caracteres de auto-projeção (cf. ABBAGNANO,
Possibilita e liberta, 1956,1, 7; II, 3; etc). Aliás, hoje parece que até os biólogos compartilham dessa
concepção. G. G. Simpson diz: "O H. pode optar por desenvolver suas capacidades como animal superior
e tentar erguer-se ainda mais, ou sua escolha pode ser outra. A escolha é responsabilidade sua e apenas
sua. Não existe automatismo que o eleve sem escolha ou esforço, nem existe uma tendência unilateral na
direção certa. A evolução não tem objetivos; o H. deve dar objetivos a si mesmo" (The Meaning of Evolution, 6
S
ed., 1952, p. 310).
HOMEOMERIAS (gr. ÓLioiouipeiou; in. Homeomeries; fr. Homéoméries; ai. Homoio-meriert; it.
Omeomerié). Com esta palavra, que significa "partes semelhantes", Aristóteles denominou as partículas,
ou seja, as partes (que não são elementos, porque sempre divisíveis) que, segundo Anaxágoras, compõem
um corpo e que são semelhantes a esse corpo. Assim, mesmo que em cada corpo existam partículas ou
grãos de todos os outros corpos, em cada um predomina certa espécie de partículas, que dá nome ao corpo
(ARISTÓTELES, De cael., III, 3, 302b 3; Met., I, 3, 984a 14; cf. DiÓG. L., II, 8; LUCRÉCIO, De rer. nat., I,
830; SEXTO EMPÍRICO, Adv. math., X, 25).
HOMINISMO (ai. Hominismus). Termo criado por Windelband para designar o relativismo, doutrina em que o homem é a medida de todas as coisas (v. RELATIVISMO).
HOMO FABER. É a definição de homem feita por Bergson, que viu na inteligência, característica
fundamental do homem, a faculdade de fabricar instrumentos inorganizados (La pensée et le mouvant,
1934, p. 105) (v. INTELIGÊNCIA).
HOMOGENEIDADE (in. Homogeneity, fr. Homogénéité, ai. Homogeneitát; it. Omogenei-tã). Relação
entre coisas que pertencem ao mesmo gênero (p. ex., branco e preto), ou que têm a mesma composição (p.
ex., as partes de um objeto composto do mesmo material), ou que têm entre si partes semelhantes, que se
correspondem termo a termo (p. ex., dois relógios construídos da mesma maneira). Spencer usou esse
termo no sentido de não diferenciação e definiu a evolução como a passagem do homogêneo para o
heterogêneo, ou seja, do que não é diferenciado para o que é diferenciado em partes entre si diferentes
(First Principies, § 145).
Kant denominou "princípio da H." a norma da razão de procurar unificações conceptuais cada vez mais
amplas, gêneros cada vez mais elevados; essa norma seria a contraposição simétrica da norma de
especificação (v.), com esta confluindo na lei de afinidade (v.) (Crít. R. Pura, Apêndice à dialética
transcendental). Hamilton repetiu substancialmente essas noções de Kant e denominou "lei de H." o
enunciado segundo o qual "dois conceitos, por mais diferentes que sejam um do outro, sempre podem
subordinar-se a um conceito superior; em outros termos, as coisas mais dessemelhantes devem, em alguns
aspectos, ser semelhantes". Ao lado desta, Hamilton enunciou também "a lei de heterogeneidade",
segundo a qual "todo conceito contém abaixo de si outros conceitos e por isso, quando dividido, desce
sempre para outros conceitos, nunca para indivíduos; em outros termos, as coisas mais homogêneas ou
semelhantes devem, sob certos aspectos, ser heterogêneas ou dessemelhantes". Segundo Hamilton, essas
duas leis governam toda a classificação das coisas em gêneros e espécies (HAMILTON, Lectures on Logic,
§ 40; vol. I, 2- ed., 1865, pp. 209-10).
HOMO HOMO. É a definição de sábio feita pelo humanista francês Charles de Bouelles (1470 ou 1475-
1553 aproximadamente) em seu livro De sapiente. O sábio é a perfeição do homem porque é o homem
que se formou com a
H0MOIUSIA ou HOMUSIA
517
HORIZONTE
sua inteligência e adquiriu consciência de si ajesmo e do mundo (De sapiente, 22). . HOMOIUSIA ou
HOMUSIA (gr. ÓLtoiouoía, óüfllKTÍa). Diz-se que toda a disputa teológica, que culminou com o
Concilio de Nicéia (325), prava em torno de uma semivogal, ou seja, da diferença entre homoiusia,
doutrina de Ário que admitia apenas a semelhança entre a substância de Deus-Pai e a do Logos, e a
homusia, : doutrina de Atanásio, que admitia a identidade da substância de Deus-Pai com a do Logos. A
decisão do Concilio a favor da homusia estabeleceu a principal base dogmática da teologia cristã.
HOMOLOGIA (gr. ó|J.oÀ.OYÍ(X; in. Homology, k. Homologie, ai. Homologie, it. Ontologia). 1. Para
os estóicos, este era o termo técnico para ' designar a conformidade com a natureza como norma
fundamental de conduta (J. STOBEO, Ecl, D, 76, 3); termo que Cícero traduziu por con-venientia
(Definibus, III, 6, 21). 2. Hoje, H. é um conceito científico que tem várias definições nas diferentes
disciplinas. Em geometria deno-fflinam-se homólogos os elementos de duas figuras semelhantes que se
correspondem. Em biologia são chamados homólogos os órgãos que se correspondem pela sua situação
em relação ao organismo todo, mesmo não exercendo a mesma função, como se verifica com os órgãos
análogos (v. ANALOGIA).
HOMONIMIA (in. Homonymy, fr. Homony-mie, ai. Homonymie, it. Omonimiá). Aristóteles designa
assim a ambigüidade de um termo, ou seja, o fato de um mesmo termo ser usado para denotar coisas
diferentes. A H. de frase denomina-se anfibolia (v.) (v. EQUÍVOCO; UNÍVOCO). HOMOTEÍSMO (in.
Homotheism; ai. Ho-motheismus; it. Omoteismó). O mesmo que an-tropomorfismo (v.). Termo criado por
Ernest Haeckel.
HONRA (gr. 7tiuf|; in. Honor, fr. Honneur, ai. Ehre, it. Onoré). Toda manifestação de consideração e
estima tributada a um homem por outros homens, assim como a autoridade, o prestígio ou o cargo de que
o reconheçam investido. Os antigos consideravam a H. como um dos bens fundamentais da vida social;
Aristóteles reconheceu que há uma virtude em relação à H. assim como há uma virtude (libe-ralidade) em
relação ao dinheiro. Essa virtude é a magnanimidade (v.), cujo excesso é a ambição e cuja deficiência é a
pusilanimidade (Et. nic, II, 7,1107b 20). Essa grande importância atribuída à H., considerada "o prêmio
da
virtude e do bem fazer" (Ibid., VIII, 14, 1163 b 3), provém da ética grega, da qual passou para os
costumes e o direito da tradição ocidental, em sua formulação aristocrática. No mundo moderno, a
"respeitabilidade" é o análogo desse antigo conceito. É óbvio, todavia, que "o bem fazer" (euepYEaía) —
cujo prêmio, segundo Aristóteles, deveria ser a H., além de sê-lo para a virtude — inclui boa dose de
conformismo aos preconceitos dominantes no grupo ou na classe social que confere a H. e ao análogo
moderno da H. a respeitabilidade, não incluída uma dose menor de conformismo. Portanto, não é de
surpreender que a H. tenha freqüentemente sugerido e continue sugerindo ações imorais, maléficas, ou
verdadeiros delitos, tanto na vida privada quanto nas relações entre os povos, em que a H. muitas vezes
desempenha papel predominante no nascimento e na perpetuação de conflitos.
HORIZONTE (gr. Ttepiéjcov; lat. Horizon; in. Horizon; fr. Horizon; ai. Horizont; it. Oriz-zontè). Limite
que circunscreve as possibilidades de uma investigação, de um pensamento ou de uma atividade qualquer:
limite que pode deslocar-se, mas que volta a mostrar-se após cada deslocamento. Esse termo foi
introduzido na filosofia por Anaximandro (séc. VI a.C), que considerou o Princípio (infinito ou apeirori)
como aquilo que "abarca todas as coisas e as dirige" (ARISTÓTELES, Fís., III, 4, 203b 11).
No sentido moderno, esse conceito foi elucidado por Kant, que entendeu por horizonte o limite ou a
medida de extensão do conhecimento e distinguiu o horizonte lógico, referente aos poderes cognoscitivos
em relação ao interesse do intelecto, o horizonte estético, referente ao gosto em relação ao interesse do
sentimento, e o horizonte prático, referente ao útil em relação ao interesse da vontade. Em geral, "o
horizonte concerne ao juízo e à determinação daquilo que o homem pode saber, consegue saber e deve
saber"; pode ser objetivo, sendo então histórico ou racional, ou subjetivo, sendo então universal ou
absoluto, particular ou privado (Logik, Einleitung, § VI, A).
Essa noção foi retomada na filosofia contemporânea primeiramente por Husserl, que entendeu o H. como
limite temporal (compreendido como presente ou agora), no qual estão todas as vivências (Ideen, I, § 82),
e depois por Jaspers, graças a quem passou para o atual uso filosófico. Jaspers diz: "Sempre vivemos e
pensamos num H. circunscrito. Pelo fato
HORMICA, TEORIA
518
HUMANISMO
mesmo de tratar-se de um H., temos o pressentimento de um H. mais vasto, que compreenda, por sua vez,
o H. alcançado: surge assim o problema de um H. que abarque qualquer outro H. (H. conglobante, das
Umgreifendè). No H. conglobante têm-se todos os tipos de realidade e de verdade, mas é também aquilo
em que cada H. está compreendido, como naquele H. que tudo engloba e que não é mais pensável como
H." (Vernunft undExistenz, 1935, p. 29). Enquanto o conceito de H. conglobante, que é o H. de todos os
horizontes possíveis, é típico da filosofia de Jaspers, o conceito de H. pode ser utilmente empregado por
qualquer corrente filosófica para designar os limites de validade de determinada investigação ou o tipo de
validade a que aspiram os instrumentos utilizados (cf. C. D. BURNS, The Horizon of Experience, 1934;
ABBAGNANO, Possibilita e liberta, 1956, pp. 95 ss.).
HORMICA, TEORIA (in. Hormic theory, it. Teoria ormicd). Assim é comumente denominada, na
literatura anglo-saxônica, a teoria segundo a qual as emoções dependem de certos instintos fundamentais
(óp(xr| = instinto), que estariam na base de toda a atividade psíquica. Essa teoria foi defendida por G. F.
Stout, J. Dewey, S. Alexander, T. P. Nunn (o primeiro a empregar essa expressão) e, principalmente, por
W. McDougall. Sobre a mesma, v. J. C. FLU-GEL, Studies in Feeling and Desire, London, 1955 (v.
EMOÇÃO).
HUMANIDADE (lat. Humanitas; in. Hu-manity, fr. Humanité, ai. Humanitãt, Mensch-heit; it. Umanitã).
Esse termo tem os seguintes significados principais:
l
s
Forma acabada, ideal ou espírito do homem. Era nesse sentido que os antigos usavam a palavra
humanitas, correspondente ao grego paidéia, da qual derivou o substantivo humanismo (v.) e seu
conceito. Em sentido análogo, Humboldt considerava como fim da história "a realização da idéia de H."
(Schriften, IV, p. 55).
2° Substância ou essência do homem, no significado aristotélico adotado pela metafísica clássica. Nesse
sentido, S. Tomás dizia: "H. significa os princípios essenciais da espécie, tanto formais quanto materiais,
não levando em conta os princípios individuais. A H. é aquilo em virtude do que o homem é homem; e em
homem é homem não porque tem os princípios individuais, mas porque tem os princípios essenciais da
espécie" (.Contra Gent., IV, 81).
3
a
Gênero humano, espécie humana como entidade biológica. Nesse sentido fala-se, p. ex., da história ou
dos feitos da H. na terra, ou da evolução biológica da humanidade.
4
e
Síntese hipostasiada da história ou da tradição do homem, segundo o conceito de Comte, que com esse
termo expressa "o conjunto dos seres passados, futuros e presentes, que concorrem livremente para o
aperfeiçoamento da ordem universal" (Politique positive, IV, p. 30). Nesse sentido, para Comte, a H.
constitui um Grande Ser, uma espécie de divindade que nada mais é que o mundo histórico hipostasiado.
Comte pretendeu instituir o culto deste grande ser (v. SER, GRANDE).
5
Q Natureza racionalâo homem, dotada de dignidade e, portanto, fim para si mesma. Esse é o significado
que essa palavra assume na segunda fórmula do imperativo categórico de Kant: "Age de tal maneira que
trates a H. (Menschheií), tanto na tua pessoa quanto na pessoa de qualquer outro, sempre também como
fim, nunca somente como meio" (Grund-legung derMet. der Sitten, II). A H. na pessoa dos homens é
objeto do respeito(v.), que, para Kant, é o único sentimento moral (Met. der Sitten, II, § 11).
6° Disposição à compreensão dos outros ou à simpatia para com eles. Nesse sentido, a melhor definição
desse termo foi dada por Kant: "H. (Humanitãf) significa, por um lado, o sentimento universal da
simpatia e, por outro, a faculdade de poder comunicar pessoal e universalmente; essas são duas
propriedades que, juntas, constituem a sociabilidade própria da H. (Menschheií), graças à qual ela se
diferencia do isolamento animal" (Crtt. dojuízo, § 60; cf. Antr., §88).
HUMANISMO (in. Humanism; fr. Huma-nisme, ai. Humanismus; it. Umanesimó). Esse termo é usado
para indicar duas coisas diferentes: I) o movimento literário e filosófico que nasceu na Itália na segunda
metade do séc. XIV, difundindo-se para os demais países da Europa e constituindo a origem da cultura
moderna; II) qualquer movimento filosófico que tome como fundamento a natureza humana ou os limites
e interesses do homem.
I) Em seu primeiro significado, que é o histórico, o H. é um aspecto fundamental do Renascimento (v.),
mais precisamente o aspecto em virtude do qual o Renascimento é o reconhecimento do valor do homem
em sua totalidade e a tentativa de compreendê-lo em seu
HUMANISMO
519
HUMILDADE
mundo, que é o da natureza e da história. Nesse sentido, costuma-se dizer que o H. se inicia com a obra de
Francesco Petrarca (1304-74). Os principais humanistas italianos são: Coluccio Salutati (1331-1406),
Leonardo Bruni (1374-1444), Lo-renzo Valia (1407-57), Giannozzo Manetti (1396-1459), Leonbattista
Alberti (1404-72), Mario Nizolio (1498-1576). Entre os humanistas franceses: Charles de Bouelles (1470
ou 75-1553), Petrus Ramus (1515-72), Michel E. de Montaigne (1533-92), Pierre Charron (1541-1603),
Francisco Sanchez (1562-1632), Justo Lipsio (1547-1606). Entre os espanhóis, lembramos Ludovico
Vives (1492-1540) e, entre os alemães, Rodolfo Agrícola (1442-85).
As bases fundamentais do H. podem ser assim expostas:
I
a Reconhecimento da totalidade do homem como ser formado de alma e corpo e destinado a viver no
mundo e a dominá-lo. O curriculum de estudos medieval era elaborado para um anjo ou uma alma
desencarnada. O H. reivindica para o homem o valor do prazer (Raimondi, Filelfo, Valia); afirma a
importância do estudo das leis, da medicina e da ética contra a metafísica (Salutati, Bruni, Valia); nega a
superioridade da vida contemplativa sobre a vida ativa (Valia); exalta a dignidade e a liberdade do
homem, reconhece seu lugar central na natureza e o seu destino de dominador desta (Manetti, Pico delia
Mirandola, Ficino).
2
a
Reconhecimento da historicidade do homem, dos vínculos do homem com o seu passado, que, por um
lado, servem para uni-lo a esse passado e, por outro, para distingui-lo dele. Desse ponto de vista, é parte
fundamental do H. a exigência filológica, que não é apenas a necessidade de descobrir os textos antigos e
restituir-lhes a forma autêntica, estudando e colecionando os códices, mas também é a necessidade de
encontrar neles o autêntico significado de poesia ou de verdade filosófica ou religiosa que contenham. A
admiração pela Antigüidade e seu estudo nunca faltaram na Idade Média; o que caracteriza o H. é a
exigência de descobrir a verdadeira cara da antigüidade, libertando-a dos sedimentos acumulados durante
a Idade Média.
3
a
Reconhecimento do valor humano das letras clássicas. É por esse aspecto que o H. tem esse nome. Já
na época de Cícero e Varrão, a palavra humanitas significava a educação do homem como tal, que os
gregos chamavam de paidéia-, eram chamadas de "boas artes" as disciplinas que formam o homem, por serem próprias do homem e o diferenciarem dos outros animais (AULO
GÉLIO, Noct. Att., XIII, 17). As boas artes, que ainda hoje são denominadas disciplinas humanísticas, não
tinham para o H. valor de fim, mas de meio, para a "formação de uma consciência realmente humana,
aberta em todas as direções, por meio da consciência histórico-crítica da tradição cultural" (GARIN, L
'educazione umanistica in Itália, p. 7) (v. CULTURA).
4- Reconhecimento da naturalidade do homem, do fato de o homem ser um ser natural, para o qual o
conhecimento da natureza não é uma distração imperdoável ou um pecado, mas um elemento
indispensável de vida e de sucesso. O reflorescimento do aristote-lismo, da magia e das especulações
naturalistas (graças a Telésio, G. Bruno e Campanella) constituem o prelúdio da ciência moderna.
II) O segundo significado dessa palavra nem sempre tem estreitas conexões com o primeiro. Pode-se
dizer que, com esse sentido, o H. é toda filosofia que tome o homem como "medida das coisas", segundo
antigas palavras de Protágoras. Exatamente nesse sentido, e com referência à frase de Protágoras, F. C. S.
Schiller deu o nome de H. ao seu pragmatismo (Studies in Humanism, 1902). Foi com o mesmo sentido
que Heidegger entendeu o H., mas para rejeitá-lo; viu nele a tendência filosófica a tomar o homem como
medida do ser, e a subordinar o ser ao homem, em vez de subordinar, como deveria, o homem ao ser, e a
ver no homem apenas "o pastor do ser" (Holzwege, 1950, pp. 101-02). Referindo-se a um sentido
análogo, Sartre aceitou a qualificação de H. para o seu existencialismo (L'existencialisme est un humanisme, 1949).
Em sentido mais geral, pode-se entender por H. qualquer tendência filosófica que leve em consideração as
possibilidades e, portanto, as limitações do homem, e que, com base nisso, redimensione os problemas
filosóficos.
HUMAN1TARISMO (in. Humanitarianism; fr. Humanitarisme, ai. Humanitãt; it. Umani-tarismó). V.
FILANTROPIA.
HUMILDADE (gr. Tocravoíppoaúvri; kt. Hu-militas; in. Humility, fr. Humilité, ai. Demut; it. Umiltã).
Atitude de abjeção voluntária, típica da religiosidade medieval, sugerida pela crença na natureza
miserável e pecaminosa do homem. Neste sentido, a H. é ilustrada e exaltada por Bernard de Clairvaux:
"A H. é a virtude graças à
HUMILDADE 520 HYSTERON
PROTERON
qual o homem se avilta com verdadeiro reconhecimento de si mesmo" {De gradibus hu-militatis et
superbiae, em P. L., 182B
, col. 942). Nesse sentido, a H. era desconhecida do mundo antigo. S. Paulo, que
foi o primeiro a empregar essa palavra, entendeu-a como falta de espírito de competição e de vangloria
(Pbilipp., II), vendo seu modelo em Cristo, que, com a en-carnação, rebaixou-se até o homem (Ibid., II, 3-
11). Da mesma forma, S. Agostinho fala da H. sobretudo a propósito da via humilitatis, que é a
encarnação do Verbo para a redenção dos homens: nesse sentido, contrapõe a H. cristã à soberba dos
platônicos, que sabiam tantas coisas, mas ignoravam a encarnação (Conf., VII, 9). S. Tomás considerava a
H. como a parte da virtude "que tempera e freia o ânimo, a fim de que ele não tenda desmesuradamente às
coisas mais altas" e veja nelas o complemento da magnanimidade que "fortalece o ânimo contra o
desespero e impele-o a perseguir as grandes coisas, de acordo com a reta razão" (S. Th., II, 2, q. 161, a. 1).
Mas é óbvio que, neste sentido, a H. nada mais é que a magnanimidade em significado aristotélico (v.
MAGNANIMIDADE) e nada tem a ver com a H. no sentido atribuído por S. Bernardo.
É freqüente a oposição dos filósofos ao significado medieval de H.; outras vezes procuram reconduzi-la a
um significado compatível com a ética clássica. Spinoza negava que a H. fosse uma virtude e julgava-a
uma emoção passiva, porquanto ela nasce do fato de "o homem contemplar sua própria impotência".
Entretanto, se ele pensa nessa impotência em relação a um ser mais perfeito, esse pensamento favorece
sua potência de ação e por isso não é H., mas virtude {Et., IV, 53). Kant distingue a H. moral, que é "o
sentimento da pequenez do nosso valor, comparado com a lei", da H. espúria, que é "a pretensão de, põt
meio da renúncia, adquirir algum valor rhoral de si mesmo, um valor moral oculto". A pretensão de
superar os outros rebaixando-se é uma ambição oposta ao dever para com os outros; utilizar esse meio
para obter o favor dos outros (Deus ou homem que seja) é hipocrisia e adulaçâo (Met. derSitten, II, § 11).
Hegel afirmava que a H. "é a consciência de Deus e da sua essência como amor" (Philosopbische
Propâdeutik, § 207, cf. Philosophie der Religion, ed. Glockner, II, p. 553). Entretanto, por outro lado, o
protesto de Nietzsche, que vê na H. simplesmente um aspecto da "moral dos escravos", obviamente é
dirigido ao típico conceito medieval de H. (cf. Werke, VII, pp. 348 ss.).
HUMOR (in. Mood; fr. Humeur, ai. Stimmung; it. Umoré). Estado emotivo que não tem objeto, ou cujo
objeto é indeterminável, distinguindo-se, assim, da emoção propriamente dita. Esta distinção foi proposta
por W. Cerf. ("H. e emoções na arte", em Rivista diFilosofia, 1954, pp. 363 ss.) e parece oportuna para
identificar, na vasta gama dos estados emocionais, os que recebem o nome de humor. O H. não tem objeto
intencional no sentido de que não existe um H.de..., assim como existe um medo de... ou alegria de... etc.
Tem causa ou razão, mas não se refere a um objeto em particular e não constitui advertência quanto ao
valor biológico de uma situação. Nesse sentido, Cerf afirmou que na arte não existem emoções, mas
apenas H.
Heidegger chamou a atenção para o significado existencial dos H.: "O fato de os H. poderem transformarse ou deteriorar-se significa somente que o ser-aí está sempre num estado emocional." O H. fundamental
é o tédio, "o peso do ser". Mas, em qualquer caso, oH.é aquilo que torna manifesto "como alguém é e se
torna" (Sein und Zeit, § 29).
HYBRIS (gr. íipptç). Com este termo, intra-duzível para as línguas modernas, os gregos entenderam
qualquer violação da norma da medida, ou seja, dos limites que o homem deve encontrar em suas
relações com os outros homens, com a divindade e com a ordem das coisas. A injustiça nada mais é que
uma forma de H., porque é a transgressão dos justos limites em relação aos outros homens. Neste sentido,
Hesíodo dizia: "Quando levada a cabo, a justiça triunfa sobre a H.: o néscio só entende quando sofre"
(Op., 216-17). Para Platão, há H. sempre que é superada "a medida do justo"; portanto, a H. tem muitas
faces, muitos lados e muitos nomes iFed., 238 a). Aristóteles deu a esse termo um significado mais
restrito: entendeu tratar-se de ofensa gratuita feita aos outros apenas pelo prazer de sentir-se superior: o
que é insolência (Ret., II, 2, 1378 b 23).
HYSTERON PROTERON. Estes termos, assim como Hysterologia e Protysteron, começaram a ser
empregados no séc. IV a.C. pelos gramáticos gregos e latinos (p. ex., CHEROBOSCO, Trop., 27; SERVIO,
Ad Vergi-Hum, A, 9, 816) para indicar a figura retórica que consiste em dizer antes o que deveria ser dito
depois, como quando dizemos:
HYSTERON PROTERON
521
HYSTERON PROTERON
"Está bem e está vivo". Leibniz emprega esse termo no mesmo sentido, considerando-o equivalente a
rebours e contrapondo-o a "círculo vicioso" (Nouv. ess., IV, 2, 1). Mas depois essa expressão foi
freqüentemente usada como sinônimo de círculo vicioso ou de petição de princípio, para indicar uma argumentação que toma como
premissa a própria conclusão, ou que utiliza como elemento de prova aquilo que deveria ser provado.
I
1. 1. Na lógica formal "aristotélica" esta letra é usada como símbolo da proposição particular afirmativa
(PEDRO HISPANO, Summ. log., 1.21).
2. Na Lógica modal tradicional, I designa a proposição modal que nega o modo e afirma a proposição. P.
ex., "Não é possível que p" onde p é uma proposição afirmativa qualquer (ARNAULD, Log., II, 8).
G. P.-N. A.
ID ou ISSO. V. PSICANÁLISE.
IDEAÇÃO (in. Ideation; fr. Ideation; ai. Ideation; it. Ideazioné). Termo usado por Hus-serl em
Investigações Lógicas (1900-01) para designar aquilo que chamou de "intuição eidé-tica" ou "visão das
essências" (Ideen, I, § 3). (v. FE-NOMENOLOGIA).
IDEAL1
(in. Ideal; fr. Ideal; ai. Ideal; it. ldea-le). É a noção de origem setecentista, da encar-nação
acabada, mas não real, da perfeição em determinado campo. Essa noção foi claramente expressa por Kant,
que a distinguiu da noção de idéia: "A virtude e, com ela, o saber humano em toda a sua pureza são idéias.
Mas o sábio (do estóico) é um ideal, um homem que só existe no pensamento, mas corresponde
plenamente à idéia de sabedoria. Assim como a idéia dita a regra, o I. serve de modelo (...). Embora não
se possa atribuir realidade objetiva (existência) aos I., nem por isso eles devem ser considerados
quimeras; ao contrário, oferecem um critério à razão, que precisa do conceito do que é perfeito em seu
gênero para, tomando-o como medida, avaliar e estimar o grau e a falta de perfeição" (Crít. R. Pura,
Dialética, cap. III, seç. I). No domínio da estética o I. é a figura humana {Kritik der Urteil, § 17). Esse
conceito de I. como perfeição concretizada num tipo ou numa forma de vida, mas não realizada, passou a
ser comum, verificando-se toda vez que se acentua a separação entre o dever ser e o ser. Hegel, que negou
esta separação, empregou a
noção do I. só no domínio da estética, visto ter concebido a arte como a "intuição concreta e a
representação do Espírito Absoluto em si como do I." {Ene, § 556). A distância da realidade, que é a
característica do I., é limitada por Hegel ao mundo da arte, porque nele a Idéia ou Razão autoconsciente
não chega a realizar-se na sua forma própria, mas transparece, nas formas sensíveis da natureza, como o I.
que está de algum modo além dessas formas ( Vorlesungen über die Àsthetik, ed. Glokner, I, pp. 112 ss.).
Na religião e na filosofia, entretanto, que são as formas espirituais em que a Idéia tem realização mais
elevada, a noção de I. não tem lugar. Na filosofia contemporânea, que mesmo restabelecendo a distinção
entre dever-ser e ser, própria da filosofia setecentista, recusa-se a considerar o dever-ser como já
encarnado numa forma perfeita e como inatingível na realidade, a noção de I., caracterizada por esses dois
aspectos, deixou de ser usada e foi substituída pela noção de valor(y.). Dewey disse a propósito: "Esta
noção da natureza e da função dos ideais combina num todo contraditório o que há de vicioso na
separação entre desejo e pensamento (...) Segue o curso natural da inteligência ao pedir um objeto que
unifique e satisfaça o desejo, e depois anula a obra do pensamento, ao considerar o objeto inefável e sem
relação com a ação e a experiência presente" {Human Nature and Conduct, II, 8, p. 260).
IDEAL2
(in. Ideal; fr. Ideal; ai. Ideal, Ideellé). Esse adjetivo tem três significados fundamentais,
correspondentes: 1B
ao primeiro significado de Idéia, designando o que é formal ou perfeito no sentido de
pertencer à Idéia. como forma, espécie ou perfeição; 2S
ao segundo significado de Idéia, significando o
que não é real porque pertence à representação ou ao pensamento; o próprio Hegel emprega este
significa-
IDEALIDADE
523
IDEALISMO
do do termo quando afirma que o idealismo consiste em afirmar que "o infinito é I.", ou seja, não real
(Wissenschaft derLogik, I, I, seç. I, Gap. II, nota 2); 3B
ao termo ideal, designando o que é perfeito, mas
irreal.
IDEALIDADE (in. Ideality, fr. Idéalité; ai. Idealitàt; it. Idealitã). Termo introduzido por . Kfent para
designar a subjetividade das formas ém intuição e das categorias; neste caso se trata de I. transcendental,
no sentido de que tais famas são condições da consciência (Crít. R. Pura, § 3)- Na primeira edição da
Crítica, Kant dissera: "A existência de todos os objetos dos sentidos externos é duvidosa. A esta
incerteza dou o nome de I. dos fenômenos externos e à doutrina dessa idealidade denomina-se I.".
* (Ibid., 1* ed., Paralogismos da Razão Pura, IV). Hegel inverteu esse conceito de I., afirmando que ela
não deve ser entendida como negação do que é real, mas como sua conservação {Ene., % 403): "A I. pode
ser chamada de qualidade da infinidade", ou seja, a qualidade do Ital porque, segundo Hegel, só o
infinito é real
- eofinito não é real (Wissenschaft derLogik, I, 1> cap. 2, A Passagem). Nicolai Hartmann empregou esse
termo num sentido mais próximo IO de Kant. Ele fez a distinção entre: I. independente, pertencente a
objetos irreais, mas subsistentes em si, como os objetos da Lógica e da Matemática, bem como os valores;
e I. aderente, pertencente às formas ideais que constituem a essência do real (as leis ou relações ideais
que o constituem) (Metaphysik der Er-kenntniss, 1921, cap. 62).
• IDEALISMO (in. Idealism; fr. Idéalisme; ai. tdealismus; it. Idealismo). Este termo foi introduzido na
linguagem filosófica em meados do séc. XVII, inicialmente com referência à doutri-" na platônica das
idéias. Leibniz diz: "O que há de bom nas hipóteses de Epicuro e de Platão, dos maiores materialistas e
dos maiores idealistas, reúne-se aqui [na doutrina da harmonia preestabelecida]" (Op., ed. Erdmann, p.
186). Contudo, esse significado do termo, que por vezes é indicado como "I. metafísico", no sentido de
ser uma hipótese acerca da natureza da realidade (que consiste em afirmar o caráter espiritual da própria
realidade) não teve longa vida. Essa palavra foi usada principalmente nos dois significados seguintes: 1Q
I. gnosiológico ou epistemológico, por várias correntes da filosofia moderna e contemporânea. 2B
I.
romântico, que é uma corrente bem determinada da filosofia moderna e contemporânea.
I
a No sentido gnosiológico (ou epistemológico) esse termo foi empregado pela primeira vez por Wolff:
"Denomina-se idealista quem admite que os corpos têm somente existência ideal em nosso espírito,
negando assim a existência real dos próprios corpos e do mundo" iPsychol. ratíonalis, § 36). No mesmo
sentido, Baumgartem diz: "Aquele que admite neste mundo somente espíritos é um idealista" (Met., §
402). Kant introduziu definitivamente em filosofia esse significado do termo: "I. é a teoria que declara
que os objetos existem fora do espaço ou simplesmente que sua existência é duvidosa e indemonstrável,
ou falsa e impossível; o primeiro é o I. problemático de Descartes, que declara indubitável somente uma
afirmação (assertio) empírica, 'Eu sou', o segundo é o I. dogmático de Berkeley, que considera o espaço,
com todas as coisas a que ele adere como condição imprescindível, como algo em si mesmo impossível e
declara por isso que as coisas no espaço são simples imaginações" (Crít. R. Pura, Analítica dos
princípios, refutação do I.). Kant denomina esse I. de material, para distingui-lo do I. transcendental ou
formal {Prol, § 49), que é a sua própria doutrina da "idealidade transcendental" do espaço, do tempo e das
categorias; essa doutrina permite justificar o realismo e refutar o idealismo. Mas, apesar dessa tomada de
posição (mais explícita na segunda edição da Crítica do que na primeira, na qual falta a "Refutação"), a
doutrina kantiana já esteve voltada para um significado idealista, sobretudo graças à interpretação feita
por Reinhold, em Letras sobre a filosofia kantiana (1786-87); segundo este último, o fenômeno, ou seja,
o objeto do conhecimento empírico, como representação. Schopenhauer acreditava expressar a essência
do kantismo ao iniciar sua obra O mundo como vontade e representação (1819) com a tese: "O mundo é a
minha representação." Esta tese, aceita como um princípio evidente do I. romântico, foi compartilhada na
filosofia moderna e contemporânea, não só pelas formas desse I. como também pelas várias correntes do
criticismo e por algumas correntes do espiritualismo. São idealistas, neste sentido, as doutrinas de
Renouvier, Cohen, Natorp, Windelband, Rickert, assim como as de Lotze, Eduard Hartmann, Ravaisson,
Hamelin, Marti-netti e outros: pensadores que, mesmo se opondo ao I. romântico, têm em comum com
ele o pressuposto gnosiológico fundamental: a redu-
IDEALISMO
524
IDÉIA
ção do objeto de conhecimento a representação ou idéia.
2
Q
No segundo sentido, o I. constitui o nome da grande corrente filosófica romântica que se originou na
Alemanha no período pós-kan-tiano e que teve numerosas ramificações na filosofia moderna e
contemporânea de todos os países. Por seus próprios fundadores, Fichte e Schelling, esse I. foi
denominado "transcendental", "subjetivo" ou "absoluto". O adjetivo transcendental tende a ligá-lo ao
ponto de vista kantiano, que fizera do "eu penso" o princípio fundamental do conhecimento. A
qualificação subjetivo tende a contrapor esse I. ao ponto de vista de Spinoza, que reduzira toda a realidade
a um único princípio, a Substância, mas entendera a própria substância como objeto. Por fim, o adjetivo
absoluto tem por finalidade frisar a tese de que o Eu ou Espírito é o princípio único de tudo, e que fora
dele não existe nada. Schelling diz, ao traçar a gênese histórica do I. romântico: "Fichte libertou o eu dos
revestimentos que em parte ainda o obscureciam em Kant, e colocou-o como único princípio à testa da
filosofia; tornou-se assim o criador do I. transcendental... O I. de Fichte é o oposto perfeito do
espinosismo ou um espinosismo invertido, pois Fichte opôs ao objeto absoluto de Spinoza, que aniquilava
qualquer sujeito, o Sujeito em sua absolutidade, o Ato ao ser absolutamente imóvel de Spinoza; para
Fichte, o eu não é, como para Descartes, um eu admitido só com o objetivo de poder filosofar, mas é o eu
real, o verdadeiro princípio, o prius absoluto de tudo" (Münchener Vorlesungen.- zur Ges-chichte der
neueren Philosophie, 1834, Kant, Fichte; trad. it., pp. 108-09). Hegel, que também chama de subjetivo ou
absoluto o seu I., esclarece seu princípio desta forma: "A proposição de que o finito é o ideal constitui o
idealismo. O I. da filosofia consiste apenas nisto: em não reconhecer o finito como verdadeiro ser. Toda
filosofia é essencialmente I., ou pelo menos tem o I. como princípio; trata-se apenas de saber até que
ponto esse princípio está efetivamente realizado. A filosofia é I. tanto quanto religião" (Wissenschaft der
Logik, I, seç. I, cap. III, nota 2, trad. it., pp. 169-70). Também receberam os nomes de I. subjetivo ou I.
absoluto as derivações contemporâneas do I. romântico, que são substancialmente duas: a angloamericana (Green, Bradley, McTaggart, Royce, etc.) e a italiana (Gentile, Croce). Ambas as derivações
mantiveram aquilo que, para
Hegel, era a principal característica do I.: a não-realidade do finito e a sua resolução no infinito. Mas,
enquanto o I. italiano seguiu mais de perto a corrente hegeliana, procurando estabelecer essa identidade
por via positiva, mostrando na estrutura do finito, na sua intrínseca e necessária racionalidade, a presença
e a realidade do infinito, o I. anglo-americano tratou de demonstrar a identidade por via negativa,
mostrando que o finito, devido à sua intrínseca irracionalidade, não é real, ou é real na medida em que
revela e manifesta o infinito. O título de uma das obras fundamentais do I. inglês, Aparência e
realidade'(1893), de F. H. Bradley, revela já o tema dominante do I. anglo-saxão, enquanto o título da
obra fundamental de Gentile, Teoria do espírito como ato puro (1916), revela a inspiração fichteana e a
trilha subjetivista do I. italiano. Quanto às principais características de todas as formas do I. romântico, v.
ABSOLUTO; ROMANTISMO.
IDEALISMO DA LIBERDADE (ai Idealis-mus der Freiheii). Um dos três tipos fundamentais de
filosofia, isto é, de intuição do mundo, segundo Dilthey, mais precisamente o que é representado por
Platão, pela filosofia hele-nístico-romana, por Cícero, pela especulação cristã, por Kant, Fichte, Maine de
Biran, pelos pensadores franceses a este ligados e por Carlyle (Das Wesen der Philosophie, 1907, III, 2;
trad. it., em Critica delia ragionestorica, p. 469).
IDEATO (lat. Ideatum). O objeto da idéia (no 2S
sentido). Spinoza, que entende por idéia adequada
aquela que tem "as notas intrínsecas da idéia verdadeira", adverte: "Digo intrínsecas para excluir a nota
que é extrínseca, ou seja, a correspondência da idéia com o seu I." (Et., II, def. 4).
IDÉIA (gr. iSécc; lat. Idea; in. Idea; fr. Idée; ai. Idee; it. Idea). Este termo foi empregado com dois
significados fundamentais diferentes: ls
como a espécie única intuível numa multiplicidade de objetos; 2
a
como um objeto qualquer do pensamento humano, ou seja, como representação em geral. No primeiro
significado, essa palavra é empregada por Platão e Aristóteles, pelos escolásticos, por Kant e outros. No
segundo significado, foi empregada por Descartes, pelos empiristas, por boa parte dos filósofos modernos
e é comumente usada nas línguas modernas.
1
Q
No primeiro significado, a I., como unidade visível na multiplicidade, tem caráter privile-
B>ÉM
525
IDÉIA
gfado em relação à multiplicidade, pelo que é freqüentemente considerada a essência ou a âüibêtância do
que é multíplice e, por vezes, ODmo o ideal ou o modelo dele. Este é, clara-fliente, o ponto de vista de
Platão, que, em Parmênides, atribui a Sócrates o conceito de que a I. é a unidade visível na
multiplicidade (tos objetos e, por isso, também a sua espécie {tidos). "Creio que acreditas haver uma
espécie única toda vez que muitas coisas te pare-; ten, p. ex., grandes e tu podes abrangê-las ' com um
só olhar: parece-te então que uma i útlica e mesma I. está em todas aquelas coisas e por isso julgas que o
grande é uno" (Parm., 132 a). Como unidade, a I. se mostra, em Platão, o exemplar das coisas naturais:
"Essas espécies" — diz ele — "estão como exemplares na natureza e as outras coisas se assemelham a
elas e são imagens delas; a participação dessas outras coisas na espécie consiste apenas «n serem imagens
da espécie" (Ibid., 132 d). No mesmo diálogo, Platão diz quais as coisas de que admitia L, quais as coisas
de que não admitia e quais as coisas de que tinha dúvida, quanto a admiti-las. "Parece-te que há uma
semelhança em si, separada da semelhança que ftós temos, e um uno e muitos em si, bem como outras
coisas deste tipo? — Parece-me que sim, disse Sócrates. — E admites que haja — continuou Parmênides
— a espécie do justo em si, do belo em si, do bem em si e outras coisas assim? — Sim, respondeu
Sócrates. — E admites que haja uma espécie do tornem separada de nós e de todos os nossos
semelhantes, uma espécie em si do homem, do fogo, da água? — Sempre tive dúvida — respondeu
Sócrates — se convinha ou não reconhecer essas espécies assim como as outras. — E das coisas que
pareceriam até ridículas, como chapéu, lama, imundície e todas as outras destituídas de valor ou vis,
também duvidas que haja ou não uma espécie de cada uma delas, separada das coisas correspondentes
que podemos manipular? — Certamente não — respondeu Sócrates —, essas coisas são tais e quais nós
as vemos, e seria absurdo acreditar que há uma espécie delas" (Ibid., 130 b-d). Deste trecho do
Parmênides resulta que existem três classes de objetos: I
a Objetos dos quais com certeza existem idéias,
que são: d) os objetos matemáticos: igualdade, um, muitos, etc; b) os valores: o belo, o justo, o bem, etc;
2
a
Objetos dos quais é duvidoso que existam I.: as coisas naturais, o fogo, a água ou o homem; 3S
Objetos dos quais com certeza não há I., que são as coisas vis ou geralmente as que não têm
valor. Ora, pode-se tomar ao pé da letra essa espécie de confissão platônica, pois um olhar nos demais
diálogos demonstra que ele sempre falou de I. nos sentidos constantes das letras d) e b), que ele admitiu,
ou melhor, introduziu, com o fim de chegar a certas demonstrações, formas naturais como o calor, o frio,
a doença e a febre (Fed, 105 b e ss.) ou formas artificiais, como a da cama (Rep., X, 597 b), mas nunca
falou, a não ser para excluí-las, de formas correspondentes à terceira classe de objetos. Disso pode-se
deduzir o que Platão entendia ao afirmar (como ainda o fazia na fase crítica [Parm., 135 b]) a existência
das I. "em separado das demais coisas", da multiplicidade das coisas. Existem I. de conceitos matemáticos
ou de valores: portanto, como já reconhecera Natorp (Platos Ideenlehre, 1903), as I. não são supracoisas,
ou seja, objetos transcendentes cuja existência tem como modelo a existência das coisas, mesmo
constituindo uma esfera à parte, mas normas, regras ou leis. Desse ponto de vista, o fato de estarem
"separadas" das outras coisas significa simplesmente a independência da regra das coisas que serve para
julgar. E por regra entende-se: I
a
que são critérios para julgar as outras coisas no sentido que, por
exemplo, a igualdade permite julgar se duas coisas são iguais ou não, e assim o belo por meio das coisas
belas, etc. (Fed., 74 ss.); 2a
que são causas das coisas no sentido de serem as razões pelas quais as coisas
"geram-se, des-troem-se e existem", porquanto constituem "a melhor maneira de existir, de modificar-se
ou de agir" (Ibid., 97 c). Por fim, em correspondência com as duas classes de I. (as I. matemáticas e as I.-
valores), Platão admitia duas ordens de conhecimento científico: o conhecimento dia-noético, próprio das
ciências propedêuticas (ciências matemáticas), e o conhecimento intelectual ou filosófico, próprio da
dialética (Rep., VII, 531 e ss.).
A reiterada crítica de Aristóteles a essa doutrina (Met., I, 9, 990 b ss.; XIII e XIV passim) tem como alvo
o ponto central dela: as I. não são princípios de explicação nem causas. Só a substância ou essência
necessária é causa e princípio de explicação, e isso vale para o bem e para aquilo que Platão denominava
I., assim como para todas as outras coisas. Aristóteles diz: "A ciência de uma coisa consiste em conhecer
a essência necessária da coisa. Isso é
IDÉIA
526
i
IDÉIA
verdadeiro no que se refere ao bem, assim como a todas as outras coisas, de tal modo que, se o bem não
tivesse a essência necessária do bem, não teria ser e não seria uno. O mesmo pode ser dito sobre todas as
outras coisas, que são o que são com base em sua essência necessária ou não são nada; portanto, se a sua
essência não é, nada delas é" (Ibid., VII, 6, 1031 b 6). Em outros termos, o status onto-lógico das I., se é
que possuem algum, é o de todas as outras coisas: são reais porque são substâncias, não porque são
unidades ou valores. Portanto, as I., como formas ou espécies, são certamente reais, segundo Aristóteles,
mas são reais apenas na medida em que as formas ou espécies são a substância das coisas compostas (v.
FORMA). A teoria da substância (v.) possibilitou a Aristóteles retirar das duas determinações, unidade e
valor, o primado ontológico que Platão lhes atribuíra nas primeiras fases de sua filosofia. A teoria das I.
não tem mais validade para Aristóteles, no sentido de as idéias não constituírem substâncias privilegiadas
e muito menos exemplares ou modelos das coisas. Contudo, atribui à palavra I. o mesmo significado que
Platão lhe dera: unidade que é ao mesmo tempo perfeição ou valor. Em seguida, ao longo de sua história,
acabam prevalecendo as determinações míticas ou popularescas que esse termo recebera na filosofia
platônica: modelo, arquétipo, perfeição, etc. Na Escolástica judaica e neoplatônica, as I. são consideradas
objetos da Inteligência divina e identificadas com essa Inteligência. Fílon já as considerava como
"potências incorpóreas", das quais Deus se serve para formar a matéria (De sacrif., II, 126). E Plotino as
identificava com a própria Inteligência, mais precisamente com a inteligência "em estado de repouso,
unidade e calma, que é distinta mas não separada da Inteligência que contempla e pensa" (Enn., III, 9, 1).
Neste sentido a I. é o objeto "interno" da inteligência divina, e como a inteligência não se distingue do ser
e do ato do ser, a I., a forma do ser e o ato do ser são a mesma coisa (Ibid., V, 9, 8). Essa doutrina tornouse lugar-comum da Patrística e da Escolástica. S. Agostinho reproduziu-a ao afirmar que o Logos ou Filho
tem em si as I., ou seja, as formas ou razões imutáveis das coisas, que são eternas, assim como ele mesmo
é eterno, em conformidade com tais razões ou formas, são formadas todas as coisas que nascem e morrem
(De diversis quaest., 83, q. 46). A partir de S. Agostinho,
inúmeras vezes os escolásticos repetem essa doutrina quase nos mesmos termos. Anselmo considera a I.
como uma espécie de "palavra interior": Deus exprime-se nas I. como o artífice em seu conceito, mas essa
expressão não é uma palavra externa, um enunciado; é a coisa para a qual se volta a acuidade da mente
criadora (Monol., 10). S. Tomás dizia: "O termo grego idea diz-se em latim forma-, por idéia entendem-se
as formas de algumas coisas, existentes fora das próprias coisas. Essa forma pode servir para duas coisas:
ou como exemplar daquilo cuja forma é, ou como princípio de conhecimento e, neste segundo sentido, diz
que a forma das coisas cognoscíveis está no cognoscente" (S. Th., I, q. 15, a. 1). Ockham, que nega o
caráter universal das L, não nega, todavia, que as I. existem em Deus, como "as coisas produzíveis por
Deus" (In Sent., I, d, 35, q. 5). O emprego desse conceito continuou mesmo fora da tradição platônica
(NICOLAU DE CUSA, De coniecturis, II, 14; FICINO, em Par-menid., 23) O Renascimento repete-o sem
variantes: p. ex., Bacon (Nov. org., I, 23). E quando o segundo significado desse termo já havia sido
introduzido por Descares e difundido por cartesianos e empiristas, Kant restituiu-lhe seu significado
platônico, entendendo por I. uma perfeição não real, "que supera a possibilidade da experiência". "As I."
— diz Kant — "são conceitos racionais dos quais não pode existir na experiência nenhum objeto
adequado. Não são intuições (como espaço e tempo) nem sentimentos (que pertencem à sensibilidade),
mas conceitos de perfeições, dos quais é sempre possível aproximar-se, mas que nunca se alcança
completamente" (Antr, § 4.3). As três I. que Kant enumera como "objetos necessários da razão" (alma,
mundo e Deus) são desprovidas de realidade exatamente porque estão além da experiência possível; no
entanto, são regras para estender e unificar a experiência. Assim, para Kant, a I. conserva de alguma
forma o caráter regulativo que Platão lhes atribuíra. Em todo caso, Kant julga "intolerável ouvir chamar
de I. algo como, p. ex., a representação da cor vermelha" (Crít. R. Pura, Dialética, seç. I). No idealismo
pós-romântico a noção de I. recuperou todo o alcance metafísico e teológico que já tivera no neoplatonismo tradicional. Schelling considera as L, por um lado, como as determinações da razão de Deus e,
por outro, como as formas da obje-tivação corpórea: em outros termos, são o pon-
MIA
527
IDÉIA
Iode encontro e de identificação entre a infinidade divina e o finito corpóreo (Werke, I, II, p. 497). Para
Goethe, a I. é a força divina formadora (fe natureza (Werke, ed. Hempel, XIX. pp. 63, 158). Schopenhauer
considera a I. como a pri-
•' Oleira e imediata objetivação da vontade de Viver, portanto como "forma eterna" ou "o
5. modelo" das coisas (Die Welt, I, § 25). Hegel, Jorfim, vê na I. "o verdadeiro em si e para si, a unidade
absoluta do conceito e da objetividade". Nesse sentido, ela não é representação
',. nem conceito determinado. "O absoluto é a I. \iniversal e única que, com o julgar, se especifica no
sistema das I. determinadas, que no entanto voltam para a I. única, sua verdade. Por força desse juízo, a I.
é, em primeiro lugar, ape-aas a única e universal substância, mas, na forma verdadeira e desenvolvida, ela
é como sujeito, por isso como espírito" (Ene, § 213). Nesta forma verdadeira e desenvolvida ela é I.
absoluta, ou seja, Razão Autoconsciente, que se manifesta nas três determinações do espírito absoluto
(arte, religião, filosofia) e se realiza no estado, também denominado por Hegel" realidade da I." (Fil. do
dir., § 258, comentário). Isso não passava de uma tradução para termos modernos da identidade que o
antigo platonismo estabelecera entre a I. como objeto inteligível e a Inteligência. O idealismo
contemporâneo, mesmo se inspirando em Hegel, não adotou a terminologia hegeliana nesse aspecto: deu
à razão autoconsciente os nomes de Espírito, Absoluto ou Consciência, e não o de Idéia. Em todos os
demais aspectos, a noção de I. permanece ligada à noção platônica de exemplar ou arquétipo eterno, e
isso tanto para os que a aceitam quanto para os que a negam.
2
fi No segundo significado, I. significa representação em geral. Esse significado já se encontra na tradição
literária (p. ex., em MON-TAIGNE, Essais, II, 4), mas Descartes introduziu-o na linguagem filosófica,
entendendo por I. o objeto interno do pensamento em geral. Nesse sentido, afirma que por I. se entende "a
forma de um pensamento, para cuja imediata percepção estou ciente desse pensamento" (Resp. II, def. 2).
Isso significa que a I. expressa aquele caráter fundamental do pensamento graças ao qual ele fica
imediatamente ciente de si mesmo. Para Descartes, toda I. tem, em primeiro lugar, uma realidade como
ato do pensamento e essa realidade é puramente subjetiva ou mental. Mas, em segundo lugar, tem
também uma realidade que Descartes denominou escol^sticamente de
objetiva, porquanto representa um objeto: neste sentido as I. são "quadros" ou "imagens" das coisas
(Méd., III). Esta terminologia era amplamente aceita pela filosofia pós-cartesiana. A Lógica de Port-Royal
adotou-a, entendendo por I. "tudo o que está em nosso espírito quando podemos dizer com verdade que
concebemos uma coisa, seja qual for a maneira como a concebemos" (ARNAULD, Log., I, 1). Também foi
aceita por Malebranche (Rech. de Ia ver., II, 1) e Leibniz, que considera as I. como "os objetos internos"
da alma (Nouv. ess. II, 10, § 2). Este último, porém, pretendia reservar o termo I. apenas para o
conhecimento claro, distinto e adequado, passível de ser analisado em seus constituintes últimos e isento
de contradições (Phil. Schriften, ed. Gerhardt, IV, pp. 422 ss.) Spinoza, por sua vez, entendia por I. "o
conceito formado pela mente enquanto pensa" e preferia a palavra "conceito" a "percepção" porque a
percepção parece indicar a passividade da mente diante do objeto, enquanto o conceito exprime sua
atividade (Et., II, def. 3). Por outro lado, Hobbes já definira a I. como "a memória e a imaginação das
grandezas, dos movimentos, dos sons, etc, bem como da ordem e das partes deles, coisas estas que, apesar
de serem apenas I. ou imagens, ou seja, qualidades internas da alma, aparecem como externas e
independentes da alma" (Decorp., 7, § 1). Mas, sem dúvida, foi Locke quem difundiu esse significado
(Ensaio, I, 1, 8) e o impôs ao em-pirismo inglês e ao iluminismo, através dos quais entrou para o uso
comum. Para Locke, assim como para Descartes, a I. é o objeto imediato do pensamento: I. é "aquilo que
o homem encontra em seu espírito quando pensa" (Ibid., II, 1,1). No prefácio da IV edição do Ensaio,
Locke insistia na conexão da I. com a palavra. "Escolhi esse termo" — dizia ele — "para designar, em
primeiro lugar, todo objeto imediato do espírito, que ele percebe, tem à sua frente e é distinto do som que
ele emprega para servir-lhe de signo; em segundo lugar, para mostrar que essa I. assim determinada, que o
espírito tem em si mesmo, conhece e vê em si mesmo, deve estar ligada sem mudanças àquele nome, e
aquele nome deve estar ligado exatamente àquela idéia" (lbid., trad. it, I, p. 23). Estas observações
permaneceram como fundamento dessa noção que, nesse aspecto, acabou por identificar-se com a noção
de representação. Wolff dizia: "A representação de uma coisa denomina-se I. quando se refere à coisa, ou
seja, quan-
IDÉIA GERAL 528
IDENTIDADE
do é considerada objetivamente {Psychol. empírica, § 48). O iluminismo alemão aceitou esse significado
atribuído por Wolff ao termo, mas este, como dissemos, depois seria impugnado por Kant. Nesse segundo
significado, esse termo não se distingue de representação, e os problemas a ele relativos são os mesmos
relativos a consciência em geral. Contudo, há um significado no qual a palavra I. (aliás, a única usada na
linguagem comum) continua distin-guindo-se de "representação": é aquele graças ao qual, tanto na
linguagem comum quanto na filosófica, ela indica o aspecto de antecipação e projeção da atividade
humana, ou, como diz Dewey, uma possibilidade. "Uma I. é, acima de tudo, uma antecipação de alguma
coisa que pode acontecer: ela marca uma possibilidade" {Logic, II, 6; trad. it., p. 164). Com este
significado, esse termo conserva ainda hoje uma utilidade específica.
IDÉIA GERAL. V. GERAL.
IDÉIAS, VARIEDADE DE (in. Variety ofLdeas-, fr. Varieté d'idées\ ai. Ideensmanmigfültigkeit; it.
Varietà di ideé). Só se admite variedade de I. no âmbito do 29
significado de idéia, entendida como
representação. Descartes distingue três espécies de I.: inatas, que parecem congênitas no sujeito pensante,
adventícias, que lhe parecem estranhas ou vindas de fora; e factícias, que são formadas ou encontradas
por ele mesmo. À primeira classe de I. pertencem a capacidade de pensar e de compreender as essências
verdadeiras, imutáveis e eternas das coisas; à segunda classe pertencem as I. das coisas naturais; à
terceira, as I. das coisas quiméricas ou inventadas {Méd., III; Lettres ã Mersenne, 16 de junho de 1641,
em (Euvres, III, 383). Esta classificação parece moldada à que Bacon fizera sobre os ídolos, dividindo-os
em adventícios {adscititid) e inatos. "Os ídolos adventícios são introduzidos na mente humana por meio
das doutrinas das seitas filosóficas ou através de demonstrações feitas com método errado. Os ídolos
inatos pertencem à própria natureza do intelecto, que é propenso ao erro muito mais do que o sentido"
{Nov. Org., Pref). Os cartesianos e os wolffianos denominaram I. material os movimentos que, segundo
Descartes, são levados para o cérebro pelos nervos estimulados pela ação dos objetos externos que
sensibilizam as diferentes panes do corpo (cf. Descartes, Princ.phil., IV, 196). Essa doutrina foi acatada
pelos ocasionalistas, mas também por Wolff {Psychol. rationalis, § 118,
374), por Baumgarten (Met., § 560) e por Kant {Trâume eines Geistersehers, erlãutert durch Trãiime der
Metaphysik, 1766, I, 3). Fouillée deu o nome de Idéia-força "ao encontro do interno e do externo, uma
forma que o interno toma pela ação do externo e pela reação própria da consciência" (Z 'evolutionisme
des idées-forces, 1890, p. XV), ou seja a unidade psicofísica que realiza o postulado do monismo
psicofísico (v. MONISMO).
IDENTIAL(al. Ldential). Adjetivo criado por Avenarius para designar o conjunto de dois dos caracteres
(y), identidade e alteridade {Kritik der reinen Erfahrung, 1890, II, pp. 28 ss.).
IDENTIDADE (gr. ToròTOTnç; lat. Ldentitas; in. Identity; fr. Identité; ai. Identitãt; it. Identitã). Este
conceito tem três definições fundamentais: I
a
I. como unidade de substância; 2a
I. como possibilidade de
substituição; 3a
I. como convenção.
I
a A primeira definição é de Aristóteles, que diz: "Em sentido essencial, as coisas são idênticas no mesmo
sentido em que são unas, já que são idênticas quando é uma só sua matéria (em espécie ou em número) ou
quando sua substância é una. Portanto, é evidente que a I. é, de algum modo, uma unidade, quer a unidade
se refira a mais de uma coisa, quer se refira a uma única coisa, considerada como duas, como acontece
quando se diz que a coisa é idêntica a si mesma" {Met., V, 9,1018 a 7). Em outros termos, como diz ainda
Aristóteles, as coisas só são idênticas "se é idêntica a definição da substância delas" {Lbid., X, 3, 1054 a
34). A unidade da substância, portanto da definição que a expressa é, desse ponto de vista, o significado
da identidade. Como nota Aristóteles, pode haver uma I. acidental, como quando dois atributos acidentais
("branco" e "músico", p. ex.) se referem à mesma coisa, ao mesmo homem; contudo, essa I. acidental não
significa de modo algum que o homem (em geral) seja branco ou músico {Lbid., V, 9, 1017 b 27). Esse
conceito de I. como unidade de substância ou (o que dá no mesmo) de definição da substância foi
conservado e ainda está presente em muitas doutrinas. Foi adotado por Hegel, que definiu a essência
como "I. consigo mesma" e, conseqüentemente, I. como coincidência ou unidade da essência consigo
mesma {Ene, §§ 115-116). Tal conceito de I. é, pois, análogo e correspondente à interpretação do ser
predicativo como inerência (v. SER) e da essência como essência necessária (v. ESSÊNCIA).
«M1MIIMDE, FILOSOFIA DA
529
IDENTIDADE, PRINCÍPIO DE
■í,( 2
a
A segunda definição é de Leibniz, que ; aproxima o conceito de I. ao de igualdade(v.): 'Idênticas
são as coisas que se podem substi-' |uir uma à outra salva veritate. Se A estiver con-! $& numa
proposição verdadeira e se, pondo-•C B no lugar de A, 2L proposição resultante '■ continuar sendo
verdadeira, e se o mesmo . acontecer em qualquer outra proposição, diz-se (pie A e B são idênticos;
reciprocamente, se A e B são idênticos, a substituição a que nos referi-nsospode acontecer"
ÍSpecimenDemonstrandi, Qp., ed. Erdmann, p. 94). Definição análoga foi aceita por Wolff, que definia
como idênticas "as coisas que se podem substituir uma à outra, salvaguardando quaisquer de seus
predicados" ÍOnt., § 181). Com base neste sentido da palavra, começou-se a falar de proposições
idênticas, que Leibniz distinguiu em: afirmativas, do tipo "Cada coisa é aquilo que é"; negativas, que são
regidas pelo princípio de contradição (v.); díspares, que afirmam que "o objeto de uma idéia não é o
objeto de outra idéia" (Nouv. ess., IV, 2, § 1). Estas observações de Leibniz sào repetidas com poucas
alterações pela lógica contemporânea (CARNAP, DerLogischeAufbau der Welt, § 159; QUINE, From a
Logical Point of View, 1953, VIII, 1).
3
a
A terceira concepção diz que pode ser estabelecida ou reconhecida com base em qualquer critério
convencional. De acordo com essa concepção, não é possível estabelecer em definitivo o significado da I.
ou o critério para reconhecê-la, mas, dentro de determinado sistema lingüístico, é possível determinar esse
critério de forma convencional, mas oportuna. Esta concepção foi apresentada por F. Wais-mann num
artigo de 1936 ("Über den Begriff der Identitãt", em Erkenntniss, VI, pp. 56 ss.), em polêmica aberta
contra a definição car-napiana de I.; foi representada por P.T. Geach (em oposição a Quine), segundo o
qual, quando se diz "xé idêntico a y", tem-se uma expressão incompleta, abreviativa de. "xé o mesmo A de
y", onde "A" é um nome cujo significado resulta do contexto ("Identity", em Rev. ofMet., 1967, pp. 2-12).
Esta é a concepção menos dogmática e mais ajustada às exigências do pensamento lógico-filosófico.
IDENTIDADE, FILOSOFIA DA (in. Iden-tity-philosophy; fr. Philosophie de Videntité; ai.
Identitãtsphilosophie; it. Filosofia delia identitã). Assim Schelling denominou sua filosofia, porquanto
define o Absoluto como I. do objeto com o sujeito, da natureza com o
espírito, do inconsciente com o consciente (Werke, II, pp. 371 ss.) (v. NATUREZA, FILOSOFIA DA).
IDENTIDADE, PRINCÍPIO DE (lat. Prin-cipium identitatis, in. Law of identity; fr. Príncipe d'identité;
ai. Satz der Identitãt; it. Principio di identitã). O reconhecimento explícito deste princípio como um dos
princípios lógicos ou ontológicos fundamentais, ao lado dos princípios de contradição e do terceiro
excluído, é coisa recente porque não passa da época de Wolff. Aristóteles ignora o princípio da I., o
mesmo ocorrendo com toda a tradição medieval. O próprio Leibniz considera o enunciado: "Tudo é
aquilo que é" como tipo das verdades idênticas afirmativas, sem atribuir-lhe a posição de princípio, que
atribui apenas ao de contradição e ao de razão suficiente (Théod., I, § 44; Monad., §§ 31-32, 35). Ele
afirma: "As verdades primitivas de razão são aquelas a que dou o nome geral de idênticas porque parece
que elas não fazem mais que repetir a mesma coisa sem dizer nada de novo. As verdades idênticas podem
ser afirmativas ou negativas. As afirmativas são como as seguintes: Cada coisa é aquilo que é, e outros
tantos exemplos nos quais A é A, B é B" (Nouv. ess, IV, 2, § 1). Por outro lado, o reconhecimento da
certeza das proposições idênticas era muito antigo: encontrando-se já em S. Tomás, que dizia: "Devem ser
notórias por si mesmas as proposições nas quais se afirma a identidade de uma coisa consigo mesma,
como em homem é homem ou nas quais o predicado está incluído na definição do sujeito como em
homem é anima? (Contra Gent, I, 10).
Por outro lado, Leibniz também conhecia a fórmula geral das I., como ocorria com Locke, que a
enumerava entre as máximas cujo caráter inato se reconhece, graças ao consenso universal que suscitam:
"Aí estão dois dos célebres princípios, aos quais, mais que a qualquer outro, se atribui a qualidade dos
princípios inatos: Tudo aquilo que é é, e: É impossível que uma coisa seja e não seja ao mesmo tempo"
(Ensaio, I, 1, 4). Tanto Locke quanto Leibniz parecem referir-se à fórmula da I. como máxima bem
conhecida e reconhecida, mas que ainda não foi alçada ao nível de princípio ontológico ou lógico.
Ora, essa fórmula começara a circular na Escolástica do séc. XIV, sobretudo entre os partidários de Scot e
Ockham, na tentativa de reduzir o princípio de contradição (que conti-
IDENTIDADE, PRINCIPIO DE
530
IDENTIDADE, PRINCÍPIO DE
nuava sendo reconhecido como o primeiro princípio ontológico) à sua expressão mais simples e
econômica. Esta tentativa é uma manifestação característica do uso do princípio de economia (v.), que era
considerado guia metodológico por Ockham e por muitos esco-tistas. Antônio Andréa (morto em 1320)
diz: "Digo que o princípio 'É impossível que a mesma coisa simultaneamente seja e não seja' não é
absolutamente primário, ou seja, primariamente primeiro (...) Se perguntarem qual é absolutamente o
primeiro complexo e o primariamente primeiro, direi que é este: 'O ente é ente.' Este princípio de fato tem
termos primariamente primeiros e ultimamente últimos, que não são portanto resolúveis em termos
precedentes; aliás toda resolução de conceitos diz respeito ao conceito do ente, como o é absolutamente
primeiro entre os conceitos essenciais" (In Met., IV, q. 5). Buridan aludia a esta ou a semelhantes
tentativas de reduzir o princípio de contradição a uma fórmula mais simples, que seria a da L: "Alguns,
entendendo que tem mais prioridade a simplicidade que a evidência e a certeza, dizem que as proposições
categóricas precedem as hipotéticas e que as asser-tórias precedem as modais, etc; conseqüentemente,
propõem uma única grande ordem de princípios indemonstráveis. O primeiro princípio seria 'O ente é',
donde se seguiria que 'o não-ente não é'. Depois viria 'O ente é ente', donde 'o não-ente não é ente', etc."
(In Met., IV, q. 13). Do ponto de vista da simplicidade e da economia, a fórmula da I. parecia então mais
primitiva que a da contradição; assim, os lógicos do séc. XIV começaram a atribuir a essa fórmula a
posição tradicionalmente atribuída apenas ao princípio de contradição.
Contudo, como dissemos, foi só com Wolff que se começou a reconhecer explicitamente no enunciado da
I. o valor de princípio. Wolff o expôs com a denominação de "Princípio da certeza", que derivava do
princípio de contradição. Em Ontologia (1729), disse: "Como é impossível que uma mesma coisa seja e
não seja ao mesmo tempo, toda coisa, enquanto é, ê; ou seja: se A é, também é verdadeiro que A é. Se
negares que A é, enquanto é, deveras então concordar que A é e não é ao mesmo tempo: o que se opõe ao
princípio de contradição e por isso não pode ser admitido, por força desse princípio" (Ont, § 55). Wolff
ligava o princípio à noção de necessidade (Ibid., § 288) e não lhe
atribuía o caráter originário que atribuía ao princípio de contradição e ao de razão suficiente. Em
Baumgarten, o princípio de I. deu mais um passo ao ser posto após o de contradição (que para ele
continuava sendo "o absolutamente primeiro"), mas no mesmo nível dele, como "Princípio de oposição
ou de I.". Expressou-o da seguinte forma: "Todo possível A é A; ou seja, tudo o que é, é; ou então, todo
sujeito é predicado de si mesmo" (Met., § 11). Por sua vez Kant, em Nova elucidação dos primeiros
princípios do conhecimento metafísico (1755), dizia: "Dois são os princípios absolutamente primeiros de
todas as verdades: um das verdades afirmativas, a proposição 'O que é, é'; o outro das verdades negativas,
a proposição 'aquilo que não é não é'. Ambas essas proposições denominam-se comumente princípio de I.
(Nova dilucidatio, prop. II).
Com isto, o princípio de I. ingressava oficialmente no rol dos princípios fundamentais da lógica (apesar
de na origem, com Wolff e Baumgarten, ele ter sido um princípio ontológico). Fichte valia-se dele como
de uma proposição absolutamente "certa e indubitável" (Wissenschaftslehre, 1794, § 1). E como princípio
indubitável do pensamento também era visto por Schelling (Werke, I, IV, p. 116). Tudo isto dava a Hegel
o direito de dizer que "o princípio de I., em vez de ser uma verdadeira lei do pensamento, nada mais é que
a lei do intelecto abstrato. A forma da proposição a contradiz, senão porque a proposição também promete
uma distinção entre sujeito e predicado e essa proposição não cumpre o que sua forma promete. Mas deve
notar, em especial, que ela é negada pelas outras chamadas leis do pensamento, para as quais é lei o
contrário dessa lei" (Ene, § 115). Hegel, naturalmente, tinha razão, mas lutava contra um moinho de
vento, pois os filósofos haviam admitido explicitamente esse princípio com o objetivo de dar fundamento
de necessidade às verdades idênticas. A lógica filosófica do séc. XIX continuou incluindo o princípio da I.
entre as leis universais do pensamento (cf. HAMILTON, Lectures on
LogiC, I, pp. 79 SS.; DROBISCH, Logik, § 58; ÜBERWEG, System der Logik, p. 183; WUNDT, Logik, I, pp. 504 ss.; B. HERDMANN, Logik, I, pp. 172 ss., etc.)
embora não faltasse quem lhe negasse qualquer significado (cf. P. HERMANT e A. VAN DE WAELE, Les
principales théories de Ia logique contemporaine, Paris, 1909, pp. 116 ss.). Para Boutroux, no princípio
de I. estava expresso o
INOTIDADE DOS INDISCERNÍVEIS
531
IDEOLOGIA
jdeal da necessidade racional (Vidée de loi WOturelle, 1895. cap. 2). Meyerson, obedecen-P<b a conceito
análogo, reduzia a identificação qpalquer processo racional, ou seja, qualquer 'jpepcesso que consiga
compreender ou explicar <$B) objeto qualquer (Identité et realité, 1908; ' Ifacplication dans les sciences,
1927). Por ou-HD lado, a lógica matemática logo percebeu a ÍBUtilidade desse princípio para a validade
de 'tjm raciocínio qualquer, e Peirce podia reduzir . «Significado dele ao dizer que "continuamos a <Ç(er
naquilo que acreditamos até hoje, na ■ gusência de qualquer razão em contrário" • (jCeU. Pap., 3, 182).
Na lógica contemporânea, .. 4fK princípio não existe, pelo menos na forma àe "princípio". Por vezes os
lógicos fazem-no ÉÓincidir com este ou aquele teorema que «cpresse um dos significados da cópula (v.
SER, Í). Outras vezes, fora de lógica, consideram-no Um postulado semântico, de que todo símbolo deve
ter sempre o mesmo termo de referência, toda vez que ocorre no mesmo contexto (DE-WEY, Logic,
XVII, § 3). Neste sentido, obviamente, o princípio de I. não é lógico nem onto-lôgico, e a rigor nem
princípio é, mas apenas uma regra para o uso dos símbolos.
IDENTIDADE DOS INDISCERNÍVEIS (lat. Identitas indiscernibilium-, in. Identity of indiscernibles;
fr. Identité des indiscerna-bks; ai. Identitãt der Ununterscheidbaren-, it. ÜHentitàdegUindiscernibili).
Princípio metafísico que exclui a existência na natureza de duas coisas absolutamente iguais. Já
conhecido pelos estóicos (cf. Cícero, Acad., III, 17, 18) e retomado no Renascimento ("Duas coisas no
universo não podem ser absolutamente iguais"; NICOLAU DE CUSA, De docta ignor., II, 11), foi
defendido e ilustrado por Leibniz, que se vangloriou de ter descoberto este princípio e o princípio de
razão suficiente, como sendo os dois princípios que "mudam o estado da metafísica, tornando-a real e
demonstrativa" (IV Lett. a Clarke, Op., ed. Erdmann, pp. 755-56). Leibniz expressou-o dizendo
simplesmente: "Não existem indivíduos indiscerníveis", ou "Pôr duas coisas indiscerníveis significa pôr a
mesma coisa sob dois nomes" (Ibid., ed. Erdmann, pp. 755-56). E afirma: "Se dois indivíduos fossem
perfeitamente semelhantes e iguais, enfim indistinguíveis por si mesmos, não haveria princípio de
individualizaçâo e nem haveria, ouso dizer, distinção entre diferentes indivíduos" (Nouv. ess., II, 27, § 3).
Para Leibniz esse é um argumento contra a existência dos átomos (dos átomos materiais, evidentemente), que seriam idênticos por definição. Aceito e defendido por
Wolff (Cosm., §§ 246-48) e por toda a escola wolffiana, bem também — a seu modo — por Hegel (Ene, §
117), esse princípio foi rejeitado por Kant: "Em duas gotas de água é possível abstrair totalmente de
qualquer diferença interna (de qualidade e dé quantidade), mas basta que elas sejam intuídas
simultaneamente em lugares diferentes para considerá-las numericamente diferentes. Leibniz confundiu
fenômenos com coisas em si mesmas, portanto confundiu com intelligibilia, ou seja, objetos do intelecto
puro (conquanto as designasse com o nome de fenômenos porque as considerava representações
confusas) e assim o seu princípio dos indiscerníveis tornava-se inatacável" (Crít. R. Pura, Analítica dos
Princípios, Apêndice). Em outros termos, o princípio da I. dos indiscerníveis valeria para objetos do
intelecto puro, não para fenômenos, que já são bastante individualizados por sua posição no tempo e no
espaço. Na filosofia contemporânea há poucos vestígios desse princípio. Alguns lógicos o admitem, mas
interpretam-no a seu modo. Quine, p. ex., o expõe com o nome de "máxima da identificação dos
indiscerníveis" desta forma: "Objetos indiscerníveis um do outro dentro dos termos de dado discurso
devem ser considerados idênticos para esse discurso" (From a Logical Point ofVietv, IV, 2). Outros o
consideram inde-monstrável e admitem que é logicamente possível que duas coisas tenham em comum
todas as suas propriedades (BLACK, Problems of Analysis, 1954, I, 5).
IDEOGRÁFICAS, CIÊNCIAS. V. CIÊNCIAS, CLASSIFICAÇÃO DAS.
IDEOLOGIA (in. Ideology; fr. Idéologie; ai. Ideologie; it. Ideologia). Esse termo foi criado por Destut
de Tracy (Idéologie, 1801) para designar "a análise das sensações e das idéias", segundo o modelo de
Condillac. AI. constituiu a corrente filosófica que marca a transição do empirismo iluminista para o
espiritualismo tradicionalista e que floresceu na primeira metade do séc. XIX (v. ESPIRITUALISMO). Como
alguns ideologistas franceses fossem hostis a Napoleão, este empregou o termo em sentido depreciativo,
pretendendo com isso identificá-los com "sectários" ou "dogmáticos", pessoas carecedoras de senso
político e, em geral, sem contato com a realidade (PICAVET, Les idéologues, Paris, 1891). Aí começa a
história do significado moderno desse termo, não
IDEOLOGIA
53/
IDEOLOGIA
mais empregado para indicar qualquer espécie de análise filosófica, mas uma doutrina mais ou menos
destituída de validade objetiva, porém mantida pelos interesses claros ou ocultos daqueles que a utilizam.
Nesse sentido, em meados do séc. XIX, a noção de I. passou a ser fundamental no marxismo, sendo um
dos seus maiores instrumentos na luta contra a chamada cultura "burguesa". Marx de fato (cf. Sagrada
família, 1845; Miséria da filosofia, 1847) afirmara que as crenças religiosas, filosóficas, políticas e
morais dependiam das relações de produção e de trabalho, na forma como estas se constituem em cada
fase da história econômica. Essa era a tese que posteriormente foi denominada materia-lismo histórico
(v.). Hoje, por I. entende-se o conjunto dessas crenças, porquanto só têm a validade de expressar certa
fase das relações econômicas e, portanto, de servir à defesa dos interesses que prevalecem em cada fase
desta relação. Foi exatamente com esse sentido que a I. foi estudada pela primeira vez em Trattato di
sociologia generale (1916) de Vilfredo Pa-reto, apesar de, nesta obra, não ser usado o termo I. (que fora
empregado em Sistemi so-cialisti, 1902, pp. 525-26). Em Pareto, a noção de I. corresponde à noção de
teoria não-cien-tífica, entendendo-se por esta última qualquer teoria que não seja lógico-experimental.
Segundo Pareto, uma teoria pode ser considerada: I
a
em seu aspecto objetivo, em confronto com a
experiência; 2B
em seu aspecto subjetivo, em sua força de persuasão, 3
g
em sua utilidade social, para
quem a produz ou a acata {Trattato, § 14). As teorias científicas ou lógico-ex-perimentais são avaliáveis
objetivamente, mas não nos outros modos, porque seu objetivo não é o de persuadir (Jbid., § 76).
Portanto, só as teorias não científicas são avaliáveis com base nos outros dois aspectos. Ciência e I.
pertencem, assim, a dois campos separados, que nada têm em comum: a primeira ao campo da observação
e do raciocínio; a segunda ao campo do sentimento e da fé {Jbid., % Aí). Com justeza foi frisada a
importância dessa distinção, que, por um lado, torna impossível considerar verdadeira uma teoria
persuasiva (ou útil) ou persuasiva (ou útil) uma teoria verdadeira e, por outro, permite "compreender
antes de condenar e fazer a distinção entre o estudioso dos fatos sociais e o propagandista ou apóstolo"
(BOBBIO, "Vilfredo Pareto e Ia critica delle I.", Riv. diFil, 1957, p. 374). Do ponto de vista da
análise da I., a doutrina de Pareto estabeleceu um ponto importante: a função da I. é em primeiro lugar
persuadir, dirigir a ação. Esse aspecto foi desprezado pelo outro teórico da ideologia, Mannheim. Este
distinguiu um conceito particular e um conceito universal de ideologia. Em sentido particular, entende-se
por I. "o conjunto de contrafações mais ou menos deliberadas de uma situação real cujo exato
conhecimento contraria os interesses de quem sustenta a I.". Em sentido mais geral, entende-se por I. a
"visão do mundo" de um grupo humano, p. ex., de uma classe social. Segundo Mannheim, a análise de I.
no primeiro sentido deve ser feita no plano psicológico; a análise da I. no segundo sentido deve ser feita
no plano sociológico (Ideology and Utopia, 1953 [Ia ed. 19291, II, 1). Num e noutro caso ai. é a idéia
incapaz de inserir-se na situação, dominá-la e adequá-la a si mesma. Mannheim diz: "As I. são idéias
situacionalmente transcendentes que nunca conseguem de fato atualizar os projetos nelas implícitos.
Apesar de freqüentemente se apresentarem como justas aspirações da conduta pessoal do indivíduo,
quando levadas à prática, seu significado muitas vezes é deformado. A idéia do amor fraterno cristão, p.
ex. numa sociedade fundada na servidão, é irreali-zável e por isso ideológica, mesmo quando, para quem
o entenda em boa fé, seu significado constitui um fim para a conduta individual." (Jbid., IV, 1). Nisto a I.
seria diferente da utopia, que chega a realizar-se. Como foi freqüentemente observado (cf. MERTON,
Social Theory and Social Structure, 1957, pp. 489 ss.), o critério assim sugerido por Mannheim para a
distinção (a ser estabelecida somente postfactum) entre I. e utopia, ou seja, a realização, inclui um círculo
vicioso, pois o juízo sobre a adequação da realização, a avaliação dessa adequação só poderia ser feito
com base numa distinção prévia entre I. e utopia.
A característica de ambas as doutrinas lembradas é a contraposição entre a I. e as teorias positivas, entre I.
e ciência segundo Pareto, e entre I. e utopia (a teoria que se realiza), segundo Mannheim. Conquanto
Pareto tenha feito a distinção entre juízo sobre a validade objetiva de uma teoria de juízo sobre sua força
de persuasão e sobre sua utilidade social, a contraposição feita entre I. e teoria científica levou-o a
constituir duas classes nitidamente distintas de teorias. Hoje está bem claro que, se uma teoria
cientificamente verdadeira não tem, por isso
PIA
533
IGNORABIMUS
, força persuasiva (fora do campo dos as competentes), também está claro que teoria evidentemente falsa
do ponto de : científico não pode ter força de persuasão muito tempo. Hoje, p. ex., ninguém faria ~uer
forma de propaganda com base na "tência dos antípodas. A força de persuade uma teoria não está presa de
modo vel à própria teoria, mas depende do con-social em que ela atua ou é utilizada. A ade ou nãoverdade científica da teoria nente é um elemento do contexto, que, como os demais elementos, entra na
itituição da força de persuasão da teoria. Drtanto, deve-se frisar que o significado de 11. não consiste,
como achavam os escrito-t marxistas, no fato de ela expressar os inte-. Uesses ou as necessidades de um
grupo social, i í&sm na sua verificabilidade empírica, nem em ' IDâ validade ou ausência de validade
objetiva, Tftas simplesmente em sua capacidade de consolar e dirigir o comportamento dos homens Cm
determinada situação. O alcance ideológico do princípio citado por Mannheim como çjtemplo, o amor
fraterno, não reside no fato negativo de que esse princípio não se realize numa sociedade fundada na
escravidão, mas no fato de, mesmo numa sociedade fundada na escravidão, esse princípio permitir
controlar e dirigir a conduta de grande número de pessoas.
Em geral, portanto, pode-se denominar I. toda crença usada para o controle dos comportamentos
coletivos, entendendo-se o termo crença (v.), em seu significado mais amplo, como noção de
compromisso da conduta, que pode ter ou não validade objetiva. Entendido nesse sentido, o conceito de I.
é puramente formal, uma vez que pode ser vista como I. tanto uma crença fundada em elementos
objetivos quanto uma crença totalmente infundada, tanto uma crença realizável quanto uma crença
irrealizável. O que transforma uma crença em I. não é sua validade ou falta de validade, mas unicamente
sua capacidade de controlar os comportamentos em determinada situação.
IDEOSCOPIA (in. Ideoscopy). Foi assim que Peirce denominou "a descrição e a classificação das idéias
que pertencem à experiência comum ou surgem naturalmente em conexão com a vida comum,
independentemente de sua validade ou não-validade, ou de sua psicologia" (Coll. Pap., 8.328).
IDOLOLOGIA (ai. Eidologiê). Doutrina que estuda os ídolos, ou seja, as aparições na consciência: uma
parte da metafísica, juntamente com a metodologia, a ontologia e a sinecolo-gia, segundo Herbart
(Allgemeine Metaphysik, 1828, 1, 71).
ÍDOLOS (gr. EiSootax; lat. Idola, Simulacra; in. Idols; fr. Idoles; ai. Idole; it. Idoli). A doutrina dos I. foi
exposta na antigüidade por Demócrito; segundo ela, a sensação e o pensamento são produzidas por
imagens corpóreas provenientes de fora 0- STOBEO, IV, 233). Essa doutrina foi retomada e adotada pelos
epicuristas (Ep. a Herod., 46-50; cf. LUCRÉCIO, De rer. nat., IV, 99, etc). Em sentido diferente, foi
retomada por Francis Bacon, para quem os I. não são instrumentos de conhecimento, mas obstáculos ao
conhecimento; são "falsas noções" ou "antecipações", ou seja, preconceitos. Para Bacon, são quatro as
espécies de ídolos. Duas delas têm raízes na natureza humana e Bacon denomina-as idola tribuse idola
specus. Os I. tribus (da tribo) são comuns a todo o gênero humano e consistem, p. ex., em supor que na
natureza há uma harmonia muito maior que a existente, em dar importância a determinados conceitos
mais que a outros, etc. Os I. specus (da caverna) provêm da educação, dos costumes e dos casos fortuitos
em que cada um venha a encontrar-se. Assim, a importância que Aristóteles atribuiu à lógica, após havê-la
inventado, é um I. dessa espécie. Os I. provenientes do exterior também são de duas espécies: idolaforie
idola theatri. Os I. fori (da praça) derivam da linguagem freqüentemente usada ou de nomes de coisas que
não existem (como sorte, primeiro móvel, órbitas dos planetas, etc.) ou de nomes de coisas que existem,
mas são confusas (como gerar, corromper, grave, leve, etc). Os I. theatri (do teatro) derivam das doutrinas
filosóficas ou de demonstrações errôneas e Bacon as denomina assim porque compara os sistemas
filosóficos a fábulas que são como mundos fictícios ou cenas de teatro. A este propósito distingue três
falsas filosofias: a sofistica, cujo maior exemplo é Aristóteles; a empírica, cujo maior exemplo é a
alquimia; a supersticiosa, que se mistura à teologia e cujo maior exemplo é Platão (Nov. Org., I, 38-45).
Recentemente, essa teoria de Bacon sobre os I. foi considerada antecessora do conceito moderno de
ideologia (MANNHEIM, Ideology and Utopia, 1929, II, 2).
IGNAVA RATIO. V. RAZÃO PREGUIÇOSA.
IGNORABIMUS. V ENIGMAS
IGNORÂNCIA 534
ILUMINISMO2
IGNORÂNCIA (lat. Ignorantia; in. Ignoran-ce; fr. Ignorance; ai. Unwissenheit; it. Ignoranzà).Imperfeição do conhecimento, mais precisamente a deficiência, inseparável do saber humano e
devida às limitações do homem. Kant distinguiu a I. em objetiva e subjetiva. AI. objetiva consiste na
deficiência de conhecimentos de fato (I. material) ou na deficiência de conhecimentos racionais(I.
formal). A I. subjetiva é I. douta ou científica (de quem conhece os limites do conhecimento) [V. DOUTA
IGNORÂNCIA] ou I. comum, que é a I. do ignorante. Kant acrescenta que a I. é inculpãvelnas coisas cujo
conhecimento ultrapassa o horizonte comum, mas é culpávelnas coisas cujo saber é necessário e atingível
(Logik, Intr., VI). Esta observação de Kant ainda hoje é válida.
IGNORATIO ELENCHI (gr. èXéyiov ây-vota). Uma das falácias extra dictionem enumeradas por
Aristóteles (El. sof, 6, 168 a 18), mais precisamente a que consiste na ignorância daquilo que se deve
provar contra o adversário (cf. também PEDRO HISPANO, Summ. log., 7. 54; e ARNAULD, Log., III, 19, D
(V. FALÁCIA).
IGUALDADE (gr. ioóxnç; lat. Aequalitas; in. Equality; fr. Égalité; ai. Gleichheit; it. Egua-glianzd).
Relação entre dois termos, em que um pode substituir o outro. Geralmente, dois termos são considerados
iguais quando podem ser substituídos um pelo outro no mesmo contexto, sem que mude o valor do
contexto. Esse significado foi estabelecido por Leibniz (Op., ed. Gerhardt, VII, p. 228), mas Aristóteles
limitava o significado dessa palavra ao âmbito da categoria de quantidade, e que dizia eram iguais as
coisas "que têm em comum a quantidade" (Met., IV, 15, 1021 a 11).
A noção de I. assim generalizada (como possibilidade de substituição) presta-se tanto para as relações
puramente formais de equivalência ou de equipolência quanto às relações políticas, morais e jurídicas que
se denominam de igualdade. P. ex., a I. dos cidadãos perante a lei pode ser reduzida à possibilidade de
substituição dos cidadãos nas situações previstas pela lei sem que mude o procedimento da lei, de tal
forma que, p. ex., o réu por um crime d nas circunstâncias c pode ser substituído por qualquer outro réu
do mesmo crime na mesma circunstância, sem que o procedimento legal seja alterado. Do mesmo modo,
pode-se descrever a I. moral ou jurídica dizendo que, nela, x, que se encontre em determinadas condições,
possui prerrogativas
ou possibilidades não diferentes das possuídas por qualquer outro x nas mesmas condições. Esta claro que
o juízo de I. só pode ser pronunciado com base em determinado contexto, com base na determinação das
condições às quais os termos devem satisfazer para serem considerados substituíveis (cf. PEIRCE, Coll.
Pap., 3 42-44).
ILAÇÃO (lat. lllatio-, in. Illation; fr. Illation; it. Illazione). Em Apuleio e Boécio, esse termo traduz o
estóico èjn<popá; indica a proposição na qual se conclui um silogismo. Esse termo desaparece na lógica
medieval, sendo substituído por conclusio, para reaparecer na idade moderna indicando a complexa
operação men-tal-discursiva graças à qual se chega a estabelecer determinada proposição, ou essa mesma
proposição. G. P.
ILIACE. V. PURPUREA.
ILIMITADO (in. Boundless; fr. Illimité; ai. Unbegrenzi; it. Illimitató). A distinção entre infinito e
ilimitado foi feita por Aristóteles, que denominava o ilimitado de "infinito por semelhança". Enquanto no
infinito é sempre possível tomar uma nova parte, mas essa parte é sempre nova, no I. a parte que se pode
tomar nem sempre é nova. Um anel sem engaste é um exemplo de I.: é possível ir sempre além, ao longo
de sua circunferência, mas estar-se-á passando sempre pelos mesmos pontos (Fís., III, 6, 207 a 2). Essa
distinção, que ficou esquecida durante séculos, foi retomada por Einstein quando este afirmou que o
mundo é finito e ao mesmo tempo I., exatamente no sentido aristotélico ( Über die spezielle und die
allgemeine Relativitátstheorie, 1921, § 31; cf. EDDINGTON, The Nature ofthe Physical World, 1928, pp.
80-81)
ILOCUÇÃO. V. PERFORMATIVO.
ILUMINISMO1
(in. llluminism; fr. Illumi-nisme; ai. Illuminatism; it. Illuminatismó). Pretensão de ter
visão pessoal e direta de Deus ou das realidades transcendentes. Esse termo foi definido por Kant como
"uma espécie de democracia baseada em inspirações pessoais que podem diferir, de acordo com a cabeça
de cada um" (Religion, III, V; B 143).
ILUMINISMO2
(in. Enlightenment; fr. Phi-losophiedes lumières, ai. Aufklàrung; it. Illumi-nismó). Linha
filosófica caracterizada pelo empenho em estender a razão como crítica e guia a todos os campos da
experiência humana. Nesse sentido, Kant escreveu: "O I. é a saída dos homens do estado de minoridade
devido a
ILUMINISMO2
535
ILUMINISMO2
tíes mesmos. Minoridade é a incapacidade de Utilizar o próprio intelecto sem a orientação de outro. Essa
minoridade será devida a eles mesmos se não for causada por deficiência intelectual, mas por falta de
decisão e coragem para Utilizar o intelecto como guia. 'Sapere aude! Tem coragem de usar teu intelecto!'
é o lema do I." (Was ist Aufklàrung?, em Op., ed. Cas-sirer, IV, p. 169). O I. compreende três aspectos
diferentes e conexos: I
a
extensão da crítica a toda e qualquer crença e conhecimento, sem exceção; 2e
realização de um conhecimento que, por estar aberto à crítica, inclua e organize os instrumentos para sua
própria correção; 3e uso efetivo, em todos os campos, do conhecimento assim atingido, com o fim de
melhorar a vida privada e social dos homens. Esses três aspectos, ou melhor, compromissos
fundamentais, constituem um dos modos recorrentes de entender e praticar a filosofia, cuja expressão já
se encontra no período clássico da Grécia antiga (v. FILOSOFIA). O discurso de Péricles em Tucídides (II,
35-46) é a melhor e mais autêntica descrição do I. antigo. Por I. moderno entende-se comumente o
período que vai dos últimos decênios do séc. XVII aos últimos decênios do séc. XVIII: esse período
muitas vezes é designado simplesmente I. ou século das luzes.
I
a OI., por um lado, adota aygcartesiana na razão e, por outro lado, acha que é bem mais limitado o poder
da razão. A lição da modéstia que o empirismo inglês, sobretudo em Locke, dera às pretensões
cognoscitivas do homem não é esquecida: o empirismo, aliás, passa a fazer parte integrante do I. A
expressão típica desta limitação dos poderes da razão é a doutrina da coisa em si (v.), lugar-comum do I. e
como tal compartilhado por Kant. Essa doutrina significa que os poderes cognoscitivos humanos, tanto
sensíveis quanto racionais, vão até onde vai o fenômeno, mas não além. Assim, o I. é caracterizado, em
primeiro lugar, pela extensão da crítica racional aos poderes cognoscitivos, portanto pelo reconhecimento
dos limites entre a validade efetiva desses poderes e suas pretensões fictícias. O criticismo kantiano, que,
como Kant afirma, pretende levar a razão ao tribunal da razão (Crít. R. Pura, Pref. à I
a
edição), nada mais
é que a realização sistemática de uma tarefa que todo o I. assumiu.
Ao lado desta limitação dos poderes cognoscitivos, primeira característica do I. por ser o primeiro efeito
do compromisso de estender
a crítica racional a qualquer campo, há outro aspecto fundamental desse mesmo compromisso: não
existem campos privilegiados, dos quais a crítica racional deva ser excluída. Sob este segundo aspecto, o
I., mais que extensão, é correção fundamental do cartesianismo. De fato, para Descartes a crítica racional
não tinha direitos fora do campo da ciência e da metafísica. Os campos da política e da religião deveriam
continuar sendo tabus, e no próprio campo da moral Descartes acha que a razão não tenha a sugerir outra
coisa a não ser a reverência às normas tradicionais. O I. não aceita estas renúncias cartesianas; seu
primeiro ato, aliás, foi estender a indagação racional ao domínio da religião e da política. O deísmoQv.)
inglês é de fato a primeira manifestação do I.; consiste na tentativa de determinar a validade da religião
"nos limites da razão" (como dirá Kant), mas de uma razão cujas possibilidades já foram delimitadas
previamente pela experiência. Por outro lado, os Tratados sobre o governo de Locke iniciam a crítica
política iluminista, depois retomada e levada a termo por Montesquieu, Turgot, Voltaire e pelos escritores
da Revolução. No domínio moral, a Teoria dos sentimentos morais (1759) de Adam Smith, as obras dos
moralistas franceses (La Rochefoucauld, La Bruyère, Vauvenargues), que punham em evidência a
importância do sentimento e das paixões na conduta do homem, bem como as doutrinas morais de Hume,
marcam a abertura deste campo de indagação à crítica racional e à busca de novos fundamentos para a
vida moral do homem. Ao mesmo tempo, a obra de BEC-CARIA, Dei diritti e delle pene (1764), abria à
indagação racional o domínio do direito penal. Obviamente, os resultados obtidos em todos esses campos
são diferentes e sua importância varia. Mas o significado do I. não consiste na soma de seus resultados,
mas no fato de haver aberto à crítica domínios até então fechados e por haver iniciado em tais domínios
um trabalho eficaz que desde então não foi interrompido.
A atitude crítica própria do I. está bem expressa em sua resoluta hostilidade à tradição. Na tradição, o I.
vê uma força hostil que mantém vivas crenças e preconceitos que é sua obrigação destruir. Aquilo que
impropriamente tem-se denominado anti-historicismo iluminista na realidade é antitradicionalismo: a
recusa em aceitar a autoridade de tradição e de reconhecer nela qualquer valor independente da
ILUMINISMO2
536
ILUMINISMO2
razão. O Dicionário histórico e crítico (1697) de Bayle, concebido como coletânea e refuta-ção dos erros
da tradição, é o maior documento da atitude constante dos iluministas de todos os países. Tradição e erro
para eles coincidiam. E embora hoje essa tese possa parecer extremista e tão dogmática quanto a tese que
identifica tradição e verdade, não se deve esquecer que só ela, graças a um esforço hercúleo, possibilitou
a libertação dos fortes entraves que a tradição impunha à livre pesquisa, permitindo chegar aos novos
conceitos (de que ainda hoje dispomos) de história e de historiografia. Esta última vinha constituindo,
nesse período, os cânones que lhe garantiam, na medida do possível, a Independência em relação a
crenças e preconceitos no reconhecimento e na avaliação dos fatos. Por outro lado, a história vinha-se
configurando como o progresso possível (v. adiante).
2
Q
Já se disse que o empirismo fez parte do I. De fato, só a atitude empirista garante a abertura do
domínio da ciência e, em geral, do conhecimento, à crítica da razão, pois consiste em admitir que toda
verdade pode e deve ser colocada à prova, eventualmente modificada, corrigida ou abandonada (v.
EMPIRISMO). Isso explica por que o I. sempre esteve estritamente unido à atitude empirista. O empirismo
é o ponto de partida e o pressuposto de muitos deístas; é a filosofia defendida por Voltaire, Diderot,
D'Alembert e que, através da obra de Wolff, domina os rumos do I. alemão até Kant. Em estreita ligação
com essa atitude está a importância que o I. atribui à ciência. Com o I., a ciência, esta filha mais nova da
cultura ocidental, candidata-se ao primeiro lugar na hierarquia das atividades humanas. A física, cuja
primeira sistematização se encontra na obra de NEWTON {Princípios matemáticos de filosofia natural,
1687), é acatada pelos iluministas como a ciência mãe ou como a "verdadeira" filosofia. As pesquisas de
Boyle encaminham a química para a guinada decisiva, que levou à sua organização como ciência
positiva; a obra de Buffon e de outros naturalistas assinala, também para as ciências biológicas, etapas
fundamentais de desenvolvimento. Mas, também aí, o mais importante não são os resultados obtidos, mas
sim a direção do caminho tomado. Tudo o que esses resultados têm de dogmático, incompleto, provisório,
pode ser corrigido pelo próprio compromisso fundamental do I., de não bloquear a obra da razão em
nenhum campo e em nenhum nível.
3
a
O I. não é somente uso crítico da razão; é também o compromisso de utilizar a razão e os resultados
que ela pode obter nos vários campos de pesquisa para melhorar a vida individual e social do homem.
Esse compromisso não é compartilhado igualmente por todos os iluministas. Alguns deles, que
contribuíram de forma eminente para o desenvolvimento da crítica racional do mundo humano, não o
aceitam. Isso ocorre, p. ex., com Hume, que declara filosofar para seu próprio deleite. Mas, por outro
lado, ele constitui a substância da personalidade de muitos pensadores iluministas e também de
empreendimentos como a Enciclopédia, que tomaram para si a tarefa da luta contra o preconceito e a
ignorância. Essa luta, assim como a luta contra os privilégios empreendida pela Revolução Francesa com
base nos compromissos e nas concepções iluministas, tem como objetivo declarado a felicidade ou o
bem-estar do gênero humano. Nesse aspecto, o I. é responsável por duas concepções de fundamental
importância para a cultura moderna e contemporânea: a concepção de tolerância e a de progresso. O
princípio da tolerância religiosa, que não só exige a convivência pacífica das várias confissões religiosas,
mas também impede que a religião se torne um instrumento de governo, encontra no I. a primeira defesa
no sentido de defini-lo como elemento da cultura ocidental, não suscetível de negação no âmbito dessa
mesma cultura (v. TOLERÂNCIA). Por outro lado, o compromisso de transformação, próprio do I., leva à
concepção da história como progresso, ou seja, como possibilidade de melhoria do ponto de vista do
saber e dos modos de vida do homem. Voltaire, Condorcet e Turgot são os que mais contribuem para
formular a noção de um devir histórico aberto à obra do homem, suscetível de receber as marcas que o
homem lhe quer imprimir. Essa noção serviu para apagar o sentimento de fatalidade histórica que impedia
qualquer iniciativa de transformação. Mais tarde, o Romantismo dirá que a história é a própria Razão
Absoluta, que nela, em cada um de seus momentos, tudo aquilo que deve ser é e o progresso é fatal ou
inevitável; e verá no I., que contrapôs a história à tradição e negou esta última, uma concepção "abstrata"
ou "anti-histórica". Mas na realidade o que o Romantismo visava era apenas declarar inútil ou impossível
o compromisso de transformação: confiando na força da Razão Histórica, pretendia imprimir o selo da
eternidade nas
537
IMAGINAÇÃO
tlições em que a via encarnada. Isso con-que, se e quando a filosofia quiser as-a tarefa (que Platão já lhe
atribuía) de 'òrmar o mundo humano, a atitude ilu-. e seus pressupostos fundamentais são neiras
condições dessa tarefa. ILUSÃO (in. Illusion; fr. Illusion; ai. Illusion; sionè). Aparência errônea, que não
cessa 'o quando reconhecida como tal; p. ex., ,Como quebrado o bastão imerso na água. É a antiga, que
remonta aos epicuristas . L., X, 51) e se repete com freqüência em recentes, que as I. não pertencem aos
dos, mas ao juízo feito sobre o dado sen-Contudo, essas considerações hoje têm os importância, pois nem
a filosofia nem a ologia acham útil fazer uma distinção nítida dados sensíveis e funções intelectuais. Kant
!
u a I. como "o jogo que persiste mesmo "do se sabe que o objeto pressuposto não real" (Antr., § 13). E
nesse sentido, considerou atividade dialéticada razão como I. "Em nos-tazão (considerada subjetivamente
como facul-jggde cognoscitiva humana) existem normas e típios de uso que têm todo o aspecto de prinígtpios objetivos: por isso acontece que a neces-íltóade subjetiva de que haja certa conexão dos aossos
conceitos, em virtude do intelecto, seja (Considerada necessidade objetiva de determi-' tfaras coisas em si
mesmas. I. que não pode ser sfvitada, assim como não é possível evitar que «meio do mar pareça mais
alto que na praia iporque nós o vemos lá através de raios que são ■ pais elevados que os daqui; assim
como o as-, itrônomo não pode impedir que a lua lhe pareça maior ao surgir, mesmo que não se deixe
çnganar por esta aparência" (Crít. R. Pura, Dialética, Intr., I). As qualificações "natural" e 'inevitável" que
Kant atribui à I. transcendental, mas que são atribuíveis a qualquer ilusão, só fazem expressar o caráter
fundamental da I.: ao edntrário do erro, não deixa de existir mesmo ao ser identificada como I.
IMAGEM (gr. (pávtaou.a, cpavxaaía; lat. Jmago; in. Image; fr. Image; ai. Einbildung; it. Immaginé).
Semelhança ou sinal das coisas, que pode conservar-se independentemente das coisas. Aristóteles dizia
que as I. são como as coisas sensíveis, só que não têm matéria {De W-, III, 8, 432 a 9). Neste sentido a I.
é: I
a produto da imaginação (v.); 2B
sensação ou percepção, vista por quem a recebe. Neste segundo
significado, esse termo é usado constantemente tanto pelos antigos quanto pelos
modernos. Os estóicos distinguiam os dois significados empregando duas palavras diferentes:
denominavam imaginação (cpávTao"|J.a) a I. que o pensamento forma por sua conta, como acontece nos
sonhos, e I. (cpavxaoía) a marca que a coisa deixa na alma, marca que é uma mudança da própria alma. A
I. propriamente dita é "aquilo que é impresso, formado e distinto do objeto existente, que se conforma à
sua existência e por isso é o que não seria se o objeto não existisse" (DIÓG. L., VII, 50). Desse ponto de
vista, as I. podem ser sensíveis e não sensíveis (como as das coisas incorpóreas); racionais ou irracionais
(como as dos animais) e artificiais ou não artificiais (DIÓG. L., VII, 51). Conceito igualmente geral da I.
era o dos epicuristas, que admitiam a verdade de todas as I. porquanto produzidas pelas coisas: pois o que
não existe não pode produzir nada (DIÓG. L., X 32).
Esses conceitos passaram para a Idade Média e foram utilizados com fins teológicos, para esclarecer a
relação entre a natureza divina e a humana (cf., p. ex., S. Thomás, S. Th., I. q. 95). Na filosofia moderna,
foram retomados por Bacon {De augm. scient., II, 1, § 5) e Hobbes; para este, a I. "é ato de sentir e só
difere da sensação assim como o fazer difere do fato" {De corp., 25, § 3). Mas, em filosofia, o termo L,
em seu significado geral, começou a perder terreno para idéia (v.), em Descartes, e representação^.), em
Wolff. A preferência por esses dois termos persiste na filosofia contemporânea, que só lança mão do
termo I., em seu 2° significado, quando quer acentuar o caráter ou a origem sensível das idéias ou
representações de que o homem dispõe. É o que faz, p. ex., Bergson: "Vamos fazer de conta, por um
instante, que nada sabemos das teorias sobre a matéria e sobre o espírito, que nada sabemos sobre as
discussões acerca da realidade ou da idealidade do mundo externo. Estaremos então em presença da I. no
sentido mais vago em que se possa tomar essa palavra, I. percebidas quando abro meus sentidos, não
percebidas quando os fecho" {Matière et mémoire, cap. 1).
IMAGINAÇÃO (gr. cpavtaaía; lat. Imagi-natio, Phantasia; in. Imagination; fr. Imagination; ai.
Eínbildungskraft; it. Immaginazioné). Em geral, a possibilidade de evocar ou produzir imagens,
independentemente da presença do objeto a que se referem. Aristóteles definiu a I. nesses termos, sendo o
primeiro a analisá-la, em De anima (III, 3). Aristóteles distinguiu a
IMAGINAÇÃO
538
IMAGINAÇÃO
I. em primeiro lugar da sensação, em segundo lugar da opinião. I. não é sensação porque uma imagem
pode existir mesmo quando não há sensação; p. ex., no sono. I. não é opinião porque a opinião exige que
se acredite naquilo que se opina, enquanto isso não acontece com a I., que, portanto, também pode
pertencer aos animais. O caráter que aproxima a I. da opinião é que ela, assim como a opinião, também
pode ser falaz. Aristóteles considerou a imaginação como uma mudança {kinesis) gerada pela sensação,
semelhante a esta, embora não ligada a ela. {De an., III, 428 b 26). Nesse sentido, a I. é condição da
apetição, que tende para alguma coisa que não está presente e da qual não se tem sensação atual {Ibid.,
433 b 29). Esse conceito de I. permaneceu inalterado por muito tempo. Como Aristóteles já observara, a I.
confere à alma possibilidades várias, ativas ou passivas, que são enfatizadas por muitos filósofos. S.
Agostinho diz: "As imagens são originadas por coisas corpóreas e por meio das sensações: estas, uma vez
recebidas, podem ser facilmente lembradas, distinguidas, multiplicadas, reduzidas, ampliadas,
organizadas, invertidas, recompostas do modo que mais agrade ao pensamento" {De vera rei, 10, § 18).
Todas essas são possibilidades próprias da imaginação. E S. Tomás, que pouca ou nenhuma importância
atribui à I., que, assim como a sensibilidade, se limita a captar a semelhança e não a essência das coisas
(5. Th., I, q. 57, a. I), atribui entretanto múltiplas funções ao seu produto, que é a imagem {Ibid., q. 93, a.
9). A definição de I. não muda muito nas fases posteriores da história desse termo, mas as funções a ela
atribuídas tendem a ser cada vez mais numerosas e complexas. Francis Bacon, em De augmentis
scientiarum {1623), o elaborar o plano de uma nova enciclopédia das ciências, colocava a I. ao lado da
memória e da razão, como uma das faculdades fundamentais, a que serve de base para a poesia. Ainda
mais radicalmente, Descartes, em Regulae ad directionen ingenii, reconhecia na I. a condição de
atividades espirituais diversas: "Essa mesma força, se aplicada com a I. ao senso comum, denomina-se
ver, tocar, etc; se aplicada à I. apenas, coberta de figuras diversas, denomina-se lembrança; se aplicada à I.
para criar novas figuras, denomina-se I. ou representação; se por fim age sozinha, chama-se
compreender" {Regulae, XII). Hobbes também via na I. uma condição fundamental das atividades
mentais. Ele a vinculava estreitamente à
sensação: "Na realidade, a I. nada mais é que uma sensação enfraquecida ou langorosa por estar distante
do seu objeto" {De corp., 25, § 7). E via ná I. a inércia do espírito. Assim como um corpo em movimento
se moverá eternamente se não surgir obstáculo, nós conservamos a imagem, ainda que mais confusa, de
um objeto que não está mais presente ou diante do qual fechamos os olhos. É isso que os latinos
chamavam de I. e os gregos, de fantasia. Trata-se de uma sensação atenuada, comum aos homens e a
outras criaturas, no sono e na vigília" {leviath., I, 2). Hobbes relaciona com a I. a memória, a experiência
e, por intermédio destas, também o intelecto e o juízo {Ibid., I, 12).
Essa função da I. na organização geral das faculdades humanas torna-se dado comum da filosofia dos
sécs. XVII e XVIII. Spinoza, que é propenso a atribuir à I. todos os erros da mente humana, diz que a
mente não erra porque imagina, mas apenas porque acredita na presença das coisas imaginadas, que, por
definição, não estão presentes. {Et., II, 17, Scol). Hume, que concorda com Hobbes quanto à função
fundamental da I., acredita que o que distingue a I. propriamente dita da memória e que portanto está na
base da crença, que acompanha a própria memória assim como acompanha a sensibilidade, é unicamente
o fato de as idéias da memória serem mais fortes e vivas que as da I. {Treatise, I, III, § 5). Obviamente, a
função geral atribuída à I. em relação às outras atividades do espírito implica que se diferenciem essas
funções da outra específica, que leva o nome de I.; e isso leva à distinção de vários tipos de I., que foram
enumerados no séc. XVIII. Wolff distinguia a I. ("faculdade de produzir as percepções das coisas
sensíveis ausentes" [Psychol. empírica, § 92]) da facultas fingendi, que consiste "em, através da divisão e
da composição das imagens, produzir a imagem de uma coisa nunca percebida pelos sentidos" {Ibid., §
138). Análoga a esta foi a distinção estabelecida por Kant, que vê na I. "a faculdade das intuições, mesmo
sem a presença do objeto", dividindo-a em produtiva, que é "o poder de representação originária do
objeto {exhibitio originaria) e precede a experiência", e reprodutiva {exhibitio derivativa), que "traz de
volta ao espírito uma intuição empírica anterior". Só as intuições puras de espaço e de tempo são produtos
da I. produtiva. A I. reprodutiva, mesmo quando é denominada poéti-
ÜAGINAÇÃO 539
IMANÊNCIA
, ÇO, nunca é criadora, porque não pode criar
' çfna representação sensível que não tenha sido
Mnca antes dada à sensibilidade, mas dela
iRijipre extrai seu material (Antr., I, § 28). O
ceito de I. produtiva — que para Kant é feiamente formal, pois só produz as condi-'■Çpes da intuição
(espaço-tempo) — fora utili-' i mais amplamente na primeira edição de
fica da Razão Pura, onde se falava de uma ntese da produção na I.", considerada como '.^condição da
síntese conceituai da apercepçâo. :
4 partir de Fichte, o idealismo romântico atribui à I. um alcance bem
maior que o atribuído jgpr Kant, que a confinara aos limites das con-$ções formais. Para Fichte, a I. é a
ação recí-groca e a luta entre o aspecto finito e o aspecto Itofinito do Eu, ou seja, o aspecto graças ao qual
,0?u impõe um limite à sua atividade produtiva ,^o aspecto graças ao qual o supera e o distancia. 4|
oscilação desse limite (que é a representa-■ ç9o) do produto faz da I. algo de flutuante Ôltre realidade e
irrealidade. Fichte diz: "A I. produz a realidade, mas nela não há realidade; ;*& depois de concebida e
compreendida no ÉBtelecto, seu produto se torna algo de real" QVissenschaftslehre, 1794, II. Dedução da
re-•^(fesentação, III). Essa função criadora da I. tornou-se lugar-comum do Romantismo. Sobre efa,
Hegel implantou a distinção entre I. e fan-Bsia. Ambas são determinações da inteligência, ipas a
inteligência como I. é simplesmente íéprodutiva, ao passo que como fantasia é criadora, é "I.
simbolizante, alegorizante ou poe-tante" {Ene, §§ 455-57). Sobre o poder criador da fantasia, Hegel
fundou seu conceito de gê-lúo (Vorlesungen überdieÀsthetik, ed. Glockner, I, pp. 378 ss.). Tais
observações constituíram o ponto de partida para a distinção entre fantasia ç.1., utilizada sobretudo pela
estética romântica e por suas ramificações, até Croce (v. FANTASIA). Afora essa estética, hoje nem a
filosofia nem a psicologia estabelecem mais, entre I. e fantasia ou entre I. reprodutiva e I. produtiva, a
mesma diferença radical (de qualidade mais <pje de grau) que a estética romântica supunha. A
fenomenologia, em particular, atribuiu uma função especial à I., pois a ela é confiada a representação das
vivências como puros objetos de contemplação, o que constitui a própria possibilidade da fenomenologia.
Por isso, Husserl diz: "Na fenomenologia, como em todas as ciências eidéticas, as representações, mais
precisamente as fantasias livres, têm posição privilegiada em relação às percepções" ildeen, I, § 70). Isso
acontece porque, ao representar-se como "livres fantasias", as experiências humanas revelam sua
verdadeira natureza, porquanto se tornam puros objetos de contemplação desinteressada. Deste ponto de
vista Husserl afirma paradoxalmente que "aficçãoé o elemento vital da fenomenologia" ilbid., § 70). Mas,
sem levar em conta essa função vital que a I. reprodutiva desempenha na fenomenologia, as tarefas que
ela parece cumprir nas análises filosóficas e psicológicas contemporâneas não são diferentes das que ela
parecia cumprir nas análises dos filósofos do séc. XVIII. Por vezes se põe em relevo a função que a I.
desempenha nas ciências, especialmente na matemática (cf. p. ex., PEIRCE, Coll. Pap., 4232), mas nem
por isso se lhe atribui o poder criativo mágico que a estética romântica via nela.
IMAGINAÇÃO TRANSCENDENTAL. V IMAGINAÇÃO.
IMANÊNCIA (in. Immanence-, fr. Immanence; ai. Immanenz; it. lmmanenzà). Esse termo pode
significar: le
presença da finalidade da ação na ação ou do resultado de uma operação qualquer na
operação; 2Q
limitação do uso de certos princípios à experiência possível e recusa em admitir
conhecimentos autênticos que superem os limites de semelhante experiência; 3B
resolução da realidade na
consciência.
l
s
Era com o primeiro significado que os escolásticos falavam de ação imanente, que "permanece no
agente", como entender, sentir, querer, porquanto distinta da ação transitiva (transiens), que passa para
uma matéria externa, como serrar, esquentar, etc. (cf. por todos S. TOMÁS, 5. Tb., I, q. 14, a. 2; q. 18, a. 3;
q. 23, a. 2; q. 27, a. I etc). Essa distinção só fazia expressar a distinção feita por Aristóteles entre
movimento (KÍvr|criç) e atividade (èvépYEta) no IX livro da Metafísica (6, 1048 b 18), considerando
como movimento a ação que tem fim fora de si, e atividade as ações que têm fim em si mesmas.
Aristóteles empregara a esse propósito o verbo èvimáp%£iv, que significa inerir como parte essencial ou
constitutiva. Spinoza empregou o adjetivo no mesmo sentido, afirmando que "Deus é causa imanente, não
transitiva, de todas as coisas" querendo com isso dizer que "Deus é causa das coisas que estão nele", e
que nada há fora de Deus (Et., I, 18). A distinção aristotélica foi retomada pelos wolf-fianos (cf.
BAUMGARTEN, Met., § 211). É evidente que, neste sentido, I. significa permanência do fim, do resultado
ou do efeito de uma ação no seu agente.
IMANÊNCIA, FILOSOFIA DA
540
IMATERIALISMO
2
S
O segundo significado desse termo corresponde ao emprego que Kant faz do adjetivo, chamando de
imanentes "os princípios cuja "aplicação se tem em tudo e por tudo dentro dos limites da experiência
possível", contrapon-do-se, portanto, aos princípios "transcendentes". que ultrapassam esses limites iCrít.
R. Pura, Dialética, Intr., I; Prol, § 40). Nesse sentido, I. significa limitação do emprego de certos
princípios ao domínio da experiência possível, e renúncia a estendê-los além dele.
3
B
O terceiro significado de I. foi estabelecido pelo idealismo pós-kantiano. Fichte diz: "No sistema
crítico, a coisa é aquilo que está posto no Eu; no dogmático, aquilo em que o Eu é posto; assim, o
criticismo é imanente porque põe tudo no Eu; o dogmatismo é transcendente porque vai além do Eu"
(Wissenschaftslehre, 1794, I, § 3, D; trad. it., p. 77). Essa terminologia, que é seguida por Schelling,
atribui ao adjetivo "imanente" a característica do idealismo absoluto, para o qual nada existe fora do Eu.
Contudo, é evidente a analogia desse significado com o de Spinoza, para quem a ação de Deus é imanente
porque não vai além de Deus. Nesse sentido, a I. é a inclusão de toda a realidade no Eu (ou Absoluto ou
Consciência) e a negação de qualquer realidade fora do Eu. No mesmo sentido, Gioberti falava de
"pensamento imanente" (Protologia, I, p. 173) e insistia na imanência o idealismo italiano entre as duas
guerras.
Comum a esses três significados do termo é o conceito de imanente como tudo que, fazendo parte da
substância de uma coisa, não subsiste fora dessa coisa.
IMANÊNCIA, FILOSOFIA DA (In. Imma-nence Philosophy, fr. Philosophie de Vimma-nence; ai.
Immanenzphilosophie; it. Filosofia delia immanenzà). Com esta expressão Guilherme Shuppe (1836-
1913) designou o ponto de vista fundamental de sua filosofia, segundo o qual" o mundo está na
consciência", porém não na consciência individual, mas na "consciência em geral", que é o conteúdo
comum das consciências individuais (Grundriss der Erkenntnistheorie und Logik, 1894, 2a
ed., 1910, §
31).
IMANÊNCIA, MÉTODO DA (in. Method of Immanence-, fr. Méthode d'immanence; ai. Immanenzmethode-, it. Método delia immanenzà). Assim foi denominado por Blondel, Laberthon-nière e
outros o método de apologética religiosa, que tende a mostrar que o divino é, de
alguma maneira, imanente no homem, pelo menos sob forma de necessidade, aspiração ou exigência
(BLONDEL, Lettre sur les exigences de Ia pensée contemporaine en matière d'Apolo-gétique, 1896;
LABERTHONNIÈRE, Essais de philosophie religeuse, 1903). Le Roy deu a esse método uma expressão
ainda mais generalizada, denominando-o "princípio de I." e expressan-do-o da seguinte forma: "tudo é
interno a tudo, e no mínimo detalhe da natureza ou da ciência a análise encontra toda a natureza e toda a
ciência" (Dogme et critique, 1907, p. 9) (v. AÇÃO, FILOSOFIA DA).
LMANENTISMO (in. Immanentism-, fr. Im-manentisme, ai. Immanentismus; it. Immanen-tismò). 1.
Indica-se com esse termo a doutrina que admite a imanência no 3S
significado, negando qualquer
realidade ou ser fora da consciência ou da autoconsciência. Neste sentido são doutrinas imanentistas o
idealismo romântico, o idealismo gnosiológico e todas as formas do consciencialismo.
2. Esse termo também é usado para indicar a doutrina da imanência no 1Q
significado, em que eqüivale a
panteísmo (v.).
3. Algumas vezes, especialmente em francês, esse termo é empregado para designar o método da
imanência (v.).
IMATERIALISMO (in. Immaterialism; fr. Im-matérialisme, ai. Immaterialismus; it. Imma-terialismo).
Termo criado por Berkeley para indicar a doutrina da negação de existência da realidade corpórea e da
redução desta a idéias impressas nos espíritos finitos diretamente por Deus {Dialogues between Hylas
andPhilonous, III; Works, ed. Jessop, II, pp. 259 ss.). Essa doutrina foi denominada e denomina-se mais
co-mumente idealismo (no ls
sentido). O argumento fundamental adotado por Berkeley em favor do I. é
que as coisas e suas propriedades não são mais que idéias que, para existirem, precisam ser percebidas
(esse estpercipt), portanto pensar coisas que não sejam percebidas eqüivale a defini-las como "não
pensadas" mesmo enquanto são pensadas. A diferença entre as idéias reais, que são as coisas, e as idéias
simplesmente imaginadas, que são co-mumente chamadas de idéias, consiste, segundo Berkeley, no fato
de que as primeiras são produzidas no nosso espírito por Deus e as outras são produzidas por nós
mesmos. Portanto, a mais simples percepção de uma coisa na realidade é a percepção de uma ação de
Deus sobre nós e implica a existência de Deus, ao
TO
541
IMEDIATO
que, a admitir-se a matéria, deve-se atri-' a ela a causalidade das próprias idéias e ~-se dispensar Deus. O
materialismo é por o fundamento do ateísmo e da irreligião, como o I. é o fundamento da religião ciples
ofHuman Knowledge, I, 92 ss.). IMEDIATO (gr. aueooç; in. Immediate; fr. iiat; ai. Unmittelbar, it.
Immediató). Qua->se geralmente com este termo todo obje-que pode ser reconhecido ou proposto sem de
qualquer outro objeto: p. ex., uma que pode ser percebida sem ajuda de idéia, um fato que pode ser
constatado i ajuda de outros fatos, uma proposição que ie ser considerada verdadeira sem recorrer -outras
proposições, etc. Assim, Aristóteles gamava de I. a premissa "à qual nenhuma é anterior" {An. post., I, 2,
72 a 7), ou ,^pja, a premissa cuja verdade é obtida sem recorrer à verdade de outras premissas. Em
sentido análogo, Descartes afirmava entender por "Ipnsamento "tudo aquilo que está de tal forma ; nós
que nós o percebemos imediatamen-sfjpem nós mesmos" {URép., def. 1), onde ime-0atamente lhe servia
"para excluir as coisas gue se seguem e provêm do nosso pensamento". Slínda analogamente Locke
entendia por co-.ahecimento intuitivo a percepção da concor-ncia e da discordância entre as idéias por si
giesmas e imediatamente, ou seja, sem ajuda (fe idéias intermediárias {Ensaio, IV, 2, 1).
Faz parte do conceito de imediação, assim entendido, a pretensão de que o I. não precisa , de outra coisa
para exigir o reconhecimento de Sua validade. Assim, para Descartes a ime-ção do pensamento constitui
a própria vali-rfade da proposição Eu sou, e para Locke a feiediação da relação entre as idéias torna esta
relação mais segura do que a relação mediata, ou seja, demonstrativa {Ibid., IV, 2, 4). É, pois, Supérfluo
lembrar que as premissas imediatas de Aristóteles têm validade necessária como princípios primeiros da
demonstração. Privilé-gio análogo geralmente é atribuído às formas de conhecimento I., como p. ex. a
intuição. Kant atribuía à intuição o privilégio de ser "o I. presença do objeto" {Prol., § 8), mas ao mesmo
tempo negava que existisse uma intuição "não sensível", algo mais que uma modificação passiva, que
uma afeição. Mas a filosofia moderna e contemporânea falou com freqüência de intuição não sensível:
basta lembrar, por um kdo, a intuição eidética de que fala Husserl e,
por outro, a intuição simpática de que fala Bergson: a primeira tem por objeto as essências-, a segunda
tem por objeto a consciência em sua duração (v. INTUIÇÃO). Ambas essas intuições são caracterizadas
pelo caráter L: captam os respectivos objetos sem necessidade de intermediários.
Hegel, provavelmente o crítico mais radical do privilégio da imediação, denominou "filosofia do saber I."
a filosofia da fé de Jacobi. Kant já se manifestara contrário a essa filosofia, recusando-se a admitir que a
fé ou qualquer outra atividade sentimental ou I. do homem pudesse ir além dos limites da razão, que são
enfim os mesmos da experiência possível {Was heisst: Sich inDenken orientieren?, 1786). Mas a crítica
de Kant é especialmente dirigida contra o fanatismo (v.) que ele vê implícito nessa posição, ao passo que
a crítica de Hegel é dirigida contra a imediação. Para Hegel, a forma da imediação "dá ao universal a
unilateralidade de uma abstração, de tal forma que Deus se torna a essência indeterminada, mas Deus só
pode ser chamado de espírito na medida em que se sabe, mediando-se em si consigo mesmo. Só assim é
concreto, vivo, espírito: a saber de Deus, como espírito, exatamente por isso contém em si a mediação"
{Ene, § 74). Para Hegel, a mediação (v.) é o retorno da consciência sobre si mesma, a autoconsciência,
que é a forma última e suprema da realidade e, por isso, identificada por Hegel com Deus. Negar a
mediação significa, portanto, negar a superioridade da autoconsciência sobre a consciência. O I. é a forma
mais simples da consciência, é "o intuir abstrato", que é o intuir no qual aquilo que intui (a consciência)
se considera diferente daquilo que é intuído (o objeto da consciência). Esta crítica, como se vê, é típica da
filosofia hegeliana: faz parte integrante dela, mas não é utilizável fora dela. No mundo contemporâneo,
em que o domínio do saber tende a ser coberto pelas várias disciplinas científicas, o I. perdeu seus
privilégios, mas por razões que nada têm a ver com as aduzidas por Hegel. O objeto de uma investigação
científica nunca é I., pois sua validade só pode ser estabelecida com o auxílio de instrumentos ou
procedimentos mais ou menos complicados, portanto de forma indireta e mediata. Até os objetos da visão,
que tradicionalmente constituíam o modelo dos objetos I., perderam esse caráter para a psicologia
contemporânea, que tende a
IMITAÇÃO
542
IMORTALIDADE
evidenciar as complexas estruturas e os procedimentos mediatos da percepção (v.). Contudo, muitos
filósofos ainda privilegiam alguma forma de conhecimento imediato. E o que fez Russell, ao admitir
como ponto de partida de todo conhecimento o conhecimento imediato {acquaintancé), de cujos objetos
"ficamos cientes diretamente, sem intermediários" (Human Knowledge, 1948, p. 196 e pas-sirrí). Para
Russell, qualquer conhecimento, em última análise, deve ser reintegrado nesses "dados egocêntricos". Ao
mesmo tempo, Carnap considerou como elementos originários, que fazem parte da construção lógica dos
objetos da ciência, as vivências elementares {Elemen-tarerlebnisse [Der Logische Aufbau der Welt, §
65]). Mas nesses pressupostos e em outros semelhantes, a filosofia da ciência afasta-se das análises e das
conclusões da própria ciência.
IMITAÇÃO. V. ESTÉTICA.
EVtORALISMO (in. Immoralism-, fr. Imtno-ralisme, ai. Immoralismus; it. Immoralismó). Expressão
adotada por Nietzsche para expressar sua posição de antagonismo à moral tradicional e sua tentativa de
efetuar uma "reviravolta dos valores". Nietzsche dizia: "Sabe-se qual é a palavra que preparei para esta
luta, a palavra imoralista; minha fórmula também é conhecida: além do bem e do mal" (Wille zur Macht,
1901, § 167, c).
IMORTALIDADE (in. Immortality, fr. Im-mortalité; ai. Unsterblichkeit; it. Immortalita). Uma das
crenças mais difundidas nas filosofias e nas religiões do Oriente e do Ocidente. Do ponto de vista
filosófico, pode assumir duas formas diferentes: I
a
a crença na I. da pessoa individual, ou seja, da alma
humana em sua totalidade; 2- a crença na I. daquilo que a pessoa individual tem em comum com um
princípio eterno e divino, só da parte impessoal da alma. É necessário, pois, considerar em terceiro lugar
as provas aduzidas pelos filósofos em favor da imortalidade.
I
a A I. da alma individual foi admitida por órficos, pitagóricos e por Platão. Os ecléticos (v. p. ex. CÍCERO,
Tusc, I, 26-35) também a admitiram, bem como Plotino {Enn., III, 4, 6). Na Patrística e na Escolástica, a
I. da alma individual é lugar-comum, e fora das disputas dos aristotélicos ela também se mantém como
lugar-comum no Renascimento. Os naturalistas do Renascimento admitem a I. (CAMPANELLA, De sensu
rerum, II, 24; BRUNO, Detriplici minimo,
I, 3). Ao lado da alma material, que é a única que preside às operações humanas (inclusive a moralidade)
e é mortal, Telésio admite uma alma divina, que é o sujeito da aspiração do homem à transcendência e é
imortal {De rer. nat., V, 2). A demonstração da I. é uma das finalidades declaradas da filosofia de
Descartes e um aspecto importante da filosofia de Leibniz {Teod., I, 89) e da filosofia alemã pré-kantiana
(BAUMGARTEN, Met., § 776). A I. da alma continua fazendo parte de todas as formas mona-dológicas do
espiritualismo moderno e contemporâneo, visto estar claro que a mônada, seja ela criada ou incriada, é em
qualquer caso imortal.
2- A teoria da I. parcial tem origem em Aristóteles. Após distinguir o intelecto ativo do passivo,
Aristóteles diz que "o intelecto ativo" é se-parável, impassível e sem mistura porque, por sua substância, é
ato; e que só ele "é imortal e eterno" {De an., III, 5. 430 a 17). Por sua "impassibilidade", o intelecto ativo
não conserva as determinações particulares, por isso não se identifica com a totalidade da alma humana,
que também compreende o intelecto passivo. Essa doutrina foi incorporada pelos estóicos em sua
metafísica, segundo a qual a alma do homem é uma parte do Espírito Cósmico e, como este, é imortal
(DIÓG. L., VII. 156). Clean-tes afirmava que todas as almas durarão até a conflagração final; Crisipo
acreditava que somente as almas dos sábios durarão até esse momento (DIÓG. L., VII, 157).
Na Idade Média, o aristotelismo árabe retomou doutrina semelhante a esta. Averróis dava um passo a
mais que Aristóteles no que se refere à relação entre o intelecto e o restante da alma humana: não só o
intelecto ativo, como julgava Aristóteles, mas também o intelecto passivo (ou material ou Mico) estão
separados da alma humana, à qual só pertence o intelecto aquisitivo ou especulativo, que é a disposição
essencial para participar das operações do intelecto. Este é, portanto, único, separado e divino, e a alma
humana nada tem de verdadeiramente imortal {De an., III, 1). Esse ponto de vista, seguido pelos
averroístas latinos, que reduziam a I. da alma a pura questão de fé (p. ex., MANDONNET, Siger
deBrabante, II, p. 167), também foi adotado pelos averroístas e pelos alexandristas do Renascimento.
Pomponazzi afirmava a respeito que a diferença entre intelecto ativo ou separado e o intelecto humano
MORTALIDADE
543
IMORTALIDADE
consiste no fato de o intelecto humano necessitar <Jo órgão físico (De immortalitate animae, 9). I. parcial
ou impessoal também é a que Spinoza atribui à alma humana, ao dizer que "a mente humana não pode ser
destruída totalmente com o corpo, mas que dela fica alguma coisa que é eterna" (Et., V, 23); em outros
termos, a alma é eterna enquanto modo ou manifestação da Substância Divina. O Romantismo não esteve
mais interessado que Spinoza na I. da alma individual. Hegel dizia: "Para nós, o essencial da crença na I.
é que a alma tem em si um fim eterno, totalmente diferente de seu objetivo finito e portanto um valor
infinito. É essa superioridade que confere interesse à fé na sobrevivência da alma". (Phil. der Gescbichte, ed. Lasson, p. 494; trad. it., II, pp. 267-68). Realmente, para Hegel o que é imortal, aliás eterno, é
o Espírito do Mundo, que se encarna nos povos e nos Estados, que se alternam como seus portadores. Por
outro lado, todas as formas de panteísmo (v.), antigas ou modernas, admitiram uma I. parcial ou
partilhada, que na realidade significa a eternidade de um princípio que só parcial ou temporariamente se
encarna no homem. O próprio Berg-son parece sugerir tal forma de L, ao considerar o corpo como um
simples "instrumento de ação" e ao identificar a alma com a corrente da "lembrança pura", que não tem
mais individualidade alguma (Matière et ménioire, Résumé et conclusion).
3
a
A maior parte das provas aduzidas pelos ; filósofos em favor da I. não são suficientemente precisas para
poderem ser invocadas em apoio a qualquer uma das crenças acima. As provas mais concludentes, pelo
menos à primeira vista, são as que partem dos dois conceitos que tradicionalmente definem a natureza da
alma: a causalidade e a substancialidade. Mas estas também são as provas mais radicalmente criticadas.
I. Uma das provas mais antigas é a deduzida do movimento. Aristóteles relata que Alcméon de Cróton
julgava a alma imortal e divina porque ela está sempre em movimento, assim como as coisas divinas, ou
seja, a lua, o sol, etc. (De an., I, 2, 405 a 30). Platão adotava essa argumentação: "Toda alma é imortal
porque o que se move incessantemente é imortal. Aquilo que move outra coisa e é movido por outra
coisa, ao parar de mover-se, pára de viver. Só o que se move por si, pelo
que nunca falta a si mesmo, nunca deixa de mover-se, mas é também fonte e princípio de movimento para
todas as coisas que se movem" (Fed., 245 d). A crítitica a esse argumento foi feita por Aristóteles, para
quem era impossível que a alma fosse movida, portanto que pudesse ser movida por outra coisa ou por si
mesma (De an., I, 3).
II. O segundo argumento é deduzido da definição de alma como substância-, como substância, a alma é
ser em ato e, como ser em ato, é imorredoura (ARISTÓTELES, De an., III, 5, 430 a 17). Platão expôs este
argumento no Fédon, em sua forma mais popular, asseverando que a alma, por participar necessariamente
da idéia de vida, não pode deixar de viver, do mesmo modo como o número três, que participa
necessariamente da idéia de ímpar, não pode deixar de ser ímpar (Fed., 104-07). S. Tomás expressou o
argumento de Aristóteles ao afirmar que "aquilo que tem ser por si não pode ser gerado e corrompido",
pois "o ser por si é próprio da forma enquanto ato" (S. Th., I. q. 75, a. 6). Este argumento foi criticado por
Duns Scot: para este, a alma não tem ser por si no sentido de subsistir por conta própria e de não poder
ser a título algum separada do ser: isto significaria que nem Deus pode criá-la e destruí-la, o que é falso
(Rep. Par, IV, d. 43, q. 2, nQS 18-19). Esse argumento foi ainda mais radicalmente criticado por Kant, que
demonstrou o caráter sofista da afirmação da substancialidade da alma, porquanto tal afirmação só faz
transformar sub-repticiamente em substância a simples relação funcional que o sujeito pensante tem
consigo mesmo, ou seja, o Eu penso (Crít. R. Pura, Dialética, cap. I).
III. O terceiro argumento é deduzido de um corolário da tese de substancialidade da alma, ou seja, da
simplicidade da substância alma. Em vista dessa simplicidade, a alma não pode corromper-se, pois que a
corrupção (como passagem de um contrário a outro) implica composição, donde os corpos, também se
forem simples (como os celestes), serão incorruptíveis. Platão afirmava que a alma, por ser invisível
como as idéias, deve ser imutável e inde-componível com elas (Fed., 78c ss.). S. Tomás expõe argumento
análogo com outra forma, (cf. especialmente Contra Gent, II, 55). Uma variante dele foi dada por
Mendelssohn, em Fédon (1766), com a tese de que a alma, em vista de sua simplicidade, não pode morrer
por
IMORTALIDADE 544
IMORTALIDADE
decomposição, mas nem por extinção. De fato, não podendo ela ser diminuída pouco a pouco e depois
reduzida ao nada (já que não tem partes), não deveria haver espaço de tempo entre o instante em que ela é
e aquele em que ela não é mais. Kant notava a propósito que, mesmo não tendo quantidade extensiva, a
alma poderia e deveria ter, assim como a consciência, uma quantidade intensiva, ou seja, um grau (Crít.
R. Pura, Confutação do argumento de Mendelssohn).
IV. O quarto argumento é deduzido da presença da verdade na alma (PLATÃO, Mên., 86a). S. Agostinho
diz: "Se aquilo que está num sujeito (subiectum) dura para sempre, necessariamente o sujeito também
dura para sempre. Ora, toda ciência (disciplina) existe na alma como em seu sujeito; conclui-se
necessariamente que a alma dura para sempre, se a ciência dura para sempre. Mas a ciência é verdade e a
verdade dura para sempre; portanto, a alma dura para sempre também e nunca pode ser considerada
morta" (Solil, II, 13). Esse argumento foi repetido por S. Tomás (Contra Gent., II, 55): "Sendo
incorruptível o objeto do intelecto, o próprio intelecto será incorruptível." Foi criticado pelos
alexandristas do Renascimento, particularmente por Pomponazzi. "Para o intelecto é essencial entender,
através de imagens, como resulta claro da definição de alma como ato de um corpo físico-orgânico. Por
isso o intelecto, em cada uma de suas funções, necessita de um órgão. Mas aquilo que assim entende é
necessariamente inseparável do corpo. Portanto o intelecto humano é mortal" (De imm. animae, 9).
Argumento semelhante ao de Agostinho algumas vezes foi repetido por filósofos modernos com
referência à presença de valores ideais na alma humana, ou seja, da Verdade, da Beleza e do Bem (p. ex.,
C. H. HOWISON, The Limits of Evolution, 1901, cap. 6).
V. Argumento análogo a este foi deduzido por S. Anselmo da presença do amor por Deus na alma. A
alma humana, como criatura racional, "foi criada para amar sem cessar a Substância Suprema. Mas não
poderia fazê-lo se não vivesse para sempre; portanto, a alma é feita para viver sempre, conquanto queira
fazer sempre aquilo para que foi feita. Além disso, não estaria de acordo com a suprema bondade,
sabedoria e onipotência do Criador reduzir a nada uma criatura por ele criada para amá-lo, até que ela o
ame" (Monologion, 69).
VI. O sexto argumento é extraído do desejo natural de imortalidade. S. Tomás diz: "Qualquer um que
tenha inteligência naturalmente deseja existir para sempre. Mas um desejo natural não pode ser vão.
Portanto, toda substância intelectual é incorruptível" (S. Th., I. q. 75, a. 6). Conquanto S. Tomás aduza
esse argumento como simples signum da I., ele foi repetido com freqüência.
VII. O sétimo argumento apresenta a I. como exigência da vida moral do homem. Esse argumento não
teve muita aceitação na Antigüidade: valeu mais como motivo, freqüentemente inconfesso, para que os
filósofos procurassem provas demonstrativas da imortalidade. Duns Scot negava que fossem conclusivas
as razões extraídas da aspiração da alma à bem-aventurança eterna e à justiça capaz de retribuir o bem e o
mal. A razão natural deveria pelo menos dar-nos a conhecer que a bem-aventurança eterna é o fim
adequado à nossa natureza, o que não acontece; quanto à necessidade de prêmio ou de castigo, pode-se
dizer que cada um encontra retribuição suficiente em sua própria ação boa e que o primeiro castigo do
pecado é o próprio pecado (Op. Ox., IV, d. 43, q. 2, n2
27, 32). Portanto, para Duns Scot, a I. da alma era
pura verdade de fé, não susceptível de tratamento demonstrativo. Pomponazzi retomou esse ponto de
vista em sua critica ao argumento moral (De imm. animae, 14). Na filosofia moderna, contudo, esse foi o
argumento que obteve maior receptividade, o que se explica com facilidade, visto que, com o declínio da
metafísica antiga, as provas deduzidas da causalidade e da substan-cialidade da alma perderam valor. Na
"Profissão de fé do Vigário saboiano" (Emílio, IV), Rousseau chegava a afirmar a imaterialidade, portanto
a I. da alma, exatamente com base na exigência de uma justiça que nem sempre se vê realizada no mundo:
"Mesmo que não houvesse outra prova da imaterialidade da alma, além do triunfo do mau e da opressão
do justo neste mundo, só isso bastaria para que eu não duvidasse dela. Contradição tão manifesta,
dissonância tão estridente na harmonia do universo, levar-me-ia a refletir que nem tudo termina para nós
na vida, mas que, com a morte, tudo retorna à ordem". Nesse aspecto, Rousseau constituía a voz
eloqüente de grande parte do iluminismo e do deísmo do séc. XVIII, ainda que outra parte desse
iluminismo pensasse,
ALIDADE
545
IMPERATIVO
Vdtaire, que "a mortalidade da alma não é "ria ao bem da sociedade, como provam antigos hebreus, que
acreditavam na alma .erial e mortal" {Traité de métaphysique, 6). t só fez reexpor a tese de Rousseau,
pres-o a I. como um dos postulados da razão 'ca. Segundo Kant, a I. da alma e a existên-de Deus são
condições para a realização do supremo, que é a união de virtude e felici-Ade. Sem a continuação
indefinida da vida hu-ütema além da morte, a realização da santidade ílÉfediante o progresso ao infinito
não seria pos-,#/e\, portanto o homem nunca se tornaria dig-itb de felicidade. Mas para Kant esse
postulado ■ lÈto é uma verdade teorética, mas uma neces-Ütlade do ser moral finito: as considerações .
morais, em outros termos, não demonstram a f., mas mostram que ela é uma aspiração legítima de quem
age moralmente (cf. Postulados da Razão Prática).
VIII. Por fim um argumento antigo, mas que sempre reaparece, é extraído do con-Sensus gentium.
Cícero assim o expressava: "Se o consenso universal é voz natural e se todos, em todos os lugares, estão
de acordo em julgar que existe algo no que se refere aos que já morreram, também nós devemos ser do
mesmo parecer e, se julgarmos que os dotados de espírito superior por engenho ou virtude estão em
melhores condições para reconhecer a força da natureza porque são perfeitos por natureza, é verossímil
— visto que os melhores se preocupam muitíssimo com a posteridade — que exista algo cuja sensação
estão destinados a ter depois da morte" (Tusc, 1,15, 35). O problema da I. há muito deixou de existir em
filosofia. Isto nem tanto porque a solução positiva dele estivesse ligada a determinada filosofia, a
metafísica da substância, mas também e sobretudo por outras duas razões. A primeira delas é que a ética
moderna desvinculou a moral de qualquer sanção ultraterrena, eliminando assim o primeiro e mais
imediato interesse na solução positiva do problema da imortalidade. A segunda é que a moderna tendência
da filosofia, que considera ilegítimo ou sem significado estender a análise filosófica além da espera de
existência ou da experiência detec-tável com os instrumentos que o homem possui, negou, em princípio, a
legitimidade e a conclusividade do próprio debate sobre a imortalidade. Não causa portanto estranheza o
fato de serem escassos e pobres os trabalhos
sobre esse problema na filosofia moderna e contemporânea, principalmente depois de Kant. Seu interesse
por ele acabou por limitar-se à esfera da religião e da apologética religiosa.
IMPENETRABILIDADE. V ANTITIPIA IMPERATIVO (in. Imperative, fr. Impératif, ai. Imperatiu, it.
Imperativo). Termo criado por Kant, talvez por analogia com o termo bíblico "mandamento", para indicar
a fórmula que expressa uma norma da razão. Kant diz: "A representação de um princípio objetivo,
porquanto coage a vontade, denomina-se comando da razão, e a fórmula do comando denomina-se I."
(Grundlegung zurMet. derSitten, II). Para o homem, norma da razão é uma ordem, pois a vontade humana
não é a faculdade de escolher apenas o que a razão reconhece como praticamente necessário, ou seja,
como bom. Se assim fosse, a norma da razão não teria caráter coativo e não seria uma ordem. Isso
acontece com os seres dotados de vontade santa, de uma vontade que está necessariamente de acordo com
a razão e que só pode escolher o que é racional. Mas, como o homem pode escolher também segundo a
inclinação sensível, a lei da razão assume para ele a forma de ordem e por isso sua expressão é um I.
(Crít. R. Prática, I, cap. III). Portanto, a palavra I. não passa de outro nome para a palavra dever (v.). Kant
distinguiu os I. em hipotéticos e categóricos. O I. hipotético ordena uma ação que é boa relativamente a
um objetivo possível ou real. No primeiro caso, ele é um princípio problematica-menteprático; no
segundo caso, é um princípio assertivamente prático. O I. categórico ordena uma ação que é boa em si
mesma, por si mesma objetivamente necessária, sendo portanto um princípio apoditicamente prático. Os
I. problematicamente práticos são os de habilidade (p. ex., as prescrições de um médico). Os I.
assertivamente práticos são os da prudência: seu objetivo é a felicidade. Os I. categóricos são os da
moralidade. Os primeiros poderiam denominar-se I. técnicos ou regras, os segundos, I. prag-máticosou
conselhos-, os terceiros são I. morais ou leis da moralidade (Grundlegung, cit., II). Essas observações de
Kant foram sobejamente aceitas na filosofia moderna e contemporânea. Isto não quer dizer que a ética
kan-tiana do dever também tenha sido tão aceita, sobretudo na forma proposta por Kant (v. ÉTICA). O
problema de poder ou não considerar as
IMPERSONALISMO 546
IMPLICAÇÃO
normas morais como imperativos é fundamental e muitas vezes teve resposta negativa. Toda a tradição
utilitarista constitui um exemplo de semelhante solução negativa. A ética de Berg-son é outro exemplo.
Conceber a norma moral como I. (ou dever) significa julgar, como Kant, que ela seja um "fato da razão"
um sic volo sic íubeo (Crít. R. Pratica, cap. I, § 7, Escol.): coisa que nem todos se mostram dispostos a
admitir.
A partir da obra de OGDEN e RICHARDS, The Meaning ofMeaning (1923), o I., sobretudo o I. moral, foi
freqüentemente considerado uma "proposição emotiva", ou seja, destinada a produzir ação, mas
desprovida de significado cog-noscitivo. Essa teoria, cuja melhor forma se encontra em Ayer (Language
Truth and Logic, 2- ed., 1948) e Stevenson (Ethics and Lan-guage, 1944), após breve sucesso deixou de
ter defensores (STROLL, The Emotive Theory of Ethics, Berkeley, 1954).
IMPERSONALISMO (in. Impersonalism). Termo muito pouco usado, é oposto de personalismo (v):
significa simplesmente materia-lismo (v.).
IMPERTURBABILIDADE. V. ATARAXIA.
IMPESSOAL (ai. Man; it. Anonimià). Segundo Heidegger, é o modo de ser nivelado da existência
quotidiana, na sua "mediania" pública, isto é, nas formas que acaba assumindo na vida de todo dia. Em tal
modo de ser, "cada um é os outros e ninguém é ele mesmo. O Se, onde está a resposta ao problema do
Quem do Ser-aí quotidiano, é o ninguém ao qual cada Ser-aí se entregou na indiferença do seu ser-junto"
(Sein und Zeit, § 27) (v. MEDIANIA).
IMPLICAÇÃO (in. Implication; fr. Implication; ai. Implication; it. Implicazione). Na lógica
contemporânea, este termo substituiu outros mais antigos, como condicional (v.) e conseqüência (v.),
permitindo generalizar esses significados. AI. é a composição de duas proposições por meio do conectivo
se... então, em que a primeira se chama antecedente e a segunda conseqüente. Tanto a linguagem comum
quanto a científica oferecem exemplos de I. bem distintos. Consideraremos os seguintes:
(1) Se x é solteiro, então x não é casado.
(2) Se x é triângulo, então x tem os ângulos internos iguais a dois retos.
(3) Se x é metal, então x é maleável.
(4) Se x comete uma ação indigna, então x perde a estima dos amigos.
(5) Se x cometer um crime, então x irá para a cadeia.
(6) Se x me insulta, eu esbofeteio x.
(7) Se x me fizer um favor, então x será recompensado por mim.
(8) Se x é um gênio filosófico, então eu sou o imperador da China.
Se considerarmos esses diversos exemplos de I. (e outros que poderão ser enumerados), logo
perceberemos que a conexão entre antecedente e conseqüente é diferente em cada caso: o fundamento é
diferente ou, como se poderia dizer, sua validade provém de contextos diferentes. No exemplo (1), a
validade decorre do fato de, no dicionário, verificar-se que "solteiro" eqüivale a "não casado"; em (2), do
contexto da geometria euclidiana e de seus postulados; em (3), das observações empíricas ou da ciência;
em (4) e (5), respectivamente, das normas morais e jurídicas vigentes em determinado país; em (6) e (7),
de minha decisão de reagir a certo tipo de comportamento de x, em (8) está apenas um modo de expressar
minha convicção de que x não é um gênio filosófico.
Diante dessa variedade de tipos de I., os lógicos procuraram identificar a condição mais simples, geral e
abstrata que torna válida uma I. qualquer, sem levar em conta o contexto a que ela se refere nem o
fundamento apresentado por seu conteúdo específico; identificaram essa condição na fórmula que Fílon
de Mégara já defendera contra Diodoro Cronos, sobre a validade das proposições condicionais (SEXTO
EMPÍRICO, Adv. math., VIII, 113-14: cf. CONDIÇÃO): uma I. é válida sempre que não tenha antecedente
verdadeiro e conseqüente falso. Assim, também vale quando o antecedente e o conseqüente são falsos.
Essa condição generalís-sima e abstrata foi chamada de I. material e foi expressa por Russell (Principia
mathematica, I, 1.01) com a fórmula:
pz> q=~pv qDf que se lê: "p implica q" eqüivale por definição a "não-jt> ou q"; onde p e q representam,
respectivamente, o antecedente e o conseqüente e o sinal 3 representa a I. material. De modo
correspondente, chamou-se de formal a I. que, além de preencher a condição de validade da I. material,
para ser válida exige outras condições. Nos exemplos antes enumerados, apenas o (8) é I. material pura
porque pode ser expressa dizendo-se "ou x não é um gênio filosófico ou eu sou o imperador da China". As
outras, mesmo respeitando essa condição, exi-
í IMPLICAÇÃO 547 IMPREDICATTVA,
DEFINIÇÃO
' gem outras (como vimos) que constituam seu i fundamento. Assim, pode-se dizer que todas as
I. formais são materiais, mas que nem todas as ■ I. materiais são formais. Por isso, a I. será defi-• nida
pela seguinte tábua de verdade (na qual p
e #representam proposições quaisquer e Ve F,
verdadeiro e falso):
p 1 pz>q
V V V
V F F
F V V
F F V
(v. TÁBUA DE VERDADES)
A I. material pode parecer paradoxal do ponto de vista do senso comum e das ciências empíricas. Por
exemplo, ela permite reconhecer como verdadeira a I. "Se 2x2 = 5, então Nova York é uma cidade
pequena"; e como falsa esta outra: "Se 2x2=4, então Nova York é uma cidade pequena"(cf. TARSKI,
Introduction toLogic, 1941, § 8), nas quais não há nenhuma conexão causai ou contextual entre o
antecedente e o conseqüente, mas a primeira significa "ou 2x2 não são = 5 ou Nova York é uma cidade
pequena", e a segunda: "ou 2x2 não sào = 4 ou Nova York é uma cidade pequena". A I. material é
sobretudo usada em matemática; nela Hilbert baseou os axiomas da lógica das proposições ("Die
Logischen Grund-lagen der Mathematik", em Mathematische Annalen, 1923, pp. 151-65). Em forma de
axio-ma, a I. material significa que "a verdade decorre de qualquer coisa" porque, se qé verdadeiro por si
mesmo, decorre de qualquer p, não importa se verdadeiro ou falso, e que "tudo decorre do falso" porque,
se p é falso, dele pode decorrer qualquer q, seja ele verdadeiro ou falso. Na realidade, a I. material abstrai
completamente de qualquer conexão causai ou contextual entre o antecedente e o conseqüente (que pode
ter fundamento bem diferente) e constitui apenas a condição mínima suficiente para a validade de todas
as implicações. Contudo, alguns lógicos procuraram tornar menos abstrato o conceito de I., aproximandoo mais do seu significado comum. Assim, o americano C. I. Lewis (cf. LEWIS AND LANGDORF, SymbolicLogic, 1932, pp. 174 ss., 248 e ss.) falou de uma I. estrita, segundo a qual "p implica q" seria
sinônimo de "qé dedutível dep", no sentido de que seria contraditório afirmar o antecedente p e negar o
conseqüente q. Esse conceito recorre ao conceito de possibilidade lógica e por isso
seria expresso pela fórmula ~ M{p~ q), em que M significa "possível", lendo-se assim: "não é possível
que p seja verdade e q não o seja". Uma relação análoga de I. foi chamada de entailment [decorrência
necessária] por muitos escritores ingleses, a partir de Moore; este a ilustrou da seguinte forma: "p entails
[implica necessariamente] q" quando e só quando tivermos condições de dizer realmente que 'g decorre
de p ou 'é dedutível de p no mesmo sentido em que a conclusão de um silogismo em Bárbara decorre das
duas premissas tomadas como proposição conjuntiva" (Philosophical Studies, 1922, cap. IX; ed. 1960, p.
291). Carnap distinguiu a C-implicação, ou I. sintática, que é a material de que falamos, e a L-implicação
ou I. semântica, que corresponde à I. estrita de Lewis {Introduction to Semantics, §§ 9, 14).
Na lógica medieval, o termo I. era usado apenas para indicar uma forma da restrição (v.): como no
exemplo "o homem que é branco corre", em que a I. é constituída pela proposição "que é branco", que
restringe aos brancos os homens que correm. Nos manuais de lógica do séc. XVI a palavra implicatíoi
utilizada como abreviação de implicaicontradictionem, e esse uso também reaparece em De intellectus
emen-datione (1662) e em Cogitata metaphysica (1663) de Spinoza (cf. W. KNEALE AND M. KNEALE,
The Development of Logic, 1962, p. 300).
IMPLÍCITO (in. Implicit; fr. Implicite, ai. Verflechten; it. Implícito). Esse adjetivo tem três significados
principais: l2
I., no sentido lógico de implicação (v.), referindo-se exclusivamente a enunciados,
proposições ou asserções; 2a
não explícito, ou" seja, sugerido por certo contexto do discurso, como
quando se diz "x implicitamente admitiu que..."; 3S
potencial ou virtual. Este último emprego é impróprio.
IMPOSIÇÃO (lat. Impositio; in. Imposition; fr. Imposition; it. Imposizioné). Na Lógica medieval é o ato
pelo qual um nome é destinado a significar uma coisa (cf. PEDRO HISPANO, Summ. log., 6.03).
IMPOSSÍVEL. V. POSSÍVEL.
IMPREDICATTVA, DEFINIÇÃO (in Im-predicative definition; fr. definition imprédi-cative, it.
Definizione impredicativá). Poin-caré indicou com esta expressão a definição do membro de uma classe
que faz referência à totalidade dos membros da classe e que, portanto, contém um círculo vicioso. Destas
IMPRESSÃO
548
INATISMO
definições surgem as antinomias lógicas que Poincaré queria evitar estabelecendo o princípio que não
permite tais definições (POINCARÉ, em Revue de Métaphysique et de Morale, 1906, pp. 294-317; cf.
também Dernières Pen-sées, 1913, IV) (v. ANTINOMIA).
IMPRESSÃO (gr. Timcoaiç; lat. Impressio; in. Impression-, fr. Impression; ai. Eindruck, it.
Impressione). A teoria segundo a qual o conhecimento consiste numa marca ou impressão feita pelas
coisas sobre a alma nasce com os estói-cos. Estes diziam que "a imagem é um sinete na alma", tomando o
nome da figura que o selo imprime na cera (DIÓG. L., VII, 45). Cícero procurou eliminar o caráter físico
da I. (Tusc, I, 61). Esse termo foi difundido na filosofia e na linguagem moderna por Hume, que entendeu
por I. "todas as nossas sensações, paixões e emoções, em sua primeira aparição na alma" (Treatise, 1,1,1).
E distinguiu as I. das idéias, que são cópias empalidecidas delas (Ibid., I, 1, 2).
IMPRÓPRIO, SÍMBOLO. V. SINCATEGOREMÁTICO.
IMPULSÃO. V. INÉRCIA.
IMPULSO (in. Impulse, Urge-, fr. Impulsion-, ai. Impuls; it. Impulso). Incitamento súbito, momentâneo e
difícil de controlar para determinada ação. Chama-se de "impulsivo" quem está sujeito a freqüentes
ímpetos desse tipo. Esse termo não deve ser confundido com "instinto" (v.) nem com "tendência", que
corresponde ao termo tradicional apetição (v.).
IMPUTABILIDADE (gr. odxía; lat. Impu-tatia, in. Imputability, fr. Imputabilitê, ai. Zu-rechenbarkeit; it.
Imputabilitã). Possibilidade de atribuir uma ação a um agente, como causador; é diferente da
responsabilidade (v.).
INATISMO (in. Innatism; fr. Innatisme, ai. Nativismus; it. Innatismó). Doutrina segundo a qual no
homem existem conhecimentos ou princípios práticos inatos, ou seja, não adquiridos com a experiência
ou pela experiência e anteriores a ela. O modelo de todo I. é a doutrina platônica da anamnese (v.):
"Como a alma é imortal e nasceu muitas vezes e viu todas as coisas, tanto aqui como no Hades, nada há
que ela não tenha aprendido: de modo que não espanta o fato de que possa recordar, seja em relação à
virtude, seja em relação a outras coisas, o que antes sabia" (Men., 81 c). Mas a forma com que o I. passou
para a tradição filosófica foi dada pelos estóicos. Estes admitiam como critério da verdade, ao lado da
representação cataléptica, a antecipação, que é "a noção natural do universal" (DIÓG. L., VII, 54). Cícero
assim expunha o ponto de vista estói-co: "A Natureza deu-nos minúsculas centelhas, e nós, cedo
estragados por maus costumes e por falsas opiniões, apagamo-las todas, de tal modo que fazemos
desaparecer a luz da natureza. Na verdade, em nossa índole, são inatas as sementes da virtude, e se lhes
fosse possível desenvolver-se, a própria natureza nos guiaria para uma vida feliz" {Tusc, III, 1, 2). Essa
espécie de I. vincula-se à teoria do instinto (v.), própria dos estóicos, que é retomada por doutrinas cuja
intenção é proteger da dúvida certas crenças fundamentais de natureza teórica ou prática.
Nesse sentido, o I. foi retomado pelo pla-tonismo renascentista, cuja continuação pode ser vista no
platonismo inglês do séc. XVII, contra cujas teses fundamentais se dirige a crítica do primeiro livro do
Ensaio de Locke. O I. é depois retomado na Inglaterra, no século seguinte pela escola escocesa do senso
comum (v.), ou seja, por Reid e Dügald Stewart. Mas já Descartes e Leibniz tinham dado ao I. um
significado novo. Para Descartes algumas idéias são inatas como "capacidade de pensar e de compreender
as essências verdadeiras, imutáveis e eternas das coisas" (Méd., III; Lettre à Mer-senne, 16-VI-1641,
CEuvr., III, 383). E Leibniz, de modo semelhante, considerava inatas as verdades que se revelam
imediatamente como tais à luz natural, sem ter necessidade de outra verificação (Nouv. ess., I, 1, 21).
Neste sentido, o inatismo não era mais uma espécie de escultura que a alma traz consigo ao nascer,
segundo a imagem que Cícero empregara (De nat. deor., II, 4, 12). Ao velho adágio escolástico, "Nihilest
in intellectu, quodprius nonfuerit in sensu", Leibniz acrescentava a restrição "nisi ipse intellectus",
entendendo dizer com isso que a alma dispõe, por sua conta, de categorias como o ser, a substância, o
uno, o mesmo, a causa, a percepção, o raciocínio, etc, que os sentidos não poderiam fornecer-lhe (Nouv.
ess. II, 1, § 2).
Não é grande a distância entre essa forma de inatismo e a doutrina kantiana (que, todavia, não se costuma
designar com esse termo), segundo a qual as formas a priori do conhecimento não derivam da
experiência. O inatismo pertence, hoje, ao número das doutrinas não mais discutidas, porque já não são
mais discutidos os problemas cujas soluções elas consti-
CO
549
INCONCEPTIBILIDADE
. Na filosofia moderna, quando se admialguma coisa precede a experiência (como
, p. ex., o idealismo hegeliano), esse algo
é um complexo de idéias ou de virtualidades,
toda a razão ou todo o espírito (cf. A PRIORI).
íJNAirrÊNUCO. V. AUTÊNTICO.
t INCEPTTVA, PROPOSIÇÃO (fr. Proposition
tive ou désistivé). A Lógica de Port-Royal
ninou assim a proposição que afirma que
! coisa começou a ser ou deixou de ser; p.
"A língua latina deixou de ser vulgar na
ia há muitos séculos." (ARNAULD, Lóg., II,
4).
INCLINAÇÃO. V. TENDÊNCIA. & INCLUSÃO (in. Inclusion; fr. Inclusion; ai. 0nschliessung; it.
Inclusioné). Na Lógica das es, a relação de I. entre duas classes a e p" .^Símbolo "a z> P") subsiste
quando todos os 'elementos da classe a pertencem também à P, mas não necessariamente o inverso fy I. é
reflexiva e transitiva, mas não simétri-: •$»). À relação de I. corresponde a relação de ; jtynplicação entre
os conceitos-classe correspondentes. P. ex., a classe homem está incluída na «lasse mortal porque todos os
homens são 'ioortais. G. P.
INCOERÊNCIA. V. COERÊNCIA. INCOGNOSCÍVEL (in. Unknowable, In-cognizable; fr.
Inconnaissable; ai. Unerkennbar; it. Incognoscibile). Termo empregado por Hamilton para designar o
Absoluto ou Infinito, considerado além de qualquer possibilidade de conhecimento e objeto somente de
fé. "Pensar é condicionar" — dizia Hamilton (Discussions on Philosophy, 1852, p. 13) — "e a limitação
condicional é lei fundamental das possibilidades do pensamento... O absoluto só é concebí-vel como
negação da conceptibilidade". Contudo, a esfera da crença é mais ampla que a do conhecimento: assim,
conquanto não se possa conhecer o Infinito, pode-se e deve-se crer nele. (LecturesonMetaph., II, pp. 530-
31). Essa noção foi retomada por Spencer, que também afirmou a incognoscibilidade do absoluto e, ao
mesmo tempo, a necessidade de admiti-lo para tomar possível o relativo (First Principies, 1862, S 26). A
noção do I. tornou-se então correlativa de agnosticismo (v.) e, assim como esta última, foi estendida até
designar a doutrina de Kant da coisa em si e da sua incognoscibilidade. Kant todavia não admitia a
inconcepti-bilidade da coisa em si, como fazia Hamilton relativamente ao Absoluto, assim como não admitia aquela espécie de correspondência hipotética entre o I. e o fenômeno que Spencer denominava
realismo transfigurado (Ibid., § 50). O conceito de I. nunca ultrapassou os limites do positivismo
evolucionista de cunho spen-ceriano (v. COISA EM SI).
INCOMPATIBILIDADE. V. COMPATIBILIDADE.
INCOMPLETO, SÍMBOLO (in. Incomplete symbot). Em lógica matemática dá-se esse nome ao símbolo
que não tem significado próprio, mas só num contexto, para cujo significado por sua vez contribui.
INCOMPLEXUM. V. COMPLEXO.
INCONCEPTIBILIDADE (in. Inconceiva-bility, fr. Inconcevabilité, ai. Unbegreiflichkeit; it.
Inconcepibilitã). O critério cartesiano de aceitar como verdadeiro tudo o que é evidente para a razão tem
como correlativo negativo o critério de rejeitar o que não parece evidente para a razão ou o que, em geral,
é incompatível com a razão. Esse é propriamente o critério das inconceptibilidades. Foi utilizado
sobretudo por Leibniz, que o defendeu explicitamente: "Em verdade reconheço que não é lícito negar o
que não se entende, mas acrescento que se tem o direito de negar (pelo menos na ordem natural) aquilo
que não é absolutamente inteligível nem explicável... A concepção das criaturas não é a medida do poder
de Deus, mas a conceptibilidade ou força de concepção delas é a medida do poder da natureza, pois que
tudo o que se conforma à ordem natural pode ser concebido ou entendido por alguma criatura" (Nouv.
ess., Avant-Propos., Op., ed. Erdmann, p. 202). Em outros termos, pode-se admitir ser real na natureza
aquilo que não se entende (que não se saiba explicar), mas não o que é inconcebível, ou seja,
"incompatível com a razão". Mas Leibniz não explicou o que deve ser entendido por incompatibilidade
com a razão, o que tampouco fizeram todos os (muitíssimos) que se referiram a esse critério; a primeira
crítica a esse critério encontra-se em Lógica de Stuart MUI, com referência ao emprego que dele fizeram
Hamilton (Lectures on Metaphysics and Logic, 1859-60) e Spencer (Principies of ■ Psychology, 1855).
Stuart Mill notava como os antípodas eram declarados impossíveis pelos antigos, que achavam
inconcebível que existissem pessoas cuja cabeça estivesse na direção dos nossos pés, e que um dos
argumentos mais difundidos contra o sistema copernicano havia sido a I. do imenso espaço vazio que
aquele
INCONDICIONADO
550
INCONSCIENTE
sistema pressupunha (Lóg., V, 3, § 3; cf. II, 5, § 6; 7, §§ 1-3).
Realmente, a incompatibilidade com a razão, que é a definição de I., não pode ter outro significado exato
senão o de incompatibilidade com o sistema de crenças a que se faz referência. Obviamente semelhante
incompatibilidade não pode valer como critério de juízo para a fidedignidade de uma noção qualquer. Se
porém por I. se entende a contraditoriedade (como por vezes acontece), é preciso lembrar que o juízo
sobre a contraditoriedade ou não de duas asserções deve referir-se a um campo determinado, no qual
estejam implícita ou explicitamente definidas as regras da coerência ou da compatibilidade. Pode
acontecer, p. ex., que não seja contraditório em física aquilo que seria contraditório em matemática ou
vice-versa; p. ex., a física não julga contraditório conceber os fenômenos eletromagnéticos ao mesmo
tempo como corpusculares e como ondulatórios. Mas para estes significados restritos e específicos de
contraditoriedade, a palavra I., em seu significado absoluto, é totalmente imprópria. Portanto, a filosofia
contemporânea deixou de usá-la, não insistindo mais na antítese racional-inconcebível, mas na antítese
significância-in-significância (v. SIGNIFICADO).
INCONDICIONADO (in. Unconditioned; fr. Inconditionné, ai. Unbedingt; it. Incondizio-nató).
Hamilton (Discussions on Philosophy, 1852) e Mansel (The Philosophy of the Con-ditioned, 1866)
denominaram I. o Infinito ou o Absoluto, ou seja, Deus, porquanto escapa a todas as limitações do
pensamento humano e por isso é inconcebível.
Para o significado genérico do termo, v. CONDIÇÃO.
INCONSCIENTE (in. Unconscious, fr. Incons-cient; ai. Unbewusst; it. Inconsció). O ingresso dessa
noção em filosofia deve-se a Leibniz, que frisou a importância das "percepções insensíveis" ou "pequenas
percepções", de que não se toma ciência e sobre as quais não se reflete. Para Leibniz, são essas
percepções que "formam o não-sei-quê, os gostos, as imagens das qualidades sensíveis, claras no
conjunto mas confusas nos detalhes, as impressões que os corpos que nos rodeiam exercem sobre nós e
que envolvem o infinito, os vínculos que cada ser tem com o restante do universo" (Nouv. ess., Avantpropos, op., ed. Erdmann, p. 197). A existência dessa zona inconsciente tornou-se lugar-comum na escola
wolffiana (cf.
WOLFF, Psychol. rationalis, §§ 58 ss.) e foi admitida por Kant, que respondeu à objeção de Locke de que
não se pode ter representações das quais não se tenha consciência, porque as ter significa exatamente estar
consciente delas (Ens., I, 1, 5), afirmando que "podemos estar conscientes mediatamente de uma
representação da qual não estejamos conscientes imediatamente' (Antr., § 5). Mas foi só com Schelling
que o I. tornou-se elemento fundamental das concepções metafísicas, ou seja, um dos aspectos essenciais
do Absoluto como Identidade entre natureza e espírito (entre I. e consciência). "Esse eterno I.", dizia
Schelling, "que, como o sol eterno do reino dos espíritos, esconde-se em sua própria luz serena e, apesar
de nunca se tornar objeto, imprime sua identidade às ações livres, é o mesmo para toda a inteligência e é
ao mesmo tempo a raiz invisível de que todas as inteligências são apenas potências; é o eterno
intermediário entre o subjetivo, que se autodetermina em nós, e o objetivo ou intuinte e é o fundamento
da uniformidade na liberdade e da liberdade na uniformidade objetiva" (System der transzendentalen
Idealismus, IV, F; trad. it., p. 280). Ainda mais radicalmente, Scho-penhauer considerava I. a vontade que
constitui o númeno do mundo: "A vontade considerada em si mesma é I.: é um impulso cego e irresistível
o qual vemos aparecer na natureza inorgânica e vegetal, bem como na parte vegetativa da nossa vida"
(Die Welt, I, § 54). E como síntese do Espírito Absoluto de Hegel, da Vontade de Schopenhauer e do I. de
Schelling, Edward Hartmann apresentava o princípio de sua filosofia: um princípio que ele denominava
precisamente I. e do qual o espírito e a matéria teriam sido duas diferentes manifestações (Philosophiedes Unbewussten, 1869). Pode-se considerar que a filosofia de Bergson pertence a essa mesma
linha; ele defendia o I. ao observar que a repugnância em conceber estados psicológicos inconscientes
vem do fato de se considerar a consciência como propriedade essencial dos estados psíquicos. "Mas" —
observava ele — "se a consciência é somente o sinal característico do presente, daquilo que está sendo
vivido, daquilo que está agindo, então o que não está agindo poderá deixar de pertencer à consciência
sem deixar necessariamente de existir de qualquer modo" (Matière et mémoire, cap. III, p. 147). Para
Bergson, o I. assim entendido identifica-se com a recordação pura, ou
NTE
551
INDEMONSTRÁVEL
a corrente da consciência que é o próprio iritaJ.
enquanto o I. era assim utilizado pela sica e enquanto a psicologia o admitia, a contragosto, como um
dado de fato, ateúdo era completamente renovado por que apresentava as duas teses fundada psicanálise
da seguinte forma: "A dessas premissas é que os processos icos são em si mesmos inconscientes e «s
processos conscientes são apenas atos s, frações da vida psíquica total." A se-proposição que a psicanálise
proclama uma de suas descobertas é a afirmação "tendências que podem ser classifica-' apenas como
sexuais, em sentido estrito ilo da palavra, agem como causas deter-ites de doenças nervosas ou psíquicas
e ; essas emoções sexuais desempenham pa-! importante nas criações do espírito humanos campos da
cultura, da arte e da vida 1" (Einführung in die Psychoanalyse, 1917, ., trad. fr., pp. 32-33). Desta forma,
na psi-lise o I. deixava de ter o caráter indeter-ado ou amorfo que tivera até aquele mo-tfpnto nas
interpretações dos filósofos e dos í|jtfc61ogos, para adquirir um conteúdo preciso •.^identificar-se com as
tendências sexuais inibi-s, negadas, camufladas ou ocultas. O grande Jweesso inicial da psicanálise e a
importância (científica de que ela se revestiu no mundo con-, tçmporâneo (v. PSICANÁLISE) relegaram
para se-gjmdo plano a dificuldade teórica associada ao próprio reconhecimento da existência do
inconsciente. Obviamente, a objeção de Locke, tantas vezes repetida, de que "existir", para um estado
mental, significa "ser percebido" ou "ser objeto de consciência", e que portanto um estado mental
inconsciente é uma contradição em seus próprios termos, deixou de ter valor. Um estado mental (p. ex.
uma emoção, uma tendência, uma volição) pode "existir" mesmo sem ser "percebido", no sentido de que
oportunamente pode ser evidenciado e reconhecido, com procedimentos apropriados (que são os
empregados pela psicanálise), como condição de uma situação psíquica normal ou patológica. O próprio
Freud insistiu na noção de sintoma: "Um sintoma forma-se para substituir alguma coisa que não
conseguiu manifestar-se exteriormente. Certos processos psíquicos, não podendo desenvolver-se
normalmente, e chegar até a consciência, dão origem a um sintoma neurótico" (Ibid., trad. fr., p. 303).
Portanto, o I.
existe em primeiro lugar como sintoma. Trata-se da mesma solução teórica que Kant vira ao dizer que o
I., mesmo não sendo percebido imediatamente, pode ser percebido mediata-mente, mas esta solução
teórica foi bem melhorada, pois em Freud o L, como sintoma, nem precisa ser "percebido": é um fato que
a observação clínica pode constatar.
INCONSEQÜÊNCIA (in. Inconsistency; fr. Inconséquence, ai. Folgewidrigkeit.; it. Incon-seguenzd).
Ausência de compatibilidade (v.) das proposições que constituem um sistema simbólico. P. ex., um
conjunto de proposições é inconseqüente quando implica uma contradição, quando dele deriva
formalmente certa proposição p ou a negação de p. Em geral, pode-se dizer que a I. de um sistema
qualquer é a possibilidade de contradição no próprio sistema.
INCONSISTÊNCIA. V. COMPATIBILIDADE.
INDAGAÇÃO. V. INVESTIGAÇÃO.
INDEFINIDO (in. Indefinite; fr. Indéfini; ai. Unbegrenzi; it. Indefinitó). Aquilo que não tem limite no
espaço ou no tempo, que portanto é infinito no sentido negativo do termo. Este pelo menos é o significado
da palavra estabelecido por Descartes, que assim fazia a distinção entre a indefinição das coisas e a
infinidade de Deus, que "não tem limites em suas perfei-ções" e é por isso o único ser infinito (Princ.
phil., I, 27; IRésp., § X). Portanto, essa palavra eqüivale a ilimitado (v.), mas não é usada com o sentido
de "não definido", ou seja, não expresso por uma definição.
INDEMONSTRÁVEL (in. Undemonstrable, fr. Indémontrable, ai. Unenveislictí). it. Indimos-trabile).
Aquilo que não necessita de demonstração porque sua verdade é evidente. Neste sentido, são I. os
primeiros princípios da lógica de Aristóteles (v. AXIOMAS) e os anapodíticos dos estóicos (v.
ANAPODÍTICO).
2. As proposições primitivas ou em geral os antecedentes de um sistema simbólico qualquer que sirvam
de fundamento das regras de demonstração próprias do sistema. Neste sentido, são indemonstráveis os
axiomas, as definições e as regras de transformação de todo sistema simbólico.
3. As proposições indecidíveis, isto é, as proposições que não podem ser consideradas verdadeiras ou
falsas em dado sistema simbólico, mas que podem ser decididas num sistema mais amplo, onde porém se
apresentam com outra forma. Neste sentido, são indemonstrá-
INDEPENDENTE
552
INDETERMINISMO
veis as proposições que constituem as antinomias lógicas (v.); é I. a não-contradição em matemática e em
geral dos sistemas simbólicos
(v. ANTINOMIA; MATEMÁTICA; SISTEMA).
4. Toda crença ou pretensão que não possa ser apoiada por provas. Este é o significado mais geral e
indeterminado com que esse termo é usado freqüentemente na linguagem comum. Assim, denominam-se
I. certas crenças religiosas, bem como a pretensão de crédito não apoiada em documentos ou testemunhas.
Asserções concernentes a fatos muitas vezes são declaradas I. pela mesma razão.
INDEPENDENTE (in. Independent; fr. Independam-, ai. Unabhãngig; it. Indipendenté). Aquilo cujo ser,
cuja validade ou cuja capacidade de ação não derivem de outro. Assim, diz-se que um homem ou um
Estado é I. quando sua vida ou sua conduta não depende da vida ou da conduta de outro homem ou de
outro Estado. Diz-se que um acontecimento é I. de outro quando não mantém relação de causalidade com
ele. Uma proposição qualquer é I. de uma outra proposição ou de um sistema de proposições se entre eles
não houver relação de derivação.
A determinação dos axiomas de um sistema simbólico tem como requisito a independência recíproca. De
fato, seria inútil aceitar como axioma uma proposição que pudesse ser derivada dos outros axiomas do
sistema (v. AXIOMA).
INDETERMINAÇÃO (in. Indetermination; fr. Indetermination; ai. Unbestimmtheit; it. Indeterminazioné). 1. Ausência da determinação lógica (v. DETERMINAÇÃO). Às vezes, o mesmo que
indecisão (v. VAGO).
2. Ausência da determinação causai (v. INDETERMINISMO).
INDETERMINAÇÃO, RELAÇÕES DE (in. Uncertainty relations; fr. Relations dHndéter-mination;
ai. Unbestimmtheitsrelationen-, it. Relazioni di indeterminazione). Em física subatômica essa expressão
ou a expressão "princípio de I." designa desde 1927 o reconhecimento da ação recíproca entre o objeto e o
observador, portanto a perturbação que a observação produz sobre o objeto observado. Foi Heisenberg
quem mostrou esse aspecto essencial da física quântica, expressando-o assim: "Nas teorias clássicas a
interação entre o objeto e o observador era considerada desprezível ou controlável, de tal modo que se
poderia eliminar a influência por meio de cálculos. Na física atômica, essa admissão não é possível porque, em
vista da descontinuidade dos acontecimentos atômicos, qualquer interação pode produzir variações
parcialmente incontroláveis e relativamente grandes. Essa circunstância tem como conseqüência o fato de
que, em geral, as experiências realizadas com o fim de determinar uma grandeza física tornam ilusório o
conhecimento de outras grandezas obtidas antes; na verdade, influenciam de maneira incontro-lável o
sistema sobre o qual se opera, portanto os valores das grandezas anteriormente conhecidas são por elas
alterados. Se tratarmos essa perturbação de modo quantitativo, veremos que em muitos casos o
conhecimento simultâneo de diversas variáveis tem um limite de exatidão finito, que não pode ser
ultrapassado" (Die physikalischen Prinzipien der Quanten-theorie, 1930, I, § 1). Quanto à influência que
a descoberta das relações de I. exerceu no campo científico-filosófico, v. CAUSALIDADE; CONDIÇÃO).
INDETERMINADO. V. DETERMINAÇÃO.
INDETERMINISMO (in. Indeterminism; fr. Indéterminisme, ai. Indeterminismus-, it. Inde-terminismò).
Termo introduzido na linguagem filosófica na segunda metade do séc. XVIII para designar a doutrina que
nega o determinismo dos motivos, ou seja, a determinação da vontade humana por parte dos motivos (v.
DETERMINISMO). Leibniz dizia: "Quando se afirma que um acontecimento livre não pode ser previsto,
confunde-se liberdade com indeterminação ou com indiferença plena ou de equilíbrio; e quando se quer
dizer que a falta de liberdade impediria que o homem fosse culpado, faz-se referência a uma liberdade
destituída de necessidade e de coação, e não de determinação ou certeza" {Théod., III, 369). Kant
afirmava: "Não há dificuldade em conciliar o conceito de liberdade com a idéia de Deus como ser
necessário, porque a liberdade não consiste na contingência da ação (no fato de a ação não ser
determinada por nenhum motivo, ou seja, no I.), mas na absoluta espontaneidade que só é ameaçada pelo
predeterminismo, uma vez que para ele o motivo determinante da ação é antecedente no tempo; portanto,
a ação não está mais atualmente em meu poder, mas nas mãos da natureza e, por esse motivo, sou
irresistivel-mente determinado" (Religion, I. Observação Geral, Nota). OI. compreendido nesse sentido,
como negação do determinismo dos moti-
ÍNDICE
553
INDIVIDUAÇÃO
vos, é uma das características do espiritualismo francês (Ravaisson, Lachelier, Boutroux, Ha-meiin,
Bergson etc. Compare A. LEVI, Vindeter-minismo nella filosofia francese contemporânea, Firenze, 1904)
(V. LIBERDADE).
ÍNDICE (in. Index). Termo usado por Peir-ce para indicar a relação objetiva (não mental) entre o signo e
seu objeto. índices neste sentido são todos os signos naturais e os sintomas físicos. "Chamo de I. um
desses signos" — diz Peirce — "porque um I. designado é o tipo de uma classe" (Coll. Pap., 3-361).
INDIFERENÇA, LIBERDADE DE. V LIBERDADE.
INDIFERENÇA, PRINCÍPIO DE (in. Principie of indifference, fr. Príncipe dHndifférence, ai.
Indifferenzprinzip; it. Principio di indiffe-renzd). Com este nome ou com os nomes de "princípio de
equiprobabilidade" ou "princípio de nenhuma razão em contrário" indica-se o enunciado de que os
acontecimentos têm a mesma probabilidade quando não há razão para se presumir que um dele deva
acontecer preferivelmente ao outro. Esse princípio foi exposto em Essai philosophi-que sur les
probabilités (1814) de Laplace como segundo princípio do cálculo das probabilidades (cap. 2);
fundamenta a teoria a priori da probabilidade, que procura definir a probabilidade independentemente da
freqüência dos acontecimentos aos quais se refere. Esse princípio foi abandonado por algumas teorias
modernas sobre a probabilidade (LE-WIS, Analysis of Knowledge, 1946, cap. X; REI-CHENBACH,
Theory ofProbability, 1949, § 68) (v. PROBABILIDADE).
INDIFERENTES. V. ADIÁFORA. INDISCERNÍVEIS. V. IDENTIDADE DOS. INDISTINTO. Termo
usado por Ardigó para definir a evolução, em substituição a "homogêneo", de Spencer. A evolução seria a
passagem do I. ao distinto: termos extraídos da experiência psíquica, enquanto os de Spencer foram
extraídos da biologia (ARDIGÓ, Opere, II, pp. 189 e passim).
INDIVIDUAÇÃO (lat. Individuatio; in. In-dividuation; fr. Individuation; ai. Individuation; it.
Individuazionè). Problema da constituição da individualidade a partir de uma substância ou natureza
comum: p. ex., constituição deste homem ou deste animal a partir da substância "homem" ou substância
"animal". O primeiro a formular esse problema foi Avi-cenna (v. ÁRABE, FILOSOFIA), por quem foi
transmitido à Escolástica cristã. O pressuposto de
origem é o princípio da necessidade da substância, que Avicenna expressa dizendo: "Tudo o que é tem
uma substância graças à qual é o que é e graças à qual é a necessidade e o ser daquilo que é" {Lógica, I.
ed. Veneza, 1508, fl. 3) (v.). Com base nesse princípio, "o animal é em si alguma coisa e é a mesma coisa,
quer seja percebido, quer seja apreendido pelo intelecto; e em si não é nem universal nem particular"
(Ibid., III. fl. 12 r.). Mas se é assim, o que o torna individual, o que faz da substância "animal" este ou
aquele animal? Segundo Avicenna, esse é o problema da individuação. E Avicenna encontrava em
Aristóteles a resposta ao problema: a individualidade depende da matéria. Aristóteles de fato dissera:
"Todas as coisas que são numericamente muitas têm matéria, visto que o conceito dessas coisas, como p.
ex. homem, é uno e idêntico para todas, ao passo que Sócrates (que tem matéria) é único" (Met., XII, 8,
1074 a 33). Essa solução é aceita por Avicena (In Met., XI, 1) e, através deste, por Alberto Magno (In
Met., III, 3, 10) e por muitos outros escolásticos. S. Tomás apresentou uma variante dessa solução ao
afirmar que o princípio de I. não é a matéria comum (já que todos os homens têm carne e rosto e portanto
não se diversificam nisso), mas a matéria signata ou, como ele diz, "a matéria considerada sob
determinadas dimensões" (De ente et essentia, 2). Em outros termos, um homem é diferente de outro
porque unido a determinado corpo, diferente pelas dimensões, ou seja, por sua situação no espaço e no
tempo, dos corpos dos demais homens (S. Th., III, q. 77, a. 2). Esse mesmo tipo de solução é reproduzido
na Idade Moderna por Schopenhauer, que, considerando a vontade como a substância única e comum de
todos os seres, viu o princípio da I. no espaço e no tempo: "De fato, por meio do espaço e do tempo,
aquilo que é uno na essência e no conceito mostra-se diversificado, como pluralidade justaposta e
sucessiva" (Die Welt, I, §23).
Por outro lado, a corrente agostiniana da escolástica foi levada a reconhecer o princípio da I. na forma das
coisas, mais que na matéria. Boaventura julgava que a forma é a essência que restringe e define a matéria
em determinado ser, e situava o princípio da I. na comunicação (communicatió) entre a matéria e a forma,
porquanto o indivíduo é um hoc aliquid, em que o hoc é constituído pela matéria e o aliquid pela forma
(In Sent., III, d, 10, a 1, q. 3).
INDIVIDUAÇÃO
554
INDIVIDUALISMO
Ao mesmo tipo de soluções pertence a interpretação que muitos discípulos de Duns Scot deram à
haecceitas [ecceidade] como de uma forma final que completa e integra uma série de formas constitutivas
do objeto natural (cf. HERVEUS NATALIS, Depluralitateformaram, 5).
Finalmente, uma terceira solução do problema é autenticamente escotista. Duns Scot nega que a matéria
ou a forma possam valer como princípios de individuaçâo. A matéria, que é o sujeito indistinto, não pode
ser o princípio da distinção e da diversidade {Op. Ox., II, d. 3, q. 5, n. 1). A forma é a própria substância
ou natureza comum, que é antecedente (e indiferente) tanto à universalidade quanto à individualidade. A
individualidade consiste numa "última realidade do ente" que determina e restringe a natureza comum à
individualidade, ad esse bane rem. Esta última realidade ou, como ele também chama, "entidade positiva"
{Ibid., II, d. 3, q. 2) é a determinação última e acabada da matéria, da forma e do composto delas. Desse
ponto de vista, o indivíduo não é caracterizado pela simplicidade de sua constituição, mas pela
complexidade e riqueza de suas determinações.
Como já dissemos, o problema da I. nasce do caráter privilegiado atribuído à substância comum, que
existiria de qualquer maneira antes e independentemente dos indivíduos. Portanto, desaparece quando se
nega o caráter privilegiado da substância comum, o que acontece com o nominalismo empirista da última
escolástica. Ockham reconhece na substância comum uma forma do universal e o comprometimento na
negação resoluta de toda realidade universal: "Nada que esteja fora da alma, nem por si, nem por algo real
ou mental que se lhe acrescente, seja de que forma se considere ou compreenda, é universal, pois é tão
grande a impossibilidade de que algo fora da alma seja de qualquer maneira universal (a não ser por
convenção arbitrária, do mesmo modo como a palavra 'homem', que é particular, se torna universal) quão
grande é a impossibilidade de que o homem, por qualquer consideração ou segundo qualquer ser, seja o
asno" {In Sent., I, d. 2, q. 7, S-T). Desse ponto de vista o problema da I. desaparece. Ockham diz ainda:
"Deve-se ter em mente, sem sombra de dúvida, que qualquer coisa existente imaginável, por si, sem que
nada lhe seja acrescentado, é uma coisa singular e uma coisa de número: pois nada que se imagine é
singular devido a alguma
coisa que se lhe acrescente, mas a singularidade é uma propriedade que pertence imediatamente a tudo,
porque cada coisa é, por si, idêntica ou diferente de outra" {Expositio áurea, liberpredicabilium,
Proemium). Quando, numa de suas primeiras obras, Leibniz afirmou que "cada indivíduo é
individualizado por sua entidade total", só fazia expressar em termos escotistas a mesma posição de
Ockham, como ele mesmo reconhecia. {De principio individui, 1663, § 4), pois a entidade total não passa
da coisa existente enquanto tal. A mesma negação implícita do problema da individuaçâo pode ser vista
na solução aparente dada por Wolff: "O princípio da I. é a determinação completa de todas as coisas
inerentes a um ente em ato" {Ont., § 229). Por outro lado, Locke dissera: "Do que se disse é fácil
descobrir o que é principium individuationis, sobre o qual tanto se indagou; está claro que ele é a própria
existência, que determina um ser de qualquer espécie, num tempo particular e num lugar particular,
incomunicáveis a dois seres da mesma espécie" {An Essay Concerning Human Understanding, II, 27, 4).
Estas supostas "soluções" na realidade são negações do problema, que desaparece completamente (salvo
raras exceções) da filosofia moderna, devido à dissolução do seu pressuposto: a prioridade ontológica da
substância comum.
INDIVIDUAL, PSICOLOGIA. V. PSICOLOGIA, e).
INDIVIDUALIDADE (lat. Individualitas; in. Individuality, fr. Individualité, ai. Individualüüt; it.
Individualitcí). Termo de origem medieval: o modo de ser do indivíduo.
INDIVIDUALISMO (in. Individualism; fr. Individualisme; ai. Individualismus; it. Individualismo). Toda
doutrina moral ou política que atribua ao indivíduo humano um preponderante valor de fim em relação às
comunidades de que faz parte. O extremo desta doutrina é, obviamente, a tese de que o indivíduo tem
valor infinito, e a comunidade tem valor nulo; essa é a tese do anarquismo (v.). Contudo o termo I. é
habitualmente utilizado na acepção mais moderada, sendo, nesse sentido, o fundamento teórico assumido
pelo liberalismo assim que surgiu no mundo moderno. É de fato o pressuposto comum do jusnaturalismo,
do contratualismo, do liberalismo econômico e da luta contra o Estado, que constituem os as-
fttDIVIDUALISMO
555
INDIVTOUO
ipectos fundamentais da primeira fase do libe-mtlismo (v.).
ti" l
9
O jusnaturalismo consiste em atribuir ao .Indivíduo direitos originários e inalienáveis que . 4de
conserva, mesmo que de maneira diferente •'■•• Hmitada, em todos os corpos sociais de que faz parte (v.
JUSNATURALISMO). *"• 2a
O contratualismo consiste em considerar <pie a sociedade humana e o Estado
são resul-
. luites de convenção entre os indivíduos; na
■ ftiade Moderna a partir de Vindiciae contra
tyrannos (1579) dos calvinistas de Genebra,
' üsa doutrina foi freqüentemente usada como Éegação do absolutismo estatal ou como instru-«Knto para
limitá-lo (v. CONTRATUALISMO).
3
a
O liberalismo econômico, próprio dos feiocratas e da escola clássica de economia •política, é a luta
contra a ingerência do Estado
• »os assuntos econômicos e a reivindicação da
r Iniciativa econômica para o indivíduo. Este é um aspecto característico do liberalismo indivi-
■• dualista (v. ECONOMIA; LIBERALISMO).
■ 4° A luta contra o Estado e a tendência a
, «Stabelecer limites à sua ação é o caráter global do individualismo. Neste sentido, um dos mais
lignificativos documentos do liberalismo moderno é a obra de SPENCER, O homem contra o
&stado{1884), na qual se combate a ingerência do Estado (portanto também do Parlamento) até no
campo da saúde e do ensino público, além do campo econômico.
O postulado subjacente a todos estes diferentes aspectos do I. é a coincidência entre o interesse do
indivíduo e o interesse comum ou coletivo. A ordem natural que, em Riqueza das nações (1776), Adam
Smith considerava característica dos fatos econômicos, servia como garantia dessa coincidência. Nisso
também acreditavam Benthan e James Mill. Quando foram observadas as anomalias da ordem econômica
e se reconheceu que a simples limitação dos poderes do Estado não elimina essas anomalias, nem a
desordem ou as desigualdades sociais, essa crença começou a ficar abalada, a fase individualista do
liberalismo chegou ao fim e teve início a fase que recorria à ação do Estado e tendia a exaltar seu papel.
Esse novo ponto de vista tachou o I. de "atomismo" porque pretendia que a sociedade nascesse de um
conjunto de átomos sociais, os indivíduos; de "anarquismo" porque pretendia que o indivíduo não se
submetesse à ação do Estado; de "egoísmo" porque desejava que as atividades
econômicas se desenvolvessem segundo as diretrizes do interesse privado. Desse modo, porém, eram negligenciados os motivos históricos que haviam
provocado o surgimento da corrente individualista no liberalismo, preparando-se assim, inadvertidamente,
o caminho para novas vitórias do absolutismo estatal.
INDIVÍDUO (gr. õrtouov; lat. Individuum, in. Individual; fr. Individu; ai. Individuum; it. Indivíduo). Em
sentido físico: o indivisível, o que não pode ser mais reduzido pelo procedimento de análise. Em sentido
lógico: o que não pode servir de predicado. Para Aristóteles, o I., no primeiro sentido, é a espécie,
porquanto, sendo resultado da divisão do gênero, não pode ser dividida (An.post., II, 13, 96b 15; Met., V,
10,1018 b 5). À determinação da indivisibili-dade os lógicos do séc. V acrescentaram a impossibilidade
de servir de predicado. Boécio diz: "Chama-se de I. aquilo que não pode ser dividido por nada, assim
como a unidade ou a mente, ou o que não pode ser dividido devido à sua solidez, como o diamante; ou o
que não pode servir de predicado a outras coisas semelhantes, como Sócrates" ÇAd Isag., II em P. L, 64,
col. 97). Esse reparo tornou-se fundamental na lógica medieval, que o utilizou para definir o I.: "I. é
aquilo de que se diz uma única coisa, como Sócrates e Platão" (Pedro Hispano, Summ. log., 209). S.
Tomás fala de um I. vago (vagum), que corresponde à individualidade da espécie e de um I. único: "O I.
vago, p. ex. o homem, significa uma natureza comum com determinado modo de ser que compete às
coisas singulares, que subsistem por si e são distintas das demais. Mas o I. único significa algo
determinado que distingue; assim, o nome Sócrates significa este corpo e este rosto" (S. Th., I, q. 30; a. 4).
OI. vago obviamente é apenas a unidade só numericamente distinguível de outras unidades. Era assim
definido por Duns Scot: "Chama-se de I., ou seja, o que é numericamente uno, aquilo que não é divisível
em muitas coisas e se distingue numericamente de qualquer outra" Un Met., VII, q. 13, n. 17).
Contudo, em Duns Scot mesmo encontram-se as premissas de um conceito diferente de indivíduo: este,
em seu modo de ser, em sua singularidade, é caracterizado por uma determinação última ou "realidade
última" da natureza que o constitui (v. INDIVIDUAÇÃO), de tal forma que inclui um conjunto ilimitado de
determinações, em virtude das quais a natureza comum se restringe até se tornar este determi-
INDIVÍDUO
556
INDUÇÃO
nado ente. Desse ponto de vista, o I. não é caracterizado pela indivisibilidade, mas pela infinidade de suas
determinações. Esse conceito foi expresso claramente por Leibniz: "Embora possa parecer paradoxal, é
impossível ter conhecimento dos I. e encontrar o meio de determinar exatamente a individualidade de
uma coisa, a menos que não se a considere em si mesma. De fato, todas as circunstâncias podem repetirse; as diferenças mínimas são imperceptíveis; o lugar e o tempo, em vez de serem determinantes,
precisam eles mesmos ser determinados pelas coisas que contêm. O que existe de mais considerável nisto
é que a individualidade envolve o infinito e que só quem é capaz de compreendê-lo pode ter
conhecimento do princípio de individuação desta ou daquela coisa; se entendermos isso corretamente,
veremos que se deve à influência que todas as coisas do universo exercem umas sobre as outras. É
verdade que não seria assim, se existissem os átomos de Demócrito, mas nesse caso não existiria sequer
diferença entre dois I. diferentes de mesmo aspecto e mesmas dimensões" (Nouv. ess., III, 3, § 6). O
pressuposto desta doutrina é que, na natureza, só existem I., ou seja, coisas singulares: pressuposto que,
juntamente com os outros pontos principais, foi expresso com toda a clareza por Wolff. Este começa por
afirmar que o I. é "aquilo que percebemos com o sentido interno ou com o sentido externo ou o que
podemos imaginar enquanto coisa única" (Log., § 43), e continua definindo o I. como "o ente que é
determinado sob todos os aspectos (ens omnimode deter-minatum), no qual são determinadas todas as
coisas que lhe são inerentes" (Ibid., § 74). Essa noção do I. como o que é absoluta ou infinitamente
determinado foi utilizada com freqüência pela metafísica moderna. Foi essa noção que permitiu a Hegel
(e a muitos que seguiram seu exemplo) falar de "I. universal" sem incidir numa contradição de termos: "A
tarefa de acompanhar o I. desse seu estado inculto até o saber devia ser entendida em seu sentido geral e
consistia em considerar o I. universal, o Espírito autoconsciente, em seu processo de formação. No que
concerne à relação desses dois modos de individualidade, no I. universal cada momento se mostra no ato
em que ganha a forma concreta e seu aspecto próprio. OI. particular é o espírito não acabado: uma figura
concreta em tudo, cujo ser determinado domina uma só determinação, estando as demais presentes apenas em escorço" (Phánomen. des Geistes, Pref, II, § 3; trad. it., p. 24). Do ponto de vista do
conceito de I. como infinidade de determinações, Hegel certamente podia falar de I. universal, pois uma
infinidade de determinações só pode ser atribuída a um I. absoluto ou infinito. Diante disso, como diz
Hegel, o I. finito caracteriza-se por uma única determinação, estando as demais presentes apenas acessoriamente. Bergson faz referência ao mesmo conceito de I. quando afirma que "a individualidade
comporta uma infinidade de graus e em parte alguma, nem mesmo no homem, ela se realiza plenamente"
(Évol. créatr., cap. I, ed. 1911, p. 13). Obviamente, esse conceito de indivíduo leva ou a hipostasiar a
individualidade de um I. absoluto, como fez Hegel, ou a declará-la inatingível, como fez Bergson. Mas
exatamente isso demonstra que se trata de um conceito inútil.
Na filosofia contemporânea, o I. (assim como a noção análoga de elemento [v.]) é definido em relação
com as exigências predominantes nos vários campos de indagação, ou melhor, em relação com as várias
exigências analíticas. No campo moral ou político o I. é a pessoa. No campo biológico, o I. pode ser, para
certos fins, o organismo; para outros, a célula. Mas foi sobretudo no campo das ciências históricas que a
filosofia e a metodologia contemporâneas utilizaram a noção de I. Windelband (Práludien, II, p. 145) e
Rickert (Grenzen der naturwissenschaftlichen Begriffs-bildung, p. 420) evidenciaram o caráter individualizante das ciências do espírito, diante do caráter generalizante das ciências naturais. O
conhecimento histórico visa a representar o I. em seu caráter singular e irrepetível, ou seja, não como o
caso particular de uma lei, mas como irredutível aos outros I. com os quais está em conexão causai. O I.,
neste caso o evento histórico (fato, pessoa, instituição etc), tem duas características: a singularidade e a
não-repetibilidade (v. HISTÓRIA).
INDUÇÃO (gr. èrcaycoYií; lat. Inductio, in. Induction; fr. Induction; ai. Induktion; it. Indu-zioné). "A I. é
o procedimento que leva do particular ao universal": com esta definição de Aristóteles (Top., I, 12, 105 a
11) concordaram todos os filósofos. O próprio Aristóteles vê na I. um dos dois caminhos pelos quais
conseguimos formar nossas crenças; a outra é a dedução (silogismo) (An. pr., II, 23, 68 b 30). Além disso,
atribuiu a Sócrates o mérito de ha-
INDUÇÃO 557
INDUÇÃO
ver descoberto os "raciocínios indutivos" (Met., Mu, 4,1078 b 28). Entre a I. e o silogismo, Aristóteles
estabelece todavia uma grande diferença de valor. No silogismo dedutivo ("Todos os homens são animais;
todos os animais são mortais; logo, todos os homens são mortais") o termo médio (animal) constitui a
substância ou a razão de ser da conexão necessária entre os dois extremos: os homens são mortais
porque Sãosubstancialmente animais. No raciocínio indutivo, entretanto ("O homem, o cavalo e o mulo
«fio duradouros; o homem, o cavalo e o mulo são animais sem fel; logo, os animais sem fel são
duradouros"), o termo médio (ser sem fel) aparece na conclusão, o que significa que ele não é um porquê
substancial, mas um simples feto (An. pr., II, 23, 68 b 15). Portanto, a I. não lem valor necessário ou
demonstrativo, conquanto seja mais clara que o silogismo; seu âmbito de validade é o mesmo do fato, ou
seja, da totalidade dos casos em que sua validade foi efetivamente constatada. Pode, portanto, ser usada '
para fins de exercício, em dialética, ou com objetivos persuasivos em retórica (Rhet., I, 2, 1356 b 13), mas
não constitui ciência porque a ciência é necessariamente demonstrativa (An. post., I, 2, 71 b 19). Na
filosofia pós-aristotélica, os epicuristas julgaram que a I. era o único procedimento de inferência legítima,
enquanto os estóicos negaram esáe valor. Em De signis, de Füodemo, encontramos um relato preciso da
polêmica que esse assunto provocou entre as duas escolas. Os estóicos diziam que não basta constatar que
os homens que estão ao nosso redor são mortais para dizer que em qualquer lugar os homens são mortais;
seria necessário estabelecer que os homens são mortais exatamente enquanto homens, para conferir
necessidade a essa inferência (De signis, III, 35; IV, 10; DE LACY, Philodemus on Metbods oflnfe-rence,
1941, p. 31). O problema da I. já se apresentava nessa dificuldade proposta pelos estóicos. A eles os
epicuristas objetavam que, desde que nada se oponha à conclusão, a generalização indutiva é válida
(Ibid., VI, 1-14; XK, 25-36; DE LACY, pp. 34, 66). Sexto Empírico só fazia reexpor de forma mais radical
a crítica dos estóicos, partindo da distinção entre I. completa e I. incompleta. "Uma vez que, partindo do
particular, desejam confirmar o universal por meio da I., farão isso percorrendo todos os particulares ou
apenas alguns. Se alguns somente, a I. será incerta, sendo possível que ao universal se oponha algum dos
particulares
omitidos na indução. Se todos, estarão empreendendo um trabalho impossível, porque os particulares são
infinitos e ilimitados" (Pirr. hyp., II, 204). Fora Aristóteles quem afirmara que a I. era feita a partir de
todos os casos particulares possíveis (An. pr., II, 23, 68 b 29), enquanto os epicuristas haviam afirmado o
valor da I. incompleta. Bacon, portanto, só fez retomar a alternativa epicurista quando declarou pueril a I.
completa ou per enumerationem simplicem-. "Esta I. pode ser derrubada por qualquer instância contrária;
além disso, considera sempre as mesmas coisas e não atinge seu fim. Para as ciências, entretanto, é
necessária uma forma de I. que escolha bem as experiências e conclua necessariamente, após as devidas
ex clusões e eliminações" (Nov. Org., Distrib. Op.). Esta forma de I., que Bacon (embora com dúvidas)
atribui a Platão (Ibid., 105), deve inverter a ordem da demonstração. Bacon diz.-"Até agora era costume
passar de chofre dos dados do sentido e das coisas particulares para as coisas gerais, como a pólos fixos
da disputa, inferindo depois todas as outras coisas destas, através das coisas intermédias. Esse é um
atalho, excessivamente íngreme, pelo qual nunca se encontra a natureza, mas apenas questões. Ao
contrário, os axiomas devem ser inferidos por graus sucessivos, chegando só no fim aos axiomas
generalíssimos, que não são simples noções mas fatos bem determinados, sendo tais que a natureza os
reconhece realmente como seus e inerentes à essência das coisas" (Ibid., Distrib. Op.). Em outros termos,
para Bacon a certeza da I. consiste no fato de que, por fim, a I. redunda na determinação da forma da
coisa natural, entendendo-se por forma "a diferença verdadeira, a natureza naturante ou fonte de
emanação" que explique o processo latente e o esquematismo oculto dos corpos (Ibid., II, 1). Nesse
sentido, a forma não passa da "substância" aristotélica: princípio ou razão de ser da coisa. Aristóteles
achava que essa substância podia ser apreendida pelo procedimento silogístico, intuitivo-demonstrativo;
Bacon acha que ela pode ser apreendida pelo procedimento indutivo que selecione e organize as
experiências. Portanto, a verdadeira diferença entre Bacon e Aristóteles é que, para Bacon, a nova
disciplina do procedimento indutivo por ele proposta (disciplina que consiste na formação de tábuas que
selecionem e classifiquem as experiências e na instituição de experiências de verificação) permite atingir
INDUÇÃO
558
INDUÇÃO
com certeza a substância, de que, segundo Aristóteles, a I. só pode aproximar-se de maneira incerta ou
imprecisa e cuja necessidade só pode ser atingida pelo processo dedutivo. Graças a essa interpretação do
procedimento empirista nos termos da metafísica aristotélica, Bacon pôde atribuir à I. incompleta a
mesma "necessidade" que Aristóteles atribuía ao procedimento silogístico. Desse ponto de vista, o
problema da I., nos termos formulados pela crítica dos estóicos e de Sexto Empírico, nem sequer se
apresentava. Por outro lado, o carte-sianismo não estava interessado em propor o problema da I., vendo
nela a mesma função preparatória e subordinada que Aristóteles lhe atribuíra. A Lógica de Port-Royal diz:
"A indução apenas nunca é um meio certo para se chegar à ciência perfeita porque a consideração das
coisas particulares é apenas uma oportunidade para o nosso espírito prestar atenção às suas idéias
naturais, segundo as quais julga sobre a verdade das coisas em geral. O que é verdade porque, p. ex., eu
nunca teria tomado em consideração a natureza do triângulo, se não houvesse visto um triângulo que me
deu ensejo de pensar no assunto; todavia não foi o exame particular desses triângulos que me levou a
concluir de modo geral e certo que a área de todos os triângulos é igual à área do retân-gulo construído
sobre sua base dividida por dois (visto que este exame é impossível), mas apenas a consideração do que
está incluído na idéia de triângulo, que encontro no meu espírito" (ARNAULD, Log., III, 19, § 9). Portanto,
foi só depois que as ciências começaram a usar amplamente o procedimento indutivo, como aconteceu na
segunda metade do séc. XVII, que o problema da I. como problema da validade do procedimento indutivo
e do direito de usá-lo voltou a apresentar-se, sendo claramente exposto pela dúvida cética de Hume:
"Todas as inferências extraídas da experiência supõem, como fundamento, que o futuro se assemelhará ao
passado e que poderes semelhantes estarão unidos a qualidades sensíveis semelhantes. Se houvesse
alguma suspeita de que o curso da natureza pudesse mudar e de que o passado não servisse de regra para
o futuro, toda a experiência se tornaria inútil e não poderia dar origem a nenhuma inferência ou
conclusão. É impossível, portanto, que argumentos extraídos da experiência possam provar a semelhança
entre o passado e o futuro, visto que todos os argumentos desse tipo
fundam-se na suposição dessa semelhança. Mesmo se admitindo que o curso das coisas sempre regular
foi, só isso, sem nenhum argumento ou inferência nova, não prova que no futuro continuará assim" (Inq.
Cone. Underst., IV, 2).
Foi nesses termos que se propôs com freqüência o problema da I. no mundo moderno. Foram-lhe dadas
três soluções fundamentais: I
a
objetivista; 2a
subjetivista; 3a
pragmática. Esta última marca a passagem da
concepção neces-sitarista (pressuposta pelas outras duas) para a concepção probabilista da indução.
I
a A solução objetivista consiste em considerar a existência de uma uniformidade àa. natureza que admite
a generalização das experiências uniformes. Esta solução é muito antiga, tendo sido sustentada por
Filodemo em sua polêmica contra os estóicos: "Do fato de todos os homens que conhecemos serem
semelhantes também no que se refere à mortalidade, inferimos que todos os homens, universalmente,
estão sujeitos à morte, visto que nada se opõe a essa inferência ou nos mostra que os homens não são
suscetíveis de morrer. Recorrendo a essa semelhança, declaramos que, com relação à mortalidade, os
homens que não conhecemos pessoalmente são semelhantes aos que conhecemos por experiência". (De
signis, XVI, 16-29; DE LACY, Ibid., pp. 58 ss.). Neste trecho, obviamente o direito à inferência indutiva
fundamenta-se na uniformidade revelada pelas semelhanças. De modo análogo, no fim da Escolástica,
Duns Scot e Ockham baseavam a I. no princípio de causalidade. Duns Scot dizia: "Das coisas conhecidas
por experiência digo que, embora não se tenha sempre experiência de todas as coisas particulares, mas
apenas na maioria das vezes, quem experimenta sabe infalivelmente que assim é, sempre e em todos os
casos, com base na seguinte proposição existente na alma: tudo o que deriva na maioria das vezes de uma
causa não livre é o efeito natural dessa causa" (Op. Ox., I, d. 3, q. 4, n. 9); nesse trecho, efeito natural
significa efeito uniforme porque necessário. Para Ockham, o fundamento da I. era o princípio: "Causas da
mesma natureza (ratió) têm efeitos da mesma natureza" (In Sent., Prol, q. 2 G), e essa mesma solução era
proposta no séc. XIX por Stuart Mill. O fundamento da I. é o princípio das uniformidades das leis
naturais, e esse princípio é o mesmo de causalidade. Este, por sua vez, não podendo ser reduzido a um
instin-
INDUÇÃO 559
INDUÇÃO
to infalível do gênero humano ou a uma intuição imediata, só pode ser produto de indução. "Chegamos a
essa lei geral" — diz Stuart Mill — "através da generalização das muitas leis de generalidade inferior.
Nunca teríamos chegado à noção de causação (no significado filosófico do termo) como condição de
todos os fenômenos, se muitos casos de causação ou, em outras palavras, muitas uniformidades parciais
de suces-i. são não se tivessem tornado familiares antes. A mais óbvia das uniformidades particulares
sugere e torna evidente a uniformidade geral, e a uniformidade geral, uma vez estabelecida, permite-nos
demonstrar as outras uniformidades ?' particulares das quais resulta" {Logic, III, 21, ;
j 2). A uniformidade
da natureza, portanto, é j «ma simples I. per enumerationem simplicem. Ocírculo vicioso é evidente, e
nele incide qualquer solução análoga para esse problema.
2
1
A segunda solução do problema da I. é subjetivista ou crítica, encontrando-se no kan-tismo. Foi
proposta pelo próprio Kant como íesposta à dúvida de Hume sobre a possibilidade da generalização
científica; consiste em «imitir a uniformidade da estrutura categorial do intelecto e, por isso, da forma
geral da natureza que dele depende. Kant diz: "Toda percepção possível, portanto tudo aquilo que pode
chegar à consciência empírica — isto é, todos os fenômenos "da natureza quanto à sua unificação —, está
sotoposta às categorias, das {juais depende a natureza, considerada sim-; plesmente como natureza em
geral, assim co-í mo ao princípio originário de sua necessária conformidade a leis {qual natura formaliter
spectatà). Mas nem a faculdade pura do intelecto chega a prescrever, apenas mediante categorias, mais
leis além daquelas sobre as quais repousa uma natureza em geral como regularidade dos fenômenos no
espaço e no tempo." Portanto, as leis particulares devem ser extraídas da experiência {Crít. da R. Pura, §
26). Isso significa que, em sua conformidade às leis, em . sua uniformidade, a natureza depende das ca-í
tegorias, ou seja, da estrutura uniforme do intelecto, e que, portanto, a uniformidade ou leis que podem
ser encontradas na experiência estão garantidas pela uniformidade da forma comum (intelecto-natureza).
Esta doutrina é simetricamente oposta à da uniformidade natural, mas seu significado é o mesmo. Em
Lacheli'er encontra-se uma transcrição em termos espiritualistas da mesma tese fundamental
{Fundamento da L, 1871): a possibilidade da I. apóia-se na organização finalista do universo, ou seja, no fato de que a ordem da natureza
é estabelecida pelo espírito {Fon-dement de 1'induction, Paris, 1907, p. 12). A este tipo de solução
reduzem-se todas as justificativas espiritualistas ou idealistas.
3
a
A justificação pragmática foi proposta na filosofia contemporânea quando se reconheceu a
impossibilidade de uma justificação teorética, mas não se chegou a negar a legitimidade do problema, ou
seja, da procura de justificação. A justificação foi buscada na interpretação probabilista da I. A mais
simples expressão da regra da I. probabilista talvez seja a de Kneale: "Depois de observarmos certo
número de coisas a e de descobrirmos que a freqüência das coisas (3 entre elas é f concluímos que P (a, p)
= f ou seja, que a probabilidade de uma coisa a ser (3 deve ser /" {Pro-bability and Induction, Oxford,
1949, p. 230). Expressões mais complicadas que a própria regra são encontradas em Lewis {Analysis
ofKnow-ledge, 1946, p. 272) e em Reichenbach {Theory ofProbability, 1949, p. 446; cf. Experience and
Prediction, Chicago, 1938, pp. 339 ss.). Mas todos eqüivalem a dizer que, quando determinado caráter
recorre em certa proporção das amostras examinadas, pode-se supor que essa proporção vale para todos
os outros exemplos do caso, salvo prova em contrário. Quando a proporção é igual a cem por cento das
amostras examinadas, quando o caráter em questão ocorre em todas, tem-se a generalização uniforme ou
completa. É o que acontece quando se afirma que "todos os homens são mortais" porque o fato de ser
mortal esteve constantemente unido ao fato de ser homem. Por outro lado, quando o valor numérico dessa
proporção é tomado como medida da possibilidade de que o caráter em questão reapareça em novo
exemplo, tem-se um juízo de probabilidade (v.). Obviamente, a generalização completa e o juízo de
probabilidade são aspectos da generalização estatística. Em vista disso, a justificação da I., do ponto de
vista pragmático, pode ser feita asseverando-se: d) que a I. é o único meio de obter previsões; b) que ela é
o único meio suscetível de autocorreção.
d) Kneale diz: "A I. primária é uma diretriz racional não por ser certo que ela leve ao sucesso, mas porque
é a única maneira de tentarmos fazer aquilo de que necessitamos: previsões exatas" {Op. cit., p. 235).
Contra esse
INDUÇÃO
560
INDUÇÃO
argumento, que é aceito por muitos (cf., p. ex., REICHENBACH, op. cit., p. 475), Black observa que, se a I.
é o único meio de obter previsões, o sucesso dessas mesmas previsões não a confirma, assim como o seu
insucesso não a refuta (Problems of Analysis, 1954, pp. 174 ss.). E Black observa que esse argumento,
assim como o outro análogo, de que a I. é o único método para verificar os outros métodos de previsão,
tem a pretensão de justificar dedutivamente a I., de justificá-la com base em argumentos que, como seus
próprios proponentes reconhecem (REICHENBACH, op. cit., p. 479; J. O. WISDOM, Foundations
oflnference in Natural Science, 1953, P- 229), têm caráter analítico ou tautológico. Os argumentos
genuinamente práticos — observa ainda Black — não são dedutivos. Na vida quotidiana, numa situação
que exige decisão, os indícios indicam com certo grau de segurança a ação que será mais adequada, mas
ela não é dedutível daquela indicação e tampouco a conduta contrária implica contradição (Problems
ofAnalysis, p. 185). Portanto, esse tipo de argumentação não tem valor como justificativa do
procedimento indutivo.
b) O segundo argumento fundamental para a justificação prática da I. é sua capacidade de autocorreção.
Peirce foi o primeiro a falar nesse caráter, discernindo nele a própria essência da I. (Coll. Pap., 2729). E
Reichenbach disse: "O procedimento indutivo tem o caráter de um método de tentativa e erro projetado de
tal forma que, nas séries que tenham um limite de freqüências, ele leva automaticamente ao sucesso num
número finito de etapas. Pode ser denominado um método autocorretivo ou assintótico" {Op. cit., p. 446,
§ 87; cf. KNEALE, op. cit., p. 235). Contra esse argumento Black observou que o termo autocorretivo não
é exato, visto ser verdadeiro que a I. inclui a possibilidade constante de revisão, mas, para dizer que as
revisões são correções, seria necessário que elas fossem progressivas, ou seja, dirigidas para uma única
direção e na direção apropriada. Mas é exatamente essa segurança que falta (Problems of Analysis, p.
170). Pode-se admitir, com Black, que nem esse argumento é realmente uma "justificação" da I. no
sentido universal ou dedutivo da palavra "justificação", mas que a possibilidade de autocorreção é caráter
do procedimento indutivo, assim como de todo procedimento científico, é coisa que não se pode pôr em
dúvida; ademais, é o caráter a
que o próprio Black recorre para caracterizar o método científico (Op. cit., p. 23). A revisão, que a I.
possibilita e à qual, aliás, todo o seu procedimento está intrinsecamente subordinado, é correção no
sentido preciso do termo, ou seja, eliminação dos erros revelados pelo próprio procedimento. Uma
modificação que não fosse revisão ou correção nesse sentido não seria exigida e realizada pela indução.
Com tudo isso, o estado atual do problema da I. parece bem expresso pela conclusão de Black, de que não
só é impossível justificar a I., mas também que seu problema carece de sentido, se por justificação se
entende a demonstração da validade infalível do procedimento indutivo. "Insistir em que deve haver uma
conclusão seria como dizer que, se um bom jogador de xadrez conhece os movimentos a serem feitos
numa partida de xadrez, ele também deve ser capaz de conhecer os movimentos a serem feitos num
tabuleiro com uma só peça. Mas este não é um problema de xadrez e nada há que o jogador de xadrez
possa resolver. O problema daquilo que devemos inferir quando sabemos apenas que alguns A são B não
é um problema indutivo genuíno e não há modo de resolvê-lo a não ser reconhecendo que seria
inoportuno tentá-lo" (Op. cit., pp. 188-89; cf. Language and Philosophy, 1952, cap. II). Em outros termos,
o problema da I. em geral, assim como o problema de inferir o futuro do passado ou os casos não
observados dos casos observados, não têm sentido por falta de dados. Se esses dados forem fornecidos,
não haverá mais problema de I., mas problemas pertencentes aos domínios de cada ciência. Deve-se
acrescentar, todavia, que a eliminação do problema da I. em sua forma clássica não exime o filósofo de
analisar os procedimentos indutivos empregados por cada ciência, de confrontar tais procedimentos e de
fazer as generalizações que possam surgir desse confronto. Está claro, porém, que essa ordem de
investigação, não empreendida até hoje, nunca levará à justificação da indução, que, se fosse alcançada,
teria como efeito imediato a eliminação de todos os riscos dos procedimentos indutivos e a redução destes
procedimentos à certeza e à necessidade dos procedimentos dedutivos. Na realidade, os procedimentos
científicos e, em geral, os comportamentos e as diretrizes racionais do homem consistem em limitar o
risco, em torná-lo calculável, não em eliminá-lo. Portanto, os problemas filosóficos não po-
INCONSCIENTE
551
INDEMONSTRÁVEL
seja, a corrente da consciência que é o próprio elã vital.
Mas enquanto o I. era assim utilizado pela metafísica e enquanto a psicologia o admitia, mesmo a
contragosto, como um dado de fato, seu conteúdo era completamente renovado por Freud, que
apresentava as duas teses fundamentais da psicanálise da seguinte forma: "A primeira dessas premissas é
que os processos psíquicos são em si mesmos inconscientes e que os processos conscientes são apenas
atos isolados, frações da vida psíquica total." A segunda proposição que a psicanálise proclama como uma
de suas descobertas é a afirmação de que "tendências que podem ser classificadas apenas como sexuais,
em sentido estrito ou amplo da palavra, agem como causas determinantes de doenças nervosas ou
psíquicas e que essas emoções sexuais desempenham papel importante nas criações do espírito humano
nos campos da cultura, da arte e da vida social" (Einführung in die Psychoanalyse, 1917, Intr., trad. ir.,
pp. 32-33). Desta forma, na psicanálise o I. deixava de ter o caráter indeterl minado ou amorfo que tivera até aquele momento nas interpretações dos filósofos e dos psicólogos, para
adquirir um conteúdo preciso e identificar-se com as tendências sexuais inibidas, negadas, camufladas ou
ocultas. O grande sucesso inicial da psicanálise e a importância científica de que ela se revestiu no mundo
contemporâneo (v. PSICANÁLISE) relegaram para se-
;' gundo plano a dificuldade teórica associada ao próprio reconhecimento da existência do inconsciente.
Obviamente, a objeção de Locke, tantas vezes repetida, de que "existir", para um estado mental, significa
"ser percebido" ou "ser objeto de consciência", e que portanto um estado mental inconsciente é uma
contradição em seus próprios termos, deixou de ter valor. Um esta-
■i do mental (p. ex. uma emoção, uma tendência, uma volição) pode "existir" mesmo sem ser
"percebido", no sentido de que oportunamente pode ser evidenciado e reconhecido, com procedimentos
apropriados (que são os empregados pela psicanálise), como condição de uma situação psíquica normal
ou patológica. O próprio Freud insistiu na noção de sintoma: "Um sintoma forma-se para substituir
alguma coisa que não conseguiu manifestar-se exteriormente. Certos processos psíquicos, não podendo
desenvolver-se normalmente, e chegar até a consciência, dão origem a um sintoma neurótico" Ubid., trad.
fr., p. 303). Portanto, o I.
existe em primeiro lugar como sintoma. Trata-se da mesma solução teórica que Kant vira ao dizer que o
I., mesmo não sendo percebido imediatamente, pode ser percebido mediata-mente, mas esta solução
teórica foi bem melhorada, pois em Freud o I., como sintoma, nem precisa ser "percebido": é um fato que
a observação clínica pode constatar.
INCONSEQÜÊNCIA (in. Inconsistency; fr. Inconséquence, ai. Folgewidrigkeit.; it. Incon-seguenzd).
Ausência de compatibilidade (v.) das proposições que constituem um sistema simbólico. P. ex., um
conjunto de proposições é inconseqüente quando implica uma contradição, quando dele deriva
formalmente certa proposição p ou a negação de p. Em geral, pode-se dizer que a I. de um sistema
qualquer é a possibilidade de contradição no próprio sistema.
INCONSISTÊNCIA. V. COMPATIBILIDADE.
INDAGAÇÃO. V. INVESTIGAÇÃO.
INDEFINIDO (in. Indefinite; fr. Indéfini; ai. Unbegrenzi; it. Indefinitó). Aquilo que não tem limite no
espaço ou no tempo, que portanto é infinito no sentido negativo do termo. Este pelo menos é o significado
da palavra estabelecido por Descartes, que assim fazia a distinção entre a indefinição das coisas e a
infinidade de Deus, que "não tem limites em suas perfei-ções" e é por isso o único ser infinito {Princ.
phil., I, 27; IRésp., § X). Portanto, essa palavra eqüivale a ilimitado (v.), mas não é usada com o sentido
de "não definido", ou seja, não expresso por uma definição.
INDEMONSTRÁVEL (in. Undemonstrable, fr. Indémontrable, ai. Unerweislictí). it. Indimos-trabilé).
Aquilo que não necessita de demonstração porque sua verdade é evidente. Neste sentido, são I. os
primeiros princípios da lógica de Aristóteles (v. AXIOMAS) e os anapodíticos dos estóicos (v.
ANAPODÍTICO).
2. As proposições primitivas ou em geral os antecedentes de um sistema simbólico qualquer que sirvam
de fundamento das regras de demonstração próprias do sistema. Neste sentido, são indemonstráveis os
axiomas, as definições e as regras de transformação de todo sistema simbólico.
3. As proposições indecidíveis, isto é, as proposições que não podem ser consideradas verdadeiras ou
falsas em dado sistema simbólico, mas que podem ser decididas num sistema mais amplo, onde porém se
apresentam com outra forma. Neste sentido, são indemonstrá-
INERÊNCIA
562
INFINITO
modo explícito o princípio correspondente; o primeiro a formulá-lo foi Descartes, que estabeleceu como
"primeira lei da natureza" o princípio de que "cada coisa continua no mesmo estado enquanto pode e só o
muda quando se encontra com outras coisas" (Princ. phil., II, § 37). Alguns decênios depois, ao ser aceito
por Newton como primeiro princípio da dinâmica em Princípios matemáticos da filosofia natural (1687),
o princípio da I. ingressava definitivamente na ciência moderna, onde foi e continua sendo, mais que uma
"lei natural" (no sentido cartesiano do termo) ou uma verdade experimental, um postulado ou princípio
instrumental que permite o cálculo da força (v.) ou da energia (v.). Sobre a teoria do impetus, cf. DUHEM,
Études sur Léonard de Vinci, Paris, 1909.
INERÊNCIA. V. SER, I. A.
INFERÊNCIA (in. Inference; fr. Infêrence; ai. Inferiren; it. Inferenzà). No latim medieval, encontra-se
em muitos lógicos o termo inferre, que designa o fato de, numa conexão (ou consequentid) de duas
proposições, a primeira (antecedente) implica (ou melhor, contém por "implicação estrita") a segunda
(conseqüente). Na filosofia moderna, o termo "I." é preferido pelos anglo-saxões, ao passo que, em língua
italiana, se prefere illazione (ilação). Na língua inglesa, esse uso é muito amplo, significando desde
implicação (v.), como p. ex. emjevons e, em geral, nos lógicos ingleses do séc. XIX, até o processo
mental através do qual, partindo de determinados dados, se chega a uma conclusão por implicação ou
mesmo por indução (Stebbing, Dewey), Stuart Mill diz: "Inferir uma proposição de uma ou mais
proposições antecedentes, assentir ou crer nela como conclusão de qualquer outra coisa, isso é raciocinar
no mais amplo significado do termo" (Logic, II, 1, 1). Essa palavra é empregada com o mesmo sentido
generalíssimo por Peirce (Chance, Love and Logic, cap. VI) e por muitos lógicos contemporâneos (Lewis,
Reichenbach, etc). Dewey distinguiu a I., como relação entre signo e coisa significada, da implicação, que
seria a relação entre os significados que constituem as proposições (Logic, Introdução; trad. it., p. 96),
mas essa proposta não teve seguidores. G. P.
INFINITESIMAL (lat. Infinitesimus; in. Infi-nitesimal; fr. Infinitésimal; ai. Infinitesimal; it.
Infinitesimalè). Uma grandeza que pode vir a ser menor que qualquer grandeza determiná-vel, ou, em
termos menos apropriados, uma
grandeza tendente a zero. Este conceito foi conhecido pelos gregos, que o empregaram com freqüência; é
pressuposto nas argumentações de Zenâo de Eléia contra o movimento (v. AQUILES; DICOTOMIA;
FLECHA; ESTÁDIO) e foi claramente expresso por Anaxágoras, que disse: "Com relação ao pequeno, não
há mínimo, mas há sempre um menor, porque o que existe não pode ser anulado" (Fr. 3, Diels). Esse
conceito foi exposto por Aristóteles (Fís., III, 7, 207b 35), retomado pelos últimos escolásticos (cf. por
todos OCKHAM, In Sent., I, d. 17, q. 8) e utilizado por Leibniz como fundamento do cálculo I., cujo
primeiro documento importante é o texto Novo método para os máximos e os mínimos (1682).
INFINITO (gr. òmeipov; lat. Infinitum; in. Infinite, fr. Infini; ai. Unendlich; it. Infinito). Este termo tem
os seguintes significados principais, entre os quais existem algumas semelhanças: 1Q
I. matemático, que é
a disposição ou a qualidade de uma grandeza; 2S
I. teológico, que é a nâo-limitação da potência; 3a
I.
metafísico, que é a nào-completude.
l
s
A concepção matemática do I. elaborou dois conceitos diferentes: d) I. potencialcomo limite de certas
operações sobre as grandezas; b) I. atual como uma espécie particular de grandeza.
d) O conceito de I. potencial foi elaborado por Aristóteles, que negava que o I. pudesse ser atual, ou seja,
real, tanto como realidade em si (substância) quanto como atributo de uma realidade (Fís., III, 5, 204 a 7
ss.). Isto quer dizer que o I. não é substância nem propriedade ou determinação substancial, mas que
"existe somente de modo acidental" (Ibid., 204a 28), como disposição de grandezas. Que disposição?
Aristóteles dá dois significados fundamentais de I.: no primeiro, I. é "aquilo que, por natureza, não pode
ser percorrido", no sentido de que não pode ser visto. No segundo, I. é aquilo que pode ser percorrido,
mas não todo, pois não tem fim; nesse sentido, é I. por composição, por divisão ou por ambas (Ibid., III,
4, 204 a 3). Ora, o I. em sentido matemático é só este último, ou seja, o I. que pode ser percorrido, mas
nunca de modo exaustivo ou completo. Neste sentido, o I. é tal "que sempre se pode tomar algo de novo,
e o que se toma é sempre finito, mas sempre diferente. Assim, não se deve tomar o I. como um ser
singular, como p. ex. um homem ou uma coisa, mas no sentido em que se fala de um dia ou de uma
INFINITO 563
INFINITO
kjta, cujo modo de ser não é uma substância, mas um processo que, apesar de finito, é sempre, diferente"
{Md., III, 6, 206 a 27). Portanto, não é I. aquilo fora do qual não há nada, como , je acredita comumente,
mas sim aquilo fora do qual sempre há alguma coisa; conseqüentemente o I. participa mais do conceito
de parte ' que do conceito de todo {Ibid., III, 6, 206 b 32; 3D7 a 27). Esse conceito aristotélico era
utilizado por Lucrécio para defender a doutrina flpicurista da infinidade do espaço, expresso com a
imagem de uma flecha lançada a partir ' do limite extremo do universo, admitido por ' hipótese; quer a
flecha encontre um obstáculo, ' quer continue além, o limite extremo do universo não é mais o mesmo
porque é apenas o ponto de partida da flecha {De rer. nat., I, 967-■ J82). Também nesta imagem I. é
aquilo de que se pode sempre tomar uma parte, e aquilo que se toma é sempre finito mas sempre
diferente. Este conceito de I. é essencialmente negativo: consiste na não-exauribilidade de determinadas
grandezas submetidas a certas operações, que são a composição (acréscimo de partes sempre novas) e a
divisão em partes sempre novas. A primeira operação tende ao infinitamente grande; a segunda, ao
infinitamente pequeno (Jnfinitésimo [v.]): ambas definem o conceito de I. como inexauribilidade de partes
dentro de partes. Mas assim entendido o conceito é obviamente negativo: caracteriza a inexauribilidade
ou incompletitude de uma série. Justamente a esse respeito Plotino observou que I. é aquilo que não pode
ser exaurido em termos de grandeza ou de número de suas partes (Enn., VI, 9, 6). E Kant, do mesmo
ponto de vista, dizia: "O conceito verdadeiro (transcendental) de infinidade é que a síntese seqüencial da
unidade na medição de um quantum nunca pode ser acabada" {Crít. R. Pura, Dialética, cap. 2, seç. 2).
Essa espécie de I. foi denominada pelos lógicos da Idade Média I. sincatego-remático
{syncategorematicum), que é o I. entendido como disposição (não qualidade) de um sujeito, distinto do I.
categoremático, que seria o I. como qualidade ou como substância (PEDRO HISPANO, Summ. log., 12, 57;
OCKHAM, InSent., I, d. 17, q. 8). Esse mesmo I. foi definido pela matemática do séc. XVIII e da primeira
metade do séc. XIX mediante o conceito de limite (como o campo das séries, das sucessões, etc), mas os
matemáticos daquela época não lhe atribuíram a posição de tipo de grandeza em si. Gauss dizia numa
carta de 1831: "Protesto contra o emprego de grandeza I. como algo completo, emprego que nunca foi admitido em matemática.
O I. é só uma façon de parler, a rigor, fala-se de limites, dos quais algumas relações são aproximadas
quando se quer, enquanto a outras relações é permitido crescer além de qualquer medida", (cf. GEYMONAT, História e filosofia da análise infini-tesimal, 1947, pp. 174-75). Iparadossi dell'1. (1851) de
Bernardo Bolzano é uma obra que marca a primeira abordagem decisiva de um novo conceito do infinito.
b) O segundo é o de I. categórico ou (menos propriamente se diz) atual, ao qual só a matemática moderna
deu forma rigorosa. Contudo, a matemática chegou a esse conceito através das discussões tradicionais
sobre os denominados paradoxos do infinito. Já R. Bacon, para refutar a infinidade do mundo, fazia notar
que, a admitir-se o I., deve-se concluir que a parte é maior que o todo a que pertence {Opus tertium, ed.
Brewer, 41, pp. 141-42). Argumentos semelhantes foram repetidos freqüentemente na Escolástica do séc.
XIV, que no entanto, com Ockham, deu a tais argumentos uma resposta que indica o caminho a ser depois
seguido pela matemática da segunda metade do séc. XIX. De fato Ockham afirma: "Não é incompatível
que a parte seja igual e não menor que seu todo porque isso acontece toda vez que uma parte do todo é I.
(...) Isso também acontece na quantidade descontínua ou em qualquer multiplicidade, em que uma das
partes tenha unidades não menores que as contidas no todo. Assim, em todo o universo não existe um
número maior de partes que numa fava, porque numa fava há infinitas partes. Portanto, o princípio de que
o todo é maior que a parte vale somente para todos os compostos de partes integrantes finitas" {Cent.
Theol, 17 C; Quodl, I, q. 9). Essa corajosa limitação do valor de um axioma, que então parecia evidente,
não teve seguidores durante muito tempo. O próprio Galilei, para evitar a possibilidade de igualdade entre
a parte e o todo (a propósito da relação entre os quadrados e a série natural dos números), afirmou que "os
atributos 'igual', maior' e 'menor' não têm lugar nos I., mas só nas quantidades finitas" {Scienze nuove,
op., VIII, p. 79), deixando assim inalterada a verdade do pretenso axioma. Este acabaria por ser
derrubado, sendo declarado fruto de uma generalização falaz (cf. RUSSELL, Principies of Mathe-matics,
1903, p. 360), só quando G. Cantor
INFINITO
564
INFINITO
{Mathematische Annalen, entre 1878 e 1883) e Dedekind {Continuidade e números irracionais, 1872; O
que são e o que devem ser os números, 1888) enunciaram um novo conceito de infinito, que consiste em
tomar como definição de I. o que até então parecera ser o "paradoxo" do próprio I.: a equivalência da
parte e do todo. Pode-se ilustrar essa concepção recorrendo ao exemplo dado por Royce {The World and
the Individual, 1900-01; cf. o Ensaio complementar "O um, os muitos e o I." anexo ao vol. 1 da obra).
Suponhamos que exista um mapa idealmente perfeito, de tal forma que, se A é o objeto reproduzido e A o
mapa, este esteja em correspondência com A de tal modo que para cada elemento particular de A {a, b, c)
possa ser determinado em A' algum elemento correspondente {a', tí, cf), em conformidade com o sistema
de projeção escolhido. Suponhamos além disso que esse mapa seja desenhado dentro e em cima de uma
parte da superfície da região reproduzida, como p. ex. a Inglaterra. Se este mapa é — como deve ser por
hipótese — idealmente perfeito, deve representar tudo o que existe sobre a superfície da Inglaterra, logo o
próprio mapa. A representação deste último, sendo por sua vez perfeita, deverá conter a representação
dele mesmo, e assim por diante, sem limite. Um sistema dessa espécie é claramente I., não por ser inexaurível, mas por ser auto-representativo, ou melhor, auto-reflexivo. Em termos matemáticos, um conjunto
auto-reflexivo é aquele que pode ser posto em correspondência biunívoca com algum subconjunto seu.
Esse é o caso da série natural dos números, que pode ser posta em correspondência biunívoca com seus
subconjuntos, como p. ex. os quadrados, os números primos, etc.
Segundo Cantor a potência comum de dois conjuntos entre os quais exista uma correspondência
biunívoca é o "número cardinal" dos dois conjuntos. Esse número é chamado de transfinito quando o
conjunto é eqüipotente a uma de suas partes ou de seus subconjuntos. Dessa forma, o conceito de número
cardinal I., que fora sempre negado como contraditório, ingressava na matemática. Mas logo deveria
revelar-se fonte de novas dificuldades e problemas, que constituem os "paradoxos" da lógica moderna,
conquanto não fossem de todo desconhecidos da lógica antiga (v. ANTINOMIA). Mas o conceito de I.
matemático não foi modificado pelo estudo desses paradoxos e pelas soluções para eles propostas.
2- O segundo conceito de I. é de natureza teológica e surgiu no último período da filosofia grega, com
Fílon e Plotino. Este último distinguira a infinidade do número, que é "ine-xauribilidade" {Enn., VI, 6,
17), da infinidade do Uno, que é entretanto "a não-limitação da potência" {Ibid., VI. 9, 6). Com menor
precisão de linguagem, esse conceito é expresso freqüentemente pela Escolástica da Idade Média. S.
Tomás, após observar que os primeiros filósofos tiveram razão em julgar I. o princípio das coisas
"considerando que as coisas derivam do primeiro princípio ao I.", distingue o I. da matéria, que é
imperfeição porque a matéria sem forma é incompleta, e o I. da forma, que é perfeição porque é da forma
que não recebe o ser de outrem, mas de si mesmo, ou seja, de Deus (S. Th., I, q. 7, a. 1). Chamar a forma
subsistente por si só de I. parece querer significar que o I. é aquilo que, para ser, não precisa de outra
coisa, sendo portanto a ilimitada potência de ser. Não muito diferente é o sentido que parece ter a tese de
Duns Scot sobre a infinidade como modo de ser de Deus. Duns observa que, se dissermos que Deus é
supremo, estaremos conferindo a ele uma determinação que lhe cabe em relação às coisas que são
diferentes dele: é supremo entre todas as coisas existentes. Mas se dissermos que é I., estaremos dizendo
que é supremo em sua natureza intrínseca, isto é, que transcende todo e qualquer grau possível de
perfeição {Op. Ox, I, d. 2, q. 2, n. 17). A infinidade parece expressar aqui o . "quo maius cogitari nequit"
de S. Anselmo, ou seja, as perfeições de Deus estão além de qualquer grau alcançável pelas perfeições
finitas. A distinção cartesiana entre I. e indefinido (v.), que atribui apenas a Deus o atributo da infinidade,
parece coincidir mais com a distinção , entre o I. teológico e o I. matemático: distinção também
encontrada em Locke {An Essay Conceming Human Understanding, II, 17,1) e Leibniz {Nouv. ess., II,
17, 2). Mas na filosofia moderna o conceito de I. como não-limitação da potência é realmente introduzido
por Fichte, para quem o Eu é I. "suposto a partir de sua absoluta atividade", porquanto sua atividade não
encontra limites ou obstáculos. Supondo-se, ao mesmo tempo, um não-Eu, o Eu limi-; ta-se e torna-se
finito. Mas por fim "a finidade f deve ser anulada: todos os limites devem desaparecer e ficar apenas o Eu
I., como Um e;
INFINITO
565
INGENUIDADE
como Todo" {Wissenschaftslehre, 1794, 11, § 4, D). A contraposição hegeliana entre "falso I." e
"verdadeiro I." constitui a melhor ilustração dessa noção de I. na filosofia moderna. A falsa infinidade é a
infinidade matemática do progresso ao I., pois este "pára na declaração da contradição, contida no finito,
de que este é tanto uma coisa quanto a outra coisa" {Ene, $94). O progresso ao I. remete ao além do
finito, mas nunca alcança esse além; por isso, sua negação do finito é um "dever-ser" que nunca é um
"ser". O verdadeiro I. desfaz essa contradição: nega a realidade do finito como tal e resolve-o em si. O
verdadeiro I., em outros termos, é aquilo que é, é a realidade. Ele "é e é determinadamente, existe, está
presente. Só o falso I. está no além, sendo apenas a negação do finito como tal... A verdadeira infinidade
tomada assim em geral, qual um existir colocado como afirmativo contra a abstrata negação, é a realidade
em sentido mais elevado, não aquela anteriormente determinada como simples realidade. A realidade
adquiriu aqui um conteúdo concreto. Real não é o finito, mas o I." (Wis-sensebaft der Logik, I, I, seç. I,
cap. II, C, trad. it., pp. 161-62). Nesse sentido, para usar uma frase do próprio Hegel, o I. é a "força da
existência" (Fil. do direito, § 331, Zusatz), ou seja, a força graças à qual a razão habita o mundo e
domina-o, sendo, portanto, não-limitaçâo de potência {Ene, § 6). É bem conhecido o emprego que o
próprio Hegel e toda a filosofia romântica do séc. XIX fizeram desse conceito de I.: ele serviu para
justificar a realidade enquanto tal, o fato, e a repelir a pretensão de o intelecto "abstrato" julgar a
realidade, de opor-se a ela e de nela inserisse com o compromisso de transformação. Segundo a noção de
infinidade de potência, a realidade, toda a realidade em qualquer momento, é tudo aquilo que deve ser,
uma vez que ao princípio que a rege não falta a potência necessária para a realização integral. 3e
O
terceiro conceito de I. é o correspondente metafísico do conceito matemático tradicional. Já vimos que,
para Aristóteles, o I. nunca pode ser acabado, portanto nunca pode ser um todo, ele é parte,
incompletitude e inexauri-bilidade. Aristóteles, portanto, não concordava com Melisso, que denominara o
todo de I., e concordava com o pensamento de Parmênides, que o considerara finito {Eis., 6, 207 a 15).
Mas essas determinações já haviam sido atribuídas ao I. por Platão: I. é aquilo que carece de número ou
de medida, que é suscetível ao mais
ou ao menos e portanto exclui a ordem e a determinação {Fil., 24 a 25 b). É este o conceito metafísico de
I., encontrado entre os gregos porque estreitamente ligado ao seu ideal moral de ordem e de medida.
Historicamente falando, esse conceito não ultrapassou os limites da Grécia da idade clássica.
INFINITO, JUÍZO (ai. Unendlich Urteil). Kant denominou assim as proposições nas quais o predicado
é constituído por uma negação, como, p. ex., "a alma é não-mortal" {Logik, § 22, Crít. R. Pura, § 9). O
termo I. já era empregado pela lógica medieval para indicar os substantivos negativos, como p. ex. nãohomem (cf. PEDRO HISPANO, Summ. log., 1.04).
INFLUXO (lat. Influxus, Influentia; in. In-flux; fr. Influence; ai. Einfluss, it. Influssó). Ação exercida por
aquilo que é incorpóreo sobre o que é corpóreo. Nesse sentido, Cardano distin-guia o I. da mudança, que
é a ação de um corpo sobre um outro corpo, e do alento, que é a ação do incorpóreo sobre o incorpóreo e
dá-se exclusivamente na alma {De subtilitate, XXI, em Opera, 1663, III, p. 669 b-670 a). Esse termo tem
sido empregado para indicar:
1
B
A ação determinante dos astros sobre o destino e a vida dos homens, como mediadora da ação divina
(cf. p. ex.: NICOLAU DE CUSA, De doctaignor., II, 12; Pico DELIA MIRANDOLA, Adv. astralogiam, VI, 2 e
passim);
2
S
A ação do governo de Deus sobre o mundo. Neste sentido, Campannela fala dos três "grandes I." nos
quais se concretiza a ação de Deus, que são a necessidade, o destino e a harmonia {Met., IX, I; Theol, I,
17, a. 1);
3
Q
A ação da alma sobre o corpo. Neste sentido, essa palavra foi empregada nos sécs. XVII e XVIII.
Leibniz diz: "ao se querer fundamentar a opinião vulgar do I. da alma sobre o corpo com o exemplo de
Deus, que atua de fora de si mesmo, tem-se uma semelhança excessiva de Deus com a alma do mundo"
{IV Lettre à Clarke, § 34). Baumgarten chama essa doutrina de "Sistema do I. físico" {Met., § 761). Kant
cita essa mesma "opinião vulgar," rejeitando-a {De mundi sensibilis, etc, IV, § 17).
INFORMAÇÃO. V. CIBERNÉTICA.
INGENUIDADE (in. Naivete; fr. Naiveté; ai. Naivetàt; it. Ingenuitã). No séc. XVIII, este termo
começou a ser empregado para indicar certo modo de expressão estética. Kant dizia: "A I. é a expressão
da originária sinceridade natural da humanidade contra a arte de fingir, que se
ININTELIGÍVEL
566
INSTANTE
tornou uma segunda natureza" (Crít. do Juízo, § 54). A I. não deve ser confundida com a simplicidade
franca, que não dissimula a natureza só porque não compreende o que é a arte de viver em sociedade. É
antes uma natureza que se faz presente ou se revela na própria arte (Ibid., § 54). Schiller inspirou-se
nesses conceitos no ensaio Sobre a poesia ingênua e sentimental (1795-96): "O ingênuo é a representação
da nossa infância perdida, que fica em nós como o que há de mais querido, e por isso nos enche de certa
tristeza e é, ao mesmo tempo, a representação da suprema perfeição do ideal, que suscita em nós sublime
emoção" (Werke, ed. Karpeles, XII, p. 108). A poesia ingênua nesse sentido contrapõe-se à poesia
sentimental: o poeta ingênuo é natureza; o poeta sentimental procura a natureza (Ibid., p. 125).
Fora do domínio da estética, esse termo por vezes é usado para caracterizar as crenças filosóficas do
homem comum. Deu-se o nome de "Realismo ingênuo" à crença comum na realidade das coisas. Embora,
assim usado, esse adjetivo tenha certo tom depreciativo, a crítica mais recente tem demonstrado que nem
sempre as crenças ingênuas são as mais fracas (v. REALISMO).
ININTELIGÍVEL (lat. Inexplicabilis, in. Unin-telligible, fr. Ininteligible, ai. Unverstandlich; it.
Inintelligibilé). 1. Propriamente, aquilo de que não se consegue apreender o porquê e o como, ou seja,
aquilo cuja causa, condição ou significado é inapreensível, o inexplicável (cf. CÍCERO, Acad., III, 29, 95).
Este termo, portanto, tem significado diferente e mais preciso que incon-cebweKy.), que indica apenas
uma incompatibilidade genérica com a razão. O próprio Leibniz estabelecia a diferença entre o que não se
entende e o que é inconcebível (Nouv. ess., Avant propôs, op., ed. Erdmann, p. 202). Diferença análoga é
estabelecida entre esses dois termos por Peirce (Chance, Love and Logic, II, 2, trad. it., p. 137).
2. A propósito de discursos escritos ou falados: obscuro, confuso, mal exposto, incapaz de comunicar.
INQUIETUDE (in. Uneasiness; fr. Inquietude; ai. Unruhe; it. Inquietudiné). Locke definiu esse termo
dizendo que é o mal-estar da necessidade insatisfeita (An Essay Concer., II, 20, 6). Na segunda edição de
Ensaio, Locke viu na I. assim entendida o móvel principal da vontade humana. Locke dizia: "Depois de
refletir, sou levado a pensar que, ao contrário do que se acredita, o que determina a vontade não é ter os
olhos voltados para um bem superior, mas sim algum mal-estar (geralmente, o mais grave dos que
atualmente afligem o homem) (...) Esse mal-estar também pode ser denominado desejo, que é um malestar do espírito pela falta de algum bem" (Ibid., II, 21, 31). Leibniz acatava com bons olhos essa tese de
Locke (Nouv. ess., II, 20, § 6), que também foi acolhida e utilizada por Condillac (Traité des sensations, I,
3, § 2).
EVSOLUBILIA. Na lógica medieval, a partir do séc. XIV, receberam este nome e o nome de
Impossibilia os raciocínios que a lógica me-gárico-estóica chamava de ambíguos ou conversíveis,
também chamados de dilemas (v.) e, mais tarde, de antinomias (v.).
INSTABILIDADE (in. Instability). Precariedade. Um dos traços fundamentais da existência, segundo
algumas correntes contemporâneas. Dewey diz: "O homem vive num mundo aleatório; pode-se dizer,
cruamente, que sua existência implica risco. O mundo é o palco do risco: incerto, instável, terrivelmente
instável. Seus perigos são irregulares, inconstantes, não podem ser associados a um tempo ou a uma
situação determinada" (Experience andNature, cap. 2).
INSTÂNCIA (gr. evcracuç; lat. Instantia; in. Instance, fr. Instance, ai. Instanz; it. Istanza). 1. Na lógica
aristotélica, I. é "uma premissa contrária a outra premissa" (An.pr., II, 26, 69 a 36). Aristóteles enumera
quatro I. fundamentais: o ataque à premissa do adversário; uma nova premissa; uma premissa contrária à
do adversário; recurso a decisões precedentes (Top., VIII, 10, l6la 1; Ret., II, 25, 1402 a 34).
2. Bacon chamou de I. os casos experimentais particulares de determinado fenômeno, como p. ex. do
calor; denominou "tábuas das I." a relação de tais casos (Nov. Org., II, pp. 10 ss.) (v. TÁBUAS). Stuart Mill
por vezes adotou essa terminologia (Logic, III, 9, 1, passim).
INSTANTE (gr. TO èÇaíípvriÇ; lat. Momen-tum, in. Instant; fr. Instant; ai. Augenblick, it. Attimo) 1. De
acordo com o significado específico, próprio de certa tradição filosófica, o I. é diferente do agora (v.),
sendo o limite ou a condição do tempo, porque representa uma espécie de encontro ou de compromisso
entre o tempo e a eternidade. Essa noção remonta a Platão, que dizia: "O I. parece indicar o que ; serve de
transição entre duas mudanças inver-
i-ANTE
567
INSTINTO
, A passagem do movimento ao repouso e ;-versa não ocorre a partir da imobilidade ainda está imota nem
do movimento que ! se está movendo. A natureza um pouco tia do I. está no fato de ser o ponto mé-«ntre
repouso e movimento, mesmo não do ele no tempo, o que o torna ponto de "da e de partida do que se está
movendo uireção ao estar parado, e do que está pa-: em direção ao mover-se" (Parm., 156 d). outros
termos, para Platão o I. não é nem o nem a eternidade, nem o movimento o repouso, mas está entre eles e
constitui ponto de encontro. Essa noção foi reto-por Kierkegaard, que viu no I. a inserção *nea da
eternidade no tempo e, portanto, inserção subitânea da verdade divina no ho-isto é, o nascimento da fé
(Philoso-beBrocken, cap. IV; cf. Werke, II, pp. 108, ss.). O caráter instantâneo da fé exclui que possa ser
suscitada ou produzida por "essos de demonstração ou de persuasão. a polêmica de Kierkegaard contra a
igreja ai dinamarquesa, travada no jornal, e que denominou precisamente O Instante. O aceito de I. volta
no existencialismo ale-3, mas sem a ressonância religiosa que tinha ütaa Kierkegaard. Jaspers diz: "O I.
vivido é o Í»to supremo, calor de sangue, imediação, presente corpófeo, totalidade do real, émca coisa
verdadeira e concreta. Em vez de 'fartir do presente para perder-se no passado "<3U no futuro, o homem
encontra a existência e >è absoluto no I., único que os pode propor-ftonar. Passado e futuro são abismos
obscuros informes, tempo indefinido, ao passo que o I. ftode ser a abolição do tempo, a presença do
eterno" (Psychologie der Weltanschauungen, ' 1925, I, 3; trad. it., p. 132). O mesmo Jaspers relacionaa
noção de I. com a atitude ética ■ caracterizada pela máxima "vive oi.", expressa na Antigüidade por
Aristipo (séc. IV a.C). Este prescrevia "ter a mente no hoje, ou melhor, naquele I. em que cada um faz e
pensa alguma coisa, pois só o presente é nosso, não o I. que passou nem o que está sendo esperado: um já
está destruído, o outro não sabemos se há de vir" (ELIANO, Var. historiae, XIV, 6). Essa atitude, que
Kierkegaard chamava de "Vida estética", às vezes é contraposta à outra que, sacrificando continuamente o
presente em favor do futuro, acaba tornando insignificante e instrumental toda a duração da vida. No séc.
XVIII, Lessing e Rousseau discordaram
dessa última atitude, convidando a dar a cada período da vida, a cada dia e a cada instante um valor
autônomo e acabado. Essa atitude não coincide, porém, com a chamada atitude estética, pois, ao
contrário, supõe que aos instantes da vida não se atribua o valor que por acaso tenham, mas o valor
atribuído a todo um projeto de vida. Heidegger retomou ainda, em sentido análogo, a noção de I.,
considerando-o como "o presente autêntico" e contrapondo-o ao agora, que é o presente inautêntico da
vida cotidiana. O agora é a apresentação das coisas para as quais se voltam os cuidados cotidianos do
homem; o I. é a decisão antecipadora da morte, isto é, do nada da existência: a mesma situação que, do
ponto de vista emocional, é a angústia (Sem undZeit, § 68, 81).
2. O mesmo que instante ou agora (v.).
INSTINTO (gr. ópu.tí; lat. Instinctus; in. Instinct; ai. Instinkt; it. Istintó). Um guia natural da conduta
animal e humana não é adquirido, não é escolhido e é pouco modificãvel. O I. distingue-se da tendência
(v.) pelo caráter biológico, porquanto se destina à conservação do indivíduo e da espécie e vincula-se a
uma estrutura orgânica determinada; distingue-se do impulso por seu caráter estável. Existem duas
concepções fundamentais de I.: Ia a metafísica, segundo a qual o I. é a força que assegura a concordância
entre a conduta animal e a ordem do mundo; 2a
a científica, segundo a qual o I. é um tipo de disposição
biológica.
I
a A teoria metafísica dos I. foi fundada pelos estóicos. Para eles, a ordem providencial do mundo, que
todos os seres estão destinados a manter, dirige a conduta animal por meio do instinto. Crisipo diz: "O I.
primário do animal, por ser este desde o princípio dirigido pela natureza, é de cuidar de si mesmo
(Dosfins, Livro I). Diz também que o que está no mais íntimo de cada animal é a sua própria constituição
e a consciência dessa constituição. Não é verossímil que o animal se alheie de si ou que de algum modo
aja de tal forma que se alheie de si ou não cuide de si mesmo. É preciso, pois, que a própria natureza o
constitua de tal modo que ele cuide de si, fugindo às coisas nocivas e perseguindo as favoráveis. Donde se
evidencia como falso o que dizem alguns, de o prazer ser o I. primário dos animais" (DIÓG. L., VII, 85).
Através do I. a natureza leva o animal a cuidar de si e a conservar-se, contribuindo para manter a ordem
do todo. Cícero exprimia o concei-
INSTINTO
568
INSTINTO
to estóico nos seguintes termos: "Para conservar-se, para conservar sua vida e seu corpo, toda espécie
animal evita por natureza tudo o que parece nocivo, deseja e trata de arranjar tudo o que é necessário à
vida, como alimento, abrigo e todo o resto. Também é comum a todos os seres animais o I. sexual com
vistas à procriação e certo cuidado para com suas crias" (Tusc, I, 4, 11; Defin., III, 7, 23; De off, I, 28,
101). Algumas vezes o direito natural foi equiparado ao instinto assim entendido, por ser comum não só
aos homens mas também aos animais. No séc. III, Ulpiano fazia a distinção entre o direito das gentes, que
é só dos homens, e o direito natural, que "a natureza ensinou a todos os animais e por isso pertence não só
ao gênero humano, mas é comum a todos os animais que vivem na terra, no mar e no céu. Desse direito
decorrem o casamento, a procriação e a educação dos filhos, coisas estas de que os animais também têm
experiência" {Dig, I, 1, 1-4). Essa concepção sempre ligada esteve ao pressuposto metafísico da
existência de uma ordem providencial cuja manifestação nos animais e nos homens seria o I. S. Tomás
aduzia como prova dessa tese que a providência se ocupa também das coisas individuais contingentes, o I.
natural de que os animais são dotados e que se manifesta nas abelhas e em muitos outros animais {Contra
Gent., III, 75). "Em nós semeado e infundido pelo princípio da nossa geração, nasce um rebento, que os
gregos chamavam de homem e que é o apetite natural do espírito (...). E assim parece que é, pois todo
animal, assim que nasce, seja ele racional ou bruto, ama-se a si mesmo e teme e evita as coisas que lhe
são contrárias e que ele detesta" (Conv., IV, 22; cf. Par., 1,112-14). Kant ainda falava do I. como da "voz
de Deus à qual todos os animais obedecem" e que "na origem deve ter guiado os primeiros tempos do
homem primitivo" (Mutmasslicher Anfang der Menschengeschichte, 1786).
Segundo essa concepção, as características do I. são as seguintes: \° providencialidade, 2-infalibilidade,
que deriva do caráter jinterior e graças à qual o I. estaria sempre apto a garantir a vida do animal e a
continuação da espécie; 3a imutabilidade, que deriva das duas características precedentes e que consiste na
imperfecti-bilidade do I.; 4
a
cegueira, no sentido de que o I. foge ao controle do animal e o guia sem
nenhuma iniciativa direta de sua parte. Algumas dessas características por vezes foram pressupostas e mantidas na concepção científica do I. Contudo, são típicas da concepção metafísica, sendo
caracteres presumidos, deduzidos da função atribuída ao I. no cosmo, todos em oposição aos dados da
observação. Essas características também são admitidas e defendidas habitualmente pelos filósofos que
têm uma concepção providencialista do mundo biológico, como p. ex. os espiritualistas. Hegel também
falou de um "I. da razão" (Phánom. des Geistes, I, cap. V, "A observação da natureza"; trad. it, I, pp. 222,
225, etc), atribuindo a esse I. as características gerais mencionadas antes.
Também é metafísica a teoria freudiana do I., especialmente do modo como é formulada em seus últimos
textos. Os instintos são "a última causa de toda atividade e sua natureza é conservadora: de cada estado
atingido por um ser surge a tendência a restabelecer esse estado quando ele foi abandonado."
Os I. podem ser múltiplos, podem mudar de alvo e uns podem substituir os outros, mas em última análise
é possível reconhecer dois instintos fundamentais em luta: Eros, ou I. de vida, e Thanatos, ou I. de
destruição (Abriss der Psychoanalyse, 1940, cap. II). Ver PSICANÁLISE.
2
a
As teorias científicas do I. são de duas espécies: A) explicativas; B) descritivas.
A) Existem três teorias explicativas fundamentais, que recorrem respectivamente: a) à ação reflexa; b) ao
intelecto; c) ao sentimento (simpatia).
a) A doutrina que explica o I. recorrendo à ação reflexa é a mais antiga. Foi defendida por SPENCER em
Princípios de psicologia (1855): "Enquanto nas formas primitivas da ação reflexa uma única impressão é
seguida por uma única contração, e enquanto nas formas mais desenvolvidas da ação reflexa uma única
impressão é seguida por uma combinação de contrações, nesta, que distinguimos como I., uma
combinação de impressões é seguida por uma combinação de contrações; e quanto mais superior for o I.,
tanto mais complexas serão as coordenações de direção e de execução" {Princ. of Psychology, § 194).
Essa tese foi substancialmente aceita por Darwin, que a modificou no sentido de que o desenvolvimento
dos I. seria devido à seleção natural dos atos reflexos que constituem os I. mais simples. Darwin diz: "A
maior parte dos I. mais complexos parece ter sido adquirida mediante a seleção natural das variações de
atos mais simples. Tais variações
BKITNTO 569 INSTINTO
• parecem resultar das mesmas causas desco-Bhecidas que ocasionam as variações ligeiras OU as
diferenças individuais nas outras partes do corpo, que agem sobre a organização cere-bial e determinam
mudanças que, na nossa
; ignorância, consideramos espontâneas" (Descent qfMan, 1871, I, cap. 3; trad. fr., p. 69). Essa
■ explicação do I. foi aceita não só por darwinistas eoeodarwinistas, mas também pelos que ela-
• boraram a teoria dos reflexos condicionados, que consideraram o I. como um reflexo condi-
„ CJonado complexo (cf. PAVLOV, OS reflexos condicionados; trad. it., p. 273). O defeito dessa teoria é
que as variações casuais dificilmente - poderiam explicar a formação de I. tão aperfei-• coados e
complexos como os dos insetos. ti) A segunda teoria explicativa tem em vista justamente a formação
desses I. mais complexos e considera o I. como inteligência degradada ou mecanizada. Essa doutrina,
apresentada por Romanes {Mental Evolution in Animais, 1883), foi amplamente aceita pela psicologia do
ftn do século passado. Eqüivale a ver o I. como um hábito que se formou e se aprefeiçoou através do
desenvolvimento de uma espécie animal. Wundt, especialmente, contribuiu para a difusão dessa doutrina.
Diz: "Os I. são movimentos oriundos de atos de vontade simples ou compostos que depois, durante a vida
individual ou ao longo de "um desenvolvimento geral, acabam mecanizados no todo ou em parte"
(Grundzüge derphysiologischen Psych., 4
a
ed., 1893, II, pp. 510 ss.; cf. System derPhil., 2
a
ed., 1897, p.
590). Essa concepção algumas vezes foi utilizada pelos filósofos, com vistas a uma metafísica
espiritualista (cf, p. ex., RENOUVIER, Nouvelle monadologie, 1899, p. 83), mas contra ela existe o fato
bem verificado de que os hábitos adquiridos não são transmissíveis por herança (v. HEREDITARIEDADE),
constatando-se ademais que, para explicar a formação de I. aperfeiçoados, não basta a hereditariedade da
disposição para contrair hábitos mais facilmente, que parece provada em alguns casos (Mac-Dougall).
c) A terceira teoria explicativa é a que relaciona o I. com os sentimentos, em particular com a simpatia. "I.
é simpatia", diz Bergson. "Nos fenômenos do sentimento, nas simpatias e antipatias irrefletidas, sentimos
em nós mesmos, de forma bem mais vaga e ainda demasiado penetrada de inteligência, algo do que deve
acontecer na consciência de um inseto que age por instinto. Para desenvolvê-los em profundidade, a evolução distanciou elementos que na origem se interpenetravam" (Évol. créatr., 1911, 8a
ed., pp.
190-91). A evolução vital distanciou a inteligência do I., especializando o I. na tarefa de utilizar ou
mesmo de construir instrumentos organizados, e a inteligência, na de fabricar e utilizar instrumentos
inorganizados (Jbid., p. 152). Segundo Bergson, a especialização do I. depende do fato de o I. ser
utilização de um instrumento determinado para um fim determinado: de um instrumento que, além do
mais, é de enorme complexidade de detalhes, embora de funcionamento simplíssimo. Os instrumentos
fabricados pela inteligência, ao contrário, são muito menos perfeitos, mas podem mudar continuamente
de forma e adaptar-se às novas circunstâncias. Isso explica também por que o I. não é consciente ou o é
minimamente: a consciência mede a distância entre a representação e a ação (entre as diversas
possibilidades de agir e a ação efetiva); no I. essa distância é mínima porque é mínima a parte passível de
escolha (Jbid., p. 157). Scheler, fazendo referência a essa doutrina de Bergson, como capaz de explicar os
I. mais complicados (p. ex., o dos himenópteros, que paralisam, mas não matam escaravelhos ou aranhas
para pôr seus ovos, cf. FABRE, Souvenirs entomologiques, I, 3
a ed., 1894, pp. 93 ss.), declara considerar
provável que "nos atos instintivos dessa espécie, que nos põem em presença de uma concatenação
finalista, lógica, das fases de atividade de muitos seres, estejamos apenas diante de um exagero anormal
daquilo que é a verdadeira fusão afetiva na esfera da atividade humana" (Sym-pathie, cap. I; trad. fr., p.
50). Essa é uma aceitação substancial do ponto de vista de Bergson, mas corrigindo aquilo que Bergson
chama de simpatia para fusão afetiva (quanto à diferença entre as duas, v. SIMPATIA). A doutrina de
Bergson foi amplamente aceita pelos filósofos, mas encontrou pouca acolhida junto aos fisiologistas e
psicólogos. Continua sendo uma das alternativas possíveis para uma explicação do instinto. Este, com
efeito, pode ser relacionado com qualquer uma das duas atividades que supostamente dirigirem a conduta
humana: a inteligência e o sentimento. A interpretação (£>) procura vincular o I. à inteligência; a
interpretação (c), ao sentimento.
B) Na psicologia contemporânea, a influência do gestaltismo, em sua concepção de abandono definitivo
da teoria dos reflexos que ten-
INSTINTO
570
INSTITUIÇÃO
dia a resolver o I. em atividades elementares (as ações reflexas), favoreceu também o abandono de
qualquer teoria explicativa e o recurso a teorias descritivas, fundadas em ampla base de observações.
Desse ponto de vista, a descrição do I. mais comumente adotada é a de G. E. Müller, que modificou
oportunamente uma definição de MacDougall: "O I. é uma disposição psicofísica, dependente da
hereditariedade, muitas vezes completamente formada logo depois do nascimento, outras vezes só depois
de certo período de desenvolvimento, que orienta o animal a dar atenção especial a objetos de certa
espécie ou de certo modo, e a sentir, depois de perceber esses objetos, um impulso para determinada
atividade, em conexão com eles" (cf. D. KATZ, Mensch und Tier, 1948; trad. in., p. 1 71). Definições desse
tipo tornam inútil até mesmo o nome I., que, de fato, alguns psicólogos tendem a substituir por outros
termos, menos comprometidos pelo uso secular (propensão, tendência). Às vezes, insiste-se no caráter
totalitário da disposição instintiva, considerando-a como um "esquema unitário" que cresce e diminui
como um todo (cf. R. B. CATTELL, Personality, Nova York, 1950, p. 195). A etologia comparada distingue
no I. aquilo que Konrad Lorenz chamou de mecanismo desencadeante, conjunto de condições que servem
de estímulo para a conduta instintiva, e o ato consumador, constituído por um esquema ou plano de
movimentos, hierarquicamente organizado, que é o comportamento instintivo propriamente dito. Essa
organização hierárquica do comportamento instintivo torna-se menos flexível à medida que nos
aproximamos da conduta em ato. Para Tinbergen, essa flexibilidade depende das mudanças no mundo
externo ( The Study oflnstinct, 1951, p. 110). Para Lorenz, o desencadeamento da conduta instintiva
também pode ser provocado por um acúmulo de energia endógena (de natureza predominantemente
físico-química) que, tanto no animal quanto no homem, constitui um /. de agressão-, este instinto, se
entregue a si mesmo, leva os homens à destruição recíproca, mas pode ser disciplinado e canalizado para
alvos que não ponham em risco a convivência humana. A descarga da agressão sobre objetos constituídos
seria o privilégio do homem, que pode mudar a direção de seu impulso instintivo (Das sogenannte Bóse,
1963, cap. XII).
Essa doutrina continua atribuindo ao I. o papel principal na determinação do comportamento humano e
animal, mas, por outro lado, chegou-se a duvidar que, para explicar esse comportamento, fosse possível
utilizar o conceito de I. (cf. o simpósio sobre esse assunto no British Journal of Educacional Psychol,
nov. 1941). Também se propõe uma concepção "estatística" do L, segundo a qual ele é apenas "o fator de
um grupo inato e conativo" (BURT, "The Case for Human Instincts" na Rev., cit., 3a
parte; cf. J. FLUGEL,
Studies in Feeling andDesire, Londres, 1955). Essa negação do I. diz respeito sobretudo ao homem. Katz
dissera: "No homem, os I. determinam apenas a força de um impulso à ação e seu esquema geral. Esse
esquema é indefinido e varia segundo a ocasião e o indivíduo. P. ex., em todas as crianças o I. lúdico
desenvolve-se e floresce em certo período e depois morre. Mas o modo como as crianças realmente
brincam varia muito. Além isso, é na infância que o homem está mais sujeito à influência dos instintos.
Mais tarde, a conduta de vida é tão controlada pelas forças externas que é difícil distinguir sua base
instintiva. Ao contrário dos animais, ele não passa a vida dentro da segurança dos L, mas tem a
capacidade de formá-los" (Animais and Men, cit., p. 173). Em sociologia, às vezes se fala em I. como
fator dominante da cultura ou dos seus aspectos fundamentais. Ao I. Pareto atribuía as ações "não lógicas"
(Sociologia generale, 1923, § 157). Thorstein Veblen, em suas explicações sociológicas, freqüentemente
recorria ao L: I. de eficiência, ao I. animista, etc. (cf. The Instinct of Workmanship and the State of
Business Enterprise, 1904). Hoje em dia esse ponto de vista é freqüentemente contestado. "A cultura não
é instintiva sob nenhum aspecto: ela é exclusivamente aprendida. A partir da publicação de /, de Bernard,
em 1924, foi impossível aceitar qualquer teoria do I. como a explicação do esquema cultural universal ou
como a solução de certos problemas culturais" (G. P. MURDOCK, em R. LINTON, The Science of Man in
the World Crisis, Nova York, 7* ed., 1952, pp. 126-27).
INSTITUIÇÃO (lat. Institutio; in. Institution; fr. Institution; ai. Anstalt; it. Istituzioné). 1. Na lógica
terminista medieval, é a adoção de um novo vocábulo durante a discussão, pelo tempo que ela dura (cf.
OCKHAM, Summa log., III, 3, 38). A finalidade dessa adoção é tornar a linguagem mais concisa, discutir
uma coisa desço-
INSTRUMENTALISMO
571
INTELECTO
nhecida ou enganar o interlocutor ou permitir-lhe responder mais facilmente às objeções. Neste último
sentido é uma das obrigações (v.).
2. Na sociologia contemporânea, esse termo éde uso freqüente e foi empregado, p. ex., por Durkheim
como objeto específico da sociologia, definida precisamente como "ciências das instituições" (Règles de
Ia méthode sociologique, 2
a
ed., p. XXIII). A instituição por vezes foi entendida como um conjunto de
normas que regulam a ação social (exatamente como faz Durkheim); outras vezes, em sentido mais geral,
como "qualquer atitude suficientemente recorrente num grupo social" (cf. ABBAGNANO, Problemi di
sociologia, 1959, IV, 2). . INSTRUMENTALISMO. V. PRAGMATISMO.
INSTRUMENTO (in. Instrument; fr. Instrument; ai. Werkzeug; it. Strumentó). Essa palavra foi ampliada
por Dewey, designando todos os meios capazes de obter um resultado em qualquer campo da atividade
humana, prático ou teórico. Dewey diz: "Como termo geral, instrumental significa a relação meiosresultados como categoria fundamental para a interpretação das formas lógicas, enquanto operacional
exprime as condições graças às quais a matéria: I
a
se torna apta a servir como meio e 2° efetivamente
funciona como meio para a transformação objetiva, que é o objetivo da indagação" {Logic, I, § 2, nota;
trad. it., pp. 47-48).
INTEGRAÇÃO (in. Integration; fr. Integration; ai. Integration; it. Integrazione). Este termo tem
significados diversos em diferentes ramos do saber. Em matemática, é o processo com o qual se
determina o valor de uma grandeza como soma de partes infinitesimais tomadas em número sempre
crescente. Em biologia, significa o grau de unidade ou de solidariedade entre as várias partes de um
organismo, ou seja, o grau de interdependência dessas partes. Analogamente, em psicologia significa o
grau de unidade ou de organização da personalidade; em sociologia, o grau de organização de um grupo
social.
Spencer, em Primeiros princípios(1862), via na I. uma das características fundamentais da evolução
cósmica enquanto passagem de um estado indiferenciado, amorfo e indistinto para um estado
diferenciado, formado e unificado (First Principies, § 94).
LNTELECTÍVEL (lat. Intellectibilis). O que não é sensível e não tem relação com o que é sensível;
nisto, é diferente de inteligível (v.),
que pode assemelhar-se ao sensível ou ser compreendido nele (InPorphirium, I, P. L., 64, col. II). Essa
distinção, estabelecida porBoécio, foi retomada por Hugo de São Vítor. O I. é o divino ou aquilo que de
divino há no homem, p. ex., a alma (Didascalion, II, 3, 4).
INTELECTO (gr. voOç; lat. Intellectus, in. Understanding; fr. Intelligence, ai. Verstand; it. Intellettó).
Este termo foi constantemente usado pelos filósofos com dois sentidos: lfi genérico, como faculdade de
pensar em geral e 2- específico, como uma atividade ou técnica particular de pensar. Com este segundo
significado, esse termo é entendido de três maneiras diferentes: d) como I. intuitivo; b) como I. operante;
c) como entendimento, inteligência ou intelecção.
l
e
Platão e Aristóteles definem em geral o I. como faculdade de pensar. Platão de fato dá o nome de I. à
atividade que pensa (Sof., 248e-249a) e, portanto, confere limites, ordem e medida às coisas (Fil., 30c;
Tim., 48a); denomina pensamento (vóncriç) o conjunto da ciência e da dianóia, ou seja, as atividades
superiores da alma contrapostas à conjectura e à crença, reunidas sob o nome de opinião (Rep., VII,
534a). Por sua vez, Aristóteles declara entender por I. "aquilo graças a que a alma raciocina e
compreende" (Dean., III, 4,429a 23), significado genérico que já fora dado por Parmênides (Fr. 16, Diels)
e por Anaxágoras (Fr. 12, Diels). É óbvio que todos aqueles que, como Anaxágoras, Platão e Aristóteles,
atribuíram ao I. a função de ordenar o universo não o entenderam como atividade ou técnica específica,
mas no significado mais genérico de atividade pensante, capaz de escolher, coordenar e subordinar.
Mesmo a contraposição — tão freqüente nos antigos e já presente em sua forma extrema em Parmênides
(Fr. 8, Diels) — entre I. e sentidos implica atribuir ao I. o significado genérico de faculdade de pensar.
Analogamente, a substancialização que o I. sofre no neoplatonismo é a da faculdade de pensar em geral,
em todas as suas múltiplas formas (cf. p. ex., PLOTINO, Enn. III, 8, 9-10).
Esse significado genérico foi conservado na tradição filosófica até o Romantismo. S. Tomás expressava-o
contrapondo o I. aos sentidos: "O substantivo I. implica certo conhecimento íntimo; intelligere é como 'ler
dentro' (intus legere). Isso é evidente a quem considera a diferença entre o I. e os sentidos: o
conhecimento sensível concerne às qualidades sensíveis
INTELECTO
572
INTELECTO
externas; o conhecimento intelectivo penetra até a essência da coisa" (S. Th., II, 2, q. 8, a. 1). Por outro
lado, tem-se o mesmo significado genérico quando esse termo é contraposto à vontade, como acontece, p.
ex., em Locke: "A capacidade de pensar é que se denomina I., e a capacidade de querer é o que se
denomina vontade: duas capacidades ou disposições da alma às quais se dá o nome de faculdade" (Ens.,
II, 6, 2). Leibniz, por sua vez, entendia por I. "a percepção distinta unida à faculdade de refletir, que não
existe na alma dos animais" (Nouv. ess., II, 21, 5). Essa noção foi depois tomada por Wolff (Psychol.
empírica, § 275). A definição de I. como "faculdade de pensar" é lugar comum no séc. XVIII; Kant só faz
repeti-lo: "I. é a faculdade de pensar o objeto da intuição sensível" (Crít. R. Pura, Lógica, Intr., I) ou "o
poder de conhecer em geral" (Antr., 1, § 6, 40).
Mas de repente, com o Romantismo, o I. deixa de ter valor de faculdade de conhecer em geral e descobrese a "imobilidade" do intelecto. Essa descoberta é feita por Fichte: "O I. é I. só quando alguma coisa está
fixada nele; e tudo o que se fixa fixa-se apenas no intelecto. OI. pode ser definido como a imaginação
fixada pela razão, ou como a razão provida de objetos da imaginação. O I. é uma faculdade espiritual em
repouso, inativa, é o puro recep-táculo do que foi produzido pela imaginação e que a razão determinou ou
ainda está para determinar" (Wissenschaftslebre, 1794, II, Dedução da representação, III, trad. it., p. 184).
Mas foi por meio de Hegel que acabou prevalecendo em filosofia a noção de I. "imóvel", "rígido",
"abstrato": "Como I., o pensamento detém-se na determinação rígida e na diferença entre ela e as outras;
para o I., esse produto abstrato e limitado é autônomo e existente" {Ene, § 80). O I. é caracterizado pela
imobilidade de suas determinações: ele "determina e fixa suas determinações" (Wissenschaft der Logik,
Pref. à I
a edição, trad. it., p. 5). Essa imobilização é um falseamento, como se vê pela forma como o I.
entende a relação entre infinito e finito, originando o "falso infinito". "O falseamento em que o I. incorre
em relação ao finito e o infinito, que consiste em fixar como diversidade qualitativa a relação entre
ambos, em afirmar, ao determiná-los, que são separados, e separados em absoluto, tem como base o
esquecimento daquilo que para o próprio I. é o conceito desses momentos" (Ibid., I, I, seç. I, cap. 2, C, c, trad. it., I, p. 157). Dessa forma, "fixar"
"imobilizar", "determinar em absoluto" são as operações que descrevem a atividade do I., em
contraposição à razão, atividade autêntica do pensamento que elimina a fixidez e a rigidez das
determinações intelectuais, sendo capaz de fluidificá-las e relativizá-las. Essa contraposição torna-se
lugar-comum em grande parte da filosofia do séc. XIX: o I., portanto, desce de sua posição de faculdade
de pensar e passa para a situação secundária ou subordinada de faculdade de pensamento abstrato, ou
seja, de falso pensamento. A persistência desse lugar-comum, sem qualquer justificação séria, pode ser
verificada pelo fato de que, no início do séc. XX, Bergson propôs (Evolução criadora, 1907) a crítica do
I. considerado, segundo o esquema hegeliano, faculdade que tem por objeto específico o que é imóvel,
inerte, rígido e morto, sendo, portanto, radicalmente incapaz de compreender o movimento e a vida.
Dessa forma, substituía-se a contraposição hegeliana I.-razão pela contraposição I.-vida ou I.-consciência,
que inspirou e ainda hoje inspira algumas manifestações da filosofia contemporânea. Todavia, mesmo
fora dessas antíteses estereotipadas, a noção do I. como faculdade de pensar em geral não está presente na
filosofia contemporânea, tendo sido substituída pela noção de pensamento ou razão (v.).
2
B
O reconhecimento do significado genérico de I. pode ocorrer ou não em conjunto com o
reconhecimento de um significado específico. Podem ser distinguidas três interpretações fundamentais da
função específica do I.: à) intuitiva; b) operante, c) de entendimento ou inteligência.
a) A noção de I. intuitivo foi elaborada por Aristóteles. Para ele, além de ser geralmente a faculdade
"graças à qual a alma raciocina e compreende", o I. é também uma virtude dianoética, ou seja, um hábito
racional específico. Como tal, é a faculdade de intuir os princípios das demonstrações, que não podem ser
apreendidos pela ciência — que é apenas um hábito demonstrativo — nem pela arte e pela sabedoria, que
dizem respeito "às coisas que podem ser de outra forma", desprovidas de necessidade (Et. nic, VI, 6,
1140b 31 ss.). Além dessas "definições primeiras", o I. também tem a tarefa de intuir "os termos últimos",
ou seja, os fins aos quais deve subordinar-se a
CTO
573
INTELECTO
o (Jbid., VI, 11, 1143b). Ao lado da ciêno I. constitui a sabedoria, "que é ao mestempo ciência e intuição das coisas mais
ílsas por natureza" (Jbid., VI, 7, 1151b 2),
o por isso a mais alta realização do ho-
■Essa função específica do I., de intuir os cípios comuns do raciocínio, foi admitida S. Tomás (S. Th., I, q.
8, a. 1) e por muitos os escolásticos, ao lado da função genérica "pensar". Kant, por sua vez, fazia a
distinção lícita entre I. no sentido genérico e I. como Idade específica que está ao lado do juízo razão.
Dizia: "A palavra I. também é enten-em sentido mais particular quando o I. é rdinado, como membro de
uma divisão, JK) I. entendido em sentido mais geral, como ffcculdade superior de conhecer constituída
por ,i> juízo e razão" (Antr., I, § 40). Nesse sentido ÀBpecífico, o I. é a faculdade de julgar, e o juízo que
lhe compete é o juízo determinante, cujas jleis constituem o objeto natural em geral (mais -precisamente,
a forma de tal objeto). Essas leis láo "prescritas apriori" ao I., ou seja, dadas em seu funcionamento (Crít.
R. Pura, Analítica dos conceitos, seç. I; Crít. do Juízo, Intr., § IV). Nesse sentido específico, como
faculdade de - julgar, o I. não é intuitivo no sentido de estar em relação direta com o objeto; aliás, é uma
relação mediata com o objeto porque, enquan-tojuízo sobre uma representação, é, segundo a expressão de
Kant, "a representação de uma representação". Mas é intuitivo no mesmo sentido em que é intuitivo o I.
específico de Aristóteles: está em relação imediata com leis ou princípios fundamentais que entram na
constituição e na organização da ciência e da estrutura de seus objetos. A diferença entre o ponto de vista
de Aristóteles e o de Kant é que, para Aristóteles, o I. tem a função de formular os princípios primeiros
utilizados pela ciência demonstrativa e de perceber a evidência deles; para Kant, ao cumprir a função de
julgar, o I. põe em funcionamento os princípios que o constituem, mesmo sem necessidade de formulá-los
explicitamente. Essas duas alternativas são as únicas historicamente presentes na interpretação do I. como
faculdade intuitiva específica.
b) A concepção operante do I. foi apresentada por Bergson, que a enxertou no conceito romântico do I.
entendido como faculdade de imobilizar. Deste ponto de vista, o I. é "a faculdade de fabricar objetos
artificiais, em especial
para fazer utensílios, e de variar indefinidamente sua fabricação" (Évol. créatr., 1911, 8a ed., p. 151).
Portanto, é a solução de um problema que, numa outra linha evolutiva, levou ao instinto entendido como
faculdade de utilizar instrumentos organizados. Devido à sua função operante, a inteligência tende a
captar as relações entre as coisas, e não as próprias coisas; portanto, sua forma, e não a sua matéira; tem
por objeto principal o sólido inorgânico, imóvel, e é caracterizada por uma incompreensão natural do
movimento e da vida (Jbid., p. 179). Essa análise de Bergson influenciou muito a filosofia
contemporânea, cujas correntes espiritualistas e idealistas utilizaram freqüentemente suas conclusões para
afirmar que "o I. abstrato" é, quando muito, eficaz no domínio da ciência, que também é conhecimento
"abstrato", mas que pouco ou nada vale no domínio da consciência efetiva, que seria o filosófico. Mas
também fora do âmbito dessas intenções denegridoras que envolvem o I. e a ciência, a função operante do
I., graças à qual ele é a capacidade de enfrentar com sucesso as situações biológicas, sociais, etc. nas
quais o homem se encontre, acabou caracterizando o próprio I., sendo, portanto, difícil ver nele, hoje, um
órgão de funções puramente teóricas. O pragmatismo certamente contribuiu para a formação deste ponto
de vista, que se tomou lugar-comum da filosofia contemporânea.
c) No terceiro significado específico de I., ele significa entendimento, sendo mais apropriadas, além de
"entendimento", as palavras inteligência e intelecção (em italiano, intelli-genza; em francês,
entendement; em alemão, Versteheri). Essa acepção do termo, por sua vez, pode ser articulada em dois
significados:
a) Um significado comum e genérico, em que "entender" significa apreender o significado de um
símbolo, a força de um argumento, o valor de uma ação, etc. Em todos estes casos, a palavra exprime a
possibilidade de efetuar corretamente determinada operação. P. ex., o entendimento de um signo consiste
na possibilidade de estabelecer corretamente (com base no uso ou em regras devidas) a referência entre o
sinal e seu referente. O entendimento de um argumento consiste na possibilidade de interligar suas partes
de tal forma que o argumento se torne probante, etc. Nestes casos, há tanta diversidade entre os vários
significados de entendimento quanto entre os objetos e as situações às quais se faz referência. Em geral,
INTELECTO ATIVO
574
INTELECTO ATIVO
tudo o que pode ser dito desse ponto é que o entendimento designa certa capacidade de inserir-se no
contexto de tais situações e de orientar-se nele.
P) Um significado mais restrito e específico, no qual entendimento significa a compreensão de certo tipo
de objetos, como p. ex. de um homem ou de uma situação histórica. Para tal significado do termo, v.
COMPREENDER.
INTELECTO ATIVO (gr. voüÇ7tovnTixóç; lat. Intellectus agens; in. Active intellect; fr. Intellect actif,
ai. Active Intellekt; it. Intellettoattivó). Noção de origem aristotélica que deu lugar a um problema
longamente debatido pelos antigos comentadores de Aristóteles, pela escolástica árabe, pela escolástica
cristã e pelo aristote-lismo renascentista. O problema nasce da distinção feita entre I. potencial e I. atual.
"Assim como, em toda a natureza" — diz Aristóteles —, "existe alguma coisa que serve de matéria a cada
gênero e alguma coisa que é causalidade e atividade, também na alma deve necessariamente haver estas
duas coisas diferentes. De fato, de um lado está o I. que tem a potencialidade de ser todos os objetos e do
outro lado está o I. que os produz, que se comporta como a luz: esta também permite que passem ao ato
as cores que estão apenas em potência. Esse I. é isolado, impassível e sem mescla, pois sua substância é a
própria ação" {Dean., III, 5, 430 a 10). Aristóteles acrescenta que só este I. atual e ativo é "imortal e
eterno". Donde o problema: ele pertenceria à alma humana ou, graças à sua incorruptibilidade, faria parte
da eternidade e da atualidade perfeita, da divindade? Foram três as principais soluções para esse
problema:
I
a Separação entre I. ativo e alma humana. Esta é a solução defendida na Antigüidade pelo comentador de
Aristóteles, Alexandre de Afro-dísia (séc. II), que identificou o I. ativo com a causa primeira, com Deus.
Assim, pertenceriam à alma humana: d) I. físico ou material {ílico), que é o I. potencial, semelhante ao
homem que é capaz de aprender uma arte mas que ainda não a domina; tí) I. adquirido (èniK-TnTUÓç,
adeptus), que é o aperfeiçoamento ou a completitude do anterior, o conjunto das habilidades próprias no
homem educado, semelhante ao artista que chegou a dominar sua arte {Dean., I, ed. Bruns., p. 138-39).
Essa solução, negando à alma humana o único I. imortal e eterno que é o ativo, por um lado nega a
imortalidade da alma e por outro acentua a dependência da atividade intelectual humana em relação aos sentidos. Reaparece com freqüência na história da
filosofia. É retomada pelo neo-platonismo árabe, com Al Kindi (séc. IX), Al Farabi (séc. IX) e Avicena
(séc. XI); este último, todavia, não achava que essa solução contrariasse a imortalidade da alma, pois
admitia que a dependência da alma em relação ao I. ativo, logo em relação a Deus, se mantivesse mesmo
depois da separação entre alma e corpo, bastando isso para conferir a imortalidade à alma {De an., 10).
Essa doutrina também era aceita por Ib Bagia (séc. XII), Moisés Ben Maimon (Maimônides, séc. XII), o
mais famoso dos filósofos judaicos da Idade Média {Cuide des égarés, I, 50-52) e por Roger Bacon
{Opus maius, ed. Bridges, p. 143). No Renascimento, essa solução foi defendida por Pietro Pompo-nazzi,
que insistia nas condições sensíveis do funcionamento do I. humano e considerava impossível a
demonstração da imortalidade {De immortalitate animae, 9).
2- A separação entre I. ativo e I. passivo na alma humana. Esta foi a solução proposta por Averróis. O I.
material ou ílico, que os defensores da solução anterior atribuíam ao homem, também é considerado por
Averróis separado da alma humana. Na alma humana, o I. material nada mais é que uma simples
disposição transmitida pelo I. ativo, e mais exatamente uma disposição a abstrair conceitos e verdades
universais de imagens sensíveis. Portanto, ao homem só resta o I. adquirido, que Averróis denomina
também especulativo e que consiste no conhecimento das verdades universais {Dean., foi. l65a). Essa
doutrina é típica do averroísmo medieval: foi defendida por Siger de Brabante (séc. XIII) na obra De
anima intellectiva (editado em Mandonnet, Siger de Brabant et 1'aver-roisme latin au XIIF siècle, II,
Lovaina, 1908). Essa solução teve numerosos seguidores no aristotelismo do Renascimento (cf. BRUNO
NAR-DI, Sigieri di Brabante nel pensiero dei Rinas-cimento italiano, 1945).
3
a
Unidade do I. ativo e passivo com a alma humana. Esta tese foi sustentada no séc. IV pelo comentador
de Aristóteles Temísio {De an., 103, 6; trad. it. p. 233), em polêmica com Alexandre, e mais tarde (séc.
IV) pelo outro comentador Simplício, também neoplatônico. Foi retomada no séc. XIII, durante a
polêmica contra o averroísmo que se deu na escolástica latina daquele tempo. Alberto Magno e S. Tomás
opõem-se à separação entre I. de alma,
INTELECTUALISMO 575
INTENÇÃO
defendida por Averróis e Alexandre. Admitem que, acima da alma humana, está o I. separado de Deus,
mas acham que o homem participa desse I. e que o I. ativo faz parte da sua alma como uma luz acesa pelo
I. divino (ALBERTO, De intellectu et intelligibili, II, 1-2; S. TOMÁS, S. Tb., I, q. 79, a. 4). Provavelmente
foi contra uma obra de Siger que S. Tomás escreveu De unitate intellectus contra Averroistas, cuja
resposta se encontra em De anima intellectiva, de Siger. A principal objeção de S. Tomás é que, se o I.
fosse uma substância separada, quem entenderia não seria o homem, mas essa substância, ao que Siger
responde que o I. não age no homem como um motor, mas operans in operando, ou seja, como princípio
diretivo de sua atividade. No Renascimento, foi sobretudo Marsílio Ficino quem defendeu a unidade do I,
com a alma humana (Theologia platônica, XV, 14).
O problema do I. ativo é específico do aristotelismo e não tem sentido fora dele. Portanto, deixa de ser
debatido quando o aristotelismo deixa de determinar os rumos gerais da filosofia. Já entre o fim do séc.
XIII e o início do séc. XIV existem filósofos que negam explicitamente o I. ativo e evitam, portanto,
propor-se esse problema. Durand de S. Pourçain diz que, assim como não se supõe um "sentido ativo", é
inútil supor um I. ativo (In Sent., I, d. 3, q. 5 26), e Ockham afirma que a função de abstrair, atribuída ao
I. ativo, desenrola-se na-turaliter, como efeito das noções sensíveis e não exige o I. ativo, cuja noção,
portanto, só tem apoio na autoridade de santos e filósofos (In Sent., II, q. 25). Esse ponto de vista
prevaleceu desde os primórdios da filosofia moderna, que abandona completamente essa questão.
INTELECTUALISMO (in. Intellectualism; fr. Intellectualisme, ai. Intellektualismus-, it. Intellettualismó). Com este termo Hegel designava a filosofia de Plotino, interpretando o êxtase como ato de
sair da consciência sensível e "puro pensar". "A idéia da filosofia plotiniana" — dizia ele — "é portanto
um I. ou um idealismo superior que, certamente do lado do conceito, não é ainda idealismo perfeito"
(Ges-cbicbte derPhilosophie, I, seç. III, Plotino; trad. it., p. 41). Esse termo agora é usado pelas filosofias
da vida e da ação para tachar a corrente contrária, para a qual o intelecto (ou pensamento ou razão) tem
função dominante na consciência e na conduta do homem. Esse termo foi freqüentemente empregado pelo
intuicionismo bergsoniano, pela filosofia da ação, pelo modernismo, pelo pragmatismo, ou seja, por todas
as filosofias que tendem a depreciar o valor do intelecto como via de acesso à verdade e como guia da
conduta e a julgar muito mais importante a intuição, a simpatia, o instinto, a vida, a vontade, etc. Por
vezes esse termo foi contraposto a voluntarismo (v.) para indicar a primazia atribuída ao intelecto sobre a
vontade; nesse sentido, também foi empregado com a finalidade de caracterizar historicamente certos
pontos de vista. Assim, falou-se do I. de S. Tomás e do voluntarismo de Duns Scot, aludindo ao peso
diferente que nesses filósofos têm as duas atividades humanas fundamentais. Trata-se, porém, de
significados e caracterizações pouco precisos.
INTELIGÍVEL (gr. VOT)TÓÇ; lat. Intelligibilis, in. Intelligible, fr. Intelligible, ai. Intelligibel; it.
Intelligibilé). Em geral, o objeto do intelecto. Aristóteles dissera: "todos os entes são sensíveis ou I." (De
an., III, 8, 431b 21). O I. é o objeto do intelecto assim como o sensível é o objeto dos sentidos. Essa
simetria é mantida por todos os filósofos que admitem a distinção entre sensibilidade e intelecto. Platão
denominou I. a esfera do conhecimento que compreende a dianôia e a ciência, distinta da esfera da
opinião, que compreende a conjectura e a crença (Rep., VII, 534a). Para o neoplatonis-mo, o mundo I.
compreende as três primeiras hipóstases: o Uno, o Intelecto e a Alma do Mundo (PLOTINO, Enn., II, 9, 1).
Para Kant, o mundo I. é o mundo de que o homem faz parte como "atividade pura", ou seja, não sendo
influenciado pela sensibilidade, mas agindo com base na espontaneidade da razão. "Por um lado" — diz
Kant —, "o homem, por pertencer ao mundo sensível, está submetido às leis da natureza; por outro, por
pertencer ao mundo I., está submetido às leis que não dependem da natureza, portanto não empíricas, mas
fundadas unicamente na razão" (Grundle-gung zurMetaphysik der Sitten, III). Nesse sentido, o mundo I. é
o mundo moral.
Em sentido mais específico, diz-se que é I. o que pode ser entendido ou compreendido, em
correspondência com os significados 2Q
, c, de Intelecto (v.).
INTENÇÃO (lat. Intentia, in. Intention, fr. Intention; ai. Gesinnung; it. Intenzioné). Propriamente, a
intencionalidade no domínio prático, ou seja, a referência de uma atividade prática (desejo, aspiração,
vontade) ao seu pró-
INTENÇÃO
576
INTENCIONALIDADE
prio objeto. Nesse significado, a intenciona-lidade do ato moral pode ser reconhecida por qualquer
doutrina moral. Todavia, a insistência no valor da I. como condição da moral é uma das características da
ética do fim, distinta da ética do móbil (v. ÉTICA). Na ética do móbil, a moralidade da ação é julgada em
termos de eficiência em produzir o bem-estar, a felicidade, etc. Na ética do fim, entretanto, a ação é
julgada em termos da direção que o sujeito imprime à ação, que é exatamente a intenção. A esse respeito,
S. Tomás diz com justiça que "a I. é o nome do ato da vontade, estando pressuposto o ordenamento da
razão, que ordena alguma coisa para um fim"; é que "a I. pertence primordial e principalmente àquilo que
se move para um fim", sendo por isso "o ato da vontade" (S. Th., II, 1, q. 12, a. 1). Nesse sentido, a I. é
própria da ética do fim. Portanto, sua noção não se encontra na ética aristotélica, em que a análise do ato
moral é feita com base na ética do móbil; não se encontra nenhuma ética do mesmo gênero, como p. ex. o
utilitarismo. Por outro lado, a moral teológica tende a insistir no valor da intenção. Abelardo dizia: "Deus
não toma em consideração as coisas feitas, mas o espírito com que são feitas, e o mérito e o valor de
quem age não consiste na ação, mas na I." (Scito te ipsum, 3). A própria moral kantiana, sobretudo em
seus aspectos de pregação leiga e edificante, insiste muito no valor da I.: a exaltação da "boa vontade"
com a qual se inicia a Fundamentação da metafísica dos costumes na realidade é uma exaltação da
intenção. E a primeira parte da Crítica da Razão Prática conclui-se com a exaltação da "I. realmente
moral e consagrada à lei". Ao contrário, a diferença entre a ética da I. e a ética objetiva foi bem expressa
por Max Weber: "Na esfera da conduta pessoal existem problemas éticos específicos que a ética não pode
resolver com base em seus próprios pressupostos. Antes de mais nada há a questão fundamental de saber
se: d) o valor intrínseco da conduta ética — a 'vontade pura' ou a 'I.', como se costuma denominar —
basta para a sua justificação, segundo a máxima cristã: 'o cristão age bem e deixa por conta de Deus as
conseqüências de sua ação' ou b) a responsabilidade das conseqüências previsíveis da ação deve ser
tomada em consideração. Toda atitude politicamente revolucionária, em especial o sindicalismo
revolucionário, partem do primeiro postulado; toda política realista, do segundo. Ambas invocam princípios éticos. Mas esses princípios estão em eterno conflito, o que não pode ser resolvido só por meio da
ética" ("Der Sinn der Wert-freiheit der soziologischen und õkonomischen Wissenschaften", 1917; trad.
in., em The Me-thodology ofthe Social Sciences, p. 16). A ética moderna e contemporânea, por ser
predominantemente uma ética do móbil (v. ÉTICA) dá primazia àquilo que Weber denominou segundo
postulado. Por outro lado, o ceticismo tão difundido na filosofia contemporânea, quanto à possibilidade
de conhecer com probabilidade suficiente o que acontece no âmago da consciência individual, levou o
behaviorismo a considerar a I. como operação (ou como parte de uma operação) que constitui a execução
de um plano ou projeto de conduta. Nesse caso, a frase "tenho a intenção de ver João" significa
simplesmente que estou empenhado na execução de um plano de que faz parte encontrar com João
(MILLER, GALANTER, PRIBBAN, Plans and the Structure of Behavior, 1960, p. 61).
INTENCIONALIDADE (lat. Intentionalitas; in. Intentionality, fr. Intentionnalité, ai. Inten-tionalitãt; it.
Intenzionalitã). Referência de qualquer ato humano a um objeto diferente dele: p. ex., de uma idéia ou
representação à coisa pensada ou representada, de um ato de vontade ou de amor à coisa querida ou
amada, etc. Essa noção foi inicialmente empregada com relação à atividade prática, donde o significado,
ainda hoje predominante, da palavra intenção (v.) que designa exatamente a referência da atividade
prática ao seu objeto. O neoplatonismo árabe estendeu pela primeira vez seu sentido, para designar a
relação entre o conhecimento e seu objeto, chamando os conceitos de intenções. Ao determinar a
diferença entre a lógica e as ciências reais, Avicena afirmou que, enquanto estas últimas têm por objeto as
primeiras intenções (intensiones primo intellectaé), ou seja, conceitos que se referem a coisas reais, a
lógica tem por objeto as segundas intenções (intensionessecundo intellectaé), ou seja, conceitos que se
referem a outros conceitos (Mel, I, 2). Alberto Magno reproduziu esta distinção (InMet., I, 1, 1), que se
tornaria familiar aos filósofos do séc. XIII. S. Tomás, por sua vez, considerava a intenção como "a
semelhança da coisa pensada" (Contra Gent., IV, 11), distinguindo-a por vezes da espécie inteligível pela
sua indiferença à ausência ou à presença do objeto e pelo fato de abstrair das condições materiais sem as
quais esta última não
INTENCIONALIDADE
577
INTENSÂO e EXTENSÃO
existe na natureza {Ibid., I, 53), e outras vezes identificando-a com a espécie inteligível (S. Th., I, q. 85, a.
1, ad 42
). Mas o conceito de I. só ganhou destaque quando, entre o fim do séc. XIII e o começo do séc.
XIV, começou-se a duvidar da doutrina da espécie (v.) como intermediária do conhecimento e deixou-se
de ver no ato cognitivo uma "semelhança", uma cópia ou imagem da coisa. Durand de S. Pourçain
afirmava que é o próprio objeto, e não a espécie, que se apresenta ao sentido e ao intelecto {In Sent., II, d.
3, q. 6, n. 10) e Pedro Auréolo observava, a respeito, que, se a espécie fosse o objeto do conhecimento,
este não diria respeito à realidade, mas apenas à imagem dela. Auréolo, portanto, julgava que o objeto do
conhecimento era a coisa em seu ser intencional ou objetivo, ou seja, assumida como termo da I. do
conhecimento {Ibid., I, d. 23, a. 2). O esse intentionale ou esse apparens, como também o denominava
Auréolo, é a manifestação da coisa à I. cognoscitiva da mente {Ibid., I, d. 9, a. 1). Para Ockham, isso se
afigurava como um anteparo inútil entre o intelecto e a coisa {Ibid., I, d. 27, q. 3 CC). Para ele, o ato
cognitivo é uma intentio, no sentido de referir-se diretamente à coisa significada. Como intenção, o
conceito não passa de signo que está no lugar de uma classe de objetos, qualquer um dos quais pode
substituir o conceito nos juízos e raciocínios em que aparece {Ibid., I, d. 23, q. 1, D; Quodl, IV, q. 35;
Summa log., I, 12).
A I., como referência ao objeto, fora assim reduzida pela escolástica medieval à referência do signo ao
seu designato, e por muito tempo deixa de ser utilizada como noção autônoma. Foi só no séc. XIX que
Brentano redescobriu essa noção para torná-la como característica dos fenômenos psíquicos {Psichologie
vom empirischen Standpunkt, 1874). Estes podem ser classificados, segundo as características de sua I.,
de sua referência ao objeto, em representação (o objeto está simplesmente presente), em juízo (é afirmado
ou negado), em sentimento (é amado ou odiado). Esses três atos se referem a um "objeto imanente" e são
atos intencionais, mas sua I., ou seja, sua referência ao objeto, é diferente para cada um deles.
Inicialmente Brentano julgou que o objeto da I. pudesse ser indiferentemente real ou irreal; depois, em
Klassification derpsychischen Phüno-mene{\9\\), afirmou que o objeto da I. é sempre real e que a
referência a um objeto irreal é indireta, ocorrendo através de um sujeito que
afirme ou negue o objeto. Husserl inspirou-se nessas idéias de Brentano ao assumir a noção de I. não mais
como característica dos fenômenos psíquicos entendidos como um grupo de fenômenos que coexistam
com outros fenôme-mos chamados físicos, mas como a definição da própria relação entre o sujeito e o
objeto da consciência em geral. Husserl diz a este propósito: "A característica das vivências {Erlebnissê),
que pode ser indicada como o tema geral da fenomenologia orientada objetivamente, é a intencionalidade.
Representa uma característica essencial da esfera das vivências, porquanto todas as experiências, de uma
forma ou de outra, têm intencionalidade... A I. é aquilo que caracteriza a consciência em sentido
pregnante, permitindo indicar a corrente da vivência como corrente de consciência e como unidade de
consciência" {Ideen, I, § 84). Posteriormente, o próprio Husserl falou de "intencionalidade atuante", no
sentido de que a vivência não se refere somente ao seu objeto, mas também a si mesma e é por isso
ciência de si (v. ATUANTE). Seja como for, no âmbito da fenomenologia a I. era assumida como
característica fundamental da consciência, e como tal ficou em boa parte na filosofia contemporânea,
especialmente na fenomenologia e no existencialismo (v. CONSCIÊNCIA). O conceito de transcendência
(v.), mediante o qual Heidegger definiu a relação entre o homem e o mundo, outra coisa não é senão uma
generalização da intencionalidade. Heidegger diz: "Se considerarmos qualquer relação com o ente como
intencional, então a I. é possível apenas com base na transcendência, mas é preciso atentar: I. e
transcendência não se' identificam e esta não se funda naquela" {Vom Wesen des Grundes, I; trad. it., p.
24).
INTENSÃOe EXTENSÃO (in. Intensionand extension; fr. Intension et extension-, ai. Sinn und
Bedeutung; it. Intensione e estensioné). Este par de termos foi introduzido por Leibniz, para expressar a
distinção que a lógica de Port-Royal expressara com o par compreensão-extensão (v.) e a lógica de Stuart
Mill expressara com o par conotação-denotação (v.). Leibniz diz.- "Animal compreende mais indivíduos
que homem, mas homem compreende mais idéias e mais formas; um tem mais exemplos, o outro mais
graus de realidade; um tem mais extensão, o outro tem mais I." {Nouv. ess., IV, 17, § 9). O emprego
destes dois termos foi adotado por Hamilton: "A quantidade interna de uma no-
BNTENSÃO e EXTENSÃO
578
INTERESSE
ção, sua I. ou compreensão, é constituída por diferentes atributos cuja soma é o conceito, no sentido de
que este reúne os vários caracteres conexos num todo pensado. A quantidade externa de uma noção, ou a
sua extensão, é constituída pelo número de objetos que são pensados mediatamente através do conceito"
{Lectures on Logic, 2- ed., 1866, 1, p. 142). O uso desses dois termos ainda prevalece na lógica
contemporânea, que os associou à distinção estabelecida por Frege entre sentido e significado. Frege
disse: "Ao pensarmos num signo, deveremos ligar a ele duas coisas distintas: não só o objeto designado,
que será denominado significado daquele signo, mas também o sentidoào signo, que denota a maneira
como esse objeto nos é dado" ("Über Sinn und Bedeutung", 1892, § 1, trad. it., em Aritmética e lógica, p.
218). Obviamenf
e, o objeto é a extensão; o sentido é a intensão. Essa distinção é repetida ou pressuposta
por quase toda a lógica contemporânea.
AI. de um termo é definida por Lewis como "a conjunção de todos os outros termos, cada um dos quais
deve ser aplicável àquilo a que o termo é corretamente aplicável". Nesse sentido, a I. (ou conotação) é
delimitada por toda definição correta do termo e representa a intenção de quem o emprega, por isso o
significado primeiro de "significado". A extensão ou deno-taçâo de um termo, porém, é a classe das coisas
reais às quais o termo se aplica (LEWIS, Analysis ofKnowledge and Valuation, 1950, p. 39-41). As
mesmas determinações são feitas por Quine: a I. é o significado; a extensão é a classe das entidades às
quais o termo pode ser atribuído com verdade {From a Logical Point of View, II, 1).
Analogamente são usados os adjetivos in-tensional e extensional. este último é aplicado a pontos de vista
que tomam em consideração a denotação das proposições, sem levar em conta, sempre que possível, seus
significados intensionais. Por outro lado, o adjetivo inten-sional, sobretudo se aplicado ao cálculo das
proposições ou das funções proposicionais{v.), significa que se toma em consideração a modalidade das
proposições, que não são levadas em conta pela consideração extensional, que se limita a examinar as
funções de verdade das próprias proposições (CARNAP, Logical Syntax ofLanguage, § 67; RUSSELL,
Inquiry into Meaning and Truth, 1940, cap. 19) (v. ESTENSIONALIDADE, TESE DA).
INTERAÇÃO. V. AÇÃO RECÍPROCA; TRANSAÇÃO.
INTERESSANTE (in. Lnteresting; fr. Inté-ressant; ai. Interessant; it. Interessante). Kierkegaard frisou a
importância desse conceito, que ele considerou "uma categoria situada no limite entre a estética e a ética,
portanto a categoria do ponto crítico". Sócrates foi, p. ex., o mais I. dos homens que já viveram e sua vida
foi a mais I. das vidas vividas. Mas aquela existência foi-lhe destinada pela divindade e, na medida em
que precisou conquistá-la por si, precisou conhecer dificuldades e dores {Furcht und Zittern, em Werke,
III, 131).
INTERESSE (in. Interest; fr. Intérêt; ai. Interesse, it. Interesse). Participação pessoal numa situação
qualquer e a dependência que dela resulta para a pessoa interessada. Trata-se de um conceito moderno que
Kant utiliza no domínio da estética, com a finalidade de afirmar o caráter "desinteressado" do prazer
estético: "Chama-se de I. o prazer que associamos à representação da existência de um objeto. Esse prazer
tem sempre relação com a faculdade de desejar, seja como causa determinante dele, seja como
necessariamente atinente a tal causa. Mas quando se trata de julgar se uma coisa é bela, não queremos
saber se sua existência importa ou pode vir a importar para nós ou para qualquer pessoa; só queremos
saber como julgá-la ao contemplá-la" {Crít. do Juízo, § 2). Hegel, por sua vez, ao definir o I. como "o
momento da individualidade subjetiva e de sua atividade", entendia com isso a presença do sujeito na
ação {Ene, § 475). A noção de I. foi utilizada sobretudo em pedagogia, como participação do educando no
saber, graças à qual o saber se lhe afigura útil. Essa foi uma das regras propostas para a educação em
Emílio de Rousseau. Mas foi Herbart quem utilizou sistematicamente a noção de I., indicando como fim
da educação a plurilateralidade dos interesses. Segundo Herbart, o I. está no meio, entre ser espectador
dos fatos e neles intervir; em outros termos, é uma participação ainda não totalmente ativa ou engajada. O
I. também se distingue do desejo porque, enquanto o objeto deste último ainda não existe, o objeto do I. já
está presente e real {AllgemeinePàdagogik, 1873, II, 1, 2, § 3). Dos pedagogos contemporâneos foi
Dewey quem mais insistiu na valor do I., definindo-o como "o acompanhamento da identificação, através
da ação, do eu com algum objeto ou idéia, através da necessidade de tal
INTERFENÔMENO
579
INTERPRETAÇÃO
objeto ou idéia para a manutenção da auto-expressão" {Educational Essays, ed. por J. J. Findlay, p. 89).
Desse ponto de vista, o esforço, que, em pedagogia, às vezes se costuma contrapor ao I., implica uma
separação entre o eu e o objeto que deve se aprendido ou dominado. Segundo Dewey, os caracteres do I.
são a atividade, a projetividade e a propulsividade. Pelo primeiro, o I. é dinâmico, impele à ação. Pelo
segundo, o I. tem objetivo fora de si, em algum objeto ou finalidade à qual se apega. Pelo terceiro, I.
significa realização interna ou sentimento de valor {Ibid., pp. 90-91). Essa concepção do I., que é um dos
pontos focais da pedagogia de Dewey, exerceu forte influência sobre a teoria e a prática da educação em
todos os países do Ocidente.
INTERFENÔMENO (in. Interphenomenori). Termo criado por H. Reichenbach para indicar os eventos
subatômicos não observáveis, ou seja, não imediatamente inferíveis pela observação, como p. ex. o
movimento de um elétron ou de um raio luminoso da fonte até o encontro com outra matéria. "Eventos
dessa espécie são apresentados por meio de cadeias de inferências de tipo muito mais complicado. São
construídos na forma de interpolação dentro do mundo dos fenômenos, e na mecânica quântica a
distinção1
entre fenômenos e I. é análoga à distinção entre coisas observadas e não observadas"
{Philosophic Foundations of Quantum Mechanics, I, 6).
INTERIORIDADE. V. EXTERIORIDADE.
ENTERMUNDOS (gr. (i,etaKÓO(i.va; lat. Inter-mundid). Espaços entre os mundos, onde, segundo
Epicuro, habitam os deuses (DIÓG. L., X, 89; CÍCERO, De divin., II, 17, 40; De nat. deor., 16-19).
INTERPRETAÇÃO (gr. épUT|veía; lat. Inter-pretatio; in. Interpretation-, fr. Interprétation; ai.
Interpretation, Auslegung, it. Interpretazionê). Em geral, possibilidade de referência de um signo ao que
ela designa, ou também a operação através da qual um sujeito (intérprete) estabelece a referência de um
signo ao seu objeto (designado). Aristóteles denominou I. o livro em que estudou a relação entre os signos
lingüísticos e os pensamentos e entre os pensamentos e as coisas. Ele de fato considerava as palavras
como "sinais das afeições da alma, que são as mesmas para todos e constituem as imagens dos objetos
que são idênticos para todos", considerando ademais como sujeito ativo dessa referência a alma ou o intelecto {De interpr., 1, 16a, 1 ss.).
Boécio, graças a quem essa doutrina passou para a Escolástica latina, entendia por I. "qualquer termo que
significa alguma coisa por si mesmo", incluindo entre as I. os substantivos, os verbos e as proposições, e
excluindo as conjunções, as preposições e em geral os termos gramaticais que não significam nada por si
mesmos. Para ele, referência do signo ao que ele designa era o essencial da interpretação {In librum de
interpr. editio prima, I, em P. L, 64, col. 295).
Nesta concepção, a I. é a referência dos signos verbais aos conceitos (as "afeições da mente") e dos
conceitos às coisas. As características dessa doutrina podem ser assim fixadas: I
a
a I. é um evento que
acontece "na alma", um evento mental; 2- o signo verbal ou escrito é diferente da afeição da mente ou do
conceito e se refere a este; 3a
a relação entre signo verbal e conceito é arbitrária e convencional, ao passo
que a relação entre o conceito e o objeto é universal e necessária.
Esses princípios permaneceram inalterados por longo tempo. Apesar do desenvolvimento ocorrido na
teoria dos signos graças à lógica estóica, medieval e moderna, a doutrina da I. continuou considerando
por muito tempo que o processo interpretativo tinha sede na alma ou na mente, que era um processo
mental. Foi só na filosofia contemporânea que se propôs outra alternativa, qual seja, de hábito ou
comportamento. Conquanto não falte hoje quem considere a I. um processo mental (C. K. ODGEN-I. A.
RICHARDS, The Meaning of Meaning, 1952 [Ia
ed., 19231, p. 57; Du-CASSE, em Journal ofSymbolic
Logic, 1939, n. 4), a semiótica americana apresentou outra doutrina fundamental da I., que toma como
base o comportamento. Os pressupostos dessa doutrina são encontrados na obra de Peirce, que entendeu a
I. como um processo triádico que se dá entre um signo, seu objeto e seu interpretante, constituindo este
último a relação entre o primeiro e o segundo termo {Coll. Pap., 5.484). Conquanto em Peirce restem
ainda muitos pressupostos da antiga doutrina, ele não entendeu a I. como um ato simplesmente mental,
mas como um hábito de ação, como a resposta habitual e constante que o intérprete dá ao signo {Ibid.,
5.475 ss.). Esse é o ponto de vista de Morris, que prevalece na semiótica contemporânea {Foundations of
a Theory of Signs,
INTERPRETAÇÃO
580
INTROSPECÇÃO
1938; Signs, Language and Behavior, 1946). Desse ponto de vista, a I. tem as seguintes características: 1Q
não é (ou não é apenas) um hábito mental, mas um comportamento(v.), uma resposta objetivamente
observável e constante de um organismo a um estímulo; 2Q
não existe diferença entre sinais mentais e
sinais verbais, no sentido de os primeiros serem suscetíveis de I. necessária e os outros não; 3Q
a
referência dos signos aos seus objetos não é nem necessária nem arbitrária, mas determinada pelo uso
(nas linguagens comuns) ou por convenções cabíveis (nas linguagens especiais).
As observações anteriores dizem respeito à teoria da I. na semiótica (v.). É necessário porém observar
que, na linguagem científica e filosófica hodierna, essa palavra tem usos específicos diversos, que só
indiretamente podem ser relacionados com o emprego a que aludimos. Fala-se de I. na ciência quando se
estabelece a correspondência entre um sistema axiomático e determinado modelo (v. AXIOMÁTICA;
MODELO), ou seja, um exemplo concreto ou um conjunto de entidades que satisfaça às condições
enunciadas pelo sistema axiomático. Nesse sentido, a geometria comum pode ser a I. de determinado
sistema axiomático, como p. ex. da axiomática de Hilbert. Um outro uso do termo é o que se encontra nas
disciplinas históricas, quando se fala da I. de determinado acontecimento, de um conjunto de
acontecimentos ou de um período. Nesse caso, a I. é um aspecto da escolha historio-gráfica, e consiste na
escolha das caraterísticas históricas consideradas dominantes e centrais, em relação às quais as outras se
situam num plano subordinado e secundário. Nesse sentido, fala-se, p. ex., de I. materialista da história,
quando os aspectos materiais (ou econômicos) são considerados primordiais e fundamentais (v.
HISTORIOGRAFIA). A I. pode ter outros sentidos específicos e em outros campos de pesquisa e também
pode ter o sentido de explicação (como quando se fala, p. ex., da I. de um fenômeno físico) ou, como
fazia Bacon (Nov. Org., I, 26), da natureza em geral. Independentemente de todos os significados
mencionados, Heidegger definiu-a como o desenvolvimento e a realização efetiva da compreensão: "A I.
não é tomar conhecimento de que se compreendeu, mas a elaboração das possibilidades projetadas na
compreensão" {Sein undZeit, § 32). Este conceito não é utilizável para a análise do uso desse termo nos
vários campos.
INTERPRETANTE e INTÉRPRETE (in. Inter-pretant, Interpreter). Na semiótica contemporânea, os
dois termos significam respectivamente: a disposição em responder a um signo e aquele (em geral o
organismo) que emprega o signo ou se expressa com ele (MORRIS, Foun-dationsofa Theoryof Signs, § 3)
(v. SEMIÓTICA).
INTERROGAÇÃO MÚLTIPLA (gr xó xà 7tA£íco épcoTiíuata êv rcoteív; KoXvfyí]xr\aiç, lat. Plurium
interrogationum fallacia; ai. Hetero-zetesis). Uma das falácias extra dictionem enumeradas por
Aristóteles, mais precisamente a que consiste na redução de várias perguntas a uma só, apostando assim
na unicidade da resposta que o adversário é tentado a dar (ARISTÓTELES, El. Sof., 30, 181 a 30; PEDRO
HISPANO, Summ. log., 7. 62-7. 64; JUNGIUS, Lógica hamburgensis, VI, 12, 16; GENOVESI, Ars logicocritica, V, 11, 12; etc.) (v. FALÁCIA).
INTERSUBJETIVO (in. Intersubjective, fr. Intersubjectif, ai. Intersubjektiu, it. Intersog-gettivó). Termo
usado na filosofia contemporânea para designar: ls
o que se refere às relações entre os vários sujeitos
humanos, como quando se diz "experiência I."; 2
S
o que é válido para um sujeito qualquer, como quando
se diz "conceito I." ou "verificação I." (v. UNIVERSAL, 2).
INTlMISMO (fr. Intimismé). Atitude que consiste em concentrar-se nas experiências interiores. Diz-se
especialmente de poetas e literatos; em sentido ligeiramente depreciativo, de correntes que entendem a
filosofia como uma espécie de autobiografia mascarada (v. EGOCENTRISMO; EGOTISMO).
INTRÍNSECO. V. EXTRÍNSECO.
INTROJEÇÂO (in. Introjection; ai. Introjek-tiorí). Termo introduzido por Avenarius (Kritik der reinen
Erfahrung, 1888-90) para designar o processo de falsear a experiência e reduzir o objeto a uma
representação interna do eu, ad-mitindo-se que os outros indivíduos também possuem semelhante
representação interna. Dito processo, que é uma interiorização do objeto, dá origem à divisão ilusória
entre experiência interna e experiência externa, enquanto a experiência, segundo Avenarius, é uma só,
sendo sempre uma relação direta entre um objeto e um organismo.
INTROSPECÇÃO (in. Introspection; fr. In-trospection; ai. Introspektion; it. Introspezioné). Autoobservação interior, observação que o eu faz dos próprios estados internos. Esse termo foi introduzido
pela psicologia do séc. XIX para
EWUIÇÃO
581
INTUIÇÃO
designar o método psicológico fundamental, considerado insubstituível até o advento do behaviorismo
(v.). Contra a I. Comte opôs uma objeção de princípio: "O indivíduo pensante não pode dividir-se em
dois, um que raciocina e outro que o vê raciocinar. Nesse caso, sendo idênticos o órgão observado e o
órgão observador, como poderá ocorrer a observação?" (Cours de phil. positive, 1830, I, seç. 1, $ 8).
Comte concluíra, por isso, pela impossibilidade da psicologia e a suprimira da sua enciclopédia das
ciências. Em 1868, Peirce respondia negativamente à pergunta "possuímos uma faculdade de I.?" e
concluía que "a única maneira de investigar uma questão psicológica é a inferência a partir de fatos
externos" (Coll. Pap., 5.244-249; 7.418 ss.). Essa conclusão de Peirce é o primeiro indicador do
encaminhamento da indagação psicológica para o behaviorismo (v.).
INTUIÇÃO (gr. È7n.poW|; lat. Intuitus, Intui-Ho, in. Intuition; fr. Intuition; ai. Anschauung; it.
Intuizioné). Relação direta (sem intermediários) com um objeto qualquer; por isso, implica a presença
efetiva do objeto. A intuição foi entendida desse modo ao longo da história da filosofia, a começar por
Plotino, que emprega esse termo para designar o conhecimento imediato e total que o Intelecto Divino
tem de si e de seus próprios objetos (Enn., IV, 4, 1; IV, 4, 2). Nesse sentido, a I. é uma forma de
conhecimento superior e privilegiado, pois para ela, assim como para a visão sensível em que se molda, o
objeto está imediatamente presente. Boécio falava da "intuição divina", que é o golpe de vista com que
Deus abrange as coisas sem mudá-las {Phil. cons., V, 6). E S. Tomás dizia, referindo-se a Deus: "A sua
intuição versa sobre todas as coisas que estão diante dele em sua presencialidade" (S. Th., I. q. 14, a. 13,
cf. q. 14, a. 9). Por esse caráter, o conhecimento divino distingue-se do humano, que age compondo e
dividindo, por meio de atos sucessivos de afirmação e de negação (Ibid., I, q. 85, a. 5). O caráter intuitivo
do conhecimento divino contrapõe-se aqui ao caráter de discurso do conhecimento humano (v. DIANÓIA;
DISCURSIVO). Mas a filosofia medieval empregou esse termo para indicar uma forma particular e
privilegiada da consciência humana, em primeiro lugar o conhecimento empírico. Bacon dizia que "a
alma não se acalma na intuição da verdade se não a encontrar por força da experiência"
{Opus maius, VI, 1). Duns Scot privilegiava como intuitivo (cognitio intuitiva) o conhecimento que "se
refere àquilo que existe ou àquilo que está presente em determinada existência atual", distinguindo-o do
conhecimento abstrativo (v. ABSTRATTVO), que abstrai da existência atual (Op. Ox., II, d. 3, q. 9, n. 6).
Essa noção foi aceita por Durand de S. Pourçain (In Sent., Prol., q. 3 F) e por Ockham, que, tal como
Bacon, identificava o conhecimento intuitivo com a experiência (In Sent., Prol., q. 1 Z). A partir de então,
até Kant, o significado específico desse termo é experiência (v.).
Mas, ao mesmo tempo, conserva-se o significado genérico de relação imediata com um objeto qualquer.
Nesse sentido, Descartes falava da intuição evidente (evidens intuitus), como um dos dois caminhos que
levam ao conhecimento certo (o outro é o da "dedução necessária"), entendendo com ela a apreensão de
qualquer objeto mental: "A intuição da mente estende-se às coisas, ao conhecimento de suas
interconexões necessárias e a tudo o que o intelecto experimenta com precisão em si mesmo ou na
imaginação" (Regulae ad directio-nem ingenii, 12). No mesmo sentido, Locke chamava de intuitivo o
conhecimento que percebe a concordância ou a discordância entre duas idéias imediatamente, ou seja,
sem a intervenção de outras idéias (An Essay Concer., IV, 2, 1), e chamava de I., exatamente pela sua
imediação, o conhecimento que temos de nossa própria existência (Ibid., IV, 9, 3). Ainda no mesmo
sentido, Leibniz dizia que são conhecidas por I. as "verdades primitivas" tanto de razão quanto de fato
(Nouv. ess., IV, 2, 1), ou seja, as verdades que o intelecto apreende ou possui sem a mediação de outras.
Este significado era aceito por Stuart Mill: "As verdades são conhecidas de duas maneiras: algumas
diretamente ou por si mesmas, outras através da mediação de outras verdades. As primeiras são objeto da
I. õu consciência; as segundas, da inferência" (Logic, Intr., § 4). Kant, por sua vez, referia-se ao sentido
tradicional desse termo ao afirmar que "a I. é a representação tal qual seria pela sua decorrência da
imediata presença do objeto" (Prol., § 8). Por isso, para Kant, a I. geralmente é o conhecimento para o
qual o objeto apresenta-se diretamente. Mas Kant distingue a I. senstvele a I. intelectual. Sensível é a I. de
todo ser pensante finito, ao qual o objeto é dado: ela é, portanto, passividade, afeição (Crít. R. Pura,
INTUIÇÃO
582
INTUIÇÃO
Anal. dos conceitos, seç. 1). A I. intelectual é originária e criativa: nela o objeto é posto ou criado,
portanto só se encontra no Ser criador, de Deus (Ibid., § 8, ao final; passirrí). Em outros termos,
intelectual é a intuição divina da filosofia tradicional: a presença do objeto a esta intuição é inevitável e
necessária porque o objeto é criado pela própria intuição.
Essa distinção kantiana foi conservada pelo Romantismo, mas só com a finalidade de reivindicar para o
homem a I. intelectual ou criativa que Kant e os antigos reservavam para Deus. Isso é compreensível,
visto que, para os românticos, o conhecimento humano é o mesmo conhecimento com que o Espírito
Absoluto ou criador se conhece a si mesmo, ou pelo menos é um aspecto ou um momento dela. Assim,
Fichte entende por I. intelectual "a consciência imediata de que eu ajo e daquilo que faço, sendo aquilo
graças a que o Eu sabe enquanto faz" (Werke, I, p. 463). Por sua vez, Schelling afirma que "a filosofia
transcendental deve ser constantemente acompanhada pela I. intelectual" e que o eu é "uma I. intelectual
contínua", porquanto "se auto-produz". E acrescenta: "Assim como, sem a I. do espaço, a geometria seria
absolutamente incompreensível, porque todas as suas construções são apenas formas e maneiras variadas
de limitar essa I., também sem a I. intelectual a filosofia seria impossível porque todos os seus conceitos
não passam de limitações diversas do produzir que se tem por objeto, em outras palavras, a I. intelectual"
{System ler transzen-dentalen Idealismus, seç. I, cap. I, trad. it., p. 39). Hegel, por sua vez, identificava I.
e pensamento: "O puro intuir é o mesmo que o puro pensar... Fé e I. devem ser tomadas em sentido mais
elevado, como fé em Deus, como I. intelectual de Deus.- vale dizer que se deve abstrair exatamente
daquilo que constitui a diferença entre I. e fé, de um lado, e pensamento, de outro. Não se pode afirmar
que fé e I., transportadas para essa região mais alta, ainda sejam diferentes de pensamento" (Ene, § 63). A
mesma tese é sustentada por Schopenhauer, que identifica intelecto e I., e pretende que até as conexões
lógicas sejam reduzidas a elementos intuitivos (Die Welt, I, § 15). À mesma linha de conceitos pertence a
noção de I. encontrada em Rosmini: como apreensão imediata da idéia do ser em geral (Nuovo saggio, §
1.159; Antropologia, § 40, 505; Psicologia, § 13). E, apesar de opor-se a Rosmini quanto ao caráter indeterminado e vazio da idéia de ser, Gioberti aceitava a noção de intuição como relação imediata, total e
necessária da mente humana com Deus e com sua ação criadora (Intr. alio studio delia fil., II, p. 46). Esta
continuava sendo uma "I. intelectual", mas também é intelectual a I. de que fala Bergson, conquanto
carregada de polêmica antiintelectualista ou anti-racionalista. De fato, como órgão próprio da filosofia,
ela possui as características da I. intelectual romântica: relação imediata ou direta com a realidade
absoluta, ou seja, com a duração da consciência ou com o impulso criativo da vida. Bergson afirma: "A I.
é a visão do espírito por parte do espírito." "I. significa principalmente consciência, mas consciência
imediata, visão que mal se distingue do objeto visto, conhecimento que é contato e até coincidência" (La
pensée et le mouvant, 3
a
ed., 1934, pp. 35-36). As mesmas características formais encontram-se na I. eidética ou I. da essência da qual fala Husseri: "A essência é um objeto de nova espécie. Assim como o dado
da I. individual empírica é um objeto indidual, também o dado da I. eidética é uma essência pura. Não se
trata de uma analogia externa, mas sim de uma afinidade radical. Também a I. eidética é uma I., assim
como o objeto eidético é um objeto. A generalização dos conceitos correlativos 'I.' e 'objeto' não é
arbitrária, mas exigida necessariamente pela natureza das coisas" (Ideen, I, § 3). Por fim, a I. que Croce
identifica com a arte tem as mesmas características formais: é conhecimento originário e imediato, que
por isso não distingue entre real e irreal; tem caráter ou fisionomia individual e expressa diretamente o
objeto (Estética, cap. 1).
Recapitulando as características comuns e as diferenciais da I. ao longo da história da filosofia, podemos
dizer sobre as primeiras que a I. é uma relação com o objeto, caracterizada: ls
pela imediação e 2- pela
presença efetiva do objeto. Constantemente, com base nessas características, a I. é considerada uma forma
de conhecimento privilegiado. Por outro lado, suas características diferenciais podem ser assim distintas:
1
Q
a I. pode ser exclusiva de Deus e considerada o conhecimento que o criador tem das coisas criadas; 2-
pode ser atribuída ao homem e considerada a experiência como conhecimento de um objeto presente,
sendo, nesse sentido, percepção (v.); 39
pode ser atribuída ao homem e considerada conhecimento
originário e criativo no sentido
INTUIÇÃO 583 INTUICIONISMO
romântico. As três alternativas deixaram, em grande parte, de despertar o interesse da filosofia
contemporânea. A primeira de fato pertence à esfera das especulações teológicas. A segunda tende a ser
substituída pelo conceito de experiência como método ou como conjunto de métodos (v. EXPERIÊNCIA). A
terceira está estritamente ligada à metafísica do Romantismo (velho e novo): ascende e declina com ele.
Em 1868 Peirce fez uma crítica do conceito de L, negando: I
a
que ela pudesse servir para garantir a
referência imediata de um conhecimento ao seu objeto; 2a
que ela pudesse constituir o conhecimento
evidente que o Eu tem de si mesmo; 3a
que pudesse capacitar a distinguir os elementos subjetivos de
conhecimentos diferentes. Ao mesmo tempo, Peirce afirmava a impossibilidade de pensar sem signos e de
conhecer sem recorrer ao vínculo recíproco dos conhecimentos (Coll. Pap., 5.213-263). Essas negações e
afirmações de Peirce foram e são amplamente aceitas pela filosofia contemporânea.
Hoje, mais que aos filósofos, a I. serve aos cientistas, particularmente a matemáticos e lógicos, quando
estes querem frisar o caráter inventivo de sua ciência. Claude Bernard dizia: "A I. ou sentimento gera a
idéia ou a hipótese experimental, ou seja, a interpretação antecipada dos fenômenos da natureza. Toda a
iniciativa experimental está na idéia, pois só ela provoca a experiência. A razão ou o raciocínio servem
apenas para deduzir as conseqüências dessa idéia e para submetê-las à experiência" (Intr. ã 1'étude de Ia
médecine expérimentale, 1865,1, 2, § 2). Poincaré repetia, com referência à matemática, o que Bernard
dissera a propósito das ciências experimentais: "Demonstra-se com a lógica, mas só se inventa com a I.
(...) A faculdade que nos ensina a ver é a intuição. Sem ela, o geômetra seria como o escritor bom de
gramática, mas vazio de idéias" {Science et méthode, 1909, p. 137). Ainda segundo Poincaré, na
matemática a exigência lógica leva à formulação analítica; a exigência intuitiva, à formulação geométrica.
"Assim, a lógica e a I. têm cada uma sua missão. Ambas são indispensáveis. A lógica, a única que pode
dar certezas, é o instrumento da demonstração: a I. é o instrumento da invenção" {La valeur de Ia
science, 1905, p. 29). Nesse sentido, como já se observou algumas vezes, a I. tem caráter mais negativo
que positivo: ela antecipa o que não decorre da observação empírica ou não pode ser deduzido dos conhecimentos já possuídos. Portanto, parece
designar apenas certo grau de liberdade do pesquisador e nada tem a ver com o significado filosófico
tradicional do termo, no qual se insere o emprego que dele fazem os matemáticos intuicionistas (v. INTUICIONISMO, 4a
).
INTUIÇÃO DO MUNDO (ai. Weltanschau-ung). Sobre a filosofia como "I." ou "visão do mundo" v.
FILOSOFIA. K. Jaspers escreveu Psicologia da cosmovisão, distinguindo a imagem espácio-sensorial do
mundo, a psicocultural e a metafísica (Psychologie der Weltanschauun-gen, 1925; trad. it, Roma, 1950).
INTUICIONISMO (in. Intuitionism, fr. In-tuitionnisme-, ai. Intuitionismus-, it. Intuizio-nismó). Com
este termo são indicadas atitudes filosóficas ou científicas diversas, que têm em comum o recurso à
intuição no sentido mais geral do termo. Em particular, relacionam-se sob o nome de I. as seguintes
correntes:
1
Q
a filosofia escocesa do senso comum, por admitir que a filosofia se fundamenta em certas verdades
primitivas e indubitáveis, conhecidas por intuição (v. SENSO COMUM);
2
a
a doutrina de Bergson, segundo a qual a intuição é o órgão próprio da filosofia;
3
a
a doutrina de N. Hartmann e de Scheler, segundo a qual os valores são objeto de uma intuição que se
identifica com o sentimento (v. VALOR);
4
a
a corrente matemática fundada por L. E. J. Brouwer, inspirada nas idéias de L. Kronecker (1923-91),
para quem o conceito de número natural fora dado à intuição humana, afirmando que os números naturais
foram feitos por Deus e os outros pelo homem. As teses típicas do I. de Brouwer são as seguintes: I
a
a
existência dos objetos matemáticos é definida pela sua possibilidade de construção: por isso, só "existem"
entes matemáticos que possam ser construídos; 2S
o princípio do terceiro excluído não é válido para
proposições em que haja referência a grandezas infinitas; 3a
as definições impre-dicativas não são válidas.
A rejeição do princípio do terceiro excluído implica a rejeição da dupla negação, portanto do método da
prova indireta. Este método, entretanto, fundamenta a corrente formalista da matemática, patrocinada por
Hilbert; segundo essa concepção, para estabelecer a existência de uma entidade matemática basta a
demonstração de que ela não implica contradição (cf. A. HEYTING, Mathe-
INVARIANTE
584
IRONIA
matische Grundlagenforschung, Intuitionismus und Beweistheorie, Berlim, 1934).
INVARIANTE (in. Invariant; fr. Lnvariant; ai. Lnvariante, it. Invariantè). Uma propriedade constante,
mais precisamente, na teoria dos grupos, uma propriedade que permanece a mesma sob um grupo de
transformações (v. GRUPO; TRANSFORMAÇÃO).
INVENÇÃO (in. Invention; fr. Lnvention; ai. Erfindung; it. Invenzioné). "Inventar alguma coisa" —
disse Kant — "é totalmente diferente de descobrir. A coisa que se descobre admite-se como já
preexistente, apesar de ainda não conhecida, como a América antes de Colombo; contudo, o que se
inventa, como a pólvora, não existia em absoluto antes de quem a inventou" {Antr, I, § 57).
Tradicionalmente, a capacidade inventiva denomina-se gênio (v.). Os problemas relativos à I. assumem
aspectos diferentes nos vários campos: na lógica, têm sido por vezes debatidos a propósito da tópica (v.)
ou da intuição (v.); na arte, a propósito do gênio (v.).
INVESTIGAÇÃO (gr. Çr)Tr\cnç; lat. Lnvesti-gatio, Lnquisitio; in. Inquiry, fr. Recherche; ai.
Untersuchung; it. Ricerca). Ainda que o conceito de I. se ligue estreitamente ao de filosofia (como
acontece em PLATÃO, cf., p. ex., Teet., 196 d; Men., 81 e), dificilmente foi objeto da indagação filosófica.
No mundo moderno, De-wey considerou a lógica como teoria da I.: "Todas as formas lógicas, com suas
propriedades características, nascem do trabalho de I., e referem-se à sua aferição, no que concerne à
confiabilidade das asserções produzidas." Nesse sentido, "a I. da I. é causa cognoscendidas formas
lógicas, ao passo que a indagação primitiva é causa essendi das formas reveladas por essa indagação"
{Logic, 1939, 1: trad. it., p. 34). A P. é definida por Dewey como "a transformação controlada ou dirigida
de uma situação indeterminada em outra, determinada, nas distinções e relações que a constituem, de tal
maneira que os elementos da situação originária sejam convertidos numa totalidade unificada" {Logic, VI,
trad it., p. 157).
INVOLUÇÃO (lat. Lnvolutio; in. Lnvolution; fr. lnvolution; ai. Lnvolution; it. Lnvoluzioné). 1. O oposto
de evolução. Essa palavra foi empregada por Kant para indicar a teoria biológica oposta à teoria da préformação individual, que ele denominava evolução {Crít. do Juízo, § 81). Hoje, com o nome de I.
designam-se os fenômenos opostos aos da evolução, ou seja, os
fenômenos regressivos da evolução. A. Lalande defendeu a tese de que o progresso em qualquer campo
não depende da passagem do homogêneo para o heterogêneo, como queria Spencer, mas da passagem do
heterogêneo para o homogêneo, que é a dissolução ou I. {Vidée directrice de Ia dissolution opposée ã
celle de Vévolution dans Ia méthode des scien-ces physiques et morales, 1898, 2- ed., com o título Les
illusions évolutionnistes, 1931).
2. Na lógica simbólica, o procedimento que corresponde à pontenciação aritmética (cf. PEIR-CE, Coll.
Pap., 3.614-15).
IOGA. Um dos principais sistemas filosóficos indianos, que consiste essencialmente numa técnica de
ascetismo. O texto fundamental deste sistema são os Iogassutra de Patanjali, obra provavelmente
composta entre os sécs. V e o VI d.C, talvez com base em fragmentos ou documentos mais antigos. A I.,
cujas doutrinas coincidem substancialmente com as do sistema sanquia, mas com tônica teísta, consiste
essencialmente na descrição de exercícios graduais para obter a perfeita libertação da alma. Os graus
fundamentais são oito: ls
restrição moral; 2- cultura da alma com o estudo dos textos sagrados; 3S
posições
convenientes à meditação; 4a
controle da respiração; 5e
controle dos sentidos; 6B
concentração; 1° atenção
contínua; 8e
recolhimento absoluto {samãdí), no qual desaparece a dualidade entre quem contempla e o
objeto contemplado. D I. distingue-se a Hatha-ioga ou I. violenta, que sugere os exercícios voltados para
afrouxar os vínculos entre alma e corpo (v. G. Tucci, Storia delia filosofia indiana, pp. 98 ss.).
IPSE DIXIT (gr. oráxòç E<pa). Frase com que os pitagóricos costumavam responder aos pedidos de
elucidações sobre sua doutrina: "Ele disse." Ele era Pitágoras. Cícero aduz esse costume como exemplo
do predomínio da autoridade sobre a razão {De nat. deor.. I, 5, 10).
IPSEIDADE (lat. Lpseitas; fr. Lpséité). Termo usado por Duns Scot para indicar a singularidade da coisa
individual (v. ECCEIDADE).
IRASCÍVEL. V. FACULDADE.
IRONIA (gr. eipcDveíoc; lat. Lronia; in. Lrony; fr. Lronie; ai. Lronie; it. Lronia). Em geral, a atitude de
quem dá importância muito menor que a devida (ou que se julga devida) a si mesmo, à sua própria
condição ou a situações, coisas ou pessoas com que tenha estreitas relações. A história da filosofia co-
IRONIA
585
IRONIA
nhece duas formas fundamentais de I.: 1* socrática; 2- romântica.
I
a AI. socrática é o modo como Sócrates se subestima em relação aos adversários com quem discute.
Quando, na discussão sobre a justiça, Sócrates declara: "Acho que essa investigação está além das nossas
possibilidades e vós, que sois inteligentes, deveis ter piedade de nós, em vez de zangar-vos conosco."
Trasí-maco responde: "Eis a costumeira I. de Sócrates" (Rep., I, 336 e 337 a). Aristóteles só faz enunciar
genericamente esta atitude socrática quando vê na I. um dos extremos na atitude diante da verdade. O
verdadeiro está no justo meio; quem exagera a verdade é jactancioso e quem entretanto procura diminuíla é irônico. E diz que, nesse aspecto, I. é simulação (Et. nic, II, 7, 1108 a 22). Cícero referia-se a esse
conceito ao afirmar que "Na discussão, Sócrates freqüentemente se diminuía e elevava aqueles que
desejava refutar; assim, dizendo o contrário do que pensava, empregava de bom grado a simulação que os
gregos denominam I." (Acad., IV, 5, 15). S. Tomás referia-se a este conceito do termo, como uma forma
(lícita) de mentira (S. Th., II, 2, q. 113, a. 1).
2
a
A I. romântica baseia-se no pressuposto da atividade criadora do Eu absoluto. Identificando-se com o
Eu absoluto, o filósofo ou o poeta (que com muita freqüência coincidem, para os românticos) é levado a
considerar a realidade mais concreta como uma sombra ou um jogo do Eu, a subestimar a importância da
realidade, não tomá-la a sério. Segundo Schlegel, a I. é a liberdade absoluta diante de qualquer realidade
ou fato. "Transferir-se arbitrariamente ora para esta, ora para aquela esfera, como para outro mundo, não
só com o intelecto e com a imaginação, mas com toda a alma; renunciar livremente ora a esta, ora àquela
parte do próprio ser, e limitar-se completamente a uma outra; procurar e encontrar a sua unidade e o todo,
ora neste, ora naquele indivíduo, e esquecer voluntariamente todos os demais: de tudo isso só é capaz um
espírito que contenha em si como uma pluralidade de espíritos e todo um sistema de pessoas, e em cujo
íntimo o universo que — como se diz — está em germe em todos os mundos, desabro-chou, amadureceu"
(Fragm., 1798, § 121). Estas observações sobre a I. foram conceitualmente sistematizadas na obra de C.
G. F. Solger, Erwin (1815), na qual a I. era interpretada do ponto
de vista da subjetividade, que se compreende como coisa suprema e que, por isso, rebaixa a zero todas as
demais coisas, mesmo o que há de mais elevado. Apesar de se opor a alguns pormenores da doutrina de
Solger, que definiu como "platônicos", Hegel a adotava ao descrever a I. da seguinte maneira:
"Considerem uma lei, singelamente tal qual é em si e por si: eu estou além e posso fazer isto e aquilo.
Superior não é coisa, eu sou superior e senhor; acima da lei e da coisa, brinco com elas a meu bel-prazer
e, nessa consciência irônica, em que permito que o supremo pereça, fruo-me a mim mesmo" (Fil. do dir.,
§ 140). Para Hegel, a assim entendida como consciência da Subjetividade Absoluta que, como tal, é tudo,
e diante da qual todas as outras coisas são nada, portanto como consciência do absoluto arbítrio de tal
subjetividade, a I. é resultado da filosofia de Fichte, tal como foi entendida e interpretada por Schlegel
(Fil. do dir., § 140, Zusatz). "Aqui o sujeito sabe-se em si mesmo como o Absoluto e não dá peso algum
ao resto: sabe destruir constantemente todas as sua próprias determinações do justo e do bem. Pode dar a
entender a si mesmo todas as coisas, mas só demonstra vaidade. hipocrisia, imprudência. A I. sabe que
domina qualquer conteúdo: não toma nada a sério, brinca com todas as formas" (Geschichte derPhil., III,
seç. 3, C, 3; trad. it., III, 2, pp. 370 71).
Esse conceito caracterizou um dos aspectos fundamentais do Romantismo alemão. Kierkegaard deu-lhe
uma interpretação atenuada ou metafórica, por um lado concebendo a I. socrática como superioridade de
Sócrates à iniqüidade do mundo {Diário, X
3
, A, 254), por outro lado entendendo a I. em geral como "a
infinitização da interioridade do eu", mas como infinitização "interior", num significado que não tem mais
a magnitude que Fichte atribuía à infinidade. "O que é a I.?" escreve ele. "A unidade de paixão ética, que
acentua o eu infinitamente em interioridade, e a unidade de educação que, em seu exterior (no comércio
com os homens) abstrai infinitamente do próprio eu. A abstração faz que ninguém se aperceba da primeira
unidade vivida e nisto está a arte da verdadeira infinitização da interioridade" (.Diário, VI, A, 38, trad.
Fabro). Como aqui a infinidade do eu é somente uma infinidade "interior", ou seja, a acentuação ao
infinito do valor do eu na consciência, mas não é a infinidade efetiva e criadora do Eu
IRRACIONALISMO
586
ISOMORFISMO
absoluto dos românticos, a I. não tem mais o significado romântico: é apenas a oposição entre a
consciência exaltada que o eu tem de si e a modéstia das suas manifestações externas.
IRRACIONALISMO (ai. Irrationalismus). Termo com que, em italiano e alemão, são designadas as
filosofias da vida ou da ação, que, como p. ex a de Schopenhauer, consideram o mundo como
manifestação de um princípio não racional (v. AÇÃO, FILOSOFIA DA; VIDA, FILOSOFIA DA).
IRREVERSÍVEL (in. Irreversible, fr. Irréver-stble-, ai. Irreversibel; it. Irreversibilé). Caráter das
relações simétricas e dos processos que têm sentido determinado. Platão, no mito do Político, afirmou a
reversibilidade do devir cósmico, declarando que o mundo, uma vez atingindo o termo do tempo que lhe
foi designado, "recomeça a girar em sentido contrário", ou seja, inverte a ordem do tempo. Isto acontece
porque o mundo é, por um lado, a coisa mais perfeita possível, mas, por outro, é um corpo e, como tal,
sujeito a mudanças. "Por isso, seu destino é refazer seu giro em sentido inverso, sendo essa 'a mínima
mudança possível do seu movimento'" (Pol., 269 c-e). Esse conceito, de que a reversibilidade do processo
cósmico se deve à exigência de realizar a maior identidade possível consigo mesmo, era expresso por
Leibniz nos termos da ciência do seu tempo. Leibniz dizia: "A sabedoria suprema de Deus levou-o
escolher sobretudo as leis do movimento mais aptas e mais convenientes às razões abstratas ou
metafísicas. No universo, conserva-se a mesma quantidade de força total absoluta ou de ação, a mesma
quantidade de força respectiva ou de reação; a mesma quantidade de força diretiva. Além disso, a ação é
sempre igual à reação e o efeito inteiro é sempre equivalente à sua causa plena" (Princ. de Ia nature et de
Ia grâce, 1714, Op., ed. Erdmann, p. 716). Essa equivalência perfeita entre a causa e o efeito significa a
reversibilidade do processo causai. A mecânica clássica admite essa reversibilidade. As equações que
exprimem o comportamento dos fenômenos mecânicos não dão indicação alguma sobre o sentido em que
o tempo transcorre. O t dessas equações é uma variável contínua que não tem sentido determinado, e isso
significa que todo fenômeno mecânico é reversível. A irreversibilidade dos fenômenos foi introduzida
com a descoberta do segundo princípio da termodinâmica (chamado de Princípio de Carnot, 1824), segundo o qual o calor passa
apenas do corpo mais quente para o corpo mais frio. Nesse caso, quando com essa passagem se alcança o
equilíbrio da temperatura, é impossível voltar atrás. Do sistema em equilíbrio não é possível voltar ao
sistema do desequilíbrio térmico, que só possibilita a passagem do calor e, portanto, o trabalho mecânico.
Um sistema em equilíbrio térmico não pode fornecer trabalho mecânico. Com isso estabelece-se a
irreversibilidade dos fenômenos naturais que, sob certo aspecto, são todos fenômenos térmicos. O
Princípio de Carnot excluiu, assim, a imagem do devir do mundo que os antigos acreditavam realizar-se
ciclicamente, retornando sobre si mesmo.
A irreversibilidade dos fenômenos naturais levou a pensar na morte inevitável do universo, quando fosse
atingido o equilíbrio térmico que impossibilitasse qualquer transformação e, portanto, a vida. Foram
numerosas as doutrinas que aventaram hipóteses que tentavam entrever sorte diferente para o nosso
universo (cf. sobre elas MEYERSON, De 1'explication dans les sciences, 1927, pp. 203 ss.). Mas na
verdade tanto a previsão da catástrofe quanto a das possíveis vias de salvação vão muito além do que é
permitido pelo alcance do princípio de Carnot e, em geral, por um princípio científico. Este de fato vale
somente para sistemas fechados ou pelo menos relativamente isolados, sendo um instrumento de previsão
para esses sistemas, e não para o universo ou o mundo, que são uma totalidade aberta ou infinita. Em
sentido diferente e positivo, o significado filosófico de irreversibilidade foi ilustrado por E. PACI, Tempo
e relazione, 1954, cap. VI e passim (v. ENTROPIA).
ISOLAR (ai. Isoliereri). No sentido de abstrair, como empregado por Kant, v. ABSTRAÇÃO. Wundt
distingue a abstração isolante, que consiste em separar determinada parte de uma aparência complexa, da
abstração generalizante, que consiste em pôr de lado, intencionalmente, algumas notas conceituais
(Logik, II, pp. 11 ss.).
ISOMORFISMO (in. Isomorphism; fr. Iso-morphisme; ai. Isomorphie; it. Isomofismo). Termo
empregado em lógica e em matemática para indicar a relação entre relações homogêneas de dois ou mais
termos, que consiste na correspondência de termo a termo entre os ter-
ISONOMIA
587
ISSO
mos das relações (cf. R. CARNAP, Logical Syntax ofLanguage, § 71 c; A. CHURCH, Introduction to
Mathematical Logic, § 55).
ISONOMIA (gr. iaovoníot; lat. Isonomia). Segundo Alcméon de Cróton, é o perfeito equilíbrio das
propriedades que constituem o corpo: a saúde; seu contrário é a monarquia, que é o predomínio de uma
propriedade sobre a outra, o que constitui a doença (Fr. 4, Diels).
Segundo Epicuro, o perfeito equilíbrio e a perfeita correspondência de todas as partes ou os elementos do
todo no infinito. "Conseqüentemente, apesar de ser tão grande a multidão dos mortais, não menor é a dos
imortais, e se os elementos de distribuição são inúmeros, os de conservação devem ser infinitos" (CÍCERO,
De nat. deor, I, 19, 50). ISSO. V. ID; PSICANÁLISE.
J
JAINISMO (in. Jainism). Uma das seitas filosóficas da antiga índia, cujo nome provém de seu fundador
Mahavira (séc. V a.C), denominado Jina, que significa "o Vitorioso". Admite uma pluralidade de
realidades ou substâncias, divididas em dois grupos antagonistas: as substâncias vivas e as materiais (cf.
Tucci, Storia delia fil. indiana, 1957, pp. 55 ss.).
JANSENISMO (in. Jansenism-, fr. Jansénis-me, ai. Jansenismus, it. Giansenismó). Doutrina do bispo
Cornélio Jansênio (1585-1638), exposta na obra Augustinus. Trata-se de uma tentativa de reforma
católica através do retorno às teses de S. Agostinho sobre a graça. Segundo Jansênio, a doutrina
agostiniana implica que o pecado original tirou do homem a liberdade de querer, tornou-o incapaz para o
bem e inclinado necessariamente ao mal. Deus só concede aos eleitos, pelos merecimentos de Cristo, a
graça da salvação. Jansênio confrontava essas teses com o relaxamento da moral eclesiástica,
especialmente jesuítica, segundo a qual a salvação está sempre ao alcance do homem que, vivendo no
seio da Igreja, possui uma graça suficiente, que o salvará se for favorecida pela boa vontade. Esta era a
tese do jesuíta espanhol Molina (1535-1600), em que os jesuítas basearam o seu proselitismo, que visava
a conservar no seio da Igreja o maior número possível de pessoas. No dia 31 de maio de 1653 uma bula
do papa Inocêncio X condenou cinco proposições nas quais a Faculdade Teológica de Paris condensara a
doutrina do Augustinus de Jansênio. A favor de Jansênio estavam Antoine Arnauld e os denominados
"solitários de Port-Royal". Estes julgaram que as cinco proposições condenadas não expressavam o
pensamento de Jansênio e que, portanto, condenação não dizia respeito ao jansenismo. Em favor disto
Pascal publicou, em 1656, as Cartas provinciais. O J. continuou circulando por algum tempo em ambientes religiosos italianos e franceses (cf. F.
RUFFINI, Studi sul giansenismó, Firenze, 1947).
JOGO (gr. Ttcaõiá; lat. Jocus; in. Play, Game, fr. Jeu; ai. Spiel; it. Giocó) Atividade ou operação que se
exerce ou se executa por si mesma, e não pela finalidade à qual tende ou pelo resultado que produz. Por
este caráter Aristóteles aproximou o J. à felicidade e à virtude, pois essas atividades também são
escolhidas por si mesmas e não são "necessárias", como as que constituem o trabalho (Et. nic, X, 6, 1176
b 6). Esse conceito permaneceu substancialmente inalterado. O próprio Kant não faz outra coisa senão
reproduzi-lo ao dizer que o J. é "uma ocupação por si só agradável e não necessita de outro objetivo",
contrapondo-o ao trabalho, que é "uma ocupação por si desagradável (penosa) que atrai apenas pelo
resultado que promete (p. ex., a remuneração)" (Crít. do Juízo, % 43). Mas Kant foi também o primeiro a
empregar filosoficamente o conceito de J. assim entendido, ligando-o estreitamente à atividade estética.
Ele escreveu: "Todo J. variado e livre das sensações (que não vise a um objetivo) produz prazer porque
favorece a sensação de saúde, haja ou não em nosso juízo racional prazer pelo objeto ou mesmo fruição"
(Ibid., % 54). Os J. podem ser divididos em J. de sorte, que exige um interesse, J. musical, que supõe
apenas a variação das sensações, e J. de pensamentos, que é o J. propriamente estético (Ibid., § 54). Kant
ressaltou a função biológica do J., que serve para manter desperta e reforçar a energia vital na competição
com as demais energias do mundo. Diz.- "Dois jogadores pensam estar jogando um com o outro; na
realidade, é a natureza que joga com ambos; e a razão
JOGO
589
JOGO
pode convencer-se quando refletimos em como os meios escolhidos dificilmente se adaptam ao objetivo"
{Antr., § 86). Essas observações foram freqüentemente difundidas e ampliadas pelo pensamento moderno.
Schiller diz.- "O animal trabalha se o móbil de sua atividade é a falta de alguma coisa; e brinca se o móbil
é a plenitude de sua força, se é estimulado à atividade pela exuberância de vida" {Über die aesthetische
Erziehung des Menschen, 27). O ivertimento não é estranho nem à natureza inanimada: a
superabundância de raízes, ramos, folhas, flores e frutos de uma árvore, em comparação com o que é
necessário para a conservação da própria árvore e de sua espécie, é o divertimento da natureza vegetal.
"Da pressão da necessidade ou da seriedade física, através da pressão da exuberância, ou seja, do J. físico,
a natureza passa ao J. estético e, antes de elevar-se, acima dos vínculos das finalidades, à sublime
liberdade do belo, aproxima-se pelo menos um pouco dessa independência no livre movimento, que é fim
e meio para si mesmo" (Ibid., 27). O conceito, já expresso por Kant, de que o J. tem a função biológica de
adestrar para as atividades vitais, que garantem a conservação do organismo, torna-se lugar-comum na
filosofia e na pedagogia do séc. XIX. Para a formação desse lugar-comum contribuiu muito aquela
espécie de metafísica do J. de inspiração romântica, mais precisamente em Schelling, que Froebel usou
como base para a sua teoria da educação. Para Froebel, o J. está para a criança assim como o trabalho está
para o homem e a criação está para Deus: é a manifestação necessária da atividade da criança assim como
o trabalho é para o homem e a criação, para Deus {Die Menschenerziehung, 1826, § 23). Portanto o J.
infantil não é um passatempo: as disposições futuras do homem, tanto com relação às coisas quanto com
relação aos outros homens, formam-se na primeira infância, através do J. E Froebel propõe que toda a
educação da primeira infância se desenvolva através do J., do qual deu minuciosa regulamentação.
Mesmo sem levar em conta os pressupostos metafísicos da doutrina de Froebel, a pedagogia moderna e
contemporânea atribuiu ao J. um caráter privilegiado de condição ou instrumento da formação humana
básica, enquanto a psicologia e a antropologia lhe atribuíram função biológica e social, ou seja, utilidade
para a conservação do homem e da sua adaptação à sociedade, ao mesmo tempo em
que a estética reconheceu nele analogia com a atividade artística. As análises de Groos sobre o J.
basearam-se nesses conceitos {Die Spiele der Menschen, 1889; Die Spiele der Tiere, 1896). Groos
também utilizou esse conceito de J. para definir a atividade estética {Einleitung in die Aesthetik, 1892),
mas a definição de J. continuava sendo a de Aristóteles: a atividade que tem em vista apenas o prazer pela
atividade {Spiele der Menschen, p. 7). Desse ponto de vista, o J. foi freqüentemente considerado uma
espécie de tendência inata ou de instinto vital, que é outra maneira de expressar a função que cumpre de
adestrar o homem ou, em geral, o organismo vivo, para as atividades que garantam sua conservação no
mundo. Ao reconhecimento da função biológica, educativa e estética do J. acresceu nos últimos tempos o
reconhecimento da função social. Tanto o J. como atividade direta quanto o J. como espetáculo
constituem hoje duas das principais maneiras de emprego do tempo livre para grandes massas de
trabalhadores, exercendo, portanto, a função de corrigir e equilibrar as atividades sociais, o que ainda
precisa ser mais bem estudado.
Como já se disse, a importância crescente atribuída à atividade lúdica e a multiplicidade de funções a ela
atribuídas em vários campos não modificaram seu conceito, que continuou sendo substancialmente o
mesmo formulado por Aristóteles: atividade que tem fim em si mesma e que é procurada e exercida pelo
prazer intrínseco, e não pelo efeito ou pelo resultado que dela deriva. Contudo, mesmo esse conceito hoje
deve sofrer algumas retificações. Em primeiro lugar, deve ser retificada a contraposição, que ele implica,
entre atividade lúdica e trabalho. Essa contraposição nem sempre se verifica e nunca é tão radical. Muitos
trabalhos podem ser (ou tornar-se) interessantes, e, se isso acontece, passam a ser fins em si mesmos e
adquirem, no todo ou em parte, um caráter lúdico. É certamente difícil supor que todas as infinitas formas
que o trabalho assumiu ou assumirá possam vir a tornar-se intessantes e lúdicas, mas o fato de algumas
deles serem ou poderem vir a ser elimina em princípio essa contraposição, definindo o ludismo como uma
possibilidade em algumas atividades humanas, mais que como expressão da natureza de um grupo de
atividades. Em muitos autores, porém, essa contraposição persiste, especialmente no que se refere ao
trabalho alienado da sociedade industrial, e o jogo é considerado
JOGO
590
JUDAICA, FILOSOFIA
"expansividade livre" ou "atividade improdutiva e inútil", porque anula as características repressivas e
exploradoras do trabalho e do ócio e "simplesmente brinca com a realidade". Desse ponto de vista, o
próprio trabalho deveria tornar-se lúdico, ou seja, subordinar-se ao livre desenvolvimento das
potencialidades do homem e da natureza (MARCUSE, Eros and Civi-lization, 1954, cap. IX).
Na realidade, hoje não se pode aceitar sem restrições a definição tradicional de J., que evidencia o seu
caráter de absoluta espontaneidade e liberdade, contrapondo-o, pois, ao caráter coativo do trabalho que é
determinado pelo fim ou pelo resultado que deve atingir. Esse caráter de espontaneidade não pode ser
entendido em sentido absoluto: de fato, todos os jogos têm restrições ou regras que delimitam suas
possibilidades. Mesmo em J. simples e individuais existem tais restrições: não se pode, p. ex., lidar do
mesmo modo com um cubo e com uma bola. Nos J. coletivos, as regras definem e regulamentam, sendo
impossível ignorá-las. Na cultura contemporânea, quando se lança mão do conceito de J., como por vezes
fazem filósofos e economistas, estã-se acentuando exatamente esse caráter de ser guiado por regras
cabíveis, escolhidas e estabelecidas para possibilitar a realização do J. e a alternativa entre sucesso e
malogro. Wittgenstein alude a isso quando fala em "J. lingüísticos", ou seja, linguagens diferentes, cada
uma das quais é regida por regras próprias {Philosophical Investiga-tions, I, § 81). Assim, também
considera a linguagem matemática como J. e entende que jogar é "agir de acordo com certas regras" (Remarks on the Foundations of Mathematics, IV, 1). Em economia (v.), a chamada "teoria dos J." considera
que o J. é uma atividade limitada por regras, graças às quais o jogador pode escolher, entre as várias
estratégias possíveis, a que lhe assegure mais vantagens (NEUMANN-MORGENSTERN, Theory of Games
and Economic Behavior, 1944). Nestes empregos, o significado dessa palavra compreende: le
limitação
das escolhas, impostas à atividade do jogador pelas regras; 2° caráter não rigorosamente determinante
dessas regras, que possibilitam escolher entre várias táticas e, eventualmente, determinar a melhor tática
caso por caso (que assegure sucesso ou o melhor resultado do J.). Obviamente essas características não
eliminam as tradicionais, já expressas por Aristóteles, mas a elas se somam, corrigem-nas e às vezes as
sobrepujam, como acontece no caso da teoria da linguagem como J. e da teoria dos J. na economia política.
Recorreu-se a conceito análogo de J. na elaboração de uma teoria do comportamento individual que
permitisse explicar as alterações psíquicas como "brigas" de J.: confusão entre antigas e novas normas
para as interações sociais, recusa em participar de um J. comandado por outros, não-aceitação da
importância do J. (T. S. SZASZ, The Myth of Mental Illness, 1961).
JUDAICA, FILOSOFIA (in. Jewish philosophy, fr. Philosophy judaique, ai. Jüdischen Philosophie, it.
Filosofia giudaica). A filosofia J! é de tipo escolástico (v. FILOSOFIA; ESCO-LÁSTICA); consiste
essencialmente na tentativa de interpretar a tradição religiosa J. em termos de filosofia grega, mais
precisamente de neo-platonismo ou de aristotelismo. A filosofia J. nasceu, portanto, quando o judaísmo
entrou em contato com o helenismo no séc. II a.C. Uma de suas primeiras manifestações é a seita dos
essênios, dos quais nos falam Fílon, Jo-sefo e Plínio, à qual parecem pertencer os documentos
encontrados nas proximidades do Mar Morto em 1947, que costumam ser chamados de "manuscritos do
Mar Morto", (cf. BURROWS, The Dead Sea Scrolls, Nova York, 1956). Essa seita mostra profunda
afinidade com o neopitagorismo, supondo-se que se tenha desenvolvido sob a influência dos mistérios
órfico-pitagóricos. Era constituída por várias comunidades submetidas a disciplina severa, com certo
número de regras ascéticas. Do ponto de vista doutrinai, os essênios interpretavam alegorica-mente o
Antigo Testamento de acordo, segundo tradição que atribuíam a Moisés; acreditavam na preexistência da
alma e na vida depois da morte, admitiam divindades intermediárias ou demônios, bem como a
possibilidade de profetizar o futuro. Fílon de Alexandria (que viveu na primeira metade do séc. I d.C.) é a
maior personalidade filosófica desse período da filosofia J.: sua intenção é interpretar alegorica-mente as
doutrinas do Antigo Testamento mediante conceitos da filosofia grega. O resultado dessa interpretação é
uma forma de neopla-tonismo muito semelhante àquela que se desenvolverá em Alexandria por obra do
neopla-tonismo (v.).
A segunda fase ocidental da filosofia J. desenvolveu-se na Idade Média, principalmente na Espanha,
durante o domínio árabe. A essa fase pertencem Isaac (que viveu no Egito entre
JUÍZO
591
JUÍZO
os sécs. IX e X); Saadja (séc. X); Ibn-Gebirol, que os escolásticos latinos conheceram com o nome de
Avicebron, autor de uma obra famosa intitulada Fonte da vida (séc. XI), e Moisés Ben Maimoun,
denominado Maimônides (séc. XII), autor do Guia dos perplexos. Os temas fundamentais dessa segunda
fase da Escolástica J. são os seguintes: ls
utilização do neoplatonis-mo árabe, especialmente da filosofia
de Avi-cena, para a demonstração da existência de Deus; 2
e
negação do necessarismo característico da
filosofia árabe e, portanto, crítica das duas doutrinas decorrentes desse necessarismo: d) da eternidade do
mundo e conseqüente defesa da criação como início das coisas no tempo por obra de Deus; b) do rigoroso
determinismo astrológico, com a reafirmação da liberdade humana. Estas teses aproximam muito a
Escolástica J. da Escolástica cristã, que defende filosoficamente crenças religiosas análogas. Portanto, a
Escolástica cristã empregou muito a filosofia J., e especialmente a de Maimônides (cf. J. GUTTMANN, Die
Phil. des Ju-dentums, Munique, 1933).
JUÍZO (gr. TÒ KpitiKÓv, Kpíoiç, lat. Judicium; in. Judgment; fr. Jugement; ai. Urteilskraft, Ur-teil; it.
Giudizió). Este termo, oriundo da linguagem jurídica, possui quatro significados principais: 1Q
faculdade
de distinguir e avaliar ou o produto ou o àto desta faculdade, bem como sua expressão; 2S
uma parte da
lógica; 3S em relação a uma proposição, ato de assentir, discordar, afirmar ou negar; 4Q
operação
intelectual de síntese que se expressa na proposição.
l
g
No sentido mais geral, entende-se por J. a faculdade de avaliar e escolher, própria de todos os seres
animados. Aristóteles dizia que o J. é uma das faculdades da alma dos animais (a outra é a faculdade
motriz), sendo obra do pensamento e da sensação {De an., III, 9, 432 a 15). Em especial, atribuía ao
intelecto a capacidade de julgar as qualidades sensíveis com o sensório e a substância das coisas com um
meio diferente {Ibid., III, 4, 429, b 10). O significado geral conservou-se constante na tradição filosófica e
na linguagem comum. A faculdade de julgar consiste em avaliar, escolher, decidir. "Ter J." significa saber
ser comedido nas escolhas, ou fazê-las de acordo com as melhores regras. Nesse sentido, o J. é
qualificado segundo os campos específicos em que age, falando-se de "J. moral", "estético", "histórico",
"político", etc. Esse termo ainda indica, em todas línguas, o resultado ou o produto da atividade judicativa e a expressão lingüística desta: por isso, chama-se
de J. tanto a decisão ou a escolha que elimine uma incerteza, dirima uma controvérsia ou elimine um
conflito quanto a formulação verbal de alguns desses atos. Nesse sentido, a faculdade judicativa não se
reduz ao intelecto, conquanto compreenda também o intelecto. S. Tomás observava que "a palavra 'J.', que
segundo a primeira imposição significa a correta determinação do que é justo, foi ampliada para significar
a correta determinação em todas as coisas, tanto nas especulativas quanto nas práticas" {S. Th., II, 11, q.
60 a. 2 ad I
o
). Kant, que definia o intelecto como "a faculdade de julgar" {Crít. R. Pura, Anal. transe, I,
cap. I, seç. I; Prol, § 22), em Antropologia conceituava de modo mais geral o J., entenden-do-o como "a
capacidade intelectual de distinguir se cabe ou não uma regra", e afirmava que o J. não pode ser ensinado,
mas só exercitado, e que o seu desenvolvimento chama-se "maturidade" {Antr, 1, § 42). Locke havia
restringido o J. à faculdade de utilizar os conhecimentos prováveis na falta do conhecimento seguro (Jud.,
IV, 14, 3), mas Leibniz observava que "outros chamam de julgar a ação realizada todas as vezes em que
alguém se pronuncia com algum conhecimento de causa" {Nouv. ess, IV, 14).
Nesse sentido, o J. é uma atividade va-lorativa, embora possa expressar-se (como de fato o fez com
freqüência) por fórmulas verbais diversas, como regras, normas, exortações, imperativos, pareceres,
conselhos, conclusões e, em geral, fórmulas que expressam uma escolha ou um critério de escolha. Peirce
diz: "O hábito cerebral da mais alta espécie, que determinará o que faremos, tanto em imaginação quanto
em ação, chama-se crença. Chama-se J. a representação, que fazemos para nós mesmos, de que temos
determinado hábito" {Coll. Pap. 3, 160).
Na mesma linha, Dewey considerou o J. como a conclusão de uma busca e a sistemati-zação efetiva da
situação que a provocou, segundo o modelo do procedimento judiciário {Logic, 1939, cap VII).
2
a
Cícero deu o nome de "J." à dialética{v.) dos estóicos, que "foi inventada quase como árbitro e juiz do
verdadeiro e do falso" {Acad., II, 28, 91). Disse ele: "Todo tratamento completo da argumentação possui
duas partes, uma que se ocupa da invenção a outra do J.". Aristóteles foi o fundador de ambas, os estóicos
se-
JUÍZOS, CLASSIFICAÇÃO DOS
593
JUSTIÇA
lógica, 1,19222
, pp. 192 ss.). Para Bradley e Bo-sanquet, o sujeito autêntico do J., ao qual se referem as
qualificações ou a idéia que o constituem, é a realidade total, ou seja, o Absoluto ou Consciência
(BRADLEY, Appearance and Reality, 19022
, p. 370; BOSANQUET, Logic, I, 1888, p. 294). Por outro lado,
os próprios lógicos matemáticos usaram freqüentemente a palavra "J.", porém em sentido diferente,
passando então a prevalecer o termo proposição (v.).
Contudo, foi no próprio campo da lógica filosófica que se esboçou a reação contra a noção de J. como
operação mental. Husserl estabeleceu inicialmente a distinção entre o ato judicativo e sua essência
"intencional" ou "cognitiva", que seria seu conteúdo objetivo (Logis-che Untersuchungen, 1900, II, V, §
21), e mais tarde fez a distinção entre o J. como noese (v.), que é o "julgar", e o J. como noema (v.), que é
o "julgado", o "juízo formulado" que possibilita a consideração lógico-formal do próprio J. Ambos os
aspectos são dados na vivência {Erlebnis) do julgar ildeen, I, § 94).
JUÍZOS, CLASSIFICAÇÃO DOS (in. Clas-sification of judgments; fr. Classification des jugements, ai.
Einteilung der Urteile, it. Clas-sificazione deigiudizi). 1. Com esta expressão entende-se comumente a
classificação das proposições, ou seja, sua divisão em afirmativas e negativas, universaise particulares,
categóricas e hipotéticas, etc. Para tal significado, v. PROPOSIÇÕES, CLASSIFICAÇÃO DAS.
2. Mais propriamente, entende-se por esta expressão a divisão das atividades valorativas. Nesse sentido,
Kant distinguiu o juízo determinante (propriamente intelectual) do juízo reflexivo (teleológico ou
estético). Definindo em geral o juízo como "faculdade de pensar o particular como contido no geral",
Kant considera que no juízo determinante é dado o geral (a regra, o princípio, a lei), cabendo subsumirlhe o particular (o múltiplo sensível), enquanto no juízo reflexivo é dado o particular (as coisas naturais)
cabendo encontrar o geral ao qual ele está subsumido, ou seja, o fim no qual as coisas são reintegráveis
mediante um conceito (juízo teleológico) ou imediatamente, sem conceito (juízo estético) (Crít. do Juízo,
Intr., § IV). Essas distinções pertencem efetivamente ao plano de divisão dos juízos, como atividades
valorativas, enquanto as demais distinções que Kant faz, como entre juízos analíticos e sintéticos ou as
que se encontram na tábua dos juízos que ele dá no § 9 da Crítica da Razão Pura, pertencem
ao plano das proposições. A relutância do pensamento contemporâneo em estabelecer distinções rígidas
entre as atividades humanas impede que se estabeleçam distinções nítidas entre as diversas atividades
judicativas. Fala-se certamente de um juízo estético, que é diferente do juízo intelectual ou do juízo
moral, mas fala-se analogamente de juízo econômico, jurídico, etc, sem que isso implique a diversidade
ou a respectiva autonomia de diferentes faculdades de juízo. Em geral, pode-se dizer que uma atividade
judicativa assume o nome do campo específico a que ela se refere, de tal forma que é possível falar de
juízos atinentes a campos especialíssimos, que obviamente se recusam a ser considerados "formas" ou
"categorias" espirituais.
JUSNATURALISMO. Teoria do direito natural configurada nos sécs. XVII e XVIII a partir de Hugo
Grócio (1583-1645), também representada por Hobbes (1588-1679) e por Pufendorf (1632-94). Essa
doutrina, cujos defensores formam um grande contingente de autores dedicados às ciências políticas,
serviu de fundamento à reivindicação das duas conquistas fundamentais do mundo moderno no campo
político: o princípio da tolerância religiosa e o da limitação dos poderes do Estado. Desses princípios
nasceu de fato o Estado liberal moderno (v. LIBERALISMO). O J. distingue-se da teoria tradicional do
direito natural por não considerar que o direito natural represente a participação humana numa ordem
universal perfeita, que seria Deus (como os antigos julgavam, p. ex., os estóicos) ou viria de Deus (como
julgaram os escritores medievais), mas que ele é a regulamentação necessária das relações humanas, a que
se chega através da razão, sendo, pois, independente da vontade de Deus. Assim, o J. representa, no
campo moral e político, reivindicação da autonomia da razão que o cartesianismo afirmava no campo
filosófico e científico (v. DIREITO).
JUSTIÇA (gr. ôiKouoaúvri; lat. Justitia; in. Justice, fr. Justice, ai. Gerechtigkeit; it. Giusti-zià). Em
geral, a ordem das relações humanas ou a conduta de quem se ajusta a essa ordem. Podem-se distinguir
dois significados principais: le
J. como conformidade da conduta a uma norma; 2- J. como eficiência de
uma norma (ou de um sistema de normas), entenden-do-se por eficiência de uma norma certa capacidade
de possibilitar as relações entre- os homens. No primeiro significado, esse conceito
JUSTIÇA
594
JUSTIÇA
é empregado para julgar o comportamento humano ou a pessoa humana (esta última, com base em seu
comportamento). No segundo significado, é empregado para julgar as normas que regulam o próprio
comportamento. A problemática histórica dos dois conceitos, ainda que freqüentemente interligada e
confundida, é completamente diferente.
1
Q
No primeiro significado, a J. é a conformidade de um comportamento (ou de uma pessoa em seu
comportamento) a uma norma; no âmbito deste significado, a polêmica filosófica, jurídica e política versa
apenas sobre a natureza da norma que é tomada em exame. Esta pode ser de fato a norma natural, a norma
divina ou a norma positiva. Aristóteles diz: "Uma vez que o transgressor da lei é injusto, enquanto é justo
quem se conforma à lei, é evidente que tudo aquilo que se conforma à lei é de alguma forma justo: de
fato, as coisas estabelecidas pelo poder legislativo conformam-se à lei e dizemos que cada uma delas é
justa" (Et. nic, V, 1, 1129 b 11). Neste sentido, segundo Aristóteles, a J. é a virtude integral e perfeita:
integral porque compreende todas as outras, perfeita porque quem a possui pode utilizá-la não só em
relação a si mesmo, mas também em relação aos outros (Ibid., 1129 b 30). Mas também as duas formas da
J. particular que Aristóteles enumera, que são a distributiva (v. DiSTRiBunvo) e a corretiva ou comutativa
(v. COMUTATIVO), consistem em conformar-se a normas, mais precisamente às que prescrevem a
igualdade entre os méritos e as vantagens ou entre as vantagens e as desvantagens de cada um. A
definição de J. feita por Ulpiano, adotada pelos jurisconsultos romanos (Dig., I, 1, 10) como "vontade
constante e perpétua de dar a cada um o que é seu" é outra maneira de expressar a noção de justiça como
conformidade à lei, visto pressupor que o que cabe a cada um já está determinado por uma lei. Kelsen
tachou essa definição de tautológica por não conter indicação alguma sobre o que é o "seu" de cada um
(.General Theory of Law and State, 1945, I, I, A, c, 2); na realidade, prescreve apenas a conformidade a
uma lei ou regra que estabeleça exatamente aquilo que cabe a cada um. A noção de conformidade à lei
como definição de J. é uma constante mesmo naqueles que se opõem ao conceito tradicional de justiça.
Assim, Hobbes afirma que a J. consiste simplesmente na manutenção dos pactos, e que, portanto, onde
não há Estado como poder coercitivo que assegure a manutenção dos pactos, não existe J. nem injustiça (Leviath., I, 15). Mas também neste caso a J.
não passa de conformidade a uma regra, mesmo em se tratando de uma regra simplesmente pactuada.
Mesmo a interpretação feita por Kant da definição romana reduz a J. ao respeito a uma norma já
estabelecida: "Se aquela fórmula fosse traduzida por 'dar a cada um o que é seu', estaria dizendo um
absurdo, pois não é possível dar a alguém o que já tem. Para ter sentido deve ser assim expressa: inclui-se
numa sociedade em que a cada um possa ser garantido o que é seu contra qualquer outro" (Lex justitiaê)
(Met. der Sitten, I, Divisão da doutr. do Dir., A). Por outro lado, também aqueles que não vêem no
conceito de J. nada mais além da tentativa de justificar determinado sistema de valores, pretendendo
expungi-lo da teoria científica do direito, utilizam ou adaptam a mesma noção de justiça. Kelsen diz: "J.
significa a manutenção de uma ordenação positiva mediante sua conscienciosa aplicação. Ela é J.
segundo o direito. A proposição segundo a qual o comportamento de um indivíduo é justo ou injusto no
sentido de ser jurídico ou antijurídico significa que seu comportamento corresponde ou não à norma
jurídica que é pressuposta como válida pelo sujeito judicante por pertencer a uma ordenação jurídica
positiva" (General Theory, cit., I, I, A, c, 5, trad. it, p. 14). Esse conceito de J. não está submetido às
conseqüências resultantes das diferenças, mesmo as mais substanciais, entre as doutrinas do direito. Quer
se entenda a norma como norma de direito natural, quer como norma moral ou de direito positivo, a J. é
sempre considerada conformidade do comportamento à norma.
2° No segundo conceito, a J. não se refere ao comportamento ou à pessoa, mas à norma; expressa a
eficiência da norma, sua capacidade de possibilitar as relações humanas. Neste caso, obviamente, o objeto
do juízo é a própria norma, e desse ponto de vista as diferentes teorias da J. são os diferentes conceitos do
fim em relação ao qual se pretende medir a eficiência da norma como regra para o comportamento
intersubjetivo. Platão foi o primeiro a insistir na J. como instrumento. Sócrates pergunta a Trasímaco:
"Acreditas por acaso que uma cidade, um exército, um grupo de bandidos ou de ladrões, ou qualquer
outro amontoado de pessoas que se ponha de acordo para fazer algo de injusto, poderia chegar a fazer
alguma coisa
JUSTIÇA 595
JUSTIÇA
« os seus integrantes cometessem injustiça uns •para com os outros? — Não, de certo, respon-■deu
Trasímaco. — E se não cometessem injustiça, não seria melhor? — Seguramente. — A razão disto,
Trasímaco, é que a injustiça dá origem a ódios e lutas entre os homens, enquanto ij. produz acordo e
amizade" {Rep., 351 c-d). Neste trecho a J. é desvinculada de qualquer objetivo que tenha valor
privilegiado: ela não passa de condição para possibilitar a convivência e a ação conjunta dos homens:
condição que vale para qualquer comunidade humana, mesmo para um grupo de bandidos. Da mesma
forma, no mito exposto a Protágoras no diálogo homônimo, Platão diz que, enquanto os homens não
tiveram a arte da política, que consiste no respeito recíproco e na J., nãq puderam reunir-se em cidades e
eram destruídos pelas feras. "Apesar de ajudá-los a obter alimento, a arte mecânica não lhes era suficiente
para combater as feras porque eles não possuíam a arte política, de que faz parte a arte da guerra" {Prot.,
322 b-c). Com mais freqüência, porém, filósofos e juristas não mediram a J. das leis tomando como
referência a sua eficiência geral no que diz respeito às possibilidades de relações humanas, mas a sua
eficiência em garantir este ou aquele objetivo considerado fundamental, ou seja, como valor absoluto.
Não faltou portanto quem julgasse impossível definir a J. nesse sentido, limitando-se a propor a exigência
genérica de que, para ser justa, uma norma deve adequar-se a um sistema de valores qualquer (CH.
PERELMAN, De Ia justice, 1945, trad. it., 1959). Todavia, os fins aos quais se recorreu com mais
freqüência são: d) felicidade; ti) utilidade; c) liberdade; d) paz.
d) Foram os filósofos que mais recorreram à felicidade. Aristóteles diz: "As leis promulgadas sobre
qualquer coisa visam à utilidade comum a todos ou à utilidade de quem se destaca pela virtude ou por
outra forma; desse modo, com uma só expressão definimos como justas as coisas que propiciam ou
mantêm a felicidade ou parte dela na comunidade política" {Et. nic., V. 1, 1129 b 4). A identificação do
bem comum com a bem-aventurança eterna é um caso particular dessa doutrina (S. TOMÁS, De regimine
principum, III, 3).
ti) Já na antigüidade (p. ex., para os sofistas e para Carnéades) a J. foi identificada com a utilidade. No
mundo moderno, Hume impôs eficazmente esse ponto de vista: "A utilidade e o fim da J. é propiciar a
felicidade e a segurança, mantendo a ordem na sociedade" {Inq. Cone. Morais, III, 1). A redução da J. à utilidade, e não à
felicidade, tem a característica de eliminar o caráter de fim último ou valor absoluto, levando a considerála como solução (às vezes a menos pior) de determinadas situações humanas. É o que pensa Hume,
corrigindo nesse aspecto o jusnaturalismo racionalista de Grócio, que à J. atribuía valor absoluto, e às
normas que a garantem, absoluta racionalidade, pois para ele "as relações mútuas de sociedade"
possibilitadas por tais normas eram fins em si mesmas, porque objeto último de desejo {De jure belli
aepacis, Intr., § 16).
c) Foi Kant quem identificou J. e liberdade. "A tarefa suprema da natureza em relação à espécie humana"
é uma sociedade em que a liberdade sob leis externas esteja unida, no mais alto grau possível, a um poder
irresistível, o que é uma consütuição civil perfeitamente justa ildee zu einer allgemeinen Geschichte in
weltbürgerlicher Absicht, 1784, Tese V). Segundo esse ponto de vista, o iluministno é a condição que
derivará da progressiva eliminação dos obstáculos opostos à liberdade da espécie humana (Jbid., Tese
VIII).
d) Por fim, além da felicidade, da utilidade e da liberdade, os filósofos tomaram freqüentemente a paz
como medida ou critério da J. de uma ordenação normativa. Esse parâmetro foi introduzido por Hobbes:
para ele, é justa a ordenação que garanta a paz, afastando os homens do estado de guerra de todos contra
todos, em que vivem no "estado natural". De fato, para Hobbes a primeira lei da natureza, a primeira das
normas que permite afastar o homem do estado de guerra é a que prescreve perseguir a paz. "Para a
igualdade de forças e de todas as outras faculdades humanas, os homens que vivem no estado natural, isto
é, no estado de guerra, não podem pretender que sua conservação seja duradoura. Por isso, tender para a
paz enquanto brilhar alguma esperança de obtê-la, e só recorrer à guerra quando isso não for possível, é o
primeiro ditame da boa razão, a primeira lei da natureza" {De eive, I, § 15). No séc. XX, Kelsen contrapôs
à J. como "ideal irracional" a paz como medida empírica da eficiência das leis: "Uma teoria pode fazer
uma afirmação com base na experiência: só uma ordenação jurídica que não satisfaça aos interesses de
uns em detrimento de outros, mas que chegue a uma conciliação entre os interesses opostos, que reduza
ao mínimo seus
JUSTIÇA
596
JUSTIFICAÇÃO
possíveis atritos, pode contar com uma existência relativamente duradoura. Só uma ordenação dessa
espécie estará em condições de assegurar a paz social em bases relativamente permanentes a todos os que
se lhe submetem. Embora o ideal de J. em seu significado originário seja totalmente diferente do ideal de
paz, existe nítida tendência a identificar os dois ideais ou ao menos a substituir o ideal de J. pelo de paz"
{General Theory, cit., I, I, A, c, 4; trad. it., p. 14).
Essa tendência, partilhada por muitos que julgam irrealizável o ideal de J. como felicidade ou liberdade,
tende a julgar a eficiência das normas com base em sua funcionalidade negativa, ou seja, em sua
capacidade de evitar conflitos. Sem dúvida, conforma-se mais ao espírito positivo de uma teoria do direito
que pretenda ter como objeto nada mais do que a técnica da coexistência humana. Mas na realidade o
jusnaturalismo moderno, a partir de Grócio, já havia alcançado, pelo menos nesse aspecto, uma
generalização maior, exigindo que as normas do direito natural servissem tanto para a paz quanto para a
guerra, e que pudessem, pelo menos em parte, valer para qualquer condição ou situação humana.
Portanto, do ponto de vista da teoria geral do direito, mesmo a paz pode mostrar-se como objetivo restrito
demais para julgar da eficiência (isto é, da J.) das normas do direito. A guerra, assim como os conflitos
individuais e sociais, as competições, etc, constituem situações humanas recorrentes, mesmo que
indesejáveis; portanto, um juízo objetivo e sem preconceitos sobre as normas de direito deve medir sua
eficiência também com relação a tais situações e às possibilidades de superá-las. Na realidade, é possível
aduzir apenas dois critérios como fundamento de um juízo objetivo sobre ordenações normativas, visto
que só eles valem não como fins, absolutos ou relativos, mas como condições de validade de uma
ordenação qualquer. O primeiro, já bastante conhecido na tradição filosófica, é o de igualdade como
reciprocidade, segundo o qual cada um deve esperar dos outros tanto quanto os outros esperam dele. Na
maioria das vezes em que a tradição filosófica definiu a J. como igualdade (o que fez com freqüência a
partir dos pitagóricos), pretendeu ressaltar esse mesmo caráter da J., o de reciprocidade (cf. p. ex.,
HOBBES, Leviath., I. 14; De eive, III, § 6). O segundo critério pode ser deduzido do caráter fundamental
que garante a
validade do saber científico no mundo moderno: a autocorrigibilidade. Assim como o conhecimento
científico se define como tal só quando organizado com vistas à sua própria verificação e, portanto, à sua
autocorrigibilidade, também uma ordenação normativa define-se como tal (ou seja, consegue ser eficiente
como ordenação) só quando é organizada com vistas à sua eventual autocorreção. Os dois critérios
citados, com as variações devidas, também podem integrar-se. Podem conferir à palavra J. um significado
tão distante do ideal transcendente e da aspiração sentimental quanto da justificação interessada das
ordenações em vigor. Não se deve esquecer também que a mais eficaz e radical defesa de determinada
ordenação ne varietur não foi feita pela demonstração, ou tentativa de demonstração da J. de tal
ordenação, mas simplesmente ignorando-se e eliminando-se a própria noção de justiça. De fato, é isso o
que acontece na filosofia do direito de Hegel, que considera o Estado como Deus realizado no mundo e
nega até a possibilidade de discutir a ordenação jurídica sob qualquer aspecto. Hegel dizia: "O direito é
algo sagrado em geral porque é a existência do Conceito Absoluto" (Fil. do dir., § 30). O emprego do
conceito de J. no segundo significado é o exercício do juízo, que deve ser possível para todos os homens
livres, sobre as ordenações normativas que os regem. Que hoje esse juízo não pode ser exercido com base
em noções tautológicas ou ideais quiméricos é fato reconhecido. Mas também é fato que ele pode e deve
tornar-se objeto de uma disciplina específica que o torne positivo e o mais rigoroso possível, sem subtraílo às suas condições empíricas. Desse forma, o conceito de J. ainda pode reassumir a função que sempre
teve: a de instrumento de reivindicação e de libertação. Para a distinção das várias espécies de J., v. os
verbetes: ATRIBUTIVA, JUSTIÇA; COMUTATIVO; DISTRIBUTTVO.
JUSTIFICAÇÃO (in. Justification; fr. Justi-fication; ai. Rechtfertigung; it. Giustificazione). Este termo,
de origem teológica, foi introduzido na filosofia como sinônimo da dedução kantiana (v. DEDUÇÃO
TRANSCENDENTAL). A J. concerne à questão do direito de usar certos conceitos. Essa questão é
fundamento da postura crítica da filosofia kantiana. Kant dizia: "Todos os metafísicos estão solene e
legitimamente suspensos das suas funções enquanto não responderem satisfatoriamente à pergunta:
JUSTIFICAÇÃO
597
JUSTIFICAÇÃO
'como são possíveis os conhecimentos sintéticos apriori?', pois só essa resposta pode autorizá-los a falar
em nome da razão pura" (Prol., § 5). Autorização e legitimação são os termos que Kant emprega para
exprimir a exigência de J. Segundo Kant, o fato de um conceito ser empregado não é J. do direito de
empregá-lo. Em face dos conceitos é preciso distinguir, como fazem os juristas, uma questão de fato e
uma questão de direito (quid iuris). A última é, precisamente, o objeto da J. ou dedução. A propósito,
Kant distingue uma J. empírica, uma J. transcendental e uma J. metafísica. A dedução empírica consiste
em mostrar de que modo se chega a um conceito por meio da experiência e da reflexão sobre ela. A
dedução transcendental consiste em mostrar de que modo os conceitos apriori podem referir-se aos
objetos. A dedução metafísica consiste em mostrar "a origem apriori das categorias em geral, mediante
seu perfeito acordo com as funções lógicas do pensamento" (Crít. R. Pura, § 13, 26). Para Kant a
verdadeira J. de um conceito é a dedução transcendental, que consiste em mostrar a possibilidade da
referência do conceito a um objeto empírico. Assim sendo, Hegel mudou o conceito de J. quando a
identificou com a exigência de mostrar a necessidade do conceito. "A razão subjetiva" — disse ele —
"exige
a sua satisfação ulterior no que diz respeito à forma, e essa forma é, em geral, a necessidade" (Ene, § 9). E
acrescenta: "Esse pensamento do modo de conhecimento, que é conhecimento filosófico, considerado
tanto sob o aspecto de sua necessidade quanto de sua capacidade de conhecer os objetos absolutos,
precisa ser justificado. Mas a própria J. é um conhecer filosófico que, por isso, se realiza só dentro da
filosofia" (Ibid., § 10). Portanto, o conceito de J. dá lugar a duas alternativas, segundo a modalidade que
se exija dela: ls
a demonstração da necessidade de um conceito, ou seja, a demonstração de que ele não
pode não ser e de que só pode ser do modo como é; 2Q o esclarecimento da possibilidade de um conceito
em relação a um campo determinado, ou seja, a determinação da possibilidade de uso do conceito. A
filosofia contemporânea inclina-se a admitir e a usar esse segundo significado do termo, o único que não
depende de um ponto de vista idealista, considerando que um conceito é justificado nos dois casos
seguintes:
a) quando seu uso em contexto formal (matemático ou lógico) não comporte contradição:
b) quando o conceito possa referir-se a um objeto verificável (como ocorre nos contextos reais, isto é,
nos campos dos conhecimentos empíricos).
K
K. Na lógica de Lukasiewicz, a letra K é usada para indicar a conjunção mais comumente simbolizada
com um ponto ".". Cf. A. CHURCH, Introduction to Mathematical Logic, n
B
91.
KANTISMO. V. CRITICISMO.
KENNETICO (in. Kennetic). Neologismo cunhado por A. F. Bentley e tirado do escocês ken ou kenning,
que significa "conhecer", para marcar a indagação transacional Unquiry into Inquiries, 1954) (v.
TRANSAÇÃO).
L
L. Posposto ou anteposto a termos como conceito, verdade, etc, significa lógico. Em geral, como diz
Carnap, um L-termo, p. ex., "L-verdadeiro", aplica-se toda vez que o termo radical correspondente, p. ex.,
"verdadeiro", se aplique com base em razões simplesmente lógicas, em oposição a razões de fato
(Introduc-tion to Semantics, § 14).
LAICISMO (in Laicism-, fr. Laicisme; it. Laicismó). Com este termo entende-se o princípio da
autonomia das atividades humanas, ou seja, a exigência de que tais atividades se desenvolvam segundo
regras próprias, que não lhes sejam impostas de fora, com fins ou interesses diferentes dos que as
inspiram. Esse princípio é universal e pode ser legitimamente invocado em nome de qualquer atividade
humana legítima, entendendo-se por "legítima" toda atividade que não obste, destrua ou impossibilite as
outras. Portanto, o L. não pode ser entendido apenas como reivindicação de autonomia do Estado perante
a Igreja, ou melhor, perante o clero, pois, como sua história demonstra, já serviu à defesa da atividade
religiosa contra a política e ainda hoje, em muitos países, tem essa finalidade; também tem o fim de
subtrair a ciência ou, em geral, a esfera do saber às influências estranhas e deformantes das ideologias
políticas, dos preconceitos de classe ou de raça, etc.
O Papa Gelásio I, que, no fim do séc. V, expunha num tratado e em algumas cartas a teoria denominada
"duas espadas", foi provavelmente o primeiro a recorrer explicitamente ao princípio do L., desconhecido
na Antigüidade clássica porque esta não conheceu conflitos de princípios entre as várias atividades
humanas. A teoria das duas espadas, ou seja, de dois po-deres distintos, ambos derivados de Deus, (o do
papa e o do imperador), servia a Gelásio I
para reivindicar a autonomia da esfera religiosa em relação à política. Durante muitos séculos foi doutrina
oficial da Igreja e ainda no séc. XII o canonista Estêvão de Tournai expressava-a com extrema clareza
(Summa decretorum, Intr.). O princípio expresso nesta doutrina continua o mesmo quando os papéis se
invertem ou essa doutrina é invocada para defender o poder político contra o eclesiástico, como faz João
de Paris em seu tratado Sobre o poder ré-gio e papal (1302-3), como fez Dante alguns anos mais tarde,
em De monarchia; e como fizeram Marcílio de Pádua no Defensor pacis (1324) e Guilherme de Ockham
em suas obras políticas. Certamente as doutrinas políticas e eclesiásticas desses escritores eram diferentes
e vez por outra opostas, mas está claro que a teoria dos dois poderes nada mais é que um apelo à
autonomia das respectivas esferas de atividade e que a força do L. não está no parti-cularismo das
doutrinas, mas no reconhecimento de sua autonomia, que é o princípio do L. Esse princípio tornou-se
exigência fundamental na vida civil nas comunas italianas, francesas, belgas e alemãs (cf. SALVEMINI,
Studi storici, Florença, 1901; PIRENNE, Les villes du Moyen Âge, Bruxelas, 1927; DE LAGARDE, La
naissance de Vesprit laique, ou déclin du Moyen Age. Louvain-Paris, 3a
ed., 1956); o Renascimento e o
Iluminismo não passam de duas etapas sucessivas de seu predomínio crescente na vida política e civil do
Ocidente.
Mas, como se disse, o princípio do L. não vale somente nas relações entre a atividade política e a
religiosa. Na primeira metade do séc. XIV, Ockham reivindicava com energia a autonomia da atividade
filosófica. A propósito da condenação de algumas proposições de S. Tomás pelo Bispo de Paris, em 1277,
ele dizia: "As asserções, principalmente filosóficas, que não
LAICISMO
600
LATENTE
concernem à teologia não devem ser condenadas ou proibidas, pois nelas qualquer um deve ser livre para
dizer livremente o que lhe apraz" {Dialogus inter magistrum et discipulum de imperatorum
etpontificumpotestate, I, II, 22). Essa foi a primeira e certamente uma das mais enérgicas afirmações do
princípio do L. em filosofia, e deve-se a um frade franciscano do séc. XIV. No séc. XMI Galilei afirmava
o mesmo princípio em relação à ciência, opondo-se aos limites e obstáculos que a autoridade eclesiástica
pudesse impor à ciência. A Sagrada Escritura e a natureza — dizia ele — procedem ambas do Verbo
Divino, mas, enquanto a palavra de Deus teve de adaptar-se ao limitado entendimento dos homens, a
natureza é inexorável e imutável, e nunca transgride os termos das leis que lhe foram impostas, pois
pouco lhe importa se as suas razões recônditas são compreendidas ou não pelos homens: por isso, "os
efeitos naturais que a sensata experiência nos ponha diante dos olhos ou que as necessárias
demonstrações nos levem a concluir não devem por razão alguma ser postos em dúvida nem condenados,
em nome de trechos da Escritura cujas palavras tenham aparência diferentes" {Lett. alia Grand. Cristina,
em op., V, p. 316). Galilei reivindicava assim a autonomia da ciência, nos mesmos termos em que
Ockham reivindicara a autonomia da filosofia. O princípio do L. foi fundamento da cultura moderna e é
indispensável à vida e ao desenvolvimento de todos os seus aspectos. Os únicos adversários autênticos do
L. são as correntes políticas totalitárias, que pretendem apoderar-se do poder político e exercê-lo com o
único objetivo de conservá-lo para sempre. Tais correntes pretendem de fato assenhorear-se do corpo e da
alma do homem, para impedir qualquer crítica ou rebeldia. Embora o Romantismo do séc. XIX haja
encorajado sua persistência ou revivescên-cia, hoje essas correntes sofrem a oposição da mesma situação
objetiva que exige, em qualquer campo, o desenvolvimento do saber positivo: esse saber, por sua vez,
exige a autonomia de suas regras, o que é L. Por outro lado, as correntes políticas totalitárias podem ser
facilmente reconhecidas exatamente por sua atitude em relação ao princípio do L.: quer se apoie numa
confissão religiosa, quer se apoie numa ideologia racista, classista ou de qualquer outra espécie, tendem,
em primeiro lugar, a diminuir e em última instância a destruir a autonomia das esferas espirituais, assim
como tendem a
diminuir e a destruir os direitos de liberdade dos cidadãos. No plano das inter-relações das atividades
humanas, o L. desempenha o mesmo papel da liberdade no plano das inter-relações humanas: é o limite
ou a medida que garante a essas atividades a possibilidade de organizar-se e desenvolver-se, assim como a
liberdade é o limite e a medida que garante às relações humanas a possibilidade de manter-se e
desenvolver-se.
Considerado em sua estrutura conceituai e histórica, o princípio do L. não tem qualquer caráter de
antagonismo a qualquer forma de religiosidade, nem mesmo ao catolicismo. Em primeiro iugar, ele
freqüentemente foi útil aos católicos na defesa da autonomia de sua atividade, constituindo ainda hoje a
política oficial do catolicismo nos países em que ele não tem partido político à disposição, como p. ex.
nos países anglo-saxões. Em segundo lugar, é interesse dos católicos, como de todos, que a administração
do Estado, as ciências, a cultura, a educação e, em geral, as esferas da atividade humana sejam
organizadas e regidas por princípios que possam ser reconhecidos por todos, que sejam independentes da
inevitável disparidade de crenças e ideologias e que, por isso, tornem eficazes e fecundas as atividades
que neles se fundem. É bastante óbvio que as administrações políticas que favorecem certos grupos de
cidadãos em prejuízo de outros, em vista de suas crenças religiosas, são simplesmente ineficientes e
corruptas, não podendo reivindicar méritos "religiosos". Da mesma forma, os poderes judiciários que não
aplicam com escrúpulo e eqüidade a lei vigente do Estado, não oferecem garantias a ninguém, porque
também são ineficientes e corruptos. A ciência que serve a interesses de partidos, crenças e ideologias não
pode ter méritos de nenhum tipo, não é uma ciência. Poderia ser comparada a uma medicina que tomasse
como critério de diagóstico, prognóstico e cura os desejos do paciente ou de outras pessoas; uma
medicina assim estruturada seria um caso de ciência "não laica", clerical ou partidária. O L. não atende ao
interesse deste ou daquele grupo político, religioso ou ideológico, mas ao interesse de todos. Contanto
que o interesse de todos seja o desenvolvimento harmônico das atividades que asseguram a sobrevivência
do homem no mundo.
LAMARQUISMO. V. EVOLUÇÃO.
LATENTE (lat. Latens). F. Bacon chamava de L. o processo natural que vai da causa efi-
IATITUDINÂRIO
601
LEI
ciente da matéria sensível à forma, ou seja, o processo de constituição da forma (Nov. Org., H, 1). Os
processos psíquicos latentes dos quais falava a psicologia do século passado hoje são denominados
inconscientes ou subconscientes.
IATITUDINÂRIO (in Latitudinarian-, fr. Latitudinaire, ai. Latitudinarier, it. Latitudina-rió). Kant
denominou com este termo aquele que, em alguns casos, admite a neutralidade moral, ou seja, a
existência de atos ou caracteres humanos indiferentes do ponto de vista moral: "Estes são os L. da
neutralidade, para quem o homem não é bom nem mau, podendo ser denominados indiferentistas, ou os
L. da coalizão, para quem o homem é ao mesmo tempo bom e mau, podendo ser denominados
sincretistas." O oposto de L. é rigorista, ou seja, aquele que não admite neutralidade moral alguma
(Religion, I, Observação). Na igreja inglesa do séc. XVII, o substantivo indicará os defensores de uma
interpretação mais aberta dos dogmas tradicionais.
LAXISMO. V. RIGORISMO.
LEALDADE (in Loyalty). Dedicação voluntária, prática e completa de uma pessoa a uma causa. Foi
assim que F. Royce a definiu em seu livro Filosofia da L. (1908), assumindo-a como princípio geral da
ética. A L. inclui solidariedade para com os outros indivíduos, ou melhor, para com a comunidade de
indivíduos, e contém o critério para julgar o valor das causas, visto que permite reconhecer como
inaceitável uma causa que impossibilite ou negue a L. alheia. Portanto, segundo Royce, a L. à L. é o
critério da vida moral.
LEGALIDADE (in Legality; fr. Légalité; ai. Legalitãt, Gesetzlichkeit; it. Legalitã). Conformidade de
uma ação à lei. Kant distinguiu a L. assim entendida da moralidade propriamente dita: "A conformidade
ou desconformidade pura de uma ação em relação à lei, sem referência ao móbil da ação, denomina-se L.
(conformidade à lei); quando, porém, a idéia do dever derivada da lei é ao mesmo tempo móbil da ação,
tem-se a moralidade (doutrina moral)" (Met. derSitten, Intr., § III; cf. Crít. R. Prãt, I, cap. III). Com forma
mais atenuada, essa distinção fora introduzida por S. Tomás, para distinguir a norma jurídica da norma
moral (v. DIREITO); Kant utiliza-a com a mesma finalidade em Metafísica dos costumes.
LEGALISMO (in Legalism; fr. Légalisme; ai. legalismus; it. Legalismo). Atitude de observância literal
da lei. Na moral, é o mesmo que
rigorismo (v.). Fora da moral, consiste em dar valor excessivo às prescrições ou aos procedimentos
formais.
LEI (gr. vóu.oç; lat. Lex; in Law-, fr. Loi; ai. Gesetz; it. Leggè). Uma regra dotada de necessidade,
entendendo-se por necessidade: 1Q
impossibilidade (ou improbabilidade) de que a coisa aconteça de outra
forma; ou 2B
uma força que garanta a realização da regra. A noção de L. é distinta da noção de regra e de
norma. A regra (que é termo generalíssimo) pode ser isenta de necessidade; são regras não só as L.
naturais ou as normas jurídicas, mas também as prescrições da arte ou da técnica. Norma é uma regra que
concerne apenas às ações humanas e não tem por si valor necessitante: portanto não são normas as leis
naturais e as regras técnicas, e as normas, p. ex. de natureza moral, não são coercitivas como as leis
jurídicas. Desse ponto de vista, há apenas duas espécies de L.: as L. naturais e as L. jurídicas. Como a
noção de L. jurídica foi analisada no verbete DIREITO, resta-nos analisar a noção de L. natural. Podemos
distinguir as seguintes interpretações fundamentais: V L. como razão; 2e
L. como uniformidade; 3a
L.
como convenção; 42
L. como relação simbólica.
l
e
A noção de L. como razão surgiu na Grécia antiga, com a transposição para o mundo natural do
conceito de justiça ou de ordem que havia sido elaborado para o mundo humano (cf. JAEGER, Paidéia, I,
cap. 6; trad. it., I, pp. 212 ss.). Anaximandro foi o primeiro a transpor a noção de dike do mundo da polis
para o mundo da natureza, entendendo o vínculo causai de nascimento e morte das coisas como uma L.
que rege uma demanda judiciária, em que todos os seres — diz ele — "devem sofrer as conseqüências de
sua injustiça na ordem do tempo" (Pr. 9, Diels). Heráclito, por sua vez, concebia essa L. como a própria
razão ou Logos: dela "se alimentam todas as L. humanas" (Fr. 114, Diels). Conquanto Platão (cf. Tim., 83
e) e Aristóteles (De caei, I, 1, 268 a 13) usem só excepcionalmente a expressão "L. natural", foi graças a
eles que o conceito de racionalidade da natureza e de expressibilidade dessa racionalidade em proposições
universais e necessárias acabou prevalecendo na história da filosofia. Lucrécio utilizou a expressão "pacto
da natureza" (foedus naturae: De rer. nat., V, 57, 924; VI, 906), e o conceito estóico de destino ou
providência é expressão do mesmo ponto de vista (DIÓG. L., VII, 149). Plotino admitia,
LEI
602
LEI
inclusive para as coisas que escapam ao destino, uma lei que dimana diretamente do Intelecto Divino
{Enn., IV, 3, 15). A subjetivação das L. da natureza, realizada por Kant na tentativa de ver a "fonte" delas
no intelecto, mais precisamente nas formas a priori do intelecto (categorias), não muda muito o conceito
de L. natural que, também ele, continua sendo expressão da racionalidade da natureza, ainda que de uma
racionalidade introduzida na natureza (como fenômeno) pelo próprio intelecto. Kant diz: "As L. naturais,
se consideradas como princípios do uso empírico do intelecto, possuem ao mesmo tempo cunho de
necessidade e, portanto, pelo menos a presunção de uma determinação que derive de princípios válidos
em si, a priori e anteriormente a qualquer experiência. Todas as L. da natureza, sem distinção, estão
sujeitas aos princípios superiores do intelecto e aplicam tais princípios a casos particulares do fenômeno.
Só esses princípios dão o conceito que contém a condição e, por assim dizer, o expoente de uma regra
geral, mas a experiência dá o caso que está submetido à regra" (Crit. R. Pura, Anal. dos princ, cap. II, sec.
3). Schelling interpretava a formulação das L. naturais como a transfiguração progressiva da natureza em
racionalidade: "A ciência da natureza chegaria ao auge da perfeição se conseguisse espiritualizar
perfeitamente todas as L. naturais em L. da intuição e do pensamento. Os fenômenos (o material) devem
desaparecer inteiramente, ficando apenas as L. (o formal). Assim, acontece que, quanto mais a L.
extrapola o campo da natureza, tanto mais se dissipa o véu que a envolve, os fenômenos tornam-se mais
espirituais e por fim desaparecem totalmente. Os fenômenos ópticos nada mais são que uma geometria
cujas linhas são traçadas por meio da luz, e mesmo essa luz já tem materialidade duvidosa" {System des
transzendentalen Idealis-mus, 1800, Intr. § 1, trad. it., pp. 8-9). Pode-se dizer que toda interpretação
racionalista da ciência adota até certo ponto essa tese de Schelling. Desse ponto de vista, a L. é apenas
expressão da racionalidade da natureza, e sua formulação por parte da ciência tem o objetivo de reduzir a
natureza à razão.
2
2
A concepção de L. natural como relação constante entre os fenômenos foi proposta pela primeira vez
por Hume. Para ele, a L. natural é resultado de "uma experiência fixa e inalterável" {lnq. Cone. Underst.,
X, 1): a experiência da "conjunção constante de objetos semelhantes",
à qual se reduz a relação causai. A conexão habitual e constante entre eventos diversos autoriza a falar de
causalidade, permite a previsão de eventos futuros e exclui o milagre {Lbid., VII, 2). Essa concepção era
adotada por Comte e, com ele, pela ciência positivista. "O caráter fundamental da filosofia positiva" —
dizia Comte — "é considerar todos os fenômenos como sujeitos a L. naturais invariáveis, cuja descoberta
precisa e cuja redução ao mínimo número possível constituem o objetivo de todos os nossos esforços."
Essas L. não consistem em expor "as causas geradoras dos fenômenos", mas só expressam aquilo que
interliga os fenômenos mediante "relações normais de sucessão e de semelhança" (Cours dephil.positive,
I, liç. I, § II). Do mesmo ponto de vista Stuart Mill considerava as L. como casos especiais da
uniformidade da natureza. "As várias uniformida-des, quando verificadas por aquilo que se considera uma
indução suficiente, são denominadas, na linguagem comum, L. da natureza. Cientificamente falando, essa
expressão é empregada em sentido mais restrito para designar as uniformidades que foram reduzidas à sua
expressão mais simples" {Logic, III, 4, § 1). Essa concepção dominou todo o positivismo clássico e só
entrou em crise com o reconhecimento do caráter econômico das L. naturais, efetuado por Mach.
3
Q
O conceito de L. natural como convenção nasce da função econômica que Mach atribuíra ao
conhecimento científico, ao afirmar o caráter subjetivo das L. naturais. Só os nossos conceitos e a nossa
intuição — diz ele — prescrevem L. à natureza; "as L. naturais são as restrições que nós, guiados pela
experiência, prescrevemos à nossa expectativa dos fenômenos" {Erkenntniss und Irrtum, cap. 23; trad. fr.,
p. 368). O progresso da ciência leva à crescente restrição das possibilidades de previsão, ou seja, à sua
crescente determinação e precisão. Esse reconhecimento do caráter econômico ou utilitário da ciência foi
sobejamente encorajado pela filosofia de Bergson e pelo pragmatismo. A primeira, atribuindo à
inteligência apenas a função vital de fabricar objetos e de orientar-se no mundo natural, transformava a
ciência, que é a criação da inteligência, em "auxiliar da ação" (BERGSON, La penseé et le mouvant, 3
a ed.,
1934, p. 158) e não podia atribuir às L. científicas qualquer validade teorética. O pragmatismo, por sua
vez, generalizando a tese da instrumentalidade da consciência encorajava a
LEI
603
LEI
interpretação das L. científicas como simples instrumentos da orientação prática do homem no mundo.
Algumas formas de espiritualismo e de idealismo interpretaram essa função econômica da ciência como
sinal de sua inferioridade teorética (e por vezes de todo o pensamento discursivo) em relação à filosofia e
aos seus órgãos específicos. Le Roy, levando ao extremo a crítica de Bergson, afirmou o caráter
convencional da ciência e por isso a natureza arbitrária de suas L. Para Le Roy, a tarefa da ciência é
encontrar constantes úteis; e encontra-as porque a ação humana não comporta precisão absoluta, mas
exige apenas que a realidade seja aproximativamente representada, em suas relações conosco, por um
sistema de constantes simbólicas denominadas L. (Science et philoso-phie, 1899-1900). A mesma tese,
num exagero quase caricatural, pode ser encontrada em Croce: "Como essas L. são construções nossas e
apresentam o móvel como fixo, além de não serem irrepreensíveis nem isentas de exceções,
definitivamente não existe fato real que não constitua exceção à sua L. naturalista". Isso acontece porque
não existem uniformidades rigorosas, e um ursinho nunca é totalmente semelhante aos seus pais. "Donde
se poderia definir: as L. inexoráveis da natureza são L. violadas a todo instante; ao contrário, L.
filosóficas são as observadas o tempo todo. (...) As ciências naturais, que não propiciam conhecimentos
verdadeiros, têm ainda menos direito (se é lícito expressar-se assim) de falar em previsão" (Lógica, II,
cap. 5; 4a
ed., 1920, p. 218). Poin-caré pronunciou-se contra a natureza convencional das L., em polêmica
com Le Roy. A L. não é uma criação arbitrária do cientista, mas a expressão aproximativa ou provisória
de uma constância de ação que permite a previsão. É bem verdade que por vezes algumas L. são erigidas
em princípio, escapando assim à verificação da experiência e à incessante revisão que esta comporta, mas
nesse caso a L. deixa de ser verdadeira ou falsa para tornar-se apenas cômoda, e a verificação continua
sendo feita sobre as relações que expressem "o fato bruto da experiência" (Le valeur de Ia science, p.
239). Poincaré observa também que "o cientista cria no fato apenas a linguagem na qual o enuncia", mas
que, uma vez enunciada uma previsão em determinada linguagem, "não depende evidentemente dele que
ela se realize ou não" (Lbid., p. 233). A mesma crítica era dirigida à tese do caráter convencional das L.
científicas por
Moritz Schilick. Utilizando a distinção entre enunciado e proposição, que é um enunciado dotado de
significado (na medida em que realmente cumpre a função de comunicar), Schilick julgou que "o
conteúdo próprio de uma lei. natural consiste no fato de que a certas leis gramaticais (p. ex., de uma
geometria) correspondem algumas proposições definidas como descrições verdadeiras da realidade". Uma
vez que esse fato é completamente invariante com relação a qualquer mudança arbitrária das regras
gramaticais, não se pode reduzir as L. da natureza a meras convenções lingüísticas. "Só as proposições
são verdadeiras ou falsas, não os enunciados. Os enunciados realmente estão sujeitos a modificações
arbitrárias, mas isto não diz respeito a quem se preocupa com o conhecimento dos fatos. Com a ajuda das
regras dos símbolos (cuja gramática deve ser conhecida porque sem ela os enunciados não teriam
sentido), é possível chegar a proposições genuínas, cuja verdade não depende da predileção por símbolos"
(Gesetz Kausalitât, und Wahr-scheinlichkeit, Viena, 1948; agora em Readings in Phil. of Science, 1953,
pp. 181 e ss.).
4
o
As críticas de Poincaré e Schilick à tese da natureza convencional da L. científica partem daquilo que
se pode denominar quarta concepção fundamental da L., que a vê como relação simbólica entre os fatos.
Essa tese foi expressa pela primeira vez por Duhem, no livro sobre Teoria física, que assim a resumiu:
"Uma L. de física é uma relação simbólica cuja aplicação à realidade concreta exige que se conheça e se
aceite todo um conjunto de teorias" (Théoriephysique, 1906, p. 274). Isto quer dizer que os termos
simbólicos que uma lei inter-relaciona são abstrações produzidas pelo trabalho lento, complicado e
cônscio que serviu para elaborar as teorias físicas, e que esse trabalho nunca está definitivamente
acabado. "Toda L. física" — diz Duhem — "é aproximada; conseqüentemente, para o lógico rigoroso, ela
não pode ser verdadeira nem falsa; qualquer outra L. que represente as mesmas experiências com a
mesma aproximação pode pretender, com o mesmo direito da primeira, o título de L. verdadeira ou, para
falar com mais rigor, de L. aceitável" (lbid., p. 280). Esses conceitos permaneceram substancialmente
inalterados na filosofia contemporânea. As observações de Schilick contra a convencionalidade das L.
naturais e em favor do seu caráter simbólico constituem uma confirmação substancial do ponto de vista
LEI BIOGENÉTICA
604
LIBERALISMO
de Duhem. Uma L. é sempre um enunciado gramatical e sempre pressupõe a gramática da linguagem em
que é expressa; mas, embora essa gramática possa ser considerada convencional, o mesmo não pode ser
dito do significado da L., pois ele se refere a relações entre fatos verificavelmente constantes e capazes de
possibilitar uma previsão provável. Conquanto a teoria de Duhem tenha sido formulada antes do
reconhecimento do caráter probabilista da ciência, aquilo que ele chamava de "aproximação das L. da
natureza" abria caminho para o que hoje se denomina caráter probabilista das L Ou melhor, a função que
a metodologia das ciências tende hoje a atribuir cada vez mais à L. científica é a capacidade de previsão.
Peirce disse: "Uma proposição não pode ser denominada 'lei da natureza' enquanto sua capacidade de
previsão não for submetida a prova confirmada de tal forma que não persista dúvida sobre ela" (Values in
a Universe of Chance, p. 290). Uma L. geralmente é uma fórmula para a previsão. Desse ponto de vista, a
L. deixa de ter a necessidade que a primeira e a segunda interpretações lhe atribuíam. Sua validade é
medida pela sua eficiência, e essa eficiência é medida pela possibilidade de obter com ela previsões
suficientemente corretas.
LEI BIOGENÉTICA. V. BIOGENÉTICA LEIBNIZIANISMO. V. CARACTERÍSTICA-, ESPIRITUALISMO.
LEI DA MÍNIMA AÇÃO. V. AÇÃO MÍNIMA. LEI DAS TRÊS ETAPAS. V. POSITIVISMO. LEI
MODAL. V. MODAL LEI PSICOFÍSICA. V. PSICOLOGIA, b.
LEKTON. V. SIGNIFICADO.
LEMA (gr. A.fj(X|ia; in. Lemma; fr. Lemme; ai. Lemma; it. Lenimà). 1. Proposição assumida como
primeira premissa de um raciocínio (ARISTÓTELES., Top., VIII, 1, 156 a, 21; DIÕG. L., VII, 76; CÍCERO,
De divin. II, 53, 108). Nesse sentido, Kant, chamava de L. a proposição que uma ciência extrai de outra e
aceita sem demonstração (Crít. do Juízo, § 68; Logik, § 39).
2. Teorema matemático lateral ou subordinado, fora de sua cadeia dedutiva (LEIBNIZ, Nouv. ess., IV, 2, 8).
LENINISMO. V. COMUNISMO.
LETÍCIA (gr. ewppoown; lat. Laetitia). V ALEGRIA.
LEVIATÃ (in. Leviathan). Com esse nome, de um monstro bíblico (Jacó, 40, 20), Hobbes denominou "o
Estado — em latim civitas—, que é
um homem artificial, ainda que de maior estatura e força que o homem natural, para cuja proteção e
defesa foi idealizado" {Leviath., Intr.); e deu esse título à sua obra política fundamental (1561).
LIBERALISMO (in. Liberalism; fr. Libéralis-me; ai. Liberalismus, it. Liberalismo). Doutrina que tomou
para si a defesa e a realização da liberdade no campo político. Nasceu e afirmou-se na Idade Moderna e
pode ser dividida em duas fases: 1- do séc. XVIII, caracterizada pelo individualismo; 2- do séc. XIX,
caracterizada pelo estatismo.
I
a A primeira fase é caracterizada pelas seguintes linhas doutrinárias, que constituem os instrumentos das
primeiras afirmações políticas do L.: d) jusnaturalismo (\O, que consiste em atribuir ao indivíduo direitos
originários e inalienáveis; b) contratnalismo (v.), que consiste em considerar a sociedade humana e o
Estado jomo fruto de convenção entre indivíduos; c) L. econômico, próprio da escola fisiocrática, que
combate a intervenção do Estado nos assuntos econômicos e quer que estes sigam exclusivamente seu
curso natural (v. ECONOMIA); d) como conseqüência global das doutrinas precedentes, negação do
absolutismo estatal e redução da ação do Estado a limites definidos, mediante a divisão dos poderes (v.
ESTADO). O postulado fundamental dessa fase do L. é a coincidência entre interesse privado e público.
Jusnaturalistas e moralistas, como Bentham, acreditavam que bastava ao indivíduo buscar
inteligentemente sua própria felicidade para estar buscando, simultaneamente, a felicidade dos demais. A
doutrina econômica de Adam Smith baseia-se no pressuposto análogo da coincidência entre o interesse
econômico do indivíduo e o interesse econômico da sociedade (v. INDIVIDUALISMO).
2- A segunda fase do L. começa quando esse postulado entra numa crise cujos precedentes se encontram
nas doutrinas políticas de Rous-seau, Burke e Hegel, bem como no fato de que, no terreno político e
econômico, o L. individualista parecia defender uma classe determinada de cidadãos (a burguesia), e não
a totalidade dos cidadãos. O Contrato social (1762) de Rousseau já constitui uma guinada no indi-vidua
ismo. Para Rousseau, os direitos que o jusnat jralismo atribuíra aos indivíduos pertencem apenas ao
cidadão. "O que o homem perde com o contrato social é sua liberdade e o direito ilimitado a tudo o que o
tenta e que ele
LIBERALISMO
605
LIBERDADE
pode obter; o que ganha é a liberdade civil e a propriedade de tudo o que possui". Mas, na realidade, só "a
obediência à lei que prescrita é liberdade", de tal forma que só no Estado o homem é livre (Contraí
social, I, 8). A afirmada infalibilidade da "vontade geral", resultante da "alienação total de cada associado
com todos os seus direitos a toda a comunidade" (Ibid., I, 6), transforma aquilo que para o individualismo
é a coincidência do interesse individual com o interesse comum em coincidência — preliminar e
garantida — do interesse estatal com o interesse individual. Desta forma, ia-se afirmando a superioridade
do Estado sobre o indivíduo contra a qual o L. se insurgira em sua primeira fase. Tal superioridade
também é reconfirmada por Burke: "A sociedade é um contrato, mas, embora os contratos sobre objetos
de interesse ocasional possam ser desfeitos a bel-prazer, não se pode considerar que o Estado tenha o
mesmo valor de um acordo entre partes num comércio de especiarias e café. (...) Deve-se considerá-lo
com reverência porque não é a participação em coisas que servem somente à existência animal.(...): é uma
sociedade em todas as ciências, em todas as artes, em todas as virtudes e em toda a perfeição" (Reflection
on the Revolution in France, 1700; Works, II, p. 368). Mas o ponto alto dessa nova concepção de Estado
encontra-se na doutrina de Hegel, para quem ele é "o ingresso de Deus no mundo", razão pela qual seu
fundamento é a potência da razão que se realiza como vontade" (Fil. dodir., § 258, Zusatz). Com essa
exaltação do Estado concordava outro ramo do romantismo do séc. XIX, o positivismo: Comte
preconizava um estatismo tão absolutista quanto o hegelia-no (Système de politique positive, 1851-54; IV,
p. 65), e Stuart Mill, mesmo sem fazer concessões às concepções absolutistas, deixava grande margem à
ação do Estado, mesmo no domínio que, para o liberalismo clássico, deveria ficar reservado
exclusivamente para a iniciativa individual: o econômico (Principies ofPolitical Economy, 1848). O
ensaio Sobre a liberdade (1859), de Stuart Mill, tendia, ao mesmo tempo, a retirar a liberdade do rol de
condições indispensáveis para o exercício da atividade moral, jurídica, econômica, etc. (segundo a
concepção do L. clássico), e a transformá-la num ideal ou valor em si (independente das possibilidades
que oferece). Isso não impede que essa obra seja uma das mais nobres e apaixonadas defesas da
liberdade.
Nas primeiras décadas do séc. XX assistiu-se à continuação desse L. estatista. Tanto o idealismo inglês
quanto o italiano insistiram no caráter divino do Estado. Foi o que fizeram Bosan-quet (The
Philosophical Theory of the State, 1899) e Gentile, que identificou o Estado com o Eu Absoluto (Genesi e
struttura delia società, póstuma, 1946). A inspiração hegeliana prevalecia também na doutrina de Croce,
que no entanto permaneceria fiel ao ideal clássico de liberdade, demonstrando-o na prática, durante o
fascismo. Para Croce, L. é a doutrina do desenvolvimento dialético da história, que tudo absolve e
justifica, mesmo o absolutismo e a negação da liberdade (Ética epolítica, 1931, p. 290). O socialismo
marxista pode ser considerado uma das manifestações dessa mesma forma de L. (ao qual se liga
diretamente através de Hegel) (v. MATERIALISMO).
Os partidos políticos que, a partir do início do séc. XIX, desfraldaram a bandeira liberal inspiraram-se em
uma e em outra das diretrizes fundamentais ora expressas: individualismo ou estatismo. Portanto, um
grande número de correntes políticas díspares e por vezes opostas puderam falar em nome do L. (DE
RUGGIERO. Storia delL. europeo, 1925): partidos que negaram o valor do Estado (como o radicalismo
inglês do século passado), partidos que exaltaram o valor do Estado (como a chamada "direita histórica"
da Itália após o resorgimento), partidos que recusaram qualquer ingerência do Estado em assuntos
econômicos (como fazem ainda hoje alguns partidos liberais europeus), partidos que defendem a
intervenção do Estado na iniciativa e na direção dos negócios econômicos, partidos que consideraram a
liberdade como condição para a prática de qualquer atividade humana e partidos que a relegaram para o
empíreo dos "valores" puros. Esses contrastes são a manifestação evidente do caráter compósito da
doutrina liberal, caráter este que decorre do modo aproximativo e confuso como foi tratada a noção que
deveria ser fundamental para o L.: a de liberdade. O recurso casual ou sub-reptício a um ou outro dos
conceitos de liberdade elaborados na história do pensamento filosófico tornou a idéia liberal em política
confusa e oscilante, conduzindo-a por vezes à defesa e à aceitação da não-liberdade (v. LIBERDADE).
LIBERDADE (gr. èXe\)6epía; lat. Libertas; in. Freedom, Liberty; fr. Liberte; ai. Freiheit; it. Liberta).
Esse termo tem três significados fun-
LIBERDADE
606
LIBERDADE
damentais, correspondentes a três concepções que se sobrepuseram ao longo de sua história e que podem
ser caracterizadas da seguinte maneira: I
a L. como autodeterminação ou autocausalidade, segundo a qual a
L. é ausência de condições e de limites; 2- L. como necessidade, que se baseia no mesmo conceito da
precedente, a autodeterminação, mas atri-buindo-a à totalidade a que o homem pertence (Mundo,
Substância, Estado); 3a
L. como possibilidade ou escolha, segundo a qual a L. é limitada e condicionada,
isto é, finita. Não constituem conceitos diferentes as formas que a L. assume nos vários campos, como p.
ex. L. metafísica, L. moral, L. política, L. econômica, etc. As disputas metafísicas, morais, políticas,
econômicas, etc, em torno da L. são dominadas pelos três conceitos em questão, aos quais, portanto,
podem ser remetidas as formas específicas de L. sobre as quais essas disputas versam.
I
a Para a primeira concepção, de L. absoluta. incondicional e, portanto, sem limitações nem graus, é livre
aquilo que é causa de si mesmo. Sua primeira expressão encontra-se em Aristóteles. Embora a análise
aristotélica do voluntarismo das ações pareça recorrer ao conceito da L. finita, a definição de voluntário é
a mesma de L. infinita: voluntário é aquilo que é "princípio de si mesmo". Aristóteles começa afirmando
que a virtude e o vício dependem de nós; e prossegue: "Nas coisas em que a ação depende de nós a nãoação também depende; e nas coisas em que podemos dizer não também podemos dizer sim. De tal forma
que, se realizar uma boa ação depende de nós, também dependerá de nós não realizar má ação" (Et. nic,
III, 5, 1113 b 10). Isso já fora dito por Platão no mito de Er. Mas para Aristóteles significa que "o homem
é o princípio e o pai de seus atos, assim como de seus filhos" (Ibid.). De fato, "só para quem tem em si
mesmo seu próprio princípio, o agir ou o não agir depende de si mesmo" (Ibid., III,. 1, 1110 a 17); assim
o homem "é o princípio de seus atos" {Ibid., III, 3, 1112 b 15-16). Essa noção de "princípio de si mesmo"
é a definição da lei incondicionada, encontrada, p. ex., em Cícero: "Para os movimentos voluntários da
alma não se deve procurar uma causa alheia, pois o movimento está em nosso poder e depende de nós:
nem por isso é sem causa, visto que sua causa é sua própria natureza" (De fato, II). Em Epicuro, a noção
de L. tinha o mesmo significado de autodeterminação absoluta, que para ele começava nos átomos, aos quais atribuía o poder de desviar-se da
própria trajetória. Lucrécio diz: "Podemos desviar nossos movimentos sem sermos determinados pelo
tempo nem pelo lugar, mas pelo que nos inspira nosso espírito; pois sem dúvida a vontade é o princípio
desses atos e através dela o movimento se expande por todos os membros" (De rer. nat., II, 260). A noção
de L. como autocausalidade ou autodeterminação (aÚT07tpa7Ía) também é o fundamento do conceito de
L. como necessidade. Os es-tóicos admitiam que eram livres as ações que têm em si mesmas causa ou
princípio: "Só o sábio é livre, e todos os malvados são escravos, pois L. é autodeterminação, enquanto
escravidão é falta da autodeterminação" (DIÓG. L., VII, 121). Epicteto, conseqüentemente, dizia que eram
"livres" as coisas que estão "em nosso poder", ou seja, os atos do homem que têm princípio no próprio
homem (Dis., 1,1).
Este conceito foi transmitido durante toda a Idade Média. Orígenes foi o primeiro a defendê-lo no mundo
cristão, esclarecendo-o no sentido de que a L. consiste não só em ter em si a causa dos próprios
movimentos, mas também em ser essa causa. Esta definição, que se aplica a todos os seres vivos,
privilegia o homem porque a causa dos movimentos, humanos é aquilo que o próprio homem escolhe
como móbil, enquanto juiz e árbitro das circunstâncias externas (De princ, III, 5). Considerações
análogas ocorrem em De libero arbítrio de S. Agostinho (cf., p. ex., I, 12; III, 3; III, 25). Em outro trecho
ele diz: "Sente que a alma se movimenta por si só quem sente em si a vontade" (Dediv. quaest., 83, 8).
Alberto Magno dizia que era livre o homem que é causa de si e que não é coagido pelo poder de outro (S.
Th., II, 16, 1). E, para S. Tomás, "o livre-arbítrio é a causa do movimento porque pelo livre-arbítrio o
homem determina-se a agir". S. Tomás acrescenta que, para existir L., não é necessário que o homem seja
a primeira causa de si mesmo, como de fato não é, pois a primeira causa é Deus. Mas a Primeira Causa
não impede a autocausalidade do homem (Ibid., I, q. 83, a. 1; cf. Contra Gent., II, 48). A última
escolástica manteve esse conceito de L., aliás acentuando a indiferença da vontade com relação aos seus
possíveis determinantes. Duns Scot afirma que "a L. da nossa vontade consiste em poder decidir-se por
atos opostos, seja depois, seja no mesmo instante" (Op. Ox, I, d. 39, q. 5, n. 16).
LIBERDADE
607
LIBERDADE
Esta possibilidade de decidir-se por atos opostos expressa a perfeita indiferença da vontade com relação a
todas as motivações possíveis. Ockham, mesmo negando a possibilidade simultânea de atos opostos,
também frisa a indiferença absoluta da vontade: "Por L. entende-se o poder de, indiferente e
contingentemente, propor coisas diferentes, de tal forma que posso causar ou não o mesmo efeito, sem
que haja diversidade alguma, a não ser nesse poder" (Quodl, I, q. 16). Mas Ockham não julga que seja
possível demonstrar que a vontade é livre nesse sentido. A L. só pode ser conhecida por experiência, pois
"o homem sente que, mesmo que a razão lhe dite alguma coisa, a vontade pode querê-la ou não" (Ibid., I,
q. 16). Buridan observava a esse respeito que a L. não consiste em poder deixar de seguir o juízo do
intelecto, porque, se o intelecto reconhecesse com evidência que dois bens são perfeitamente iguais, não
poderia decidir-se nem por nenhum dos dois; consiste, sim, em poder suspender ou impedir o juízo do
intelecto (In Eth., III, q. 1-4). E assim propunha as premissas do caso que se denominou O Asno de
Buridan (v.): este, por não ter L., morre de fome na mesma condição em que o homem pode suspender o
juízo e fazer arbitrariamente a escolha.
O conceito de autropraguia ou causa sui ocorre com freqüência na filosofia moderna e contemporânea. "A
substância livre" — diz Leibniz — "determina-se por si mesma, seguindo o motivo do bem que é
percebido pela inteligência, que a inclina sem necessitá-la: todas as condições da L. estão compreendidas
nestas poucas palavras" (Théod., III, § 288). Este mesmo conceito levou Kant a admitir o caráter "numênico" da liberdade: "Se tivermos de admitir a L. como propriedade de certas causas dos fenômenos, ela
deve, em relação aos fenômenos como eventos, ter a faculdade de iniciar por si (sponte) a série de seus
efeitos, sem que a atividade da causa precise ter início e sem que seja necessária outra causa que
determine tal início" (Prol, § 53). A "faculdade de iniciar por si um evento" é exatamente a causa sui do
conceito tradicional de liberdade. Esta é também denominada, no mesmo sentido, "espontaneidade
absoluta", ou seja, atividade que não recebe outra determinação senão de si mesma {Crít. R. Pura, I, livro
I, cap. III, Elucidação crítica). Mas, mesmo como causa sui ou espontaneidade absoluta, "a causa livre,
em seus estados, não pode ser submetida a determinações de tempo,
não deve ser um fenômeno, deve ser uma coisa em si e só os seus efeitos devem ser julgados fenômenos"
(Prol, § 53). Kant quis conciliar a L. humana, como poder de autodeterminação, com o determinismo
natural que, para ele, constitui a racionalidade da natureza; por isso considerou a L. como númeno, pois
aquilo que, de um ponto de vista (dos fenômenos), pode ser considerado necessidade, de outro ponto de
vista (do númeno), pode ser considerado L. Mas o conceito de L. não sofreu inovação alguma com esse
artifício kantiano. Esse mesmo conceito é expresso por Fichte: "A absoluta atividade também é
denominada L. A L. é a representação sensível da auto-atividade" (Sittenlehre, Intr., 7, em Werke, IV, p.
9).
Esse mesmo conceito está hoje presente em todas as formas de indeterminismo (v.). Nas formas
espiritualistas do indeterminismo (que são as mais difundidas), a autodeterminação é considerada uma
experiência interior fundamental, uma espécie de criação "interior"; torna-se a "autocriação do eu". Maine
de Biran afirma: "A L. ou a idéia de L., tomada em sua fonte real, nada mais é que o sentimento que
temos de nossa atividade ou desse poder de agir, de criar o esforço constitutivo do eu" (Essai sur les
fondements de Ia psychologie, 1812, em CEuvres, ed. Naville, I, p. 284). Concepção análoga pode ser
encontrada em Mi-krókosmus de Lotze (I, pp. 283 ss.) e, com alguma atenuação, em Nouvelle
monadologie, de Renouvier (pp. 24 ss.). O espiritualismo francês, com Sécretan, Ravaisson, Lachelier,
Bou-troux, Hamelin, atém-se estritamente a esse mesmo conceito. "O conhecimento das leis das coisas"
— diz Boutroux — "permite-nos dominá-las e assim, em vez de prejudicar nossa L., o mecanismo torna-a
eficaz." Portanto, não somente as coisas internas, como queria Epicteto, mas também as externas
dependem de nós (De 1'idée de loi naturelle, 1895, pp. 133, 143). Desse ponto de vista, o motivo não é a
causa necessitante da ação. humana: a vontade dá preferência a um motivo mais que a outro, e o motivo
mais forte não o é independentemente da vontade, mas sim em virtude dela (La contingence de lois de Ia
nature, 1874, p. 124). O conceito bergsoniano de L. outra coisa não faz senão reexpor essa mesma tese.
Bergson afirma que o conceito de L. por ele defendido situa-se entre a noção de L. moral, isto é, da
"independência da pessoa perante tudo o que não é ela mesma", e a noção de livre-arbítrio,
LIBERDADE
608
LIBERDADE
segundo o qual aquilo que é livre "depende de si mesmo assim como um efeito depende da causa que o
determina necessariamente". Contra esta última concepção, Bergson objeta que os atos livres são
imprevisíveis e que, portanto, não se lhes pode aplicar a causalidade, segundo a qual causas iguais têm
efeitos iguais. Por isso, a L. continua indefinivel; e deve ser identificada com o processo da vida
consciente, ou seja, com a duração real (Essais sur les données immédiates de Ia conscience, 1899, pp.
131 ss.). Mas na realidade o conceito de livre-arbí-trio partia precisamente da imprevisibilidade dos fatos
humanos (os chamados "futuros contingentes") e da autocausalidade da vontade. A doutrina bergsoniana
nega a indiferença da vontade aos motivos, somente para sustentar que a vontade cria ou constitui os
motivos e confere-lhes a força determinante de que dispõem. Mas dessa forma a autodeterminação
continua sendo definição de liberdade; como tal permanece também no conceito (proposto por F.
LOMBARDI, La liberta dei volere e iindividuo, 1941, p. 192) de ato ou movimento que "se reproduz ou se
produz continuamente", levando consigo, nessa autoprodução, "todo o mundo em que atua". Não tem
sentido diferente a doutrina de Sartre, para quem a L. é a escolha que o homem faz de seu próprio ser e do
mundo. "Mas exatamente por se tratar de uma escolha, na medida em que é feita, essa escolha geralmente
indica outras tantas como possíveis. A possibilidade dessas outras escolhas não é explicitada nem
proposta, mas é vivida no sentimento de injustificabilidade e expressa na absurdidade da minha escolha,
conseqüentemente do meu ser. Assim, minha L. devora a minha L. Sendo livre, projeto o meu possível
total, mas com isto proponho que sou livre e que posso aniquilar esse meu primeiro projeto e relegá-lo ao
passado" (L'être et le néant, p. 560). Mas uma escolha que não tem nada a escolher, que não é limitada
por determinadas condições, de escolha só tem o nome; na realidade, é uma autocriaçâo gratuita. A
doutrina de Sartre só faz levar ao extremo o antigo conceito de L. como autocausalidade.
Recorrem a este conceito tanto o indetermi-nismo quanto o determinismo. O que o determinismo nega é o
mesmo que o indetermi-nismo afirma: a possibilidade de uma causa sui. Vimos que o próprio Kant
considerava-a impossível no domínio dos fenômenos e a confiava ao
domínio do númeno: foi o que fez também Schopenhauer, que considerou válidas as razões apresentadas
por Priestley em sua Doutrina da necessidade filosófica (v. DETERMINISMO) e afirmou que a L. como
autocausalidade é apenas da vontade como força numênica ou metafísica, da vontad? como princípio
cósmico (Die Welt, I, § 55). Em geral o determinismo consiste em julgar universal o alcance do princípio
de causalidade em sua força empírica e portanto em negar a causalidade autônoma. Neste sentido, Claude
Bernard afirmava a inércia dos corpos vivos tanto quanto dos inorgânicos, que é a incapacidade de entrar
em movimento por si mesmos: e nessa inércia percebia a condição para o reconhecimento do
determinismo absoluto (Intr ã Vétude de Ia medicine expérimenta-le, 1865, II, 8).
O equivalente político da concepção de L. como autocausalidade é a noção de L. como ausência de
condições ou de regras e recusa de obrigações; numa palavra, anarquia. Na maioria das vezes, esse
conceito é utilizado como instrumento de polêmica, para negar a própria L. Platão foi o primeiro a fazer
isso quando pretendeu demonstrar que da demasiada L. concedida pelo regime democrático nascem a
tirania e a escravidão. De fato, a recusa constante de limites e restrições "torna os cidadãos tão suscetíveis
que, tão logo se lhes proponha algo que pareça ameaçar sua liberdade, eles se me-lindram, rebelam-se e
terminam rindo das leis escritas e não escritas, porque não querem de forma alguma submeter-se a
nenhum comando" (Rep., VIII, 563 d). A L. aqui é entendida (não por Platão, como veremos mais
adiante) como ausência de medida, recusa de normas. O ilimitado poder sobre todas as coisas, que, para
Hobbes, constitui a L. em estado natural (De eive, I, § 7), tem o mesmo significado. Filmer acreditava
estar expressando o significado da doutrina de Hobbes quando dizia: "A L. consiste em cada um fazer o
que lhe aprouver, em viver como quiser, sem estar vinculado a lei nenhuma" (Observations upon Mr.
Hobbes's Leviathan, 1652, p. 55). Mas talvez a melhor e mais coerente expressão dessa noção de L. seja o
Único de Max Stiner: o indivíduo que não tem causa fora de si, que é sua própria causa e causa de tudo.
Nessa forma extrema a tese da L. anárquica raramente é defendida: na maioria das vezes é pressuposta
como termo de polêmica, reduzindo-se a ela (em boa ou má-fé) as demais concepções de L. política.
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2- A segunda concepção fundamental identifica L. com necessidade. Esta concepção tem estreito
parentesco com a primeira. O conceito de L. a que se refere é ainda o de causa sui; contudo, como tal, a
L. é não atribuída à parte, mas ao todo: não ao indivíduo, mas à ordem cósmica ou divina, à Substância,
ao Absoluto, ao Estado. A origem dessa concepção está nos estóicos, para os quais, como vimos, "a L.
consiste na autodeterminação e portanto só o sábio é livre" (DlÓG. L., VII, 121). Mas por que o sábio é
livre? Porque só ele vive em conformidade com a natureza, só ele se conforma à ordem do mundo, ao
destino (DIÓG. L., VII, 88; STOBEO, Flor., VI, 19; CÍCERO, De fato, 17). A L. do sábio coincide, portanto,
com a necessidade da ordem cósmica. Crisipo, porém, procura fugir a essa conseqüência distinguindo as
causas perfeitas e principais das causas auxiliares e próximas; o destino age sobretudo através das
primeiras, mas entre as últimas está o assenti-mento que o homem dá às coisas e, conseqüentemente, sua
ação. É como acontece com o cilindro: basta dar um empurrãozinho para que ele role por um plano
inclinado: graças à natureza do cilindro e do plano, ele continuará rolando se for empurrado, mas para que
isso aconteça é necessário o empurrão. Da mesma forma, a ordem das.coisas é tal que, uma vez iniciadas,
as ações continuam de determinado modo, mas, para que sejam iniciadas, é necessário o assentimento do
homem e esse assenti-mento permanece em poder dele (CÍCERO, De fato, 18-19). Todavia para Crisipo
também a L. é apenas adequação entre assentimento humano e ordem cósmica: as causas auxiliares
pertencem à ordem necessária do mundo tanto quanto as causas principais, e o empurrão que faz o
cilindro rolar pertence a essa ordem tanto quanto a forma do cilindro e o plano sobre o qual ele rola.
Desse ponto de vista, negar que o homem como tal é livre e afirmar que ele é livre enquanto manifestação
da autodeterminação cósmica ou divina são a mesma coisa. Tudo fica muito claro na formulação de Spinoza: "diz-se que é livre o que existe só pela necessidade de sua natureza e que é determinado a agir por
si só enquanto é necessário ou coagido aquilo que é induzido a existir e a agir por uma outra coisa,
segundo uma razão exata e determinada" (Et., I, def. 7). Nesse sentido, só Deus é livre, pois só Ele age
com base nas leis de sua natureza e sem ser obrigado por ninguém (Ibid., I, 17, corol. II), ao passo que o
homem, como qualquer outra coisa, é determinado pela necessidade da natureza divina e pode julgar-se livre
somente enquanto ignora as causas de suas volições e de seus desejos (Ibid, I, ap.; II, 48). Contudo,
poderá tornar-se livre se for guiado pela razão (Ibid., IV, 66, scol.), se agir e pensar como parte da
Substância Infinita e reconhecer em si a necessidade universal dela (Ibid., V, VI, scol.). Em outros termos,
o homem torna-se livre através do amor intelectual por Deus (que é exatamente o conhecimento da
necessidade divina): amor que é idêntico ao amor com que Deus se ama (Ibid., V, 36, scol.). Nenhuma
inovação foi introduzida nesse ponto de vista pela elaboração e ampliação feitas pela filosofia romântica.
Schelling afirma explicitamente a coincidência entre liberdade e necessidade: "O Absoluto age por meio
de cada inteligência, ou seja, sua ação é absoluta porquanto não é livre nem desprovida de L., mas as duas
coisas ao mesmo tempo: absolutamente livre e por isso também necessária" (System des transzendentalen
Idealismus, IV, E). Em Investigações filosóficas sobre a essência da L. humana (1809), Schelling
transfere para Deus, ou melhor, para a natureza ou fundamento de Deus, o ato com que o homem escolhe
essa natureza ou fundamento, pelo qual todas suas inclinações ou ações serão determinadas. A tendência a
atribuir a L. ao Absoluto e a identificá-la com a necessidade explicita-se assim como característica típica
da concepção romântica. Hegel contrapõe "o conceito abstrato de L.", isto é, a L. como exi gência ou
possibilidade, à "L. concreta", que é a "L. real" ou "a própria realidade" do espírito ou dos homens (Ene, §
482; Fil. do dir, § 33, Zusatz). Essa L. real, realidade mesma do homem, é o Estado, que, exatamente por
isso, é considerado "Deus real" (Fil. do dir., § 258, Zusatz). O Estado é "a realidade da L. concreta"
(Ibid., § 260). Isso significa que ele "é a realidade em que o indivíduo tem L. e a usufrui, mas só quando o
indivíduo é ciência, fé e vontade do universal. Assim, o Estado é o centro dos outros aspectos concretos
da vida: direito, arte, costumes, bem-estar. No Estado, a L. é realizada objetiva e positivamente". Isto não
significa que a vontade subjetiva do indivíduo se realize através da vontade universal, que seria, portanto,
um meio para ela; significa que a vontade universal se realiza através dos cidadãos, que, nesse aspecto,
são seus instrumentos. "O direito, a moral e o Estado, e somente eles, são
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segundo o qual aquilo que é livre "depende de si mesmo assim como um efeito depende da causa que o
determina necessariamente". Contra esta última concepção, Bergson objeta que os atos livres são
imprevisíveis e que, portanto, não se lhes pode aplicar a causalidade, segundo a qual causas iguais têm
efeitos iguais. Por isso, a L. continua indefinível; e deve ser identificada com o processo da vida
consciente, ou seja, com a duração real (Essais sur les données immédiates de Ia conscience, 1899, pp131 ss.). Mas na realidade o conceito de livre-arbí-trio partia precisamente da imprevisibilidade dos fatos
humanos (os chamados "futuros contingentes") e da autocausalidade da vontade. A doutrina bergsoniana
nega a indiferença da vontade aos motivos, somente para sustentar que a vontade cria ou constitui os
motivos e confere-lhes a força determinante de que dispõem. Mas dessa forma a autodeterminação
continua sendo definição de liberdade; como tal permanece também no conceito (proposto por F.
LOMBARDI, La liberta dei volere e Vindividuo, 1941, p. 192) de ato ou movimento que "se reproduz ou se
produz continuamente", levando consigo, nessa autoprodução, "todo o mundo em que atua". Não tem
sentido diferente a doutrina de Sartre, para quem a L. é a escolha que o homem faz de seu próprio ser e do
mundo. "Mas exatamente por se tratar de uma escolha, na medida em que é feita, essa escolha geralmente
indica outras tantas como possíveis. A possibilidade dessas outras escolhas não é explicitada nem
proposta, mas é vivida no sentimento de injustificabilidade e expressa na absurdidade da minha escolha,
conseqüentemente do meu ser. Assim, minha L. devora a minha L. Sendo livre, projeto o meu possível
total, mas com isto prononho que sou livre e que posso aniquilar esse meu primeiro projeto e relegá-lo ao
passado" (Vêtre et le néant, p. 560). Mas uma escolha que não tem nada a escolher, que não é limitada por
determinadas condições, de escolha só tem o nome; na realidade, é uma autocriação gratuita. A doutrina
de Sartre só faz levar ao extremo o antigo conceito de L. como autocausalidade.
Recorrem a este conceito tanto o indetermi-nismo quanto o determinismo. O que o determinismo nega é o
mesmo que o indetermi-nismo afirma: a possibilidade de uma causa sul Vimos que o próprio Kant
considerava-a impossível no domínio dos fenômenos e a confiava ao
domínio do númeno: foi o que fez também Schopenhauer, que considerou válidas as razões apresentadas
por Priestley em sua Doutrina da necessidade filosófica (v. DETERMINISMO) e afirmou que a L. como
autocausalidade é apenas da vontade como força numênica ou metafísica, da vontad: como princípio
cósmico (Die Welt, I, § 55). Em geral o determinismo consiste em julgar universal o alcance do princípio
de causalidade em sua força empírica e portanto em negar a causalidade autônoma. Neste sentido, Claude
Bernard afirmava a inércia dos corpos vivos tanto quanto dos inorgânicos, que é a incapacidade de entrar
em movimento por si mesmos: e nessa inércia percebia a condição para o reconhecimento do
determinismo absoluto (Intr. à 1'étude de Ia medicine expérimenta-le, 1865, II, 8).
O equivalente político da concepção de L. como autocausalidade é a noção de L. como ausência de
condições ou de regras e recusa de obrigações; numa palavra, anarquia. Na maioria das vezes, esse
conceito é utilizado como instrumento de polêmica, para negar a própria L. Platão foi o primeiro a fazer
isso quando pretendeu demonstrar que da demasiada L. concedida pelo regime democrático nascem a
tirania e a escravidão. De fato, a recusa constante de limites e restrições "torna os cidadãos tão suscetíveis
que, tão logo se lhes proponha algo que pareça ameaçar sua liberdade, eles se me-lindram, rebelam-se e
terminam rindo das leis escritas e não escritas, porque não querem de forma alguma submeter-se a
nenhum comando" (Rep., VIII, 563 d). A L. aqui é entendida (não por Platão, como veremos mais
adiante) como ausência de medida, recusa de normas. O ilimitado poder sobre todas as coisas, que, para
Hobbes, constitui a L. em estado natural (De eive, I, § 7), tem o mesmo significado. Filmer acreditava
estar expressando o significado da doutrina de Hobbes quando dizia: "A L. consiste em cada um fazer o
que lhe aprouver, em viver como quiser, sem estar vinculado a lei nenhuma" (Observations upon Mr.
Hobbes's Leviathan, 1652, p. 55). Mas talvez a melhor e mais coerente expressão dessa noção de L. seja o
Único de Max Stiner: o indivíduo que não tem causa fora de si, que é sua própria causa e causa de tudo.
Nessa forma extrema a tese da L. anárquica raramente é defendida: na maioria das vezes é pressuposta
como termo de polêmica, reduzindo-se a ela (em boa ou má-fé) as demais concepções de L. política.
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2- A segunda concepção fundamental identifica L. com necessidade. Esta concepção tem estreito
parentesco com a primeira. O conceito de L. a que se refere é ainda o de causa sui; contudo, como tal, a
L. é não atribuída à parte, mas ao todo: não ao indivíduo, mas à ordem cósmica ou divina, à Substância,
ao Absoluto, ao Estado. A origem dessa concepção está nos estóicos, para os quais, como vimos, "a L.
consiste na autodeterminação e portanto só o sábio é livre" CDiÓG. L., VII, 121). Mas por que o sábio é
livre? Porque só ele vive em conformidade com a natureza, só ele se conforma à ordem do mundo, ao
destino (DIÓG. L., VII, 88; STOBEO, Flor., VI, 19; CÍCERO, De fato, 17). A L. do sábio coincide, portanto,
com a necessidade da ordem cósmica. Crisipo, porém, procura fugir a essa conseqüência distinguindo as
causas perfeitas e principais das causas auxiliares e próximas; o destino age sobretudo através das
primeiras, mas entre as últimas está o assenti-mento que o homem dá às coisas e, conseqüentemente, sua
ação. É como acontece com o cilindro: basta dar um empurrâozinho para que ele role por um plano
inclinado: graças à natureza do cilindro e do plano, ele continuará rolando se for empurrado, mas para que
isso aconteça é necessário o empurrão. Da mesma forma, a ordem das. coisas é tal que, uma vez iniciadas,
as ações continuam de determinado modo, mas, para que sejam iniciadas, é necessário o assentimento do
homem e esse assenti-mento permanece em poder dele (CÍCERO, De fato, 18^19). Todavia para Crisipo
também a L. é apenas adequação entre assentimento humano e ordem cósmica: as causas auxiliares
pertencem à ordem necessária do mundo tanto quanto as causas principais, e o empurrão que faz o
cilindro rolar pertence a essa ordem tanto quanto a forma do cilindro e o plano sobre o qual ele rola.
Desse ponto de vista, negar que o homem como tal é livre e afirmar que ele é livre enquanto manifestação
da autodeterminação cósmica ou divina são a mesma coisa. Tudo fica muito claro na formulação de Spinoza: "diz-se que é livre o que existe só pela necessidade de sua natureza e que é determinado a agir por
si só enquanto é necessário ou coagido aquilo que é induzido a existir e a agir por uma outra coisa,
segundo uma razão exata e determinada" {Et., I, def. 7). Nesse sentido, só Deus é livre, pois só Ele age
com base nas leis de sua natureza e sem ser obrigado por ninguém (Ibid., I, 17, corol. II), ao passo que o
homem, como qualquer outra coisa, é determinado pela necessidade da natureza divina e pode julgar-se livre
somente enquanto ignora as causas de suas volições e de seus desejos (Ibid., I, ap.; II, 48). Contudo,
poderá tornar-se livre se for guiado pela razão (Ibid., IV, 66, scol.), se agir e pensar como parte da
Substância Infinita e reconhecer em si a necessidade universal dela (Ibid., V, VI, scol.). Em outros termos,
o homem torna-se livre através do amor intelectual por Deus (que é exatamente o conhecimento da
necessidade divina): amor que é idêntico ao amor com que Deus se ama (Ibid., V, 36, scol.). Nenhuma
inovação foi introduzida nesse ponto de vista pela elaboração e ampliação feitas pela filosofia romântica.
Schelling afirma explicitamente a coincidência entre liberdade e necessidade: "O Absoluto age por meio
de cada inteligência, ou seja, sua ação é absoluta porquanto não é livre nem desprovida de L., mas as duas
coisas ao mesmo tempo: absolutamente livre e por isso também necessária" (System des transzendentalen
Idealismus, IV, E). Em Investigações filosóficas sobre a essência da L. humana (1809), Schelling
transfere para Deus, ou melhor, para a natureza ou fundamento de Deus, o ato com que o homem escolhe
essa natureza ou fundamento, pelo qual todas suas inclinações ou ações serão determinadas. A tendência a
atribuir a L. ao Absoluto e a identificá-la com a necessidade explicita-se assim como característica tipica
da concepção romântica. Hegel contrapõe "o conceito abstrato de L.", isto é, a L. como exigência ou
possibilidade, à "L. concreta", que é a "L. real" ou "a própria realidade" do espírito ou dos homens (Ene, §
482; Fil. do dir., § 33. Zusatz). Essa L. real, realidade mesma do homem, é o Estado, que, exatamente por
isso, é considerado "Deus real" (Fil. do dir., § 258, Zusatz). O Estado é "a realidade da L. concreta"
(Ibid., § 260). Isso significa que ele "é a realidade em que o indivíduo tem L. e a usufrui, mas só quando o
indivíduo é ciência, fé e vontade do universal. Assim, o Estado é o centro dos outros aspectos concretos
da vida: direito, arte, costumes, bem-estar. No Estado, a L. é realizada objetiva e positivamente". Isto não
significa que a vontade subjetiva do indivíduo se realize através da vontade universal, que seria, portanto,
um meio para ela; significa que a vontade universal se realiza através dos cidadãos, que, nesse aspecto,
são seus instrumentos. "O direito, a moral e o Estado, e somente eles, são
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positiva realidade e satisfação da L. O arbítrio do indivíduo não é L. A L. que é limitada é o arbítrio
referente ao momento particular das necessidades" {Philosophie der Geschichte, ed. Lasson, I, p. 90).
Essa coincidência entre L. e necessidade, que leva a atribuir a L. apenas ao Absoluto ou à sua realização
no mundo (o Estado), por um lado passou a caracterizar todas as doutrinas de cunho romântico e por
outro foi utilizada, fora do âmbito de tais doutrinas, na defesa do absolutismo estatal e na recusa do
liberalismo político. Foi aceita por Gentile e por Croce: o primeiro identificando a L. com a necessidade
dialética do Absoluto {Teoriagenerale dellospirito, XII, § 20), o segundo identificando a L. com "a
criatividade das forças que se denominam individuais e coincidem com a unidade do Universal"
{Storiografia e ídealità morale, p. 58). Mas também foi aceita por Martinetti, para quem a L. é
espontaneidade da razão, e a espontaneidade da razão é a própria necessidade, de tal forma que, em
qualquer caso, identificam-se L. e espontaneidade, espontaneidade e concatenação necessária {La liberta,
1928, p. 349). Com outra aparência, essa doutrina retorna em algumas manifestações da filosofia
contemporânea, como p. ex. no realismo de Nicolai Hartmann e no existencialismo de Jaspers. Segundo
Hartmann, a L. consiste no fato de que, em cada plano do ser, acrescenta-se ao determinismo dos planos
inferiores o determinismo daquele plano. Os planos, em outros termos, são contingentes, um em relação
ao outro, porquanto cada um tem uma forma específica de determinismo não redutível à forma dos planos
inferiores; a L. seria então o super-determinismo de um plano do ser em relação aos outros. Hartmann diz:
"A L. em sentido positivo não é um minus, mas um plus na determinação. O nexo causai não permite um
minus porque sua lei afirma que uma série de efeitos, uma vez em movimento, não pode ser detida de
modo algum. Mas admite um plus — se ele existir — porque sua lei não afirma que aos elementos de
determinação causai de um processo não se possam acrescentar outros elementos de determinação"
{Ethik, p. 649). No plano do espírito, esse plus de determinação é constituído pela teleologia própria do
homem, que impõe aos processos causais fins extraídos da esfera dos valores. Mas é óbvio que, nesse
sentido, a L. outra coisa não é senão o acréscimo de um determinismo "superior" aos
determinismos "inferiores": é portanto a autodeterminação dos planos, que se acrescenta à determinação
externa. No mesmo sentido Jaspers afirma a unidade de L. e necessidade, expressa na forma "posso
porque devo" (no sentido da necessidade de fato, Ich muss-. Phii, II, pp. 186, 195). Nesse caso a L.,
autodeterminação, pertence à situação existencial total, cuja expressão é o eu. Continuamos no âmbito da
concepção que identifica L. com autocausalidade de uma totalidade metafísica (política, social, etc), ou
seja, com a necessidade com que essa totalidade se realiza. Essa doutrina por vezes foi defendida por
filósofos ou escritores de tendências liberais, mas na realidade é a insígnia do antiliberalismo moderno.
De fato, no plano metafísico, reconhece como sujeito de L. apenas o ser, a substância, o mundo; no plano
político, apenas o Estado, a Igreja, a raça, o partido, etc; atribui à totalidade assim privilegiada um poder
de autocausalidade ou autocriação que é um outro poder igualmente absoluto de coerção sobre os
indivíduos, considerados manifestações ou partes dele.
3
a
Enquanto as duas primeiras concepções de L. possuem um núcleo conceituai comum, a terceira não
recorre a esse núcleo porque entende a L. como medida de possibilidade, portanto escolha motivada ou
condicionada. Nesse sentido, a L. não é autodeterminação absoluta e não é, portanto, um todo ou um
nada, mas um problema aberto: determinar a medida, a condição ou a modalidade de escolha que pode
garanti-la. Livre, nesse sentido, não é quem é causa sui ou quem se identifica com uma totalidade que é
causa sui, mas quem possui, em determinado grau ou medida, determinadas possibilidades. Platão foi o
primeiro a enunciar o conceito segundo o qual a L. consiste na "justa medida" {Leis, 693 e); ilustrou esse
conceito como mito de Er. Segundo esse mito, as almas, antes de encarnar, são levadas a escolher o
modelo de vida a que posteriormente ficarão presas. "Para a virtude, anuncia a parca Láquesis, não
existem padrões: cada um terá mais ou menos, conforme a honre ou a negligencie. Cada um é autor de
sua escolha; a divindade está fora de questão" {Rep., X, 617 e). Mas o importante é que essa escolha, cujo
autor é cada indivíduo e cuja causalidade, portanto, não pode ser atribuída à divindade, é limitada, em um
sentido, pelas possibilidades objetivas, pelos modelos de vida disponíveis, e, em outro, pela motivação,
pois — como afirma Platão
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LIBERDADE
— "a maior parte das almas escolhe de acordo com os costumes da vida anterior" {Ibid., 620 a). A
situação mítica aqui ilustrada é de L. finita, de escolha entre possibilidades determinadas e condicionadas
por motivos determinantes. Semelhante L. é delimitada: ls
pelo grau das possibilidades objetivas, sempre
em número mais ou menos restrito; 2S
pela ordem dos motivos da escolha, que podem restringir ainda
mais, até a unidade, a ordem das possibilidades objetivas. Portanto, esse conceito de L. é uma forma de
determinismo, ainda que não de necessarismo: admite a determinação do homem por parte das condições
a que sua atividade corresponde, sem admitir que a partir de tais condições a escolha seja infalivelmente
previsível.
Esse conceito de L. foi completamente esquecido na Antigüidade e na Idade Média devido ao predomínio
do conceito de L. como causa sui. Quando reapareceu, nos primórdios da Idade Moderna, assumiu, em
oposição à noção de livre-arbítrio, a forma de negação da L. de querer-e de afirmação da L. de fazer.
Nessa forma é expressa por Hobbes. Este, identificando a vontade com o apetite, afirma que não se pode
não querer aquilo que se quer (não se pode não ter fome quando se tem fome, não ter sede quando se tem
sede, etc), mas que é possível fazer ou não fazer aquilo que se quer (comer ou não comer quando se tem
fome, etc). Existe, pois, uma L. de fazer, não uma L. de querer {De bom., II, § 2; De corp., 25, § 13).
Essa doutrina foi substancialmente aceita por Locke, que definia a L. como "o fato de se estar em
condições de agir ou de não agir segundo se escolha ou se queira" {Ensaio, II, 21, 27). Mas em Locke
essa doutrina se complica e confunde, pois por um lado ele distingue apetite de vontade, que julga
constituída por um poder de escolha, preferência ou inibição (suspensão do desejo, ibid., II, 21, 48), e por
outro admite que tal escolha, preferência ou inibição é necessariamente determinada pelo motivo (que
inicialmente ele identifica com o desejo do bem e depois com o mal-estar próprio do desejo, ibid., II, 21,
31). Portanto, é difícil saber como, desse ponto de vista, se poderia falar em L. de fazer ou de não fazer,
visto que a escolha ou a preferência dada a uma ou a outra dessas alternativas é necessariamente
determinada. De qualquer forma, a intenção da doutrina de Locke é clara: tende, por um lado,
a garantir o determinismo dos motivos, negando o livre-arbítrio como autocausalidade da vontade, e por
outro a garantir a L. do homem contra o determinismo rigoroso. Locke conseguiu expressar muito melhor
esse conceito no terreno político ao negar, em oposição a Filmer, que a L. consistisse em cada um fazer o
que bem entendesse; e afirmou.- "A L. natural do homem consiste em estar livre de poderes superiores
sobre a terra, em não estar submetido à vontade ou à autoridade legislativa de ninguém e em possuir como
norma própria apenas a lei natural. A L. do homem em sociedade consiste em não estar sujeito a outro
poder legislativo além do estabelecido por consenso no Estado, nem ao domínio de outra vontade ou à
limitação de outra lei além da que esse poder legislativo tiver estabelecido de acordo com a confiança
nele depositada" {Two Treatises of Government, II, 4, 22). No Estado natural a L. consiste na
possibilidade de escolha limitada pela norma natural, que é uma norma de reciprocidade, segundo a qual
deve-se atribuir aos outros as mesmas possibilidades atribuídas a si mesmo {Ibid., II, 2, 4). Em sociedade,
a L. consiste na possibilidade de escolhas delimitadas por leis estabelecidas por um poder para isso
designado pelo consenso dos cidadãos. Em outros termos, a L. política supõe duas condições: I
a
existência de normas que circunscrevam as possibilidades de escolha dos cidadãos; 2- possibilidade de os
próprios cidadãos fiscalizarem, em determinada medida, o estabelecimento dessas normas. Desse ponto
de vista, o problema da L. política é um problema de medida: a medida na qual os cidadãos devem
participar da fiscalização das leis e a medida na qual tais leis devem restringir as possibilidades de escolha
dos cidadãos. Esse sempre foi o problema do liberalismo clássico, ou seja, de qualquer liberalismo
autêntico, seja ele antigo ou moderno. Montesquieu repropôs a doutrina da L. política de Locke em
Vespritdes lois (1748, XI, 3-4). Hume e o Iluminismo retomaram a doutrina da L. filosófica. O primeiro
afirmava: "Por L. só podemos entender um poder de agir ou de não agir, segundo a determinação da
vontade; isso significa que, se decidirmos ficar parados, poderemos ficar, e se decidirmos andar, também
poderemos andar " {Inq. Cone. Underst, VIII, 1); ao mesmo tempo, ressaltava o determinismo dos
motivos, sem o qual as leis e sanções seriam inoperantes. O iluminismo, através de Voltaire, retomou essa
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mesma doutrina: L. de indiferença é "uma expressão sem sentido", pois significaria que no homem há
"um efeito sem causa". Somos livres para fazer quando temos o poder de fazer {Dictionnaire
philosophique, art. "Liberte"). Kant utilizou o conceito de L. finita para definir a L. jurídica ou política:
ela é "a faculdade de não obedecer a outras leis externas a não ser as leis às quais eu possa dar meu
assentimento" (Zum ewigen Frieden, II, art. 1, ne
1). A concepção de determinismo não necessarista
consolidou-se na orientação empirista. Stuart Mill mostrou que o fatalismo brota de um conceito de
necessidade que não se reduz ao de determinação. Ela significa apenas "uniformidade de ordem e
capacidade de previsão". Mas para os defensores da necessidade "é como se houvesse um vínculo mais
forte entre as volições e suas causas: como se, ao dizerem que a vontade é governada pelo equilíbrio dos
motivos, estivessem dizendo algo além da afirmação de que, conhecendo-se os motivos e nossa habitual
suscetibilidade a eles, fosse possível predizer a maneira como iremos agir" (.Logic, VI, 2, § 2). Dewey
traduz essa doutrina para os termos do pragmatismo, ou seja, do empirismo orientado para o futuro: "Às
vezes se afirma que, se é possível demonstrar que a deliberação determina a escolha e é determinada pelo
caráter e pelas condições, é porque nào existe liberdade. É como dizer que uma flor não pode produzir
fruto porque provém da raiz e do caule. A questão não diz respeito aos antecedentes da deliberação da
escolha, mas às suas conseqüências. Qual é sua característica? Dar-nos o controle das possibilidades
futuras que se abrem para nós. Esse controle é o núcleo da nossa liberdade. Sem ele, somos empurrados
de trás, com ele caminhamos na luz" (Human Nature and Conduct, 1922, p. 311). A L. de que Heidegger
fala como "transcendência" e "projeção" do homem no mundo também é uma L. finita, porque
condicionada e limitada pelo mundo em que se projeta ( Vom Wesen des Grundes, 1949, III, trad. it., pp.
64 ss.).
Essa doutrina da L. consolidou-se e tornou-se mais clara e coerente quando, a partir da década de 40, a
ciência desistiu do ideal de causalidade necessária e de previsão infalível. O predomínio do conceito de
condição sobre o de causa, da explicação probabilista sobre a explicação necessarista, que se delineou na
física atômica como efeito do princípio de inde-terminaçâo (v. CAUSALIDADE; CONDIÇÃO), tornou
obviamente anacrônica a conservação do esquema necessarista para a explicação dos acontecimentos
humanos. Ao mesmo tempo, deixou de ter sentido a oposição entre ciência e consciência, entre a
exigência de causalidade própria da primeira e o testemunho de L. dada pela segunda. Por um lado, vimos
que a consciência não dá demonstrações de L. absoluta e que tampouco pode mostrar ser válida qualquer
demonstração nesse sentido; por outro lado, vimos que a ciência não exige a causalidade necessária que
autorizaria a previsão infalível dos eventos, mas um determinismo con-dicionante que autorize a previsão
provável dos eventos. A conclusão é que o conceito de L. como autocausação (que ainda aparece em
Bergson e Sartre) é tão pouco sustentável quanto o conceito de determinismo como necessidade.
Correspondentemente, no plano político o conceito de L. como poder de fazer o que apraz e o conceito de
L. como poder absoluto da totalidade a que o homem pertence (Estado, Igreja, raça, partido, etc.) são
igualmente mistificadores. Hoje, assim como nos tempos em que a noção no mundo moderno foi
formulada pela primeira vez, a L. é uma questão de medida, de condições e de limites; e isso em qualquer
campo, desde metafísico e psicológico ao até econômico e político. Hoje se destaca o fato de que a L.
humana é "situada, enquadrada no real, uma L. sob condição, uma L. relativa" (GURVITCH, Détermismes
sociaux et liberte humaine, 1955, p. 81). Expressa-se por vezes esse conceito dizendo que a L. não é uma
escolha, mas uma "possibilidade de escolha", ou seja, uma escolha que, se feita, poderá ser sempre
repetida em determinada situação (ABBAGNANO, Possibilita e liberta, 1956, passim). Dessa forma, podese dizer que a L. está presente em todas as atividades humanas organizadas e eficazes, notadamente nos
procedimentos científicos cujas técnicas de verificação consistem exatamente em possibilidades de
escolha no sentido acima. Válido é o procedimento que pode ser eficazmente empregado por qualquer
um, nas circunstâncias apropriadas: é uma "possibilidade de escolha" sempre ao alcance de qualquer um
que se encontre nas condições oportunas. Analogamente, as L. políticas são possibilidades de escolha que
asseguram aos cidadãos a possibilidade de escolher sempre. Um tipo de governo não é livre simplesmente
por ter sido escolhido pelos cidadãos, mas se, em certos limites, per-
LIBERTARISMO
613
LIBERTISMO
mitir que os cidadãos exerçam contínua possibilidade de escolha, no sentido da possibilidade de mantê-lo,
modificá-lo ou eliminá-lo. As chamadas "instituições estratégicas da L.", como a L. de pensamento, de
consciência, de imprensa, de reunião, etc, têm o objetivo de garantir aos cidadãos a possibilidade de
escolha no domínio científico, religioso, político, social, etc. Portanto, os problemas da L. no mundo
moderno não podem ser resolvidos por fórmulas simples e totalitárias (como seriam as sugeridas pelos
conceitos anárquicos ou necessa-ristas), mas pelo estudo dos limites e das condições que, num campo e
numa situação determinada, podem tornar efetiva e eficaz a possibilidade de escolha do homem.
LIBERTARISMO (in. Libertarianisni). O mesmo que anarquismo. Libertário (in. Libertarian; fr.
Libertairê): o mesmo que anárquico (v. ANARQUISMO).
LIBERTINISMO (fr. Libertinismé). Corrente anti-religiosa que se difundiu sobretudo em ambientes
eruditos da França e da Itália na primeira metade do séc. XVII; constitui a reação — em grande parte
subterrânea — ao predomínio político do catolicismo naquele período. Não tem idéias filosóficas bem
determinadas, e a ela pertenceram: católicos sinceramente ligados à Igreja, mas que achavam impossível
aceitar integralmente sua estrutura doutrinária, como Gassendi, Gaffarel, Boulliau, Launoy, Ma-rolles,
Monconys; protestantes emancipados de qualquer preocupação religiosa, como Diodati, Prioleau,
Sorbière e Lapeyrère; e céticos declarados que se remetem a doutrinas do paganismo clássico ou pelo
menos à forma por elas assumida no humanismo renascentista, como Guyet, Luillier, Bouchard, Naudé,
Quillet, Trouiller, Bourdelot, Le Vayer. Portanto, a propósito do L., não é possível falar em corpo
doutrinai coerente, mas sim de certo número de temas comuns, que podem ser resumidos da seguinte
forma:
l
s
Negação da validade das provas da existência de Deus e da possibilidade de entender e defender os
dogmas fundamentais do cristianismo.
2
a
Negação da moral eclesiástica e, em geral, da moral tradicional, e aceitação do prazer como guia ou
ideal para a conduta da vida. O significado da palavra libertino no uso corrente deriva exatamente desse
aspecto.
3
a
Aceitação da doutrina da ordem necessária do mundo, na forma como havia sido elaborada e defendida pelos aristotélicos do Renascimento; por conseguinte: a) negação da liberdade humana;
b) negação da imortalidade da alma; c) negação da possibilidade do milagre, interpretado como fruto da
imaginação ou como fato natural fora do comum. Estes aspectos doutrinais ligam o L. ao aristotelismo do
Renascimento.
4
a
Tese de que a religião é, em geral, um produto do embuste das classes sacerdotais.
5
S
Aceitação do princípio da "razão de Estado", isto é, do maquiavelismo político.
6
a
Destruição de crenças e práticas religiosas, sua ridicularização e, por vezes, sua tradução em imagens
obscenas.
7
a
Fideísmo, que é a aceitação declarada, sincera ou não, das crenças tradicionais, em oposição às
conclusões da razão, segundo o princípio da "dupla verdade" do aristotelismo renascentista (e do
averroísmo medieval).
8
a
Caráter aristocrático atribuído ao saber, em particular à reflexão filosófica, e limites impostos à sua
difusão e ao seu uso, para evitar o choque com os interesses do Estado e das instituições a ele ligadas.
Este último aspecto, mais que qualquer outro, marca a diferença radical entre L. e Ilu-minismo (v.), que
consiste em romper os freios da crítica racional, em praticá-la em todos os campos (portanto também no
campo político, além do religioso), na vontade de comunicar os resultados dela a todos os homens e de
utilizá-los para a melhoria da vida humana. Contudo não há dúvida de que o L. é um elo importante entre
o espírito do Humanismo e o espírito do Iluminismo. Seu melhor historiador, R. Pintard, assim resume
seu pensamento sobre ele: "A se acreditar — como tudo leva a crer — que o surto do espírito filosófico
do fim do séc. XVTI é em grande parte continuação do Renascimento do séc. XVI, também será preciso
concluir que o L. triunfante dos Fontenelle e dos Bayle não teria existido sem o L. militante dos Le Vayer,
Gassendi e Naudé, que também foi o L. sofredor, combatido, embaraçado por escrúpulos e temores, que
só chegou a expressar-se renegando-se" (Le lihertinage érudit dans lapremière moitié du XVLIe
siècle,
1943, I, p. 576).
LIBERTISMO (fr. Libertisme). Este termo foi empregado por Bergson (em Revue de Métaph. et de
Morale, 1900, p. 661) em lugar da expressão mais comum "Filosofia da liberdade" para indicar o
espiritualismo francês do séc.
LffilDO
614
LIMITE
XIX, no qual se insere a própria doutrina de Bergson.
LIBIDO. Termo que, em Freud e nos psicanalistas, serviu para designar a tendência sexual em sua forma
mais geral e indeterminada. Freud diz: "Análoga à fome em geral, a L. designa a força com que o instinto
sexual se manifesta, assim como a fome designa a força com que se manifesta o instinto de absorção de
alimentos" (Einführung in die Psychoanalyse, cap. 21; trad. fr, p. 336). Nesse sentido, as primeiras
manifestações da L. ligam-se a outras funções vitais: no lactente, p. ex., o ato de sugar provoca um prazer
diferente do prazer provocado pela absorção do alimento, e esse prazer passa a ser buscado por si mesmo.
Freud afirma que a zona buco-labial é "erógena" e considera que o prazer propiciado pelo ato de sugar é
sexual. Nesse sentido, a L. pode nada ter em comum com a esfera genital. Por isso, Freud acha que nada
se ganha ao chamar a L. de instinto, como fez Jung (Ibid., pp. 442 ss.; cf. C. G. JUNG, Wandlungen und
Symbole der Libi-do, 1925).
LICEU (gr. AÚKeiov). Esse foi o nome dado à escola de Aristóteles, ou Perípato, devido ao território em
que estava situada, consagrado a Apoio Lício. Depois da morte de Aristóteles, a escola foi dirigida por
Teofrasto de Êreso, até a morte deste (288 ou 286 a.C), que a orientou principalmente para a organização
do trabalho científico e para as investigações pessoais. Teofrasto foi sucedido por Estráton de Lâmpsaco,
que a dirigiu por 18 anos; a seguir, a escola continuou seu trabalho através de numerosos outros
representantes dos quais nos chegaram poucas notícias e fragmentos. No primeiro século antes de Cristo,
Andrônico de Rodes publica as obras exotéricas de Aristóteles e dá início a uma nova forma de atividade
filosófica: o comentário aos textos do mestre. Nessa atividade salientou-se especialmente Alexandre de
Afrodísia, que viveu aproximadamente no ano 200 d.C. (cf. WEHRLI, Die Schule des Aristóteles, Texte
undKotnmentar, Basiléia, pp.1944 ss.).
LIMITAÇÃO (lat. Limitatio, in. Limitation; fr. Limitation; ai. Limitation, Begrenzung; it. Limitazioné).
Na lógica do séc. XVII, começou-se a chamar desse modo aquilo que na lógica medieval era chamado de
restrição (restrictio, cf. PEDRO HISPANO, Summ. log., 11.01): a redução de um enunciado a um significado
mais restrito. Segundo Jungius: "Diz-se que um enunciado sofre L. quando é substituído por outro
enunciado que declare que o predicado convém ao sujeito mediante uma de suas partes ou acidente, e não
imediatamente. P. ex.: 'o etíope é branco' é limitado por 'o etíope é branco nos dentes'" (Lógica
hamburguensis, 1638, II, 8, 8). Wolff expressa-se no mesmo sentido, mas faz a distinção entre proposição
restritiva e limitada, porquanto a L. é assumida ab intrínseco, isto é, no próprio sujeito, como no caso do
enunciado sobre o etíope, ao passo que a restrição é assumida ab extrinseco, como no enunciado "o ar é
leve no que diz respeito aos fluidos" (Log., § 1106). Kant deu o nome de L. à terceira categoria da
qualidade, que é "a realidade unida à negação" (Crít. R. Pura, § 11) e corresponde ao juízo infinito,
proposição que afirma um predicado negativo (Ibid., § 9) (v. INFINITO, juízo).
Em todos estes casos a L. era considerada uma restrição aplicada ao sujeito da proposição. Para W.
Hamilton, entretanto, a restrição é aplicável ao predicado e tem o nome de L. somente em expressões
como "A virtude é a única nobreza" (Lectures on Logic, 2
a
ed., p. 262).
LIMITE (gr. 7tépaç; lat. Limes, in. Limit; fr. Limite-, ai. Grenze; it. Limite). Aristóteles distinguiu e
enumerou perfeitamente os diferentes significados desse termo (Met., V, 17, 1022 a 4 ss.), que são os
seguintes:
l
s
O último ponto de uma coisa, ou seja, o primeiro ponto além do qual não existe parte alguma da coisa e
aquém do qual estão todas as partes dela. Hoje esse conceito é expresso dizendo-se que o L. é um ponto
que não pode ser atingido; ou que é uma grandeza tal que a diferença entre ela e os elementos da série
infinita a que pertence é ou permanece inferior a qualquer grandeza atribuível (cf. PEIRCE, Coll. Pap.,
4.117; JORGENSEN, A Treatise of Formal Logic, III, pp. 87 ss.).
2
Q
A forma de uma grandeza ou de uma coisa que possui grandeza.
3
B
O término: tanto o terminus ad quem, ou ponto de chegada, quanto, por vezes, o terminus a quo, ou
ponto de partida.
4
Q
A substância ou essência substancial de uma coisa, visto ser esse o L. de conhecimento da coisa,
portanto da própria coisa. Nesse sentido, L. significa condição. Para Aristóteles, a condição do
conhecimento e do ser da coisa é a substância ou essência necessária (v. ESSÊNCIA; SUBSTÂNCIA).
O primeiro significado do termo está ligado ao uso que Kant fez dessa palavra: "Nos
LÍNGUA
615
LINGUAGEM
seres extensos, L. sempre pressupõe um espaço que está além de certa superfície determinada e que a
inclui em si; a fronteira, porém, não precisa disso, mas é a negação pura que qualifica uma grandeza,
porquanto não é uma totalidade absoluta e perfeita. Ora, de algum modo nossa razão vê em torno de si um
espaço para o conhecimento das coisas em si, ainda que nunca possa ter conceitos determinados sobre
elas e se limite puramente aos fenômenos" (Prol., § 57). Neste sentido, Kant denominou conceito-limite o
conceito de núme-no, que serve "para circunscrever as pretensões da sensibilidade, sendo, pois, de
emprego puramente negativo" (Crít. R. Pura; Anal. dos princ, cap. 3; cf. COISA EM SI). O que possui L.,
nesse sentido, é finito no significado 4 do termo.
LÍNGUA (lat. Língua; in. Language, Ton-gue; fr. Langue; ai. Sprache; it. Lingud). Um conjunto
organizado de signos lingüísticos. A distinção entre L. e linguagem foi estabelecida por Saussure, que
definiu a L. como "conjunto dos costumes lingüísticos que permitem a um sujeito compreender e fazer-se
compreender" (Cours de linguistique gênérale, 1916, p. 114). Neste sentido, L., por um lado, é sistema ou
estrutura (v.) e, por outro, supõe uma "massa falante" que a constitui como realidade social. Podem-se
distinguir duas espécies de L.: I
a
históricas, cuja massa falante é uma comunidade histórica: p. ex.
italiano, inglês, francês, etc; 2a artificiais, cuja massa falante é um grupo que se distingue por uma
competência específica; são as L. das técnicas específicas (às vezes chamadas impropriamente de
linguagens); p. ex.: L. matemática, L. jurídica, etc.
LINGUAGEM (gr. X070Ç; lat. Sermo; in. Language, Speech; fr. Language; ai. Sprache, it.
Linguaggió). Em geral, o uso de signos inter-subjetivos, que são os que possibilitam a comunicação. Por
uso entende-se: I
a
possibilidade de escolha (instituição, mutação, correção) dos signos; 2° possibilidade de
combinação de tais signos de maneiras limitadas e repetíveis. Este segundo aspecto diz respeito às
estruturas sintáticas da L., enquanto o primeiro se refere ao dicionário da L. A moderna ciência da L. tem
cada vez mais insistido (como veremos) na importância das estruturas lingüísticas, ou seja, das
possibilidades de combinações delimitadas pela L. Elementos como "Sócrates", "homem", "é", "e",
"todos", "não", etc, são todos palavras, isto é, signos intersubjetivos, mas só podem fazer parte de um discurso com uma função determinada: .só podem combinar-se com os outros signos em
modos limitados e reconhe-^ cíveis.
A L. distingue-se da língua, que é um conjunto particular organizado de signos intersubjetivos. A
distinção entre L. e língua foi estabelecida por Ferdinand de Saussure, que a definia da seguinte forma: "A
língua é um produto social da faculdade de L. e ao mesmo tempo um conjunto de convenções necessárias
adotadas pelo corpo social para permitir o exercício dessa faculdade nos indivíduos. Tomada em conjunto,
a L. é multiforme e heteróclita; sobreposta a domínios diversos — físico, fisiológico e psíquico —
também pertence ao domínio individual e ao domínio social; não se deixa classificar em categoria alguma
de fatos humanos porque não se sabe como determinar a unidade" (Cours de linguistique gênérale, 1916,
p. 15). Eto ponto de vista geral ou filosófico, o problema daL, é o problema da intersubjetividade ^\" dos
signos, do fundamento desta intersubjetivi- ' dade. O problema da "origem" da L., discutido nos sécs.
XVII e XIX, é uma de suas formas; as duas soluções típicas são apenas dois modos de garantir a
intersubjetividade dos signos lingüísticos. Dizer que a L. tem origem em con- *,. venções significa
simplesmente que essiTTn^ tejsjjBjejMdade é fruto de um acordo, de um ç£nícato_entre homens, e dizer
que a L. se ori- 'Z'-' _gina__da natureza significa simplesmente que essa intersubjetividade é
garantídapehi^elaçJxD entre o signo lingüístico éã coisa ou com o estado subjetivo a que ele se refere. É
possível distinguir quatro soluções fundamentais para o <t, problema da intersjajbjetividade da L. e,
portan- N to, quatro interpretações de L.: I
a L. como con- < venção, 2
a
L. como natureza; 3
a
L. como
esco- -lha; 4
a
L. como acaso. As três primeiras inter- 3 pretações já haviam sido distinguidas e
caracterizadas poí]Platãa\
As primeiras duas têm em comum a afirmação do caráter necessário da relação entre o signo lingüístico e
seu objeto (qualquer que seja). A tese convencionalista, ao afirmar a perfeita arbitrariedade de todos os
usos lingüísticos, portanto a impossibilidade de confrontá-los e corrigi-los, reconhece em todos a mesma
validade. A tese do caráter natural da L. é levada, por outro lado, a admitir as mesmas conclusões. Uma
vez que todos os signos lingüísticos são tais por natureza e cada um é suscitado ou produzido pelo objeto
que expressa, todos são
LINGUAGEM
616
LINGUAGEM
igualmente válidos, e é impossível confrontá-los, modificá-los ou corrigi-los. Ambas as te_ses levam à
conseqüência de que é impossível di-zer o que não é, porque dizer o que não é.sig-nifica,Jão dizer.
Megáricos e cínicos, que, na filosofia grega dos tempos dêTIàtão, representavam as duas teses em
questão, tinham em comum um pressuposto fundamental extraído (como relata Aristóteles) do princípio
segundo o qual "nada pode ser predicado de uma coisa salvo seu próprio nome", princípio que não
exprime a necessidade da relação entre o signo lingüístico e seu objeto (Met., V, 29, 1024 b 33; para os
megáricos, em particular Estílpon; cf. PLUTARCO, Ad Colot., 23, 1120 a). Será fácil mostrar que essas
características das duas doutrinas necessaristas da L. também são encontradas nas formas assumidas por
tais doutrinas no mundo moderno.
I
a A interpretação da L. como convenção teve origem com os eleatas. A inefabilidade do Ser (como
necessário e único) devia levá-los a ver nas palavras nada mais do que "etiquetas das coisas ilusórias",
como diz Parmênides (Fr. 19, Diels). Esta concepção parece ser compartilhada por,Empédocles.(Fr. 8-9,
Diels), mas foi só pemócrito jque a justificou com argumentos empíricos/' Demócrito de fato fundamenta
a tese da convencionatídácte em quatro argumentos: homonímia, em virtude da qual coisas diferentes são
designadas pelo mesmo nome; diversidade de nomes para uma mesma coisa; possibilidade de mudar os
nomes; e a falta de analogias na derivação dos nomes (Fr. 26, Diels). Os sofistas, com Górgias,
insistiam na diversidade entre os nomes e as coisas e na conseqüente impossibilidade de se comunicar o
conhecimento das coisas através_dos nomes. f "A L." — dizia Górgias — "não manifesta as J coisas
existentes, da mesma forma que uma I das coisas existentes não manifesta sua nature-'; za a outra" {Fr. 3,
153, Diels). Já dissemos que Estílpon afirmava a tese da impossibilidade de uma coisa ser predicado de
outra, o que expressa a necessidade de referência do signo lingüístico ao objeto, ^platáq) aludia aos
megá-' ricos quando dizia: "Será que preferes a maneira como Hermógenes e muitos outros falam \
quando dizem que os nomes são convenções e Y Ique são claros para aqueles que os estipularam i$-e
conhecem as coisas às quais correspondem, ^\je que essa é a justeza dos nomes, de tal forma Ique não
importa se a convenção é feita segundo o que já se tenha estabelecido ou o contrá-
: rio, como p. ex. chamar de grande o que hoje chamamos de pequeno ou de pequeno o que hoje
chamamos de grande?" (Crat., 433 e.)
Este convencionalismo puro, que afirma a pura arbitrariedade da referência lingüística, desapareceu a
partir de Aristóteles e só. reaparece no pensamento contemporâneo. Aristóteles foi o primeiro a inserir
entre o nome e o seu designado a afeição da alma, a representação ou conceito mental (idéia ou palavra
interior ou qualquer outra denominação que venha a ter em seguida) que cinde e articula a relação -, entre
o nome e o seu designado. A inserção 'v desse termo permite reconhecer, ao mesmo íf tempo, o
convencionalismo da L. e a necessi-; dade dos seus significados. Aristóteles de fato i afirma que "um
nome é um vocábulo semânti-\ 5 co segundo convenção", entendendo com "por í" convenção" que "nada
é nome por natureza^ ^ mas apenas depois de se tornar;símbolo" (De interpr., 2, 16 a 18; 26-28). Ás
palavras, como sons vocais ou sinais escritos, não são as mesmas para todos; no entanto, referem-se às
"afeições da alma que são as mesmas para todos e l constituem imagens de objetos que são os mes-iímos
para todos" (Ibid., I, 16 a 3-8). Tem-se por-,-j tanto que: l2
os objetos são os mesmos para :
todos; 2S
as
afeições da alma, como imagens V; dos objetos, são as mesmas para todos; 3e
as * palavras escritas ou
faladas não são as mesmas \para todos, Desta forma a relação_palavra-ima-gem mental é
convenciõnalTao passo que a relação imagem mentil-coisa é natunür
7ÃprimèT:
" ra pode mudar sem
quèTmude a segunda, e é apenas a imutabilidade ou necessidade da segunda que determina a estrutura
geral da L., que depende da "união e separação" dos signos, da forma como eles se unem e se separam, e
não do convencionalismo dos sinais. Segundo Aristóteles, isso estabelece o caráter privilegiado da L.
apofântica, em que têm lugar as determinações de verdadeiro e falso, segundo a união ou a separação dos
signos reproduza ou não a união ou a separação das coisas. Aristóteles não nega que existam jiscut sos
não apofâniicos, como p.j;x._a^prece_(7&íc/., 4, 17 a 2), mas, privilegiando o discurso apo-fântico, faz
dele a verdadeira L., pela qual as outras se moldam mais ou menos ou a partir da qual devem ser julgadas.
De fato, a poética e a retórica, que se ocupam da L. não apofântica, são tratadas por Aristóteles em
conexão com a analítica. Ora, a J... apofântica nada mais tem de convencional: suas estruturas
LINGUAGEM
-c
617
LINGUAGEM
são naturais enecessárias porque são as mesmas HcTiir, que ela revela.
Esse convencionalismo aparente ou coxo que se pode combinar com a tese do caráter apofântico da L. é a
forma assumida na Idade Média e na Idade Moderna. O nominalismo medieval retoma exatamente nessa
forma a tesecórfvêncionalista. 03dTãm7~pTex., cTisííiv" gue os signõs^instituídos arbitrariamente para
significar "vanãscoisas", ou seja, as palavras, dos signos naturais, que são os conceitos (Summa log.,
I, 14), e essa posição só faz reproduzir substancialmente a de Aristóteles. É idêntica a posição de Hobbes,
que, ao mesmo tempo em que insiste na arbitrariedade do signo lingüístico, diz que ele é "uma nota com a
qual se pode reVocar à alma um pensamento semelhante a um pensamento passado" (De corp., 2, 4). Essa
correspondência entre palavras e pensamentos é tomada por loçke como definição da função sígnica da
L.f^Às palavras que, por natureza, se ajustavam a esse objetivo foram empregadas pelos homens como
signos de suas idéias: não por alguma conexão natural que exista entre determinados sons articulados e
certas idéias, pois nesse caso haveria^uma só L. entre os homens, mas por uma imposição "voluntária,
mediante a qual determinada palavra é aceita arbitrariamente como marca de certa idéia" (Ensaio, III, 2,
1). A inserção do "signo natural", "pensamento" ou "idéia" entre a palavra e seu designado descaracteriza
a tese convencionalista e, como vimos, aproxima-a da tese oposta, chegando a confundi-las. Essa tese
reduz-se de fato à afirmação da arbitrariedade do signo lingüístico isolado, da palavra entendida como
som, mas não se estende ao uso propriamente dito das palavras (no qual consiste a L.), portanto ,às regras
desse uso. Eqüivale a dizer, p. ex., que no jogo de xadrez é indiferente chamar a torre de peão ou peão de
torre, mas que é necessário que certa peça (peão ou torre) seja usada de uma forma e que outra peça (torre
ou peão) seja usada de outra maneira. A L. é o jogo de xadrez que, nesse caso, é declarado necessário: o
convencionalismo das palavras, ou seja, dos simples sons articulados, não diminui essa necessidade.
Portanto, o restabelecimento da tese clássica do convencionalismo só ocorre com a eliminação de
qualquer intermediário entre o sinal lingüístico e seu designado; em outras palavras com a declaração de
arbitrariedade, não dos
sons isolados, mas do uso dos sons, ou seja, das regras que o limitam. Essa foi a posição de Wi^enstein,
em sua segimttãTorma (Philoso-'phische Untersuchungerí). Wittgenstein admitiu a arbitrariedade,
portanto a equivalência, dé~tcP dos os " jogos lingüísticos" em uso, admitindo que tais jogos podem ter
caracteres e regras muito diferentes, de tal modo que chamá-los em conjunto de "L." significa apenas que
eles têm inter-relações diferentes (Philosophical In-vestigations, I, 65). Desse ponto de vista, há um
retorno das teses clássicas do convencionalismo; em primeiro lugar, a impossibilidade de retificar a L.,
razão pela qual ela deve ser sempre declarada verdadeiraeperfeita^oUj õ> s mo Wittgenstein prefere, em
ordem. "Está claro que todo enunciado da nossa L. está em ordem assim como é. Isso quer dizer que não
estamos perseguindo um ideal como se os nossos enunciados ordinariamente vagos ainda não
tivessem atingido um sentido irrepreensível e como se uma L. perfeita ainda estivesse para ser construída.
Por outro lado, parece claro cpe p. onde_há_sentido deve Jiaver; ondemjDejfeita. Assim, deve haver
ordem perfeita na mais vaga das proposições" (Ibid., I, 98). Desse ponto de vista, o ideal lingüístico,
a_línguaperfeita^éjirgo já existente no uso. "OideaJ" — diz Wittgen- '^' stein — "deve ser encontrado na
realidade. En- -i. quanto não virmos como se encontra nela, não . > entenderemos a natureza desse deve.
Achamos que deve estar na realidade porque achamos que já o vimos" (Ibid., 101). Pode-se dizer que esse
ponto de vista coincide com o de\Carnápl O "pj-mdpjCMde^jolejânda'' ou "de. mnygncio,-nalidade",
estabelecido por Carnap, expressa a perfeita equivalência dos sistemas lingüísticos. "Em lógica" —
afirma Carnap — "não existe moral. Cada um pode construir como quiser a sua lógica, isto é, a sua forma
de linguagem. Se quiser discutir conosco, deverá apenas indicar como quer fazê-lo e apresentar regras
sintáticas, em vez de argumentos filosóficos" (Logical Syntax ofLanguage, § 17). Desse ponto de vista, a
construção de uma L. ideal ou perfeita é feita com base naquilo que um certo tipo de L. é de fato. Carnap
diz: "Os fatos não determinam se o emprego de uma certa expressão está correto ou errado, mas apenas a
freqüência com que leva ao efeito para o qual tende e coisas desse gênero. Uma questão sobre o que está
certo ou errado deve sempre referir-se a um sistema de regras. A rigor, as regras que relacionaremos não
são as regras da L. B, como
>■-«/
LINGUAGEM
618
LINGUAGEM
^
v
Ov
ela é de fato, mas constituem antes um sistema lingüístico em correspondência com B, que
denominaremos sistema semântico B-S. A L. B pertence ao mundo dos fatos (...), mas o siste-
_mafin^TstTcóJB-.S'é algo construído por nós;' tem todas as propriedades que estabelecemos por meio de
regras e somente elas. Todavia, não construímos B-S arbitrariamente^ maa Je.-'vãridb em consideração os
fatos de B. Portanto,, podemos formular a afirmação empírica de ~ que ali está, em certa medida, em
harmonia com o sistema B-S" (Foundations of Logic and Mathematics, I, 4). Por isso, segundo Carnap, o
sistema semântico B-S tem as seguintes propriedades: l2
constitui o critério com base no qual se pode
julgar sobre a correção ou não da L. B; 2- as regras de .B-S não são convencionais porque são escolhidas
com base nos dados de fato fornecidos por B. (Carnap, portanto, admite simultaneamente a tese do
convencionalismo das L. e a tese da naturalidade dos sistemas semânticos, isto é, das L. perfeitas.
2- A doutrina segundo a qual a L. existe "por natureza", e que a relação entre a L. e o seu objeto (seja qual
for) é estabelecida pela ação causai deste último, também se caracteriza pelo reconhecimento da
necessidade da relação semântica. Enquanto a doutrina anterior afirmava que a relação semântica é
sempre exata porque em qualquer caso é instituída arbitrariamente, a doutrina em exame afirma que é
sempre exata porque escapa ao arbítrio e é instituída pela ação causai do objeto. Pode-se dizer que_essa.
tese remonta a HeráclitcT XFr. 23, Díels; 114, Diels), mas foi exposta explicitamente pelos cínicos,
especialmente por AjuístÊne§, cujo ponto dê vista é expresso por Crátilo no diálogo homônimo de Platão:
"As coisas têm nomes por natureza e artífice de nomes não é quaisquer um, mas só quem olha para o
nome que por natureza é próprio de cada coisa e que é ícapaz de expressar sua espécie em letras e sílabas"
CCrat., 390 d-e). Sabemos outrossim que Antístenes definira a L. dizendo ser ela "aquilo que manifesta o
que era ou é" (DIÕG. L., VI, 1, 3), e que extraía dessa doutrina as mesmas conseqüências que os
megáricos, com Estílpon, extraíam da tese do convencionalismo: "é impossível contradizer ou mesmo
dizer o falso" (ARISTÓTELES, Met., V, 29, 1024 b 33). Esta forma de Antístenes é apenas uma das formas
que a doutrina em exame pode assumir e assumiu ao longo de sua história. Essas formas são distinguíveis
com base no tipo de objeto que se
£' toma como designado pela L. Todas as formas
( dessa doutrina asseveram que a L. é apofântícà,
; ou seja, que de certa forma revela seu objeto;
I diferem ao determinar o tipo de objeto que a L.
revelaria de forma primordial ou privilegiada.
Assim, é possível distinguir: d) a teoria da interjeiçãa, tí) a teoria da onomatopéia; c) a teoria
da metáfora; d) a teoria da imagem lógica.
a) A teoria da interjeição, que Max Müller (Lectures on the Science of Language, 1861, cap. 9, trad. it., p.
363) chamou de teoria do pub-puh, foi exposta pela primeira vez por Epicuro: "As palavras não são em
princípio criadas por convenção, mas é a própria natureza humana que, influenciada por determinadas
emoções e visando a determinadas imagens, leva os homens a emitir o ar da forma apropriada a cada
emoção e imagem. As palavras são inicialmente diferentes devido à diversidade dos povos e dos lugares,
mas depois tornam-se •comuns, para que seus significados sejam menos ambíguos e mais rapidamente
compreensíveis" (DIÓG., L., X, 75-76). Lucrécio expressava mais sucintamente o mesmo conceito: "A
natureza obrigou os homens a emitir os vários sons da L., e a utilidade levou a dar a cada coisa o seu
nome" (De rer. nat., V, 1027-28). Em tempos modernos essa doutrina foi retomada por Condillac (Sur
Vorigine des connaissances humaines, 1746, 1, §§ 1 ss.) e exposta de forma mais brilhante por
Rousseau: "A primeira L. do homem, a L. mais universal e mais enérgica, a única da qual ele necessitava
antes que fosse preciso convencer homens reunidos, é o grito natural. Por ser arrancado por uma espécie
de instinto nas ocasiões prementes, para implorar socorro nos grandes perigos ou alívio nos males
violentos, esse grito não tinha grande utilidade na vida comum, em que reinam sentimentos mais
moderados. Quando as idéias dos homens começaram a estender-se e multiplicar-se, estabelecendo-se
comunicação mais estreita entre elas, quando foram buscados sinais mais numerosos e uma L. mais
ampla, multiplicaram-se as inflexões da voz e acrescentaram-se os gestos, que, por natureza, são mais
expressivos e cujo sentido depende menos de determinações anteriores" (De 1'inçgalité parmi les
bommes, I; cf. também o ensaio "Sobre a origem das línguas", em CEuvres, 1877, vol. I). Mas o problema
que se opõe a essa doutrina é o da passagem de uma língua constituída por gritos simples ou interjeições
para uma língua
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619
LINGUAGEM
J
objetiva, constituída por termos gerais ou abstratos. Mesmo no mundo moderno não faltou quem visse na
interjeiçãò a origem dos sons que, gradualmente purificados, se transformaram em verdadeira linguagem.
Era o que pensava, p. ex., O. Jespersen (Language, its Na-ture, Development and Origin, 1923, pp. 418
ss.); a mesma tese foi apresentada com mais rigor por Grace de Laguna, que procurou definir melhor a
passagem da interjeiçãò para a L. como um processo de objetivação, graças ao qual as expressões
emotivas vão sendo pouco a pouco substituídas por aspectos percebidos das situações efetivas (Speech,
its Function and Development, 1921, pp. 260 ss.). Mais difícil de compreender é exatamente esse
processo de objetivação e purificação dos gritos emotivos: mesmo porque até as doutrinas que a eles
recorrem evidenciaram e reconheceram explicitamente a diferença entre as palavras e as inter-jeições (que
não se distinguem dos gritos animais), além do fato de as palavras se afirmarem em prejuízo das
interjeições.
b) A teoria da onomatopéia, que Max Müüer (Lectures on the Science of Language, 1861, cap. 9)
denominou teoria do bau-bau, afirma serem as raízes lingüísticas imitações dos sons jiaturais. Essa teoria
era conhecida por Platão, que a critica observando que, "neste caso, cJ. aqueles que imitam o balido das
ovelhas, os £■ cantos dos gaios e as vozes dos demais animais Y dariam nome aos animais cuja voz
imitam" (Crat., 423 c). Essa teoria foi defendida por \peTcIerj em Tratado sobre a origem da linguajgeni(\J12): ele considerou os sons naturais (p. ex., o balir de um cordeiro) como os sinais que a alma
utiliza para reconhecer o objeto em questão. "O balido, notado como sinal distintivo, passa a ser o nome
do cordeiro. O sinal compreendido, graças ao qual a alma se reflete claramente numa idéia, é a palavra. E
o que é a L. humana, senão o conjunto de tais palavras?" (Werke, ed. Suphan, V, pp. 36-37). A principal
objeção a essa doutrina foi levantada pelos glossologistas: não é verdade que a origem de todas as raízes
lingüísticas seja onomatopaica. Nem na formação dos nomes dos animais, em que se poderia presumir
maior eficácia do princípio onomatopaico, ele tem realmente função dominante. Contra ele encontramos
ainda a objeção filosófica, oposta por Platão, de que uma coisa é a imitação de um som e outra coisa é a
imposição de um nome. Contudo, o princípio da onomatopéia foi muitas vezes utilizado pe-
$
los glossologistas para explicar a formação das palavras originais nesta ou naquela língua e sua
distribuição em grupos distintos. O próprio Cassirer admite como primeira fase da expressão lingüística
uma etapa mimética, na qual "os sons parecem aproximar-se da impressão sen-sorial e reproduzir sua
diversidade com a maior fidelidade possível" (Phil. der symbolischem Formen, 1923, 1, cap. 2, § 2).
c) A terceira forma da doutrina da naturalidade da L. considera-a como metáfora. As teses características
em que se expressa essa doutrina são as seguintes: \- a L. não é imitação, mas criação (o que distingue
esta teoria da onomatopaica); 2g
a criação lingüística não leva a conceitos ou a termos gerais, mas a
imagens, que são sempre individuais ou particulares; 3a
o que a criação lingüística expressa não é um fato
objetivo ou racional, mas subjetivo ou sentimental; e este é propriamente o objeto da linguagem. Com tais
características, essa teoria foi expressa pela primeira vez por Viço, para quem "o primeiro falar" não foi
"um falar segundo a natureza das coisas", mas "um falar fantástico para substâncias animadas, na maior
parte imaginadas divinas" (Scienza nuova, II, Da lógica poética). Os primeiros poetas, segundo Viço,
deram "os nomes às coisas a partir das idéias mais particulares e sensíveis, que são as duas fontes, esta da
metonímia e aquela da sinédoque" (Ibid., Corolários acerca dos tropos, 2). Conseqüentemente, os
primeiros homens conceberam a idéia das coisas "por caracteres fantásticos e mudos de substâncias
animadas" e entenderam-se "com atos ou gestos que tivessem relações naturais com as idéias (como, p.
ex., ceifar três vezes ou mostrar três espigas para significar três anos)". Segundo Viço, isso é facilmente
observado na língua latina, "que formou quase todas as palavras por transferências de naturezas, por
propriedades naturais ou por efeitos sensíveis", mas "geralmente a metáfora constitui o maior corpo das
línguas em todas as nações" (Ibid., Corolários acerca dos tropos, 2). Essa teoria é _expressa de modo bem
mais imaginosa por - (Hamann} para quem a L., que é "o órgão e oçxi-tério da razão", não é umã
slrrTpTês'"coIê"çâo cíè signos, mas "o símbolo e a revelação da própria vida divina" (Scpriften, II, 19,
207, 216). No séc. XDC a teoriajdajnejgfora, mesmo sem a postura metafísica ou teológica com que
aparece em Hamann, é a característica comum das doutrinas que foram chamadas do din-don, pelo caráter
ressonante da natureza humana. Assim, {ÇÃzx.
i
J v^J " V o
/AC/ÍV
LINGUAGEM 620
LINGUAGEM
Müller afirmava que a L. é o produto de uma "faculdade criativa que dá a cada impressão, na maneira
como penetra pela primeira vez no cérebro, uma expressão fonética", e que os fonemas assim criados são
depois selecionados e combinados naturalmente através do processo histórico de formação da L.
{Lecture, cit., 9). O caráter metafórico da L., consistindo no recurso a termos ambíguos ou equívocos,
favorece (de acordo com esta teoria) a origem e a formação do mito. Müller disse: "Na L. humana é
impossível exprimir idéias abstratas a não ser metaforicamente, e não é exagero afirmar que todo o
dicionário da religião antiga era composto por metáforas (...), sendo pois uma fonte contínua de
equívocos, muitos dos quais consagrados na mitologia e na religião do mundo antigo" (Contributions on
the Science of Mythology, 1897, I, 68 ss.). Esta conexão da L. com o mito já fora feita por Viço, que,
ademais, não equiparara a formação do mito a uma doença da L. As doutrinas modernas do mito (v.)
negam esta equiparação, mas mantêm a conexão do mito com a L. Em sentido análogo, Croce estabeleceu
a conexão da L. com a arte em geral. Para ele, a L. tem natureza fantástica ou metafórica, estando, pois,
mais estreitamente ligada à poesia do que à lógica. "O homem" — afirma Croce — "fala a todo instante
como o poeta, porque, assim como o poeta, exprime suas impressões e seus sentimentos na forma que
chamamos de conversação ou familiar, e que não está separada por um abismo das outras formas que
denominamos prosaicas, prosaico-poéticas, narrativas, épicas, dialogadas, dramáticas, líricas, musicais,
cantadas, e assim por diante" (Bre-viario di estética, 1913, II). Contudo, há um abismo existente (e Croce
afirma-o mais tarde) entre a expressão poética, que aplaca e transfigura o sentimento (sendo por isso um
conhecer), e os outros tipos de expressão (sentimental ou prosaica), que, estreitamente vinculados ao
sentimento e à idéia, não realizam a transfiguração própria da expressão autêntica e, portanto, nem podem
chamar-se L. Para Croce, são apenas "sons articulados" {Lapoesia, 1936, pp. 9 ss.). Essa conclusão, à
qual Croce — não sem coerência — levou a teoria em exame, mostra os limites dessa mesma teoria, que é
incapaz de explicar a passagem da L. metáfora para a L. conceituai, da L. que é grito, gesto ou outro
"caráter poético" (segundo a expressão de Viço) para a L. que é estrutura, organização e regra.
, • d) A quarta forma é a da naturalidade da L., que a considera como expressão ou imagem
, da essência ou do ser das coisas. Essa doutrina
é bem antiga, pois sua primeira manifestação é
0
a teoria de Antístenes, segundo a qual "L. é
'; aquilo que manifesta o que era ou é" (DIÓG. L.,
VI, 1, 3). Os estóicos, por sua vez, jfirmaram_
que "falar significa pronunciar um som que sigv
híficã o"7iiBJêtõpensãac>w
(SEXTOTWPTRÍCO, Adv. tnath., Vmr8üjrA~cãracterística dessa doutrina é
que a atenção não se volta tanto para signos ou palavras, mas para suas conexões sintáticas, para as regras
de seu uso nas proposições e nos raciocínios, portanto para as estruturas formais da L. A esta linha
pertence propriamente a teoria que denominamos de convencionalismo aparente ou coxo, segundo a qual
os signos lingüísticos são escolhidos arbitrariamente, mas seus modos de combinação não são arbitrários:
são naturais e necessários porque correspondem aos modos de combinação dos conceitos mentais, que,
por sua vez, correspondem aos modos de combinação das coisas. Essa teoria, desenvolvida por
Aristóteles, foi reproduzida várias vezes pelo empirismo moderno e contemporâneo (v. acima). Nesta
forma, caracteriza-se pela inserção, entre o signo lingüístico e a coisa, do conceito mental através do qual
o signo lingüístico, em seus modos de combinação, passa a participar da necessidade objetiva das coisas.
Fundamento análogo tem a afirmação da naturalidade da L., feita por Fichte em Discursos á nação alemã
(1808), em que se afirma que "existe uma lei fundamental segundo a qual todo conceito assume um som
através dos órgãos; um som que é aquele e não outro" (IV, trad. it., Allason, p. 78), ou a afirmação de
Hegel de que "a L. confere às sensações, intui-ções ou representações uma segunda existência superior à
existência imediata; uma existência universal, que tem vigor no domínio da representação" {Ene, § 459).
Mas a tese da naturalidade da L. só foi retomada em sua forma rigorosa e, portanto, em seus princípios
clássicos, pela lógica matemática contemporânea. Esta de fato reafirmou o princípio da correspondência
termo a termo entre os signos lingüísticos e as coisas, princípio que os cínicos expressaram dizendo que a
L. é aquilo que manifesta o que uma coisa era ou é. Este princípio, que faz da L. a reprodução pietórica da
realidade ou, em geral, do ser, foi inicialmente defendido por Russell, mas sua formulação mais rigorosa
está em Tractatus
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logico-phílosophicus (1922) de Wittgenstein. O princípio era exposto por Russell da seguinte forma:
"Em toda proposição que podemos apreender (ou seja, não só aquelas cuja verdade ou falsidade
podemos julgar, mas todas as que pudermos imaginar), todos os constituintes são realmente entidades das
quais temos conhecimento direto" ("On Denoting", 1905, agora em Logic and Knowledge, 1956, p. 56; cf.
Mysticism and Logic, 1918, pp. 219, 221; The Problems of Philosophy, 1912, p. 91). Isso significa que a
cada termo empregado nas proposições deve corresponder um termo ou entidade objetiva da qual se tenha
conhecimento direto (acquaintancé), ou que deve existir uma correspondência termo a termo entre os
elementos que entram na composição das proposições e as entidades de que se tem conhecimento direto.
Russell observa a propósito que "devemos atribuir um significado às palavras que usamos se desejamos
falar com algum significado e não por simples tagarelice, e o significado que atribuímos às palavras deve
ser algo do qual já tenhamos conhecimento" (Problems ofPhii, p. 91). Esta é simplesmente a reexpo-sição
da tese de Antistenes, segundo a qual falar significa dizer algo, mais precisamente algo que é, de tal forma
que não é possível dizer o que não é; acrescenta-se a isso que o que é, ou seja, as entidades
correspondentes aos termos da L., deve ser "diretamente conhecido". Russell baseava sua teoria da
denotação nesse princípio: segundo ela, "quando existe alguma coisa de que não temos conhecimento
imediato, mas apenas uma definição com frases deno-tantes, as proposições nas quais essa coisa é
introduzida por meio de uma frase denotante não contêm realmente a coisa como constituinte, mas os
constituintes expressos pelas diversas palavras da frase denotante" ("On Denoting", Ibid., pp. 55-6).
Assim, p. ex., como não temos experiência direta do espírito dos outros, se A é um desses espíritos, não
sabemos que "A possui esta e aquela propriedade", mas sabemos apenas que "Fulano de Tal tem um
espírito com esta ou aquela propriedade". Todavia, se pudesse haver uma L. ideal, ela deveria conter
unicamente elementos constitutivos últimos, de tal forma que nela "só haveria uma palavra, e não mais de
uma, para cada objeto simples, e as coisas que não fossem simples seriam expressas por uma combinação
de palavras, cada uma das quais ali representaria uma coisa simples" ("The Phil. of Logical Atomism",
Logic
and Knowledge, pp. 197-98). Segundo Russell, a L. de Principia matbematica visa a ser a L. dessa
espécie: nela só existe sintaxe, sem vocabulário (Jbid., p. 198). E isso a equipara à linguagem proposta
pelos doutos da Academia de Lagado, de que fala Swift em Viagens de Gulli-ver: a proposta era abolir as
palavras porque, "desde que as palavras são apenas nomes para as coisas, seria mais cômodo as pessoas
levarem consigo as coisas necessárias para expressar os diversos assuntos sobre os quais pretendessem
conversar". Por isso, aqueles sábios carregavam sacos repletos de objetos e conversavam mostrando-se os
objetos (Gulliver's Traveis, III, cap. 5).
O mesmo ideal foi expresso por Wittgenstein (primeira maneira) com fórmulas simples e precisas. Eis
algumas: "O nome significa o objeto: o objeto é o seu significado" (Tractatus, 3.203). "À configuração
dos signos simples na proposição corresponde a configuração dos objetos na situação" (Jbid., 3-21), "O
nome é o representante do objeto na proposição" ijbid., 5.22). Wittgenstein expressou com toda a clareza
desejável o conceito de linguagem (que outro não é senão "a totalidade das proposições", Lbid., 4.001)
como representação pictórica do mundo. "A primeira vista" — diz ele — "não parece que a proposição,
assim como está, p. ex., impressa no papel, seja uma imagem da realidade de que trata. Mas a notação
musical, à primeira vista, tampouco parece uma imagem da música, assim como nossa escritura fonética
(em letras) não parece uma imagem da nossa L. falada. No entanto, esses símbolos demonstram ser —
inclusive no sentido comum do termo — imagens daquilo que representam" (Jbid., 4.001). Boa parte do
empirismo lógico e, em geral, da filosofia contemporânea compartilha ou compartilhou dessa doutrina da
L. como imagem lógica do mundo. A objeção fundamental a ela foi bem expressa por Max Black: "Não
há motivo para a L. 'corresponder' ou 'assemelhar-se' ao 'mundo', assim como não há motivo para
assemelhar-se ao mundo o telescópio com que o astrônomo o estuda" (Language and Philosophy, V, 4;
trad. it., p. 173).
É interessante constatar que no outro extremo da filosofia contemporânea, o metafísico ou
ultrametafísico, tem-se conceito análogo da linguagem. Heidegger certamente não admite a
correspondência termo a termo entre os elementos da L. e os elementos do ser, mas afirma com a mesma
veemência de
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Wittgenstein o caráter apofântico da L. em relação à totalidade do ser. Nesse sentido, denominou a L. de
"casa do ser". E acrescentou: "Falar em casa do ser não significa absolutamente transferir a imagem da
casa para o ser; um dia, partindo de um pensamento adequado da essência do ser, será possível chegar a
compreender o que significam casa e habitar ("Brief über den Humanismus", em Platos Lebre von der
Wahrheit, 1947, p. 112). Em outros termos, a L. é a revelação imediata do ser, e o homem tem acesso ao
ser através da L.
3
a
A terceira doutrina fundamental da L. interpreta-a como um instrumento, como produto de escolhas
repetidas e repetíveis. Essa doutrina foi exposta pela primeira vez por Platão. Diante das duas teses
opostas — convenciona-lidade e naturalidade da L. —, Platão evita decidir-se em favor de uma das duas.
Em Crátilo afirma: "Gostaria que, na medida do possível, os. nomes fossem semelhantes às coisas, mas
temo que — como diz Hermógenes — essa atração da semelhança nos leve para um terreno escorregadio
e, assim, seja necessário lançar mão também de um meio mais grosseiro, que é a convenção, para
certificar-nos da exatidão dos nomes" (Crat., 435 c). Para Platão, os nomes dos números, p. ex.,
dificilmente poderiam ser considerados naturais no sentido de serem semelhantes ao que indicam. Mas se
nem a convenção nem a natureza, ou seja, se nem a dessemelhança nem a semelhança entre a palavra e a
coisa constituem o significado, o que é então que o constitui? O uso. Platão diz: "Se o uso não é uma
convenção, seria melhor dizer que não é a semelhança a maneira como as palavras significam, mas antes
o uso: este, ao que parece, pode significar tanto por meio da semelhança quando da dessemelhança"
(Crat., 435 a-b). Platão expressou aqui uma tese fundamental da lingüística moderna: é somente o
emprego que estabelece, ou melhor, constitui o significado das palavras. Mas essa tese pressupõe outra,
do caráter instrumental da L., que Platão expressou ao dizer que a L. é um instrumento e que, como todo
instrumento, deve ajustar-se ao seu objetivo (Crat, 387 a). Desse ponto de vista, o uso é a escolha repetida
ou convalidada que levou a forjar determinado instrumento lingüístico; e, assim como todos os outros
instrumentos, os lingüísticos também podem resultar mais ou menos perfeitos e adequados à sua
finalidade. Justifica-se assim aquilo que, para Platão, é a
tese filosófica fundamental acerca da L.: a falibilidade da L., a possibilidade de dizer o que não é (Sof.,
261 b). A característica comum das duas doutrinas precedentes, como vimos, é a negação dessa tese. A
tese do convencionalis-mo nega que a L. possa incluir o erro porque uma convenção só pode ter o mesmo
valor de uma outra. A tese da naturalidade nega que a L. possa incluir o erro porque deve reconhecer que
a L. representa, de qualquer forma, aquilo que é, estando portanto sempre no campo da verdade. Ambas
as teses excluem que a L. possa ser julgada ou que o juízo sobre a correção tenha sentido. Ao contrário, a
tese da L. como operação, uso, escolha, inclui essa possibilidade, pois que vê nela o produto de operações
destinadas a constituir um instrumento eficaz e não considera infalível o sucesso dessas operações. O
fundamento objetivo dessa possibilidade é que "o discurso nasce da união recíproca das espécies" (Sof,
259 d), e que as espécies não estão todas unidas nem todas desunidas, mas algumas podem juntar-se e
outras não. As possibilidades da L., portanto, são limitadas pelas possibilidades de combinação das
espécies ou formas do ser (Sof., 262 c).
Essa posição de Platão foi reproduzida por Leibniz: "Sei que se costuma dizer nas escolas e em todo lugar
que os significados das palavras são arbitrários (ex instituto), e é verdade que não são determinados por
uma necessidade natural, mas são por força de razões naturais, nas quais o acaso desempenha algum
papel, e às vezes por razões morais, nas quais se inclui a escolha" (Nouv. ess., III, 2, 1). Herder partia da
mesma consideração preliminar e definia como abstração a escolha que se faz de uma qualidade do objeto
com a finalidade de dar-lhe um nome. "O homem põe em ação a reflexão não só quando percebe vivida e
claramente todas as qualidades de um objeto, mas também quando pode reconhecer uma ou mais delas
como qualidades distintivas. (...) E com que meios efetua tal reconhecimento? Através da sua capacidade
de abstração" (Werke, ed. Suphan, V, p. 35). Foi a partir dessa tradição que Humboldt formulou a doutrina
que depois exerceria tanta influência sobre a moderna ciência da L. Desse ponto de vista, a formação dos
instrumentos lingüísticos é a formação de conexões, de symploké (como dizia Platão); portanto, a L. não é
um complexo atomístico de palavras, mas é discurso organizado. Hum-
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LINGUAGEM
boldt expressava claramente este conceito: "Não podemos conceber que a L. tenha início na
designação dos objetos por meio de palavras e que proceda, num segundo momento, à organização dessas
palavras. Na realidade, o discurso não é composto por palavras que o precedem, mas, ao contrário, as
palavras se originam do discurso" ("Einleitung zum Kawi-Werk", Werke, VII, 1, pp. 72 ss.). Portanto, a
comunicação não se realiza a partir da palavra, mas das frases, e só estas são os instrumentos particulares
que formam a L. Qbid., pp. 169 ss.). Essas idéias dominaram e continuam dominando a ciência da L.
Encontram-se incorporadas nos conceitos utilizados por essa ciência, como p. ex. o de fonema. Fonema é
"a unidade mínima dotada de características sonoras distintivas"; é, portanto, uma unidade de significado,
não de som (BLOOMFIELD, Language, 1933, 5. 4). Cada língua escolhe seus fonemas, mas essa escolha
não pode ser qualificada de "casual" ou "arbitrária", nem de "natural" ou "necessária", porque uma
escolha condiciona ou limita as outras, e cada grupo ou série delas é condicionada pela exigência de
eficácia comunicati-va da L. Portanto, os fonemas podem ser reduzidos a tipos, que a ciência da L. se
propõe determinar. A determinação desses tipos fornece o fundamento das escülhas que constituem as
estruturas fundamentais da L. e assim explica, até certo ponto, essas estruturas, sem justificar sua
perfeição ou sua infalibilidade. Na lingüística contemporânea, a concepção de L. como instrumento é
defendida principalmente pelos funcionalistas, que consideram a L. como "instrumento de comunicação",
através do qual a experiência humana se analisa em monemas que têm um conteúdo semântico ou uma
forma fônica: "esta, por sua vez, articula-se em unidades distintas e sucessivas, os fonemas, cuja natureza
e cujas relações variam de uma língua para outra" (MARTINET, A Functional View of Language, 1962,
cap. I).
4
a
A quarta concepção da L., que denominamos de acaso, na realidade é uma especificação da terceira, ou
melhor, é uma perspectiva de estudo aberta pela terceira concepção. Essa perspectiva é constituída pelo
estudo estatístico da L. Sabe-se que as ações individualmente mutáveis e imprevisíveis apresentam
uniformidade e constância se consideradas em grande número. Certamente não se pode prever se certa
pessoa vai casar-se o ano que vem, mas é
possível prever com suficiente aproximação o número de pessoas que se casarão no próximo ano, em
determinada comunidade, com base em estatísticas dos últimos anos. Da mesma forma, podem ser
estudadas as freqüências estatísticas com que determinadas expressões ocorrem numa comunidade
suficientemente ampla para que possam ser fixadas certas constantes estatísticas da L. e tomá-las como
base para o estudo das estruturas lingüísticas. Com certeza tal pesquisa estatística não é indispensável
para o estudo global da L. Também há outro método, de observação sociológica, no qual o observador
lingüístico, participando da vida de uma comunidade, pode descrever os usos lingüísticos. Esse, aliás, é o
método até agora mais adotado pelos glossologistas, que em raras ocasiões, quase exclusivamente ao
tratarem com obras literárias, recorreram ao método estatístico. A propósito, pode-se lembrar a obra de
Lu-toslawski sobre o estilo de Platão {The Origin and Growth of Plato's Logic, 1897), que conseguiu pôr
em bases novas e mais seguras a cronologia dos textos do filósofo. Mas hoje não faltam propostas para o
uso sistemático do método estatístico com vistas à solução de todos os problemas da lingüística estrutural.
G. Herdan diz a propósito: "Se considerarmos a língua como a soma dos signos lingüísticos mais a
probabilidade de que eles se repitam no discurso individual, portanto nos vários modos como o evento
sígnico pode ocorrer em conjunto com as relativas freqüências dos diferentes signos no uso efetivo, a
concepção corresponderá a todas as exigências daquilo que se chama população estatística de tais
eventos, ou seu universo estatístico. Cada enunciado individual (parole, na terminologia de Saussure)
serve de amostra dessa população" (.Language as Choi-ce and Change, 1956, 1.3). Desse ponto de vista,
se examinarmos textos diferentes de uma mesma língua, descobriremos, por exemplo, que as freqüências
relativas com que determinado fonema foi empregado pelos escritores são mais ou menos as mesmas.
Isso autoriza a considerá-las como flutuações da probabilidade constante desse fonema naquela L. Isso
significa que o falante ou escritor obedece a leis aleatórias, e que só quando se consideram grandes
massas de formas lingüísticas é que se tem a impressão de determinação causai em seu uso. Em outros
termos, aqui estaria ocorrendo o que acontece na física, para a qual o determinismo
LINGUAGEM, ANÁLISE DA
624
LÓGICA
macroscópico é apenas o efeito de uma consideração em massa dos eventos microscópicos. Para os
defensores dessa concepção de L., portanto, aquilo que, do ponto de vista intuitivo, aparece na L. como
relação de causa e efeito (a determinação das escolhas lingüísticas), do ponto de vista quantitativo é
apenas acaso. Assim, segundo essa teoria, as diferenças entre os textos não são explicadas pela intenção
dos falantes ou pelo determinismo causai, mas pelas leis estatísticas aleatórias (HERDAN, op. cit., 1.4; C.
E. SHANNON e W. WEAVER, The Mathematical Theo-ry of Communication, Urbana, 1949).
Esse ponto de vista, por um lado, possibilitou as pesquisas da gramática gerativa, que é "um sistema de
regras que, de modo explícito e bem definido, atribuam descrições estruturais aos enunciados"
(CHOMSKY, Aspects of Theory ofSyntax, 1965, p. 8). Por outro lado, possibilitou o uso de modelos (v.
MODELO) que algumas vezes são considerados constituintes da própria realidade sistemática da L. (SAPIR,
Lan-guage, 1921) e outras vezes constructos, ou seja, estruturas hipotéticas oportunamente construídas
(REVZIN, Models ofLanguage, 1966, § 2). V.
ESTRUTURAS; ESTRUTURALISMO.
LINGUAGEM, ANÁLISE DA. V. EMPIRISMO
LÓGICO.
LINGUAGEM FECHADA. V. LlNGUAGEMOBJETO.
LINGUAGEM FORMALIZADA. V. SISTEMA
LOGÍSTICO.
LINGUAGEM-OBJETO (in. Object-langua-gé). Esta noção surge em correspondência com a de
metalinguagem (v.) toda vez que uma linguagem é considerada "semanticamente fechada", por não
conter, além de suas expressões, os nomes dessas expressões ou termos (como "verdadeiro" e "falso") que
a elas se refiram. Neste caso, é necessário distinguir a linguagem da qual se fala, que é o assunto da
discussão, e a linguagem com a qual se fala, com a qual desejamos construir a definição de verdade para
a primeira linguagem. Esta última é a metalinguagem, a primeira é a L. A distinção entre L. e
metalinguagem foi introduzida pelos lógicos poloneses por volta de 1919 e difundida por Tarski (cf. "The
Semantic Conception of Truth", 1944, em Readings in Philosophical Analysis, 1949, p. 60). Essa
distinção foi aceita por Car-nap (Foundations of Logic and Mathematics, 1939, § 3). Por vezes, todavia, a
L. e a metalinguagem coincidem, como p. ex. quando se fala em italiano sobre o italiano. A distinção
vale sobretudo para as linguagens formalizadas (v.).
LÍNGUA GESTUAL (in. Sign languagé). Com este termo entende-se a linguagem constituída por
gestos; segundo as chamadas teorias psicológicas da linguagem, constitui a primeira fase de todas as
linguagens. Wundt distinguiu duas espécies de gestos: indicativo e imítatívo. O gesto indicativo derivaria
biologicamente do movimento de agarrar (Die Sprache, Vólkspsy-chologie, I, 2
a
ed., p. 129). Também
foram estudadas determinadas L. gestuais, como a dos napolitanos de classe baixa, a dos monges trapistas
(que fazem voto de silêncio), a dos índios da América e de alguns grupos de surdos-mudos.
LÍRICO (in. Lyric; fr. Lyrique, ai. Lyrisch; it. Lírico). Adjetivo empregado por Croce para especificar a
expressão artística como expressão do sentimento: "O que confere coerência eu nidade à intuição é o
sentimento: a intuição só é intuição porque representa um sentimento e só pode surgir dele e sobre ele.
(...) Ética e lírica, ou drama e lírica, são divisões escolásticas do indivisível: a arte é sempre lírica, ou seja,
expressão ética e dramática do sentimento" (Breviá-rio di estética, 1912, em Nuovi saggi di estética, p.
28). Para Croce, o lirismo constitui o caráter subjetivo ou romântico da arte.
LITIGIOSUS. Assim foi denominado o dilema de Protágoras e de seu aluno Evatlos (AULO GÉLIO,
Noct. Att, V, 10) (v. DILEMA). LIVRE-ARBÍTRIO. V. LIBERDADE. LÓGICA (in. Logic; fr. Logique; ai.
Logik; it. Lógica). A etimologia dessa palavra (de AÓ70Ç, que significa "palavra", "proposições",
"oração", mas também "pensamento") é tão equívoca quanto a noção que encerra. Em Aristóteles, cujo
grupo de textos, reunidos no Organon, constitui o primeiro estudo amplo dessa disciplina, falta a palavra
para designá-la. No início de Analíticos, o trabalho mais estritamente "lógico" dessa coleção, Aristóteles
define, sem dar nome, a disciplina que se prepara para investigar como ciência da demonstração e do
saber demonstrativo (An. pr, I, 24 a 10 ss.), mas num texto não muito claro. Seus objetos são relacionados
na seqüência do trecho: a proposição (como enunciado apofântico, inserido num discurso demonstrativo),
seus termos (sujeito e predicado) e o silogismo. Aqui e em outros textos (principalmente em Tópicos e
Retórica), Aristóteles distingue dois tipos de discurso, dia-
LÓGICA
625
LÓGICA
lético e demonstrativo: o primeiro parte do problemático e do provável e termina necessariamente no
provável; o segundo parte do verdadeiro e termina no verdadeiro. Mas, à parte o valor cognitivo da
premissa, adverte que, formalmente, os dois discursos são idênticos: consistem sempre no silogismo e em
suas estruturas típicas. O termo Ào-yi^r) (subentendido %í%vr\) encontra-se nas obras dos estóicos para
indicar a arte do discurso persuasivo em geral: divide-se, portanto, em retórica e dialética, contendo esta
última aquilo que será o objeto fundamental da L., a doutrina do discurso demonstrativo e dos objetos a
ele ligados (proposição, termos, silogismo, etc). É só nos comentadores peripatéticos e platônicos de
Aristóteles, ou nos textos dos ecléticos que a estes se referem (como Cícero ou Galeno), todos
influenciados pela terminologia dos estóicos, que o termo "L.", empregado estritamente como sinônimo
de "Dialética", é introduzido como nome da doutrina cujo cerne se encontrava em Analíticos de
Aristóteles, ou seja, a teoria do silogismo e da demonstração. Boécio dá o nome de "L." (também aqui
alternado com "Dialética") ao conjunto de doutrinas contidas no Organon de Aristóteles, ao qual se soma,
como uma espécie de introdução geral, a Isagoge de Porfírio. E assim, durante toda a Idade Média (pelo
menos a partir do séc. XII), a exposição, o estudo e o comentário da Isagoge de Portírio, seguida pelos
livros do Organon (na ordem que se tornou tradicional: Categorias, De interpretatione, Primeiros
analíticos, Segundos analíticos, Tópicos, Refutação dos sofistas), freqüentemente com os comentários e
as traduções ou reduções de Boécio, constituem uma ars (uma das "sete artes liberais") conhecida,
indiferentemente, por Dialética ou Lógica. A diferença, introduzida durante o séc. XIII, entre ars vetus e
ars nova não tem muita relevância tratando-se de uma distinção meramente histórica e didática entre os
livros de Porfírio e de Aristóteles, de longa data conhecidos na tradução de Boécio (Isagoge, Categorias,
De interpretatione), e os livros que se tornaram conhecidos depois, com a difusão de novas traduções
latinas do Organon. Em síntese, o ensino da L. em fins da Idade Antiga e na Idade Média compreendia os
seguintes assuntos: lfi a teoria das quinque vocês ou predicáveis (gênero, espécie, diferença, próprio,
acidente); 2- teoria das categorias ou predicamentos (substância, quantidade, qualidade, relação, lugar,
tempo, posição, posse,
ação, paixão); 3B
doutrina das proposições e regras de conversação; 4a
doutrina do silogismo categórico;
5° doutrina do silogismo hipotético; 6S
dialética: d) tópica; b) doutrina dos sofismas ou fallaciae. Estas
podiam ser agrupadas em três partes: doutrina dos termos, doutrina das proposições, doutrina do
raciocínio (categórico ou hipotético, apodítico ou dialético). A estas partes de origem aristotélica, ou
(através de Boécio) estóica, o pensamento medieval acrescentou algumas doutrinas que constituem uma
contribuição original à tradição L. do Ocidente — doutrina da designação e denotação (de proprietatibus
terminorurri), doutrina dos signos lógicos e das proposições moleculares (de syncategorematious),
doutrina da implicação material (de consequentiis) — todas pertencentes à parte da L. que hoje se
denomina "semântica".
Para compreender as transformações havidas durante a Idade Média, não só na tradição doutrinária, mas
também no âmbito dos objetos incluídos no nome "L.", é necessário atentar para algumas considerações.
Uma vez que Aristóteles estava mais preocupado em criar a nova disciplina do que em fundamentá-la, e
ainda mais preocupado em criar suas doutrinas fundamentais para aplicá-las a problemas filosóficos
"concretos" (principalmente à metafísica e à ética) do que em desenvolvê-las e expô-las sistematicamente,
a L. não só ficou sem nome próprio para designá-la, como também permaneceu equívoca em termos de
status como disciplina e pouco determinada em termos de matéria subiecta. Quais são propriamente os
objetos de que a L. se ocupa? Entidades reais, pensamentos ou formas do discurso? Esse problema se
apresenta já na Antigüidade tardia. Os universais (categorias, gêneros, espécies), que parecem constituir
propriamente os elementos nos quais se resolve o discurso lógico, são substâncias reais ou não? Em
Isagoge, Porfírio formula o problema, Boécio tenta uma solução que, todavia, gira em círculo e se mostra
insatisfatória; disso resultou a disputa medieval entre realistas (Bernardo de Chartres, Guilherme de
Champeaux, Anselmo de Aosta e outros), que afirmam a existência real dos universais e para os quais a
L. é uma espécie de ontologia, e os nominalistas (Roscelin, Abelardo e mais tarde Guilherme de
Ockham), que negam a subsistência ontológica dos universais. Discutindo a questão dos universais,
através de um profundo comentário ao texto de Boécio,
LÓGICA
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LÓGICA
Abelardo é o primeiro a fixar um plano próprio da L.: esta é scientia sermocinalis, os termos da L. são
sermones, portanto palavras, discursos; não meros sons {flatus voeis, como parece ter sustentado
Roscelin), mas palavras com uma intenção (intentió) significativa, vale dizer destinadas a significar
coisas, ou melhor, qualidades, dadas na experiência. A partir de então, definem-se na L. medieval duas
correntes ou métodos (viaé): a via antiqua (ou antiquo-rutri), fiel à tradição realista, portanto de
tendência ontológica, e a via moderna (ou moder-norurri), que desenvolve uma L. "terminista", ou seja,
puramente sermocinalis, em que os termos do discurso são considerados como tais, independentemente
de qualquer hipótese metafísica sobre a existência real ou não de seu objeto. Foi esse, substancialmente, o
ponto de vista que se firmou na L. a partir do séc. XIII e no qual se basearam os textos escolares desta
disciplina, usados até o início da Idade Moderna, como as Summulae logicales de Pedro Hispano (séc.
XIII); a partir daí difundiu-se definitivamente a convicção de que a questão dos universais pertencia mais
à metafísica e à gnosiologia do que à L., que permanece relativamente indiferente a eventuais respostas
dadas a esse problema. Contudo, impor-se-ia uma outra distinção, que em parte chegou até nossos dias,
no que se refere ao objeto da L.; para uns, fatos mentais (Duns Scot, mas também S. Tomás de Aquino e
alguns nominalistas); para outros, não se trataria propriamente de atos mentais, mas de formas estruturais
intencionalmente dirigidas para a constituição de conteúdos semânticos, e, como formas, independentes
tanto de tais conteúdos quanto dos atos mentais em que tais conteúdos são apreendidos (Buridan e seus
continuadores dos sécs. XIV e XV; Alberto de Saxônia, Nicola de Au-trecourt, Marsílio de Inghen e
outros). Esta última posição, retomada por E. Husserl (e de maneira menos clara por B. Russell e por L.
Wittgenstein), determinará o atual renascimento da concepção da L. como formal pura.
Entrementes, propunha-se outro problema: a L. é ciência ou arte? Vale dizer: tratar-se-à de uma disciplina
que, como p. ex. a matemática, expõe relações objetivas subsistentes entre os seus objetos (p. ex., entre as
premissas do silogismo e a sua conclusão) ou uma técnica para obter discursos corretos e verdadeiros?
Em geral, para os lógicos medievais a L. é as duas
coisas; e, como arte, seria ao mesmo tempo um preceituário {Lógica docens) e um exercício ativo de
discurso ou discussão controlado por esses preceitos {Lógica utens). A reação humanista contra a
Escolástica, no campo da L., leva à exaltação deste último aspecto e a uma áspera polêmica contra o
formalismo tradicional (Coluccio Salutati, Lorenzo Valia e outros). À L. "inglesa" (terminista), que, no
ensino e no exercício escolar, perdia-se muitas vezes em estéreis argúcias e ardis disputativos (como a
antiga erística dos tempos de Platão e Aristóteles), é contraposta a L.-retórica, na maioria das vezes de
inspiração ciceroniana, como busca dos meios de persuasão pelo discurso e ao mesmo tempo disciplina
heurística para a procura das verdades no campo das coisas naturais e humanas (históricas e éticas). Esse
movimento de reforma da L. culmina no ramismo (de Petrus Ramus, ou seja, Pierre de Ia Ramée). Ao
lado dessa corrente deve-se lembrar outra, de inspiração peripatética, surgida em Pádua no séc. XVI,
cujos expoentes máximos foram Fracastório e Zabarella, que centralizaram suas indagações no problema
da inferência indutiva, suas dificuldades e seus pressupostos, ao qual o trabalho de Aristóteles apenas
aludira. Também nestes lógicos (ainda que, naturalmente, em formas menos drásticas que nos retores
humanistas), o interesse pelas estruturas formais do discurso dedutivo diminui muito em favor de uma
concepção pragmática e metodológica da ciência da L. No início do séc. XVII, Francis Bacon em certo
sentido leva a cabo esse processo, tentando, com Novum Organum (cujo nome é programático) uma
reforma radical da L., concebida exclusivamente como metodologia científica geral. Descartada quase por
inteiro a tradição L. peripatético-escolástica (centrada na teoria formal do silogismo), a L. humanista (de
Ramus e outros) também destaca os aspectos mais propriamente metodológicos, com a finalidade de
transformá-los em "instrumento" para guiar e enquadrar a investigação científica. Com isso, a antiga
noção de "L." muda completamente. O desinteresse pelo formalismo lógico e, em seu lugar, o interesse
pelos problemas gno-siológicos, psicológicos e metodológicos de uma Lógica utens acentuam-se durante
a Idade Moderna, de tal forma que, durante os sécs. XVII, XVIII e XIX, L. passa a ser o nome de uma
série heterogênea de disciplinas filosóficas, ensinadas nas escolas, "matéria" cujos ma-
LÓGICA
627
LÓGICA
nuais expõem várias coisas diferentes: ao lado da silogística tradicional (freqüentemente reduzida a
poucas noções e mantida mais por razões de tradição do que por interesse real), encontram-se anotações
metodológicas, esboços de teoria do conhecimento, análises de determinados conceitos gerais, etc. Típica
nesse aspecto é a Art depenser dos mestres de Port-Royal, também conhecida pelo nome de Lógica de
Port-Royal, que durante longo tempo foi o texto mais importante dessa disciplina e o modelo adotado e
compendiado com maior ou menor fidelidade pelos demais tratados.
Todavia, o "renascimento" da geometria euclidiana, que teve início no séc. XVI e prosseguiu
triunfalmente (pelo menos no que diz respeito ao aspecto lógico-formal) até quase os nossos dias,
repropõe, juntamente com o modelo do "rigor" euclidiano, o problema de fixar as estruturas discursivas
que constituem esse rigor e das quais este resulta. Descartes (Regulae ad directionem ingenii, Discours de
Ia mé-thodê) e depois Pascal (Esprit de géométrie e Art depersuader) começam a extrapolar, em forma de
regras metodológicas, alguns aspectos desse "rigor", remetendo-se (mesmo em polêmica com a silogística
tradicional) ao terreno de indagações das formas estruturais de uma linguagem perfeita (aqui, a linguagem
matemática) e repropondo, portanto, alguns problemas fundamentais de L. formal, como o da definição
(nominal e real) e o da validade da dedução a partir de axiomas. Simultaneamente, Hobbes, partindo
também do euclidianismo da nova ciência (galileana) da natureza, dava um passo decisivo rumo à
concepção da moderna L. formal pura. De fato, Hobbes introduz a profícua idéia do raciocínio como
"cálculo lógico", como combinação e transformação de símbolos segundo certas regras, que já em
Hobbes se mostravam — e depois cada vez mais — convencionais (seja qual for a maneira de se entender
posteriormente esse "convencionalismo"). Portanto, na história do pensamento, aparecia aquele
convencionalismo que estava destinado a ser o ponto de vista mais eficaz para isentar a L. de todos os
pressupostos dogmáticos e metafísicos, para libertá-la das contaminações psicologizantes (que
continuarão a obstar seu desenvolvimento quase até nossos dias) e organizá-la como disciplina das
estruturas formais do discurso "rigoroso", segundo determinados modelos ideolingüísticos. Contudo o
ponto de vista convencionalista não estava destinado a agir imediatamente sobre o pensamento lógico moderno, que nos filósofos acima citados foi buscar
sobretudo a idéia do cálculo lógico baseado na distinção das idéias em simples e complexas e na analogia
(meramente formal) entre certas operações lógicas e certas operações aritméticas. Representando os
termos com símbolos genéricos (p. ex., letras do alfabeto: a, b, c,..., x, y, z; X, Y, Z; e semelhantes) e as
operações lógicas com símbolos vários (geralmente tomados de empréstimo à aritmética: +, x, =; etc.) é
possível tentar desenvolver uma doutrina matemática (formal) do discurso. Leibniz fez numerosas
tentativas neste sentido, todas porém infrutíferas e por ele abandonadas; outras tentativas desse tipo
(analogamente infrutíferas) foram feitas pela própria escola leib-niziana, como p. ex. por Lambert,
Holland, Cas-tillon. Porém, mais do que nessas tentativas — talvez supervalorizadas pelos lógicos
matemáticos do nosso século —, a importância de Leibniz para o renascimento da L. após a crise
desencadeada pelo Humanismo está na idéia (amplamente desenvolvida pelos seus seguidores alemães do
séc. XVIII, Lambert, Wolff, Crusius) de uma "arquitetônica da razão" (não mais concebida
psicologicamente, mas de tal maneira que prenunciava o ponto de vista "transcendental" da filosofia
posterior), explicitada nas formas e estruturas do discurso; essa "arquitetônica" constituirá o objeto da L.
A herança leibniziana foi recolhida por Kant, que, em Logik, distingue nitidamente a L. da psicologia
(com a qual os Iluministas tendiam a confundi-la) e da ontologia (com a qual alguns leibnizianos,
particularmente Crusius, tendiam a confundi-la), afirmando o caráter de doutrina formal pura: não do
discurso, mas do pensamento,donde as possibilidades de recaída numa espécie de psico-logismo
transcendental, inerentes ao kantismo. De fato, como se sabe, ao lado da L. formal pura, Kant coloca uma
L. transcendental como doutrina das funções puras da consciência; os idealistas, em particular Fichte e
Hegel, ao acentuarem tal interpretação psicologizante e transcendental, resolverão ambas as partes da L.
kantiana na parte transcendental, interpretando depois esta última como uma espécie de "metafísica da
mente" ou do "pensamento". Desde então, em vastas zonas da filosofia contemporânea, todas elas mais ou
menos influenciadas pelo idealismo, o termo "L." perdeu inteiramente o sentido tradicional para retornar
à acepção iluminista de "filosofia do pensamen-
LÓGICA
628
LÓGICA
to" em geral. O fim do séc. XIX apresenta exatamente esse quadro. A L. é entendida como uma "teoria do
pensamento", portanto tratada com métodos naturalistas pelos positivistas (p. ex. Sigwart, Wundt e
outros), e com métodos metafísico-transcendentais pelos idealistas. Hus-serl (Logische Untersuchungen,
I, 1900-1901) criticou profundamente este ponto de vista e, retomando as idéias de um lógico boêmio
esquecido, B. Bolzano ( Wissenschaftslehre, 1838), repropõe a idéia da L. formal pura como doutrina das
proposições em si (em sua pura apo-fanticidade lógica, logo independentes dos atos psicológicos em que
são pensadas e da realidade sobre a qual versam) e da pura dedução de proposições a partir de outras
proposições (em si). Já nessa primeira obra, porém ainda mais nas seguintes (particularmente em
Formate und transzendentale Logik, 1928), Husserl retoma a idéia da razão como "razão formal", ou seja,
pura arquitetônica do pensamento que se explicita historicamente na atividade científica, por um lado, e
na reflexão lógica, por outro.
O renascimento da L. formal pura, característica da época contemporânea, deveria ocorrer, porém, graças
à retomada e ao desenvolvimento — com idéias mais claras e maior independência em relação a doutrinas
metafísicas — das malogradas tentativas de Leibniz de construir a nossa disciplina na forma de cálculo
simbólico. Esta obra foi iniciada por um grupo de filósofos e matemáticos ingleses em meados do século
passado. G. Bentham, W. Hamilton, A. De Morgan empreenderam o esforço, historicamente decisivo, que
viria a transformar a L. em disciplina matemática, superando o obstáculo contra o qual se haviam chocado
as tentativas de Leibniz: o fato de, na L. aristotélica, as considerações quantitativas serem introduzidas
apenas com relação ao sujeito da proposição, e não com relação ao predicado. Deve-se sobretudo a
Hamilton a chamada "quantificação do predicado", que é a análise das proposições segundo formas que
introduzem quantificadores ("todos", "algum") não só para o sujeito, mas também para o predicado,
interpretando, p. ex.. uma proposição do tipo "todos os homens são mortais" como "todos os homens são
alguns mortais". Na realidade, não se trata de mera "correção" à L. aristotélica (em que a omissão de
quantificadores para o predicado não era absolutamente casual), mas da introdução de um ponto de vista
novo, puramente
extensional, para o qual os conceitos são considerados apenas como classes ou coleções de objetos, e as
proposições são interpretadas como inclusões (ou exclusões) totais ou parciais de classes em (ou de)
classes (em "todos os homens são mortais", "a classe 'homem' está incluída na classe 'mortal'"). Desse
modo, a Analítica de Aristóteles (compreendendo principalmente a teoria da conversão e a do silogismo)
era transformada em — era substituída por — uma espécie de cálculo das classes. Partindo desses
estudos, uma série de lógicos e matemáticos ingleses (C. Boole, Jevons, Venn, Whitehead) e outros
(Schrõder, Poretsky, Cou-turat) criaram uma disciplina mais formalizada e muito mais independente da L.
tradicional, a Álgebra da Lógica, um cálculo ambivalente (ou seja, interpretável como cálculo de classes e
como cálculo de preposições) cuja forma exterior em tudo se assemelha à álgebra simbólica comum,
porém com algumas peculiaridades, como p. ex.: as equações só podem assumir os valores 1 ("universo
de discurso", ou "verdadeiro") ou 0 ("classe vazia", óu "falso"); a . a= ae a + a= a; etc. Essa álgebra da
L. fornecerá os conceitos básicos e muito material doutrinário à Lógica matemática, criada entre o fim do
séc. XIX e o início do séc. XX por G. Frege, G. Peano e B. Russell, que culmina em Principia
mathematica de Russell e A. N. Whitehead, obra publicada entre 1900 e 1913- Nela, a L. passava a ser
constituída por duas disciplinas fundamentais: o cálculo proposicional, segundo as operações principais
de negação, disjunção ou afirmação alternativa, conjunção ou afirmação simultânea, implicação material,
e o cálculo das funções proposicionais (enunciados que contêm variáveis); este último dá origem à
consideração de enunciados gerais e enunciados particulares ou existenciais, mediante os operadores
"para cada x" e "existe pelo menos um .xtal que" (resp. 'Cr)', e '(3*)'.). Desta última doutrina deriva a dos
símbolos incompletos: descrições (como "o rei de França") e classes. O cálculo das classes, portanto, não
é mais uma doutrina fundamental da L., sendo derivável do cálculo das funções proposicionais: todavia,
devido à sua importância, muitos lógicos contemporâneos ainda o consideram um capítulo à parte (o
mesmo ocorre com as relações). Posteriormente, Wittgenstein, em Tractatus, enunciará uma espécie de
segunda tese extensional para as proposições: distinguindo proposições
LÓGICA
629
LÓGICA
atômicas (simples) de moleculares (complexas), afirmará que estas últimas dependem, para serem
verdadeiras ou falsas, da verdade ou da falsidade dos componentes atômicos somadas às regras
semânticas das operações de composição (p. ex., o enunciado "pou q" será verdadeiro se, e somente se,
pelo menos p ou q for verdadeiro): donde a formulação do cálculo proposi-cional com base em certos
diagramas lógicos meramente combinatórios. Partindo deles, no período entre as duas guerras mundiais,
alguns lógicos (principalmente poloneses) tentaram elaborar lógicas polivalentes em que outros
enunciados além de 1 ("verdadeiro") e 0 ("falso") podem assumir valores intermediários. Faltava ainda,
em Principia, obra exclusivamente voltada para a fundação da aritmética dos números naturais, um
trabalho sobre a lógical mo-dal, ou seja, um cálculo de valores modais como "possível", "necessário", etc,
que será tentado posteriormente por lógicos como Lewis e Von Wright.
A L. matemática tinha sobretudo dois objetivos: ls
constituir a disciplina matemática fundamental; todas
as demais matemáticas — segundo a tese logicista defendida por Frege e por Russell — seriam suas
ramificações mais ou menos, complexas, mas sempre com o mesmo material conceituai e nele
reintegráveis; e 2S constituir (de acordo com o programa formalista de Peano, desenvolvido
posteriormente por D. Hilbert) métodos de formulação rigorosa e de controle lógico das disciplinas
matemáticas propriamente ditas. A L. torna-se, assim, um instrumento de análise filosófica. Graças a
Russell e Wittgenstein, passa a constituir uma espécie de linguagem ideal ou perfeita, ou melhor, o
esquema geral (porque meramente simbólico) de semelhante linguagem, segundo o qual depois seriam
construídas linguagens (ou fragmentos de linguagens) científicas, nas quais deveriam ser traduzidos e,
assim, analisados segundo as estruturas lógicas dessa linguagem os enunciados de cada disciplina em
exame. Sob esse aspecto, a L. simbólica de Russell não está mais estreitamente ligada às matemáticas
como tais: é a L. tout court, instrumento de análise científica e geral. E também foi aplicada à análise
filosófica pelo próprio Russell, por Wittgenstein, por Wisdom e em seguida (com total abandono dos
pressupostos metafísicos do atomismo lógico de Russell) pelos empiristas lógicos.
Mas o programa de Russell, centrado na noção de linguagem ideal, foi alvo de severas críticas, principalmente — mas não apenas — por parte dos "analistas do uso", de Oxford. Por outro lado,
em outros setores (p. ex., na escola alemã proveniente de Hilbert e de Scholze, e na escola polonesa de
Lukasiewicz e Tarski) prevaleceram os interesses matemáticos e o interesse pela própria L. como
disciplina estritamente matemática. Essa é a origem da cisão (por ora parcial) da L. numa série de
disciplinas cada vez mais formalizadas e matematizadas, com todos os complexos problemas inerentes à
formalização de uma disciplina matemática fundamental (a metamatemáticd), para a qual não se pode
usar uma outra linguagem formali-zante sem cair num círculo: donde os problemas enfrentados por
Gõdel, Hermes, Tarski e em parte também por Carnap. Entretanto, na ex-escola de Viena (atualmente
escola de Chicago) e sob a influência de outras correntes (neopositivismo inglês, pragmatismo
americano), principalmente por obra de Morris, Carnap e Hempel, a L. recebeu orientação sobretudo
analítico-filosófica, com tendência a tornar-se parte de uma disciplina bem mais ampla, a semiótica ou
teoria geral dos signos (cuja parte mais interessante é a teoria da linguagem), criada por Ch. W. Morris
sob o duplo impulso da sintaxe lógica de Carnap e da Lógica de De-wey. Com o abandono dos
pressupostos cons-ciencialistas ou mentalistas, bem como das veleidades metafísicas, a ciência do
pensamento torna-se ciência da linguagem, que é um comportamento humano típico e fundamental. A
análise lógica torna-se análise lingüística, mas aquilo que a tradição considerava dimensão "L." é somente
uma das dimensões da linguagem, ou melhor, duas (segundo Morris e Carnap, numa distinção
amplamente aceita, mas hoje também muito controversa): a dimensão sintática, na qual os signos que
compõem o discurso (a linguagem) interligam-se segundo regras de formação e transformação
(derivação) relativas à única forma do próprio discurso; e a dimensão semântica, na qual o discurso e os
enunciados que o compõem podem ser verdadeiros ou falsos, ou seja, tratam de fatos e eventos;
conseqüentemente — o que muitos filósofos, p. ex. os fenomenistas, contestariam — as palavras que o
compõem tratam de coisas e qualidades. Estes são os dois aspectos fundamentais (L. matemática e L.
formal analítica) em que se divide hoje a L.; contudo essa divisão não significa separação em duas
disciplinas diferentes, muito menos antitéticas, mas duas di-
LOGICISMO
630
LOGOS
reções diferentes da investigação lógica, movidas por dois tipos diferentes de interesse teórico.
G. P.
LOGICISMO (in. Logicism; fr. Logicisme; ai. Logicismus-, it. Logicismó). Com este nome costuma-se
designar uma corrente de pensamento lógico-matemático que floresceu no fim do séc. XLX e no início do
séc. XX, e cujos principais representantes foram R. Dedekind, G. Frege e B. Russell; no séc. XX, teve
muitos seguidores, sobretudo (mas não exclusivamente) no denominado "Círculo de Viena" (Carnap). Os
pensadores dessa corrente sustentam que a matemática (pura) é um ramo da lógica, ou seja, que todas as
proposições das matemáticas puras (particularmente da aritmética, portanto da análise) só podem ser
enunciadas com o vocabulário e a sintaxe da lógica matemática, que assim se torna a disciplina
matemática por excelência. Com esta convicção, Dedekind, Frege e Russell realizaram suas famosas
análises do conceito de "número" (inteiro), exatamente para defini-lo apenas através de noções (símbolos)
da lógica matemática. Ao L. opõem-se o formalismoe o intuicionismo (v. MATEMÁTICA).
G.P.
LÓGICO (in. Logical; fr. Logique, ai. Logiscb; it. Lógico). 1. O mesmo que racional.
2. O que diz respeito a determinado tipo de lógica. Nesse sentido denomina-se hoje "verdade lógica" a
verdade que consiste na enun-ciação de uma tautologia, conforme o conceito da lógica como estudo das
tautologias (v. LÓGICA; RAZÃO).
LÓGICOS, PRINCÍPIOS. V. CONTRADIÇÃO, PRINCÍPIO DE; FUNDAMENTO; IDENTIDADE, PRINCÍPIO DE;
TERCEIRO EXCLUÍDO, PRINCÍPIO DO.
LOGÍSTICA (in. Logistic; fr. Logistique; ai. Logistik; it. Logística). Na Antigüidade (p. ex., nos
fragmentos do pitagórico Arquitas de Ta-rento) o termo "L." às vezes era empregado para indicar a
aritmética pura. Leibniz empregou esse termo como sinônimo de "cálculo lógico" ou "lógica
matemática": com este significado de "lógica simbólica" ou "matemática" foi proposto por Couturat e
Lalande ao Congresso Internacional de Filosofia de Paris em 1904. Mas, depois de ter algum sucesso, o
termo "L." passou a ser raramente empregado. G. P.
LOGÍSTICO, SISTEMA. V. SISTEMA LOGÍSTICO.
LOGOS (gr. X070Ç; lat. Verbum). A razão enquanto 1Q
substância ou causa do mundo; 2e pessoa divina.
l
s
A doutrina do L. como substância ou causa do mundo foi defendida pela primeira vez por Heráclito:
"Os homens são obtusos com relação ao ser do L., tanto antes quanto depois que ouviram falar dele; e não
parecem conhecê-lo, ainda que tudo aconteça segundo o L." (Fr. 1, Diels). O L. é concebido por Heráclito
como sendo a própria lei cósmica: "Todas as leis humanas alimentam-se de uma só lei divina: porque esta
domina tudo o que quer, e basta para tudo e prevalece a tudo" (Fr. 114, Diels). Esta concepção foi tomada
pelos estói-cos, que viram na razão o "princípio ativo" do mundo, que anima, organiza e guia seu
princípio passivo, que é a matéria. "O princípio ativo" — diziam — "é o L. que está na matéria, é Deus:
ele é eterno e, através da matéria, é artífice de todas as coisas" (DiÓG. L., VII, 134). O L. assim
entendido, como princípio formador do mundo, é identificado pelos estóicos com o destino (Lbid., VII,
149). No mesmo sentido, Plotino afirma: "O L. que age na matéria é um princípio ativo natural: não é
pensamento nem visão, mas potência capaz de modificar a matéria, potência que não conhece, mas age
como o selo que imprime sua forma ou como o objeto que reproduz o seu reflexo na água; assim como o
círculo vem do centro, também a potência vegetativa ou geradora recebe de outro lugar sua potência
produtiva, isto é, da parte principal da alma, a qual lhe comunica esta potência modificando a alma
geradora que reside no todo" (Enn., II, 3, 17). Nesse sentido, o L. é o próprio Intelecto Divino ordenador
do mundo: "Da inteligência emana o L. e emana sempre, enquanto o Intelecto está presente em todos os
seres" (Lbid., III, 2, 2). Essa concepção serviu de modelo para todas as formas do panteísmo moderno (v.
DEUS).
2- A doutrina do L. como hipóstase ou pessoa divina encontra a primeira formulação em Fílon de
Alexandria. Nessa doutrina, o L. é um ente intermediário entre Deus e o mundo, o instrumento da criação
divina. Diz Fílon: "A sombra de Deus é o seu L.; servindo-se dele como instrumento, Deus criou o
mundo. Essa sombra é quase a imagem derivada e o modelo das outras coisas. Pois assim como Deus é o
modelo dessa sua imagem ou sombra, que é o L., o L. é o modelo das outras coisas" (Ali. leg., III, 31). No
cristianismo, o L. é identificado com Cristo. O prólogo do Evangelho de S. João, ao lado das funções que
Fílon já atribuía ao L., acrescenta a determinação propriamente cristã:
LOGOS
631
LOUCURA
"O L. fez-se carne e viveu entre nós" (Joann., I, 14). Em sua elaboração da teologia cristã, os padres da
Igreja insistiram nos dois pontos seguintes: ls
a perfeita paridade do L.-Filho com Deus-Pai; 2a
a
participação do gênero humano no L., enquanto razão. Justino, p. ex., diz: "Apreendemos que Cristo é o
primogênito de Deus e que éoL, do qual participa todo o gênero humano" (Apol. prima, 46). Contra os
gnósticos seguidores de Valentino, para os quais o L. é o último dos Eons, que, por estar mais próximo do
mundo, destina-se a formá-lo, Irineu afirma a igualdade de essência e dignidade entre Deus-pai eoL, e
entre ambos e o Espírito Santo (Adv. haeres., II, 13, 8). Nesses conceitos deveriam fundamentar-se as
formulações dogmáticas do séc. IV, especialmente as decisões do Concilio de Nicéia (325) sobre os
dogmas fundamentais do Cristianismo: Trindade e Encarnação. Mas entrementes a noção de L. continuou
oscilando entre a interpretação de perfeita paridade entre L. com Deus e a que estabelece certa diferença
hierárquica entre as duas hipóstases. A doutrina de Orígenes, que foi o primeiro grande sistema de
filosofia cristã (séc. III), inclina-se para a segunda interpretação. Orígenes afirma que se pode dizer do L.,
mas não de Deus, que é o ser dos seres, a substância das substâncias, a idéia das idéias: Deus está além de
todas essas coisas (De princ, VI, 64). Portanto, o L. é coeterno com o Pai, que tal não seria se não gerasse
o filho, mas não é eterno no mesmo sentido. Deus é a vida e o Filho recebe a vida do Pai. O Pai é Deus, o
filho é Deus (em Joann., II, 1-2). Como já se disse, a Igreja, em suas sessões conciliares, pronunciou-se
contra essa interpretação, que ficou sendo o apanágio das tentativas heréticas, várias vezes renovadas ao
longo da história.
A doutrina do L. foi sempre religiosa. Os filósofos só recorreram a ela quando quiseram dar caráter
religioso à sua doutrina. Foi o que fez Fichte na segunda fase de seu pensamento. Na Introdução ã vida
bem-aventurada (1806), Fichte utiliza o prólogo ao Evangelho de S. João para demonstrar a concordância
do seu idealismo com o Cristianismo; portanto, reconhece no L. aquilo que ele chama de a Existência ou
Revelação de Deus (além do qual fica o Ser de Deus), ou seja, o Saber, o Eu, a Imagem, cujo fundamento
é a vida divina (Werke, V, p. 475).
LOQUACIDADE (gr. tòolzoyia.; lat. Lo-quacitas; in. Loquacity, fr. Loquacité, ai. Red-seligkeit; it.
Loquacitã). Segundo Aristóteles, um dos caracteres das pessoas idosas, que estão mais interessadas no
passado que no futuro (que já lhes promete pouco); por isso, gostam de falar para rememorá-lo (Ret., II,
13, 1390 a 6).
LOUCURA (gr. |a.opía; lat. Stultitia; in. Madness; fr. Folie; ai. Wahn; it. Pazzid). 1. O que Platão
chamava de boa L., que não é doença ou perdição, foi interpretada de dois modos diferentes: I
a
como
inspiração ou dom divino; 2S
como amor à vida e tendência a vivê-la em sua simplicidade.
I
a O primeiro significado encontra-se em Fedro, onde Platão afirma que "os maiores bens nos são
ofertados através de uma L. que é um dom divino" (Fed., 244 a). Essa L. manifesta-se em quatro formas:
a) L. profética, base da adivinhação, arte de predizer o futuro; b) L. purificadora, que permite afastar os
males por meio de purificações e de iniciações no presente e no futuro; c) L. poética, que é inspirada
pelas musas (Ibid., 244a, 245a); d) L. amorosa, a forma superior, à qual o homem é predisposto pela
lembrança da beleza ideal, despertada nele pela beleza das coisas do mundo (Ibid., 249e). Obviamente, as
três primeiras formas de L. têm inspiração divina e são atribuíveis ao entusiasmo (v.). O amor, entretanto,
é L. em sentido diferente, como aspiração ao ser autêntico, despertada por sua manifestação ''mais amável
e mais evidente", que é a beleza. Ora, este já é o segundo significado de L.
2
S
No segundo significado, a L. é de fato amor à vida em sua simplicidade, contraposta à sabedoria
artificiosa e sombria, bem como à ciência de quem sabe tudo menos viver e amar. O Elogio da loucura
(Stultiae laus, 1509). de Erasmo de Roterdã, é a mais famosa defesa desse segundo significado do termo.
Eis como Erasmo traça o retrato do sábio estóico: "Ele é surdo à voz dos sentidos, não sente emoção
nenhuma, o amor e a piedade não impressionam seu coração duro como diamante, nada lhe escapa, nunca
deixa de duvidar, sua visão é de lince, tudo pesa com a máxima exatidão, nada perdoa; encontra em si
mesmo sua felicidade, julga-se o único rico da terra, o único sábio, o único rei, o único liberto: numa
palavra, julga-se o todo; e o mais interessante é que ele é o único a julgar-se assim". Ora, pergunta-se
LUGAR
632
LUGARES
Erasmo, quem não preferiria a este sábio "um homem qualquer, retirado da multidão dos homens loucos,
que, conquanto louco, soubesse comandar os loucos e obedecer a eles e fazer-se amar por todos; e que
fosse complacente com a esposa, bom para os filhos, alegre nos banquetes, sociável com todos com quem
convive, e por fim que não se considerasse alheio a tudo o que pertence à humanidade?" (El, 30). A L. de
que fala Erasmo é a simplicidade da vida, que se satisfaz nutrindo ilusões e esperanças; ou, no campo da
religião, é a fé e a caridade contrapostas às cerimônias exteriores, aos ritos mecanizados e à hipocrisia dos
grandes banquetes (Ibid., 54). Essa forma de L. nada tem, obviamente, com a inspiração divina, mas é
humana, laica, e por isso seu elogio é um dos documentos mais significativos do Renascimento.
2. O mesmo que psicose (v.).
LUGAR (gr. TÓJIOÇ; lat. Locus; in. Place; fr. Lieu; ai. Ort; it. Luogó). Situação de um corpo no espaço.
Há duas doutrinas do L.: I
a
de Aristóteles, para quem o L. é o limite que circunda o corpo, sendo portanto
uma realidade autônoma; 2- moderna, para a qual o L. é certa relação de um corpo com os outros.
I
a Segundo Aristóteles, o L. é "o primeiro limite imóvel que encerra um corpo" (Fís., IV, 4, 212 a 20); em
outros termos, é aquilo que abarca ou circunda imediatamente o corpo. Nesse sentido, diz-se que o corpo
está no ar porque o ar circunda o corpo e está em contato imediato com ele. Essa concepção persistiu
durante toda a filosofia medieval e também é repetida substancialmente pelos críticos da física
aristotélica, como p. ex. Ockham (Summulae in librosphys., IV, 20; Quodl, I, 4). Com base nessa
concepção, existem "lugares naturais", nos quais um corpo naturalmente está ou aos quais volta quando
deles é afastado: "Uma coisa" — afirma Aristóteles — "move-se naturalmente ou não naturalmente, e os
dois movimentos são determinados pelos lugares próprios ou pelos lugares estranhos. O L. no qual uma
coisa permanece ou para o qual se movimenta não por natureza deve ser o L. natural de alguma outra
coisa, como demonstra a experiência" (De cael, I, 7, 276 a 11). Toda a física aristotélica está baseada
neste teorema (v. FÍSICA).
2
a
A teoria aristotélica dos lugares era alvo da crítica acerba de Galilei, em Dialoghi dei massimi sistemi
(1632, Giornata seconda). Alguns anos depois, Descartes expressaria com
toda a clareza o conceito de L. que emergia da nova postura da ciência: "As palavras 'L.' e 'espaço' nada
significam de realmente diferente dos corpos que afirmamos estarem em algum lugar, e indicam apenas
seu tamanho e forma, e como estão situados entre os outros corpos. Para determinar essa situação, é
necessário referir-se a outros corpos que consideramos imóveis, mas, como tais corpos podem ser
diferentes, podemos dizer que uma mesma coisa, ao mesmo tempo, muda e não muda de L." (Princ. phil,
II, 13). E Descartes cita o exemplo do homem que está sentado num barco que se afasta da margem: o L.
desse homem não muda em relação ao barco, mas muda em relação à margem. Com essas observações,
que exprimem a relatividade do movimento (relatividade de Galileu), chega-se ao conceito moderno de L.
como relação entre um corpo e outro, tomado como referência.
LUGARES (gr. Tórcoi; lat. Loci; in. Topics, fr. Lieux; ai. Õrter, it. Luoght). Segundo Aristóteles, são os
objetos dos raciocínios dialéticos e retóricos, "assuntos comuns à ética, à política, à física e a muitas
outras disciplinas, como p. ex. o argumento do mais e do menos" (Ret., I, 2, 1358 a 10). Estes seriam os
L.-comuns. Mas existem também, segundo Aristóteles, L. especiais ou próprios, que são os artigos
constituídos por proposições pertencentes, p. ex., à física, mas nos quais é impossível fundar proposições
concernentes à ética, ou reciprocamente. Os L.-comuns não têm objeto específico, por isso não aumentam
o conhecimento das coisas; os L.-próprios, entretanto, especialmente se utilizam proposições
oportunamente escolhidas, contribuem para o conhecimento das ciências especiais (Ret., I, 2, 1358 a 21).
Os retores latinos salientaram a importância desse tipo de estudo, sobretudo dos L.-comuns, para a arte
oratória, pois não aumentam o saber, mas são instrumentos de persuasão (CÍCERO, Top, 2, 7; De oral, II,
36, 152; QUIN-TILIANO, Inst., V, 10, 20). Através das obras lógicas de Boécio (De diff. topicis, I; P. L, 64B
,
col. 1174), essa noção passou para a lógica medieval. Pedro Hispano define os L. como "a sede de um
argumento ou daquilo de que se extrai um argumento conveniente à questão proposta" (Summ. log., 5.
06).
Como se disse, a parte da lógica que estuda os L. é a Tópica. Para Cícero, era a parte inventiva da lógica,
a que excogita os argumentos úteis ao convencimento, mais do que ao juízo
LUIIANA,ARTE
633
LUZ1
sobre sua validade. E repreendeu os estóicos por haverem cultivado somente a dialética, ne--gligenciando
a Tópica (Top, 2, 6). Mas, na realidade, Aristóteles não alude à capacidade inventiva da Tópica,
entendendo-a mais como um estudo voltado a reunir sob um número restrito de tópicos (que são
exatamente os L) os argumentos que estejam presentes em várias ciências ou em várias partes de uma
mesma ciência. De qualquer forma, a crença no caráter inventivo da Tópica passou para a tradição
(através de BOÉCIO, Dediff. top., I; P. L., 64s
, col. 1173); aliás, quando se começou a reconhecer o caráter
improdutivo da lógica âristotélica, a ela foi contraposta a importância da Tópica como arte de invenção.
Foi o que fizeram Pedro Ramus (Dialecticae institutiones, 1543) e Viço (De antiquissima italorum
sapientia 1710), que considerou a Tópica como a arte do engenho, que é a faculdade da invenção. Ainda,
em lógica hamburgensis (1638), de Jungius, há um vasto estudo sobre os L. lógicos, sob o titulo de
Dialética (livro V). Mas a Lógica de Port-Royal (1662) já afirmava a escassa utilidade do estudo dos
Tópicos. Arnauld disse: "Para formar os homens numa eloqüência judiciosa e sólida, seria útil ensinarlhes a calar mais que a falar, ou seja, a suprimir e eliminar os pensamentos baixos, comuns e falsos mais
que a produzir, como fazem; um amontoado confuso de raciocínios bons e maus, com os quais se enchem
livros e discursos" (Log., cap. 17). O estudo dos L. desse gênero serve, portanto, apenas para reconhecêlos e evitá-los. A Lógica de Port-Royal enumerava três espécies deles: gramaticais, lógicos e metafísicos
(Lbid., cap. 18). Posteriormente, o estudo dos L. deixou de fazer parte integrante da lógica. Kant
generaliza o conceito de lugar lógico entendendo por ele "qualquer conceito, qualquer título sob o qual se
agrupem muitos conhecimentos", e fala de uma "Tópica transcendental", cujo objeto é "a determinação do
lugar que cabe a cada conceito na sensibilidade ou no conceito puro, segundo a diversidade do seu uso"
(Crít. R. Pura, Anal. dos princ, Nota às anfibolias dos conceitos da reflexão). Nesse sentido, a Tópica
coincide com a "doutrina dos elementos" da Crítica da Razão Pura.
LULIANA, ARTE (lat. Ars lulliana; in. Lullic art; fr. Art lullien; ai. Lullische Kunsi). Ars magna de
Raimundo Lúlio (1235-1315), ciência universal que ensina a combinar os termos para a descoberta
sintética dos princípios das ciências.
Diferentemente da lógica âristotélica, a ars magna pretende ser um procedimento inventivo que não se
limita a resolver as verdades conhecidas, mas passa à descoberta de novas. A noção dessa arte, que no
Renascimento teve seguidores entusiastas, entre os quais Agripa, Bovillo e Bruno, foi retomada por
Leibniz, que a denominou Característica Geral (v. CARACTERÍSTICA).
LUTA PELA VIDA. V. SELEÇÃO NATURAL.
LUZ1
(gr. (péyyoç; lat. Lumen-, in. Light; fr. Lumière-, ai. Licht; it. Lume). Critério diretivo do
pensamento e da conduta do homem, comparado à L. procedente do alto ou de fora. Para Aristóteles, a
ação do intelecto ativo sobre a alma humana era comparável à L. que põe em ato as cores que no escuro
estão somente em potência (De an., III, 5, 430 a 15). Os estóicos falavam da faculdade sensível e da
representação cataléptica como de uma "L. natural": "Como uma L. natural para o reconhecimento das
verdades, foram-nos dadas a faculdade sensível e a representação gerada através dela" (SEXTO EMPÍRICO,
Adv. math., VII, 259). E Cícero dizia: "A natureza deu-nos minúsculas centelhas que nós, estragados pelos
maus costumes e pelas falsas opiniões, apagamos, levando ao total desaparecimento da L. natural" (Tusc,
III, 1, 2). Plotino fala do Bem como "L. que ilumina o intelecto" (Enn., VI, 7, 24). Mas foi só com S.
Agostinho que a noção de L. tornou-se fundamental, difundindo-se através de sua obra e permanecendo
viva na tradição ocidental. S. Agostinho atribui aos estóicos o mérito de ter visto em Deus "a L. das
mentes" (De civ. Dei, VIII, 7). Essa L. é a condição para o verdadeiro conhecimento e para a comunicação
de verdades. A luz da verdade que, partindo de Deus, ilumina diretamente a alma e a guia é o conceito
central da filosofia agostiniana. "Mesmo os ignorantes" — diz S. Agostinho — "quando bem
interrogados, respondem corretamente acerca de algumas disciplinas, pois neles está presente, na medida
em que podem recebê-la, a L. da razão eterna, na qual vêem as verdades imutáveis" (Retractiones, I, 4, 4).
Isso significa que o funcionamento natural do intelecto humano exige a presença da L. divina e que, para
o homem, o conhecimento da verdade é a visão da verdade em Deus, possível graças à direta iluminação
divina. Nos primórdios da Escolástica essa doutrina foi reproduzida por Scotus Erigena (Dedivis. nat., II,
23), mas nas suas fases posteriores passou a ser um dos maiores
LUZ1
634
LUZ2
pontos de divergência entre a corrente agosti-niana e a aristotélica. Essa divergência é tipicamente
expressa pelas posições de S. Boa-ventura e de S. Tomás. S. Boaventura refere-se às palavras de
Agostinho, "que, com letras claras e razões, demonstra que a mente, em seu conhecimento certo, deve ser
dirigida por regras imutáveis e eternas; não através de uma de suas disposições (habitus), mas diretamente
por essas regras, que estão acima dela, na Verdade eterna" (De sciencia Christi, q. 4). S. Tomás admite
que "tudo aquilo que se sabe com certeza deriva da L. da razão que, por obra divina, é inata interiormente
no homem" (De ver., q. 11, a. 1, ad 13). Mas interpreta aristote-licamente essa L. como o conhecimento
inato dos primeiros princípios indemonstráveis "conhecidos graças à L. do intelecto agente" (Contra
Gent., III, 46). Em outros termos, o conhecimento humano da verdade não é visão em Deus, ou
iluminação direta por parte de Deus: é o uso de uma "forma" que Deus comunicou à mente humana e que
constitui, portanto, a "L. natural" dela (S. Tb., I, q. 106, a. 1). Dessa L. natural S. Tomás distingue a L. da
glória (lumen gloriaé), que torna a criatura racional "deifor-me", capaz de ver a essência divina; nega que
a L. da glória possa ser uma disposição natural do homem (Ibid., I q. 12, a. 5); diz o mesmo sobre o
lumengratiae, a graça justificante (Ibid., I, q. 106, a. 1).
O significado do conceito de L. em Agostinho, que é de iluminação contínua por parte de Deus, conservase nas doutrinas de inspiração agostiniana no mundo moderno e contemporâneo. Para elas, o
conhecimento é uma "visão em Deus": Malebranche (Recberche de Ia vérité, III, 2, 6), Rosmini (Nuovo
saggio, § 396) e Gioberti (Introd. alio studio delia JiL, II, p. 175). Por outro lado, de acordo com a
segunda interpretação, a L. natural acaba perdendo qualquer conexão teológica. O título que Descartes
deu a um diálogo inacabado, que deveria sintetizar sua filosofia, demonstra o modo como ele entendia
essa noção: "Busca da verdade com a L. natural que, por si só, sem o auxílio da religião e da filosofia,
determina as opiniões que um homem honesto deve ter sobre todas as coisas que possam ocupar seu
pensamento, L. que penetra até os segredos das ciências mais curiosas." Assim entendida, a L. natural é o
"bom senso ou razão" que, nas primeiras linhas do Discurso do método, é considerada "a coisa mais bem
distribuída do mundo";
sobre ela se diz, em Princípios de filosofia (I, 30): "A faculdade de conhecer, que nos foi dada e que nós
denominamos L. natural, só percebe objetos verdadeiros, porquanto os apercebe, ou seja, conhece-os
clara e distintamente." Leibniz, por sua vez, afirma que "a L. natural supõe um conhecimento distinto"
(Nouv. ess., I, 1, 21) e Wolff entendia por "L. da alma" a "clareza das percepções" (Psychol. empírica, §
35). Nestes empregos, essa palavra não tem mais nada do significado tradicional, de L. que, proveniente
de fora ou do alto, penetre na mente humana para guiá-la. A L. natural aqui é somente a clareza do
pensamento humano. Ao falar da máxima "É preciso seguir a alegria e evitar a tristeza", Leibniz afirma:
"Trata-se de um princípio inato, mas que não faz parte da L. natural, pois não fica sendo conhecido de
maneira luminosa" (Nouv. ess., I, 2, 1). O significado que a expressão "as L." assumiu no período
iluminista é esclarecido por Leibniz. As L. são a clareza da crítica racional aplicada a todos os campos
possíveis do saber e usada como critério diretivo do pensamento e da conduta do homem.
LUZ2
(lat. Lux, in. Light; fr. Lumière, ai. Licht; it. Lucé). Para certa tradição filosófica, cuja origem
remota e provável estaria na religião persa que adorou Mitra como "Espírito da L." (cf. CUMONT,
Oriental Religions in Roman Paga-nism; trad. in., p. 155), a L. é uma realidade privilegiada de natureza
incorpórea, via de comunicação entre as regiões superiores do mundo e do homem. As características
mais evidentes dessa doutrina são as seguintes: I
a
a L. é uma realidade superior privilegiada: é Deus ou de
Deus; 2a
a L. é incorpórea e serve de ligação entre o mundo incorpóreo e o mundo cor-póreo; 3â
a L. é a
forma geral (essência ou natureza) das coisas corpóreas. As primeiras duas teses são de caráter religioso e
de claríssima origem oriental. A terceira é propriamente filosófica e caracteriza o agostinismo medieval.
Na filosofia ocidental, a metafísica da L. é introduzida por Parmênides: "E como se diz que todas as
coisas são L. e noite, e como L. e noite estão presentes nisto e naquilo, segundo suas possibilidades, o
todo é pleno de L. e ao mesmo tempo de invisível treva; L. e trevas são iguais, pois nenhuma prevalece
sobre a outra" (Pr. 9)- A substancialização da L. é freqüente em Enéadas de Plotino, em que às vezes não
é fácil distinguir a L. como metáfora da L. como substância (p. ex., Enn., V, 3, 9; IV, 3, 17). Apa-
LUZ2
635
LUZ2
rece com toda clareza nas especulações dos gnósticos, de direta proveniência maniqueísta: "Antes que o
universo visível tivesse origem subsistiam dois princípios supremos: um bom e o outro perverso. A
morada do primeiro, Pai de Grandeza, era na região da L. Ele multiplicava-se em cinco hipóstases:
Intelecto, Razão, Pensamento, Reflexão, Vontade" (BuoNAiun, Fram-menti gnosticí, 1923, p. 55). Num
dos livros da Cabala, o Zohar, a L. é entendida como substância primitiva que às vezes apar
ece como céu,
portanto como elemento no qual os outros se dissolverão no fim dos tempos (cf. SF.ROUYA, LaKabbale,
Paris, 1957, pp. 346 ss.). Essa doutrina passou para a filosofia hebraica da Idade Média e, dela, para a
escolástica cristã. Nesta, foi característica da corrente agostiniana, defendida especialmente pelos
franciscanos. No séc. XIII, Roberto Grosseteste afirmava que todos os corpos têm uma forma comum que
se une à matéria-prima antes de sua especificação nos vários elementos. Esta forma primeira é a L. "A L."
— diz ele — "difunde-se por si em todas as direções, de tal modo que de um ponto luminoso é
imediatamente gerada uma esfera de L. tão grande quanto se queira, a menos que encontre o obstáculo de
algum corpo opaco. Por outro lado, a corporeidade é aquilo que tem por conseqüência necessária a
extensão da matéria nas três dimensões" (De inchoatione formarum, ed. Baur, 51-52). Roberto
identificava assim a difusão instantânea da L. em todas as direções com a tridimensionalidade do espaço,
portanto L. com espaço. Quase nos mesmos termos Bonaventura de Bagnorea afirmava que a L. não é um
corpo, mas a forma de todos os corpos: "A L. é a forma substancial de todo corpo natural". Todos os
corpos dela participam em maior ou menor grau; segundo essa participação têm maior ou menor
dignidade e valor na hierarquia dos seres. Ela é o princípio
da formação geral dos corpos; a sua formação especial é devida à superveniência de outras formas,
elementares ou mistas (In Sent, II, d. 13 d. 2 q. 1-2). Na segunda metade do mesmo séc. XIII a
Perspectiva de Witel expõe idéias muito semelhantes. "A ação divina expande-se no mundo através da L.
As substâncias inferiores recebem das substâncias superiores a L. proveniente da fonte da divina
bondade; em geral o ser de cada coisa provém do ser divino, toda intelegibilidade provém do intelecto
divino e toda vitalidade, da vida divina. O princípio, o meio e o fim de todas essas influências é a L.
divina, pela qual, através da qual e para a qual todas as coisas estão dispostas" (Perspectiva, ed.
Baeumker, pp. 127-28). A óptica, que estuda as leis da difusão da L., constitui inteiramente a física,
porquanto todo o mundo físico é determinado pela difusão da L. (Ibid., p. 131). A última manifestação
dessa física ou metafísica da L. talvez seja o projeto de Descartes de descrever o mundo do ponto de vista
da L. "Assim como os pintores, não podendo representar no quadro todas as diversas faces de um corpo,
escolhem uma das faces principais que voltam para a L. e, deixando as outras na sombra, permitem que
delas apareça só o que se pode ver. também eu, temendo não poder pôr no meu discurso [no projetado
livro sobre o Mundo, que depois não publicou] tudo que tinha em mente, projetei expor amplamente
apenas aquilo que pensava sobre a L. Depois, na ocasião, projetei acrescentar algo sobre o sol e as estrelas
fixas, porque é dessas fontes que ela deriva quase inteiramente; sobre os céus, porque a transmitem; sobre
os planetas, os cometas e a terra, porque a refletem; em particular sobre todos os corpos que estão na
terra, porque são coloridos, transparentes ou luminosos; por fim, sobre o homem, porque é seu
espectador" (Discours, V).
M
MACROCOSMO. V. MICROCOSMO.
MÃE (gr. HTÍxrip). Segundo Platão, a mãe do universo é a matéria amorfa, assim como o pai é o modelo
eterno segundo o qual o Demiurgo o cria. "Essa mãe e receptora de tudo, de tudo o que de visível e
sensível é criado, não deve ser chamada de terra, nem de ar, nem de fogo, nem de água, nem de outra
coisa que destas nasça ou da qual estas nasçam; é uma espécie invisível e amorfa, capaz de tudo acolher,
partícipe do inteligível e difícil de se conceber" {Tím., 51 a-b).
MAGIA (gr. uor/ncTi té^vri; lat. Magia; in. Magie, fr. Magie, ai. Magie, it. Magia). Ciência que pretende
dominar as forças naturais com os mesmos procedimentos com que se sujeitam os seres animados. O
pressuposto fundamental da M. é, portanto, o animisma, sua melhor definição, dada por Reinach, é de
"estratégia do animismo" {Mythes, cultes et religions, II, Intr., p. XV). Instrumentos dessa estratégia são:
encantamentos, exorcismos, filtros e talismãs, por meio dos quais o mago se comunica com as forças
naturais ou celestiais ou infernais, convencendo-as a obedecer-lhe. O caráter violento ou matreiro das
operações com que se produz a obediência das forças naturais é outra característica da M., estratégia de
assalto, que quer conquistar de vez, do contrário da estratégia da ciência moderna, que tende à conquista
gradativa da natureza, sem lançar mão de meios violentos ou sub-reptícios.
A M. é de origem oriental e difundiu-se no Ocidente no período greco-romano (cf. F. CUMONT, Oriental
Religions in Roman Paga-nism, cap. VII). Circulou mais ou menos ocultamente durante a Idade Média e
voltou a agir às claras durante o Renascimento, período em que muitas vezes foi considerada
complemento da filosofia natural, ou seja, como a parte desta
que possibilita agir sobre a natureza e dominá-la. Era assim considerada por Pico delia Mirandola {De
hominis dignitate, fl. 136 v.) e por todos os naturalistas do Renascimento. Johannes Reu-chlin, Cornélio
Agripa, Teofrasto Paracelso, Gerolamo Fracastoro, Gerolamo Cardano, Gio-vambattista delia Porta, todos
visam a eliminar o caráter diabólico atribuído durante a Idade Média à M., transformando-a na parte
prática da filosofia. Delia Porta distinguiu nitidamente a M. diabólica, que se vale das ações dos espíritos
imundos, da M. natural, que não ultrapassa os limites das causas naturais e cuja prática parece
maravilhosa apenas porque seus procedimentos permanecem ocultos {Magia natu-ralis, 1558,1, 1). Essa
distinção foi repetida por Campanella, que também distinguia uma M. divina que opera por virtude da
graça divina, como a de Moisés e dos outros profetas {Del senso delle cose e delia magia., 1604, IV, 12).
A respeito da M. no Renascimento, cf. GARIN, Medioevo e Rinascimento, 1954, cap. III.
Com o progresso da ciência, elimina-se o pressuposto da M., que é animismo, retirando-se as bases da
estratégia de assalto em que ela consistia. Francis Bacon, apesar de ser o maior herdeiro dessa exigência
prática que a M. representava, compara-a às novelas de cavalaria do ciclo do rei Artur, considerando-a
proveniente da metafísica que indaga as formas, ao passo que da física, que é a investigação das causas
eficientes e materiais, nasce a mecânica como ciência prática {De augm. scient., III, 5). Portanto, no
mundo moderno a M. desapareceu completamente dos horizontes da ciência e da filosofia. No que
concerne a esta última, constitui exceção a obra de No-valis, que no período romântico defendeu um
'idealismo mágico', segundo o qual boa parte das atividades humanas mais comuns é M.
MAGNANIMIDADE
637
MAIS-VAIIA
Novalis diz: 'O uso ativo dos órgãos nada mais é que pensamento mágico, taumatúrgico, ou uso arbitrário
do mundo dos corpos; de fato, a vontade outra coisa não é senão magia, enérgica capacidade de
pensamento" (Fragmente, § 1731). E exprimia assim o princípio de seu idealismo mágico: "O maior
mago seria aquele que soubesse também encantar-se a tal ponto que suas próprias magias lhe parecessem
fenômenos alheios e autônomos. E não poderia ser esse o nosso caso?" (Ibid., § 1744).
Alheia ao mundo da filosofia e da ciência, a M. permanece como uma das categorias inter-pretativas da
sociologia e da psicologia. Sobre a função da M. no homem primitivo, Mali-nowski assim se expressa: "A
M. fornece ao homem primitivo um número de atos e de crenças rituais já feitos, uma técnica mental e
prática definida que serve para superar os obstáculos perigosos em cada empreendimento importante e em
cada situação crítica. (...) Sua função é ritualizar o otimismo do homem, reforçar sua fé na vitória da
esperança sobre o medo" (Magic Science and Religion, ed. Anchor Book, p. 90). Mas a atitude primitiva
não se encontra só no homem primitivo: o homem civilizado nela reincide em determinadas
circunstâncias, que vão desde a falta de técnicas aptas a enfrentar situações difíceis até a incapacidade de
descobrir como utilizar essas técnicas. Crenças mágicas são, portanto, freqüentes na vida diária, ainda que
muitas vezes não confessadas. Não sem razão, Sartre chamou de comportamento mágico a reação
emotiva patológica que às vezes é a base de distúrbios mentais (v. EMOÇÀO). Além disso, para Jung, a
origem da M. é a idéia de uma energia universal, latente no inconsciente de todo o gênero humano e
identificada com a idéia de Deus (Psicologia do inconsciente, 1942, cap. 5). Lévi-Strauss fez uma
analogia entre a terapêutica mágica e a psicanálise (v.) porque, através da conscientização dos conflitos
internos do paciente, ambas possibilitam uma experiência específica na qual os conflitos podem
desenvolver-se e manifestar-se livremente (Antbro-pologie structurale, 1958, pp. 217 ss.).
MAGNANIMIDADE (gr. \i£jako\\roxía; lat. Magnanimitas, in. Magnanimity, fr. Magnani-mitéai.
Grossmuth; it. Magnanimita). Segundo Aristóteles, a virtude que consiste em desejar grandes honras e em
ser digno delas. Aristóteles dá muito relevo a essa virtude, porquanto ela acompanha e "engrandece" todas
as
outras: "Quem é digno de pequenas coisas e se considera digno delas é moderado, mas não magnânimo; a
M. é inseparável da grandeza, assim como a beleza é inseparável de um corpo grande, já que os corpos
pequenos serão graciosos e proporcionais, mas não belos" (Et. nic, IV, 3, 1123 b 7). A insistência nessa
virtude é o sinal da persistência em Aristóteles da ética aristocrática arcaica (cf. JAEGER, Pai-déia, I; cap.
I; trad. it., I, pp. 43 ss.). Para Descartes, M. é o mesmo que generosidade; identifica-se com a virtude de
avaliar-se de acordo com seu próprio valor e não sentir ciúme ou inveja (Pass. de Vâme, arts. 156-61).
MAIÊUTICA (gr. umetmxn xé^vn; in. Maieutics; fr. Maieutique-, ai. Mãeutik; it. Maieuticd). Arte da
parteira; em Teeteto de Platão, Sócrates compara seus ensinamentos a essa arte, porquanto consistem em
dar à luz conhecimentos que se formam na mente de seus discípulos: "Tenho isso em comum com as
parteiras: sou estéril de sabedoria; e aquilo que há anos muitos censuram em mim, que interrogo os
outros, mas nunca respondo por mim porque não tenho pensamentos sábios a expor, é censura justa"
(Teet, 15c).
MAIORIA DAS VEZES, NA (gr. èni TÒ KOXV; in. Mostly, ai. Zumeist; it. Perlopiü). Esta expressão é
empregada por Aristóteles para indicar o que acontece de modo uniforme e constante, mas nem sempre
nem necessariamente; acidental é o que não acontece sempre nem na maioria das vezes (Met., VI, 2, 1026
b 30). O que é sempre ou necessariamente constitui objeto das ciências teóricas; o que é na maioria das
vezes constitui objeto das ciências praxi-poiéticas; o acidental não pode ser objeto de ciência. Heidegger
empregou essa expressão para indicar o conjunto dos modos de ser que constituem a "medianidade" (Sein
und Zeit, § 9). V. MEDIANIDADE.
MAIS-VAIIA (in. Surplus value, fr. Plus-va-lue, ai. Mehrwert; it. Plusvaloré). Um dos conceitos
fundamentais da economia de Marx. Uma vez que o valor nasce do trabalho e outra coisa não é senão
trabalho materializado, se o empresário retribuísse ao assalariado o valor total produzido pelo seu
trabalho, não existiria o fenômeno puramente capitalista do dinheiro que gera dinheiro. Mas como o
empresário não retribui ao assalariado aquilo que corresponde ao valor por ele produzido, mas apenas o
custo da sua força de trabalho (o suficiente para produzi-la, o mínimo vital), temos o fenômeno da
MAIS-VIDA, MAIS-QUE-VIDA
638
MAL
M., que é a parte do valor produzido pelo trabalho assalariado da qual o capitalista se apodera (cf. Das
Kapital, I, seç. 3).
MAIS-VIDA, MAIS-QUE-VIDA (ai. Mehr-Leben, Mehr-als-Leberi). Expressões cunhadas por G.
Simmel para indicar, respectivamente, o processo da vida e as formas às quais ele dá lugar. Como "M.-
vida", a vida é o processo que supera continuamente os limites que impõe a si mesma. Como "M.-quevida", a vida é o conjunto das formas finitas que emergem do processo vital e a ele se contrapõem
(Lebens-anschauung, 1918, pp. 22-23).
MAL (gr. xò KOCKÓV; lat. Malun; in. Evil; fr. Mal, ai. Bõse, it. Male). Este termo tem uma variedade de
significados tão extensa quanto a do termo bem (v.), do qual é correlativo. Do ponto de vista filosófico,
entretanto, é possível resumir essa variedade em duas interpretações fundamentais dadas a essa noção ao
longo da história da filosofia: I
a
noção metafísica do M., segundo a qual este é d) o nâo-ser, ou b) uma
dualidade no ser; 2- noção subjetivista, segundo a qual o M. é o objeto de aptidão negativa ou de um
juízo negativo.
I- A concepção metafísica do M. consiste em considerá-lo como o não-ser diante do ser, que é o bem, ou
em considerá-lo como uma dualidade do ser, como uma dissensão ou um conflito interno do próprio ser.
a) A concepção do M. como não aparece nos estóicos e é claramente formulada pelos neoplatônicos. Por
considerarem que a existência dos males condiciona a dos bens, de tal modo que, p. ex., não haveria
justiça se não houvesse ofensas, não haveria trabalho se não houvesse indolência, não haveria verdade se
não houvesse mentira, etc, os estóicos, em particular Crisipo, achavam que os chamados males não são
realmente males, porque necessários à ordem e à economia do universo (AULO GÉLIO, Noct. Att., 1).
Marco Aurélio exprimia perfeitamente este ponto de vista dizendo: "Toda vez que arrancas uma partícula
qualquer da ordem e da continuidade do inverso a integridade do todo fica mutilada e comprometida. (...)
E realmente extirpas, na medida do teu poder, alguma coisa do universo toda vez que te queixas do que
aconteceu; em um certo sentido, em assim fazendo, estás condenando à morte o universo inteiro em teu
desejo" (Ric, V, 8). Uma vez que não se pode amar uma coisa e considerá-la má, o ponto de vista estóico
eqüivale a considerar bom tudo o que existe e
a reduzir o M. ao não-ser. Essa redução torna-se explícita no neoplatonismo. Plotino diz: "Se tais são os
entes e se tal é o que está além dos entes [isto é, Deus], então o M. não existe nem naqueles nem neste, já
que tanto um quanto o outro são bem. Conclui-se, portanto, que, se existir, existe no que não é, e que é
uma espécie de nâo-ser, encontrando-se, pois, nas coisas mescladas de não-ser ou partícipes do não-ser"
(Enn., I, 8, 3). Nesse sentido, Plotino identifica o M. com a matéria: a matéria é o não-ser. "O M. não
consiste na deficiência parcial, mas na deficiência total: o que carece parcialmente de bem não é mau e
pode até ser perfeito em seu gênero. Mas quando há deficiência total, como na matéria, tem-se o
verdadeiro M., que não tem parte alguma de bem. A matéria não tem sequer o ser que lhe possibilitaria
participar do bem: pode-se dizer que ela é apenas em sentido equívoco; na verdade, a matéria é o próprio
não-ser" (Ibid., I, 8, 5).
A identificação do M. com o não-ser torna-se tradicional na filosofia cristã. É retomada por Clemente de
Alexandria.(Strom., IV, 13), por Orígenes (Deprinc, I, 109) e por S. Agostinho, que a difunde no mundo
ocidental. S. Agostinho diz.- "Nenhuma natureza é M., e esse nome indica apenas a privação do bem" (De
civ. Dei, XI, 22). Portanto, "todas as coisas são boas, e o M. não é substância porque se fosse substância
seria bem" (Conf, VII, 12). Boécio afirmava: "O mal é nada, porque não o pode fazer Aquele que pode
todas as coisas" (Pbil. cons., III, 12). A Escolástica é igualmente unânime nesse aspecto. S. Anselmo
reiterou a doutrina do M. como não-ser nos mesmos termos de S. Agostinho (De casu diaboli, 12-16).
Com Maimônides, a escolástica hebraica repete a mesma tese (Guia dos perplexos, III, 10), na escolástica
cristã, é repetida por agostinianos, como Alexandre de Hales (S. Th., I, q. 18, 9), por aristotélicos, como
Alberto Magno (S. Th., I, q. 27, 1), e por S. Tomás. Este último diz: "Uma vez que bem é tudo o que é
apetecível e uma vez que a cada natureza apetece seu ser e sua perfeição, cumpre dizer que o ser e a
perfeição de qualquer natureza são essencialmente bem. Portanto, não pode acontecer que 'M.' signifique
algum ser, alguma forma ou natureza; conclui-se, pois, significa apenas a ausência do bem" (S. Th., I, q.
48, a. 1) O verbo ser pode referir-se ao M. somente no sentido "da verdade da proposição", como quando
se diz que "a cegueira é do olho", sentido que não implica
MAL
639
MAL
de modo algum a realidade (entitas rei) (Ibid., I, q. 48, a 2).
Após as observações cépticas de Pierre Bayle sobre a compatibilidade do M. (em todas as suas formas)
com a onipotência divina e com a perfeição do universo, a teodicéia de Leibniz está fundamentada na
doutrina tradicional do M. como negação do bem. "Os platônicos, S. Agostinho e os escolásticos", diz
Leibniz, "tiveram razão em dizer que Deus é a causa material do M., que consiste em sua parte positiva, e
não da forma dele, que consiste na privação, assim como se pode dizer que a corrente é a causa material
do atraso na velocidade de um barco, sem ser a causa da forma do próprio atraso, ou seja, dos limites
desta velocidade" (Théod., I, 30). Essas considerações de Leibniz fundamentaram todas as tentativas
ulteriores de teodicéia (v.). Por outro lado, a nulidade do M. continuou sendo a tese adotada pelas
doutrinas que identificam o ser com o bem ou, em termos modernos, com a racionalidade ou o dever-ser;
isso acontece em Hegel, para quem o M., entendido como vontade malévola, é "a nulidade absoluta"
dessa vontade (Ene, § 512). Do ponto de vista dos idealismos absolutos, como o de Hegel e de sua escola,
apresenta-se novamente o problema tradicional da teodicéia: o da possibilidade do M.; a única solução
disponível é ainda a tradicional: a nulidade do M. Gentile dizia: "Não é erro e verdade, mas erro na
verdade, como seu conteúdo que se resolve na forma; nem M. e bem, mas M. do qual o bem se nutre no
seu absoluto formalismo" (Teoria generale dello spirito, XVI, 10). Croce por sua vez afirmava: "O M.,
quando real, não existe senão no bem, que se lhe opõe e o vence; portanto, não existe como fato positivo:
quando, porém, existe como fato positivo, já não é um M., mas um bem (e por sua vez tem como sombra
o M., contra o qual luta e vence)" (Fil. delia pratica, 1909, p. 139). Nâo-ser, nulidade ou irrealidade do
M. é tese redescoberta toda vez que, de qualquer forma, se propõe a identidade entre ser e bem.
b) A segunda concepção metafísica do M. considera-o como um conflito interno do ser, como a luta entre
dois princípios. Segundo essa concepção, o domínio do ser divide-se em dois campos opostos, dominados
por dois princípios antagônicos. O modelo dessa concepção é a religião persa, de Zarathustra ou
Zoroastro, que contrapunha à divindade (Ahura Mazda
ou Ormazd) uma antidivindade (Ahrimarí), que é o princípio do M. (cf. PETTAZZONI, La religione di
Zaratustra, Bolonha, 1921; Du-CHESNE-GUILLEMIN, Ormazd et Ahriman, Paris, 1953). Essa doutrina
constitui uma solução extremamente simples para o problema do M., pois, ao mesmo em que limita o
poder das divindades, não trai o monoteísmo porque concebe a potência limitante como antidivindade.
Segundo essa solução, o M. é real tanto quanto o bem, e, como tal, tem causa própria, antitética à do bem.
Essa doutrina evita a redução do M. ao nada, tão pouco convincente para o homem comum, e decorre do
mesmo tipo de justificação de que lança mão a negação metafísica da realidade do M. O dualismo persa
retornou no culto de Mitra: personagem que, segundo relato de Plutarco, ocupava posição intermediária
entre o domínio da luz, pertencente a Ahura Mazda, e o domínio das trevas, pertencente a Ahriman (De
Iside et Osiride, 46-47; cf. F. CUMONT, The Mysteries of Mithra, cap. I). Retomou também, com algumas
atenuações, em algumas seitas gnósticas dos primeiros séculos da era vulgar, especialmente na de
Basílides (cf. BUONAIUTI, Frammentignostici, 1923, pp-42 ss.), bem como na seita dos maniqueus, contra
os quais S. Agostinho assenta uma de suas principais polêmicas (v. MANIQUEÍSMO). Mas a filosofia nunca
aceitou essa solução para o problema do M. na forma simples como foi originariamente formulada pela
religião persa; nunca admitiu a separação dos dois princípios. Quando aceitou essa solução, modificou-a
no sentido de incluir ambos os princípios em Deus, considerando o princípio do bem e o do M. unidos em
Deus, justamente em virtude de seu conflito. No séc. XVII, Jacob Bõhme, insistindo na presença, em
todos os aspectos da realidade, de dois princípios em luta, que são o bem e o M., atribuía a causa dessa
luta à presença em Deus dos dois princípios antagonistas, que ele indicava com vários nomes: espírito e
natureza, amor e ira, ser e fundamento, etc. Em Deus, esses dois princípios estariam fortemente ligados,
numa espécie de luta amorosa. Bõhme dizia: "A divindade não repousa tranqüila, mas suas potências
trabalham sem trégua e lutam amorosamente; movem-se e combatem: como acontece com duas criaturas
que brincam uma com a outra, com amor abraçam-se e estreitam-se; ora uma é vencida, ora a outra, mas o
vencedor logo se detém e deixa que a outra retome seu jogo" (Aurora oder dieMorgenrõte
MAL
640
MA1THUSIANISMO
im Aufgang, 1634, cap. XI, § 49). Em outras palavras, o dualismo do bem e do M. está em Deus mesmo e
nele os dois princípios travam um combate "amoroso", no qual nenhum é definitivamente derrotado. A
subcorrente do pensamento filosófico chamada teosofia (v.) sempre adotou essa solução para o problema
do M.: no período romântico, retornou em Indagações sobre a essência da liberdade humana (1809), de
Schelling, em que este sustentava, assim como Bõhme, que em Deus está não só o ser, mas, como
fundamento desse ser, há um substrato ou natureza que se distingue dele e é um anseio obscuro, um
desejo inconsciente de ser, de sair da escuridão e alcançar a luz divina (Werke, 1, VIII, p. 359). No
entanto, Schelling afirmava que, estando esses dois princípios estreitamente unidos em Deus, não há nele
distinção entre bem e M.; com a separação desses princípios no homem, nasce a possibilidade do bem e
do M., e de seu conflito (Ibid., p. 364). Ainda em tempos relativamente recentes, em relação mais direta
com a religião persa, solução semelhante para esse problema foi proposta por G. T. Fechner, que admitia
haver em Deus a mesma dualidade entre vontade racional e instintos obscuros encontrada no homem
(Zend Avesta, 5- ed., 1922, pp. 244-45). É possível entrever soluções análogas, porém menos explicitas,
em algumas formas de espi-ritualismo e na psicanálise (v.), mas trata-se, muitas vezes, de soluções de
caráter religioso ou teosófico, que dificilmente podem ser consideradas explicações filosóficas
propriamente ditas.
2- A segunda concepção fundamental do M. não o considera realidade ou irrealidade, mas objeto negativo
do desejo ou, em geral, do juízo de valores. Essa concepção é admitida por todos os que defendem a
chamada teoria subjetivista do bem. Hobbes, Spinoza e Locke compartilham essa teoria (para os relativos
textos, v. BEM), à qual Kant deu forma mais geral. Segundo Kant, "os únicos objetos da razão prática são
o bem e o M. Pelo primeiro entende-se um objeto necessário da faculdade de desejar; pelo segundo, um
objeto necessário da faculdade de repelir; mas ambos somente segundo o princípio da razão" (Crít. R.
Prática, cap. 2). Kant insistia sobretudo em retirar as determinações de bem e M. (em alemão, Gut e
Bósé) "da esfera da faculdade inferior de desejar", à qual pertencem o agradável e o doloroso
(em alemão, Wohl e Übel). "O que devemos chamar de bem" — dizia ele — "é o objeto da faculdade de
desejar segundo o juízo dos homens dotados de razão; o M. deve ser objeto de aversão aos olhos de todos,
de tal modo que para tais juízos, além dos sentidos, também há necessidade da razão" (Ibid.). Contudo
Kant concordava com a teoria subjetivista, ao julgar que o bem e o M. não podem ser determinados
independentemente da faculdade de desejar do homem, o que significa que eles não são realidade ou
irrealidade por si mesmos. A filosofia moderna e contemporânea compartilha essa visão. Para ela, M. é
simplesmente um des-valor, objeto de um juízo negativo de valor, e implica, portanto, referência à regra
ou norma na qual se fundamenta o juízo de valor (v. VALOR). Assim, p. ex., o terremoto é um M. quando
destrói vidas humanas ou fontes de subsistência e bem-estar humano, mas não é um M. quando não
provoca esse tipo de destruição, pois nesse caso não contraria o desejo ou a exigência humana de
sobrevivência e bem-estar. Seja qual for o ponto de vista de que se considere essa exigência, ela se
expressa em regras ou normas que podem entrar em conflito com acontecimentos naturais ou com
comportamentos humanos. Esses acontecimentos ou comportamentos são chamados de males, com base
nesse conflito, e não porque tenham um status metafísico especial.
Era desse ponto de vista que Kant interpretava o "M. radical" da natureza humana como um princípio que
alicerça o comportamento de todos os seres racionais finitos: afastar-se, ocasionalmente, da lei moral
(Religion, I, 3). Esse princípio nada mais expressa que a possibilidade de transgredir as normas morais
próprias do homem, definindo-se, então, o M. radical como a possibilidade geral de desvalor na conduta
do homem.
MAL RADICAL. V MAL
MALTHUSIANISMO (in. Malthusianism; fr. Malthusianisme, ai. Malthusianismus; it.
Malthusianesirno). 1. Doutrina econômica de Thomas Robert Malthus (1766-1834), exposta em Ensaio
sobre a população (1798), que parte do princípio de que a população e os meios de subsistência crescem
em proporções diferentes, passando-se a considerar os meios para evitar o desequilíbrio entre ambos.
Malthus baseava-se no desenvolvimento da América do Norte, observando que ali a população tendia a
crescer em progressão geométrica, duplicando
MANEIRISMO
641
MAQUIAVELISMO
a cada vinte e cinco anos, enquanto os meios de subsistência tendiam a crescer em progressão aritmética.
Segundo Malthus, o desequilíbrio assim determinado provoca a intervenção dos meios repressivos
(miséria, vício e outros flagelos sociais) que dizimam a população, e não há outra maneira de evitar a
ação de tais meios a não ser substituindo-os por meios preventivos, que consistem no controle da
natalidade. Para Malthus, portanto, o único remédio para os males sociais seria a abstenção de casar-se
por parte das pessoas que não estejam em condições de prover ao sustento dos filhos, recomendando-se
ao mesmo tempo "a conduta estritamente moral durante esse período de abstenção". Essa doutrina propôs
um problema que continua vivo e atual na sociedade contemporânea, levando-se em conta os enormes
índices de crescimento da população mundial.
2. Em geral, a teoria e a prática do controle voluntário da natalidade.
MANEIRISMO (in. Manner, fr. Manière, ai. Manier, it. Manierà). A partir do séc. XVIII essa palavra foi
usada para designar uma forma menor de expressão artística, produto da busca malsucedida de
originalidade. Kant diz "O M. é uma espécie de contrafação, que consiste em imitar a originalidade e,
portanto, em afastar-se o máximo possível dos imitadores, sem, porém, possuir o talento de ser exemplar
por si mesmo. (...) O precioso, o rebuscado e afetado que querem distinguir-se do comum mas carecem de
talento lembram os modos de quem se escuta ou se movimenta como se estivesse em cena" {Crít. do
Juízo, § 49). No mesmo sentido, Hegel definia o M. como a forma de arte em que o artista, em vez de
conservar a "objetividade" da arte, procura absorvê-la em sua individualidade "particular e acidental",
con-trapondo-a, portanto, à originalidade, que é a "verdadeira objetividade" da obra de arte {Vorlesungen über die Âsthetik, ed. Glockner, I, pp. 391 ss.).
MANIFESTAÇÃO (in. Manifestation; fr. Manifestation-, ai. Manifestation-, it. Manifesta-zionè). O
mesmo que expressão, revelação ou fenômeno (v.), no sentido positivo deste último termo.
MANIQUEÍSMO (in. Manicheism; fr. Ma-nichéisme, ai. Manichâismus; it. Manicheismo). Doutrina do
sacerdote persa Mani (lat. Mani-chaeus), que viveu no séc. III e proclamou-se o Paracleto, aquele que
devia conduzir a doutrina cristã à perfeição. O M. é uma mistura imaginosa de elementos gnósticos, cristãos e orientais, sobre as
bases do dualismo da religião de Zoroastro. Admite dois princípios: um do bem, ou princípio da luz, e
outro do mal, ou princípio das trevas. No homem, esses dois princípios são representados por duas almas:
a cor-pórea, que é a do mal, e a luminosa, que é a do bem. Pode-se chegar ao predomínio da alma
luminosa através de uma ascese particular, que consiste em três selos: abstenção de alimentar-se de carne
e de manter conversas impuras {signaculum oris); abstenção da propriedade e do trabalho {signaculum
manus); abster-se do casamento e do concubinato {signaculum sinus). O M. foi muito difundido no
Oriente e no Ocidente; aqui durou até o séc. VII. O grande adversário do M. foi S. Agostinho, que
dedicou grande número de obras à sua refutação. Cf. H. C. PUECH, Le manichéisme. son fondateur, sa
doctrine, Paris, 1949.
MÂNTICA (gr. [iavuKÍi téxvr|; in. Mantic, fr. Mantique, ai. Mantica-, it. Mantica). Visão antecipada ou
ciência das coisas futuras. É assim que Cícero define a M. {Dedivin., I, 1), ao citar e discutir o modo
como essa ciência era entendida pelos estóicos. Para estes, a M. fundamenta-se na ordem necessária do
mundo, no destino: ao se interpretar essa ordem é possível antecipar os acontecimentos que ela determina.
"Os estóicos" — diz Cícero — "afirmam que só o sábio pode ser adivinho." Crisipo define a M. com estas
palavras: "faculdade de conhecer, ver e explicar os sinais por meio dos quais os Deuses manifestam sua
vontade aos homens" {De divin., II, 63, 130).
MAQUIAVELISMO (in. Machiavelianism, fr. Machiavélisme, ai. Machiavelismus; it. Machiavellismo). Doutrina política de Maquiavel ou o princípio no qual ela é convencionalmente resumida.
A doutrina política do M. tem explicitamente o objetivo de indicar o caminho por meio do qual as
comunidades políticas em geral (e a italiana em particular) podem renovar-se conservando-se, ou
conservar-se renovando-se. Tal caminho é o retorno aos princípios, conforme a concepção que o
Renascimento (v.) tem da renovação do homem em todos os campos. O retorno aos princípios de uma
comunidade política supõe duas condições: I
a
que suas origens históricas sejam claramente reconhecidas,
o que só pode ser feito por meio de uma investigação histórica objetiva; 2- que sejam reconhecidas, em
sua
MAQUIAVELISMO
642
MATEMÁTICA
verdade afetiva, as condições a partir das quais ou através das quais o retorno deve ser realizado. A
objetividade historiográfica e o realismo político constituem, assim, os dois pontos básicos do M.
original. Graças a este segundo aspecto, Maquiavel foi considerado fundador da ciência empírica da
política, ou seja, disciplina empírica que estuda as regras da arte de governar sem outra preocupação além
da eficácia dessas regras. Constituem parte integrante da doutrina de Maquiavel o conceito de acaso, que
com sua imprevisibilidade é sempre condição da atividade política, e o conceito conexo do empenho
político, em virtude do qual os homens "nunca devem entregar-se", no sentido de que não devem
desesperar nem renunciar à ação, mas participar ativamente dos acontecimentos, pois o resultado deles,
dada a presença do acaso, nunca é predeterminado. (Sobre a doutrina de Maquiavel e suas interpretações,
v. G. SASSO, N. M., storia dei suo pensiero político, Nápoles, 1958.)
Por M. entende-se também o princípio no qual, a partir do séc. XVII, a doutrina de Maquiavel passou a
ser convencionalmente resumida: de que "o fim justifica os meios". Tal máxima, porém, não foi
formulada por Maquiavel, que não considera o Estado como fim absoluto e não o julga dotado de
existência superior à do indivíduo (no sentido atribuído, p. ex., por HEGEL, Fil. do dir, § 337). Além disso,
Maquiavel tinha grande simpatia pela honestidade e pela lealdade na vida civil e política; portanto,
admirava os Estados regidos por essas virtudes, como p. ex. o dos romanos e dos suíços. Entretanto, como
dissemos, seu objetivo era formular regras eficazes de governo, tendo como base a experiência política
antiga e nova, considerando que essa eficácia era independente do caráter moral ou imoral das regras. Por
outro lado, percebeu que a moral e a religião podem ser — como às vezes são — forças políticas que,
como todas as outras, condicionam a atividade política e seu êxito; percebeu também que às vezes isso
não acontece e que a ação política se mostra eficaz mesmo quando exercida em sentido contrário ao das
leis da moral. Como essa era a realidade mais freqüente nas sociedades de seu tempo (especialmente a
italiana e a francesa) — que ele chama de "corruptas" — e como Maquiavel tem sobretudo em vista a
aplicação de suas regras políticas à sociedade italiana para a constituição de um Estado unificado,
explica-se sua insistência em certos
preceitos imorais de conduta política, o que acabou sendo mal expresso ou generalizado na máxima de
que "o fim justifica os meios". Esta, na realidade, foi a máxima da moral jesuíta: Hegel cita-a na forma
dada pelo padre jesuíta Busenbaum (1602-68): "Quando o fim é lícito, os meios também são lícitos"
(Medulla theologíae moralis, IV, 3, 2), e justifica-a do ponto de vista formal (como expressão tautológica) e substancial (como "consciência indeterminada da dialética do elemento positivo") (Fil. do dir., §
140, d); cf., sobre oM., F. MEINECKE, Die Idee der Staatsrãson in der neueren Geschichte, 1925; trad. in.,
Machiavellianism, 1957).
MARXISMO. V. COMUNISMO, MATERIALISMO DIALÉTICO, MATERIALISMO HISTÓRICO.
MATEMA (gr. u.á0rma). Tudo o que é objeto de aprendizagem. Nesse sentido, Platão diz que a idéia do
bem é "o maior M." (Rep., VI, 505 a). Para Sexto Empírico, M. implicava, além da coisa apreendida,
quem a aprende e o modo de aprender (Adv. math., I, 9), entendendo por "matemáticos" todos os cultores
de ciências, além dos filósofos. Kant restringiu essa palavra, designando com ela as proposições da
matemática que são obtidas por meio da "cons-tmçâo de conceitos" (Crít. R. Pura, II, cap. 1, seç. 1). A
palavra mais próxima ao uso clássico desse termo é disciplina (v.): ciência aprendida ou ensinada.
MATEMÁTICA (gr. Moc8riLtaTiKií; lat. Mathe-matica-, in. Mathematics; fr. Mathématique, ai.
Mathematik, it. Matemática). As definições filosóficas de M. por um lado expressam orientações
diferentes da investigação nessa área e, por outro, modos diferentes de justificar a validade e a função da
M. no conjunto das ciências. Podem ser distinguidas quatro definições fundamentais: I
a M. como ciência
da quantidade: 2- M. como ciência das relações; 3- M. como ciência do possível; 4a
M. como ciência das
construções possíveis.
1- "Ciência da quantidade" foi a primeira definição filosófica da M. Essa definição foi claramente
formulada por Aristóteles, mas já estava implícita nas considerações de Platão sobre a aritmética e a
geometria, que tendiam sobretudo a evidenciar a diferença entre as grandezas percebidas pelos sentidos e
as grandezas ideais, que são objeto da M. (Rep., VII, 525-27). Aristóteles dizia: "O matemático constrói
sua teoria por meio da abstração; prescinde de todas as qualidades sensíveis, como peso e leve-
MATEMÁTICA
643
MATEMÁTICA
za, dureza e seu contrário, calor e frio, e das outras qualidades opostas, limitando-se a considerar apenas a
quantidade e a continuidade, ora em uma só dimensão, ora em duas, ora em três, bem como os caracteres
dessas entidades, na medida em que são quantitativas e continua-tivas, deixando de lado qualquer outro
aspecto delas. Conseqüentemente, estuda as posições relativas e o que é inerente a elas: comensurabilidade ou incomensurabilidade e proporções" {Mel, XI, 3,1601 a 28; cf. Fís., II, 193 b 25). Esse
conceito de M. persistiu por muito tempo e só no século passado começou a parecer insuficiente para
exprimir todos os aspectos desse campo de estudos. O próprio Kant traduzia-o para a linguagem de sua
filosofia. Para ele, a M. distinguia-se da filosofia porque, enquanto esta procede por meio de conceitos, a
M. procede por meio da construção de conceitos; mas a construção de conceitos só é possível em M. com
base na intuição aprioriáo espaço, que é a forma da quantidade em geral. E diz: "Quem pensou distinguir
a filosofia da M. dizendo que esta tem como objeto apenas a quantidade tomou o efeito pela causa. A
forma do conhecimento da M. é a causa de ela poder referir-se unicamente a quantidades. Na verdade, só
o conceito de quantidade pode ser construído, ou seja, exposto apriori nu intuição do espaço" {Crít. R.
Pura, Dout; do mét., cap. I, seç. 1). O conceito de M. como construção — portanto, de algum modo como
intuição — retornou na M. contemporânea (v. mais adiante, n. 4). Mas o conceito de M. como ciência da
quantidade foi repetido numerosas vezes pelos filósofos. As longas e fantásticas disquisições de Hegel
sobre os conceitos fundamentais da M., na grande Lógica, baseiam-se nele (Wissenschaft der Logik, 1,1,
seç. II). E mesmo muito mais tarde, Croce referia-se destemidamente a esse conceito: "As M. fornecem
conceitos abstratos que possibilitam o juízo numérico; constróem os instrumentos para contar e calcular e
para realizar aquela espécie de falsa síntese apriori, que é a numeração dos objetos individuais" {Lógica,
1920, p. 238).
2- A segunda concepção fundamental da M. considera-a como ciência das relações, portanto estreitamente
ligada à lógica ou parte desta. Os antecedentes dessa concepção podem ser encontrados em Descartes, que
afirmava: "Embora as ciências comumente chamadas de matemáticas tenham objetos diferentes, estão de
acordo quanto a considerarem apenas as diversas relações ou proporções neles encontradas" (Discours, II). O conceito leibniziano de ars combinatoria
(v.) ou M. universal sem dúvida pode ser considerado o início do conceito da M. como lógica, mas não
impedia que o próprio Leibniz aderisse ainda ao conceito tradicional de M. como arte da quantidade (De
arte combinatoria, 1666, Proemium, 7, em Op, ed. Erdmann, p. 8). Obviamente, a estreita conexão da M.
com a lógica começou a evidenciar-se como característica da M. só quando a lógica assumiu a forma de
cálculo matemático. Segundo Boole, uma vez que "as últimas leis da lógica têm forma matemática", a
apresentação da lógica em forma de cálculo não é arbitrária, mas representa algo que decorre das próprias
leis do pensamento (Laws of Thought, 1854, cap. I, § 10). Os estudos de Dedekind sobre os fundamentos
da aritmética (Was sind un sollen die Zahlen?, 1887) seguem a mesma ordem de idéias. Mas quem mais
contribuiu para inscrever a M. no domínio da lógica foi Frege e sua polêmica contra o psicologismo. Em
um ensaio de 1884, Frege mostrava a importância do conceito de relação para a definição do número
natural; dizia: "O conceito de relação pertence — tanto quanto o conceito simples — ao campo da lógica
pura. Aqui não interessa o conteúdo especial da relação, mas exclusivamente sua forma lógica. Se algo
pode ser afirmado sobre ela, a verdade desse algo é analítica e reconhecida apriori" (Eine logishmathematische Untersuchung überden Begriff der Zahl, 1884, § 70, trad. it., em Aritmética e lógica, p.
139).
A partir daí, pode-se considerar consolidada a conexão da M. com a lógica através da teoria das relações;
essa conexão foi constantemente pressuposta nas definições de M. Todavia mesmo as definições que têm
esse fundamento em comum foram formuladas de modos diferentes. A formulação mais óbvia de uma
definição deste tipo é a que considera a M. como "teoria das relações". Poincaré expunha essa definição
na forma geral, afirmando: "A ciência é um sistema de relações. Só nas relações deve-se buscar
objetividade, e seria vão buscá-la nos seres isolados" (La valeur de lascience, 1905, p. 266). Esse
conceito foi adotado por Russell, que via a coincidência entre M. e lógica justamente no âmbito da teoria
das relações e julgava que o tema comum das duas ciências era a forma dos enunciados, definida como
"aquilo que permanece invariável quan-
MATEMÁTICA
644
MATEMÁTICA
do todos os componentes do enunciado são substituídos por outros", ou seja, quando o enunciado se
transforma em pura relação (Intr. to Mathematical Philosophy, 1918, cap. XVIII).
Por outro lado, Peirce, mesmo admitindo a conexão entre M. e lógica, procurara distinguir ambas,
afirmando que, enquanto a M. é a ciência que infere conclusões necessárias, a lógica é a ciência do modo
de inferir conclusões necessárias. "O lógico não está muito preocupado com esta ou aquela hipótese ou
com suas conseqüências exceto quando isso pode lançar luzes sobre a natureza do raciocínio. O
matemático interessa-se muito pelos métodos eficientes de raciocinar, visando à sua possível extensão
para novos problemas, mas, enquanto matemático, não se preocupa em analisar as panes de seu método
cuja correção é dada como óbvia" {Coll. Pap., 4.239). Essa distinção, porém, baseava-se na noção de
lógica como ciência categórica e normativa (Ibid., 4.240), o que não fez carreira na lógica
contemporânea, cujo caráter convencional se acentuou cada vez mais (v. CONVENCIONALISMO; LÓGICA).
Portanto, a melhor definição de M., desse ponto de vista, é dada por Wittgenstein: "A M. é um método
lógico. As proposições da M. são equações, portanto pseudoproposições. A proposição matemática não
exprime pensamento algum. De fato, nunca precisamos de proposições matemáticas na vida, mas as
empregamos apenas com o fim de, a partir de proposições que não pertencem à M., tirar conclusões que
se expressam em proposições que tampouco lhe pertencem" (Tractatus, 1922,6.2; 6.21; 6.211). As
equações da M. correspondem às tautologias da lógica {Ibid., 6.22) e, como estas, nada dizem. Ponto de
vista análogo foi expresso por Carnap: "Os cálculos constituem um gênero particular de cálculos lógicos,
distinguindo-se deles pela maior complexidade. Os cálculos geométricos são um gênero particular de
cálculos físicos" (Founda-tions of Logic and Mathematics, 1939, § 13).
Esta é a melhor formulação da tese do logicismo(v.). Segundo esse ponto de vista, em primeiro lugar
deve-se construir uma lógica exata, para em seguida dela extrair a M., do seguinte modo: I
a
definindo
todos os conceitos da M. (vale dizer, da aritmética, da álgebra e da análise) em termos de conceitos de
lógica; 2S deduzindo todos os teoremas da M. a partir dessas definições e por meio dos princípios da
própria lógica (inclusive os axiomas de infinidade e de escolha) (cf. C. G. HEMPEL, "On the
Nature of Mathematical Truth", 1925, em Rea-dings in the Philosophy of Science, 1953, p. 59).
5- A terceira concepção fundamental de M. pertence à corrente formalista e pode ser assim expressa: a M.
é "a ciência do possível", onde por possível se entende aquilo que não implica contradição (v. POSSÍVEL,
1). Desse ponto de vista, a M. não é parte da lógica e não a pressupõe. Do modo como foi concebida por
Hilbert e Bernays {Grundlagen der Mathe-matik, I, 1934; II, 1939), a M. pode ser construída como
simples cálculo, sem exigir interpretação alguma. Toma-se, então, um sistema axiomático (v.
AXIOMATIZAÇÃO), no qual: 1B
todos os conceitos básicos e todas as relações básicas devem ser
completamente enumerados, integrando-se neles, por meio de definição, quaisquer conceitos ulteriores; 2S
os axiomas devem ser completamente enumerados e destes deduzidos todos os outros enunciados em
conformidade com as relações básicas. Nesse sistema, a demonstração matemática é um procedimento
puramente mecânico de inferência de fórmulas, mas ao mesmo tempo acrescenta-se à M. formal uma
metamatemãtica constituída por raciocínios não formais em torno da M. "Desse modo" — disse Hilbert
— "realiza-se, por meio de trocas contínuas, o desenvolvimento da totalidade da ciência matemática, de
duas maneiras: inferindo dos axiomas novas fórmulas demonstráveis por meio de deduções formais e
acrescentando novos axiomas e a prova de não-contradição, por meio de raciocínios que tenham
conteúdo." A M. constitui, então, um sistema perfeitamente autônomo, ou seja, não pressupõe um limite
ou um guia fora de si mesma e desenvolve-se em todas as direções possíveis, entendendo-se por direções
possíveis as que não levem a contradições.
Portanto, é essencial para esse conceito da M. a possibilidade de determinar a possibilidade (nãocontradição) dos sistemas axiomáticos. Mas foi justamente essa possibilidade que o teorema descoberto
por Gõdel em 1931 pôs em dúvida: segundo ele, não é possível demonstrar a não-contradição de um
sistema S com os meios (axiomas, definições, regras de dedução, etc.) pertencentes ao mesmo sistema S;
pata efetuar tal demonstração, é preciso recorrer a um sistema Si, mais rico em meios lógicos que S
("Über formal unentscheidbare Sãtze der Principia Mathematica und ver-wandter Systeme", em
MonatschriftefürMathe-matik und Physik, 1931, pp. 173-98). Esse
MATEMÁTICA
645
MATEOSIOLOGIA
teorema de Gõdel teve grande ressonância na M. moderna. Até agora foi possível demonstrar a nãocontradição de algumas partes da M., como p. ex. da aritimética (demostrado por Gentzen em 1936), mas
não se avançou muito nessa direção; por isso, a "ciência do possível" hoje acredita que sua missão mais
difícil é mostrar a "possibilidade" de suas partes. Quanto à possibilidade da M. como sistema único e
total, obviamente foi excluída pela formulação do teorema de Gõdel, que também mostrou os limites da
axiomática ao demonstrar que nenhum sistema axiomático contém "todos" os axiomas possíveis e que,
portanto, novos princípios de prova podem ser continuamente descobertos. Outra conseqüência do
teorema de Gõdel é uma limitação das capacidades das máquinas calculadoras, cuja construção foi
enormemente facilitada pelo conceito forma-lista da M. De fato, pode-se construir uma máquina para
resolver determinado problema, mas não uma máquina que seja capaz de resolver todos os problemas (cf.
E. NAGEL-G. R. NEWMANN, GôdeVs Proof, 1958, pp. 98 ss.).
4
a
Segundo a quarta concepção fundamental, a M. é a ciência que tem por objeto a possibilidade de
construção. Trata-se, como se vê, da noção kantiana da M. como "construção de conceitos"; por isso, essa
corrente comumente é chamada de intuicionismo, mas seus precedentes podem ser percebidos na
polêmica antiformalista de Poincaré, na obra de Kronec-ker (Überden Zahlbegriff, 1887), na tendência
empirista de alguns matemáticos franceses (Borel, Lebegue, Bayre), no filósofo vienense F. Kaufmann, e
em outros. Segundo Brouwer, que é um dos principais representantes do intuicionismo, a M. identifica-se
com a parte exata do pensamento humano e por isso não pressupõe ciência alguma, nem a lógica, mas
exige uma intuição que permita apreender a evidência dos conceitos e das conclusões. Portanto, não se
deve chegar às conclusões a partir de regras fixas contidas num sistema formalizado, mas cada conclusão
deve ser diretamente verificada com base em sua própria evidência. Desse ponto de vista, o procedimento
de demonstração matemática não tem em vista a dedução lógica, mas a construção de um sistema
matemático. Brouwer insiste no fato de que, mesmo no caso de uma demonstração de impossibilidade
através da evidência de uma contradição, o uso do princípio de contradição é apenas aparente: na
realidade, trata-se
da afirmação de que uma construção matemática, que deveria satisfazer a certas condições, não é
realizável (cf. A. HEYTING, Mathematische Grundlagenforschung. Intuitionismus undBe-weistheorie,
1934 [trad. fr., 1955], I, 5,1). Na esteira de Brouwer, Heyting demostrou que, apesar de o princípio de
contradição poder ser utilizado, o mesmo não acontece com o princípio do terceiro excluído (v.)
(Dieformalen Regeln der intuitionistischen Logik, in L. B. Preusz. Akad. Wiss., 1930).
O intuicionismo, apesar de definir a M. como a ciência das construções possíveis, não recorre, como
Kant, à intuição a priori do espaço, nem a forma alguma de intuição empírica ou mística. A construção de
que o intuicionismo fala é conceituai e não se refere a fatos empíricos. Heyting resumiu desta forma o
ponto de vista de Brouwer: ls
a M. pura é uma criação livre do espírito e não tem relação alguma com os
fatos de experiência; 2S
a simples constatação de um fato de experiências sempre contém a identificação
de um sistema matemático; 3S
o método da ciência da natureza consiste em reunir os sistemas
matemáticos contidos nas experiências isoladas em um sistema puramente matemático construído com
este fim (cf. HEYTING, op. cit., IV, 3).
Se considerarmos essas conclusões, veremos que a distinção entre formalismo e intuicionismo (entre a
terceira e a quarta concepção da M.) não é tão radical quanto poderia parecer. Em primeiro lugar, a
construção que os intuicionistas vêem como objeto do procedimento matemático é formal e sua
possibilidade é determinada por regras formais. Por outro lado, os limites do formalismo evidenciados
pelo teorema de Gõdel ressaltam o valor de algumas exigências apresentadas pelo conceito intuicionista
da matemática. E já que é difícil ignorar a importância do aspecto lingüístico da M., que serviu de base
para o logicismo, o pensamento matemático contemporâneo é dominado por certo ecletismo (cf. p. ex. E.
W. BETH, Les fondements logiques des mathématiques, 2
a
ed., 1955). Entretanto, do ponto de vista
filosófico, vale dizer, do ponto de vista dos conceitos básicos e das orientações gerais de estudo, as
diferenças nas definições enunciadas neste verbete continuam sendo importantes.
MATEOSIOLOGIA (fr. Mathéosiologié). Termo empregado por Ampère para indicar a ciência que
deveria ter por objeto, "por um lado, as leis
MATÉRIA1
646
MATÉRIA2
a serem obedecidas no estudo ou no ensino dos conhecimentos humanos e, por outro lado, a classificação
natural desses conhecimentos" (Essai sur Ia philosophie des sciences, 1834, p. 31).
MATÉRIA1
. Em sentido gnosiológico v. FORMA, 2.
MATÉRIA2
(gr. vkr\; lat. Matéria; in. Matter, fr. Matière, ai. Materie, it. Matéria). Um dos princípios
que constituem a realidade natural, isto é, os corpos. São as seguintes as principais definições dadas da
M.: I
a M. como sujeito; 2a M. como potência; 3a
M. como extensão; 4- M. como força; 5a
M. como lei; 6a
M. como massa; 7~ M. como densidade de campo. As quatro primeiras definições são filosóficas; as três
últimas, científicas.
I
a Em Platão e Aristóteles a definição de M. como sujeito alterna-se com a de M. como potência. Segundo
esse conceito, M. é receptividade ou passividade; nesse sentido, Platão chama-a de mãe das coisas
naturais, já que ela "acolhe em si todas as coisas sem nunca assumir forma alguma que se assemelhe às
coisas, pois é como a cera que recebe a marca" (Tim., 50 b-d). Nesse sentido, M. é o material bruto,
amorfo, passivo e receptivo, do qual as coisas naturais são compostas. Aristóteles chama esse material de
sujeito (ÚKOKeí^evov): "Chamo de M. o sujeito primeiro de uma coisa, a partir do qual a coisa não é
gerada acidentalmente" (Fís., I, 9, 192 a 31). Como sujeito, a M. é "aquilo que permanece através das
mudanças opostas; assim, p. ex., no movimento o móvel permanece o mesmo, apesar de estar ora aqui,
ora lá; na mudança quantitativa permanece o mesmo aquilo que se torna menor ou maior; e na mudança
qualitativa permanece o mesmo aquilo que uma vez está com boa saúde e outra vez não" (Mel, VIII, 1,
1042 a 27). Em seu aspecto de sujeiío, a M. é desprovida de forma, é indeterminada, portanto
incognoscível por si mesma (Jbid., VII, 11, 1037 a 27; VII, 10, 1036 a 8): características estas eminentes
na "M. primeira", que não é a que constitui o material (p. ex., o bronze ou a madeira) de que uma coisa é
feita, mas que é o sujeito comum, incognoscível, de todos os materiais (Ibid., IX, 7, 1049 a 18 ss.). O
conceito de M. como sujeito passivo foi retomado pelos es-tóicos, que a designaram precisamente por
esse seu caráter (DIÓG. L., VII, 134). Em virtude dessa passividade, que dispõe a M. a receber a ação criadora da Razão Divina (que é o princípio ativo), os estóicos chamaram a M. de "substância
primeira" (DIÓG. L., VII, 150; cf. SÊNECA, Ep., 65, 2). Plotino só fez levar ao extremo essa concepção de
M. ao afirmar que ela não é "alma intelecto, vida, forma, razão, limite (já que é ausência de limite), nem
potência (pois o que poderia criar?). Desprovida como é de todos os caracteres, nem sequer é possível
atribuir-lhe o ser, no sentido, p. ex., em que se diz que existe movimento ou repouso; ela é realmente o
não-ser, uma imagem ilusória da massa corpórea e uma aspiração à existência" (Enn., III, 6, 7). Esse
conceito da M. foi constantemente empregado com fins teológicos. Na patrística, foi repetido por
Orígenes (Contra Cels., III, 41; Deprinc, II, 1) e por S. Agostinho. Este considera a M., segundo o
conceito clássico, como "absolutamente informe e desprovida de qualidade", estando "próxima do nada",
conquanto existente na medida em que é dotada da capacidade de ser formada (Conf., XII, 8; De natura
boni, 18). S. Tomás, por sua vez, nega que a M. seja "potência operante" (S. Th., I, q. 44, ad. 3e
) e insiste
em sua imperfeição incompletitude ou relativamente à forma (Ibid., I, q. 4, a. 1). Mesmo atribuindo à M.
certa realidade atual e negando, pois, que ela seja um "quase-nada" ou pura "possibilidade de ser", a
escolástica agos-tiniana não renova o conceito de M. Duns Scot, p. ex., atribui certa realidade (entitas) à
M., mas, apesar disso, considera-a "receptiva de todas as formas substanciais e acidentais", segundo o
conceito aristotélico (Op. Ox., II, d. 12, q. 1, n. 11), e nega-lhe potência ativa ao negar que nela estejam
presentes razões seminais (Ibid., d. 18, q. 1, n. 3). Desse ponto de vista, a passividade ou receptividade
continua sendo característica fundamental da M., à qual recorreram alguns naturalistas do Renascimento,
como p. ex. Paracelso (Meteor., 72) e Telésio. Este último considerou a M. como a "massa corpórea"
destinada a sofrer a ação das duas "naturezas agentes", o calor e o frio (De rer. nat, I, 4). Essa concepção
foi compartilhada por Locke, para quem a M. é "morta e inativa" (Ensaio, IV, 10, 10), concepção esta
freqüente ainda hoje na filosofia e no pensamento comum. Está presente, p. ex., em Bergson, para quem a
M. é cessação potencial do movimento da vida, definindo-se pela "inércia", em contraposição ao que é
"vivo" (Évol. créatr, 8
a
ed., 1911, pp. 216 ss.).
MATÉRIA2
647
MATÉRIA2
2
a
Em Platão e Aristóteles o conceito de M. como potência mescla-se ao conceito de M. como sujeito.
Platão diz que a M. "nunca perde a potência" (Tim., 50 b). Aristóteles identifica a M. com a potência:
"Todas as coisas produzidas, seja pela natureza, seja pela arte, têm M., pois a possibilidade que cada uma
tem de ser ou não ser é a M. de cada uma" (Met., VII, 7, 1032 a 20). Mas, segundo Aristóteles, a potência
não é apenas essa possibilidade pura de ser ou não ser; é uma potência operante e ativa; "Uma casa existe
potencialmente se nada houver em seu material que a impeça de tornar-se casa e se nada mais houver que
deva ser acrescentado, retirado ou mudado. (...) E as coisas que têm em si próprias o princípio de sua
gênese existirão por si mesmas quando nada de externo o impedir" (Met, IX, 7, 1049 a 9 ss.). Essa autosuficiência da potência para produzir, graças à qual a M. não é apenas material bruto, mas capacidade
efetiva de produção, exprime um conceito que não é mais de M. como passividade ou receptividade.
Como potência operante, a M. não é um princípio necessariamente corpóreo. Plotino, que, como se viu,
reduz a M. ao não-ser, por outro lado identifica-a, como potência, com o infinito (Enn., II, 4, 15), e, ao
lado da M. sensível, admite uma M. inteligível que permanece sempre idêntica a si mesma e possui todas
as formas, de tal modo que lhe falta a razão de transformar-se (Ibid., II, 4, 3)-Nessa doutrina encontra-se a
origem da tradição que insiste na atividade da M.: tradição que passa por Scotus Erigena (De divis. nat,
III, 14) e encontra nova fase na doutrina de Avicebrón (Ibn Gabirol) sobre a composição hilomórfica
universal. Segundo Avicebrón, as coisas espirituais também são compostas por M. e forma, e a M.
identifica-se com a primeira das categorias aristotélicas, sendo substância porque "sustenta" as outras
nove categorias (Fons vitae, II, 6). Foi só com base no caráter ativo ou inativo da M. que David de Dinant
pôde identificar Deus com M. (ALBERTO MAGNO, 5. Th., I, 4, q. 20; S. TOMÁS, S. Th., I, q. 4, a. 8).
Contudo, a M. mantém o caráter de atividade mesmo na escolástica agostiniana, que simultaneamente
insistia em atribuir-lhe realidade positiva, detectando sua presença também nos seres espirituais, segundo
o conceito de Avicebrón. S. Boaventura diz: "A razão seminal é a potência ativa ínsita à M., e essa
potência ativa é a essência da forma, visto que a partir dela gera-se a forma através do procedimento da natureza que nada produz a partir do nada" (In Sent, II, d. 18, a. 1, q. 3)- Esse conceito de M. foi
transmitido ao Renascimento por Nicolau de Cusa, que a considera como "possibilidade indeterminada",
na qual existem, contraídas, todas as coisas do universo. "A disposição da possibilidade" — dizia N. de
Cusa — "tem de ser contracta, e não absoluta, uma vez que, se a terra, o sol e as outras coisas não
estivessem ocultas na M. como possibilidades contractas, não haveria razão para passarem ao ato, em vez
de não passarem" (De docta ignor., II, 8). Em outras palavras, é só por estarem presentes em estado
contraído na M. que determinadas possibilidades vêm à tona com a criação. É nesse conceito que
Giordano Bruno basearia seu conceito de M. como princípio ativo e criador da natureza: "Para ser
realmente tudo o que pode ser, essa M. tem todas as medidas, todas as espécies de configurações e
dimensões, e porque as tem todas não tem nenhuma, pois é preciso que aquilo que é tantas e diversas
coisas não seja nenhuma delas em particular." Nesse sentido, M. coincide com forma (De Ia causa, IV).
3
a
O conceito de M. como extensão foi defendido por Descartes: "A natureza da M. ou dos corpos em
geral não consiste em ser uma coisa dura, pesada, colorida ou capaz de afetar nossos sentidos de qualquer
outro modo, mas apenas em ser uma substância extensa, em comprimento, largura e profundidade"
(Princ. phil., II, 4). Esse conceito tem grande aceitação no séc. XVII. Hobbes, p. ex., identifica a M.
primeira dos aristotélicos com o corpo em geral, ou seja, com o "corpo considerado sem levar em conta
qualquer acidente, exceto a grandeza ou extensão e a capacidade de receber formas e acidentes" (Decorp.,
VIII, 24). O mesmo conceito de corpo em geral como M. é aceito por Spinoza, que também o identifica
com a extensão (Et, II, def. 1).
Há motivos para acreditar que essa definição de M. esteja implícita na hipótese atomista. Como se sabe, o
termo "M." aparece pela primeira vez em Aristóteles com significado filosófico, mas o próprio Aristóteles
fala, referindo-se a Demócrito, do "corpo comum de todas as coisas", e afirma que, segundo Demócrito,
as partes de tal corpo diferem em grandeza e configuração (Fís., III, 4, 203 a 33-203 b 1). Ora, "grandeza
e configuração" nada mais são que extensão. Em outro trecho, Aristóteles enumera três diferenças entre
os átomos: configuração,
MATÉRIA2
648
MATÉRIA2
ordem e posição (Met., I, 4, 985 b 15), mas configuração, ordem e posição nada mais são que extensão.
Extensão também é a configuração à qual, segundo Epicuro, se reduzem todas as qualidades do átomo
(DIÓG. L., X, 54). Assim, a hipótese atomista implica o conceito de M. como extensão, o que foi
ressaltado por Guilheme de Ockham no séc. XIV: "É impossível haver M. sem extensão porque não é
possível haver M. que não tenha as partes distantes umas das outras; por isso, ainda que as partes da M.
possam unir-se, como se unem as partes da água e do ar, não podem estar no mesmo lugar" (Summ. phys.,
I, 19; Quodl, IV, q. 23). 4a
O conceito de M. como força ou energia é defendido pela primeira vez pelos
platônicos de Cambrídge, no séc. XVII, sendo depois aceito por Leibniz e por muitos filósofos do séc.
XVIII. Segundo Cudworth, a M. é uma natureza plástica, uma força viva que é emanação direta de Deus
(The True Intellectual System of the Universe, I, 1, 3). H. More, assim como Descartes, reduz a M. a
extensão, mas identifica a extensão com o espírito, resolvendo-a em partículas indivisíveis que ele chama
de manadas físicas e que nada mais têm de material {Enchi-ridion metaphysicum, I, 8, 8; I, 9, 3). Essas
considerações metafísicas ganharam significado mais preciso em Newton e Leibniz. Newton julgava
impossível admitir que "a M. fosse isenta de qualquer tenacidade e atrito de partes, bem como de
comunicação de movimento"; considerava, portanto, que ela tivesse estreitíssima relação com as "forças"
ou "princípios" que se manifestam na experiência {Optickis, 1704, III, 1. q. 31)- Para Leibniz, a M., além
da extensão, é constituída por uma força passiva de resistência, que é a impenetrabilidade ou antitipia (v.)
{Op., ed. Erdmann, pp. 157, 463, 466. 691). A mesma doutrina foi aceita por Wolff, que definia a M.
como "um ente extenso provido de força de inércia", e acreditava que ela possuísse força ativa por si
{Cosm., §§ 141-42). Essa interpretação da M. tornou-se um dos temas comuns do Iluminismo e da
polêmica dos ilu-ministas contra Descartes. Diderot dizia: "Não sei em que sentido os filósofos
supuseram que a M. é indiferente ao movimento e ao repouso. É certo, porém, que todos os corpos
gravitam uns sobre os outros „jue todas as partículas dos corpos gravitam :mas sobre as outras, que neste
universo tuüo está em translação ou in nisu, ou em translação e in nisu ao mesmo tempo" {Príncipes phil.
surla matière et le mouvement,
em CEuvr.phil., ed. Vernière, p. 393). Essa concepção também foi aceita por Kant que dizia: "A M. enche
um espaço, não através de sua existência pura, mas por meio de uma força motriz particular": a força
repulsiva de todas as suas partes {Metaphysische Anfangsgründe der Naturwissenschaft, II, Lehrsatz, 2,
3). O conceito romântico de M. como força ou atividade, expresso por Schelling, p. ex., é apenas uma
ampliação dessa doutrina. Segundo Schelling, as três dimensões da M. são determinadas pelas três forças
que a constituem: força expansiva, força atrativa e uma terceira força sintética, que correspondem, em sua
natureza, ao magnetismo, à eletricidade e ao quimismo, respectivamente {System der transzendentalen
Idealismus, III, cap. II, Dedução da matéria; trad. it., pp. 109 ss.). Mais genericamente, Schopenhauer
identificava M. com atividade {Die Welt, I, § 4). No domínio científico, esse ponto de vista foi realizado
como energismo (v.). G. Ostwald sustentou, no fim do século passado, que o conceito de M. era
perfeitamente inútil para a ciência da natureza, propondo a sua substituição pelo conceito de energia {Die
Überwindung des wissenschaftlichen Mate-rialismus, 1895).
5
a
Embora não se possa chamar de conceito de M. a redução de M. a percepções ou idéias, proposta por
Berkeley, porque isso é simplesmente negá-la, é possível aceitar a definição dada por Mach, de que a M. é
uma "conexão determinada de elementos sensíveis em conformidade com uma lei" {Analyse der Ernpfindungen, XIV, 14). Essa definição não tende, de fato, a negar a matéria ou a reduzi-la a elementos
subjetivos e psíquicos, mas a substituir a rigidez e inércia tradicionalmente atribuídas à M. pela
estabilidade relativa de uma lei. Nesta definição, o conceito fundamental é de lei, entendida como
expressão de uma conexão constante. A M. seria precisamente a conexão constante na qual se apresentam
agrupados os elementos últimos das coisas, ou seja, as sensações.
6
a
Os usos anteriores são todos de natureza filosófica, apesar de algumas vezes terem sido propostos ou
sustentados por cientistas. No domínio da ciência, mais precisamente da mecânica, a noção de M. se
identifica com a de massa (definida pelo segundo princípio da dinâmica como relação entre a força e a
aceleração imprimida). A massa pode ser entendida como massa inercial ou como peso. O princí-
MATERIAUSMO 649
MATERIALISMO
pio da "conservação da M.", que a ciência do séc. XIX considerava como um de seus pilares, ao lado do
princípio da "conservação da energia", refere-se à M. entendida como peso, uma vez que seu significado
específico foi-lhe dado somente pelas célebres experiências com as quais Lavoisier demonstrou (1772)
que nas reações químicas (entre as quais a combustão) o peso do composto é a soma dos pesos dos
componentes.
1- Na ciência contemporânea, o conceito de M. tende a ser reduzido ao de densidade de campo. "Uma vez
reconhecida a equivalência entre massa e energia, a divisão entre M. e campo parece artificiosa e não
claramente definida. Não poderíamos então renunciar ao conceito de M. e edificar uma física do campo
puro? O que impressiona nossos sentidos como M. na realidade é uma grande concentração de energia em
espaço relativamente limitado. Portanto, parece lícito equiparar a M. a regiões espaciais nas quais o
campo é extremamente forte" (EINSTEIN-INFELD, TheEvolution ofPhysics, cap. III; trad. it., p. 253). Esta
tendência da física contemporânea não pode ser confundida com o energismo, porque não implica a
redução da M. à energia, mas a redução dos conceitos de M. e de energia ao de campo (v.).
MATERIAUSMO (in. Materialism; fr. Ma-térialisme, ai. Materialismus, it. Materialismó). Este termo
foi usado pela primeira vez por Robert Boyle em sua obra de 1674 intitulada The Excellence and Grounds
ofthe Mechanical Philosophy (cf. EUCKEN, Geistige Strómungen der Gegenwart, 5
a
ed., 1916, p. 168).
Esse termo designa, em geral, toda doutrina que atribua causalidade apenas à matéria. Em todas as suas
formas historicamente identificáveis (em que esse termo não seja empregado com fins polêmicos), o M.
consiste em afirmar que a única causa das coisas é a matéria. A antiga definição de Wolff, segundo a qual
são materialistas "os filósofos que admitem apenas a existência dos entes materiais, ou seja, dos corpos"
(Psychol. rationalis, § 33), não é suficiente para apontar as formas históricas do M., porque levaria a
incluir nessa corrente doutrinas que a repudiam (v. mais adiante). A partir daí é possível distinguir: ls
o M.
metafísico ou cosmológico, que se identifica com o atomismo filosófico; 2- o M. metodológico, segundo o
qual a única explicação possível dos fenômenos é a que recorre aos corpos e aos seus movimentos; 3S
o M. pratico, que reconhece no prazer o único guia da vida; 4S
o M. psicofísico, para o qual
os fenômenos psíquicos são causados estritamente por fenômenos fisiológicos. Estas são as formas
historicamente reconhecíveis do M., além das formas conhecidas como M. dialético e M. histórico (v.),
considerados à parte. Não se pode aceitar, porém, como historicamente legítimo o significado que
Berkeley atribui ao termo, entendendo por materialistas todos aqueles que de qualquer maneira
reconheçam a existência da matéria {Principies of Human Knowledge, § 74), porque nesse sentido
Aristóteles e os aristotélicos também seriam materialistas; tampouco é possível chamar os estóicos de
materialistas, ainda que, para eles, tudo o que existe na natureza é corpo (DIÓG. L., VII, 1, 56; PLUTARCO,
De Com. Not5, uma vez que admitiam um princípio racional divino como causa do mundo; por motivos
análogos, não se pode julgar que Tertuliano seja materialista por ter afirmado que "tudo o que existe é
corpo" (Dean., 7; De carne Christi, 11).
I
2 O M. cosmológico é caracterizado pelas seguintes teses: a) caráter originário ou inde-rivável da
matéria, que precede todos os outros seres e é causa deles (portanto, não é M. a doutrina de Gassendi,
para quem os átomos que constituem o universo foram criados por Deus); tí) estrutura atômica da
matéria; c) presença na matéria, portanto nos átomos, de uma força capaz de pô-los em movimento e de
levá-los a se combinarem de tal modo que dão origem às coisas (Demócrito admitia que os átomos se
movem por conta própria desde a eternidade [ARISTÓTELES, Pis., VIII, 1, 252 a 32], e esse pressuposto
permaneceu em todas as formas do atomismo; a última forma histórica assumida pelo M., difundida nos
últimos decênios do séc. XIX pelo biólogo alemão Emst Haeckel, admitia até mesmo que os átomos
fossem dotados de vida e sensibilidade, além de movimento [Die Weltrãtsel, 18991); d) negação do
finalismo do universo e, em geral, de qualquer ordem que não consista na simples distribuição das partes
materiais no espaço; é) redução dos poderes espirituais humanos à sensibilidade, ou seja, sensacionismo
(sob esse aspecto, na Antigüidade o M. é representado pelas doutrinas de Demócrito e de Epicuro; na
Idade Moderna, pelas doutrinas de alguns iluministas e de numerosos positivistas do séc. XLX).
2
a
O M. metodológico foi defendido primeiramente por Hobbes; sua tese fundamental con-
MATERIAUSMO
650
MATERIAUSMO
siste em julgar que a noção de matéria, ou seja, de corpo e de movimento, é o único instrumento
disponível para a explicação dos fenômenos. Hobbes afirmava de fato que o conhecimento de uma coisa é
sempre conhecimento de sua gênese, e que a gênese é movimento. Portanto, todo conhecimento é
conhecimento do movimento, e movimento implica corpo. Por isso, chamou De corpore (1655) o seu
tratado de filosofia primeira. Desse ponto de vista, a explicação materialista também é a única possível
para as coisas que dizem respeito ao espírito e às coisas espirituais. Assim, Hobbes objetava a Descartes:
"O que diremos se o raciocínio não passar de um conjunto e uma conexão de nomes por meio da palavra
'é? Segue-se dessa tese que, por meio da razão, não podemos concluir nada que diga respeito à natureza
das coisas, mas somente algo que diga respeito a seus apelativos; vale dizer: com ela vemos apenas se os
nomes das coisas se agrupam bem ou mal, segundo as convenções que estabelecemos arbitrariamente
para os seus significados. Se assim for, como pode perfeitamente ser, o raciocínio dependerá dos nomes,
os nomes dependerão da imaginação e a imaginação talvez (isto segundo a minha opinião) dependa do
movimento dos órgãos do corpo, e assim o espírito nada mais será que um movimento em certas partes do
corpo orgânico" (III, Objections, 4). Portanto, segundo Hobbes, o corpo é o único objeto possível do
saber humano, e a filosofia divide-se em duas partes, a filosofia natural e a filosofia civil, segundo estude
o corpo natural (a natureza) ou o corpo artificial (a sociedade) {De corp., I, 9).
Recentemente, o M. metodológico foi defendido pelos filósofos do círculo de Viena, especialmente por
Carnap, mas em sentido diferente do de Hobbes e referindo-se à linguagem: tal M. é a exigência de
traduzir para os termos da linguagem física os dados protocolares, a fim de construir com eles uma
linguagem inter-subjetiva. Esse M. identifica-se, portanto, com ofisicalismo(v.) e não implica nenhuma
afirmação sobre a existência da matéria (cf. Erkennt-nis, 1931, p. 477), nem a dedutibilidade das leis
biológicas e psicológicas a partir das leis físicas. Sem dúvida, segundo esse ponto de vista, a unificação
das leis da ciência é meta da própria ciência, mas não se pode excluir nem prever que essa meta seja
alcançada (CARNAP, Logical Foundations of the Unity of Science, 1938, p. 61).
3
S
Em seu significado prático ou moral, o M. é termo que pertence mais à linguagem comum do que à
filosófica. Fala-se de "época materialista", de "tendências materialistas" ou do "materialismo" de grupos
ou classes, para indicar a tendência ao conforto ou, mais precisamente, uma ética que adote o prazer como
único guia do comportamento. O termo filosófico para isso é hedonismo (v.); este muitas vezes é
acompanhado pelo M., mas não necessariamente. A ética de Epicuro e dos materialistas do séc. XIX é
hedonista, mas não a ética de Demócrito. Por outro lado, o hedonismo pode estar presente em filosofias
não materialistas; foi aceito, p. ex., pelos cirenaicos e pelos empiristas do séc. XVIII. Em sua forma
extrema, porém, o hedonismo constituiu uma manifestação característica do M. psicofísico sete-centista,
que, desse ponto de vista, foi uma continuação do libertinismo (v.). A obra de HELVÉTIUS, De
1'esprit(17'58), é particularmente significativa a esse respeito porque contém uma exaltação
indiscriminada do prazer, assim como outra obra de alguns anos antes, Vartde jouir ou Vécole de Ia
volupté (1751), de LA METTRIE.
4
S
O M. psicofísico consiste em afirmar que a atividade espiritual humana é efeito estrito da matéria, ou
seja, do organismo, do sistema nervoso ou do cérebro. Essa tese apresentou-se sob diversas formas nos
sécs. XVIII e XIX; uma delas é a concepção do homem-máquina. Essa expressão foi usada pelo francês
La Mettrie, como título de uma obra sua famosa (1748), mas o conceito também é expresso na obra de
DAVTO HARTLEY, Observa-tions ofMan (1749), e na de JOSEPH PRIESTLEY, Disquisitions Relating to
Matter and Spirit (1777). O Système de Ia nature, de Holbach, talvez seja a melhor expressão desse ponto
de vista; segundo ele, todas as faculdades humanas são modos de ser e de agir que resultam do organismo
físico do homem, que, por sua vez, é determinado pela máquina do universo. Uma forma mais restrita e
específica desse M. está presente na obra do médico francês PIERRE CABANIS, Rapports du physique et
du moral de 1'homme (1802), para quem as atividades psíquicas provêm do sistema nervoso. Em meados
do séc. XIX, essa dependência causai dos poderes espirituais humanos em relação ao sistema nervoso
pareceu a muitos filósofos e cientistas um fato estabelecido. O M. daquela época parte desse pressuposto.
Numa obra de 1854,
MATERIALISMO DIALÉTICO
651
MATERIALISMO DIALÉTICO
Kõhler-glaube und Wissenschaft, o naturalista Karl Vogt afirmava que "o pensamento está para o cérebro
assim como a bílis está para o fígado ou a urina para os rins", afirmação que ia ao encontro de outra, feita
pelo historiador e literato francês Hyppolite Taine, de que "o vício e a virtude são produzidos como o
vitríolo ou o açúcar, e cada dado complexo nasce do encontro de outros dados mais simples, dos quais
depende" (Histoire de Ia littérature anglaise, 1863, Intr.). Outra forma mais atenuada ou, se quisermos,
mais "nobre" da mesma doutrina diz que a consciência é o epifenômeno dos processos nervosos, no
sentido que, enquanto é produzida por eles, não reage sobre eles mais do que a sombra reage sobre o
objeto que a produz (Huxley, Clifford, Ribot). Em História doM. (GeschichtedesMaterialismus, 1866), de
F. A. Lange, a exposição do M. está centrada precisamente na sua forma psicofísica, na qual ele vê um
salutar lembrete contra a pretensão de estender o saber humano além de certos limites. Segundo Lange, o
M. renasce sempre que o homem esquece esses limites e pretende dar valor objetivo a construções
metafísicas que só têm valor de fantasia.
Tanto em sua forma metafísica quanto na psicofísica, o M. da metade do séc. XIX tem caráter romântico,
pois não se limita a ser uma tese filosófica dotada de maiores ou menores possibilidades de confirmação,
mas pretende ser doutrina de vida, destinada a vencer a religião e a suplantá-la. Essa pretensão confere a
tais doutrinas um tom violentamente polêmico e profético, transformado a "Ciência" na nova tábua da
verdade absoluta. Essa atitude recebeu o nome de cientificismo (v.) e constitui a vanguarda romântica da
ciência do séc. XIX; o M. foi seu credo. Mas esse credo foi em parte destruído pela própria ciência, em
virtude da crise de sua concepção mecanicista nos últimos decênios do séc. XIX.
MATERIALISMO DIALÉTICO (in. Dialec-tical materialism, fr. Matérialisme dialectique, ai.
Dialektischer Materialismus-, it. Materia-lismo dialetticó). Entende-se por essa expressão a filosofia
oficial do comunismo enquanto teoria dialética da realidade (natural e histórica). Mais que de
materialismo (v.), trata-se na realidade de um dialetismo naturalista, cujos princípios foram propostos por
Marx (v. DIALÉTICA), desenvolvidos por Engels e depois, mais ou menos servilmente, seguidos pelos
filósofos do mundo comunista, que são os únicos seguidores dessa filosofia. Segundo Engels, Hegel reco- f nheceu perfeitamente as leis da dialética, mas
considerou-as "puras leis do pensamento", já que não foram extraídas da natureza e da história, mas
"concedidas a estas do alto, como leis do pensamento". Porém, "se invertermos as coisas, tudo se tornará
simples: as leis da dialética que, na filosofia idealista, parecem extremamente misteriosas, tornam-se logo
simples e claras como o sol" (Anti-Dühring, pref.). Segundo Engels, são três as leis: \- lei da conversão da
quantidade em qualidade e vice-versa; 2a
lei da interpenetração dos opostos; 3a
lei da negação da negação.
A primeira significa que na natureza as variações qualitativas só podem ser obtidas somando-se ou
subtraindo-se matéria ou movimento, ou seja, por meio de variações quantitativas. A segunda lei garante a
unidade e a continuidade da mudança incessante da natureza. A terceira significa que cada síntese é por
sua vez a tese de uma nova antítese que dará lugar a uma nova síntese (ENGELS, Dialektik derNatur,
passim). Segundo Engels, esse conjunto de leis determina a evolução necessária — e necessariamente
progressiva — do mundo natural. A evolução histórica continua, com as mesmas leis, a evolução natural.
O sentido global do processo é otimista. A organização da produção segundo um plano, como se realizará
na sociedade comunista, destina-se a elevar os homens acima do mundo animal, em termos sociais, tanto
quanto o uso de instrumentos de produção o elevou em termos de espécie. Como se vê, o M. dialético de
Engels nada mais é que a teoria da evolução (que nos tempos de Engels festejava seus primeiros triunfos),
interpretada em termos de fórmulas dialéticas hegelianas, com prognósticos extremamente otimistas.
Costuma-se considerar que o materialismo histórico e o materialismo metafísico são partes integrantes do
M. dialético. Sobre o primeiro, v. capítulo à parte. Quanto ao segundo, foi mais enfatizado por Lênin e
pelos comunistas russos do que Marx e Engels. Lênin assim resumia as teses do materialismo: "Ia Há
coisas que existem independentemente de nossa consciência, independentemente de nossas sensações,
fora de nós. 2a
Não existe e não pode existir diferença alguma de princípio entre o fenômeno e a coisa em
si. A única diferença efetiva é a que existe entre o que é conhecido e o que ainda não o é. 3a
Sobre a teoria
do conhecimento, como em todos os outros campos da ciência,
MATERIA1ISMO HISTÓRICO
652
MATERIAIJSMO HISTÓRICO
deve-se raciocinar sempre dialeticamente, ou seja, nunca supor que nosso conhecimento seja invariável e
acabado, mas analisar o processo graças ao qual o conhecimento nasce da ignorância ou o conhecimento
vago e incompleto torna-se mais justo e preciso" iMaterialismus und Empiriokrítizismus, 1909; trad. it., p.
75). Como se vê, tampouco essas teses expressam uma concepção materialista, mas constituem uma
reivindicação do realismo gno-siológico.
MATERIALISMO HISTÓRICO (in. Histo-rical materialism; fr. Matérialisme historique, ai.
HistorischerMaterialismus; it. Materialismo storicd). Com este nome Engels designou o cânon de
interpretação histórica proposta por Marx, mais precisamente o que consiste em atribuir aos fatores
econômicos (técnicas de trabalho e de produção, relações de trabalho e de produção) peso preponderante
na determinação dos acontecimentos históricos. O pressuposto desse cânon é o ponto de vista
antropológico defendido por Marx, segundo o qual a personalidade humana é constituída intrinsecamente (em sua própria natureza) por relações de trabalho e de produção de que o homem participa
para prover às suas necessidades. A "consciência" do homem (suas crenças religiosas, morais, políticas,
etc.) é resultado dessas relações, e não seu pressuposto. Esse ponto de vista foi defendido por Marx
sobretudo na obra Ideologia alemã {Deutsche Ideologie, 1845-46). Em vista disso, a tese do M. histórico
é de que as formas assumidas pela sociedade ao longo de sua história dependem das relações econômicas
predominantes em certas fases dela. Marx diz: "Em sua vida produtiva em sociedade, os homens
participam de determinadas relações necessárias e independentes de sua vontade: relações de produção
que correspondem a certa fase de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. Esse conjunto de
relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, que é a base real sobre a qual se erige
uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas sociais de consciência.
(...) Portanto, o modo de produção da vida material em geral condiciona o processo da vida social,
política e espiritual" {Zur Kritik derpolitischen Òkonomie, 1859, Pref.; trad. it., p. 17). Marx elaborou
essa teoria sobretudo em oposição ao ponto de vista de Hegel, para quem é a consciência que determina o
ser social do homem;
para Marx, pelo contrário, é o ser social do homem que determina a sua consciência.
Contudo, não se deve achar que Marx fosse partidário fatalismo econômico, segundo o qual as condições
econômicas necessariamente levariam o homem a determinadas formas de vida social. Nessas relações
econômicas, que dependem de técnicas de trabalho, produção, troca, etc, o homem é elemento ativo e
con-dicionante. Portanto, a condicionalidade que a estrutura econômica exerce sobre as superes-truturas
sociais é — pelo menos em parte — uma autocondicionalidade do homem em relação a si próprio
(Deutsche Ideologie, I, C; trad. it., pp. 69 ss.). Engels falou em seguida da "inversão da práxis histórica",
ou seja, de uma reação de oposição da consciência humana à ação das condições materiais sobre ela. Mas
do ponto de vista de Marx essa inversão não é necessária, visto não ser a superestrutura que reage à
estrutura, mas o homem que, intervindo com suas técnicas para mudar ou para melhorar a estrutura
econômica, se autocondiciona por meio dela.
O M. histórico chamou a atenção dos historiadores para um cânon interpretativo ao qual muitas vezes é
indispensável recorrer para explicar acontecimentos e instituições histó-rico-sociais. A ele de fato
recorrem, em maior ou menor grau, historiadores de todos os campos de atividade humana, porquanto
algumas vezes o caminho aberto por esse tipo de explicação histórica é o único possível. No entanto, nem
sempre é o único possível. Hoje a tendência é interpretar o M. histórico como uma possibilidade
explicativa, à qual se recorre em circunstâncias apropriadas, e não como um princípio dogmático
(sobretudo na forma proposta por Engels). Em outras palavras, afirmar que acontecimentos ou situações
histórico-sociais sempre devem ser explicados pelo determinismo dos fatores econômicos é tese tão
dogmática quanto qualquer outra que quisesse excluir absolutamente e em todos os casos o determinismo
de tais fatores. O historiador, diante de uma situação, deve verificar o peso relativo dos fatores
determinantes, estabelecendo-o caso a caso, considerando as situações particulares, e não decidindo de
antemão e em definitivo. Isento dessa postura dogmática, o M. histórico representa, para a técnica de
explicação historio-gráfica, uma das possibilidades mais fecundas e um novo grau de liberdade à escolha
historio-gráfica (v. HISTORIOGRAFIA).
MATHESIS UNIVERSALIS
653
MECANICISMO
MATHESIS UNIVERSALIS. Foi assim que Leibniz (Op., ed. Erdmann, p. 8) chamou a arte
combinatória ou característica universal (v.). Husserl retomou esse termo para designar a lógica formal
ou pura como "ciência eidética do objeto em geral", que ele assim caracteriza: "Objeto é para ela tudo e
cada coisa; portanto podem ser constituídas as verdades infinitamente múltiplas que se distribuem nas
inúmeras disciplinas da mathesis. Estas últimas, por outro lado, remetem a um pequeno patrimônio de
verdades imediatas ou fundamentais, que nas disciplinas puramente lógicas funcionam como axiomas"
(Ideen, I, § 10; Logische Untersuchungen, I, último cap.).
MATRIMÔNIO. V. CASAMENTO.
MATRIZES, MÉTODO DAS (in. Method of matrices; fr. Méthode des matrices, it. Método delle
matrici). Método de construção de tábuas de verdade (v. TÁBUA); consiste na enumeração sistemática das
possibilidades de verdades para certo número de proposições simples, ou seja, na enumeração das
combinações possíveis dos valores de verdade dessas proposições. Para uma proposição há duas
possibilidades (verdadeira ou falsa); para duas, quatro; em geral, para n proposições, 2" possibilidades de
verdades. Esse método foi introduzido por Peirce numa obra de 1885 (Coll. Pap., 4.359-403),
desenvolvido por Schrõder (Álgebra der Logik, 1890) e empregado pelos lógicos poloneses,
especialmente Lukasiewicz, para construção das lógicas polivalentes (que admitem o valor possível, além
de verdadeiro e falso) (cf. TARSKI, Logic, Semantics, Metamathematics, 1956, cap. IV), sendo hoje
adotado por grande número de lógicos matemáticos (cf., p. ex., BETH, Les fondements logiques des
mathéma-tiques, 1955, § 34).
Esse método era conhecido na Antigüidade; Fílon de Mégara utilizou-o em sua análise das proposições
condicionais, afirmando que tais proposições serão verdadeiras nos seguintes casos: 1) se o antecedente e
o conseqüente forem verdadeiros; 2) se o antecedente for falso e o conseqüente verdadeiro; 3) se o
antecedente e o conseqüente forem falsos; e que serão falsas quando o antecedente é verdadeiro e o
conseqüente é falso (SEXTO EMPÍRICO, Adv. math., I,
309). V. CONDICIONAL; IMPLICAÇÃO.
O método de matrizes geralmente serve para reconhecer se uma proposição do cálculo proposicional é
verdadeira; por isso, pode ser enumerada entre as leis do cálculo (TARSKI,
Introduction to Logic, § 13; CHURCH, Introduc-tion to Mathematical Logic, I, § 15).
MÁXIMA (lat. Máxima propositio; in. Maxim; fr. Maxime, ai. Maxime, it. Massimd). Este termo tem
dois significados diferentes: I
a
proposição evidente; 2S
regra de conduta.
l
s
O significado de proposição evidente é o mais antigo e se encontra estabelecido a propósito da teoria
dos lugares lógicos. Boécio chamou de "proposição máxima" a proposição indemonstrável mas evidente
(In top. Cicer., I; De diff. topicis, II; em P. L., 64s
, col. 1151, 1185), e esse significado permaneceu na
lógica medieval. "A proposição máxima" — diz Pedro Hispano — "é a proposição mais conhecida ou
mais primitiva possível, como, p. ex., 'O todo é maior que sua parte'" (Summ. log., 5.07). Mais tarde,
acentuou-se algumas vezes o caráter de probabilidade da máxima: por máxima Jungius entende "um
enunciado universal maximamen-te provável" (Log. hamburgensis, 1638, V, 3, 5). Nesse significado, que
é sinônimo de axioma, essa palavra era utilizada por Locke (Ensaio, IV, 12, 1) e por Leibniz (Nouv. ess.,
IV, 126). Agora não é usada, tendo sido substituída pelo termo axioma.
2- Foram os moralistas franceses da segunda metade do séc. XVII os primeiros a empregar esse termo
para designar uma regra moral. La Rochefoucauld intitulou sua coletânea de pensamentos Réflexions ou
sentences et ma-ximes morales, (1665); Kant aceitou este uso, entendendo por M. uma regra de
comportamento em geral. Distinguia a M., como "princípio subjetivo da vontade", da lei, que é o
princípio objetivo, universal de conduta. O indivíduo pode assumir como M. a lei, outra regra ou mesmo
afastar-se da lei (GrundlegungzurMet. derSitten, I, 1, nota; Crít. R. Prática, § 1, Def.; Religion, I, Obs.).
Este segundo significado é o único que ficou.
MECANICISMO (in. Mechanism; fr. Mé-canisme, ai. Mecanismus; it. Meccanicismó). Toda doutrina
que recorra à explicação meca-nicista. Entende-se por explicação mecanicista a que utiliza
exclusivamente o movimento dos corpos, entendido no sentido restrito de movimento espacial. Nesse
sentido, é mecanicista a teoria da natureza que não admite outra explicação possível para os fatos
naturais, seja qual for o domínio a que eles pertençam, além daquela que os interpreta como movimentos
ou combinações de movimentos de corpos no espaço. O M. pode ser considerado: 1Q
uma
MECANICISMO
654
MECANICISMO
concepção filosófica do mundo; 2- um método ou princípio diretivo da pesquisa científica.
l
e
Como concepção filosófica do mundo, o M. apresentou-se desde a Antigüidade como atomismo (v.). A
concepção do mundo como sistema de corpos em movimento, como uma grande máquina, é típica do
atomismo antigo. O materialismo dos sécs. XVIII e XIX retomou essa concepção, que tem as seguintes
caracte-rísticas: d) negação de qualquer ordem fina-lista; a polêmica entre M. e finalismo começou a
partir de séc. XVII, quando o M. se firmou com o surgimento da ciência moderna; atualmente muitas
vezes o termo M. é interpretado apenas como negação do finalismo (v.); b) determinismo rigoroso,
representado pelo conceito de causalidade necessária infiltrada em todos os fenômenos da natureza; hoje
é con-siderada como não-mecanicista qualquer concepção do mundo que negue o determinismo rigoroso.
As duas características acima são tipicamente expressas pela filosofia de Hobbes, que constitui um dos
melhores exemplos de M. filosófico (v. MATERIALISMO). Por outro lado, a visão mais perspicaz que as
filosofias antimecani-cistas do séc. XIX assumiram perante o M. foi expressa por Lotze, em Microcosmo
(1856): "a tarefa que cabe ao M. na ordenação do universo é universal, sem exceções no que se refere à
extensão, mas absolutamente secundário no que se refere à importância" (Mikrokosmus, I, Intr.; trad. it., p.
10); ou, em outros termos, o M. não passa de instrumento utilizado pelo Princípio Racional ou Divino do
universo para cumprir seus objetivos. Na filosofia espiritualista contemporânea, esse ponto de vista
mesclou-se à crítica ab extrinseco dos princípios científicos do M. A partir das últimas décadas do séc.
XIX, o M. como concepção filosófica geral deixou de ter seguidores pelos motivos a seguir expostos.
2
e
O M. científico pode ser considerado: d) na física; b) nas outras ciências.
a) Na física, o M. consiste na tese de que todos os fenômenos da natureza devem ser explicados pelas leis
da mecânica, e que, portanto, a própria mecânica deve ter um status privilegiado entre as outras ciências,
porquanto lhes fornece os princípios explicativos. Ora, a mecânica como ciência é criação relativamente
recente. Arquimedes conhecia os elementos da estática, que é a parte da mecânica que trata do equilíbrio
das forças, mas a dinâmica, que é o
estudo dos movimentos dos corpos sob a ação das forças, era desconhecida dos antigos e foi inaugurada
por Galilei e Newton. Depois, o princípio de D'Alembert unificou a estática e a dinâmica, mostrando que
um problema de dinâmica pode ser transformado num problema de equilíbrio de forças, portanto de
estática, tomando em consideração forças fictícias chamadas "forças inerciais"; assim, p. ex., a órbita de
um planeta em torno do sol pode ser interpretada como equilíbrio entre a força de gravi-tação e uma força
centrífuga igual e oposta. Com essa concepção, a mecânica estava de algum modo concluída em termos
de teoremas fundamentais, e a partir de então sofreu transformações conceituais e lingüísticas que
visavam a torná-la mais coerente e simples. Desse ponto de vista, pode-se dizer que em meados do séc.
XIX teve início uma segunda fase do desenvolvimento da mecânica, graças sobretudo a Hamilton, com a
substituição da idéia de força pela idéia de energia. A primeira fase da mecânica foi caracterizada pela
tentativa de explicar os fenômenos naturais reduzindo-os a inúmeras ações à distância entre os átomos da
matéria. A segunda fase inspira-se na importância adquirida pelo princípio de conservação da energia
(enunciado por Helmholtz em 1847) e pela expressão das leis fundamentais da mecânica, em termos de
energia cinética e potencial. Uma terceira fase foi iniciada quase no fim do séc. XIX por Hertz, que
procurou reduzir a dinâmica à cinemática admitindo como fundamental a lei do princípio mínimo: cada
sistema livre persiste em seu estado de repouso e de movimento uniforme pelo caminho mais curto.
O M. em física é relativamente independente dessas mudanças da mecânica. Como já foi dito, a
característica das teorias meca-nicistas em física é utilizar exclusivamente as grandezas próprias da
mecânica (força, massa, energia, etc). Podemos distinguir: a teoria mecanicista da descontinuidade e a
teoria me-canicista do contínuo.
A teoria mecanicista do descontínuo é a teoria atômica utilizada para explicar, além da luz (teoria
corpuscular), vários fenômenos; físicos como a adesão, a coesão, a capilaridade; deu lugar à teoria
cinética dos gases e às primeiras teorias dos fenômenos elétricos. As teorias mecanicistas fundamentadas
na continuidade só foram possíveis com a descoberta de instrumentos de cálculo diferencial mais
complexos;
MECANICISMO
655
MEDIAÇÃO
seu exemplar é a hipótese de Fresnel sobre o éter elástico como meio de propagação das ondas luminosas.
Ambas as teorias foram eliminadas da física pela teoria do campo (v.), em virtude da qual os conceitos da
mecânica deixaram de ter validade como princípios explicativos gerais da física. Simultaneamente, a
outra característica fundamental do M., o determinismo rigoroso ou necessarista, foi eliminada em virtude
da consolidação da teoria quântica (v. CAUSALIDADE). Einstein e Infeld dizem a respeito: "As leis da
física quântica não governam o comportamento de objetos particulares no tempo, mas as variações da
probabilidade no tempo" (The Evolution of Physic, IV; trad. it., p. 298). Com essa transformação, a física
saiu de sua fase mecanicista e constituiu-se como ciência da previsão provável (v. FÍSICA).
b) O M. não foi apenas um princípio diretivo da física: a partir do séc. XVIII também foi o princípio
diretivo de todas as outras ciências naturais, inclusive da biologia, da psicologia e da sociologia.
Obviamente, fora da física, o M. teve um caráter bem menos rigoroso: nem para a explicação dos
fenômenos biológicos, psicológicos ou sociológicos mais simples chegou-se à exatidão quantitativa dos
modelos mecânicos empregados para explicar, p. ex., o fenômeno da capilaridade ou o da interferência da
luz. Fora da física, portanto, o M. foi uma aspiração genérica, uma tese filosófica ou, na melhor das
hipóteses, uma exigência genérica de método, mais que instrumento efetivo de explicação. Como
instrumento de polêmica, defendeu a necessidade causai contra o finalismo; em termos positivos, afirmou
em todos os campos a exigência da análise quantitativa. Afora isso, as teses do M. nos vários campos da
ciência são reducionistas: em biologia, consiste em reduzir as leis biológicas a leis físico-químicas; em
psicologia, consiste em reduzir as leis psicológicas a leis biológicas; em sociologia, consiste em reduzir as
leis sociológicas a leis biológicas e psicológicas. A utilidade dessas tendências reducionistas foi
desvencilhar o campo das respectivas ciências de estruturas conceituais antiquadas, de pressupostos
metafísicos ou teológicos que estorvavam a pesquisa ou até mesmo a bloqueavam. Contudo, a ciência do
séc. XX, sobretudo a partir do terceiro decênio, abandonou a postura reducionista e, portanto, o M., sem
voltar às posições às quais o M. se opunha. A biologia, p. ex., abandonou
o pressuposto de que os fenômenos vitais são regidos apenas por leis físico-químicas, mas não admitiu
qualquer forma de vitalismo (v. EVOLUÇÃO; VITALISMO). Pode-se dizer, portanto, que o M. foi
abandonado, mas é preciso acrescentar que com ele também foram abandonadas as tendências
conceptuais às quais ele se contrapunha e cuja correção representava.
MEDIAÇÃO (in. Mediation; fr. Médiation-, ai. Vermittelung; it. Mediazionè). Função que relaciona dois
termos ou dois objetos em geral. Essa função foi identificada: 1Q
no termo médio no silogismo; 2
a
nas
provas na demonstração; 3S
na reflexão; 4S
nos demônios na religião.
l
s
Segundo Aristóteles, o silogismo é determinado pela função mediadora do termo médio, que contém um
termo e é contido pelo outro termo (An. pr., I, 4, 25 b 35) (v. SILOGISMO).
2
2
Segundo a Lógica de Port-Royal, a M. é indispensável em qualquer raciocínio. "Quando apenas a
consideração de duas idéias não é suficiente para se julgar se o que se deve fazer é afirmar ou negar uma
idéia com a outra, é preciso recorrer a uma terceira idéia, simples ou complexa, e esta terceira idéia
chama-se intermediária" (ARNAULD, Log., III, 1). Locke dizia: "As idéias intermediárias, que servem para
demonstrar a concordância entre outras duas, são chamadas de provas; quando, com esse meio, percebese com clareza ou evidência a concordância ou discordância, elas são chamadas de demonstração"
(Ensaio, IV, 2, 3). No mesmo sentido D'Alembert afirmava: "Toda a lógica se reduz a uma regra muito
simples: para confrontar dois ou mais objetos distantes uns dos outros utilizamos objetos intermediários.
O mesmo acontece quando queremos confrontar duas ou mais idéias; a arte do raciocínio nada mais é que
o desenvolvimento desse princípio e as conseqüências dele resultantes" (CEuvres, ed. Condorcet, 1853, p.
224).
3
e
Segundo Hegel, a M. é a reflexão em geral (Werke, ed. Glockner, II, p. 25; IV, p. 553, etc): "Um
conteúdo pode ser conhecido como verdade só quando não é mediado por outro, quando não é finito,
quando, portanto, medeia-se consigo mesmo, sendo, assim, o todo em um, M. e relação imediata consigo
mesmo." Em outras palavras, a reflexão exclui não só a imediação, que é a intuição abstrata, o saber
imediato, mas também a "relação abstrata", a M. de um conceito com um conceito diferente (as
MEDIADOR PLÁSTICO 656
MEIO1
provas de Locke), que Hegel considera típica (e com razão) do século do Iluminismo {Ene, § 74).
4
S
Na Antigüidade, aos demônios cabia uma função mediadora entre os deuses e os homens. O Demiurgo
de Platão encarrega as divindades inferiores ou demônios de criar as gerações mortais e completar a obra
da criação (Tim., 41 a-c). Plotino diz que os demônios são eternos, em relação a nós, servindo de
"intermediários entre os deuses e nossa espécie" {Enn., III, 5, 6). Mitra era concebido como mediador,
mais precisamente como mediador entre a divindade inatingível das esferas etéreas e o gênero humano
(CUMONT, The Mysteries of Mithra, pp. 127 ss.). Enfim, segundo a doutrina cristã, "somente a Cristo
compete ser mediador de modo simples e perfeito", enquanto anjos e sarcerdotes são instrumentos de M.
(S. TOMÁS, 5. Th., III, q. 26 a 1).
MEDIADOR PLÁSTICO (fr. Médiateur plastiqué). Assim foi chamada por alguns filósofos do séc.
XIX a "natureza plástica" de que falava Cudworth como éctipo (v.), que é intermediário entre Deus e o
mundo {The True Intellectual System ofthe Universe, I, 1, 3). Essa expressão é usada por Laromiguière
{Leçons dephil, 1815-18, II, 9) e por Galluppi {Lezioni di lógica e metafísica, 1832-1836, II, p. 273).
MEDIANIDADE (ai. Durchschnittlichkeit). Segundo Heidegger, aquilo que o homem é em média, em
sua existência quotidiana e indiferente: determinação fundamental da existência, de que a análise
existencial deve partir {Sein und Zeit, § 9).
MEDIDA (gr. uirpov; lat. Mensura; in. Measure, fr. Mesure, ai. Mass, it. Misurd). Já Platão havia
dividido a arte da M. em duas partes, situando na primeira as artes "que medem o número, o
comprimento, a altura, a largura e a velocidade em relação a seus contrários" e na segunda "as artes que
medem a relação ao justo meio, ao conveniente, ao oportuno, ao obrigatório, enfim às determinações que
estão no meio entre dois extremos" {Pol, 284 e).
Conseqüentemente pode-se entender por medida:
1
B
Relação entre uma grandeza e a unidade. A este propósito Aristóteles observava que a unidade pode ser
entendida de dois modos: como unidade convencional ou aparente e como unidade absolutamente
indivisível {Met., X, 1, 1053 a 22), e, nesse sentido, reconhecia as condições da M. na homogeneidade
entre
aquilo que se mede e aquilo com que se mede {Ibid, X, 1, 1053 a 22).
2
Q
Critério ou o cânon daquilo que é verdadeiro ou bem. Nesse sentido, Cleóbulo, um dos Sete Sábios,
dizia: "O melhor é a M." (DIÓG. L., I, 93). Platão via na justa M. a ordem e a harmonia das coisas {Fil, 24
c-d) e para Aristóteles o meio (v.) era o cânon da virtude ética. No mesmo sentido essa palavra foi usada
por Protágoras, em seu famoso princípio de que o homem é a M. das coisas, e por Aristóteles, quando via
no homem virtuoso "o cânon e a M. das coisas" {Et. níc, III, 4, 1113 a 33). Nesse sentido, a M. é um dos
conceitos fundamentais da cultura clássica grega.
MEDITAÇÃO. V. MISTICISMO.
MEDO. V. EMOÇÃO.
MEGARISMO (in. Megarism; fr. Mégaris-me, ai. Megarismus; it. Megarismo). Escola socrática de
Mégara, fundada no séc. V a.C. por Euclides (não confundir com o matemático Eucli-des, que viveu e
ensinou em Alexandria quase um século mais tarde). Outros representantes dessa escola são Eubulides de
Mileto, Diodoro Cronos e Estílpon, que ensinou em Atenas mais ou menos em 320 a.C. Sua característica
é unir o ensinamento de Sócrates à doutrina eleata. Para Euclides, o bem é um só, a Unidade, chamada
por vários nomes: Sabedoria, Deus, Intelecto, etc. Portanto, assim como os eleatas, os megáricos
contestavam a realidade do movimento, da mudança e da multiplicidade. Para isso, adotavam vários
argumentos de natureza sofistica, como o do sorites (v.) ou do calvo, bem como acatavam a negação da
possibilidade formulada por Diodoro Cronos (para esta última, v. POSSIBILIDADE). Alguns desses
argumentos foram retomados pelos estóicos, nos raciocínios "ambíguos" ou "conversíveis", depois
chamados de dilemas (v.) e hoje chamados de paradoxos ou antinomias (v.).
MEIO1
(gr. ueoÓTnç; lat. Medietas; in. Mean; fr. Milieu; ai. Mittel; it. Medieta). Justo meio, meio-termo,
entre os extremos, que, segundo Aristóteles, pode ser definido em relação às coisas ou em relação a nós:
"Se cada ciência cumpre bem o seu papel quando visa ao justo meio e orienta suas obras para ele (donde
se costuma dizer que nas boas obras nada se tem a tirar nem a acrescentar, porquanto o excesso e a falta
arruinam o bom, enquanto o justo meio o salva), se os bons artistas trabalham com vistas a esse meiotermo, a virtude, que,
MEIO2
657
MEMÓRIA
assim como a natureza, é mais acurada e melhor que qualquer arte, deverá tender precisamente para o
justo meio" {Et. nic, II, 6, 1106 b ■ 8). Contudo, o justo meio é definição apenas da virtude ética (v.) ou
moral, porque só ela diz respeito a paixões ou ações suscetíveis de excesso ou deficiência (cf. também S.
TOMÁS, S. Th., I, II, q. 59, a. 1) (v. VIRTUDE).
MEIO2
(in. Means; fr. Moyen; ai. Mittel; it. Mezzó). 1. Tudo o que possibilita alcançar um fim, cumprir
um objetivo ou realizar um projeto. Sobre a relação entre M. e fim, v. VALOR.
2. Ambiente, especialmente o biológico. Nesse sentido, essa palavra corresponde ao francês milieu, que
começou a ser usada com esse significado em meados do século passado (v. AMBIENTE).
MELANCOLIA (gr. LléÀaç X°^A; in. Melan-cholia-, fr. Mélancolie, ai. Melancbolie, it. Me-lanconid).
Propriamente, humor negro (v. TEMPERAMENTO). Em linguagem comum, tristeza sem motivo.
MELIORISMO (in. Meliorism- fr. Mélio-risme, ai. Meliorismus; it. Megliorismó). Palavra recente,
usada sobretudo pelos escritores anglo-saxões para indicar uma visão de mundo que não é pessimista nem
otimista, mas guiada pela esperança do melhor e pela vontade de realizá-lo.
MEMÓRIA (gr. Livr|u.r|; lat. Memória-, in. Memory, fr. Mémoire, ai. Gedáchtnis; it. Memória).
Possibilidade de dispor dos conhecimentos passados. Por conhecimentos passados é preciso entender os
conhecimentos que, de qualquer modo, já estiveram disponíveis, e não já simplesmente conhecimentos
do passado. O conhecimento do passado também pode ter formação nova: p. ex., dispomos agora de
informações acerca do passado de nosso planeta ou de nosso universo que não são recordações.
Conhecimento passado também não é simplesmente marca, vestígio, pois estas são coisas presentes, não
passadas. A tristeza ou a imperfeição física causadas por um acidente não são a M. desse acidente, apesar
de serem vestígios dele, ao passo que a recordação pode estar disponível e pronta, sem precisar da ajuda
de nenhum vestígio, como no caso da fórmula para o matemático e, em geral, das lembranças decorrentes
da formação ou de hábitos profissionais.
A M. parece ser constituída por duas condições ou momentos distintos: I
a
conservação ou
persistência de conhecimentos passados que, por serem passados, não estão mais à vista: é a retentiva; 2-
possibilidade de evocar, quando necessário, o conhecimento passado e de torná-lo atual ou presente: é
propriamente a recordação. Esses dois momentos já foram dis-tinguidos por Platão, que os chamou
respectivamente de "conservação de sensações" e "remi-niscência" CF//., 34 a-c), e por Aristóteles, que
utiliza esses mesmos termos. Aristóteles também propõe claramente o problema decorrente da
conservação da representação como marca (impressão) de um conhecimento passado: "Se em nós
permanecer algo semelhante a uma marca ou a uma pintura, como pode a percepção dessa marca ser M.
de alguma outra coisa e não apenas de si? De fato, quem lembra vê apenas a marca e só dela tem
sensação; como pode então lembrar o que não está presente?" (DeMem., 1, 450 b 17). A resposta de
Aristóteles a essa questão é que a marca na alma é como um quadro que pode ser considerado por si ou
pelo objeto que representa. E diz: "Assim como um animal pintado num quadro é animal e imagem,
sendo ao mesmo tempo ambas as coisas, ainda que o ser dessas coisas não seja o mesmo, podendo ele ser
considerado como animal ou como imagem, também a imagem mnemônica que está em nós deve ser
considerada como objeto por si mesmo e, ao mesmo tempo, como representação de alguma outra coisa"
(Jbid., 450 b 21). Segundo Aristóteles, a explicação do processo da M., tanto como retentiva quanto como
recordação, é inteiramente física: a retentiva e a produção de impressão decorrem de um movimento,
assim como de um movimento decorre a lembrança/recordação. Contudo, a recordação, ao contrário da
retentiva, é uma espécie de dedução (silogismo), pois "quem recorda deduz que já escutou ou percebeu
aquilo de que se lembra; isso é uma espécie de busca" ilbid., 453 a 11). Portanto, a recordação é própria
apenas dos homens. Com isso, Aristóteles evidenciava outra característica fundamental da M. como
recordação: seu caráter ativo de deliberação ou de escolha. A análise platônico-aristotélica da M. trouxe à
baila os seguintes aspectos: d) distinção entre retentiva e recordação; b) o reconhecimento do caráter ativo
ou voluntário da recordação, diante do caráter natural ou passivo da retentiva; c) base física da recordação
como conservação de movimento ou movimento conservado. Pode-se dizer que esses aspectos não
mudaram ao
MEMÓRIA * 658
MEMÓRIA
longo da história desse conceito. Todavia, as doutrinas posteriores podem ser subdivididas em dois
grupos, segundo o ponto de partida para a interpretação da M.: M. como retentiva ou conservação ou M.
como recordação.
A) A psicologia antiga ressaltou aspecto de M. como conservação, persistência, de conhecimentos
adquiridos. O modo místico como Plotino trata o assunto, além de negar a base física da M. e considerar o
corpo mais como obstáculo do que como ajuda (Enn., IV, 3, 26), afirma a proporção entre M. e força ou
persistência de conservação: "Se a imagem persiste na ausência do objeto, já há M, mesmo que persista
por pouco; se persiste por pouco, a M. é curta; se dura mais, a M. aumenta porque a força da imaginação é
maior; e, se dificilmente falha, a M. é indestrutível" (Ibid., IV, 3, 29). De maneira análoga, a lista feita por
S. Agostinho dos "milagres" da M. baseia-se no conceito de M. como receptáculo dos conhecimentos ou,
segundo sua expressão, "ventre da alma" (Conf., X, 14). Esse é também o conceito dos filósofos
medievais. S. Tomás dá-lhe o nome de "tesouro e local de conservação das espécies" (S. Th., I, q. 29, a.
7), repetindo um lugar-comum da filosofia medieval. Isso eqüivalia a insistir na M. como retentiva.
Mas as concepções modernas e contemporâneas também vêem a M. como conservação; retomando a
concepção agostiniana do tempo como distensio animi ou duração de consciência, vêem na M. a
conservação integral do espírito por parte de si próprio, ou seja, a persistência nele de todas as suas ações
e afeições, de todas as suas manifestações ou modos de ser. Essa concepção já foi exposta por Leibniz,
que concebia a M. como conservação integral sob forma de virtualidade ou de "pequenas percepções" das
idéias que não têm mais forma de pensamentos ou de "apercepções"; donde observar, em oposição a
Locke: "Se as idéias não fossem mais que formas ou modos de pensamentos, cessariam com eles; contudo
o Sr. mesmo reconheceu que elas são os objetos internos dos pensamentos e que, como tais, podem
subsistir. Surpreende-me que possa, então, subestimar essas potências ou faculdades puras, deixando-as,
ao que parece, sob os cuidados dos filósofos da escola" (Nouv. ess., II, 10, 2). Em virtualidade ou
faculdade pode e deve conservar-se integralmente todo ato ou manifestação do espírito, já que o espírito é
justamente essa autoconservação. Tal é a concepção de M. por parte da filosofia espiritualista ou
consciencialista. A melhor exposição dessa concepção encontra-se em Bergson (Matéria e M., 1896), que
a contrapôs à concepção de M. baseada na recordação. Bergson disse: "A M. não consiste na regressão do
presente para o passado, mas, ao contrário, no progresso do passado ao presente. É no passado que nós
nos situamos de chofre. Partimos de um estado virtual, que pouco a pouco, através de uma série de planos
de consciência diferentes, vamos conduzindo até o termo em que ele se materializa em apercepção atual,
ou seja, até o ponto em que se transforma em estado presente e agente, enfim, até o plano extremo de
nossa consciência sobre o qual se desenha nosso corpo. A recordação pura consiste nesse estado virtual"
(Matière et mémoire, 1- ed., p. 245). A M. pura (ou recordação pura) é a corrente de consciência em que
tudo é conservado no estado de virtualidade. A limitação da lembrança efetiva não pertence à M., mas à
recordação atual, que Bergson identifica com a percepção e que é uma escolha realizada na M. pura, para
as exigências da ação. Portanto, as lesões cerebrais não afetam a M. propriamente dita, mas apenas a
reminiscência das lembranças na percepção, ou seja, o mecanismo pelo qual a M. se insere no corpo e
transforma-se em ação. Essa teoria, que Bergson apoiava na análise dos distúrbios das funções
mnemônicas, caracteriza-se por dois pontos fundamentais: 1Q
distinção entre M. pura e recordação,
entenden-do-se por M. pura a conservação integral, independente de qualquer circunstância, do espírito
por parte do espírito; ora, é evidente que essa M. nada tem a ver com a memória observável; 2S
negação
de qualquer base fisiológica para a M. pura e limitação da base fisiológica ao fenômeno da percepção.
Essa negação tampouco é confirmada por fatos; seu precedente histórico é a teoria de Plotino. A partir de
Descartes (Princ. phil, IV, 196), a base fisiológica da M. não é negada. A mesma conservação integral do
espírito por parte do espírito é a "corrente da consciência", de que fala Husserl, pois ele também recorre
ao conceito empregado por Leibniz e Bergson, de virtualidade ou potencialidade como marca da M.
Husserl diz: "As coisas podem ser viven-ciadas não só na apercepção, mas também na recordação e nas
representações afins à recordação. (...) A essência dessas vivências per-
MEMÓRIA
"659
MENTALIDADE
tence a importante modificação que, do modo de atualidade, transporta a consciência para o modo de
inatualidade, e vice-versa. Num caso, a vivência é consciência explícita de seu objeto; em outro, é
consciência implícita, apenas potencial" (Ideen, I, § 35). O pressuposto é sempre o da total conservação
do conteúdo da consciência: o fenômeno da recordação é ligado à passagem do conteúdo do estado atual
para o potencial, ou vice-versa.
B) Pertencem a um segundo grupo as teorias da M. cujo ponto de partida é o fenômeno da recordação.
Hobbes, p. ex., definiu a M. como "a sensação de já ter sentido" (De corp., 25, 1), o que significa defini-la
em relação ao ato de se reconhecer, naquilo que se percebe, o que já se percebeu outra vez. A partir desse
ponto de vista, Wolff definiu a M. como "faculdade de reconhecer as idéias reproduzidas e as coisas por
elas representadas" (Psychol. rationalis, § 278): conceito que também se encontra em Baum-garten (Met,
§ 579). Desse ponto de vista, tende-se algumas vezes a reconhecer o caráter ativo da M., ou seja, a função
da vontade ou da escolha deliberada ao evocar as recordações. Loke dizia: "Nessa evocação das idéias
depositadas na M., o espírito não é puramente passivo porque a representação destes quadros
adormecidos às vezes depende da vontade" (Ensaio, II, 10, 7). Kant ressaltava igualmente esse caráter
ativo: "A M. difere da simples imaginação reprodutiva porque, podendo reproduzir voluntariamentea
representação precedente, a alma não está à mercê dela" (Antr., I, § 34). A esse mesmo grupo de doutrinas
pertencem: d) as que interpretam a M. como inteligência; b) as que interpretam a M. como mecanismo
associativo.
d) Hegel interpretou a M. como inteligência ou pensamento (sempre em seu aspecto de recordação),
vendo nela "o modo extrínseco, o momento unilateral da existência do pensamento". E nota que a língua
alemã confere à M. "a elevada posição de parentesco imediato com o pensamento" (Ene, § 464). Segundo
Hegel, a M. é o pensamento exteriorizado, pensamento que acredita encontrar algo de externo, a coisa que
é lembrada ou recordada, mas que na realidade encontra-se a si mesmo, porque a coisa lembrada ou
recordada também é pensamento. Por isso, Hegel diz que, "como M., o espírito torna-se, em si mesmo,
algo de externo, de tal modo que o que é seu aparece como algo que é encontrado" (Ibid., § 463). Aqui a
M.
é interpretada sobretudo como recordação; é evidente o parentesco dessa doutrina com as espiritualistas
ou consciencialistas: a identificação da M. com o pensamento tem o mesmo sentido da unificação da M.
com a consciência ou com sua duração.
b~) O conceito de M. como mecanismo associativo foi expresso pela primeira vez por Spinoza do
seguinte modo: "A M. nada mais é que certa concatenação de idéias que implicam a natureza das coisas
que estão fora do corpo humano; essa concatenação se produz na mente segundo a ordem e a
concatenação das afeições do corpo humano". Spinoza faz a distinção entre a concatenação da M. e a das
idéias, "que ocorre segundo a ordem do intelecto, igual em todos os homens" (Et, II, 18, schol.). Não há
dúvida, portanto, de que Spinoza fazia alusão a um mecanismo associativo semelhante ao que mais tarde
foi teorizado por Hume: "É evidente que existe um princípio de conexão entre os diversos pensamentos
ou idéias do espírito e que, ao surgirem na M. ou na imaginação, apresentam-se sucessivamente com certo
grau de método e regularidade" (Inq. Cone. Underst, III). Como se sabe, Hume enunciava três leis de
associação: semelhança, contigüida-de e causalidade; mas só as duas primeiras foram empregadas pela
psicologia associa-cionista para explicar os fenômenos psíquicos (v.
ASSOCIACIONISMO).
Grande parte da psicologia moderna baseou-se na hipótese associacionista ao estudar os fenômenos da
M., até que a psicanálise, por um lado, e a gestalt, por outro, mostrassem a importância dos interesses e
das atitudes vo-litivas na recordação, bem como a importância de toda a personalidade no reconhecimento
do já visto. O estudo experimental da M. confirmou as palavras de Nietzsche: "Fiz isto — diz-me a
memória. Não posso ter feito,— sustenta meu orgulho, que é inexorável. Finalmente, quem cede é a M."
(Jenseit von Gut undBõse, 1886, § 68). Assim, as análises psicológicas modernas continuam girando em
torno do fato da recordação, mais do que em torno da retentiva, que continua sendo preferida pelas teorias
filosóficas da memória.
MENÇÃO. V. Uso.
MENDELISMO. V. GENÉTICA.
MENTALIDADE (in. Mentality, fr. Menta-lité, ai. Mentalitdt; it. Mentalitã). 1. Termo empregado pelos
sociólogos para indicar atitudes, disposições e comportamentos insti-
MENTAUSMO
6m
METAFÍSICA
tucionalizados em um grupo e capazes de caracterizá-lo. P. ex.: "M. dos primitivos", "M. burguesa", etc.
2. Spaventa chamou "M. pura" o pensamento reflexo ou consciente, que, para ele, deve acompanhar
também as primeiras categorias da lógica hegeliana (ser e essência) {Scritti filo-sofici, 1901, passim).
MENTAUSMO (in. Mentalism). Vocábulo usado na maioria das vezes por escritores filosóficos anglosaxões para indicar coisas bem diferentes: ou como sinônimo de "subjetivis-mo" e "idealismo subjetivo"
(do tipo de Ber-keley) ou como sinônimo de psicologismo (v.), ou seja, a tendência combatida pela
Lógica hodiema,«mas ainda tenazmente persistente, de considerar as formas, as figuras e as estruturas da
Lógica como formações, representações e operações mentais (psicológicas), e de considerar as regras da
Lógica como "leis do pensamento". Nos textos dos seguidores da metodologia operativista e dos
pragmáticos (p. ex., Dewey), "M." é usado em acepção ligeiramente diferente, para designar a tendência
empi-rista a interpretar a experiência e os conceitos empíricos como meros "estados mentais",
desprezando os aspectos objetivos (fisiológicos, operativo-manuais, lingüísticos, históricos, etc).
G. P. MENTE (lat. Mens). 1. O mesmo que intelecto (v.).
2. O mesmo que espírito: conjunto das funções superiores da alma, intelecto e vontade (v. ESPÍRITO).
3. O mesmo que doutrina. Nesse sentido, diz-se (ou melhor, dizia-se, porque esse significado é
antiquado) "M. de Aristóteles" para designar a doutrina de Aristóteles sobre um assunto qualquer.
MENTIRA (gr. yeüôoç; lat. Mendacium; in. Lie, fr. Mensonge, ai. Lüge; it. Menzogna). Aristóteles
distingue duas espécies fundamentais de M., ajactância, que consiste em exagerar a verdade, e a ironia
(v.), que consiste em diminuí-la. Estas são M. que não dizem respeito às relações de negócios nem à
justiça; nesses casos não se trata de simples M., mas de vícios mais graves (fraude, traição, etc.) {Et. nic,
IV, 7, 1127 a 13). S. Tomás deu minuciosa classificação da M. do ponto de vista da moral teológica (5.
Th., II, 2, q. 110).
MENTIROSO (gr. vi/euôÓLtevoç; lat. Men-tiens; in. Liar, fr. Menteur, ai. Lügner it. Men-titoré). Um dos
argumentos que os antigos
chamavam de ambíguos ou conversíveis e os modernos chamam de antinomias ou paradoxos: consiste em
afirmar que se mente; assim, quando se diz a verdade, mente-se, e quando se mente, diz-se a verdade. A
conclusão é impossível. Atribuído a Eubúlides de Mégara (DIÓG. L., II, 108), esse argumento é
encontrado em muitos escritores antigos (ARISTÓTELES, El. sof, 25, 180 b 2; CÍCERO, Acad., II, 95; De
divin., II, 4; AULO GÉLIO, Noct. Att., 18, 2). Retomado no último período da Escolástica, esse argumento
ainda é discutido pela lógica como uma das antinomias lógicas (v. ANTINOMIAS).
MÉRITO (lat. Meritum; in. Merit; fr. Mérite, ai. Verdienst; it. Mérito). Título para obter aprovação,
recompensa ou prêmio. Diz-se não só de pessoas, mas também de obras, como p. ex. "o M. deste livro
é...". O M. é diferente da virtude e do valor moral, constituindo a avaliação da virtude ou do valor moral,
com fins de recompensa, ainda que apenas uma aprovação.
MESOLOGIA. V. ECOLOGIA.
METABASE (gr. LiETápocaiç eiç aÀAo yévoç). Passagem, legítima ou não, para outro assunto ou para
outro campo. Aristóteles diz: "Não podemos ultrapassar o corpo e ir para outro gênero como passamos do
comprimento para a superfície e desta para o corpo" {De cael, I, 1, 268 b 1). Quintiliano considera essa
passagem como figura retórica {Inst. or., IX, 3, 25).
METABIOLOGIAGn. Metabiology, fr. Méta-biologie; ai. Metabiologie; it. Metabiologid). Especulações
metafísicas a partir de fenômenos biológicos. Ou então: a análise da estrutura lingüistico-conceitual da
biologia.
METACRÍTICA (ai. Metakritik). Este termo aparece como título de duas obras alemãs dedicadas à crítica
do kantismo: na obra de HAMANN, Metacrítica do purismo da razão (1788), e na de HERDER, M. da
crítica da razão pura (1799). Esse termo significa "crítica da crítica".
METAFÍSICA (gr. xà Ltexà Tà (ptiaiKá; lat. Metaphysica; in. Methaphysik, fr. Métaphysique, ai.
Metaphysik, it. Metafísica). Ciência primeira, por ter como objeto o objeto de todas as outras ciências, e
como princípio um princípio que condiciona a validade de todos os outros. Por essa pretensão de
prioridade (que a define), a M. pressupõe uma situação cultural determinada, em que o saber já se
organizou e dividiu em diversas ciências, relativamente independentes e capazes de exigir a determinação
de suas inter-relações e sua integração com
METAFÍSICA
661
METAFÍSICA
base num fundamento comum. Essa era precisamente a situação que se verificava em Atenas em meados
do séc. IV a.C. graças à obra de Platão e de seus discípulos, que contribuíram poderosamente para o
desenvolvimento da matemática, da física, da ética e da política. O próprio nome dessa ciência, que
costuma ser atribuído ao lugar que coube ao textos relativos de Aristóteles na coletânea de Andronico de
Rodes (séc. I a.C), mas que Jaeger atribui a um peripatético anterior a Andronico (Aristóteles; trad. it., p.
517), presta-se a expressar bem a sua natureza, porquanto ela vai além da física, que é a primeira das
ciências particulares, para chegar ao fundamento comum em que todas se baseiam e determinar o lugar
que cabe a cada uma na hierarquia do saber; isso explica, senão a origem, pelo menos o sucesso que esse
nome teve.
Platão apresentou a exigência da formação dessa ciência suprema depois de esclarecer a natureza das
ciências particulares que constituem o currículo do filósofo: aritmética, geometria, astronomia e música:
"Penso que, se o estudo de todas essas ciências que arrolamos for feito de tal modo que nos leve a
entender seus pontos comuns e seu parentesco, perce-bendo-se as razões pelas quais estão intimamente
interligadas, o seu desenvolvimento nos levará ao objetivo que temos em mira e nosso trabalho não será
debalde; caso contrário, será" (Rep., 531 c-d). Nessa ciência das ciências, Platão reconhecia a dialética
(v.), cuja tarefa fundamental seria criticar e joeirar as hipóteses que cada ciência adota como fundamento,
mas que "não ousam tocar porque não estão em condições de explicá-las" (Rep., 533 c).
A semelhante filosofia Aristóteles dava o nome de "filosofia primeira" ou "ciência que estamos
procurando" e apresentava seu projeto nos treze problemas enumerados no terceiro (B) livro da
Metafísica.
Esses problemas versam todos, direta ou indiretamente, sobre as relações entre as ciências e seus objetos
ou princípios relativos: sobre a possibilidade de uma ciência que estude todas as causas (996 a 18) ou
todos os princípios primeiros (996 a 26) ou todas as substâncias (997 a 15) ou também as substâncias
eseus atributos (997 a 25) e as substâncias não sensíveis (997 a 34) e sobre outros problemas (como os
das partes que constituem todas as coisas, da possível diversidade de natureza entre os princípios, da
unidade do ser, etc), todos
situados na zona de intersecção e de encontro das disciplinas científicas particulares e de interesse comum
para elas. Portanto, a M., como foi entendida e projetada por Aristóteles, é a ciência primeira no sentido
de fornecer a todas as outras o fundamento comum, ou seja, o objeto a que todas elas se referem e os
princípios dos quais todas dependem. A M. implica, assim, uma enciclopédia das ciências, um inventário
completo e exaustivo de todas as ciências, em suas relações de coordenação e subordinação, nas tarefas e
nos limites atribuídos a cada uma, de modo definitivo (v. ENCICLOPÉDIA). A M. apresentou-se ao longo da
história sob três formas fundamentais diferentes: I
a
como teologia; 2a
como ontologia; 3a
como
gnosiologia. A caracterização hoje corrente de M. como "ciência daquilo que está além da experiência"
pode referir-se apenas à primeira dessas formas históricas, ou seja, à M. teológica; trata-se também de
uma caracterização imperfeita, porquanto leva em conta uma característica subordinada, por isso
inconstante, dessa metafísica.
1* O conceito de M. como teologia consiste em reconhecer como objeto da M. o ser mais elevado e
perfeito, do qual provêm todos os outros seres e coisas do mundo. O privilégio de prioridade atribuído à
M. decorre, neste caso, do caráter privilegiado do ser que é seu objeto: é o ser superior a todos e do qual
todos os outros provêm.
Na obra de Aristóteles esse conceito mescla-se com o outro, de M. como ontologia, que é a ciência do ser
enquanto ser. Isso é expresso da seguinte forma por Aristóteles: "Se há algo de eterno, imóvel e separado,
o conhecimento disso deve pertencer a uma ciência teorética. porém certamente não à física (que se ocupa
das coisas em movimento), nem à matemática, mas sim a uma ciência que está antes de ambas. (...)
Somente a ciência primeira tem por objeto as coisas separadas e imóveis. Embora todas as causas
primeiras sejam eternas, essas coisas são eternas de modo especial porque são as causas daquilo a que, do
divino, temos acesso. Conseqüentemente, há três ciências teoréticas: matemática, física e teologia; já que
o divino está em todos os lugares, está especialmente na natureza mais elevada, e a ciência mais elevada
deve ter por objeto o ser mais elevado. (...) Se não existissem outras substâncias além das físicas, a física
seria a ciência primeira; mas se há uma substância imóvel, esta
r
METAFÍSICA 662
METAFÍSICA
será a substância primeira e sua filosofia, a ciência primeira e, enquanto primeira, também a mais
universal porque será a teoria do ser enquanto ser e daquilo que o ser enquanto ser é ou implica" (Met, VI,
1, 1026 a 10). Esta última frase permite ver como Aristóteles entrelaça o conceito de M. como ontologia
ao conceito de M. como teologia. Este último, porém, é completamente diferente do outro. Com base
nisso, o objeto da M. é propriamente o divino, e a prioridade da M. consiste na prioridade que o ser divino
tem sobre todas as outras formas ou modos de ser. Desse ponto de vista, as ciências se hierarquizam
segundo a excelência ou perfeição de seus respectivos objetos é medida confrontando-os com o ser
divino. Esse fora o critério adotado por Platão na ordenação das ciências, privilegiando a ciência que tem
por objeto "aquilo que é ótimo e excelente", ou seja, a própria perfeição (Fed., 97 d), e hie-rarquizando
todas as outras tomando essa como referência (Rep., VII, 525 a ss.). Contudo, essa concepção relegava
todas as ciências diferentes da M. a um nível de irremediável inferioridade, e o objeto que alcançava não
era justificar as outras ciências, fundamentando sua validade e enobrecendo sua investigação, mas
desvalorizá-las com o confronto com a ciência primeira e com o caráter sublime de seu objeto.
Provavelmente esse foi o motivo por que, a certa altura, Aristóteles começou a insistir no outro conceito
da M. como ontologia, mesmo sem nunca renegar ou abandonar o primeiro. Entretanto, a M. teológica
reaparece sempre que se estabelece a correspondência entre um ser primeiro e perfeito e uma ciência
igualmente primeira e perfeita. É teológica, portanto, a M. de Plotino, que, às ciências que têm o sensível
por objeto, contrapõe as que têm por objeto o inteligível, ou seja, a realidade suprema: "Entre as ciências
que estão na alma racional, algumas têm por objeto as coisas sensíveis, se é que podem ser chamadas
ciências, já que melhor lhes caberia o nome de opiniões; elas vêm depois das coisas e são imagens delas.
As outras, as verdadeiras ciências, têm por objeto o inteligível, chegam à alma provindas do intelecto
divino e nada têm de sensível" (Enn., V, 9,7). Essa bipartição da realidade em um domínio superior e
privilegiado e outro inferior e derivado é o pressuposto característico da M. teológica, que pretende ter
como objeto a realidade primária e privilegiada. É M. teológica, portanto, a doutrina de Spinoza,
porquanto seu
objeto é a ordem necessária do mundo, vale dizer, Deus (Et, II, 46-47). É também M. teológica a filosofia
de Hegel, que afirma ter Deus como objeto: "A filosofia tem objetos em comum com a religião porque o
objeto de ambas é a Verdade, no sentido altíssimo da palavra, porquanto Deus e somente Deus é a
Verdade" (Ene, § 1). Portanto, diante da filosofia todas as outras ciências ficam em condição de
inferioridade: seu objeto é o finito, o irreal, ao passo que o objeto da filosofia é Deus, o infinito. Hegel
diz: "As ciências particulares, a exemplo da filosofia, têm como elementos conhecimento e pensamento,
mas ocupam-se dos objetos finitos e do mundo dos fenômenos. O conjunto de conhecimentos relativos a
essa matéria está, de per si, excluído da filosofia, com a qual não condizem nem esse conteúdo nem sua
forma" (Geschichte der Philosophie, Einleitung, B, 2, a; trad. it., I, p. 69). É evidente que, não obstante os
protestos antimetafísicos, explícitos a filosofia do espírito de Croce também é uma M. teológica, pois tem
por objeto a História eterna do Espírito Universal: realidade sublime, diante da qual os objetos de todas as
outras ciências são rebaixados à posição de aparências particulares ou de acidentalidade empírica (Teoria
estória delia storiografia, 1917; La storia como pen-siero e come azione, 1938). Finalmente, é M.
teológica a filosofia de Bergson, que pretende "prescindir dos símbolos" e entrar diretamente em contato
com uma realidade privilegiada, de natureza divina, que é a corrente da consciência ("Introduction à Ia
métaphysique", em La penséeetle mouvant, 3
a
ed., 1934, pp. 206 ss.), e que como tal se contrapõe à
ciência, chamada de simples "auxiliar da ação" (Lbid., p. 158). Todas as formas de espiritualismo ou
consciencialismo tendem, mais ou menos claramente, para uma metafísica teológica dessa espécie.
2- A segunda concepção fundamental é a da M. como ontologia ou doutrina que estuda os caracteres
fundamentais do ser: os que todo ser tem e não pode deixar de ter. As principais proposições da M.
ontológica são as seguintes: I
a Existem determinações necessárias do ser, ou seja, determinações que
nenhuma forma ou maneira de ser pode deixar de ter. 2a
Tais determinações estão presentes em todas as
formas e modos de ser particulares. 3a
Existem ciências que têm por objeto um modo de ser particular,
isolado em virtude de princípios cabíveis. 4a
Deve existir uma
METAFÍSICA
663
METAFÍSICA
ciência que tenha por objeto as determinações necessárias do ser, estas também reconhecíveis em virtude
de um princípio cabível. 5a
Essa ciência precede todas as outras e é, por isso, ciência primeira, porquanto
seu objeto está implícito nos objetos de todas as outras ciências e porquanto, conseqüentemente, seu
princípio condiciona a validade de todos os outros princípios. A M. expressa nessas proposições via de
regra implica: d) determinada teoria da essência, mais precisamente da essência necessária (v. ESSÊNCIA);
b) determinada teoria do ser predicativo, mais precisamente da inerência (v. SER, 1); c) determinada teoria
do ser existencial, mais precisamente da necessidade (v. SER, 2).
As proposições acima expressam a forma mais madura que a M. assumiu na obra de Aristóteles,
precisamente nos livros VII, VIII, LX de Metafísica, ou seja, M. como teoria da substância, entendendose por substância "aquilo que um ser não pode não ser", a essência necessária ou a necessidade de ser (v.
SUBSTÂNCIA). Nesse sentido, o princípio da M. é o de contradição, porque só ele permite delimitar e
reconhecer o ser substancial. Aristóteles disse: "Quem nega esse princípio destrói completamente a
substância e a essência necessária, pois é obrigado a dizer que tudo é acidental e que não há algo como ser
homem ou ser animal. Se de fato há algo como ser homem, isto não será ser não-homem ou não ser
homem, mas estas serão negações daquele. Um só é o significado do ser, e este é a substância dele.
Indicar a substância de uma coisa nada mais é que indicar o ser próprio dela" {Mel, IV, 4, 1007 a 21).
Desse ponto de vista, a substância é objeto da M. por constituir o princípio de explicação de todas as
coisas existentes. Aristóteles diz: "A substância de cada coisa é a causa primeira do ser dessa coisa.
Algumas coisas não são substâncias, mas as que são substâncias são naturais e postas pela natureza,
estando, pois, claro que a substância é a própria natureza e que não é elemento, mas princípio" (Ibid., VII,
17, 1041 b 27). A substância nesse sentido não é uma realidade privilegiada ou sublime, que confira
dignidade superior à ciência que a tem como objeto. Enquanto substâncias, Deus e o intelecto (como diz
ARISTÓTELES, Et. nic, I, 6, 1096 a 24), ou mesmo Deus e um talo de capim (como se poderia dizer), têm o
mesmo valor, e as ciências que os tomam como objeto têm a mesma dignidade. Em uma passagem
famosa de Partes dos animais, Aristóteles reconheceu, explicitamente, a mesma dignidade em todas as
ciências que tenham a substância como objeto: "As substâncias inferiores, por serem mais acessíveis ao
conhecimento, acabam tendo vantagem no campo científico, e por estarem mais próximas de nós e mais
em conformidade com nossa natureza, a ciência delas acaba sendo equivalente à filosofia que tem por
objeto as coisas divinas. (...) De fato, mesmo no caso das menos favorecidas do ponto de vista da
aparência sensível, a natureza que as produziu proporciona alegrias indizíveis a quem sabe compreender
suas causas e é filósofo por natureza" (Depart. an., I, 5, 645 a 1). É óbvio que, desse ponto de vista, a
prioridade da M. não consiste na excelência de seu objeto (como no caso da M. teológica), mas no fato de
que a M., por ter a substância objeto específico, permite entender os objetos de todas as ciências tanto em
seus caracteres comuns e fundamentais quanto em seus caracteres específicos: sem a substância e, p. ex.,
sem o ser e a unidade que lhe pertencem, "todas as coisas seriam destruídas, já que cada coisa é e é uma"
(Met., XI, 1, 1059 b 31). Em outras palavras: toda ciência, como tal, é o estudo da substância em qualquer
de suas determinações; p. ex.: em movimento, a física; como quantidade, a matemática. A M. é a teoria da
substância enquanto tal.
Desse ponto de vista, a prioridade da M. sobre as outras ciências é lógica, não de valor. Trata-se de uma
prioridade lógica decorrente da prioridade ontológica de seu objeto específico. Consiste no fato de todas
as outras ciências pressuporem a M. do mesmo modo como todas as determinações da substância
pressupõem a substância; ora, a reforma feita por S. Tomás na M. aristotélica, no séc. XIII, visa a
restringir a superioridade lógica da M. Segundo S. Tomás, a M. como teoria da substância não inclui Deus
entre seus objetos possíveis, porquanto Deus não é substância (5. Th., I, q. 1, a. 5, ad I
a
). A identidade
entre essência e existência em Deus distingue nitidamente o ser de Deus do ser das criaturas, nas quais
essência e existência são separáveis (Ibid., I, q. 3, a. 4). Portanto, a determinação dos caracteres
substanciais do ser em geral não diz respeito a Deus, mas apenas às coisas criadas ou finitas. Com isso, a
M. perde a prioridade em favor da teologia, considerada como ciência autônoma, originária, cujos
princípios são ditados direta-
METAFÍSICA
664
METAFÍSICA
mente por Deus. "E assim a teologia nada recebe das outras ciências, como se estas fossem superiores a
ela, mas delas tira proveito, em sendo elas inferiores ancilares, assim como as ciências arquitetônicas
tiram proveito de outras que lhe propiciam os materiais e assim como a ciência civil tira proveito da
militar" (Ibid., I, q. 1, a. 5, ad 2Q
). Com a negação do caráter analógico do ser, realizada por Duns Scot,
volta-se a reconhecer a prioridade da M. Duns Scot define a M. como "a ciência primeira do saber
primeiro", isto é, do ser (In Met., VII, q. 4, n. 3). Segundo ele, o ser que é objeto da M. é o ser comum-,
comum a todas as criaturas e a Deus, embora não se trate de um gênero, que teria extensão restrita
demais. A comunidade do ser compreende todo o domínio do inteligível: a ciência do ser, a M., é,
portanto, a ciência primeira e mais extensa (Op. Ox., I, d. 3, q. 3, a. 2, n. 14). A característica desse ponto
de vista de Scot é fazer a distinção nítida entre a prioridade de valor, que pertence à teologia, e a
prioridade lógica, que pertence à M.
Essa distinção manteve-se ao longo da história ulterior da M. ontológica. No séc. XVII, tal M. começou a
ser designada pelo nome de ontologia, que aparece em Schediasma histo-ricum (1655), de Jacobus
Thomasius (pai de Cristiano), e é justificada por Clauberg do seguinte modo: "Assim como se chama de
teo-sofia ou teologia a ciência que trata de Deus, não parece impróprio que se chame de onto-sofia ou
ontologia a ciência que verse sobre o ente em geral, e não sobre este ou aquele ente designado por um
nome especial ou distinto dos outros por certa propriedade" (Op. Phil, 1691,1, p. 281). Uma ontologia
assim entendida, nitidamente distinta da teologia, não implicava nenhum antagonismo, franco ou
disfarçado, contra os dados da experiência. Ao contrário, essa ontologia começa a ser considerada como a
exposição organizada e sistemática dos caracteres fundamentais do ser que a experiência revela de modo
repetido ou constante. Esse é o conceito de Wolff, que conferiu a essa disciplina a força sistemática que
lhe garantiu sucesso por algum tempo. Segundo Wolff, o pensamento comum já possui de forma confusa
as noções que a ontologia expõe de forma distinta e sistemática, ou seja, existe uma "ontologia .natural"
constituída das "confusas noções onto-lógicas vulgares". Esta pode ser definida como "o conjunto de
noções confusas, correspondentes aos termos abstratos com que expressamos
os juízos gerais sobre o ser e adquiridas com o uso comum das faculdades da mente" (Ont., § 21). Essa
ontologia natural, que os escolásti-cos completaram sem tomar menos confusa, distingue-se da ontologia
artificial ou científica, assim como a lógica se distingue dos procedimentos naturais do intelecto (Ibid., §
23; Log, § 11). Não é um simples dicionário filosófico, mas uma ciência demonstrativa, cujo objeto é
constituído pelas determinações que pertencem a todos os entes, seja de modo absoluto, seja sob
determinadas condições (Ont, § 25). Assim, graças a Wolff, introduzia-se no organismo tradicional da M.
ontológica uma exigência descritiva e empirista que tendia a eliminar o conflito entre apriorismo dedutivo
da M. e experiência. Com base nessa mesma exigência, Wolff faz a distinção entre psicologia empírica,
"na qual, a partir da experiência, estabelecem-se princípios que expliquem as causas do que pode
acontecer na alma humana" (Log., Disc. prel., § 111), e psicologia reacional, que é a "ciência de todas as
coisas possíveis na alma humana" (Ibid., § 58). Por outro lado, Wolff fazia a distinção entre ontologia e as
três disciplinas M. especiais: teologia, psicologia e física (da qual faz parte a cosmologia), cujos objetos
respectivos seriam Deus, a alma humana e as coisas naturais (Ibid., §§ 55-59).
A ontologia wolffiana possibilitava a interpretação empírica dessa ciência, razão pela qual ela foi algumas
vezes defendida pelos próprios iluministas. D'Alembert, p. ex., dizia: "Visto que tanto os seres espirituais
quanto os materiais têm propriedades gerais em comum, como existência, possibilidade, duração, é certo
que esse ramo da filosofia, no qual todos os outros ramos haurem em parte seus princípios, seja
denominado ontologia, ou seja, ciência do ser ou M. geral" (Discourspréliminaire, § 7, em CEuvres, ed.
Condorcet, p. 115). Neste sentido, D'Alembert defende uma nova M., "que seja criada mais para nós, que
fique mais próxima e presa à terra, uma M. cujas aplicações se estendam às ciências naturais e aos
diversos ramos da matemática. De fato, em sentido estrito não há ciência que não tenha sua M., se com
isso entendermos os princípios gerais sobre os quais se constrói determinada doutrina, que são, por assim
dizer, os germes de todas as verdades particulares" (Éclaircissement, § 16). Foi em sentido muito próximo
que Crusius (Ent-wurf der notwendigen Vernunftwahrheiten, 1745, § D e Lambert (Architetonik, 1771, §
43)
METAFÍSICA
665
METAFÍSICA
entenderam a ontologia. Com uma renúncia mais radical ao caráter sistemático da ciência, ainda hoje é
defendida uma ontologia descritiva ou "denotativa" que, ao mesmo tempo em que se limite "a observar e
a registrar os traços da existência", também leve em consideração o instrumento dessa observação: a
reflexão humana e as condições que a solicitam (DEWEY, Experience and Nature, and Historical Experíence, 1958, cap. 5).
3
a
O terceiro conceito de M. como gnosiolo-gia é expresso por Kant. Na verdade, a origem desse conceito
deve ser identificada na noção de filosofia primeira de Bacon: "Uma ciência universal, que seja mãe de
todas as outras e que, no progresso das doutrinas, constitua a parte comum do caminho, antes que as
sendas se separem e se desunam." Segundo Bacon, tal ciência deveria ser "o receptáculo dos axiomas que
não pertençam às ciências particulares, mas sejam comuns a numerosas ciências" (De augm. scient., III,
1). Esse conceito de filosofia primeira tem uma história, que é a do conceito positivista da filosofia, que
tem em comum com o conceito kantiano de M. a maior ênfase nos princípios dos que nos objetos da
ciência. Segundo Kant, M. é o estudo da formas ou princípios cognitivos que, por serem constituintes da
razão humana — aliás de toda razão finita em geral —, condicionam todo saber e toda ciência, e de cujo
exame, portanto, é possível extrair os princípios gerais de cada ciência. Kant expunha esse conceito da M.
nas últimas páginas de Crítica da Razão Pura, mais precisamente no capítulo sobre a arquitetura. Kant
diz que a M. pode ser entendida de duas formas: como a segunda parte da "filosofia da razão pura", ou
seja, como "sistema da razão pura (ciência), conhecimento filosófico total (seja verdadeiro, seja aparente)
que deriva da razão pura em conexão sistemática" (e, nesse sentido, dela é alijada a parte preliminar ou
propedêutica da filosofia da razão pura, que é a crítica), ou então pode ser entendida como a filosofia
totalda razão pura, incluindo a crítica. É neste segundo sentido que Kant chamava a M. de ontologia no
documento de 1793, com o qual respondia a ao tema proposto pela Academia de Berlim: "Quais são os
progressos reais da M. desde o tempo de Leibniz e Wolff?". Ontologia, M. e crítica coincidem do seguinte
ponto de vista: "A crítica e só a crítica" — dizia Kant em Prvlegômenos— "contém o plano bem
verificado e provado de uma M. científica, bem
como o material necessário a realizá-lo. Por qualquer outro caminho ou meio, ela é impossível" (Prol., A,
190). Assim, como M. "científica" ou "crítica", a M. kantiana contrapunha-se à M. dogmática tradicional,
que Kant submetia à crítica nas três partes distinguidas por Wolff: teologia, psicologia e cosmologia. Mas
nem na dialética transcendental, nem em outro lugar, Kant criticou a primeira parte fundamental da M
wolffiana, que é a ontologia. Na realidade, o conceito fundamental de ontologia continuava válido para
Kant, com a correção do caráter crítico ou gnosiológico desta, ou seja, com a passagem do significado
realista para o significado subjetivista da disciplina em questão. Segundo Kant, da M. crítica ou ontológica fazem parte a M. da natureza e a M. dos costumes. A M. da natureza compreende "todos os
princípios racionais puros decorrentes de simples conceitos (portanto, com exclusão da matemática) da
ciência teórica de todas as coisas". A M. dos costumes compreende "os princípios que determinam a
priori e tornam necessário o fazer ou o não fazer", sendo, portanto, a "moral pura" (Crít. R. Pura, Doutr.
do método, cap. 3).
A característica da M. kantiana é sua pretensão de ser "uma ciência de conceitos puros", ou seja, uma
ciência que abarque os conhecimentos que podem ser obtidos independentemente da experiência, com
base nas estruturas racionais da mente humana. Desse ponto de vista, sua continuação histórica na
filosofia contemporânea é a ontologia fenomenológica de Husserl. Diferentemente de Kant, Husserl não
considera os princípios muito gerais que seriam constituintes da razão em geral, mas os princípios que
constituem o fundamento de determinados campos do saber, de uma ciência ou de um grupo de ciências,
chamados, portanto, de materiais. Husserl diz.-"Cada objeto empírico concreto insere-se com sua
essência material em uma espécie material superior, em uma região de objetos empíricos. À essência
regional corresponde uma ciência eidétíca regional ou, como podemos dizer também, uma ontologia
regional." Portanto, "toda ciência de dados de fato ou de experiência tem seus fundamentos teóricos
essenciais em ontologias regionais. (...) Assim, p. ex., a todas as disciplinas naturalistas corresponde a
ciência eidética da natureza física em geral (a ontologia da natureza), porquanto à natureza factícia
corresponde um eidos puramente
METAFÍSICA
666
METAFÍSICA
apreensível, a 'essência' da natureza em geral, juntamente com uma massa infinita de relações essenciais".
{Ideen, I, § 9)- A afirmação do caráter "material" (determinado ou específico) dos princípios ontológicos,
que sempre se referem a determinado gênero de essências ou campo do saber, leva Husserl a estabelecer o
caráter "regional" da ontologia. De seu ponto de vista, a ontologia geral ou formal nada mais é que a
lógica pura, que é "a ciência eidética do objeto em geral" Ubid., § 10) (v. MATHESIS UNIVERSALIS). NO
entanto, N. Hartmann, que tem em comum com Husserl o pressuposto fenomenológico, retornou à
ontologia geral. Para ele, o objeto da ontologia é o ente, não o ser, já que o ser é unicamente "aquilo que
há de comum em cada ente". O ser e o ente distinguem-se como a verdade e o verdadeiro, a realidade e o
real, e assim por diante: há muitas coisas verdadeiras, mas o ser da verdade é um só. Analogamente, o ser
do ente é um só, ainda que o ente possa ser vário e as diferenciações do ser pertençam ao
desenvolvimento da ontologia, e não a seu início, que versa sobre aquilo que é comum universal
(Grundlegung der Ontologie, 1935, p. 42). A postura francamente realista da ontologia de Hartmann
parece aproximá-la da tradicional, especialmente de Wolff, mas na realidade o que para Hartmann
constitui o objeto da ontologia é o modo como o ser é dado Ubid., p. 48) à experiência fenomenológica:
de tal forma que sua ontologia é parte integrante da corrente fenomenológica. A essa mesma corrente
pertence a ontologia de Heidegger, entendida só como a determinação do sentido do ser a partir do ser do
ente que faz as perguntas e dá as respostas: o homem. Heidegger reafirma o caráter primário ou
privilegiado da ontologia. "O problema do ser tende não só à determinação das condições apriori da
possibilidade das ciências que estudam o ente enquanto ente, e que portanto, ao fazê-lo, sempre já se
movem numa compreensão do ser, mas também à determinação das condições de possibilidade das
ontologias que precedem e fundam as ciências ônticas [isto é, empíricas]" (Sein undZeit, § 3). Todas as
doutrinas às quais nos referimos até agora (exceto as de Dewey e Randall) admitem o pressuposto em
torno do qual a M. tradicionalmente girou, situando, portanto, nos limites do conceito de M. Tal
presssuposto é o caráter necessário e primário da M.: necessário por ter como objeto o objeto necessário
de todas as outras ciências; primário porque, como tal, é fundamento de todas as ciências. O que resta da M. na
filosofia contemporânea — e não resta como mera sobrevivência, mas como parte viva da investigação —
não possui mais estes caracteres tradicionais. A M. está de fato presente e atuante na filosofia
contemporânea sob a forma de dois problemas conexos: I
a
a questão do significado ou dos significados de
existência na linguagem das diversas ciências; 2Q
a questão das relações entre as diversas ciências e das
investigações sobre objetos que incidem nos pontos de intersecção ou de encontro entre elas.
l
s
Com relação ao primeiro problema, fala-se hoje explicitamente de ontologia no sentido de compromisso
em usar o verbo ser e seus sinônimos em determinado sentido. Quine, p. ex., diz: "Nossa aceitação de
uma ontologia é semelhante, em princípio, à nossa aceitação de uma teoria científica, de um sistema de
física: adotamos, no mínimo por sermos dotados de razão, o esquema conceituai mais simples no qual os
fragmentos desorganizados da experiência bruta possam ser adaptados e distribuídos. Nossa ontologia
estará determinada uma vez que tenhamos fixado o esquema conceituai total em que se adapte a ciência
em seu sentido mais amplo; as considerações que determinam a construção racional de uma parte
qualquer desse esquema conceituai (p. ex., a parte biológica ou física) não são diferentes, em termos de
espécie, das considerações que determinam a construção racional de todo o esquema" (From a Logical
Point of View, pp. 16-17). Embora objetando ao uso da palavra "ontologia", que pareceria fazer referência
a convicções metafísicas, quando na realidade se trata de uma decisão tão prática quanto "a escolha de um
instrumento", Carnap confirmou substancialmente o ponto de vista de Quine {Meaning and Necessity, §
10); é nesse sentido que se fala freqüentemente em ontologia na lógica e na metodologia contemporânea.
2
9
Com relação ao segundo problema, a sucessora da M. tradicional é a metodologia, que habitualmente
discute os problemas das relações entre as ciências particulares e as questões decorrentes das
interferências marginais entre as próprias ciências. Certamente a metodologia não herdou a pretensão de
criar uma enciclopédia das ciências que defina, de uma vez por todas, as tarefas e as limitações de cada
uma delas; por isso, não reivindica a dignidade de
METÁFORA
667
METAMORAL
julgar as ciências e reinar sobre elas. Trata-se mais de organizar continuamente o universo conceituai do
modo mais simples e cômodo: que favoreça a comunicação contínua entre as ciências sem atentar contra
a indispensável autonomia de cada uma delas. Com este objetivo, cumpre problematizar, em cada fase da
pesquisa científica, as relações entre as diversas disciplinas ou as diversas correntes de pesquisa, tanto em
favor do desenvolvimento das disciplinas particulares, quando em favor do uso que delas o homem pode
ou deve fazer, ou seja, da filosofia.
METÁFORA (gr. u.era<popá; in. Metaphor, fr. Métaphore; ai. Metapher, it. Metáfora). Transfe-rência de
significado. Aristóteles diz: "A M. consiste em dar a uma coisa um nome que pertence a outra coisa:
transferência que pode realizar-se do gênero para a espécie, da espécie para o gênero, de uma espécie para
outra ou com base numa analogia" (Poet., 21, 1457 b 7). A noção de M. algumas vezes foi empregada
para determinar a natureza da linguagem em geral (v. LINGUAGEM). Como instrumento lingüístico, hoje
sua definição não é diferente da definição de Aristóteles. Quanto à M. mítica dos povos primitivos, que é
substancialmente a identificação da expressão metafórica com o objeto, cf. CASSIRER, Language and
Myth, 1946.
METAGEOMETRIA (in. Metageometry, fr. Métagéometrie, ai. Metageometria; it. Métageo-metria).
Geometria não euclidiana, ou seja, qualquer geometria que parta de axiomas diferentes dos de Euclides
(v. GEOMETRIA).
META-HISTÓRICO. Indicam-se com este termo os valores eternos que a história tende a realizar e que
constituiriam sua estrutura ou plano providencial que a rege (v. HISTÓRIA).
METALEVGUAGEM (in. Metalanguage, fr. Métalanguage, it. Metalinguaggió). Quando D. Hilbert
introduziu a concepção de matemática como sistema meramente sintático-dedutivo (sistema arbitrário de
símbolos no qual, dados certos axiomas fundamentais e certas regras operacionais, procede-se por meios
meramente simbólicos, ou seja, operando com as fórmulas que constituem os axiomas e segundo as
regras operacionais dadas, à inferência das "conseqüências", independentemente dos possíveis ou
eventuais significados extra-simbóli-cos, intuitivos ou outros desses mevnos símbolos), colocou-se o
problema de verificar a não-contradição dos sistemas de axiomas das
disciplinas matemáticas assim formalizadas, bem como de verificar a correção das inferên-cias
(deduções). Visto que, segundo conhecido teorema (de Gõdel), não se pode provar a não-contradição de
um sistema matemático formalizado dentro desse mesmo sistema, D. Hilbert e sua escola recorreram à
criação de sistemas particulares para a verificação dos sistemas simbólicos (ou seja, de cada disciplina da
matemática: álgebra, geometria, etc). Tais sistemas de verificação foram denominados metama-temãticos.
Por analogia, ou melhor, por extensão do termo, os lógicos poloneses e Camap chamaram de M. qualquer
sistema lingüístico (p. ex., a linguagem da Lógica, da gramática, etc.) que não conduza a denotata
extralin-güísticos, mas que, semanticamente, conduza a símbolos e fatos lingüísticos, e de metalingüística qualquer expressão não que fale de coisas (reais ou ideais), mas de palavras ou discursos (p. ex.:
"'Mário' é um nome próprio de pessoa, masculino e singular"; "'aceleração' é um termo da Física"). A
distinção entre linguagem e M. assume grande importância na análise filosófica neopositivista, sendo um
dos fundamentos da crítica à metafísica especulativa, na qual expressões metalingüísticas são
sistematicamente confundidas com expressões lingüísticas (v. LINGUAGEM-OBJETO). G. P.
METALÓGICO (in. Metalogical; fr. Métalo-gique, ai. Metalogisch; it. Metalogicó). 1. A partir de
Carnap (Logische Syntax der Sprache, 1934; trad. in., 1937, § 2), este termo passou a ter o mesmo
significado de "sintático": caracteriza o estudo sistemático das regras formais de uma língua (v. SINTAXE).
2. Schopenhauer chamou de metalógica a verdade dos quatro princípios do pensamento: Identidade,
Contradição, Terceiro Excluído e Razão Suficiente (Über die vierfache Wurzel des Satzen von
zureichenden Grunde, 1813, §33).
3. Metalogicon é o título de uma obra de João de Salisbury (séc. XII): significaria "defesa da lógica".
METAMATEMÁTICO (in. Metamathema-tic, fr. Métamathématique, ai. Metamathema-tisch; it.
Metamatematicó). O mesmo que sintático ou metalógico. No sentido de Hilbert, teoria da prova, ou seja,
formalização da prova matemática por meio de um sistema logístico (v. PROVA).
METAMORAL (in. Metamoral; fr. Méta-morale, it. Metamoralé). Estudo dos fundamen-
METAPSÍQUICA
668
MÉTODO
tos da moral. Ou então: estudo das estruturas lógico-lingüísticas da moral.
METAPSÍQUICA (in. Psychical research; fr. Métapsychique, ai. Parapsychologie, Metapsy-chik, it.
Metapschicd). Exame, sem preconceitos e com visão científica, das faculdades humanas, reais ou
imaginárias, que são inexplicáveis com base nas hipóteses geralmente conhecidas. Esta é, pelo menos, a
definição dessa ciência por parte de seus seguidores mais sérios. Os fenômenos que ela investiga situamse em duas categorias fundamentais: os chamados fenômenos mentais, que consistem em informações
adquiridas por meios supra-normais, ou fenômenos de percepção extra-sensotial, e os fenômenos físicos
ou prodígios, como p. ex. objetos que flutuam no ar, batidas, ruídos, etc. A M. procura estabelecer a
realidade desses fenômenos e apresentar as hipóteses cabíveis para sua explicação (cf. D. J. WEST,
Psychical Research Today, Londres, 1954).
METEMPÍRICO (in. Metempirical; fr. Mé-tempírique, ai. Metempirisch; it. Metempiricó). O que está
além dos limites da experiência possível (LEWES, Problems of Life and Mind, 1874, I, p. 17).
METEMPSICOSE (in. Metempsychosis; fr. Métempsychose, ai. Metempsychose it. Metem-psicosi).
Crença na transmigração da alma de corpo em corpo. Essa crença é muito antiga e de origem oriental,
mas o termo só aparece nos escritores dos primórdios da era cristã. Plotino às vezes usa o termo
metensomatose (Enn., II, 9, 6, 13), que seria mais exato. A crença, difundida pelas seitas órficas e pelos
pitagóricos, foi aceita por Empédocles (Fr. 115, 117, 119), por Platão {Tim., 49 ss.; Rep., X, 6l4 ss.), por
Plotino, pelos neoplatônicos e pelo gnóstico Basilides (BUONAIUTI, Prammenti gnostici, pp. 63 ss.). Cf. E.
ROHDE, Psyche, 1890-94; trad. it., Bari, 1916.
METENSOMATOSE. V. METEMPSICOSE. METÉXIS (gr. LtéOeÇiç). Participação. Essa palavra foi
usada por Platão para indicar um dos modos possíveis de relação entre as coisas sensíveis e as idéias
iParm., 132 d). Os outros modos em que Platão concebeu essa mesma relação são: mimese ou imitação
(Rep., 597 a; Tim., 50 c) e presença da idéia nas coisas (Fed., 100 d). Esse termo foi usado nessa forma
por Gioberti, em Protologia, para designar o ciclo de retorno do mundo a Deus, que culmina numa
renovação final, ou palingeriesia (Prot., II, p. 107). Gioberti usa esse mesmo termo (assim como o termo mimese, com o qual indica o afastamento do mundo de Deus) para caracterizar um
termo de vários pares de coisas ou entes do mundo: p. ex., o corpo é a mimese, a alma é a M.; a fêmea é a
mimese, o macho é a M., etc. (Ibid., p. 319).
METÓDICA. Assim é chamada algumas vezes a doutrina do método pedagógico: p. ex., RAYNERI,
Primi principi di metódica (1850); ROSMINI, Del principio supremo delia metódica (1857), etc.
MÉTODO (gr. uieoôoç; lat. Methodus; in. Method; fr. Méthode, ai. Methode, it. Método). Este termo tem
dois significados fundamentais: 1Q
qualquer pesquisa ou orientação de pesquisa; 2- uma técnica particular
de pesquisa. No primeiro significado, não se distingue de "investigação" ou "doutrina". O segundo
significado é mais restrito e indica um procedimento de investigação organizado, repetível e
autocorrigível, que garanta a obtenção de resultados válidos. Ao primeiro significado referem-se
expressões como "M. hegeliano", "M. dialético", etc, ou mesmo "M. geométrico", "M. experimental", etc.
Ao segundo significado referem-se expressões como "M. silogístico", "M. residual" e, em geral, os que
designam procedimentos específicos de investigação e verificação. Tanto Platão (Sof, 218 d; Fed., 270 c)
quanto Aristóteles (Pol, 1289 a 26; Et. nic, 1129 a 6) empregam esse termo em ambos os significados; no
moderno e contemporâneo, prevalece o segundo. Contudo, é preciso observar que não há doutrina ou
teoria, quer científica quer filosófica, que não possa ser considerada sob o aspecto de sua ordem de
procedimentos, sendo, pois, chamada de M. O próprio Descartes, p. ex., expôs o mesmo conteúdo do
Discurso do método na forma de Meditações metafísicas e de Princípios de filosofia: o que por um lado
era M., por outro era doutrina. De modo geral, não há doutrina que não possa ser considerada e chamada
de M., se encarada como ordem ou procedimento de pesquisa. Portanto, a classificação dos M. filosóficos
e científicos sem dúvida seria uma classificação das respectivas doutrinas. Quanto às doutrinas que com
mais freqüência ou razão são chamadas de M., v. os capítulos respectivos: ANÁLISE;
AXIOMATIZAÇÃO; CONCOMITÂNCIA; CONCORDÂNCIA; DEDUÇÃO; DIALÉTICA;
DIFERENÇA; DEMONSTRAÇÃO; INDUÇÃO; PROVA; RESÍDUOS; SILOGISMO; SÍNTESE; bem
como os verbetes dedicados a cada disciplina: FILOSOFIA; FÍ-
METODOLOGIA
669
MICROCOSMO
SICA; GEOMETRIA; LÓGICA; MATEMÁTICA; CIÊNCIA, etc.
METODOLOGIA (in. Methodology, fr. Mé-thodologie, ai. Methodologye, Methodenlehre, it.
Metodologia). Com este termo podem ser designadas quatro coisas diferentes: I
a
lógica ou parte da lógica
que estuda os métodos; 2a lógica transcendental aplicada; 3a
conjunto de procedimentos metódicos de uma
ou mais ciências; 4a
a análise filosófica de tais procedimentos.
I
a A lógica foi interpretada como M. na fase pós-cartesiana. Segundo a Lógica de Port-Royal, "a lógica é a
arte de bem conduzir a própria razão no conhecimento das coisas, tanto para instruir-se quanto para
instruir aos outros". No mesmo sentido, Wolff definia a lógica como "a ciência de dirigir a faculdade
cognoscitiva no conhecimento da verdade" {Log., § 1). Esse conceito de lógica pode ser encontrado
também na definição de Stuart MUI, como "ciência das operações do intelecto que servem para a
avaliação da prova" {Logic, Intr., § 7). Por outro lado, a M. também foi considerada uma parte da lógica.
Pedro Ramus dividia a lógica em quatro partes: doutrina do conceito, do juízo, do raciocínio e do método
(Dialecticae institutiones, 1543); essa divisão, aceita pela Lógica de Port-Royal, tornou-se tradicional e
foi constantemente adotada pela lógica filosófica do séc. XIX (v. para todos BENNO ERDMANN, Logick,
1892,1, § 7). Apartir de Wolff (Log., §§ 505 ss.), a_jd_outrina do método foi freç|üejite^rii£nte_£haínada
de lógica prática,
2- A M. foi entendida por Kant como lógica transcendental aplicada ou "prática". Constitui a segunda
parte principal da Crítica da Razão Pura, cujo objetivo é "determinar as condições formais de um sistema
completo da razão pura"; compreende uma disciplina, um cânon, uma arquitetura e, finalmente, uma
história da razão pura. O próprio Kant confronta essa parte de sua obra com a lógica formal aplicada ou
prática: "Do ponto de vista transcendental, faremos o que se procurou fazer nas escolas com o nome de
lógica prática em relação ao uso do intelecto em geral, mas que se fez mal, porque, não se limitando a um
modo especial de conhecimento intelectual (p. ex., o puro), nem a certos objetos, a lógica geral nada mais
pode fazer senão propor títulos de métodos possíveis e de expressões técnicas" (Crít. R. Pura, Doutr.
transe, do método, Intr.).
3
a
Com o nome de M. hoje é freqüentemente indicado o conjunto de procedimentos técnicos de
averiguação ou verificação à disposição de determinada disciplina ou grupo de disciplinas. Nesse sentido
fala-se, p. ex., de "M. das ciências naturais" ou de "M. historiográfica". Nesse aspecto, a M. é elaborada
no interior de uma disciplina científica ou de um grupo de disciplinas e não tem outro objetivo além de
garantir às disciplinas em questão o uso cada vez mais eficaz das técnicas de procedimento de que
dispõem.
4
a
Por outro lado, em estreita conexão com o sentido acima, a M. vem-se constituindo como disciplina
filosófica relativamente autônoma e destinada à análise das técnicas de investigação empregadas em uma
ou mais ciências. Nesse sentido, não são objetos da M. os "métodos" das ciências, ou seja, as
classificações amplas e aproximativas (análise, síntese, indução, dedução, experimentação, etc), nas quais
se inserem as técnicas da pesquisa científica, mas tão-somente essas técnicas, consideradas em suas
estruturas específicas e nas condições que possibilitam o seu uso. Tais técnicas compreedem, obviamente,
qualquer procedimento lingüístico ou operacional, qualquer conceito e qualquer instrumento que uma ou
mais disciplinas utilizem na aquisição e na verificação de seus resultados. Nesse sentido, a M. é sucessora
d) da metafísica, porque a ela cabem os problemas que concernem às relações entre as ciências e as zonas
de interferência (e algumas vezes de conflito) entre ciências diferentes; b) da gnosiologia, porquanto
substitui a consideração do "conhecimento", entendido como forma global da atividade humana ou do
Espírito em geral, pela consideração dos procedimentos cognoscitivos utilizados por um ou mais campos
da investigação científica. Essa M. chama-se também "crítica das ciências". Embora o trabalho realizado
por ela nessa direção e iniciado nas primeiras décadas do séc. XX já seja considerável, está faltando até
agora uma determinação precisa da tarefa e das orientações dessa disciplina. Cf. todavia autores vários,
Fondamenti logici delia scienza, Turim, 1947; id., Saggi di critica deUe scienze, Turim, 1950: ambos org.
pelo Centro di Studi Metodologia di Torino.
MICROCOSMO (gr. uucpòç KÓa|ioç; lat. Microcosmus-, in. Microcosm; fr. Microcosme, ai.
Mikrokosmos; it. Microcosmo). A correspondência entre o macrocosmo, que é o mun-
MICROCOSMO
670
MILAGRE
do, e o M., que é o animal e por vezes o homem, é tema filosófico antigo, que nasceu da tendência a
interpretar todo o universo com fundamento no universo menor, que é o homem para si mesmo.
Aristóteles expunha da seguinte maneira esse princípio de interpretação, a propósito da possibilidade do
movimento autônomo: "Se isso é possível no animal, o que pode impedir que aconteça no mundo
também? Se ocorre no M., pode acontecer também no cosmo grande; e, se ocorre no cosmo, pode
acontecer também no infinito, se é possível que o infinito se mova e esteja em repouso em sua totalidade."
(Fís., VIII, 2, 252 b 25). Ora, essa é a objeção que Aristóteles faz a si mesmo, refutando-a ao negar a
possibilidade de movimento autônomo do universo e ao admitir, por isso, o primeiro motor. A
correspondência entre M. e macrocosmo não é, pois, um princípio adotado por Aristóteles. Mas já em sua
época era um princípio antigo, visto fundamentar a cosmogonia dos órficos, mais precisamente a doutrina
de que o mundo nasceu de um ovo: e nasceu de um ovo porque é animal (cf. A. OLIVIERI, Civiltà greca
nell Itália meridionale, Nápoles, 1931, pp. 23 ss.). Platão mesmo chamou o mundo de "grande animal"
(Tini., 30 b), provido de alma e inteligência, assumindo, assim, como realidade literal uma
correspondência metodológica; esse foi o sentido atribuído, depois dele, por estóicos, neopitagóricos e,
em geral, por todos os que insistiram no caráter animado do universo.
A correspondência entre M. e macrocosmo foi um dos temas preferidos da literatura mágica. A magia
pretende dominar o mundo natural encantando-o ou domesticando-o como se faz com um animal; seu
pressuposto é exatamente de que o mundo é um animal e de que todos os seus aspectos são controláveis
com procedimentos que se dirigem a eles como a atividades vivas. A correspondência M.-macrocosmo
foi, portanto, um dos temas obrigatórios da magia renascentista. Cornélio Agripa afirmava que o homem
reúne em si tudo o que está disseminado nas coisas, e que isso lhe permite conhecer a força que mantém o
mundo integrado e utilizá-la para realizar ações miraculosas (De occultaphilosophia, I, 33). Observações
análogas repetem-se em todos os escritores renascentistas que admitem a magia (p. ex., CAMPANELLA, De
sensu rerum, I, 10). Paracelso baseava toda a ciência médica na correspondência entre macrocosmo e M.;
por
isso, exigia que ela se fundamentasse em todas as ciências que estudam a natureza do universo, quais
sejam: teologia, filosofia, astronomia e alquimia (Dephilosophia occulta, II, p. 289). Quando a ciência
deixou de lado o princípio antropomórfico na interpretação da natureza, a correspondência entre M. e
macrocosmo deixou de ser um guia útil de pesquisa e passou a ter aspecto de preconceito. Lotze, que deu
o título de M. à sua obra fundamental, só admite essa correspondência na forma do condicionamento que
o mundo exerce sobre o homem, procurando reduzir o alcance desse termo a limites estreitíssimos
(Mikrokosmus, VI, K, 1; trad. it., II, pp. 312 ss.).
MILAGRE (gr. tépaç; lat. Miraculwn; in. Miracle, fr. Miracle, ai. Wunderit. Miracoló). Fato excepcional
ou inexplicável, considerado como sinal ou manifestação de uma vontade divina. Esta era a noção de M.
na Antigüidade clássica (p. ex., Ilíada, II, 234; Odisséia, III, 173; XII, 394, etc.) e a que predominou na
Idade Média, sendo assim expressa por S. Tomás: "No M. podem ser notadas duas coisas: uma é o que
acontece, que é certamente algo que excede a faculdade da natureza, e neste sentido os M. são chamados
de potências (virtudes); a segunda é a razão pela qual os M. acontecem, ou seja, a manifestação de algo
de sobrenatural; neste sentido, os M. são chamados comumente de sinais, enquanto são chamados de
portentos pela sua excelência e de prodígios porque mostram algo de distante" (S. Th., II, 2, q. 178, a. 1,
ad 3a
).
Quando se começou a insistir na ordem necessária da natureza — como ocorreu com o averroísmo
medieval, com o aristotelismo renascentista e, principalmente, com a primeira afirmação da ciência
moderna —, o M. começou a ser considerado "exceção" a essa ordem, portanto negado como tal ou
reduzido a acontecimento incomum, mas concorde com a ordem natural. No livro Sugli incantesimi,
Pomponazzi, p. ex., negava que os M. fossem acontecimentos contrários à natureza e estranhos à ordem
do mundo, admitindo-os apenas como fatos insólitos e raríssimos, que não acontencem segundo o ritmo
habitual da natureza, mas a intervalos muito longos; esses fatos, porém pertencem à ordem natural, pela
qual são determinados (De incantationibus, 12). Spinoza, por sua vez, afirmava que, "contra a natureza ou
acima da natureza, M. não passa de absurdo, e que, na Sagrada Escritura, só é
MILENARISMO
671
MISTICISMO
possível entender por M. a obra da natureza que supera a inteligência dos homens ou que acredita
superar" ( Tractatus theologico-politicus, cap. 6). Para Spinoza, Deus era mais bem conhecido graças à
ordem e à necessidade da natureza do que por pretensos M. Mas Hume, que parte de uma concepção
completamente diferente, também nega a possibilidade do M.: "O M. é uma violação das leis da natureza,
e, como essas leis foram estabelecidas por uma experiência fixa e inalterável, a prova contra o M.,
extraída da própria natureza do fato, é tão completa quanto se pode imaginar que o seja um argumento
extraído da experiência" (Inq. Cone. Underst., X, 1). Todas as limitações que o conceito de lei natural
sofreu a partir de Hume não facilitaram a noção de M. do ponto de vista da ciência e da filosofia.
Mas talvez se trate de uma noção que, do ponto de vista religioso, não oferece menor dificuldade.
Kierkegaard diz: No fundo, usar toda a sagacidade (como faz Lessing ao publicar os Fragmentos de
Wolfenbüttelri) na comprovação do absurdo e da inverossimilhança do M. para depois concluir a partir do
fato de ser inverossímil: ergo, não é M. (mas seria mesmo M. se fosse verossímil?), é tão insensato quanto
(e é esta a sabedoria da especulação) esforçar-se por compreender o M. ou por torná-lo compreensível,
concluindo finalmente: ergo, é um M. Um M. compreensível não é mais um M. Não, o M. continua sendo
o que é: artigo de fé" (Diário, X
1
, A, 373). Desse ponto de vista obviamente ruem as objeções contra o
M., mas ele deixa de ser, a qualquer título, objeto da pesquisa científica e filosófica. MILENARISMO.
V. QUILIASMO. MIMANSA. Um dos grandes sistemas filosóficos da índia antiga, cuja fundação é
atribuída a Jaimini. É substancialmente uma interpretação da doutrina dos vedantas (v.) e pretende ser
uma técnica de libertação. Opõe-se ao conceito de Deus criador e admite a realidade da matéria e das
almas (cf. G. Tucci, Storia delia filosofia indiana, 1957, pp. 127 ss.). MIMESE. V. METÉXIS.
MINIMUM. Assim chamou Lucrécio o átomo (De rer. nat., I, 620). Nicolau de Cusa insistia sobre a
coincidência do máximo e do mínimo em Deus (De docta ignor., I, 4) e Giordano Bruno usou a palavra
no sentido de Cusa (De minimo triplici et mensura, I, 7) (v. ÁTOMO). MISOLOGIA (gr. u,iooA,oyía; in.
Misology, fr. Misologie, ai. Misologie, it. Misologiá). Termo
criado por Platão para indicar o ódio aos raciocínios. Segundo Platão, "a M. nasce da mesma forma que a
misantropia". Assim como a misantropia nasce de se ter confiado em alguém sem discernimento, a M.
nasce de se ter acreditado, sem possuir a arte do raciocínio, na verdade de raciocínios que depois se
mostraram falsos (Fed., 89 d-90 b). Segundo Kant, a M. nasce quando se confia à razão a tarefa de obter
"a fruição da vida e a felicidade", tarefa para a qual ela não está apta, uma vez que seu destino, como
faculdade prática, é conduzir à moralidade (Grundlegung der Metaphysik der Sitten, I). Segundo Hegel, o
saber imediato é uma forma de M. (Ene, § 11).
MISTÉRIO (gr. nwcrjpiov; lat. Mysterium; in. Mystery, fr. Mystère, ai. Mysterium; it. Mis-teró). No
sentido em que a palavra começou a ser usada pelos escritores herméticos da Antigüidade (p. ex., Corpus
hermeticum, I, 16), significa uma verdade revelada por Deus, que deve permanecer secreta. No
Cristianismo, essa palavra passou a indicar algo incompreensível ou cujo significado é obscuro ou oculto.
Nesse sentido, Jacob Bõhme designava Deus como Mysterium magnum (título de uma de suas obras de
1623). A palavra é usada pelos modernos:
l
s
no sentido de verdade de fé indemons-trável, portanto em certo sentido incompreensível: p. ex., "os M.
da Trindade e da Encar-nação";
2
B
no sentido de problema considerado insolúvel ou cuja solução se atribui ao domínio religioso ou
místico: p. ex., "o M. do ser"; ainda hoje não faltam filósofos que, como Spencer (First Princ, § 14),
acham que o M. é o domínio da religião;
3
Q
no sentido de qualquer problema cuja solução seja difícil ou não imediata; neste sentido, um problema
policial também é um mistério.
MISTICISMO (in. Mysticism; fr. Mysticisme, ai. Mysticismus, it. Misticismo). Toda doutrina que admita
a comunicação direta entre o homem e Deus. A palavra mística começou a ser usada nesse sentido nas
obras de Dionísio, o Aeropagita, pertencentes à segunda metade do séc. V e inspiradas no neoplatônico
Proclo. Em tais obras é acentuado o caráter místico do neoplatonismo original, que é a doutrina de
Plotino. Para isso, insiste-se na impossibilidade de chegar até Deus ou de realizar qualquer comunicação
com ele através dos procedimentos comuns do saber humano, de cujo ponto de
MISTICISMO
672
MISTICISMO
vista só se pode definir Deus negativamente (teologia negativa). Por outro lado, insiste-se também numa
relação originária, íntima e pessoal entre o homem e Deus, em virtude da qual o homem pode retornar a
Deus e unir-se finalmente a ele num ato supremo. Este é o êxtase, que Dionísio considera a deificação do
homem.
Esse é o esquema de toda doutrina mística, e foi extraído pelo pseudo-Dionísio dos textos neoplatônicos;
contém muitos vestígios das crenças orientais, às quais deviam boa parte de sua inspiração. O M.
medieval colocou-se algumas vezes como alternativa que excluía o caminho da busca racional: esse foi o
caso de Bernad de Clairvaux (séc. XII), em quem a defesa da via mística é acompanhada pela polêmica
contra a filosofia e, em geral, o uso da razão. Outras vezes a via mística e a da especulação escolástica são
admitidas e reconhecidas, como fizeram Hugo e Ricardo de S. Vítor, também no séc. XII. O M. conserva
os mesmos caracteres em S. Bonaventura, que cultiva igualmente a especulação filosófica e a mística. Por
outro lado, a grande corrente do M. especulativo alemão do séc. XIV (Mestre Eckhart, Tauler, Suso e
outros) opõe-se também a qualquer tentativa de empregar a razão no campo da religião, mas sua
característica é ser uma especulação sobre a fé, considerada como via de comunicação direta entre o
homem e Deus. Não pertencem ao domínio da filosofia, mas sim ao domínio do M., os místicos práticos
do Cristianismo, como Santa Teresa, Santa Catarina de Siena, S. Francisco, Joana D'Arc e outros (cf. H.
DELACROIX, Étude d'histoire et de psychologie du mysticisme, Paris, 1908; J. H. LEUBA, The Psychology
qf Religious Mysticism, 1925).
A prática mística consiste essencialmente em definir os graus progressivos da ascensão do homem até
Deus, em ilustrar com metáforas o estado de êxtase e em procurar promover essa ascensão com discursos
edificantes. Os graus da ascensão mística são habitualmente três: pensamento (cogitatió), que tem por
objeto as imagens provenientes do exterior e destina-se a considerar as marcas de Deus nas coisas; a
meditação (meditatió), que é o recolhimento da alma em si mesma e que tem por objeto a imagem de
Deus; e a contemplação (contemplatió), que visa a Deus mesmo. Esses graus estão ilustrados e
subdivididos de vários modos pelos místicos, que habitualmente dividem cada um desses graus em outros
dois, enumerando assim, no êxtase, sete graus de ascensão, P. ex., segundo Bonaventura, o pensamento
pode considerar as coisas em sua ordem objetiva (I grau) ou na apreensão que a alma humana tem delas
(II grau). A meditação pode contemplar a imagem de Deus nos pode-res naturais da alma (memória,
intelecto e vontade [III grau]) ou ainda nos poderes que a alma conquista graças às três virtudes teologais
(IV grau). A contemplação pode considerar Deus em seu primeiro atributo, ou seja, em seu ser (V grau),
ou ainda em sua máxima potência, que é o bem (VI grau) (Itinerarium mentis in Deum, 1259). Para todos
os místicos, acima de todos os graus está o êxtase'(v.), ou excessus mentis, definido às vezes como "douta
ignorância" (v.) e, em todos os caso, considerado como a "deificação do homem", ou seja, a sua união
com Deus.
Do ponto de vista filosófico-religioso, é importante a apreciação de Kierkegaard sobre o misticismo: o
místico é "aquele que se escolhe em isolamento completo", ou seja, isolado do mundo e dos contatos
humanos (Aut Aut, em Werke, II, p. 215), mas, assim agindo, comete certa indiscrição em relação a Deus.
Isso porque, em primeiro lugar, desdenha a existência, a realidade na qual Deus o colocou, e, em segundo
lugar, degrada Deus e a si mesmo. "Degrada-se porque é sempre degradação ser essencialmente diferente
dos outros graças a simples acidentalidade, e degrada Deus porque faz dele um ídolo e de si mesmo um
favorito em sua corte" (Ibid., Werke, II, p. 219).
Na filosofia contemporânea o M. foi defendido por Bergson, que nele viu a "religião dinâmica", a religião
que continua o elã criador da vida e tende a criar formas de vida mais perfeitas para o homem. "O amor
místico" — diz Bergson — "identifica-se com o amor de Deus por sua obra, amor que criou todas as
coisas e é capaz de revelar a quem souber interrogá-lo o mistério da criação. É composto de essência mais
metafísica que moral. Com a ajuda de Deus, ele gostaria de aperfeiçoar a criação da espécie humana e
fazer da humanidade o que logo teria sido possível, se tivesse podido constituir-se definitivamente sem a
ajuda do homem." Em outras palavras, é ao elã místico que se pode atribuir o restabelecimento da "função
essencial do universo, que é uma máquina destinada a criar divindades" (Deux sources; trad. it., pp. 256,
349). Essa interpretação do M., feita
MISTIFICAÇÃO 673
MITO
por Bergson, não se diferencia do panteísmo comum (v.).
MISTIFICAÇÃO (in. Mystification-, fr. Mystification, ai. Mystification; it. Mistificazioné). Interpretação
de um conceito de modo obscuro, falaz ou tendencioso. Marx, p. ex., dizia: "A M. que a dialética sofre
nas mãos de Hegel não exclui em absoluto que ele tenha sido o primeiro a expor de maneira ampla e
consciente as formas gerais do movimento da dialética" {Correspondência Marx-Engels; trad. it., V, p.
28). Segundo Marx, a dialética de Hegel era "mistificada" porque interpretada do ponto de vista idealista,
e não materialista. De maneira análoga, chama-se de M. o conceito de liberdade segundo o qual ela
coincide com necessidade, o que, implicitamente, nega a liberdade, etc.
MITO (gr. uú8oç; lat. Mythus; in. Myth; fr. Mythe, ai. Mythos). Além da acepção geral de "narrativa", na
qual essa palavra é usada, p. ex., na Poética (1,1451 b 24) de Aristóteles, do ponto de vista histórico é
possível distinguir três significados do termo: 1B
M. como forma atenuada de intelectualidade; 2e
M.
como forma autônoma de pensamento ou de vida; 3S
M. como instrumento de estudo social.
I
a Na Antigüidade clássica, o M. é considerado um produto inferior ou deformado da atividade intelectual.
A ele era atribuída, no máximo, "verossimilhança", enquanto a "verdade" pertencia aos produtos genuínos
do intelecto. Esse foi o ponto de vista de Platão e de Aristóteles. Platão contrapõe o M. à verdade ou à
narrativa verdadeira {Górg., 523 a), mas ao mesmo tempo atribui-lhe verossimilhança, o que, em certos
campos, é a única validade a que o discurso humano pode aspirar {Tim., 29 d) e, em outros, expressa o
que de melhor e mais verdadeiro se pode encontrar {Górg., 527 a). Também para Platão o M. constitui a
"via humana mais curta" para a persuasão; em conjunto, seu domínio é representado pela zona que fica
além do círculo estrito do pensamento racional, na qual só é lícito aventurar-se com suposições
verossímeis. Substancialmente, Aristóteles assume a mesma atitude em relação ao M.: este às vezes é
oposto à verdade {Hist. An., VIII, 12, 597 a 7), mas outras vezes é a forma aproxima-tiva e imperfeita que
a verdade assume, quando, p. ex., explica-se "a razão de uma coisa em forma de M." {Ibid., VI, 35, 580 a
18). A esse conceito de M. como verdade imperfeita ou diminuída freqüentemente se une a atribuição de
validade moral ou religiosa ao M. O que o M. diz — supõe-se — não é demonstrável nem claramente
concebível, mas sempre é claro o seu significado moral ou religioso, ou seja o que ele ensina sobre a
conduta do homem em relação aos outros homens ou em relação à divindade. Assim, a respeito dos M.
morais expostos em Górgias, Platão diz: "Talvez estas coisas pareçam M. de mulheres velhas e as
considerareis com desprezo. E não seria descabido desprezá-las se, com a investigação, pudéssemos
encontrar outras coisas melhores e mais verdadeiras. Mas vós também, tu, Pólos e Górgias, que sois os
gregos mais sábios de nossos dias, não conseguis demonstrar que convém viver outra vida que não esta"
{Górg., 527 a-b). Analogamente, atribui-se significado religioso ao M. sempre que, com esse nome, são
designadas determinadas crenças, como p. ex. quando se diz "M. cosmogônico", "M. soterio-lógico", ou
"M. escatológico", etc. Na linguagem comum prevalece essa acepção do significado em sua forma
extrema, ou seja, como de crença dotada de validade mínima e de pouca verossimilhança; nesse sentido,
chama-se de mítico o que é inatingível ou contrário aos critérios do bom senso comum, como p. ex.
"perfeição mítica".
A essa esfera de interpretação do M. pertencem as chamadas teorias naturalistas, que prevaleceram no
séc. XIX na Alemanha. Segundo elas, o M. é produto da mesma atitude teórica ou contemplativa que dará
origem à ciência; consiste em tomar determinado fenômeno natural como chave para a explicação de
todos os outros fenômenos. Os fenômenos astronômicos, os meteorológicos e outros foram invocados
com esse fim. Mais recentemente, outra escola sociológica viu no M. sobretudo a lembrança dos
acontecimentos passados. Em ambos os casos essas "explicações naturalistas" do M. nada mais fazem que
reduzi-lo a uma forma imperfeita de atividade intelectual.
2
a
para a segunda concepção de M., este é uma forma autônoma de pensamento e de vida. Nesse sentido,
a validade e a função do M. não são secundárias e subordinadas em relação ao conhecimento racional,
mas originárias e primárias, situando-se num plano diferente do plano do intelecto, mas dotado de igual
dignidade. Foi Viço o primeiro a expressar esse conceito de M.: "As fábulas, ao nascerem, eram narrações
verdadeiras e graves (donde ter a fábula sido definida como vera
MITO
674
MITO
narratió) que no mais das vezes nasceram obscenas, e por isso depois se tornaram impróprias, a seguir
alteradas, então inverossímeis, adiante obscuras, daí escandalosas, e finalmente incríveis, que são as sete
fontes da dificuldade das fábulas" (Sc. n., II, Pruove filos, per Ia discoverta dei vero Omero, IV).
Portanto, a verdade do M. não é uma verdade intelectual corrompida ou degenerada, mas uma verdade
autêntica, embora com forma diferente da verdade intelectual, com forma fantástica ou poética: "Os
caracteres poéticos nos quais consiste a essência das fábulas nasceram, por necessidade natural, da
incapacidade de extrair as formas e as propriedades dos assuntos; por conseguinte, devia ser maneira de
pensar de povos inteiros que tivessem sido postos em tal necessidade natural, que é nos tempos de sua
maior barbárie" (Ibid., VI). Desse ponto de vista "os poetas devem ter sido os primeiros historiadores das
nações" (Ibid., X), e os caracteres poéticos contêm significados históricos que, nos primeiros tempos,
foram transmitidos de cor pelos povos (lbid., IX).
O Romantismo adotou esse conceito de M. e o ampliou em uma metafísica teológica. A Filosofia da
mitologiaàe Schelling vê no M., considerado como religião natural do gênero humano, uma das fases da
auto-revelação do Absoluto. O M. faz parte integrante do processo de teofania; este nada tem a ver com a
natureza, ou melhor, tem a ver com ela só indiretamente, e na medida em que a natureza é revelação de
Deus. O M. é uma fase da teo-gonia que está além e acima da natureza porque é a manifestação de Deus
como consciência da natureza ou relação desta com o éu (Werke, II, I, pp. 216 ss.). Fora dessas
especulações, típicas do idealismo romântico, a doutrina do M. como forma autônoma de expressão e de
vida encontrou ampla acolhida na filosofia e na sociologia contemporâneas. Na filosofia, a melhor
expressão desta interpretação do M. é o segundo volume de Filosofia das formas simbólicas (1925), de
Cassirer, no qual a característica do pensamento mítico é avistada na distinção malograda ou imperfeita
entre símbolo e objeto do símbolo, ou seja, na compreensão falha ou imperfeita do símbolo como tal.
Cassirer diz: "O M. surge espiritualmente acima do mundo das coisas, mas, nas figuras e nas imagens
com que ele substitui este mundo, vê outra forma de materialidade e de ligação com as coisas"
(Philosophie der
symbolischen Formen, II, 1925; trad. in., 1955, p. 24).
Mais tarde, em Ensaio sobre o homem, Cassirer viu o caráter distintivo do M. em seu fundamento
emotivo. "O substrato real do M. não é de pensamento, mas de sentimento. O M. e a religião primitiva
não são por certo de todo incoerentes, não são totalmente desprovidos de senso ou razão. Mas sua
coerência provém muito mais da unidade sentimental que de regras lógicas. Essa unidade é um dos
impulsos mais fortes e mais profundos do pensamento primitivo" (Essay on Man, cap. 7; trad. it., pp. 124-
25). Contudo, essa concepção também pertence ao tipo de interpretação para a qual o M. é uma forma
espiritual autônoma em relação ao intelecto.
Também é desse tipo a interpretação sociológica, para a qual o M. é produto de uma mentalidade prélógica. Esta foi a tese dos sociólogos franceses Durkheim e Lévy-Bruhl. O primeiro afirmou que o
verdadeiro modelo do M. não é a natureza, mas a sociedade, e que, em todos os casos, ele é a projeção da
vida social do homem: projeção que reflete as características fundamentais dessa vida social (Les formes
élémentaires de sa vie religieuse, 1912). O segundo definiu o pensamento mítico como pensamento prélógico, no sentido que este prescindiria completamente da ordem necessária que, para o pensamento
lógico, constitui a natureza, e veria a própria natureza como 'uma rede de participações e de exclu-sões
místicas, na qual nada valem a lei de contradição e as outras leis do pensamento lógico" (La mentalité
primitive, 1922; L'âme primitive, 1928).
3
S
A terceira concepção de M. consiste na moderna teoria sociológica que se pode atribuir principalmente
a Fraser (The Golden Bough, 1911-15) e a Malinowski. Este último vê no M. a justificação retrospectiva
dos elementos fundamentais que constituem a cultura de um grupo. "O M. não é uma simples narrativa,
nem uma forma de ciência, nem um ramo de arte ou de história, nem uma narração explicativa. Cumpre
uma função suigeneris, intimamente ligada à natureza da tradição, à continuidade da cultura, à relação
entre maturidade e juventude e à atitude humana em relação ao passado. A função do M. é, em resumo,
reforçar a tradição e dar-lhe maior valor e prestígio, vinculando-a à mais elevada, melhor e mais
sobrenatural realidade dos acontecimentos ini-
MITO
675
MOBIL
ciais." Nesse sentido, o M. não se limita ao mundo ou à mentalidade dos primitivos. É indispensável a
qualquer cultura. "Cada mudança histórica cria sua mitologia, que, no entanto, tem relação indireta com o
fato histórico. O M. é acompanhamento constante da fé viva, que precisa de milagres, do status
sociológico, que pede precedentes, da norma moral, que exige sanção" ("Myth in Primitive Psychology",
1926, in Magic, Science and Religion, 1955, p. 146). Por outro lado, Lévi-Strauss estudou a estrutura (v.)
do M. nas sociedades primitivas, analisando alguns em seus elementos mais simples (mitemas) e
estudando suas combinações possíveis, que explicam também as semelhanças e diferenças entre M.
vigentes em grupos humanos diversos (Anthropologie structurale, 1958, cap. XI). Além disso, mostrou
que o M. não é uma narrativa histórica, mas a representação generalizada de fatos que recorrem com
uniformidade na vida dos homens: nascimento e morte, luta contra a fome e as forças da natureza, derrota
e vitória, relacionamento entre os sexos. Por isso, o M. nunca reproduz a situação real, mas opõe-se a ela,
no sentido de que a representação é embelezada, corrigida e aperfeiçoada, expressando assim as
aspirações a que a situação real dá origem. Para caracterizar a relação entre o M. e a realidade que o
inspira é adotada a palavra dialética (v.) ("The Story of Asdiwal", em The Structural Study ofMyth and
Totemism, Leach, 1969, pp. 29 ss.). Outros autores preferem falar em retroalimentação (feedback), visto
que o M. reage sobre a situação que o provocou, tendendo a modificar o universo social do qual surgiu;
este, uma vez modificado, provoca uma resposta no campo do M., e assim por diante (DOUGLAS, no
mesmo volume, pp. 57 ss.). Em todos os casos, o M. apresenta-se como "filosofia nativa", segundo a
expressão de Lévi-Strauss, que é a forma como o grupo social expressa sua própria atitude em relação ao
mundo ou como procura resolver o problema da sua existência. Desse ponto de vista, o M. não é definido
segundo determinada forma do espírito, como p. ex. o intelecto ou o sentimento, o que acontece nas duas
interpretações precedentes, mas em relação à função que desempenha nas sociedades humanas: função
que pode ser esclarecida e descrita com base em fatos observáveis. A desvalorização do M., presente na
primeira concepção, e a sua supervalorização, presente na segunda, não têm lugar nesse terceiro ponto de vista, o que certamente é uma vantagem. Outra vantagem é que ele explica a função
exercida pelo M. nas sociedades mais avançadas e as características díspares que ele pode assumir nessas
sociedades; nelas, podem constituir M. não só narrativas fabulosas, históricas ou pseudo-históricas, mas
também figuras humanas (heróis, líderes, etc), conceitos e noções abstratas (nação, liberdade, pátria,
proletariado), ou projetos de ação que nunca se realizarão (a "greve geral" de que falava Sorel como M.
do proletariado; cf. Réfléxions sur Ia violence, 1906). A disparidade de conteúdo do M. demonstra a
impossibilidade de relacioná-lo, com base em seu teor, com esta ou aquela forma espiritual, indicando
que, ao contrário, é preciso estudá-lo em relação à função que exerce na sociedade humana.
MITO DA CAVERNA. V. CAVERNA.
MITOLÓGICO (ai. Mythologisctí). Na obra de Rudolf Bultmann este termo recebeu um significado
especial, importante para a interpretação que esse autor faz do Cristianismo: "M. é a forma de
representação em que aquilo que não é mundano, que é divino, é representado como mundano, humano, o
além como o aquém, em que, p. ex., a transcendência de Deus é pensada como distância espacial. Em
conseqüência dessa representação, o culto é entendido como uma ação na qual os meios materiais
transmitem forças imateriais." Nesse sentido, é óbvio que a palavra mito não tem o sentido moderno, "em
que não significa nada mais do que ideologia" (Kerygma und Mythos, I, 1951, p. 22, n. 2). Cf. MIEGGE,
1'Evangelo e ti mito, Milão, 1956.
MNEMÔNICA, MNEMOTÉCNICA (lat. Ars memoriae, in. Mnemonics-, fr. Mnémonique, ai.
Mnemonik, Mnemotechnik, it. Mnemonica, Mnemotecnica). A arte de cultivar a memória. Trata-se de uma
arte antiquíssima, que Cícero atribui a Simonides (De or., II, 86, 351). Essa arte foi cultivada pelos
sofistas; Hípias vangloriava-se de ser seu mestre (Hípias menor, 368 d; Hípias maior, 286 a). O gosto por
essa arte ressurgiu no Renascimento e foi cultivada especialmente por Giordano Bruno, que lhe dedicou
um grupo de obras (De umbris idearum, 1582; Ars memoriae, 1582; Cantus circaeus, 1582; Triginta
sigillorum explicatio, 1583, etc.) (v. CLAVIS UNIVERSALIS). A psicologia contemporânea voltou a tratar
desse assunto com meios experimentais.
MÓBIL. V. MOTIVO.
MOBILISMO
676
MODALIDADE
MOBILISMO (fr. Mobilismê). A palavra é moderna (cf. CHIDE, Le mobilismê moderne, 1908); é pouco
usada em italiano e em francês, mas serve para exprimir a atitude filosófica daqueles que Platão chamava
de "fluentes" ijeet., 181 a), para quem tudo muda e nada está parado: como faziam na Antigüidade os
seguidores de Heráclito e como fazem, na filosofia moderna, os filósofos do devir,
MODA (in. Fashion; fr. Mode, ai. Mode, it. Moda). Kant interpretou a M. como uma forma de imitação
baseada na vaidade, porquanto "ninguém quer parecer inferior aos outros, mesmo nas coisas que não têm
utilidade alguma". Desse ponto de vista, "estar na M. é questão de gosto; quem está fora de M. e adere a
um uso passado é chamado de antiquado; quem não dá valor ao fato de estar fora de M. é um excêntrico";
Kant diz que "é melhor ser louco na M. do que fora dela", e que a M. só é realmente louca quando
sacrifica a utilidade ou mesmo o dever em favor da vaidade (Antr., I, § 71). Na realidade, hoje essa análise
de Kant não é mais suficiente, pois se sabe que a M. infiltra-se em todos os fenômenos culturais, inclusive
nos filosóficos. Na Idade Moderna foram M. o cartesianismo, o iluminismo, o newto-nismo, o
darwinismo, o positivismo, o idealismo, o neo-idealismo, o pragmatismo, etc: doutrinas todas que tiveram
importância decisiva na história da cultura. Por outro lado, foram M. também movimentos culturais que
pouco ou nenhum vestígio deixaram. Pode-se dizer que a função da M. é introduzir nas atitudes
institucionais de um grupo ou, mais particularmente, em suas crenças, por meio de rápida comunicação e
assimilação, atitudes ou crenças novas que, sem a M., teriam grande dificuldade para sobreviver e imporse. Esta função específica, graças à qual a M. age como uma espécie de controle que limita ou enfraquece
os controles da tradição, torna inútil a exaltação ou o desdém em relação à M.
MODAL (in. Modal; fr. Modale, ai. Modal; it. Modalé). Este termo designa a proposição na qual a
cópula recebe uma determinação complementar qualquer. Para as proposições M., v. MODALIDADE.
MODAL, LEI (ai. Modales Grundgesetz). Foi assim que Hartmann chamou a redução de todas as
modalidades do ser (possibilidade e necessidade) à efetividade, isto é, ao ser de fato (Mõglichkeit und
Wirklichkeit, 1938, p. 71) (v. NECESSIDADE).
MODALIDADE (lat. Modalitas; in. Moda-lity, fr. Modalité, ai. Modalitãt; it. Modalita). Diferenças de
predicação, ou seja, diferenças que podem ser produzidas pela referência de um predicado ao sujeito da
proposição. Tais diferenças foram reconhecidas pela primeira vez por Aristóteles, de acordo com seu
conceito do ser predicativo (v. SER, I), que é a inerência. Ele diz que "uma coisa é inerir, outras coisas são
inerir necessariamente e poder inerir, pois muitas coisas inerem, mas não necessariamente, outras não
inerem nem necessária nem simplesmente, mas podem inerir" (.An. pr., I, 8, 29 b 29). Desse modo,
Aristóteles distingue: I
a inerência pura e simples do predicado ao sujeito; 2S
inerência necessária; 3B
inerência possível. Posteriormente, os comentadores de Aristóteles deram o nome de modos à segunda e à
terceira formas de predicação, e de "proposições modais" às proposições necessárias e possíveis
(AMMONIO, Deinterpr., f. 171 b; BoÉCio, De interpr., II, V, P. L., 64s
, col. 582). Na Idade Média, deu-se o
nome de proposição de inesse ou depuro inesse à proposição hoje conhecida como assertórica, e de
modais às proposições necessárias ou possíveis (ABELARDO, Dialect., II, p. 100; PEDRO HISPANO, Summ.
log., 1.31). Na Lógica (1638) de Jungius dá-se o nome de "enunciaçâo pura" à proposição assertórica, e
de "enunciaçâo modificada ou modal" à proposição necessária ou possível. O mesmo uso foi adotado pela
Lógica de Port-Royal (I, 80, e por Wolff (Log., § 69). Pode-se dizer, portanto, que Kant nada mais fazia
que reexpor esta longa tradição ao afirmar: "A M. dos juízos é uma função particular deles, que tem o
seguinte caráter distintivo: não contribui em nada para o conteúdo do juízo (já que, além da quantidade,
da qualidade e da relação, nada mais há que forme o conteúdo do juízo), mas afeta apenas o valor da
cópula em relação ao pensamento em geral. Juízos problemáticos são aqueles em que se admite a
afirmação ou a negação como simplesmente possível (arbitrário); assertóricos são os juízos em que a
afirmação ou a negação tem valor de realidade (verdade); são apodíticos os juízos em que a afirmação ou
a negação tem valor de necessidade" (Crít. R. Pura, § 9, 4).
Na lógica contemporânea o desenvolvimento da M. não foi levado a um grau suficiente de clareza
conceptual e de elaboração analítica. Isto porque a lógica contemporânea molda-se pela matemática, que
praticamente ignora, ou pode ignorar, o uso das M. Não é de surpreen-
MODALIDADE
677
MODALIDADE
der, portanto, que tenha sido exposta a tese da extensionalidade (v.), que eqüivale à eliminação das M. dos
enunciados. Contudo essa tese não impediu que seus próprios defensores tentassem uma interpretação das
M. Russell afirmou que as M. não são propriedades das proposições, mas das funçõesproposicionais (v.).-
assim, seria necessária a função proposicional "Se x é homem, x é mortal", que é sempre verdadeira; seria
possível a função "xé homem", que algumas vezes é verdadeira; e seria impossível a função "xé
unicorno", que nunca é verdadeira ("The Philosophy of Logical Atomism", 1918, cap. V, em Logic
andKnowledge, pp. 230 ss.). Mas essa interpretação de Russell eqüivale simplesmente à inversão
paradoxal das M., porquanto o sentido modal da expressão "Se xé homem, x é mortal" não é a
necessidade, mas a possibilidade, pois ela na verdade significa "x podeser mortal". Outra sugestão de
Russell (op. cit., p. 231) é a identificação de necessário com analítico, com afirmações do tipo "xé x".
Carnap, por sua vez, ateve-se a essa interpretação quando tentou construir a M. com base no conceito de
necessidade lógica, analiticidade, e definiu possibilidade como a negação de tal necessidade (Meaning
and Necessity, 1957, § 39). É fácil notar que essa interpretação eqüivale à negação pura e simples das M.
e não pode valer como lógica delas. Por outro lado, Quine mostrou as dificuldades inerentes às
abordagens das M. que se baseiam na quantificação, como a de Carnap {From a Logical Point of View,
VIII, 4).
A respeito da distinção das M. ou, como se diz hoje, dos valores modais das proposições, a tábua de
valores mais antiga e autorizada é a apresentada por Aristóteles, em De interpre-tatione, que compreende
seis valores.- verdadeiro, falso; possível, impossível; necessário, contingente (De int., 12, 21 b). Essa
lógica com seis valores não foi alterada na Idade Média (cf., p. ex., PEDRO HISPANO, Summ. log., 1.30),
sendo desenvolvida e defendida também pelos lógicos contemporâneos, como p. ex. LEWIS (A Survey of
Symbolic Logic, 1918). Algumas vezes, os valores modais foram reduzidos a cinco, com a identificação
de possibilidade e contingência (p. ex., O. BECKER, "Zur Logik der Modalitãten", em Jahrfür Phil. und
Phãnom. Forsbchung, 1930, pp. 496-548). Lukasiewicz e Tarski construíram uma lógica com três M.:
verdadeiro, falso e possível (cf. os artigos em Comptes Reunds des Séances de Ia Société des
Sciences et Lettres de Varsovie, 1930, pp. 30,50, 176). Carnap aceitou as seis M. da tradição aristotélica
(Meaning and Necessity, % 39).
O conceito de M. não está bem claro nessas doutrinas da lógica contemporânea. Assim indicaremos
apenas as confusões mais freqüentes: I
a
tentativa de reduzir os enunciados modais a enunciados
quantitativos; 2a
tentativa de reduzir a M. a valor de verdade da proposição; 3a tentativa de tornar as M.
predicados umas das outras.
I
a A primeira tentativa consiste em estabelecer a correspondência entre enunciados universais e
proposições possíveis. Assim, "todos os homens morrem" seria equivalente a "os homens devem morrer",
e "alguns homens são artistas" seria equivalente a "os homens podem ser artistas". Essas transcrições sem
dúvida são insuficientes, pois nem a proposição necessária nem a possível expressam fatos como as
correspondentes proposições universais e particulares (cf. A. PAP, Semantics and Necessary Truth, 1958,
p. 368); ademais, a proposição possível tem significado distributivo ("todo homem pode ser artista"), que
estaria excluído da proposição particular correspondente. Mas também é evidente que nenhuma
transcrição desse gênero é possível para proposições modais do tipo "x pode ser", que no entanto ocorrem
em todos os ramos da ciência sempre que se trate de hipóteses, previsões, probabilidades, antecipações,
etc.
2
a
A segunda confusão consiste em alinhar a M. entre os valores de verdade das proposições; essa
confusão está presente mesmo nas chamadas lógicas das M. Ora, os valores de verdade das proposições
(verdadeiro, falso, provável, indeterminado, etc.) pertencem a um nível diferente do nível da M., que é
uma determinação da predicação, ou seja, da relação entre sujeito e predicado da proposição. Os valores
de verdade pertencem à esfera de referência semântica das proposições; as M. pertencem à estrutura de
relações das proposições. Indicam, portanto, se tal estrutura pode ser ou não diferente do que é, se o
conteúdo de um enunciado (seu significado) pode ser ou não diferente daquilo que o enunciado expressa.
As M. fundamentais são, então, duas e apenas duas: pos-sibilidadee necessidade, com seus opostos nãopossibilidadee impossibilidade. Elas modificam os valores de verdade das proposições no sentido de
limitá-los ou estendê-los, mas não devem ser confundidas com tais valores: a pre-
MODALISMO
678
MODERNISMO
dicação recíproca supõe, aliás, a diversidade dos níveis, e pode-se dizer "necessariamente verdadeiro" ou
"possivelmente verdadeiro" precisamente porque possibilidade e verdade, verdade e necessidade
pertencem a duas esferas diversas e não são excludentes entre si.
3
g
A terceira confusão é inerente à tentativa de predicação recíproca das M. Essa tentativa é tão
contraditória quanto a de predicação recíproca entre os valores de quantidade ou de verdade das
proposições. A tese fundamental desse ponto de vista é a do caráter alternativo das M. Mas essa tese foi
em geral desconhecida ou ignorada pelos lógicos da M. a partir de Aristóteles. Este último realmente
cuidou da predicação recíproca das M. e afirmou, p. ex., que o que é necessário também deve ser
possível, uma vez que não se pode dizer que é impossível (De int., 13, 22b 11). Mas essa afirmação ou
leva a considerar o necessário como possível, ou seja, como não necessário, ou leva a dividir em dois o
conceito de possível (que é o caminho seguido por Aristóteles), com o reconhecimento de uma espécie de
possível que se identifica com o necessário (v. POSSÍVEL). Por outro lado, a afirmação recíproca (que
Aristóteles ilustrou com o famoso exemplo da batalha naval), de que o possível é necessário no sentido de
que necessariamente há um possível (p. ex., necessariamente amanhã haverá ou não uma batalha naval),
eqüivale a tornar necessária a indeterminação e a negar o possível como tal. De fato, "É necessário que x
seja possível" significa que xdeve manter-se indeterminado sem nunca realizar-se; mas nesse caso x não é
um possível. Essas antinomias ou paradoxos surgem do desconhecimento do caráter exclusivo das
diferenças modais, em virtude do qual elas são alternativas inconciliáveis. Por outro lado, os valores de
verdade podem ser predicados das M.; há um possível verdadeiro, como p. ex. "o homem pode ser
branco", e um possível falso, como "o homem pode ser retângulo". E pode haver uma necessidade
verdadeira e uma necessidade falsa, que é o absurdo. Esses reparos exigiriam desenvolvimentos analíticos
adequados. Para mais observações, v. NECESSÁRIO; POSSÍVEL.
MODALISMO (in. Modalism; fr. Modalis-me, ai. Modalismus-, it. Modalismó). Esse nome é dado à
interpretação da Trindade cristã que consiste em ver nas três pessoas divinas três modos ou manifestações
da substância divina única. Essa interpretação sempre foi condenada como herética pela Igreja cristã, que insistiu na igualdade e na distinção das pessoas divinas. No séc.
III, o M. foi sustentado por Sabélio; viu-se também uma espécie de M. na doutrina de Scotus Erigena e de
Abelardo; este último foi criticado por S. BERNARDO (De erroribus Abe-lardi, 3, 8). Outro nome dado à
mesma heresia é monarquismo (v.).
MODELO (in. Model; fr. Modele, ai. Modell; it. Modelló). 1. Uma das espécies fundamentais de
conceitos científicos (v. CONCEITO), mais precisamente o que consiste na disposição caracterizada pela
ordem dos elementos de que se compõe, e não pela natureza desses elementos. Por isso, dois M. são
idênticos se a relação de suas ordens puder ser expressa como correspondência biunívoca, ou seja, tal que
a um termo de um corresponda um, e apenas um, do outro, e que a cada relação de ordem entre os
elementos de um corresponda idêntica relação entre os elementos correspondentes do outro. O cálculo
numérico ordinário é o melhor exemplo de correspondência biunívoca: se, de um lado, houver cinco
livros e, de outro, cinco lápis, essas duas séries de objetos podem ser alinhadas na mesma ordem ou os
objetos podem ser colocados um sobre o outro. Do mesmo modo, a série dos números inteiros tem
correspondência biunívoca com os números pares, e assim por diante. Para ser útil, um M. deve ter as
seguintes características: 1) simplicidade, para que seja possível sua definição exata; 2) possibilidade de
ser expresso por meio de parâmetros suscetíveis de tratamento matemático; 3) semelhança ou analogia
com a realidade que se destina a explicar.
Os M. mecânicos pareciam indispensáveis à ciência do séc. XIX, mas hoje diferentes disciplinas utilizam
M. puramente teóricos: economia (que utiliza jogos), psicologia, biologia, antroplogia (cf. HEMPEL,
Aspects of Scientific Explanation, 1965, p. 445 e nota 28). Lévi-Strauss considerou a estrutura (v.) como
um M. desse gênero, para a explicação dos fatos sociais (Anthropologiestructurale, 1958, cap. XV).
2. O mesmo que arquétipo (v.).
MODERNISMO (in. Modernism; fr. Moder-nisme, ai. Modernismus; it. Modernismo). Tentativa de
reforma católica que teve alguma difusão na Itália e na França na última década do séc. XLX e na
primeira do séc. XX; foi condenado pelo papa Pio X com a encíclica Pascendi de 8 de setembro de 1907.
Essa tentativa inspirou-se nas exigências da filosofia da ação (v.),
MODERNISMO
679
MODO
nela haurindo o significado que deve ser atribuído aos conceitos fundamentais da religião: Deus,
revelação, dogma, graça, etc. O M. inspira-se principalmente nas idéias de Ollé Lapru-ne e de Blondel,
que permaneceram alheios ao movimento, e conta com os nomes de Laber-thonnière, Loisy e Le Roy. Na
Itália, assumiu especialmente a forma de crítica bíblica (Salva-tore Minocchi, Ernesto Buonaiuti) e de
crítica política (Romolo Murri), enquanto o debate filosófico limitava-se a reproduzir, com escassa
originalidade, as idéias do M. francês. Os pontos básicos podem ser expostos assim:
l
s
Deus revela-se imediatamente (sem intermediários) à consciência do homem. Laber-thonnière diz: "Se
o homem deseja possuir Deus e ser Deus, é porque Deus já se deu a ele. E assim que podem ser e são
encontradas na natureza as exigências do sobrenatural" (Essais dephilosophie religieuse, 1903, p. 171).
Esse princípio diminuía ou anulava a distância entre os domínios da natureza e da graça, bem como entre
o homem e Deus, fazendo de Deus o princípio metafísico da consciência humana. Tal é o fundamento do
chamado "método da imanência", que pretende encontrar Deus e o sobrenatural na consciência do
homem.
2
e
Deus é sobretudo um princípio de ação, e a experiência religiosa é sobretudo uma experiência prática.
Esse ponto, que também deriva estritamente da Ação (1893) de Blondel, eqüivale a considerar que
religião e moral são coincidentes. Essa é uma das teses fundamentais de Loisy (La religion, 1917, p. 69).
3
fi Os dogmas nada mais são que a expressão simbólica e imperfeita — porque relativa às condições
históricas do tempo em que se constituem — da verdadeira revelação, que é a revelação feita por Deus
mesmo à consciência do homem. Esse foi o ponto de vista que Loisy defendeu na mais famosa obra do
M., L 'Évangile et 1'église (1902).
4
9
Os instrumentos de investigação filológica devem ser aplicados sem limitações à Bíblia; isso significa
que ela deve ser considerada e estudada como um documento histórico da humanidade, ainda que de
caráter excepcional e fundamental. Esta foi a convicção tanto de Loisy quanto daqueles que, na Itália,
aceitaram o ponto de vista do M. sobre esse assunto, especialmente Buonaiuti.
5
B
No campo da política, o Cristianismo não pode conduzir à defesa dos privilégios do clero ou de outros
grupos sociais, mas apenas ao
progresso e à ascensão do povo, cuja vida na história é a manifestação da vida divina. Tais foram as idéias
políticas defendidas principalmente por Romolo Murri. Cf. E. BUONAIUTI, Le modernisme catholique,
1927, J. RTVIÈRE, Lemo-dernisme dans 1'église, 1929; GARIN, Cronache di filosofia italiana, 1943-55,
1956.
MODERNO (lat. Modernus, in. Modem; fr. Modeme, ai. Modem; it. Moderno). Este adjetivo, que foi
introduzido pelo latim pós-clássico e significa literalmente "atual" (de modo = agora), foi empregado pela
Escolástica a partir do séc. XIII para indicar a nova lógica terminista, designada como via moderna em
comparação com a via antiqua da lógica aristotélica. Esse termo também designou o nominalismo, que
está intimamente ligado à lógica terminista. Walter Burleigh diz: "Embora o universal não tenha
existência fora da alma, como dizem os modernos, etc." (Expositio superartem veterem, Venetiis, 1485, f.
59 r; PRANTL, Geschichte der Logik, III, pp. 255, 299, etc).
No sentido histórico em que essa palavra é hoje empregada habitualmente, em que se fala de "filosofia
moderna" neste dicionário, indica o período da história ocidental que começa depois do Renascimento, a
partir do séc. XVII. Do período M. costuma-se distinguir freqüentemente o "contemporâneo", que
compreende os últimos decênios.
MODERNOS. V. ANTIGOS.
MODIFICAÇÃO REPRODUTIVA (ai Re-produktive Modifikatiori). Assim Husserl chamou as
representações das coisas e das vivências que já nos foram dadas uma vez em suas modalidades
peculiares (Ideen, I, § 44).
MODO (gr. xpórcoç; lat. Modus; in. Mode, fr. Mode, ai. Modus; it. Modo). Com este termo foram
designadas:
1
B
As diversas formas do ser predicativo (v. MODALIDADE).
2
S
As determinações não necessárias (ou não incluídas na definição de uma coisa). O M. já era entendido
pela lógica medieval nesse sentido (cf., p. ex., PEDRO HISPANO, Summ. log., 1.28). Foi retomado por
Descartes, que entendeu por M. as qualidades secundárias mutáveis das substâncias e as contrapôs aos
atributos, que constituem as qualidades permanentes ou necessárias. Descartes diz: "Já que não devo
conceber em Deus variedade ou mudança alguma, digo que nele não há M. ou qualidades, mas atributos;
também nas coisas criadas, o que nelas encontra sempre constante,
MODUS PONENS e MODUS TOLLENS 680
MÔNADA
como a existência e a duração da coisa que existe e dura, chamo de atributo, e não M. ou qualidade"
(Princ. phil., I, 56). Esse conceito foi repetido por Spinoza (Et., I, def. 5) e por Wolff, que diz: "O que não
repugna às determinações essenciais, mas não é determinado por elas, chama-se M." (Ont., § 148). Por
outro lado, a Lógica de Port-Royal não distinguia o M. do atributo ou da qualidade, definindo-o como
"aquilo que, sendo concebido na coisa de tal forma que não pode subsistir sem ela, determina-a a ser de
certa maneira e a ser denominada correspondentemente" (I, 2). Dessa definição, Locke aceitava a
afirmação de que o M. não pode subsistir independentemente da substância e, assim, definia M. como "as
idéias complexas que, embora compostas, não contêm em si a suposição de subsistirem por si próprias,
mas são consideradas dependências ou afecções das substâncias, tal como são as expressas pelas palavras
'triângulo', 'gratidão', 'homicídio', etc." (Ensaio, II, 12, 4).
Faz parte desse mesmo conceito o significado que Spinoza atribui ao termo, entendendo-o como "aquilo
que está em outra coisa e cujo conceito se forma por meio dessa outra coisa" (Et., I, 8, scol. 2). No
entanto, segundo Spinoza, o M. deriva necessariamente da natureza divina e portanto se distingue do
atributo pela sua particularidade, e não pela ausência de necessidade: M. são as coisas e os pensamentos
particulares que expressam os atributos de Deus, pensamento e extensão (Ibid., I, 25 scol.; II, 1).
3
Q
Formas, espécies, aspectos, determinações particulares de um objeto qualquer. Esse significado é o
mais geral e comum, sendo também o menos preciso.
4° Especificação das figuras do silogismo, segundo a qualidade e a quantidade das premissas (v. FIGURA;
SILOGISMO).
MODUS PONENS e MODUS TOLLENS. Na lógica do séc. XVII, foram assim chamados os dois
modos do silogismo hipotético: o primeiro, posto o antecedente, põe o conseqüente (se A é, é B; mas A é,
portanto é B), e o segundo, retirado o conseqüente, retira o antecedente (se A é, é B; mas A não é, portanto
não é B) (JUNGIUS, Lógica, 1638, III, 17, 10-11; WOLFF, Log., §§ 409-10).
MOLECULAR, PROPOSIÇÃO (in. Molecular proposition; fr. Proposition moléculaire, ai. Molekular
Satz; it. Proposizione moleco-laré). Termo que entrou em uso com o Trac-tatus de Wittgenstein;
correspondente à propositio hypothetica da Lógica de Boécio e dos escolásticos: é uma proposição formada por uma ou mais
proposições atômicas (v.) ligadas por certas constantes lógicas, como "não", "e", "ou", "implica"
("se..., ...") (negação, conjunção, disjunção, implicação) e outras. Na lógica de Russell as proposições
funcionais correspondem às proposições moleculares. G. P.
MOLINISMO. V. GRAÇA.
MOMENTO (in. Moment; fr. Moment; ai. Moment; it. Momento). 1. Conceito mecânico: ação
instantânea de uma força sobre um corpo. É assim que Kant define o M. (Metaphysische Anfangsgründe
der Naturwissenschaft, Nota sobre a mecânica; Crit. R. Pura, Anal. dos princ, B, ao final).
2. Conceito temporal: parte mínima de tempo, desprovida de sucessão (cf. LOCKE, Ensaio, II, 14, 10).
3. Conceito dialético: fase ou determinação do devir dialético: p. ex., possibilidade e aci-dentalidade são
"os M. da realidade" (HEGEL, Ene, § 145); a condição, a coisa e a atividade são "os três M. da
necessidade" (HEGEL, ibid., § 148); o ser e o nada são "os M. do devir" (HEGEL, Wissenschaft derLogik, I,
I, seç. I, cap. I, C, nota 2; trad. it., vol. I, pp. 87 ss.), etc. Esse conceito de M. como fase dialética é o mais
comum na filosofia contemporânea.
4. Conceito lógico: fase ou estágio de uma demonstração ou de um raciocínio qualquer.
MÔNADA (lat. Monas; in. Monad; fr. Mo-nade, ai. Monade, it. Monadé). Por ter significado diferente de
Unidade (v.), esse termo designa uma unidade real inextensa, portanto espiritual. Giordano Bruno foi o
primeiro a empregar esse termo nesse sentido, concebendo a M. como o minimum, como unidade
indivisível que constitui o elemento de todas as coisas (Deminimo, 1591; De Monade, 159D- O termo foi
retomado no mesmo sentido pelos neo-platônicos ingleses, especialmente por H. More, que elaborou o
conceito das "M. físicas", inextensas, portanto espirituais, como componentes da natureza (Enchiridion
Metaphy-sicum, 1679, I, 9, 3). A partir de 1696, Leibniz lançou mão desse termo para designar a
substância espiritual enquanto componente simples do universo. Segundo Leibniz, a M. é um átomo
espiritual, uma substância desprovida de partes e de extensão, portanto indivisível. Como tal, não pode
desagregar-se e é eterna; só Deus pode criá-la ou anulá-la. Cada M. é diferente das outras, pois não
existem na nature-
MONADOLOGIA
681
MONOGENISMO
za dois seres perfeitamente iguais (v. IDENTIDADE DOS INDISCERNÍVEIS). Toda M. constitui um ponto de
vista sobre o mundo, sendo, portanto, todo o mundo de determinado ponto de vista (Monad., 1714, § 57).
As atividades fundamentais da M. são a percepção e a apetição, mas as M. têm infinitos graus de clareza e
distinção: as providas de memória constituem as almas dos animais, e as providas de razão constituem os
espíritos humanos. Mas a matéria também é constituída por M., ao menos a matéria segunda, já que a
matéria primeira é a simples potência passiva ou força inercial {Op., ed. Gerhardt, III, pp. 260-61). A
totalidade das M. é o universo. Deus é "a unidade primitiva ou substância simples originária; todas as M.,
criadas ou derivadas, são suas produções e nascem, por assim dizer, por fulguração contínua da
divindade, de momento em momento" {Monad., § 47).
As características dessa doutrina de Leibniz reaparecem sempre que os filósofos recorrem ao conceito de
M., e estão substancialmente presentes nas doutrinas metafísicas do espiritualismo contemporâneo.
Atente-se para o sabor leibniziano do seguinte trecho de Husserl: "A constituição do mundo objetivo
comporta essencialmente uma harmonia de M., mais precisamente uma constituição harmoniosa
particular em cada M. e, por conseguinte, uma gênese que se realiza harmoniosamente nas M.
particulares" {Cart Med., § 49) (v. ESPIRITUALISMO).
MONADOLOGIA (in. Monadology, fr. Mo-nadologie, ai. Monadologie, it. Monadologid). Este termo
serviu a Leibniz de título à breve exposição de seu sistema, composta a pedido do príncipe Eugênio de
Savóia, em 1714. O termo permaneceu para designar a doutrina das mônadas. Kant intitulou M.physica
um escrito de 1756. E o termo desde aquela época ocorre freqüentemente (cf. p. ex. RENOUVIER e PRAT,
Nouvelle monadologie, 1899).
MONARCÔMACO (in. Monarchomachist; fr. Monarchomachiste, ai. Monarchomache, it.
Monarcomacd). Foram assim chamados no séc. XVII os seguidores do direito natural que combatiam o
absolutismo monárquico. O nome ocorre pela primeira vez no título da obra do católico escocês
GUILHERME BARKLAY, De regno et regalipotestate adversus Buchananum, Bru-tum, Boucherium, et
reliquos monarchomachos, Paris, 1600.
MONARQUIA, V. GOVERNO, FORMAS DE.
MONARQUISMO. V. MODAUSMO.
MONÂSTICO. Viço chamou de filósofos Aí. ou solitários os estóicos e os epicuristas, porquanto
"querem o amortecimento dos sentidos" e "negam a providência: aqueles deixando-se arrastar pelo
destino, estes entregando-se ao acaso, e os segundos opinando que as almas humanas morrem com os
corpos". Aos filósofos M. Viço contrapôs os filósofos políticos, especialmente os platônicos, que convém
com os legisladores em admitir a providência e a imortalidade, além da moderação das paixões {Scienza
nuova, 1744, Degnità V).
MONERGISMO. V. SINERGISMO.
MONISMO (in. Monism; fr. Monisme, ai. Monismus; it. Monismó). Wolff chamava de "monistas" os
filósofos "que admitem um único gênero de substância" {Psychol. rationalis, § 32), compreendendo nessa
categoria tanto os materialistas quanto os idealistas. Porém, conquanto algumas vezes tenha sido usado
para designar estes últimos ou pelo menos algum aspecto de sua doutrina, esse termo foi constantemente
monopolizado pelos materialistas; quando usado sem adjetivo, designa o materialismo. Isso se deve
provavelmente ao fato de ter sido adotado por um dos mais populares autores de obras materialistas, o
biólogo Ernst Haeckel {Der Monismus ais Band zwischen Keligion und Wissenschaft, 1893). Nesse
sentido, o termo foi empregado no nome da Associação Monística Alemã {Deutsche Monistenbund),
fundada em 1906 por Haeckel e por Ostwald, bem como no título de uma das mais antigas revistas
filosóficas americanas, TheMonist, fundada em 1890 por Paul Carus.
MONOFILETISMO (in. Monophyletism; fr. Monophylétisme, ai. Monophyletismus; it. Mo-nofiletismó).
Doutrina para a qual todas as espécies vivas derivam de um único ramo originário. A doutrina contrária
chama-se polifi-letismo.
MONOFISISMO (in. Monophysism; fr. Mo-nophysisme, ai. Monophysismus; it. Mono-fisismo).
Interpretação herética do dogma cristão da Encarnação: o Verbo ou Cristo teria uma só natureza, a divina.
Essa interpretação foi sustentada no séc. V por Eutíquio, em oposição ao nestorianismo{v.), que
sustentava a heresia oposta; foi condenado pelo Concilio de Calce-dônia, de 451.
MONOGENISMO (in. Monogenism; fr. Mo-nogénisme, ai. Monogenismus-, it. Monogenis-
MONOPSIQUISMO
682
MORALIDADE
mo). Doutrina para a qual todas as raças humanas vivas descendem de um único ramo. A doutrina
contrária chama-se poligenismo.
MONOPSIQUISMO (in. Monopsychism; fr. Monopsychisme, ai. Monopsychismus-, it. Monopsichismó). Doutrina averroísta da unidade da alma intelectiva em todos os homens. V. INTELECTO
ATTVO.
MONOSSELOGISMO (in. Monosyllogism; fr. Monosyllogisme, ai. Monosyllogismus; it. Monosillogismó). Raciocínio constituído por um só silogismo, assim chamado em oposição a po-lissilogismo
(v.).
MONOTEÍSMO (in. Monotheism, fr. Mono-théisme, ai. Monotheismus; it. Monoteismó). Doutrina da
unicidade de Deus. V. DEUS, 3
a
, b.
MONOTELISMO (in. Monotheletism- fr. Monothélétisme, ai. Monotheletismus). Interpretação herética
do dogma da Encarnação, segundo a qual existe em Cristo uma única vontade, a divina, que constitui o
traço de união das duas naturezas que há nele, a divina e a humana. Essa heresia foi sustentada pelo
patriarca de Constantinopla, Sérgio, no séc. VI e condenada pelo VI Concilio ecumênico em 680.
MONTANISMO (in. Montanism; fr. Monta-nisme, ai. Montanismus, it. Montanismó). Seita religiosa
cristã do séc. II, assim chamada pelo nome de seu fundador Montano, ex-sacerdote de Cibele. Montano
pretendia transferir para o Cristianismo o culto entusiástico de sua seita de proveniência: os montanistas
viviam em contínua agitação à espera da eminente volta do Cristo. Tertuliano pertenceu por algum tempo
a essa seita.
MONTÃO, ARGUMENTO DO (gr. acopeÍTnç Kóyoc,; lat. Acervalis ratiocinatio; in. Soriete, fr.
Sorite, ai. Sorites; it. Argomento deWacervó). Com esse nome faz-se referência a duas argumentações,
uma de Zenão de Eléia, outra de Eubúlides de Mégara. O argumento de Zenão de Eléia dirige-se contra a
fidedignidade do conhecimento sensível e, em particular, do ouvido: se um alqueire de trigo faz barulho
ao cair, cada grão e cada partícula de grão deveria produzir um som ao cair, o que não ocorre (Diels, A
29). O argumento de Eubúlides, conhecido também como sorites (v.) de ccopóç = monte, consiste em
perguntar quantos grãos de trigo são necessários para formar um monte; bastaria só um grão? Bastariam
dois?, etc. Como é impossível determinar em que ponto começa um monte, aduz-se esse argumento
contra a pluralidade
das coisas (CÍCERO, Acad, II, 28, 92 ss.; 16, 49; DIÓG. L., VII, 82). O mesmo argumento foi às vezes
expresso de outra forma sob o nome de argumento do calvo (cf. DIÓG. L., II, 108) e consiste em perguntar
se um homem se torna calvo quando ser lhe arranca um fio de cabelo. E quando lhe arrancam dois? E
assim por diante.
MONUMENTAL, HISTÓRIA. V. ARQUEOLOGIA, HISTÓRIA.
MORAL1
(lat. Moralia; in. Morais; fr. Mo-rale, ai. Moral; it. Moralè). 1. O mesmo que Ética.
2. Objeto da ética, conduta dirigida ou disciplinada por normas, conjunto dos mores. Neste significado, a
palavra é usada nas seguintes expressões: "M. dos primitivos", "M. contemporânea", etc.
MORAL2
(gr.r|f>iKÓÇ; lat. Moralis; in. Moral; fr. Moral; ai. Moral; it. Moralè). Este adjetivo tem, em
primeiro lugar, os dois significados correspondentes aos do substantivo moral: 1Q atinente à doutrina ética,
2- atinente à conduta e, portanto, suscetível de avaliação M., especialmente de avaliação M. positiva.
Assim, não só se fala de atitude M. para indicar uma atitude moralmente valoravel, mas também coisas
positivamente valoráveis, ou seja, boas.
Em inglês, francês e italiano, esse adjetivo depois passou a ter o significado genérico de "espiritual", que
ainda conserva em certas expressões. Hegel lembrava este significado com referência ao francês (Ene, §
503); ele ainda persiste, p. ex., na expressão "ciências morais", que são as "ciências do espírito".
MORALIDADE (lat. Moralitas; in. Morality, fr. Moralité, ai. Moralitãt; it. Moralitã). Caráter do que se
conforma às normas morais. Kant contrapôs a M. à legalidade. A última é a simples concordância ou
discordância de uma ação em relação à lei moral, sem considerar o móvel da ação. A M., ao contrário,
consiste em assumir como móvel de ação a idéia de dever (Met. der Sitten, I, Intr., § 3; Crít. R. Pratica, I,
1, 3).
No sentido hegeliano, a M. distingue-se da eticidade (v.) por ser a "vontade subjetiva", ou seja, individual
e desprovida de bem, enquanto a eticidade é a realização do bem em instituições históricas que o
garantam (Ene, § 503; Fil. do dir., § 108). M. e eticidade estão entre si como o finito e o infinito: isso
significa que a eticidade é a "verdade" da M., do mesmo modo como o infinito o é do finito.
MORALISMO
683
MORTE
MORALISMO (in. Moralism-, fr. Moralisme, ai. Moralismus-, it. Moralismó). 1. Doutrina que vê na
atividade moral a chave para a interpretação de toda a realidade. Esse termo foi empregado nesse sentido
por Fichte, na exposição de Wissenschaftslehre de 1801 (§ 26 em Werke, II, p. 64), sendo retomado e
difundido pelos escritores franceses do fim do século passado. 2. Na linguagem comum e cada vez mais
na filosófica, esse termo designa a atitude de quem se compraz em moralizar sobre todas as coisas, sem
tentar compreender as situações sobre a qual expressa o juízo moral. Nesse sentido, o M. é um
formalismo ou conformismo moral que tem pouca substância humana. Cf. A. BANFI, "M. e moralidade",
Vuomo copemi-cano, 1950, pp. 279 ss.
MORFÉ INTENCIONAL (ai. Intentionale Morphè). Husserl designou desse modo o caráter intencional
dos dados hiléticos (v.) das vivências, vale dizer, os dados constituídos pelos conteúdos sensíveis ou por
atos emotivos ou volitivos. Nesse caso, "os dados sensíveis oferecem-se como matérias para formações
intencionais ou significações": p. ex., uma avaliação, uma volição, um ato de agrado têm significados
intencionais claros, além de serem dados hiléticos (Ideen, I, § 85).
MORTE (gr. 0ávcrtoç; lat. Mors-, in. Death; fr. Mort; ai. Tod; it. Morte). A M. pode ser considerada 1°
como falecimento, fato que ocorre na ordem das coisas naturais; 2a
em sua relação específica com a
existência humana.
I
a Como falecimento, a M. é um fato natural como todos os outros e não tem significado específico para o
homem. Existem procedimentos objetivos para a constatação ou verificação desse fato. Por exemplo:
chama-se um médico para constatar o falecimento de uma pessoa; nesse caso, o falecimento é um fato
atestável, de natureza biológica, que pode ter conseqüências determinadas, mas indiretas, para outras
pessoas. Sempre que se fala em M. nesse sentido, como fato natural constatável com procedimentos
apropriados, entende-se a M. como falecimento. O mesmo acontece quando se considera a M. como uma
condição da economia geral da natureza viva, ou da circulação da vida ou da matéria e assim por diante.
Nesse sentido, Marco Aurélio falava da igualdade dos homens perante a M.: "Alexandre da Macedônia e
seu arrieiro, mortos, reduziram-se à mesma coisa: ou ambos são reabsor-vidos nas razões seminais do
mundo ou ambos
são dispersos entre os átomos" {Recordações, VI, 24). No mesmo sentido, Shakespeare dizia: "Alexandre
morreu, Alexandre foi sepultado, Alexandre voltou ao pó. O pó é terra e com a terra se faz argila; por que
a argila em que ele se transformou não poderia vir a ser a tampa de um barril de cerveja?" (Hamlet, a. V,
cena I). Em todos esses casos entende-se por M. o falecimento do ser vivo, qualquer que seja, sem
referência específica ao ser humano. Perante a M. assim entendida, a única atitude filosófica possível é a
expressa por Epicuro: "Quando nós estamos, a M. não está; quando a M. está, nós não estamos" (DióG. L,
125). No mesmo sentido, Wittgenstein disse.- "A M. não é um acontecimento da vida: não se vive a M."
(Tractatus, 6.4311). E Sartre ressaltou a insigni-ficância da M.: "A M. é um fato puro, como o
nascimento; chega-nos do exterior e transforma-nos em exterioridade. No fundo, não se distingue de
modo algum do nascimento, e é a identidade entre nascimento e M. que chamamos de facticidade"
(L'êtreetle néant, 1955, p. 630). Entendida nesse sentido, a M. não concerne propriamente à existência
humana. O contraste entre a M. assim entendida e a M. como ameaça iminente sobre a existência
individual foi bem expresso por Léon Tolstoi no conto A M. de Ivan Iljitsch, no qual o protagonista, que
reconhece como certa e válida a idéia genérica da M., como falecimento, rebela-se contra a ameaça que a
M. faz pairar sobre ele.
2
a
Em sua relação específica com a existência humana, a M. pode ser entendida: a) como início de um
ciclo de vida; ti) como fim de um ciclo de vida; c) como possibilidade existencial.
a) A M. é entendida como início de um ciclo de vida por muitas doutrinas que admitem a imortalidade da
alma. Para elas, a M. é o que Platão chamava de "separação entre a alma e o corpo" (Fed., 64 c). Com
essa separação de fato, inicia-se o novo ciclo de vida da alma: seja ele entendido como reencarnaçâo da
alma em novo corpo, seja uma vida incorpórea. Plotino expressava essa concepção dizendo: "Se a vida e
a alma existem depois da M., a M. é um bem para a alma porque esta exerce melhor sua atividade sem o
corpo. E, se com a M. a alma passa a fazer parte da Alma Universal, que mal pode haver para ela?" (Enn.,
I, 7, 3). Idêntico conceito de M. reaparece sempre que se considera a vida do homem sobre a terra como
preparação ou aproximação de uma vida diferente, e quando se afirma a imortalida-
MORTE
684
MORTE
de impessoal da vida, como faz Schopenhauer; para ele a M. é comparável ao pôr-do-sol, que representa,
ao mesmo tempo, o nascer do sol em outro lugar (Die Welt, I, § 65).
ti) O conceito de M. como fim do ciclo de vida foi expresso de várias formas pelos filósofos. Marco
Aurélio considerava-a como repouso ou cessação das preocupações da vida: conceito que ocorre
freqüentemente nas considerações da sabedoria popular em torno da M. Marco Aurélio dizia: "Na M. está
o repouso dos contragolpes dos sentidos, dos movimentos impulsivos que nos arrastam para cá e para lá
como marionetas, das divagações de nossos raciocínios, dos cuidados que devemos ter para com o corpo"
(Recordações, VI, 28). Leibniz concebia o fim do ciclo vital como diminuição ou involução da vida: "Não
se pode falar de geração total ou de morte perfeita, entendida rigorosamente como separação da alma. O
que nós chamamos de geração sem desenvolvimentos e acréscimos, e o que chamamos de M. são
involuções e diminuições" (Monad., § 73). Em outros termos, com a M. a vida diminui e desce para um
nível inferior ao da apercepção ou consciência, para uma espécie de "aturdimen-to", mas não cessa
(Príncipes de Ia nature et de lagrâce, 1714, § 4). Por sua vez, Hegel considera a M. como o fim do ciclo
da existência individual ou finita, pela impossibilidade de adequar-se ao universal: "A inadequação do
animal à universalidade é sua doença original e germe inato da M. A negação desta inadequação é o
cumprimento de seu destino" (Ene, § 375). Finalmente, o conceito bíblico de M. como pena do pecado
original (Gen., II, 17; Rom., V, 12) é, ao mesmo tempo, conceito dela como conclusão do ciclo da vida
humana perfeita em Adão e o conceito de limitação fundamental imposta à vida humana a partir do
pecado de Adão. S. Tomás diz a respeito: "AM., a doença e qualquer defeito físico decorrem de um
defeito na sujeição do corpo à alma. E assim como a rebelião do apetite carnal contra o espírito é a pena
pelo pecado dos primeiros pais, também o são a M. e todos os outros defeitos físicos" (S. Th., II, 2, q. 164,
a. 1). Porém este segundo aspecto, típico da teologia cristã, pertence propriamente ao conceito de M.
como possibilidade existencial.
c) O conceito de M. como possibilidade existencial implica que a M. não é um acontecimento particular,
situável no início ou no término de um ciclo de vida do homem, mas uma
possibilidade sempre presente na vida humana, capaz de determinar as características fundamentais desta.
Na filosofia moderna, a chamada filosofia da vida, especialmente com Dilthey, levou à consideração da
M. nesse sentido: "A relação que caracteriza de modo mais profundo e geral o sentido de nosso ser é a
relação entre vida e M. porque a limitação da nossa existência pela M. é decisiva para a compreensão e a
avaliação da vida" (Das Erlebnis und dieDichtung, 5
a
ed., 1905, p. 230). A idéia importante aqui expressa
por Dilthey é que a M. constitui "uma limitação da existência", não enquanto término dela, mas enquanto
condição que acompanha todos os seus momentos. Essa concepção, que, de algum modo, reproduz no
plano filosófico a concepção de M. da teologia cristã, foi expressa por Jaspers com o conceito da
situação-limite como "situação decisiva, essencial, que está ligada à natureza humana enquanto tal e é
inevitavelmente dada com o ser finito" (Psychologie der Weltanschauungen, 1925, III, 2; trad. it., p. 266;
cf. Phil, II, pp. 220 ss.). Referindo-se a esses precedentes, Heidegger considerou a M. como possibilidade
existencial: "A M., como fim do ser-aí (Daseiri), é a sua possibilidade mais própria, incondicionada, certa
e, como tal, indeterminada e insuperável" (Sein undZeit, § 52). Sob este ponto de vista, de possibilidade,
"a M. nada oferece a realizar ao homem e nada que possa ser como realidade atual. Ela é a possibilidade
da impossibilidade de toda relação, de todo existir" (Ibid., § 53). E já que a M. pode ser compreendida só
como possibilidade, sua compreensão não é esperá-la nem fugir dela, "não pensar nela", mas a sua
antecipação emocional, a angústia (v.). A expressão usada por Heidegger ao definir a M. como
"possibilidade da impossibilidade" pode com razão parecer contraditória. Foi sugerida a Heidegger por
sua doutrina da impossibilidade radical da existência: a M. é a ameaça que tal impossibilidade faz pairar
sobre a existência. A prescindir dessa interpretação da existência em termos de necessidade negativa,
pode-se dizer que a M. é "a nulidade possível das possibilidades do homem e de toda a forma do homem"
(ABBAG-NANO, Struttura delVesistenza, 1939, § 98; cf. Possibilita e liberta, 1956, pp. 14 ss.). Já que toda
possibilidade, como possibilidade, pode não ser, a M. é a nulidade possível de cada uma e de todas as
possibilidades existenciais; nesse sentido, Merleau-Ponty diz que o sentido da M.
MOTIVAÇÃO 685 MÓVEL,
PRIMEIRO
é a "contingência do vivido", "a ameaça perpétua para os significados eternos em que este pensa
expressar-se por inteiro" (Structure du comportement, 1942, IV, II, § 4).
MOTIVAÇÃO (in. Motivation; fr. Motivation; ai. Motivation; it. Motivazioné). 1. Causalidade do
motivo. Schopenhauer foi o primeiro a distinguir nitidamente essa forma de causalidade das outras três,
que são: causalidade da causa, causalidade da razão e causalidade da razão de ser (Über die vierfache
Wurzel des Satzes vom zureichenden Grun-de, 1813, §§ 20, 29, 36). Schopenhauer diz.-A eficiência do
motivo vem a ser conhecida por nós não só exteriormente de modo me-diato, como a de todas as outras
causas, mas também interiormente, de modo imediato. (...) Daí resulta a importante proposição: a M. é a
causalidade vista do interiormente. (...) É preciso, portanto, propor a M. como uma força especial do
princípio de razão suficiente do agir, ou seja, como lei da M." ( Vierfache Wurzel, 5 43). Mesmo sem o
caráter privilegiado de revelação imediata do modo de agir intrínseco da causalidade, que Schopenhauer
lhe atribuía, a M. continuou indicando a ação determinante do motivo, sejam quais forem os limites
impostos a tal determinação. Os problemas da M. são, por um lado, de natureza psicológica e concernem
ao modo de agir dos motivos, passível de observação pelos instrumentos de que a psicologia dispõe; e,
por outro lado, são de natureza filosófica, porquanto dizem respeito aos limites ou às modalidades de
determinação, portanto à liberdade e ao determinismo (v.).
2. Husserl chamou de M. as conexões da experiência que condicionam a possibilidade de experimentação
ulterior: "Experimentabilidade não significa possibilidade lógica, vazia, mas possibilidade motivada pela
conexão da experiência. Esta é uma cadeia contínua de M., que assume sempre novas M. e transforma as
já formadas" (Ideen, I § 47).
MOTIVO (in. Motive, fr. Motif; ai. Motiv, it. Motivo). Causa ou condição de uma escolha, ou seja, de
uma volição ou de uma ação. O M. pode ser mais ou menos claramente reconhecido por aquele sobre
quem age: chama-se algumas vezes de móbil ou móvel (fr. Mobile, ai. Triebfeder) o M. que não tem
caráter "racional", que não pode ser considerado uma "razão" da escolha.
Já Aristóteles dissera: "Visto que há três coisas: primeiro, o motor, segundo, aquilo com que move, e
terceiro, o que é movido, tem-se que o motor imóvel é o bem prático, o motor que também é movido é a
faculdade apeti-tiva, e o que é movido é o animal" {Dean., III, 10, 433 b 14). O M. é aqui entendido como
um motor único e imutável que é o bem, o fim ao qual tende a vida do animal. Mas no mundo moderno
não se fala mais de motor nesse sentido, mas de M. Wolff interpretava esse termo como "a razão
suficiente da volição ou da nolição" (Psychol. empifica, § 887), definição que — pode-se dizer — não
sofreu modificações, a não ser no que se refere à diferença no grau de determinação atribuído ao M. O
problema desses diferentes graus de determinação é o problema da liberdade (v.). Por outro lado, a
importância do conceito de M. para a explicação da conduta humana foi algumas vezes posta em dúvida
na filosofia contemporânea. Dewey, p. ex., afirmou que "todo o conceito de M. na verdade é
extrapsicológico". Nenhuma pessoa de bom senso atribui M. aos atos de um animal ou de um idiota, e é
absurdo perguntar o que induz um homem à atividade. "Mas quando precisamos conduzi-lo a agir de um
modo específico e não de outro, quando queremos dirigir sua atividade para uma direção específica, então
a questão do M. é pertinente. O M. é então o elemento do conjunto total da atividade humana que, se
suficientemente estimulado, dará lugar a um ato que tem conseqüências específicas." Em outras palavras,
menos que fator de explicação da conduta humana, o M. é instrumento para sua orientação (Human
Nature and Conduct, pp. 199-20).
MOTOR. V. DEUS, PROVAS DE; MOVIMENTO.
MÓVEL, PRIMEIRO (gr. rcpwTov KIVT|TÓV; lat. Primum mobile, in. First mobile, fr. Premier mobile,
ai. Primüre Bewegliches-, it. Primo mobile). Aristóteles deu esse nome ao primeiro céu, ao qual o
movimento é comunicado diretamente pelo Primeiro Motor ou motor imóvel, sendo, pois, tão simples,
ingerado e incorruptível quanto o Primeiro Motor {De cael, II, 6, 288 a 14 ss.). O próprio Aristóteles
compara a faculdade apetitiva da alma ao primeiro M., assim como comparou o bem ao motor imóvel
(De an., III, 10, 433 b 14). O primeiro M. é o céu que Dante chama de "cristalino", ou seja, diáfano ou
transparente, além do qual admite o céu empíreo ou sede dos bem-aventurados (Conv., II, 4; Par, 30,
107).
MOVIMENTO
686
MULTIPLICIDADE
MOVIMENTO (gr. KÍvr|cn.ç; lat. Motus, in. Motion; fr. Mouvement; ai. Bewegung; it. Movimento). 1.
Em geral, mudança ou processo de qualquer espécie. Esse significado corresponde ao do termo grego.
Platão distinguia duas espécies de M.: alteração e translação (Teet., 181 d); Aristóteles distinguia quatro.-
além dos dois acima, o M. substancial (geração e corrupção) e o M. quantitativo (aumento e diminuição)
(Fís., III, 1, 201 a 10). Para as espécies particulares do M., v. os verbetes relativos.
O M. em geral foi definido por Aristóteles como "a enteléquia daquilo que está em potência" (Fís., III, 1,
201 a 10): definição que permaneceu célebre durante séculos. Significa que M. é a realização do que está
em potência: p. ex., a construção, a aprendizagem, a cura, o crescimento, o envelhecimento são
realizações de potencialidades (Ibid., 201 a 16). No M. assim entendido a parte fundamental é a do motor,
com cujo contato é gerado o M. "Qualquer que seja o motor" — diz Aristóteles — "ele sempre trará uma
forma (substância particular, qualidade ou quantidade) que será principio e causa do M., quando o motor
mover, do mesmo modo como, no homem, a enteléquia faz o homem do homem em potência" (Ibid., III,
2, 202 a 8). A física aristotélica é, do princípio ao fim, uma teoria do M. nesse sentido (v. FÍSICA). Seu
teore-ma fundamental, "tudo o que se move é movido por alguma coisa" (Ibid., VII, 1, 256 a 14), leva à
teoria do Primeiro Motor imóvel do universo (v. DEUS, PROVAS DE).
2. Em sentido específico, M. local ou translação. Aristóteles afirma a prioridade desse M. sobre os outros
três, que podem ser reduzidos a este último, único que pode pertencer às coisas eternas, aos astros (Fis.,
VIII, 7, 260 b). Segundo Aristóteles, as espécies do M. local caracterizam os elementos do universo,
inclusive o que constitui as substâncias celestes, ou seja, o éter que se move em M. circular (v. FÍSICA).
Essa doutrina do M. permaneceu inalterada muito tempo porque toda a filosofia antiga e medieval
repetiu-a sem modificações substanciais. Uma teoria do M. que teve êxito no último período da
Escolástica foi a da forma fluente, elaborada por Duns Scot. Segundo Duns Scot, um corpo que se move
adquire alguma coisa: a todo instante não o lugar, que não é um atributo seu, residindo nos corpos que o
circundam, mas uma espécie de determinação qualitativa, análoga ao calor adquirido pelo corpo que se
aquece. Essa determinação é o
onde (ubi). O M., portanto, é a perda ou a aquisição contínua do onde e nesse sentido é uma "forma
fluente" (Quodl, q. 11, a. 1). Essa doutrina foi criticada pela Escolástica dos fins dos sécs. XIII e XIV.
Ockham submeteu-a a crítica radical, considerando o M. como a mudança de relação de um corpo com os
corpos que o circundam (Quodl., VII, q. 6). Este era o conceito que a ciência deveria fazer prevalecer na
Idade Moderna. Descartes expressou-o do seguinte modo: "M. é o transporte de uma parte da matéria ou
de um corpo da proximidade dos corpos que o tocam imediatamente, e que consideramos em repouso,
para a proximidade de outros corpos" (Princ.phil, II, 25). Sobre o conceito do M. na ciência
contemporânea, v. RELATIVIDADE.
MUDANÇA (in. Change, fr. Changement; ai. Verãnderung; it. Mutamento). 1. O mesmo que movimento,
1 (v.).
2. O-mesmo que alteração (v).
MULTIPLICAÇÃO LÓGICA (in. Logical multiplication; fr. Multiplication logigue, ai. Logische
Multiplikation; it. MoltepHcazione lógica). Na Álgebra da Lógica (v.) chama-se assim a operação "a . ti\
que apresenta propriedades formais análogas às da M. aritmética (é importantíssima a exceção "a. a =
a"). Interpretada como operação entre classes, "a . tf' passa a formar a classe que contém todos os
elementos comuns às classes a e b e apenas eles. Interpretada como operação entre proposições, "a . b"
indica sua afirmação conjuntiva, simultânea ("a e b"). G. P.
MULTIPLICIDADE (gr. xà noXká; in. Mul-tiplicity, fr. Multiplicité, ai. Mannigfaltigkeit; it.
Molteplicita). O que é múltiplo e variado: "muitos" em contraposição a "um", sobre os quais versavam de
preferência as discussões dialéticas do séc. IV a.C, segundo relato de Platão (Fil, 14 d). O próprio Platão
estabeleceu o conceito autêntico de múltiplo, que não é de dispersão ilimitada, mas de número; este, como
dizia Platão, é ao mesmo tempo um e muitos porque é a ordem de uma M. determinada (Fil, 18 a-b) (v.
NÚMERO). O sentido dessa palavra voltou a ser de dispersão desordenada em alguns filósofos modernos,
como p. ex. no uso que Kant faz dela como "matéria" do conhecimento, ou seja, do conteúdo sensível em
seu estado desorganizado ou bruto, independentemente da ordem e da unidade que ele receba das formas
a priori da sensibilidade e do intelecto (Crít. R. Pura, § 1).
MUNDANO
687
MUNDO
MUNDANO (gr. KOCUIKÓÇ; in. Worldly, Mundane, fr. Mondam; ai. Weltlich; it. Mon-danò). Este
adjetivo é empregado quase exclusivamente em correspondência com o significado ie) de mundo; designa
o que pertence ao campo de atividades, interesses ou comportamentos não pertencentes à vida religiosa e
algumas vezes em antagonismo com ela. Em tal sentido, fala-se em "sabedoria M.," ou "ciência M." para
designar conhecimentos ou atitudes que nada têm a ver com as preocupações religiosas. A este significado
geral se refere o significado mais restrito do termo, segundo o qual é "M." o que pertence à vida
requintada ou aos hábitos do "mundo elegante", ou seja, das classes privilegiadas. O substantivo
mundanida-de tem também os dois significados acima expostos.
MUNDO (gr. KÓOUOÇ; lat. Mundus; in. World, fr. Monde, ai. Welt; it. Mondo). Por este termo pode-se
entender: d) a totalidade das coisas existentes [qualquer que seja o significado de existência (v.)], e neste
sentido essa palavra é empregada sem adjetivos; b) a totalidade de um campo ou mais de investigação,
atividade ou relações, como quando se diz "M. físico", "M. histórico", "M. artístico" ou "M. dos
negócios", bem como "M. sensível" (captável pelos órgãos dos sentidos) ou "M. intelectual" (captável
com instrumentos intelectuais); neste sentido, fala-se também em "M. ambiente" para indicar o conjunto
das relações de um ser vivo com as coisas que o circundam ou a situação em que se encontra, mas a
palavra não tem significado diferente de ambiente (v.); c) a totalidade de uma cultura, como quando se diz
"M. antigo", "M. moderno", "M. primitivo" ou "M. civilizado"; d) uma totalidade geográfica, como
quando se diz "Novo M.", para designar a América, ou "Velho M.", para designar o "continente antigo";
é) a totalidade daquilo que é estranho à religião; neste sentido, essa palavra é constantemente empregada
no Novo Testamento (Matth., 4, 8; XVI, IG-Joann., I, 10; VII, 7; XII, 31; etc), e a "sabedoria do M." é
contraposta, como insensatez, à sabedoria de Deus {ICor, I, 20). A noção de M. neste último sentido é
comum a todos os escritores cristãos; faz-se referência a ela quando se dá o nome de "sábios do M." a
quem "utiliza a razão natural", como faz Ockham (.Summa log., III, 1).
Destes significados, os mais especificamente filosóficos são os dois primeiros, que se refletem em todos
os outros. O significado (d) é puramente amplificativo ou retórico; o significado (e) é puramente religioso. Assim, é possível distinguir
três conceitos fundamentais de M.: 1Q M. como ordem total; 2- M. como totalidade absoluta; 3Q
M. como
totalidade de campo. Os significados 1B
e 2° são articulações do significado ia); o significado 3B
é o
significado (b).
I
2 Diz-se que Pitágoras foi o primeiro a chamar o M. de cosmo, para ressaltar sua ordem (J. STOBEO, Ecl,
21, 450; Fr. 21, Diels); o certo é que essa é a interpretação desse conceito que prevalece na filosofia
grega. É aceita por Platão (Górg., 508 a). Aristóteles, que faz a distinção entre o todo (TÒ rcãv), cujas
partes podem dis-por-se de maneiras diferentes, e a totalidade (TÒ bXov), cujas partes têm posições fixas
(Met., V, 26, 1024 a 1), diz a propósito do M.: "Se a totalidade do corpo, que é um contínuo, está ora
numa ordem ou numa disposição, ora em outra, e se a constituição da totalidade é um M. ou um céu,
então não será o M. que se gera e se destrói, mas apenas suas disposições" {De cael, I, 10, 280 a 19).
Aristóteles pretende dizer neste trecho que o M. é a constituição (ou estrutura) da totalidade (sua ordem) e
que tal constituição ou estrutura permanece a mesma a menos que suas partes se disponham
diferentemente. Isso eqüivale a definir o M. como a ordem imutável do universo. Analogamente, os
estóicos faziam a distinção entre universo (TÒ TOXV) como totalidade de todas as coisas existentes,
inclusive o vácuo, e M., considerado como "o sistema do céu e da terra e dos seres que estão neles" e
nesse sentido o M. é Deus (J. STOBEO, Ecl, I, 421, 42 ss.). Esta interpretação do M. prevaleceu na
Antigüidade e foi adotada pela filosofia cristã que nela encontrava um ponto de partida oportuno para as
demonstrações da existência de Deus (cf., p. ex., AGOSTINHO, De ordine, I, 2). Entrou em crise só quando
a noção de ordem começou a incorporar-se à de natureza, mais que à de M.: o conceito de totalidade
passou a ter primazia.
2- Os primeiros a expor o conceito de M. como totalidade que abarca todas as coisas foram os epicuristas.
Epicuro dizia: "O M. é a circunferência do céu que abrange os astros, a terra e todos os fenômenos"
(DIÓG., L., X, 88). Mas foi só na filosofia moderna que esse conceito prevaleceu, superando
completamente o mais antigo, de M. como ordem. Leibniz diz: "Chamo de M. toda a série e toda a
coleção de todas as coisas existentes, para que não se diga que podem existir vários M. em diferentes tem-
MUNDO
688
MUNDO
pos e lugares. De fato, seria preciso contá-los todos juntos como um só M. ou, se preferis, como um só
universo" (Jhéod., I, § 8). Desse ponto de vista, o M. é "o conjunto total das coisas contingentes" (Jbid., I,
§ 7); a elaboração posterior desse conceito insistiu especialmente nesse conceito de totalidade absoluta.
Portanto, as noções de universo e de M., que os antigos tendiam a distinguir, são consideradas
coincidentes. Wolff diz: "A série dos entes finitos, tanto simultâneos quanto sucessivos, mas, interconexos, é chamada de M. ou também de universo" (Cosm., § 48). Baumgarten esclarece melhor o
sentido de totalidade absoluta, afirmando que ela não pode ser parte de outra totalidade: "O M. é a série (a
multidão, a totalidade) dos finitos reais que não é parte de outra série" (Met., § 354). Essa determinação é
repetida por Crusius: "O M. é um concatenamento real de coisas finitas, de tal modo que não é parte de
outro, ao qual pertença em virtude de um concatenamento real" (Entwurf der not-ivendigen VernunftWahrheiten, 1745, § 350). E este o conceito criticado na dialética transcendental de Kant.
Kant observava que a palavra M., "no sentido transcendental de totalidade absoluta do conjunto das
coisas existentes", indica uma totalidade incondicionada porque deve incluir todas as condições da série
(Crít. R. Pura, Antinomia da razão pura, seç. 1). Isso supõe que o regresso do condicionado à condição,
que pode prosseguir infinitamente, seja esgotado e cumprido até compreender todas as condições; e como
a totalidade das condições é o incondicionado, a completitude do regresso eqüivaleria à compreensão do
incondicionado. Mas é precisamente aí que, segundo Kant, está o erro dialético incluído no conceito de
M., visto assumir-se o condicionado em dois sentidos: no sentido de conceito intelectual aplicado a
simples fenômenos e no sentido transcendental de categoria pura. Em outras palavras, da exigência de
condição sempre nova {empírica) na série dos fenômenos passa-se à exigência da totalidade das
condições, que é o incondicionado ou M., não mais empírico (Jbid., seç. 7). Portanto, não é de
surpreender que a noção de M., fundada como está num procedimento sofistico, dê lugar a antinomias
insolúveis que dizem respeito à finitude ou à infinidade do M., a seu início ou não no tempo, à existência
nele ou não de partes simples e à presença ou ausência de liberdade (v. ANTINOMIAS KANTIANAS). Segundo Kant, só se chega à solução de tais antinomias renunciando-se à noção de M. ou
considerando tal noção simplesmente como uma regra do conhecimento empírico, mais precisamente a
que "exige o regresso na série das condições dos dados fenomênicos, regresso no qual nunca seja possível
deter-se em algo absolutamente incondicionado" (Jbid., seç. 8). Desse ponto de vista, o M. não é uma
realidade, mas "um princípio regulador da razão".
Pode-se dizer que essa crítica de Kant foi decisiva. É bem verdade que tem sido esquecida não só pelas
doutrinas que constituem resquícios da metafísica teológica, mas também pelas doutrinas cosmológicas
modernas, que se dizem "científicas" e especulam sobre o M. e sua criação (v. COSMOLOGIA). Mas
também é verdade que essas doutrinas logo se chocam com antinomias insolúveis, que reproduzem as
kantianas, assim que recorrem ao conceito do M. como totalidade absoluta. Na realidade aquilo de que a
ciência pode falar é apenas o M. observável, entendido como "o mais abrangente conjunto de objetos
astronômicos que possa ser identificado com a ajuda dos instrumentos disponíveis em dada época" (M. K.
MUNITZ, Space, Time and Creation, 1957, p. 93). Mas neste sentido o M. é uma totalidade de campo, não
uma totalidade absoluta.
3
S
A terceira interpretação do conceito de M., que está de acordo com a crítica kantiana, identifica-se com
a que enunciamos como significado (b): o M. é a totalidade de um campo ou de vários campos de
atividade, investigação ou relações. Desse ponto de vista, a palavra M., sem adjetivos, não designa uma
totalidade absoluta, mas simplesmente o conjunto de um campo específico estudado pelo astrônomo ou
pelo cosmologista. Nesse sentido, a palavra é perfeitamente análoga àquilo que a "matéria" é para o físico
ou a "vida" é para o biólogo: indica um campo genérico, determinado pela convergência ou pela
sobreposição de determinado grupo de técnicas de pesquisa (M. K. MUNITZ, op. cit., p. 69). Em geral,
desse ponto de vista, pode-se dizer que a noção designa "um conjunto de campos definidos por técnicas
relativamente compatíveis e em alguma medida convergentes. Podemos assim falar de 'M. natural', como
conjunto de campos cobertos pelas ciências naturais, na medida em que suas técnicas são relativamente
compatíveis e convergentes; ou de 'M. histórico', como conjunto de campos em que podem ser
empregadas as
MUNDO DA VIDA 689
MÚSICA
técnicas da investigação historiográfica, etc." (ABBAGNANO, Possibilita e liberta, 1956, pp. 154-55).
A esta mesma noção está ligada a de Hei-degger, aceita pela filosofia existencialista, de M. como campo
constituído pelas relações do homem com as coisas e com os outros homens. Heidegger diz: "É tão
errôneo utilizar a palavra M. para designar a totalidade das coisas naturais (conceito do M. naturalista)
quanto para indicar a comunidade dos homens (conceito personalista). O que de metafisicamente
essencial contém o significado mais ou menos claro de M. é que este visa à interpretação do Dasein
humano em seu relacionar-se com o ente em seu conjunto" (Vom Wesen des Grandes, 1929, I; trad. it., p.
53). Obviamente, desse ponto de vista, a palavra M. faz parte integrante da expressão "ser-no-M.", que
designa o modo de ser do homem "situado no meio do ente e re-lacionando-se com ele", ou seja, em
relação essencial com as coisas e com os outros homens. Nesse caso, M. significa o conjunto de relações
entre o homem e os outros seres: a totalidade de um campo de relações (v. TODO; UNIVERSO).
MUNDO DA VIDA (ai. Lebenswelí). Termo introduzido por Husserl em Krisis, para designar "o mundo
em que vivemos intuitivamente, com suas realidades, do modo como se dão, primeiramente na
experiência simples e depois também nos modos em que sua validade se torna oscilante (oscilante entre
ser e aparência, etc.)" (Krisis, § 44). Husserl contrapõe esse mundo ao mundo da ciência, considerado
como um "hábito simbólico" que "representa" o mundo da vida, mas encontra lugar nele, que é "um
mundo para todos" (Ibid., Beilage, XIX). MUNDO EXTERIOR. V. REALIDADE. MUNDO MORAL (ai.
Moralische Welt). Esse é o nome dado por Kant à "simples idéia" (que, como tal, é desprovida de
realidade) de "um mundo conforme a todas as leis morais", idéia que só tem significado prático como
guia da ação humana (Crit. R. Pura, Doutrina do método, cap. 2, seç. 2).
MÚSICA (gr. Liownicri xé^vr); lat. Musica; in. Music; fr. Musique, ai. Musik, it. Musica). Duas são as
definições filosóficas fundamentais dadas da M. A primeira considera-a como revelação de uma realidade
privilegiada e divina ao homem: revelação que pode assumir a forma do conhecimento ou do sentimento.
A segunda considera-a como uma técnica ou um
conjunto de técnicas expressivas que concernem à sintaxe dos sons.
I
a A primeira concepção, que passa por ser a única "filosófica", mas que na verdade é metafísica ou
teologizante, consiste em considerar a M. como ciência ou arte privilegiada, porquanto seu objeto é a
realidade suprema, divina, ou alguma de suas características fundamentais. Nessa concepção é possível
distinguir duas fases: d) para a primeira, o objeto da M. é a harmonia como característica divina do
universo; portanto, considera a M. como uma das ciências supremas; b) para a segunda, o objeto da M. é
o princípio cósmico (Deus, Razão Auto-consciente ou Vontade Infinita, etc), e a M. é a auto-revelação
desse princípio na forma de sentimento. Ambas as concepções têm uma característica fundamental em
comum: a separação entre M., como arte "pura", e as técnicas em que esta se realiza. Platão reprova os
músicos que procuram novos acordes nos instrumentos (Rep., VII, 531 b); o mesmo faz Plotino.
Schopenhauer e Hegel falam em "essência" da M., de sua natureza universal e eterna, porquanto é
separável dos meios expressivos nos quais ganha corpo como fenômeno artístico.
d) A doutrina da M. como ciência da harmonia e de harmonia como ordem divina do cosmos nasceu com
os pitagóricos. "Os pitagó-ricos, que Platão freqüentemente segue, dizem que a M. é harmonia dos
contrários, unificação dos muitos e acordo dos discordantes" (FILO-LAU, Fr. 10, Diels). A função e os
caracteres da harmonia musical são idênticos à função e aos caracteres da harmonia cósmica: a M. é,
portanto, o meio direto para elevar-se ao conhecimento dessa harmonia. Entre as ciências propedêuticas,
Platão punha a M. em quarto lugar (depois da aritmética, da geometria plana e sólida e da astronomia),
considerando-a a mais próxima da dialética e a mais filosófica (Fed., 61 a). Contudo, para Platão, como
ciência autêntica, a M. não consiste em procurar com o ouvido novos acordes nos instrumentos: desse
modo, as orelhas seriam mais importantes que a inteligência (Rep., VII, 531 a).As pessoas que agem
desse modo "comportam-se como os astrônomos, pois procuram os números nos acordes acessíveis ao
ouvido, mas não chegam até os problemas, não indagam quais números são harmoniosos, quais não são e
de onde vem sua diferença" (Ibid., VII, 531 b-c). Por essa possibilidade de passar dos ritmos sensíveis à
harmonia inteligível, Plotino considera a M.
MÚSICA
690
MÚSICA
como um dos caminhos para ascender até Deus: "Depois das sonoridades, dos ritmos e das figuras
perceptíveis pelos sentidos, o músico deve prescindir da matéria na qual se realizam os acordes e as
proporções, e atingir a beleza deles por eles. Deve aprender que as coisas que o exaltavam são entidades
inteligíveis; isto é harmonia: a beleza que nela se encontra é absoluta, não particular. Por isso, deve
utilizar raciocínios filosóficos que o levem a crer em coisas que tem em si, sem saber" (Enn., I, 3, 1).
Foram essas considerações que levaram a incluir a M. no rol das "artes liberais", consideradas
fundamentais em toda a Idade Média. S. Agostinho expõe a transição da M. da fase da sensibilidade, na
qual ela cuida dos sons, para a fase da razão, em que se torna contemplação da harmonia divina: "A razão
compreendeu que neste grau, tanto no ritmo quanto na harmonia, os números reinam e conduzem tudo à
perfeição; observou então com a máxima diligência a que natureza pertenciam e descobriu que eram
divinos e eternos, porque com eles tinham sido ordenadas todas as coisas supremas" (Deordine, II, 14).
Em Nozze di Mercúrio e delia filologia, Marciano Capella, em meados do séc. V, incluía a M. entre as
artes liberais (reduzidas a sete), e com isso ela passava a ser um dos pilares da educação medieval. Alguns
séculos depois, Dante comparava a M. ao planeta Marte, pois, como ele, é "a mais bela relação" porque
está no centro dos outros planetas, e o mais caloroso porque seu calor é semelhante ao do fogo; assim é a
M.: "relativa, como se vê nas palavras harmonizadas e nos cantos, cuja harmonia é tão mais doce quanto
mais bela é a relação"; ela "atrai para si os espíritos humanos, que são principalmente como vapores do
coração, pois quase cessam suas operações" (Conv., II, 14). O que Dante chama de "relação" é a harmonia
de que falavam os antigos; o caráter cósmico da M. é expresso na sua comparação com um dos maiores
astros do universo.
b) A doutrina da M. como auto-revelação do Princípio Cósmico tende a privilegiar a M. acima de todas as
outras artes ou ciências e a vê-la como a via de acesso mais direta ao Absoluto. Estas são as
características da concepção romântica, cuja melhor expressão se encontra na teoria de Schopenhauer.
Segundo ele, enquanto a arte em geral é a objetivação da vontade de viver (que é o princípio cósmico
infinito) em tipos-ou formas universais (as Idéias platônicas), que cada arte reproduz à sua maneira, a M. é revelação imediata ou direta dessa mesma vontade de
viver. "A M." — diz ele — "é objetivação e imagem da Vontade tão direta quanto o mundo, ou melhor,
quanto as Idéias, cujo fenômeno multiplicado constitui o mundo dos objetos particulares. A M. não é,
portanto, como as outras artes, a imagem das idéias, mas a imagem da própria Vontade, da qual as idéias
também são objetividade. Por isso, o efeito da M. é mais potente e insinuante que o das outras artes, visto
que estas nos dão apenas o reflexo, ao passo que aquela nos dá a essência" (Die Welt, 1819, I, § 52). A
doutrina de Hegel coincide com essa exaltação da M., mas acrescenta a importante determinação de que a
M. é a expressão do absoluto na forma do sentimento (Gemüttí). Hegel diz: "A M. constitui o ponto
central da representação que expressa o subjetivo como tal, tanto em relação ao conteúdo quanto em
relação à forma, pois participa da interioridade e permanece subjetiva mesmo em sua objetividade." Em
outras palavras, ao contrário das artes figurativas, ela não permite que a exteriorização fique livre para
desenvolver-se por si mesma e chegar à existência autônoma, "mas supera a objetivação externa e não se
imobiliza nela, até transformá-la em algo de externo que tenha existência independente de nós"
(Vorlesungen über die Âsthetik, ed. Glockner, III, p. 127). Isso quer dizer que na M., ao contrário das
outras artes, a forma sensível em que a Idéia se manifesta e exprime é inteiramente superada como tal e
resolvida em pura interioridade, em puro sentimento.
Desse ponto de vista, Hegel diz que o sentimento é a forma da M.: "O papel fundamental da M. não
consiste em fazer ressoar a própria objetividade, mas, ao contrário, as formas e os modos nos quais a
subjetividade mais íntima do eu e alma ideal se movem em si mesmas" (Ibid., p. 129). Com o
reconhecimento do sentimento como forma própria da M. e como justificação da superioridade desta, a
teoria romântica encontrou expressão definitiva. A radicalização dessa expressão acha-se na teoria de
Kierkegaard, de que a M. "encontra seu objeto absoluto na genialidade erótico-sensual" (Aut Aut, "As
etapas eróticas", etc; trad. fr., Prior e Guignot, p. 54). A definição de M. como arte de expressar "os
sentimentos" ou "as paixões" através dos sons foi repetida infinitas vezes, chegando-se a esquecer o
sentido de suas implicações teóricas. Foi assumida como uma
MÚSICA
691
MUSICA
definição objetiva ou científica da M. (cf. HANSLICK, Vom Musikalisch-Shónen, 1854, a nota final do cap.
1), e nela se inspirou a obra de Wagner, que de fato compartilhava a filosofia de Schopenhauer sobre M.
Nietzsche, na juventude, adotou essa concepção, dela se desligando a partir de 1878 (com Humano,
demasiado humano), quando começou a entrever na obra de Wagner, que se orientava nos-talgicamente
para o Cristianismo, o abandono dos valores vitais da Antigüidade clássica e um espírito de renúncia e
resignação. Mas nem mesmo Nietzsche se afastou realmente do conceito romântico de M. Seu ideal de M.
"meridional" (como a de Bizet) conserva ainda a característica romântica de expressão de sentimentos,
ainda que de um sentimento situado "além do bem e do mal". De fato, escreveu: "Meu ideal seria uma M.
cujo maior fascínio consistisse na ignorância do bem e do mal, uma M. que no máximo vibrasse por
alguma nostalgia de marinheiro, por alguma sombra dourada, por alguma lembrança terna; uma arte que
absorvesse em si, com grande distância, todas as cores de um mundo moral no crepúsculo, um mundo
quase incompreensível, e que fosse suficientemente hospitaleira e profunda para acolher em si os últimos
fugitivos" (Jenseits von Gut und Bóse, § 255). Ainda hoje se recorre freqüentemente à definição de M.
como expressão de sentimentos ou pelo menos isso é pressuposto como coisa óbvia e certa (cf. p. ex.,
DEWEY, Art asExperience, cap. 10; trad. it., pp. 278 ss.). Na Itália, isso foi reforçado pela doutrina
crociana da arte como expressão de sentimentos, mas, obviamente, essa doutrina nada mais é que a
generalização, para todo o domínio da arte, da definição romântica de M. Esta definição ainda se
materializa freqüentemente na figura do músico, considerado como sacerdote ou profeta que sabe ouvir a
voz do Absoluto e traduzi-la para a linguagem sonora do sentimento. Ainda hoje raramente se renuncia a
almejar essa representação romântica da M., graças à qual os ouvintes da M. sentem-se arrebatados num
horizonte místico, onde os acordes musicais são palavras de uma divindade oculta.
2
a
A característica da segunda concepção fundamental da M. é a identidade, que ela implica, entre a M. e
suas técnicas. Tal identidade foi claramente expressada por Aristóteles, ao reconhecer a multiplicidade das
técnicas musicais: "A M. não deve ser praticada por um único tipo de benefício que dela possa resultar, mas para usos múltiplos, pois pode servir para a educação,
para a catarse e, em terceiro lugar, para o repouso, o alívio da alma e a suspensão de todos os afãs. Disso
resulta que é preciso fazer uso de todas as harmonias, mas não de todas no mesmo modo, empregando
para a educação as que têm maior conteúdo moral, e para outras finalidades as que incitam à ação ou
inspiram à comoção" (Pol, VIII, 7, 1341 b 30 ss.). Essas considerações, que, em sua aparente
simplicidade, parecem excluir a interpretação filosófica da M., na realidade expressam o conceito de que
a M. é um conjunto de técnicas expressivas que têm objetivos ou usos diversos e que podem ser
indefinida e oportunamente variadas. Na realidade, esse conceito é o único que ajudou e sustentou o
desenvolvimento da arte musical. Retornou no Renascimento, sendo assim expresso por Vicente Galilei:
"O uso da M. foi introduzido pelos homens para o respeito e o fim indicado de comum acordo pelos
sábios; de outra coisa não nasceu senão, principalmente, da necessidade de expressar com mais eficácia
os conceitos do espírito deles ao celebrarem os louvores a Deus, aos gênios e aos heróis, como se pode
em parte compreender nos cantochãos e cantos eclesiásticos, origem desta nossa (M.) a várias vozes, e
imprimi-los, a seguir, com idêntica força nas mentes dos mortais, para a utilidade e a comodidade deles"
(Dialogo delia M. antica e delia moderna, 1581, ed. Fano, 1947, pp. 95-96). Nestas palavras de Galilei
também se reconhece claramente o caráter expressivo das técnicas musicais: caráter que faz da M. uma
arte no sentido moderno do termo (v. ESTÉTICA). O conceito de técnica expressiva é apresentado por Kant
com a noção de "belo jogo de sensações", que ele utiliza para definir a M. e a técnica das cores. Kant
observa que "não se pode saber com certeza se uma cor e um som são simples sensações agradáveis ou se
já são, em si mesmos, um belo jogo de sensações e, portanto, contêm, enquanto jogo, um prazer que
decorre da forma deles no juízo estético". Alguns fatos, especialmente a falta de sensibilidade artística em
alguns homens e a excelência dessa sensibilidade em outros, convencem a considerar que as sensações
dos dois sentidos, visão e audição, não são simples impressões sensíveis, mas "efeito de um juízo formal
no jogo de muitas sensações". Em todo caso, "segundo se adote uma ou outra opinião ao julgar
MÚSICA
692
MUSICA
o princípio da M., será diferente a definição desta: ou será definida (como fizemos) como um belo jogo de
sensações (da audição), ou como um jogo de sensações agradáveis. De acordo com a primeira definição,
a M. é considerada uma arte bela, pura e simplesmente; de acordo com a segunda, é considerada, pelo
menos em parte, uma arte agradável" {Crít. dojuízo, § 51). O conceito de "belo jogo de sensações" já
tende a exprimir uma noção sintática da M. e, por acréscimo, uma noção para a qual a investigação
sintática pode ser dirigida livremente em todas as direções (isto está implícito na palavra "jogo"). Em
meados do séc. XIX essa noção foi formulada com maior rigor e clareza na obra de HANSLICK, O belo
musical (1854), que ainda hoje continua sendo uma das mais importantes obras de estética musical.
Hanslick cerra fileiras contra o conceito romântico de M. como "representação do sentimento". O objeto
da M. é o belo musical, entendendo-se com isto "um belo que, sem decorrer nem depender de qualquer
conteúdo exterior, consista unicamente nos sons e em sua interligação artística. As engenhosas
combinações dos belos sons, sua concordância e oposição, seus afastamentos e reuniões, seu crescimento
e morte, é tudo isso que se apresenta em formas livres à intuição de nosso espírito e agrada como belo. O
elemento primordial da música é a eufonia, sua essência é o ritmo" (Vom Musikalisch-Schónen, III; trad.
it., 1945, p. 82). Assim entendida, a M. identifica-se com a técnica realizadora. Hanslick diz a respeito:
"Se as pessoas não sabem reconhecer toda a beleza que vive no elemento puramente musical, grande
parte da culpa deve ser atribuída ao desprezo pelo sensorial, que, nos antigos estetas, se dava em favor da
moral e do sentimento, e em Hegel em favor da idéia. Toda arte parte do sensível e nele se move. A teoria
do sentimento desconhece esse fato, despreza completamente ouvir e leva em consideração imediata o
sentir. Acham que a M. é feita para o coração e que o ouvido é coisa desprezível" (Ibid., III, pp. 85-86).
Por outro lado, Hanslick expressou com clareza o caráter que diferencia a linguagem musical da
linguagem comum: "A diferença consiste em que na linguagem o som é somente um signo, é um meio
para expressar algo completamente diferente desse meio, enquanto na M. o som tem importância em si, é
objetivo por si mesmo. A autonomia das belezas sonoras, por um lado, e o
absoluto predomínio da opinião de que o som é puro e simples meio de expressão, por outro lado,
contrapõem-se de maneira tão definitiva que a mistura dos dois princípios é uma impossibilidade lógica"
(Jbid., IV, p. 113). Contudo esse caráter não se encontra apenas na linguagem musical, mas em qualquer
linguagem artística, em confronto com a linguagem comum (v. ESTÉTICA).
Embora a noção de M. à qual músicos, críticos e estudiosos de estética musical recorreram e recorrem de
modo explícito continue sendo de "representação dos sentimentos", foi a noção de M. como técnica da
sintaxe dos sons, cujas regras podem ser indefinidamente mudadas, que prevaleceu na prática da criação
musical e na busca de modos de criação novos e mais livres. A última e mais radical tentativa de libertar a
língua musical da sintaxe tradicional é a chamada M. atonal, que nada mais é que a afirmação
programática da liberdade da linguagem musical em escolher sua própria disciplina; esta, em certos casos,
pode ser até a disciplina tonai. Schõnberg diz a respeito: "A emancipação da dissonância, ou seja, sua
equiparação com os sons con-sonantes ocorreu de modo inconsciente, com o pressuposto de que sua
compreensibilidade é favorecida por determinadas circunstâncias (em Harmonielehre explico isso com o
fato de que a diferença entre consonância e dissonância não é antitética, mas gradual, ou seja, as
consonâncias são os sons mais próximos do som fundamental, e as dissonâncias são os mais afastados;
por conseguinte, sua compreensibilidade é graduada, sendo os sons mais próximos mais facilmente
percebidos que os afastados). Como não basta o ouvido para reconhecer e compreender as relações e as
funções, tais circunstâncias encontraram-se no campo da expressão e no campo — até então pouco
considerado — da sonoridade" ("Gesinnung oder Erkenntnis?", 1926, em L. ROGNONI, Espressionismo e
dodecafonia, 1954, p. 249).
Desse ponto de vista, a tonalidade é definida, de modo muito geral, como "tudo aquilo que resulta de uma
série de notas, que é coordenada através da referência direta a uma única nota fundamental ou através de
interligações complicadas" {Harmonielehre, 1922, 3g
ed., III, p. 488; em ROGNONI, Op. cit, p. 243). Alban
Berg observava que "a renúncia à tonalidade 'maior' ou 'menor' não implica
MÚSICA 693
MUTACIONISMO
absolutamente anarquia harmônica" porque, "apesar de, com a perda do 'maior' e do 'menor' ter-se aberto
mão de algumas possibilidades harmônicas, ainda ficaram todos os outros elementos essenciais da M.
verdadeira e autêntica ("Was ist Atonal", 1930, em ROGNONI, op. cit., p. 290). Seja qual for o juízo de
gosto sobre as obras musicais inspiradas nesse programa, não há dúvida de que o próprio programa nada
mais é que a liberalização da língua musical e de suas técnicas em relação aos obstáculos da sintaxe
tradicional, e o início da busca de novas formas sintáticas, que até podem, ocasionalmente, coincidir com
as tradicionais. Portanto, no campo da M., o atonalismo é a realização da mesma exigência de libertação.
Representada pelo abstracionismo no campo da pintura: assim como a pintura pretende prescindir das
formas de representação ou percepção estabelecidas ou reconhecidas, a M. pretende prescindir das formas
de harmonia musical estabelecidas e reconhecidas. Uma e outra estão em busca de
novas disciplinas, de novas formas sintáticas para suas técnicas expressivas; uma e outra pressupõem
(mesmo que nem sempre com conceitos claros) a noção de arte como "técnica da expressão", entendendose por expressão as formas livres e finais da sintaxe lingüística. Como foi essa a noção de M. que, no fim
da Idade Média e no Renascimento, presidiu à gênese da M. moderna, porquanto se apresentou desde o
início como procura de técnicas expressivas, pode-se vislumbrar nela a condição que ainda hoje garante
capacidade de desenvolvimento à M.
MUTACIONISMO (in. Mutationism, fr. Mu-tationisme, ai. Mutationismus; it. Mutazio-nismó). 1. O
mesmo que evolucionismo (v.).
2. Doutrina que explica a transformação de uma espécie viva em outra através do surgimento de pequenas
mutações bruscas e hereditárias que se produziriam ao acaso, durante uma ou mais gerações.
Essa doutrina foi apresentada por DE VRIES na obra A teoria das mutações (1901).
N
N. Na lógica de Lukasiewicz a letra N é usada para indicar a negação, comumente simbolizada por co de
modo que Np significa <s>p (cf. A. CHURCH, Introduction to Mathematical Logic, n
9
91).
NACIONALISMO (in. Nationalism; fr. Na-tíonalisme, ai. Nationalismus-, it. Nazionalis-mó). O
conceito de nação começou a formar-se a partir do conceito de povo, que havia dominado a filosofia
política do séc. XVIII, quando se acentuou, nesse conceito, a importância dos fatores naturais e
tradicionais em detrimento dos voluntários. O povo (v.) é constituído essencialmente pela vontade
comum, que é a base do pacto originário; a nação é constituída essencialmente por vínculos
independentes da vontade dos indivíduos: raça, religião, língua e todos os outros elementos que podem
ser compreendidos sob o nome de "tradição". Diferentemente do "povo", que não existe senão em virtude
da vontade deliberada de seus membros e como efeito dessa vontade, a nação nada tem a ver com a
vontade dos indivíduos: é um destino que paira sobre os indivíduos, ao qual estes não podem subtrair-se
sem traição. Nesses termos, a nação só começou a ser concebida claramente no início do séc. XIX; o
nascimento desse conceito coincide com o nascimento da fé nos gênios nacionais e nos destinos de uma
nação particular, que se chama nacionalismo.
O conceito de povo permanecia ligado aos ideais cosmopolitas do séc. XVIII. Mas já em Rousseau se
encontra a condenação desses ideais: o apego de Rousseau ao conceito de cidade-estado, da forma
realizada na Grécia antiga, levava-o a condenar o universalismo setecentista. Ao mesmo tempo, esse
apego anacrônico levava-o a exaltar o valor do Estado nacional: "São as instituições nacionais que formam o gênio, o caráter, os gostos e os costumes de um povo, que o fazem ser ele mesmo e não outro, que
lhe inspiram o amor ardente pela pátria, fundamentado em hábitos impossíveis de erradicar, que o fazem
morrer de tédio entre outros povos, em meio a delícias das quais está privado em seu país" (Considér sur
le gouvernement de Pologne, III). Mas foi principalmente na época da restauração pós-napo-leônica que o
conceito de nação começou a assumir importância dominante como um dos produtos ou o produto
fundamental da "tradição" à qual se atribuía naquele período a origem e a conservação de todos os valores
fundamentais do homem. Em Discursos à nação alemã (1808) de Fichte, primeiro documento do N.
alemão, o povo alemão é visto como "o único povo que tem direito de ser chamado de povo, sem outra
designação, ao contrário dos ramos que dele se separaram, como, aliás, indica por si só a palavra alemão"
(Reden, VII), sendo assegurada pela própria providência da história o futuro desse povo superior. Com a
noção de "espírito de povo", Hegel levava a cabo a elaboração do conceito de nação: "O espírito de um
povo é um todo concreto: deve ser reconhecido em sua determinação. (...) Desenvolve-se em todas as
ações e em todas as tendências de um povo e realiza-se até a fruição e a compreensão de si mesmo. Suas
manifestações são religião, ciência, arte, destinos, acontecimentos. É tudo isso que confere caráter a um
povo, e não o modo como ele é determinado por natureza (como poderia sugerir o fato de a palavra natio
ter derivado de nasci)" (Phil. der Geschichte, ed. Lasson, p. 42; trad. it., 1, p. 49). No espírito dos povos
encarna-se, altérnadamente, o Espírito do Mundo, a Razão Universal que preside aos destinos do mundo e
determina a vitória do povo que
NACIONALISMO
695
NADA
seja sua melhor encamação. Nesse conceito de espírito do povo como encamação ou manifestação de
Deus no mundo, portanto do caráter fatal e providencial da vida históri-% ca da nação, já estão
compreendidos todos os elementos do N. europeu do séc. XIX e de qualquer N.
Na Itália, Mazzini procurou conciliar os ideais universalistas do iluminismo com o N., e viu na "missão"
de uma nação o modo como esta pode servir ao objetivo geral da humanidade. Era uma síntese bastante
incoerente, mas que evitava a exaltação da força que depois seria encontrada com tanta freqüência no N.
europeu. Gian Domenico Romagnosi foi o primeiro a apresentar uma teoria jurídica do estado nacional
nesse sentido {Delia costituzio-ne di una monarchia nazionale rappresenta-tiva, 1815): teoria adotada
mais tarde por P. S. Mancini como fundamento do direito internacional {Delia nazione como fondamento
dei diritto delle genti, 1851). Na França a afirmação do N. está ligada principalmente à obra do
historiador Michelet, que, com o livro Lepeuple (1843), criava um dos principais documentos do N.
profetizante. Na Alemanha, outro historiador, Treitschke, empreendia a ilustração e a defesa do N.
alemão, que, na origem, vinculou-se à política de força de Bismarck e mais tarde à de Guilherme II. Na
Rússia, por fim, Dos-toievski erigiu-se em profeta do N. russo (cf. HANS KOHN, Prophets and Peoples,
1946, trad. it., 1949; The Ideal of Nationalism, Nova York 1944). Tanto a Primeira como a Segunda
Guerra Mundial foram travadas sob o emblema de um N. que perdera todo o contato com o universalismo
setecentista e via na força o único sinal decisivo concedido pela Providência histórica à nação por ela
favorecida. Essa idéia, entronizada pelo fascismo italiano e pelo na-cional-socialismo germânico, não era
nova: tratava-se da velha idéia hegeliana e romântica do privilégio que o Espírito do Mundo concede à
nação em que prefere encarnar-se, pois o único sinal desse privilégio é precisamente a força vitoriosa que
tal nação pode exercer sobre as outras. Esse N. profético já não é professado hoje em dia pelos povos
europeus, que, graças à lição dada pelas duas guerras, foram reconduzidos aos ideais universalistas do
iluminismo: tende, porém, a afirmar-se em outras regiões do globo terrestre, às quais só se pode desejar
que aproveitem a experiência cultural e histórica da velha Europa.
NADA (gr. (iT|ôév, xò ur| ÕV; lat. MM; in. Nothing, Nothingness-, fr. Néant; ai. Nichts-, it. Nullà). Duas
concepções do N. estão intercaladas na história da filosofia: I
a O N. como não-ser; 2a
o N. como
alteridade ou negação. Os fundamentos dessas duas concepções estão, respectivamente, em Parmênides e
Platão. Parmênides afirmou que "o N. não é" {Fr. 6, 2) e que "não pode ser conhecido nem expressado"
{Ibid., 4); Platão, decidindo-se por uma espécie de "parricídio" em relação a Parmênides {Sof, 242 d),
admitiu o ser do não-ser e definiu o N. como alteridade: "Resulta que há um ser do não-ser, tanto para o
movimento quanto para todos os gêneros, já que em todos os gêneros a alteridade, que torna cada um
deles outro, transforma o ser de cada um em não-ser, de modo que diremos corretamente que todas as
coisas não são e ao mesmo tempo são e participam do ser" {Ibid., 256 d). Assim, enquanto para
Parmênides o N. é absoluto não-ser, portanto não é pensável nem expressável de modo algum, para Platão
o N. é a alteridade do ser, ou seja, a negação de um ser determinado (p. ex., do movimento) e a referência
indefinida a outro gênero do ser (ao que não é movimento).
I
a Górgias apoiava a tese de Parmênides ao afirmar que "o N. não é, porque, se existisse, seria ao mesmo
tempo não-ser e ser: não-ser enquanto pensado como tal, ser enquanto seria não-ser" {Fr. 3, 26). O N.
defi-nido por essas proposições é o N. absoluto, "certa idéia negativa do N., daquilo que está
infinitamente longe de qualquer tipo de per-feição", de que falava Descartes, opondo-a a Deus,
que inclui todas as perfeições {Méd., IV); ou o "conceito vazio sem objeto", que é a negação do "mais alto
conceito de que se costuma partir nas filosofias transcendentais", do objeto de que falava Kant {Crít. R.
Pura, Anal. dos princ, Nota às anfibolias dos conceitos da reflexão). O N. assim entendido foi utilizado
sobretudo pela teologia e pela metafísica: por um lado serviu para definir Deus, quando se quis insistir em
sua heterogeneidade em relação ao mundo, ou para definir a matéria, quando se quis insistir em sua
heterogeneidade em relação às coisas; por outro lado, serviu para introduzir no ser uma condição ou um
elemento que explicasse certos caracteres dele. O primeiro uso ocorre freqüentemente na teologia
negativa. Scotus Erigena já havia identificado Deus com o N. porque Deus é Supe-
NADA
696
NADA
ressentia (acima da substância) e porque o N. é, por outro lado, "a negação e a ausência da essência ou
substância, aliás de todas as coisas que foram criadas na natureza" (De divis. nat., III, 19-21). Essa
doutrina é freqüentemente repetida na Idade Média: Deus é indicado como N., ou "N. do N.", ou
"quintessência do N." Zohar, um dos livros da Cabala (cf. SÉ-ROUYA, La Kabbale, Paris, 1957, p. 322); é
chamado de "N. supra-ente" por Mestre Eckhart (op. cit., ed. Pfeiffer, p. 139) e de "N. eterno" por Bõhme
(Mysterium magnum, I, 2). Em todas essas expressões, N. exprime a negação total das formas de ser
conhecidas, julgadas inadequadas à natureza de Deus.
O segundo uso do conceito de N. encontra-se nos neoplatônicos, com o objetivo de acentuar a diferença
entre a matéria e as coisas, entre o caráter informe de uma e as determinações das outras. Assim, para
Plotino a matéria é o não-ser porque desprovida de corpo-reidade, alma, inteligência, vida, forma, razão,
limite, potência, que são todos os caracteres do ser. Segundo Plotino, "é preciso dizer que ela é não-ser,
mas não no sentido em que o movimento não é repouso ou ao contrário, mas que é realmente o não-ser,
imagem ou fantasma da massa corpórea e aspiração à existência" (Enn., III, 6, 7). A matéria é
caracterizada desse mesmo modo por S. Agostinho: "Se se pudesse dizer que o N. é e não é alguma coisa,
diria que isso é a matéria" (Conf, XII, 6, 2).
O terceiro uso encontra-se na filosofia moderna e visa a resolver o ser no devir ou a possibilidade em
impossibilidade. O primeiro objetivo é buscado pela concepção do N. sustentada por Hegel. Este observa
corretamente que o velho ditado Ex nihilo nihilfit nada mais exprime que a negação do devir; contra essa
negação, afirma a indissolubilidade e a conversibilidade recíproca do ser e do N. E disse: "Do ser e do N.
cumpre dizer que em nenhum lugar, nem no céu nem na terra, existe alguma coisa que não contenha em si
tanto o ser quanto o N. Sem dúvida, quando se fala de certo algo e de algo de real, essas determinações
não se encontram mais em sua completa verdade, em que estão como ser e como N., mas encontram-se
numa outra determinação e são entendidas, p. ex., como positivo e negativo... Mas o positivo contém o
ser, e o negativo contém o N., como base abstrata. Assim, mesmo em Deus a qualidade (atividade,
criação, potência, etc.) contém essencialmente a determinação do
negativo; essas qualidades consistem na produção de um outro" (Wissenschaft der Logik, I, seç. 1, cap. 1,
C, nota I, cf. Ene, § 87). A característica desse tipo de doutrina é a tese de que o N. é o fundamento da
negação, e não a negação do N. Isso é expresso por Hegel no trecho citado, quando ele diz que o positivo
e o negativo contêm o N. como base abstrata. Na filosofia contemporânea a mesma tese é explicitamente
apresentada por Heidegger: "É o N. a origem da negação, e não vice-versa" (Was istMetaphysik?, 1949, 5a
ed., p. 33). Desse ponto de vista, o N. é "a negação radical da totalidade do existente" (Ibid., 1949, 5a
ed.,
p. 27), é N. absoluto. Mas, ao mesmo tempo, constitui o fundamento do ser, mais precisamente do ser do
homem, porquanto esse ser é instável (binfàllig). A instabilidade do ser do homem é vivida na situação
emotiva da angústia. "O existente não é destruído pela angústia de tal modo que fique, assim, o N. E
como poderia ser diferente, visto que a angústia se encontra na mais completa impotência perante o
existente em sua totalidade? Na realidade, o N. revela-se propriamente com e no existente, na medida em
que este nos escapa e se dissipa em sua totalidade" (Ibid., 1949, 5a
ed., p. 31). Isso significa que o N. é
vivido pelo homem na medida em que o ser do homem (a existência) não é e não pode ser todo o ser: o
ser do homem consiste em não ser o ser em sua totalidade, que é o N. do ser. Por isso, Heidegger diz que
o N. é a própria anulação ("É precisamente o próprio N. que anula"; Ibid., 5
a
ed., 1949, p. 31), e que ele é
"a condição que possibilita, em nosso ser-aí (Daseiri), a revelação do existente como tal" (Ibid., 5
a
ed.,
1949, p. 32). O problema e a procura do ser nascem do fato de o homem não ser todo o ser, de que seu ser
é o N. da totalidade do ser. Sartre substitui a noção de existência pela de consciência, mas continua a
interpretá-la como ser do homem, que é o N. do ser; termina assim por repetir os conceitos de Heidegger.
Sartre diz: "O N. não é, o N. foi; o N. não se nadifica, o N. foi nadificado. Portanto, deve existir um ser —
que não poderia ser o em-si — cuja propriedade é anular o N., regê-lo com seu ser, sustentá-lo perpetuamente com sua própria existência: um ser graças ao qual o N. chega às coisas" (Vêtre et le néant, p. 58).
Esse ser é a consciência, que, sendo constituída por possibilidades, está sempre aberta para o N. "Sempre
fica aberta a possibilidade de que ele se revele como N.
NADA
697
NÃO
Mas, pelo simples fato de se aventar que um existente possa resolver-se como N., toda pergunta supõe
que se realize um recuo nadifi-cador em relação ao dado, que se torna simples apresentação, oscilando
entre o ser e o N." (Ibid., p. 59). Desse modo, o homem tem a possibilidade de circunscrever "um N. que
o ; isole", de colocar-se fora do ser, para questioná-lo e subtrair-se à sua totalidade. Está claro o que estas
especulações sobre o N. pretendem sugerir: o ser do homem, constituído por possibilidades que, como
tais, podem não se realizar e que em todo caso excluem o ser completo ou total, e manifestando-se
portanto de modo eminente na dúvida, no problema, na projeção, etc, é o N. do tudo do ser. Trata-se de
especulações que querem definir o finito (a limitação própria da existência humana) utilizando dois
infinitos: o tudo e o N.
2
a
A segunda concepção fundamental do N., cujos fundamentos estão em Platão, considera o N. como
alteridade ou negação. Segundo essa concepção, não há "N. absoluto", aquilo que, na terminologia
kantiana, é a negação de todo objeto. Nesta terminologia o N. é apenas privação de alguma coisa: como a
sombra ou o frio inihilprivativurrí), como um ente imaginário (ens imaginariutri) ou como o objeto de
um conceito que se contradiz (nihil nega-tivurri) (Crít. R. Pura, Anal. dos princ, Nota às anfibolias dos
conceitos da reflexão). Desse ponto de vista o N. é um objeto (no sentido mais geral da palavra) e dele
existe uma noção, ao contrário do que pensava Wolff quando definia o N. como "aquilo a que não
corresponde noção alguma" (Ont, § 57). Nesse sentido o velho Fredegiso de Tours (séc. IX) tinha razão
ao afirmar que o N. é alguma coisa, porque "se alguém disser que lhe parece não ser N., essa mesma
negação levá-lo-á a reconhecer que o N. é alguma coisa, uma vez que que dizer 'Parece-me que o N. é N.'
eqüivale a dizer 'Parece-me que é alguma coisa' " (De nihilo et tenebris, em P. L., 105, col. 751). Isso
significa que, uma vez que se fale em N., mesmo para dizer que é N., o N. é algo de que se fala, ou seja,
um objeto em geral. Considerações desse gênero podem parecer puramente dialéticas, mas continuam
tendo valor mesmo na lógica contemporânea (cf. GEYMONAT, Saggi difilosofia neorazionalistica, Torino,
1953, pp-101 ss.). Contudo, esse conceito de N. não teve muita acolhida por parte dos filósofos, por
razões compreensíveis: não se presta a uso teológico
ou metafísico. A melhor ilustração disso na filosofia contemporânea encontra-se em Bergson: "A idéia de
abolição ou de N. parcial forma-se durante a substituição de uma coisa por outra, a partir do momento em
que tal substituição é pensada por um espírito que preferiria manter a coisa antiga no lugar da nova ou que
pelo menos concebe essa preferência como possível. Do lado subjetivo, implica uma preferência; do lado
objetivo, uma substituição; não passa de uma combinação ou, antes, de uma interferência entre o
sentimento de preferência e essa idéia de substituição" (Évol. créatr., 8- ed., 1911, pp. 305-06). Isso
significa que se diz "não há N." quando não há a coisa que esperávamos encontrar ou que poderia haver, e
que a idéia do N. absoluto é uma "pseudo-idéia", tão absurda quanto a de um círculo quadrado (Ibid., p.
307). Pode-se insistir um pouco menos no aspecto subjetivo desse conceito de N. e mais no aspecto
objetivo; pode-se dizer, p. ex., que o N. exprime a negação ou a ausência de uma possibilidade
determinada ou de um grupo de possibilidades, sem recorrer à noção de preferência ou de substituição;
mas a análise de Bergson continua substancialmente correta, tanto em sua tese positiva quanto na
negativa. Ademais, está em conformidade com o conceito dos lógicos contemporâneos sobre a negação;
p. ex., com o que Carnap expôs numa crítica ao conceito do N. de Heidegger, que se tornou famosa: para
ele, nesse conceito estão resumidos todos os vícios da metafísica. Carnap afirmou então que a única
noção de N. logicamente correta é a negação de uma possibilidade determinada; portanto, dizer "Não há
N. lá fora" significa "Não há alguma coisa que esteja fora", "~ (E x) x está fora" ("Überwindung der
Metaphysik", em Erkenntnis, II, 1931, pp- 229 ss.). E como a negação de que alguma coisa está lá fora
implica que alguma coisa poderia estar lá fora, nesse sentido a negação é a exclusão de uma possibilidade
determinada.
NÃO (ai. Nichi). Segundo Heidegger, o N. exprime a limitação fundamental da existência, visto que "o
ser-aí, sendo como poder-ser, está sempre em uma ou em outra possibilidade, mas continuamente N. é
uma ou outra porque, no projeto existenciário, recusa uma ou outra" (Sein und Zeit, § 58). O N. exprime
assim a exclusão das possibilidades sempre implícita nas escolhas das que o ser-aí (que é o homem) inclui
em seu projeto. Nesse sentido, Heidegger fala do N. como culpa fundamental da existência:
NAO-EU
698
NATUREZA
"A idéia formal existencial do culpado deve, portanto, ser assim definida: ser fundamento de um ser que é
determinado por um N., ou seja, ser fundamento de uma nulidade" (Md).
NÃO-EU (in. Non-ega, fr. Non moi; ai. Nicht ich; it. Non iò). Por este termo Fichte indicava o mundo da
natureza e em geral o mundo objetivo, na medida em que é posto pelo Eu mas oposto ao próprio Eu.
"Nada há que seja posto originariamente, exceto o Eu; e só ele é posto absolutamente. Por isso, só se pode
ter oposição absoluta pondo-se algo de oposto ao Eu. Mas o oposto ao Eu é = Não-Eu" (Wissenschaftslehre, 1794, § 2. 9).
NARCISISMO (in. Narcissism; fr. Narcisis-me, ai. Narzissismus-, it. Narcisismó). 1. Segundo Plotino, o
mito de Narciso representa a situação do homem que, não sabendo que a beleza está dentro dele, procuraa nas coisas externas, nas quais tenta em vão abraçá-la (Enn., I, 6, 8; V, 8, 2). Essa interpretação ganha
destaque sobre o pano de fundo da preocupação fundamental de Plotino, que é a da busca interior, ou da
interioridade de consciência (v.). Algumas vezes, o significado desse mito foi invertido por autores
modernos: o narcisismó não representaria a inutilidade da tentativa de buscar no exterior o que é interior,
mas o autêntico destino do homem, que é projetar-se para fora de si e amar como tal o que está dentro
dele (cf. LAVEIXE, L 'erreurdeNarcisse, 1939).
2. Uma forma ou modo da sexualidade, segundo a psicanálise, mais precisamente aquela em que a libido
(v.) reinveste o Ego desinvestindo o objeto, de tal modo que o Ego "se comporta em relação aos
investimentos objetais como o corpo de um animalzinho protoplasmático que ele emitiu" (FREUD,
Introdução ao narcisismó, 1914).
NATIVISMO. V. INATISMO.
NATURAL (gr. (pTjotKÓÇ; lat. Naturalís; in. Natural; fr. Naturel; ai. Natürlich; it. Naturalé). Os usos
deste adjetivo correspondem aos usos fundamentais do termo natureza.
1. Correspondendo ao primeiro significado, N. pode ser: o que é produzido pelo princípio do movimento,
ou o que se produz por si, espontaneamente. Neste sentido, falou-se de "direito N.", que consiste em
conformar-se à ordem espontânea da natureza; ou de "religião N.", que é revelada pela natureza ou
através da
natureza, ou seja, através da razão ou do coração do homem.
2. Correspondendo ao segundo significado de natureza, chama-se de N. o que se inclui na ordem
necessária da natureza, distinguindo-se da ordem sobrenatural, desejada ou estabelecida diretamente por
Deus.
No âmbito de ambos os significados, N. contrapõe-se também a artificial, por ser aquilo que é produzido
pela causalidade da natureza, fora do arbítrio humano.
3. Em correspondência com o terceiro significado de natureza, fala-se, p. ex., de "coisas N." para dizer
"coisas externas", e de "causalidade N." para dizer "causalidade externa".
4. Hoje em dia, a denominação "ciências" N." leva em conta o 4Q
significado de natureza (v.).
NATURALISMO (in. Naturalism; fr. Na-turalisme, ai. Naturalismus; it. Naturalismo). Esse termo tem
três significados diferentes:
I
a Doutrina para a qual os poderes naturais da razão são mais eficazes que os produzidos ou promovidos
pela filosofia no homem. Nesse sentido, Kant dizia: "O naturalista da razão pura admite, por princípio,
que através da razão comum, sem ciência (que ele chama de 'razão sã'), pode-se concluir mais sobre as
questões superiores da metafísica, do que por meio da especulação. Afirma, pois, que o tamanho e a
distância da lua podem ser determinados com mais segurança a olho nu que por meio da matemática"
(Crít. R. Pura, Doutrina do método, cap. IV).
2
S
Doutrina segundo a qual nada existe fora da natureza e Deus é apenas o princípio de movimento das
coisas naturais. Nesse sentido, que é o mais difundido na terminologia contemporânea, fala-se do "N do
Renascimento", do "N antigo", do "N materialista", etc.
3
S
Negação de qualquer distinção entre natureza e supranatureza e tese de que o homem pode e deve ser
compreendido, em todas as suas manifestações, mesmo nas consideradas superiores (direito, moral,
religião, etc), apenas em relação com as coisas e os seres do mundo natural, com base nos mesmos
conceitos que as ciências utilizam para explicá-los. É esse o sentido atribuído ao termo N. por muitos
filósofos americanos (Santayana, Wood-bridge, Cohen) e pelo próprio Dewey (Experien-ce and Nature,
cap. III, e passim).
NATUREZA (gr. (púciç; lat. Natura; in. Nature, fr. Nature, ai. Natur, it. Natura). Para defi-
NATUREZA
699
NATUREZA
nir este termo, lançou-se mão de uma série de conceitos, entre os quais há alguns pontos em comum. Os
principais são os seguintes: lfi princípio do movimento ou substância; 2e
ordem necessária ou conexão
causai; 3Q
exterioridade, contraposta à interioridade da consciência; 4S campo de encontro ou de
unificação de certas técnicas de investigação.
l
s
A interpretação da N. como princípio de vida e de movimento de todas as coisas existentes é a mais
antiga e venerável, tendo condicionado o uso corrente do termo. "Permitir a ação da N.", "Entregar-se à
N.", "Seguir a N.", e assim por diante, são expressões sugeridas pelo conceito de que a N. é um princípio
de vida que cuida bem dos seres em que se manifesta. Foi nesse sentido que Aristóteles definiu
explicitamente a N.: "A N. é o princípio e a causa do movimento e do repouso da coisa à qual ela inere
primariamente e por si, e não por acidente" {Fís., II, 1, 192 b 20). Como explica o próprio Aristóteles, a
exclusão da acidentalida-de serve para distinguir a obra da N. da obra do homem. A. N. também pode ser
matéria, a admitir-se, como faziam os pré-socráticos, que a matéria tem em si própria um princípio de
movimento e de mutação; mas é realmente esse mesmo princípio, portanto a forma ou a substância em
virtude da qual a coisa se desenvolve e torna-se o que é {Fís., II, 1, 193 a 28 ss.). Por esse motivo a N.
assume o significado de forma, substância ou essência necessária: uma coisa possui sua N. quando
alcançou sua forma, quando é perfeita em sua substância. Em conclusão, segundo Aristóteles, a melhor
definição da N. é a seguinte: "A substância das coisas que têm o princípio do movimento em si próprias":
nesta definição podem ser incluídos todos os significados do termo {Met., V, 4,1015 a 13). Nesse sentido,
a N. é não somente causa, mas causa final {Fís., II, 8,199 b 32). A tese do finalismo da N. costuma estar
ligada a esse conceito da N.
Tal conceito, que é a síntese dos dois conceitos fundamentais da metafísica aristotélica (substância e
causa), dominou por muito tempo a especulação ocidental e nunca foi completamente obliterado por
conceitos diferentes e concorrentes. Por sua causalidade, a N. é o próprio poder criador de Deus: é N.
naturante. Mas como tal causalidade é inerente às coisas que produz, a N. é a própria totalidade dessas
coisas, é N. naturada. Essa distinção, que se encontra em Scotus Erigena, mas sem os termos
relativos {De divis. nat., III, 1), foi introduzida na escolástica latina por Averróis {De coei., I, 1), sendo
amplamente aceita (cf. S. TOMÁS DE AQUINO, S. Th., II. 1, q. 85, a. 6). Spinoza nada mais fez que reexpôla quase nos mesmos termos {Et., I, 29, schol.). A essa distinção, mais precisamente ao conceito de N.
naturada, liga-se o outro significado subordinado, de N. como universo ou conjunto das coisas naturais:
conceito que coexiste com o de N. como princípio de movimento, por ser seu resultado, e — como
veremos — com o de N. como ordem, por designar, neste segundo caso, a N. "material" {materialiter
spectatá).
A exaltação especulativa da N. por parte do naturalismo renascentista recorre ao conceito de N. criadora
ou universal. Nicolau de Cusa dizia: "É o Espírito difuso e contraído por todo o universo e por cada uma
de suas partes que se chama de N. Portanto, de algum modo a N. é a reunião {complicatió) de todas as
coisas geradas através do movimento" {Dedocta ignor., II, 10). E Giordano Bruno afirmava: "A N. ou é
Deus mesmo, ou a virtude divina que se manifesta nas coisas" {Summa terminorum, em Op. latine, IV,
101). No mesmo sentido Spinoza identificava a N. com Deus {Et., I, 29, schol.). Esse conceito da N.
atravessou o séc. XVIII e foi reafirmado por Wolff {Cosm., §§ 503-506) e por Baumgarten {Met., § 430).
Quando, naquele mesmo século, começou-se a contrapor a N. ao homem e a proclamar-se a "volta à N.",
a N. à qual se recorreu continuava sendo a do antigo conceito aristotélico: princípio diretivo inato no
homem sob forma de instinto; tal foi o conceito de Rousseau {De 1'inégalitéparmi les hommes. I). Essa
noção já entrou no patrimônio das crenças comuns de nosso mundo, e por isso está presente, mesmo sem
se fazer notar, nas mais elaboradas concepções filosóficas.
Como se viu, compreende três conceitos coordenados ou eqüipolentes: a) a N. como causa (eficiente e
final); b) a N. como substância ou essência necessária; c) a N. como totalidade das coisas.
2
2
A segunda concepção fundamental de N. considera-a como ordem e necessidade. A origem dessa
concepção está nos estóicos, para os quais "a N. é a disposição a mover-se por si segundo as razões
seminais, disposição que leva a cabo e mantém unidas todas as coisas que dela nascem em tempos
determinados e coincide com as próprias coisas das quais se distingue" (DIÓG. L., VII, 1, 148). Nesta
defini-
NATUREZA
700
NATUREZA
ção é acentuada a regularidade e a ordem do devir à qual a N. preside. A este conceito de N. está ligada a
noção de lei natural, que, da Antigüidade ao séc. XIX, teve grande importância na moral e no direito (v.).
De fato, a lei natural é a regra de comportamento que a ordem do mundo exige que seja respeitada pelos
seres vivos, regra cuja realização, segundo os estói-cos, era confiada ao instinto (nos animais) ou à razão
(no homem) (DIÓG. L., VII, I, 85). O aristotelismo do Renascimento retoma o conceito de N. como
ordem. Em De fato (séc. XVI), Pietro Pomponazzi defendia explicitamente o fado estóico, que é a
necessidade absoluta da ordem cósmica estabelecida por Deus. E o pensamento que fundamenta as
primeiras manifestações da ciência moderna, na obra de Leonardo, Copérnico, Kepler e Galilei, é o de
ordem necessária e de caráter matemático, que a ciência deve descobrir e descrever. Segundo Leonardo da
Vinci: "A necessidade é tema e inven-tora da N., freio e regra eterna" {Works, ed. Richter, nQ
1135). Para
Galilei, a N. é a ordem do universo, ordem única que nunca foi nem será diferente (Op., VII, p. 700). A
insistência na N. como ordem e necessidade é acompanhada pela negação do finalismo da N.,
característico da primeira concepção (v. FINALISMO). Esse conceito da N. permaneceu como fundamento
da ciência moderna em todo seu período clássico. "A N. é bastante conso-nante e concordante consigo
mesma", dizia Newton {Optiks, 1704, III, 1, q. 31), mas foi Boyle quem teve as idéias mais claras sobre
isso, afirmando explicitamente: "A N. não deve ser considerada como um agente distinto e separado, mas
como uma regra, ou antes como um sistema de regras, segundo as quais os agentes naturais e os corpos
sobre os quais eles agem são determinados pelo Grande Autor das coisas a agir e sofrer ação." Foi esta a
concepção da N. aceita por Kant. "Pela expressão 'N.' (em sentido empírico) entendemos a conexão dos
fenômenos para sua existência segundo regras necessárias ou leis. Existem, portanto, certas leis apriori
que tornam possível uma N.; as leis empíricas podem estar presentes e ser descobertas apenas através da
experiência, portanto depois das leis originárias graças às quais começa a ser possível a própria
experiência" {Crít. R. Pura, Anal. dos princ, cap II, seç. 3, Terceira analogia). Em outro lugar Kant
distingue a N. materialiter spectata da N. for-maliter spectata: a primeira seria "o conjunto
de todos os fenômenos"; a segunda seria "a regularidade dos fenômenos no espaço e no tempo" {Ibid., §
26). Mas a primeira nada mais é que o material a que se aplica a segunda, e o conceito da N. continua
sendo o de regularidade devida a leis {Prol, § 14). Esta doutrina foi repetida numerosas vezes na filosofia
moderna e contemporânea. Entre os últimos que a repetem pode-se lembrar Whitehead, para quem N. é
"um complexo de entes em relação", em que a ênfase é posta na relação, atribuindo-se à filosofia natural a
tarefa de "estudar como se interligam os vários elementos da N. {The Concept ofNature, 1920, caps. I-II;
trad. it., pp. 13, 28). 3a
Para a terceira concepção, N. é a manifestação do espírito, ou um espírito
diminuído ou imperfeito, que se tornou "exterior", "acidental" ou "mecânico", ou seja, foi degradado de
seus verdadeiros caracteres. Essa concepção encontra-se claramente expressa em Plotino: "A sabedoria é
o primeiro termo; a N. é o último. A N. é a imagem da sabedoria e é a última parte da alma; como tal, só
tem em si os últimos reflexos da razão. (...) A inteligência tem em si tudo; a alma do universo recebe as
coisas eternamente, sendo a vida a eterna manifestação do intelecto, mas a N. é o reflexo da alma na
matéria. A realidade termina nela, ou até antes dela, pois ela é o termo do mundo inteligível; além dela, só
há imitações" {Enn., IV, 4, 13). O conceito de N. como manifestação, no sentido de "exteriorização", com
tudo o que a exteriorida-de tem de diminuído ou degradado em relação à interioridade e à consciência, foi
compartilhado (e continua sendo) por todas as metafísicas espiritualistas. É retomado pela teosofia
renascentista e encontra-se, p. ex., emjakob Bõhme {De signatura rerum, IX). Mas foi o romantismo que
o amplificou e difundiu. Novalis dizia: "O que é a N. senão o índice enciclopédico sistemático ou o plano
de nosso espírito?" {Fragmente, n
Q
1384). Foi Hegel quem expressou do modo mais rigoroso e completo
esse conceito: "A N. é a idéia na forma de ser outro", isto é, da "exterioridade" {Ene, § 247). Como tal,
não mostra, em sua existência, liberdade alguma, mas apenas necessidade e acidentalidade. Portanto, "na
N., não só a inter-relaçâo das formas está à mercê de uma acidentalidade desregrada e desenfreada, como
também nenhuma forma tem, por si, o conceito de si mesma". Hegel reconhece que a N. está sujeita a
"leis eternas", mas isso não a salva: a N. é pior que o mal. "Quando a acidentalidade
NATUREZA
701
NATUREZA, ESTADO DE
espiritual, o arbítrio, chega ao mal, até o mal é algo infinitamente superior aos movimentos dos astros e à
inocência das plantas; porque quem assim erra, ainda é espírito, apesar de tudo" (Jbid., § 248). É bem
verdade que nem toda a filosofia romântica compartilhou a condenação hegeliana da N. Schelling exaltou
a N., considerando-a como parte ou elemento da vida divina. Numa obra de 1806, censurava Fichte por
encarar a N. ora com um asce-tismo grosseiro e insensato, considerando-a puro nada, ora de um ponto de
vista puramente mecânico e utilitarista, considerando-a um instrumento de que o Eu Absoluto lança mão
para realizar-se ( Werke, I, VII, pp. 94,103)-Na realidade, ao considerar a N. como manifestação do
Absoluto, Schelling não insistia tanto na inferioridade da manifestação em relação ao Princípio que se
manifesta, mas sobretudo na estreita relação entre os dois. Esta é a outra alternativa oferecida pela
concepção da N. de que tratamos. Por um lado pode-se insistir nos aspectos que distinguem a N. do
espírito e que, de algum modo, os contrapõem, quais sejam, exterioridade, acidentalidade e mecanismo,
mas, por outro lado, pode-se também ressaltar que a N., como manifestação do espírito, tem em comum
com ele seus caracteres substanciais. Foi o que fez Schelling, mas a primeira alternativa costuma
prevalecer. O espiritualis-mo francês do séc. XIX compartilhou quase unanimemente a tese expressa por
Ravaisson no fim de Rapport sur Ia philosophie en France au XIX"™ siècle (1868)": a N. é a
degradação, em mecanicismo e necessidade, de um Princípio Espiritual que é espontaneidade e liberdade.
Essa concepção também prevaleceu no espi-ritualismo do séc. XX graças a Bergson. A N., como
exterioridade ou espacialidade, é uma degradação do espírito. É assim que Bergson expõe o projeto de
uma teoria do conhecimento da N.: "Seria preciso, com um esforço sui generis do espírito, seguir a
progressão, ou melhor, a regressão do extra-espacial que se degrada em espacialidade. Se nos situarmos
primeiramente no ponto mais alto de nossa própria consciência para em seguida deixarmo-nos cair pouco
a pouco, teremos a sensação de que nosso eu se estende em recordações inertes, exteriorizadas umas em
relação às outras, em vez de propender a um querer indivisível e agente. Mas isso é apenas o início, etc.
(Évol. créatr, 11a
ed., 1911, p. 226). O mesmo sentido de degradação é atribuído à N. na filosofia
de Gentile, para quem ela é o "passado do espírito", sendo, pois, um limite abstrato que o espírito
recompreende em si e "domina" {Teoria generale dello spirito, XVI, 18).
4
S
A quarta concepção de N. pode ser discernida de modo implícito ou na forma de pressuposto na prática
efetiva da pesquisa científica e em algumas análises da metodologia científica contemporânea. Para esta,
a N. é definida em termos de campo (v.), mais precisamente o campo ao qual fazem referência e em que
se encontram (ou algumas vezes se desencontram) as técnicas perceptivas e de observação de que o
homem dispõe: as primeiras não são menos complexas que as segundas, apesar de se mostrarem como
"naturais", ou seja, passíveis de serem postas em prática sem o concurso de projetos deliberados. A arte
faz constante referência às técnicas perceptivas, pois sempre oferece alguma coisa a ser "vista" ou
"sentida", mesmo quando pretende ser "abstrata" e prescindir das formas comumente oferecidas pela
percepção comum. A ciência natural faz referência às técnicas de observação, pois, mesmo iniciando seu
trabalho com a percepção, afasta-se desta rapidamente tanto no que se refere aos instrumentos de
observação quanto no que diz respeito aos objetos que consegue identificar (p. ex., "massa", energia",
"elétrons", "fótons", etc), alguns dos quais se comportam de modo muito diferente das "coisas" que são
objeto da percepção comum. Hoje, pode-se entender como N. o campo objetivo ao qual fazem referência
os vários modos da percepção comum e os vários modos da observação científica, do modo como esta é
entendida e praticada nos vários ramos da ciência natural. Nesse sentido a N. não se identifica com um
princípio ou com uma aparência metafísica, nem com determinado sistema de conexões necessárias, mas
pode ser determinada, em cada fase do desenvolvimento cultural da humanidade, como a esfera dos
possíveis objetos de referência das técnicas de observação que a humanidade possui. Trata-se, como é
óbvio, de uma concepção não dogmática, mas funcional, pois ainda não foram feitas indagações
metodológicas suficientes para esclarecê-la-, contudo, afigura-se como uma exigência da atual fase da
metodologia científica.
NATUREZA, CIÊNCIAS DA. V. CIÊNCIAS, CLASSIFICAÇÃO DAS.
NATUREZA, ESTADO DE (in. State ofna-ture, fr. État de nature, ai. Naturzustand; it.
NATUREZA, ESTADO DE
702
NATUREZA, FILOSOFIA DA
Stato di naturd). Condição do homem, antes da constituição da sociedade civil, segundo a doutrina do
contratualismo (v.). Já em Platão, no III Livro de Leis, encontra-se a noção da condição em que os
homens ficaram depois da destruição de suas cidades por enormes catástrofes: "Esta é a condição dos
homens depois da catástrofe: uma terrível e ilimitada solidão, a terra imensa e abandonada; mortos quase
todos os animais e os bovinos, sobrou apenas um pequeno grupo de cabras, qual mísero resto, para que os
pastores recomeçassem a vida" (Leis, III, 677 e). Esta não é a descrição de uma condição idílica, assim
como não foi idílica a condição que Hobbes atribuiu ao estado de N., a guerra de todos contra todos:
"Enquanto vivem sem um poder comum ao qual estejam sujeitos, os homens encontram-se na condição
que chamamos de guerra, e tal guerra é de um homem contra o outro" (Leviath., I, 13). Isto acontece
porque, sendo iguais por N., os homens também têm os mesmos desejos, e desejando as mesmas coisas
procuram preponderar uns sobre os outros (Lbid.). A fundação do Estado, de um poder soberano, é o
único meio para sair da condição de guerra, própria do estado de N.
Por outro lado, na Antigüidade, Sêneca exaltava o estado de N. como uma condição perfeita do gênero
humano. Na nonagésima Epístola a Lucílio, Sêneca descreve a idade de ouro, em que os homens eram
inocentes, felizes e viviam com simplicidade, sem buscar o supérfluo. Além disso, não tinham
necessidade de governo e de leis porque obedeciam aos mais sábios. Mas, em certo momento, o próprio
progresso das artes levou à avidez e à corrupção, contra as quais se tornou necessária a instituição do
Estado. A exaltação do estado de N. tornou-se tema recorrente na filosofia do séc. XVIII; sua expressão
máxima está na obra de Rousseau. Opondo-se a Hobbes, Locke já havia considerado o estado de N. como
um estado de perfeição: é "um estado de perfeita liberdade, em que cada um regulamenta suas próprias
ações e dispõe de suas posses e de si mesmo como bem lhe aprouver, dentro dos limites da lei da N., sem
pedir permissão a ninguém, nem depender da vontade de ninguém" (Second Treatise on Governement, II,
4). Mas foi Rousseau quem mais exaltou a perfeição do estado de N., argumentando que nessa condição o
homem obedece apenas ao instinto, que é infalível (De Vinégalitéparmi les hotnmes, I).
"Tudo que sai das mãos do Criador é perfeito, tudo degenera nas mãos do homem": era assim que
Rousseau começava o Emílio. No próprio Rousseau, porém, essa exaltação do estado de N. contrasta com
o valor atribuído ao estado civilizado, com base no contrato social; na realidade, em Rousseau a noção de
estado de N. constitui o critério ou a norma para julgar a sociedade presente e delinear um ideal de
progresso. Após Rousseau, Kant entendia por estado de N. "aquele em que não há justiça distributiva
alguma" (Met. derSitten, I, § 41). E Hegel mostrava o equívoco de se ter inventado o estado de N. como
condição de fato na qual valesse o direito natural; isso por se interpretar a expressão "direito natural" no
sentido de direito existente na N., e não de direito determinado pela N. da coisa (Ene, § 502). A partir de
Hegel, a noção de estado de N. deixou de interessar aos filósofos, mas permaneceu como noção à qual o
homem comum recorre de bom grado, sendo também utilizada pelas doutrinas políticas utopistas, que
freqüentemente projetam o estado de N. como uma perfeição do futuro, e assim fazem também, algumas
vezes, as imaginações fantásticas da ficção científica.
NATUREZA, FILOSOFIA DA (in. Philo-sophy ofnature, fr. Philosophie de Ia nature, ai.
Naturphilosophie, it. Filosofia delia naturd). Esta expressão, diferente da tradicional "filosofia natural"
que designa a física ou as ciências naturais em geral, foi empregada pela primeira vez por Kant para
designar uma disciplina nitidamente distinta da ciência. Por filosofia da N. ou metafísica da N., Kant
entendeu a disciplina que "abarca todos os princípios racionais puros que derivem de conceitos simples
(portanto com exclusão da matemática) do conhecimento teórico de todas as coisas" (Crít. R. Pura, Doutr.
transe, do método, cap. III). Assim entendida, a filosofia da N. é uma das duas partes fundamentais da
filosofia (a outra é a filosofia moral) e compreende apenas os princípios a priori nos quais se baseia o
conhecimento da N., que são os fundamentos da física e das outras ciências teóricas da N., mas não as
leis, cuja descoberta, na própria N., cabe à física (lbid., cf. Crít. do Juízo, Intr., I).
Depois de Kant a expressão filosofia da N. passou a designar uma disciplina que estuda a N., mas não
como ciência. Foi desse modo que Schelling interpretou a filosofia da N., dedicando-lhe a maior parte de
sua atividade. Schelling julgava que a ciência baseada na
NATUREZA, FILOSOFIA DA
703
NECESSÁRIO
investigação experimental nunca é realmente dência. De fato, a N. é a priori, no sentido de que suas
manifestações individuais são determinadas de antemão por sua totalidade, ou seja, pela idéia de uma N.
em geral {Werke, I. EI, p. 279). Substancialmente, a tarefa da filosofia da N. é mostrar que a N. se resolve
no espírito {System der transzendentalen Idealismus, § 1), e esse objetivo permaneceu inalterado em
todas as suas manifestações no séc. XIX; nesse sentido, foi grande a influência de Hegel, que considerou
a filosofia da N. como uma das três grandes divisões da filosofia, sendo as outras duas a lógica e a
filosofia do espírito. A lógica seria o sistema das determinações puras do pensamento. A filosofia da N. e
a filosofia do espírito seriam ambas uma lógica aplicada; à filosofia da N. caberia a tarefa "de levar para a
consciência as verdadeiras formas do conceito, imanentes nas coisas naturais" {System der Phil., ed.
Glockner, I, pp. 87-88). A filosofia da N., assim entendida, nada mais é que a manipulação arbitrária de
conceitos científicos, extraídos de seus contextos, com o fim de reduzi-los a determinações racionais ou
pseudo-racionais; continuou assim inclusive quando quis escapar à formulação idealista e foi tratada do
ponto de vista realista, como fez Nicolai Hartmann. A Filosofia, da natureza (1950), deste último,
conserva a pretensão de entrever ou reconhecer o valor "metafísico" ou "ontológico" dos resultados da
ciência. Deveria ser tarefa da filosofia da N. a análise categorial dos conceitos científicos. Hartmann
afirma que "o pensamento matemático não pode dizer o que são extensão, duração, força e massa. Neste
ponto, insere-se a análise categorial: é com os portadores ou substratos da quantidade que se ligam os
problemas metafísicos de fundo da filosofia da N." {Philosophie der Natur, p. 22).
Pode-se dizer que o último e mais restrito conceito de filosofia da N. foi apresentado pelos componentes
do Círculo de Viena, nos primórdios do empirismo lógico. M. Schlick considerava a filosofia da N. como
a análise do significado das proposições próprias das ciências naturais. "Desse ponto de vista" — dizia ele
— "a filosofia da N. não é uma ciência, mas uma atividade dirigida à consideração do significado das leis
de N." {Philosophy of Na-ture, trad. in., 1949, p. 3). Neste conceito há ainda alguns vestígios da filosofia
como "visão do mundo" ou síntese dos resultados mais gerais das ciências particulares. A metodologia
contemporânea, ao contrário, tem acentuado cada vez mais a ilegitimidade de extrair as proposições
científicas de seus contextos e de encontrar nelas significados que vão muito além do que o próprio
contexto autoriza. Com essa limitação metodológica, a tarefa da filosofia da N. é cortada pela raiz. E tudo
aquilo que ela legitimamente compreendia, que eram os problemas concernentes à linguagem científica
em geral e às linguagens das ciências individuais, as relações entre as ciências, o estudo comparativo de
seus métodos, etc, hoje encontra lugar no seio da metodologia das ciências.
NATURISMO (in. Naturism; fr. Naturisme, ai. Naturismus-, it. Naturismo). 1. Doutrina ou crença de que
a natureza é o guia infalível para a saúde física e mental do homem, e de que o homem deve "retornar" a
ela em seus comportamentos e costumes, afastando-se das criações artificiais e da sociedade. Essa
doutrina fundamenta muitas práticas e crenças populares do mundo contemporâneo, após ter sido doutrina
filosófica no séc. XVIII (v. NATUREZA, ESTADO DE).
2. Menos propriamente: culto religioso da natureza.
NÁUSEA (in. Náusea-, fr. Nausée, ai. Ekel; it. Náusea).Experiência emocional de gratuidade da
existência, ou seja, da perfeita equivalência das possibilidades existenciais. Essa noção foi introduzida na
filosofia por Sartre e por ele ilustrada principalmente no romance intitulado La nausée.
NAVALHA DE OCKHAM. V. ECONOMIA.
NECESSÁRIO (gr. òvaYKaíoç; lat. Necessa-rius; in. Necessary, fr. Nécessaire, ai. Notwendig; it.
Necessário). O que não pode não ser; ou o que não pode ser. Esta é a definição nominal tradicional que
constitui uma das noções mais uniforme e firmemente estabelecidas na tradição filosófica. Segundo essa
definição, "o que não pode ser" é o impossível, que é o contrário oposto de N., sendo também N., assim
como o preto, que é a cor oposta do branco, também é cor. O contraditório do N., o não-N., é a outra
modalidade fundamental, o possível{\.). As discussões lógicas contemporâneas sobre o N., quando não
eqüivalem à negação expressa ou implícita dessa noção, nada mais são que a reapresentação dessa
definição em termos de convencionalismo moderno.
O primeiro a fazer uma análise exaustiva de "N." foi Aristóteles. Ele distinguiu: a) o N. como
NECESSÁRIO
704
NECESSÁRIO
condição ou concausa, em virtude do que se diz, p. ex., que o alimento é N. à vida ou o remédio é N. à
saúde, ou que ir a certo lugar é N. para receber certa quantia; ti) o N. como força ou coação, em virtude
do que se diz que é N. o que impede ou obsta à ação de um instinto ou uma escolha; c) o N. como o que
não pode ser de outra forma, que é o sentido fundamental do conceito. De fato, segundo Aristóteles, os
outros sentidos podem ser reduzidos a esse: "Diz-se que é N. aquilo a que somos coagidos quando uma
força qualquer nos obriga a fazer ou a sofrer alguma coisa que é contra o instinto, de tal modo que a
necessidade consiste, neste caso, em não poder fazer ou sofrer de outra forma. O mesmo vale para as
condições da vida e do bem, pois quando o bem, a vida ou o ser não podem existir sem algumas
condições, estas são chamadas de necessárias e diz-se que a causa é a própria necessidade" (Met., V, 5,
1014 b 35). No sentido fundamental, as demonstrações são necessárias porque não podem concluir de
outra forma, e não podem concluir de outra forma porque as premissas não podem ser diferentes do que
são (Ibid., 1015 b 7). O significado à) de N. é designado por Aristóteles como necessidade hipotética: é a
necessidade que se encontra nas coisas naturais, mais precisamente na matéria delas, porquanto constitui
a condição delas (Fís., II, 9, 200 a 30); De somno, 455 b 26; De pari. an., 639 b 24, 642 a 9). Já Platão
havia admitido essa espécie de necessidade, julgando-a um dos constituintes do mundo (juntamente com a
inteligência) e identificando-a com a matéria (Tini., 47 d ss.). Finalmente, Aristóteles distingue o que é N.
em virtude de uma causa externa e aquilo que é por si próprio a causa da necessidade. As coisas simples
são necessárias neste segundo sentido e portanto o são de modo primário e eminente (Ibid., 1015 b 10).
Mas o conceito da necessidade é sempre o mesmo.
Estas concepções quase não mudaram ao longo da história da filosofia. Os estóicos definiram a
necessidade tendo em mente enunciados verbais mais que condições de fato; por isso, chamaram de N.
"aquilo que é verdadeiro e não pode revelar-se falso" (DIÓG. L., VII, 1, 75), onde "não poder revelar-se
falso" significa não poder ser diferente. Tampouco as distinções estabelecidas por S. Tomás de Aquino
mudam o conceito do N., conforme a divisão aristotélica das quatro causas. S. Tomás de
Aquino enumera: a) necessidade material (ou ex principio intrínseco), no sentido em que se diz que "é N.
que tudo o que é composto por contrários se corrompa"; b) necessidade formal, que é natural e absoluta,
segundo a qual se diz que "é N. que um triângulo tenha os três ângulos iguais a dois retos"; c) necessidade
final ou utilidade, segundo a qual se diz que o alimento é N. à vida ou um cavalo é N. à viagem; d)
necessidade eficiente, ou necessidade de coação, segundo a qual somos coagidos por uma causa eficiente
de tal modo que não se pode agir de outro modo. Em todos os casos, para S. Tomás de Aquino N. é
"aquilo que não pode não ser" (S. Th., I, q. 82, a. 1, I; De ver., q. 22, a. 5). Está claro que essa distinção
reproduz a aristotélica. A necessidade material e a final são a necessidade hipotética de Aristóteles; a
necessidade por coação tem o mesmo nome em Aristóteles, e tanto para S. Tomás de Aquino quanto para
Aristóteles a necessidade "natural e absoluta" é o significado fundamental da necessidade. Essas
distinções, às vezes indicadas com outros nomes, não mudaram durante muito tempo na história da
filosofia. Os escolásticos repetem-nas sem alterações, assim como repetem, mesmo acreditando pouco, o
significado fundamental de N. como aquilo que não pode ser de outra forma (cf., p. ex., JOÃO DE
SALISBURY, Metalogicus, II, 13). Avicena, a quem se deve a prevalência do conceito de necessidade em
metafísica e em teologia, tanto na escolástica árabe quanto na cristã, partira da distinção aristotélica
(Met., V, 5, 1015 b 10, já cit.) entre o que é N. para si e o que é N. para outra coisa (Met., II, 1, 2):
distinção que fundamenta a doutrina de Spinoza (Et., I, 33, schol. 1) e foi repetida inúmeras vezes a partir
daí.
As primeiras novidades conceptuais nessa história uniforme são a definição da necessidade lógica e a
introdução do conceito de necessidade moral por parte de Leibniz, que distinguiu: d) a necessidade
geométrica, que pertence às verdades eternas e "cujo oposto implica contradição"; b) a necessidade física,
que constitui "a ordem da natureza e consiste nas regras do movimento e em alguma outra lei geral que
aprouve a Deus dar às coisas ao criá-las"; c) a necessidade moral, que é "a escolha do sábio por ser digna
de sua sabedoria", ou seja, a escolha do "melhor" (Théod., Disc, § 2). A necessidade física baseia-se na
necessidade moral (foi Deus quem escolheu as leis da natureza que constituem a necessidade física e sua
NECESSÁRIO
705
NECESSÁRIO
escolha foi ditada pelo fato de que eram as melhores possíveis); as necessidades física e moral são
chamadas por Leibniz de hipotéticas; segundo ele, estas nada têm a ver com a necessidade absoluta, que.
é a impossibilidade do con-trárío(Nouv. ess., II, 21,13). Leibniz utiliza essa distinção para defender a
liberdade de Deus e a do homem, ao mesmo tempo em que põe a salvo a infalibilidade da previsão divina:
"A verdade de que amanhã escreverei não é absolutamente necessária. Mas, supondo-se que Deus a
preveja, é N. que ela se verifique, ou seja, é necessária a conseqüência de que ela se realize desde que foi
prevista, já que Deus é infalível: isso é o que se chama de necessidade hipotética" (Théod., I, § 37; cf.
Disc. de mét., 13). A diferença entre essa doutrina de Leibniz e a tradicional é que esta última considerava
uma espécie de necessidade, integrante do significado fundamental do termo, aquilo que Leibniz
considera como liberdade e escolha: a necessidade hipotética. Em outras palavras, Leibniz restringiu o
significado de necessidade ao que Aristóteles e a tradição aristotélica consideravam como necessidade
"primária", "absoluta" ou "natural", dando-lhe o nome de "geométrica" ou "metafísica". A definição
leibniziana dessa necessidade como "aquilo cujo oposto é impossível", ou "aquilo cujo oposto é
contraditório", serve para limitar sua extensão apenas às verdades matemáticas e a um restrito nú-mero de
verdades metafísicas. Esse é o resultado importante e duradouro da introdução do conceito de necessidade
moral por parte de Leibniz. Quanto a esse conceito, a partir do momento que exclui a necessidade e é a
própria definição da determinação livre, pode-se objetar a impropriedade do nome: ele não é
"necessidade".
No entanto, foi como tipo ou espécie de necessidade que ingressou na filosofia do séc. XVIII, juntamente
com a distinção das formas do N. proposta por Leibniz. Wolff reela-borou esta distinção, distinguindo: a)
o absolutamente N., que é "aquilo cujo oposto é impossível ou implica contradição" (Ont., § 279); b) o
hipoteticamente N., que é "aquilo cujo oposto implica contradição ou é impossível só em dada hipótese
ou em determinada condição" (Ont., § 302); c) o moralmente N., que é "aquilo cujo oposto é moralmente
impossível" (Phil. pratica, I, § 115). A diferença entre o absolutamente N. e o hipoteticamente N. é que o
primeiro exclui a contingência e o segundo não (Ibid., §§ 317-
18). Ao contrário de Leibniz, Wolff não reduz a necessidade hipotética à necessidade moral, ou seja, à
liberdade, mas identifica-a com a necessidade regida pelo princípio de razão suficiente, ou seja, com a
causalidade (Ibid., §§ 320 ss.). O próprio Wolff afirma que essa sua doutrina da necessidade é idêntica à
tradicional, em particular à de S. Tomás de Aquino (Ibid., § 327), com a definição do N. como aquilo que
não pode ser de outra forma; e certamente o é, salvo no que se refere ao reconhecimento da necessidade
moral. Essa doutrina é simplesmente reproduzida por Kant, que também faz a distinção entre
"necessidade material na existência", que consiste na conexão causai, e necessidade "formal e lógica na
conexão dos conceitos" (Crít. R. Pura, Anal, II, cap. II, seção 3, Postulados do pensamento empírico);
distingue ainda dessas duas espécies de necessidade a "necessidade moral", como coação ou obrigação,
que é o dever (Crít. R. Prática, I, livro I, cap. III; trad. it., p. 96). A necessidade material é a necessidade
real ou hipotética. Kant diz: "Tudo o que acontece é hipoteticamente N.; esse é um princípio que
subordina a transformação no mundo a uma lei, a uma regra da existência necessária, sem a qual a
natureza não existiria" (Crít. R. Pura, 1. c). Na realidade, para Kant a conexão causai é "hipotética",
porque a considera aberta nos dois lados e não acha legítimo considerá-la fechada como totalidade ou
série absoluta. Obviamente, se isso acontecesse, a necessidade hipotética tomar-se-ia necessidade
absoluta ou geométrica. Schopenhauer, por sua vez, achava que a necessidade não tinha outro sentido
além de "inevitabilidade do efeito quando a causa foi posta", considerando até contraditório falar de um
ser "absolutamente necessário", ou seja, "necessário sem condições" (Überdie vierfache Wurzel des
Satzes vom zureichenden Grande, § 49). Mas com o idealismo romântico, foi a necessidade absoluta que
assumiu o papel mais importante. Fichte afirmava: "Qualquer coisa realmente existe, existe por absoluta
necessidade; e existe necessariamente na forma precisa em que existe. É impossível que não exista ou que
exista de outra forma" (Grundzüge des gegenwãrtigen Zeitalters, 9). Absoluto também era o significado
da necessidade que Hegel definia como "unidade de possibilidade e realidade", definição que exprime a
"presença da totalidade das condições" em cada momento do real e portanto da plena e absoluta
necessidade
NECESSÁRIO
706
NECESSÁRIO
do real. "Quando se têm todas as condições" — diz Hegel — "a coisa deve tornar-se real" {Ene, § 147).
"O N. é mediado por um círculo de circunstâncias: é assim porque as circunstâncias são assim, e ao
mesmo tempo é assim imediato, é assim porque é" ilbid., § 149). Desse modo a necessidade torna-se alma
da realidade, dialética (v.) da Razão Real ou da Realidade Racional. Essa extensão da necessidade ao
infinito não renova, como é óbvio, as características do conceito, que contínua sendo o mesmo definido
por Aristóteles; assim como essas características não são renovadas pelo uso contemporâneo desse
conceito, que mais insiste na necessidade do real, em seus diversos graus e formas: Nicolai Hartmann (cf.
especialmente Mõg-lichkeit und Wirklichkeit, 1938) (v. POSSÍVEL).
Agora podemos lançar uma vista d'olhos na sorte que a filosofia contemporânea deu às três formas do N.,
comumente admitidas a partir de Wolff, provando que esse conceito realmente não foi inovado.
I
a O moralmente N., o obrigatório ou o que é de dever, embora algumas vezes continue recebendo esse
nome, não pode ser incluído nas formas do N.;
2- O hipoteticamente N., identificando-se com o causai(v.) ou o condicional(v.), compartilha o destino
desses conceitos;
3
a
É ao absolutamente N., ao N. "geométrico" ou "lógico", que se faz mais freqüentemente referência no
domínio do saber filosófico e científico. Wittgenstein diz: "Existe apenas uma necessidade lógica, e assim
existe apenas uma impossibilidade lógica" (Tractacus, 6.375).
Quase todos os lógicos contemporâneos subscrevem, ou implicitamente admitem, essa tese de
Wittgenstein. Não há acordo entre eles, no entanto, quanto à definição de necessidade lógica. As
principais doutrinas a respeito são: d) doutrina da analiticidade, b) doutrina da regra; c) doutrina da
imunidade, d) doutrina da qualidade.
d) A primeira é herdeira da definição leib-niziana da necessidade lógica como "impossibilidade do
contrário". Peirce dizia que lógica ou essencialmente'N. é aquilo que uma pessoa que não conhece os
fatos, mas está perfeitamente a par das regras do raciocínio e das palavras implícitas no raciocínio, sabe
que é verdadeiro. Tal pessoa, p. ex., não sabe se existe ou não um animal chamado basilisco ou se existem
coisas como serpentes, galinhas e ovos, mas sabe que todo basilisco nasceu de um ovo
de galinha chocado por uma serpente. "Isso é essencialmente N. porque é isso que a palavra basilisco
significa" iColl. Pap., 4.67). Lewis, por sua vez, disse que "uma asserção é logicamente necessária se, e
somente se, o contraditório dela é incompatível consigo mesmo" (Analysis of Knowledge and Valuation,
1946, p. 89), que nada mais é que uma reformulação da definição de Leibniz. No mesmo sentido
Strawson disse que "uma asserção é necessária quando é a contraditória de uma asserção inconsistente"
ilntr. to Logical Theory), 1952, p. 22). Carnap, observando que o conceito de necessidade lógica é
comumente entendido no sentido de que se aplica a uma proposição p "se e somente se a verdade de p se
baseia em razões puramente lógicas e não dependentes da contingência dos fatos, em outras palavras, se a
pressuposição de não-p conduz a uma contradição lógica, independentemente dos fatos", identificou a
necessidade lógica com a verdade lógica e definiu a verdade lógica, na esteira de Leibniz, como a verdade
que é válida em todos os mundos possíveis, ou, em sua terminologia, é válida em qualquer descrição de
estado de um sistema. Sua definição da descrição de estado esclarece esse conceito: "Uma classe de
enunciados em SI que, para cada enunciado atômico, contém esse enunciado ou sua negação mas não
ambas as coisas, nem nenhum outro enunciado, é chamado de descrição de estado em SI, porque ele
obviamente dá a descrição completa de um possível estado do universo dos indivíduos em relação a todas
as propriedades e relações expressas pelos predicados do sistema. Assim, as descrições de estado
representam os mundos possíveis de Leibniz ou os possíveis estados de coisas de Wittgenstein" {Meaning
and Necessity, §§ 2 e 39). Essa é a expressão mais rigorosa que a tese da redução da necessidade à
analiticidade já teve. No entanto, não esteve imune a críticas (cf., p. ex., QUINE, From a LogicalPoint
ofView, II; A. PAP, Semantics and Necessary Truth, pp. 150 ss.).
b) A segunda interpretação da necessidade lógica reduz os enunciados à aplicação da necessidade a
simples regras: regras de transformação ou, mais simplesmente, regras lingüísticas. A doutrina segundo a
qual as "verdades necessárias" da matemática (p. ex., a famosa proposição de que falava Kant, "7 + 5 =
12") nada mais são do que regras de transformação, regras que permitem inferir uma fórmula de
NECESSÁRIO
707
NECESSIDADE
outra, permitindo, portanto, a possibilidade de substituições recíprocas das fórmulas, já foi exposta pelo
Círculo de Viena, especialmente por Schlick, e reaparece freqüentemente na literatura contemporânea (cf.,
p. ex., K. BRITTON, em Proceedings of the Aristotelian Society, 21s
, 1947). Aliás, como também reaparece
a doutrina segundo a qual as proposições analíticas (ou tautologias) que constituem as "verdades
necessárias" da lógica nada mais são que regras lingüísticas ou, mais precisamente, regras semânticas. De
fato o enunciado "todos os solteiros são não casados" pode ser interpretado como uma regra para o uso da
palavra "solteiro", regra extraída do uso. A objeção algumas vezes formulada contra essas doutrinas, de
que elas privariam a verdade N. do nível de "proposição" porque uma proposição é sempre verdadeira ou
falsa, enquanto uma regra, ao contrário, é sobretudo útil, conveniente, correta, etc. (cf., p. ex., PAP, op.
cit., pp. 179 ss.), não é muito concludente, porque demonstra apenas a incompatibilidade entre essa
interpretação de verdade N. e o conceito tradicional de proposição.
c) A terceira interpretação da necessidade lógica é a dada por Quine, segundo quem ela seria a imunidade
concedida a certas proposições em matemática e lógica, porquanto, em vista do caráter central que
ocupam no sistema, sua revisão perturbaria enormemente esse sistema, cujas características fundamentais
tendemos a conservar na medida do possível. Desse ponto de vista, N. não significaria "aquilo que não
pode ser de outra maneira", mas sim "aquilo sem o que não se quer passar", não porque seja impossível
passar sem ele, mas porque assim é preferível. Esta interpretação baseia-se na rejeição da distinção entre
verdades analíticas (ou de razão) e verdades sintéticas (ou de fato), nas quais se baseiam as interpretações
estudadas em a) (QUINE, Methods of Logic, p. XIII; From a Logical Point o/View, II e VIII). Essa
interpretação obviamente eqüivale à eliminação do próprio conceito de necessidade.
d) A quarta interpretação considera a necessidade como uma propriedade intrínseca das proposições,
consideradas como objetos, no sentido de Carnap: precisamente uma propriedade que as proposições
possuem antes da formulação das convenções lingüísticas. Desse ponto de vista, "explicar a necessidade
dos princípios tradicionais da inferência dedutiva em termos de convenções lingüísticas significa
pôr o carro à frente dos bois". Esta é a tese de A. PAP (Semantics andNecessary Truth, espec. cap. 7; cf.
também "Necessary Propositions and Linguistics Rules", em Archivio difilosofia, 1955, pp. 63-105).
Segundo essa doutrina, a necessidade lógica não se distingue de uma quali-tas occulta.
Dessas quatro interpretações, a única que não eqüivale à negação da necessidade é a primeira, que a
identifica com analiticidade ou tautologicidade. Trata-se de uma interpretação intimamente ligada ao
conceito que Wittgen-stein expôs sobre a tautologia: "Entre os possíveis grupos de condições de verdade
dão-se dois casos extremos: em um, a proposição é verdadeira para todas as possibilidades de verdade
das proposições elementares, e nesse caso dizemos que as condições de verdade são tautológicas; no
outro, a proposição é falsa para todas as possibilidades de verdade. as condições de verdade são
contraditórias" (Tractatus, 4. 46). Por conseqüência, "a tautologia não tem condição de verdade porque é
incondicionalmente verdadeira, e a contradição a nenhuma condição é verdadeira" (Ibid., 4.461). Isso
eqüivale a dizer que uma afirmação incondicionalmente verdadeira, ou seja, uma tautologia, uma
proposição N., como se queira chamá-la, é aquela que esgota todas as gamas de possibilidades. Este
também é o significado da doutrina de Carnap sobre a verdade lógica como "descrição de estado", ou
seja, como verdade válida para todos os mundos possíveis ou para todos os possíveis estados de coisas.
Desse ponto de vista, há necessidade sempre que é possível enumerar todas as possibilidades, e
necessidade eqüivale, praticamente, a onipossibilidade. Não se trata de doutrina recente. No séc. XIV,
Ockham só considerava N. as proposições condicionais ou equivalentes ou as que tratam do possível,
como, p. ex., "Se existe homem, o homem é animal racional", ou "Todo homem pode ser animal racional"
(Quodl., V, q. 15). Como apenas convenções lingüísticas de outra natureza podem limitar
convenientemente a gama de possibilidades a que uma proposição faz referência, está claro que esse
conceito de necessidade é inteiramente reduzível a convenção. NECESSIDADE (gr. xpeía ou àváyKT|;
lat. Necessitas, in. Need; fr. Besoin; ai. Bedürfniss-, it. Bisognó). Em geral, dependência do ser vivo em
relação a outras coisas ou seres, no que diz respeito à vida ou a quaisquer interesses. Nesse
NECESSIDADE
708
NECESSIDADE
sentido, fala-se de "N. materiais", "N. físicas", "N. espirituais", "N. de disciplina", "N. de "regras", "N. de
liberdade", "N. de afeto", "N. de felicidade", "N. de ajuda", "N. de comunicação", etc. Qualquer tipo ou
forma possível de relação entre o homem e as coisas, ou entre o homem e os outros homens, pode ser
considerado sob o aspecto da N., implicando que o ser humano depende dessas relações. Na história da
filosofia, a noção de N., nesse sentido (v. NECESSÁRIO), foi tratada sob duas perspectivas: ls
) mais
freqüentemente do ponto de vista moral, ou seja, como atitude a tomar diante das N., se de limitação ou
de incentivo, ou de que modo e em que grau limitá-las; 2Q
) com menos freqüência, do ponto de vista da
importância e do significado que a N. tem em relação ao modo de ser do homem, da possibilidade que ela
representa para ele compreender e descrever sua existência. O problema da disciplina das N., ou seja, da
sua limitação qualitativa e quantitativa, é o problema da virtude, em especial da virtude ética, e seus
desdobramentos históricos devem ser vistos no verbete Virtude. Aqui, cabe analisar o problema da N.
como símbolo, sintoma ou elemento da condição humana. Na Antigüidade, Platão parece ter reconhecido
o valor da N.: esse parece ser o significado da importância por ele atribuída ao amor, que, em O Banquete
(204-05), interpretou em seu significado mais amplo como falta e busca do que falta. Além disso, em
República (II, 369 b ss.), ele atribui a origem do Estado à N.: "Quando um homem se reúne com outro em
vista de uma N., e com outro homem em vista de outra N., e quando essa multiplicidade de homens reúne
no mesmo local vários homens que se associam para se ajudar, damos a essa sociedade o nome de
Estado." É menos explícita a noção de N. encontrada na filosofia de Aristóteles: este certamente não
ignora o seu peso na vida individual e social do homem (como demonstra sua Política), mas não lhe
atribui função específica: mesmo a origem do Estado, para ele, deve-se à exigência de viver feliz, o que
significa sobretudo vida virtuosa (Pol., VII, 2, 1324 a 5 ss.). A filosofia pós-aristotélica desinteressa-se
das necessidades, ainda que Epicuro aconselhe a satisfazê-las (Mass. capit., 26; Fr. 200, Usener), pois
está muito ocupada em esboçar o ideal de sábio, dedicado à vida puramente contemplativa. Tampouco
lançam mão da N. para interpretar a realidade humana a filosofia medieval e a moderna,
que preferem enfatizar os elementos ou os caracteres que dão destaque à independência do homem em
relação ao mundo, e não à sua dependência. Mesmo falando de um "sistema de N.", Hegel prefere dizer
que a N. é dominada pelo homem, e não o contrário: "O animal tem um círculo limitado de meios e
modos de satisfazer às suas N., que são igualmente limitadas. O homem, ainda que dependa delas,
demonstra ao mesmo tempo que as supera e universaliza, sobretudo através da multiplicação das N. e dos
meios, bem como através da decomposição e da distinção da N. concreta" (Fil. do dir., § 190). A primeira
afirmação clamorosa da importância das N., para a interpretação do que o homem é ou pode ser, seria
vista na filosofia de Schopenhauer, que interpretou como N. — portanto como falta e dor — a vontade de
vida que constitui a essência numênica do mundo. "A base de qualquer vontade é N., falta, ou seja, dor, à
qual o homem está vinculado desde a origem, por natureza" (Die Welt, 1819, I, § 57). Fora da metafísica,
no terreno da antropologia, quem insistiu na estreita conexão entre N. e natureza humana foi L. Feuerbach
(GrundsatzederPhilosophie der Zukunft, 1844). Marx, nas obras juvenis (Economia e filosofia, 1844;
Ideologia alemã, 1845-46), acentuou a importância das N. e, portanto, do trabalho destinado a satisfazêlas, chegando a tomá-las como tema fundamental de sua antropologia (v. PESSOA). Na filosofia
contemporânea, além do marxismo, a importância da noção de N. para a interpretação da realidade
humana é ressaltada de um lado pelo naturalismo e de outro pelo existencialismo. Dewey, p. ex., ao
insistir na "matriz biológica" das atividades humanas (portanto também da lógica), vê a N. como ruptura
do instável equilíbrio orgânico e o início da busca que tende a restabelecê-lo (Logic, cap. II, trad. it., p.
63). Por outro lado, na definição de "ser-no-mun-do" por Heidegger, em que a existência do homem
consiste em cuidado [cura] (v.), o homem depende do mundo, "está lançado no mundo, que domina as
possibilidades humanas de relações com as coisas e com os outros homens" (Sein undZeit, §§ 39 ss., cf. §
20). A noção de N. que emerge dessas considerações não é de estado provisório de falta ou deficiência
(tem-se necessidade de ar, apesar de este existir em abundância), mas de estado ou condição de
dependência que caracteriza de modo específico o homem e, em geral, o ser finito no mundo.
NECESSITARISMO
709
NEGATIVO
NECESSITARISMO (in. Necessitarianism; fr. Nécessitarisme, it. Necessitarismó). Este termo, muito
usado em inglês, é útil para indicar o conjunto das doutrinas que, de alguma maneira, atribuem posição
eminente ao conceito de necessário ou o utilizam sistematicamente. Podem ser enumeradas pelo menos
três doutrinas fundamentais desse gênero:
I
a A doutrina que admite o destino, a ordem finalista ou providencial do mundo como ordem que
determina necessariamente todas as coisas e a cada coisa garante o melhor resultado. Esta doutrina pode
ser chamada de pro-videncialismo ou fatalismo, mas este último termo é empregado apenas por quem a
combate ou pelo menos se opõe a alguns de seus aspectos (v. DESTINO; PROVIDÊNCIA). O significado de
necessário ao qual tal doutrina faz referência é o d) de Aristóteles e c) de S. Tomás de Aquino.
2
a
A doutrina segundo a qual a ordem do mundo consiste na conexão causai universal; faz referência ao
necessário no significado d) de Aristóteles, d) de S. Tomás de Aquino, b) de Leibniz, de Wolff e de Kant.
Trata-se do determinismo rigoroso ou clássico, que melhor seria chamar de causalismo (v. CAUSALIDADE;
DETERMINISMO).
3
a
A doutrina segundo a qual a necessidade constitui o significado primário e fundamental do ser,
utilizando-o como critério para a avaliação e a análise de todas as coisas existentes. Esse significado de N.
é certamente o mais importante e fundamental, ao qual o termo deveria referir-se de preferência. Para essa
doutrina, o necessário é a categoria fundamental, o horizonte geral que abrange todos os instrumentos de
investigação e explicação que é possível utilizar. Freqüentemente essa doutrina não admite a necessidade
no mesmo sentido da I
a
e da 2a
; Aristóteles e S. Tomás de Aquino, p. ex., que podem ser considerados
exemplos importantes dessa doutrina, embora admitindo a necessidade do destino, não admitem a
necessidade causai absoluta; no entanto são necessitaris-tas no sentido de que, para eles, o significado
fundamental do ser é a necessidade, e de que esse significado está presente na construção de todos os
conceitos fundamentais de sua filosofia. No mesmo sentido, é necessitarista a doutrina de Hegel e são
necessitaristas todas as doutrinas que se inspiram no idealismo romântico. Mas o aparato conceituai do N.
difundiu-se muito além desta ou daquela doutrina:
conceitos como os de causa e substância, com todas as suas inferências, que são numerosíssimas,
dominam ainda vastas zonas do discurso comum, científico e filosófico e induzem seu sentido
necessitarista nas análises da ciência e da filosofia.
NEGAÇÃO (gr. àTtócpacnç; lat. Negatio-, in. Negation; fr. Negation; ai. Verneigung, Negation; it.
Negazioné). Termo com o qual se pode designar tanto o ato de negar quanto o conteúdo negado, ou seja,
a proposição negativa, chamada em grego àrccxpaoiç (lat. negatia Boécio) e definida como "enunciado
que divide algo de algo" (De interpr., 17 a 26), porquanto, segundo a mesma doutrina aristotélica, separa
ou afasta dois conceitos. Substancialmente, a tradição lógica subseqüente conservou essa doutrina e
portanto este significado do termo N.; foram só os seguidores da teoria do juízo como assentimento
(Rosmini, Fr. Bren-tano, Husserl) que consideraram a N. como ato de contestação (recusa, repúdio,
Verneigung) de uma representação ou idéia. Na Lógica simbólica contemporânea a N. é representada por
um símbolo especial ("~") que, anteposto ao símbolo de uma proposição "p", transforma-a na afirmação
de que "p' é falsa (Russell) ou numa nova proposição (molecular), função de verdade de "p", mais
precisamente (na Lógica com dois valores) na proposição que é falsa quando "p" é verdadeira e
verdadeira quando "p" é falsa (Wittgenstein, Carnap). G. P.
NEGATIVO (gr. àjiocpaxvKÓÇ; lat. Negativus; in. Negative, fr. Négatif, ai. Negativ, it. Negativo).
Aquilo que efetua ou implica uma negação, ou seja, uma exclusão de possibilidade. Uma entidade N. (p.
ex., uma proposição) não implica que subsiste a entidade positiva correspondente à qual depois é
acrescentada a negação, mas é simplesmente a exclusão de uma possibilidade e, na maior parte das vezes,
de uma possibilidade formulada somente com o fim de excluí-la.
Os múltiplos usos desse termo podem integrar-se neste significado fundamental. "Resultado N." de um
experimento significa exclusão de certa possibilidade de interpretação ou de explicação. "Efeito N." de
certa operação significa exclusão daquilo que se esperava ser possível a partir da operação. "Atitude N."
em relação a uma doutrina ou a uma coisa qualquer é a atitude que exclui a possibilidade de que a
doutrina seja verdadeira ou de que a coisa tenha um valor qualquer, etc.
NEOCRITICISMO
710
NEOPIATONISMO
NEOCRITICISMO (in. Neo-Criticism; fr. Néocriticisme, ai. Neukantianismus; it. Neo-criticísmó).
Movimento de "retorno a Kant" iniciado na Alemanha em meados do século passado e que deu origem a
algumas das mais importantes manifestações da filosofia contemporânea. As características comuns de
todas as correntes do N. são as seguintes: I
a
negação da metafísica e redução da filosofia a reflexão sobre
a ciência, vale dizer, a teoria do conhecimento; 2- distinção entre o aspecto psicológico e o aspecto
lógico-objetivo do conhecimento, em virtude da qual a validade de um conhecimento é completamente
independente do modo como ele é psicologicamente adquirido ou conservado; 3a
tentativa de partir das
estruturas da ciência, tanto da natureza quanto do espírito, para chegar às estruturas do sujeito que a
possibilitariam.
Na Alemanha, a corrente neocriticista foi constituída pelas seguintes escolas: le
de Marburgo {Marburger
Schulè), à qual pertenceram F. A. Lange, H. Cohen, P. Natorp, E. Cassirer, e à qual também se liga, em
parte, Nicolai Hartmann; 2a
de Baden {Badische Schulé), fundada por W. Windelband e H. Rickert, 3Q
historicismo alemão, com G. Sim-mel, G. Dilthey, E. Troeltsch, etc. Esta última escola formulou o
problema da história analogamente ao modo como as outras escolas kantianas formulavam o problema da
ciência natural (v. HISTORICISMO). Fora da Alemanha, vinculam-se à corrente neocriticista C. Renou-vier
e L. Brunschvicg, na França, S. H. Hodgson e R. Adamson, na Inglaterra, e Banfi na Itália.
NEO-HEGEIIANISMO(in. Neo-Hegelianism, fr. Néo-Hegélianisme, ai. Neuhegelianismus-, it.
Neohegelismó). Retorno ao idealismo romântico, ocorrido na Inglaterra, na Itália e na América nos
últimos decênios do séc. XIX e nos primeiros do séc. XX. O N., assim como o idealismo romântico de
que é sucessor direto, tem como tese fundamental a identidade entre finito e infinito, a redução do homem
e do mundo da experiência humana ao Absoluto. O neo-idealismo anglo-americano e o italiano distinguem-se no modo de efetuarem essa redução. O idealismo anglo-americano faz isso por vias negativas,
mostrando que o finito, por sua intrínseca irracionalidade, não é real, ou é real apenas na medida em que
revela e manifesta o infinito. O idealismo italiano utiliza as vias positivas, mostrando na própria estrutura
do finito, em sua racionalidade intrínseca e necessária, a
presença e a realidade do infinito. Este era também o modo sustentado por Hegel e por todo o idealismo
romântico. À corrente inglesa pertencem C. H. Stirling, T. H. Green, B. Bosan-quet, J. E. McTaggart e
especialmente F. H Bradley, que é o seu maior representante. Na América, o maior expoente do N. foi J.
Royce. Os maiores representantes do idealismo italiano foram G. Gentile e B. Croce. Sobre todos, v.
IDEALISMO.
NEO-IDEALISMO. V. NEO-HEGELIANISMO.
NEOKAJSTISMO. V. NEOCRITICISMO.
NEOPITAGORISMO (in. Neo-Pythagoria-nism, fr. Néo-pythagorisme, ai. Neupythagoreis-mus-, it.
Neopitagorismó). Revivescência da filosofia pitagórica que se manifestou no séc. I a.C, tanto com o
aparecimento de textos pitagóricos de falsa atribuição {Ditos áureos, Símbolos, Cartas, atribuídos a
Pitágoras) e de outros atribuídos ao lucano Ocello e a Hermes Trismegisto, quanto com o florescimento
de filósofos que declaravam inspirar-se nas doutrinas do pitagorismo antigo. Entre eles: Nigídio Figulo,
Apolônio de Tiana, Nicômaco de Ge-rasa e principalmente Numênio de Apaméia (séc. I d.C). As
doutrinas destes escritores nada têm de original, mas apresentam características que se tornaram próprias
do neoplato-nismo (v.).
NEOPIATONISMO (in. Neo-Platonism, fr. Néo-platonisme, ai. Neuplatonismus; it. Neopla-tonismó).
Escola filosófica fundada em Alexandria por Amônio Saccas no séc. II d.C, cujos maiores representantes
são Plotino, Jâmblico e Proclos. O N. é uma escolástica, ou seja, a utilização da filosofia platônica
(filtrada através do neopitagorismó, do platonismo médio e de Fílon) para a defesa de verdades religiosas
reveladas ao homem ab antiquo e que podiam ser redescobertas na intimidade da consciência. Os
fundamentos do N. são os seguintes:
1
Q
caráter de revelação da verdade, que, portanto, é de natureza religiosa e se manifesta nas instituições
religiosas existentes e na reflexão do homem sobre si próprio;
2
a
caráter absoluto da transcendência divina: Deus, visto como o Bem, está além de qualquer
determinação cognoscível e é julgado inefável;
3
a
teoria da emanação, ou seja, todas as coisas existentes derivam necessariamente de Deus e vão-se
tornando cada vez menos perfeitas à medida que se afastam d'Ele; conseqüentemente o mundo inteligível
(Deus, Intelecto e
NEOPosrnvisMO
711
NEOTOMISMO
Alma do mundo) é distinto do mundo sensível (ou material), que é uma imagem ou manifestação do
outro;
4
e
retorno do mundo a Deus através do homem e de sua progressiva interiorização, até o ponto do êxtase,
que é a união com Deus.
No N. costumam ser distinguidas as seguintes escolas: Siríaca, fundada por Jâmblico; de Pérgamo, à qual
pertencem, entre outros, o imperador Juliano, chamado o Apóstata; de Atenas, cujo maior representante
foi Proclos. Mas a influência das doutrinas fundamentais do N. sobre muitas correntes do pensamento
filosófico foram e continuam sendo profundas.
O "platonismo" do Renascimento na realidade é um N. que repete, com algumas variações, as teses acima
expostas. As variações que caracterizam o N. renascentista (de Cusa, Pico delia Mirandola e Ficino) são
relativas à maior importância atribuída ao homem e à sua função no mundo, de acordo com o espírito
geral do Renascimento (v.). O N. inglês, ao contrário, é uma forma de racionalismo religioso que
floresceu na escola de Cambridge no séc. XVII (Cudworth, Moore, Whichcote, Smith, Culver-wel): por
um lado, opõe-se ao materaislismo de Hobbes e, por outro, sustenta que as idéias fundamentais da religião
foram impressas diretamente por Deus na razão e no intelecto do homem, e por isso precedem o
conhecimento empírico das coisas naturais. Mas mesmo no N. inglês são muitos os temas do
Renascimento, especialmente de Ficino.
NEOPOSnTVISMO (in. Neo-positivism; fr. Néo-positivisme, ai. Neupositivismus; it. Neo-positivismó).
1. O mesmo que empirismo lógico (v.).
2. Nome dado algumas vezes à doutrina de Bergson (LE ROY, Un positivisme nouveau, 1901).
NEO-REALISMO (in. New Realism- fr. Néo-realisme-, ai. Neurealismus; it. Neorealismó). Recebem
esse nome as correntes do pensamento contemporâneo cuja insígnia é a negação do idealismo
gnosiológico (v.), a negação da redução do objeto do conhecimento a um modo de ser do sujeito. O
idealismo gnosiológico foi o clima dominante da filosofia no séc. XIX, pois que era compartilhado não só
pelo idealismo romântico, mas também pelo espiritualismo, pelo neocriticismo e, em geral, por todas as
filosofias consciencialistas. Exceções a essa tendência geral foram, inicialmente, a filosofia da imanência
de G. Schuppe e a
obra de O. Külpe (Einleitung in die Philo-sophie, 1895). Mas foi só a partir do ensaio de G. E. MOORE,
"A refutação do idealismo", publicado em MinaXI903), que teve início a nova história do realismo.
Depois disso, o realismo foi defendido na Inglaterra por B. Russell e S. Alexander, enquanto na América
um volume coletivo datado de 1912 e intitulado O novo realismo afirmava as teses de um realismo
atualizado, que, com outra forma, seriam re-propostas alguns anos mais tarde em Ensaios de realismo
critico (1920), publicados por outro grupo de filósofos americanos. No primeiro grupo a figura mais
conhecida foi W. P. Monta-gue; no segundo grupo, G. Santayana. Mais tarde, o novo realismo encontrou
seguidores em A. N. Whitehead e em N. Hartmann.
O novo realismo contém correntes doutrinais tão diferentes quantos são os filósofos que o professam, mas
há uma tese fundamental, comum a todos, que, além de constituir sua novidade e a característica que o
distingue do realismo tradicional, também serve de linha de defesa contra o idealismo. Essa tese é a
seguinte: a relação cognitiva (a relação entre o objeto do conhecimento e o sujeito. que é a mente que o
apreende) não modifica a natureza do objeto. Essa tese inspira-se na noção matemática de "relação
externa", que não modifica os termos relativos. Esta, como é óbvio, elimina completamente a
dependência existencial ou qualitativa do objeto do conhecimento em relação ao sujeito e torna o
idealismo sem sentido. Apesar de afastados por todos os outros aspectos, Moore, Montague, Santayana,
Alexander, Hartmann compartilham dessa tese.
NEOTOMISMO (in. Neo-Thomism; fr. Néo-thomisme, ai. Neutbomismus; it. Neotomismó). Com este
termo ou com o outro, bem menos apropriado, de "neo-escolástica" entende-se o movimento de retorno à
doutrina de S. Tomás de Aquino, no seio da cultura católica, que foi iniciado pela encíclica Aeterni Patris
de Leão XIII (4 de agosto de 1879). Esse movimento consiste na defesa das teses filosóficas tomistas
contra as diversas tendências da filosofia contemporânea e, indiretamente, na reelaboração e na
modernização de tais teses. Uma das primeiras figuras do N. foi o cardeal belga Désiré Mercier (falecido
em 1925), enquanto entre as figuras mais conhecidas do mundo contemporâneo estão E. Gilson e J.
Maritain. Habitualmente o tomismo aceita a problemática da filo-
NEOVTTAUSMO
712
NnnusMO
sofia contemporânea, mas procura integrá-la na sistemática tomista. Um dos mais importantes efeitos da
florescência neotomista foi a importância que voltou a ser atribuída, a partir dos últimos decênios do séc.
XIX, aos estudos de filosofia medieval, isto é, da escolástica clássica.
NEOVITALISMO. V. VITALISMO.
NESTORIANISMO(in. Nestorianism; fr. Nes-torianisme, ai. Nestorianismus; it. Nestorianis-mó).
Doutrina de Nestório, patriarca de Constan-tinopla (428-31), segundo a qual, havendo em Cristo duas
naturezas, há também duas pessoas: uma habita na outra como em um templo. Nestório negava também
que Maria fosse mãe de Deus e chamava de lenda paga a idéia de um Deus envolto em fraldas e
crucificado. Essa interpretação da encarnação já havia sido sustentada por Deodoro de Tarso (falecido por
volta de 394) e por seu discípulo Deodoro de Mopsuéstia (falecido por volta de 428). Foi condenada pelo
concilio de Éfeso de 431, mas subsistiu por muito tempo, e ainda sobrevive em grupos da Turquia asiática
e da Pérsia.
NEUTRALISMO (in. Neutralism). Termo empregado por Peirce como sinônimo de monismo {Chance,
Love and Logic, II, 1; trad. it., p. 121) (v. MONISMO).
NEUTRALIZAÇÃO (ai. Neutralisierung). Com este termo, Husserl indicou a suspensão da crença; "o
que é existente, possível, verossímil ou discutível, como também o não-exis-tente, em qualquer negação
ou afirmação, estão presentes na consciência, não à maneira do real, mas sim como 'mero pensado' ou
'mero pensamento' " {Ideen, I, § 109) (v. EPOCHÉ).
NEUTRO, MONISMO (in. Neutral mo-nisrri). Com esta expressão às vezes é designada, nos Estados
Unidos, a tese do neo-realismo segundo a qual as entidades que entram na composição do espírito e da
matéria não são mentais nem materiais, mas adquirem tais qualificações em virtude das relações em que
entram. Na verdade este ponto de vista foi sustentado pelo empiriocriticismoQv.) de Avenarius e por
Mach.
NEXO (lat. Nexus; in. Bond; fr. Connexion; ai. Zusammenhang; it. Nessó). Conexão das coisas entre si,
na ordem causai ou final: Kant chama o primeiro de nexus effectivus e o segundo de nexus finalis {Crít.
dofuízo, § 87). Whitehead deu esse nome {nexus) às conexões reais entre as coisas, por ele consideradas
como elementos últimos da realidade, juntamente com as próprias coisas e com as percepções {Process and Reality, 1929).
NEWTONIANISMO (in. Newtonianism; fr. Newtonianisme, ai. Newtonianismus; it. Newto-nismó). Com
este termo foi designada principalmente a doutrina de Newton da gravitação universal, que consiste na
generalização das leis da gravitação a todo o universo e na formulação dessas leis através da fórmula
única: os corpos se atraem proporcionalmente ao produto das massas e na razão inversa do quadrado das
distâncias. Essa lei foi enunciada por Newton pela primeira vez em Propositiones de motu (1684) e
depois em Princípios matemáticos de filosofia natural (1687).
NIAIA. Um dos grandes sistemas filosóficos da índia antiga, caracterizado pela importância da doutrina
do conhecimento e de seus objetos. O N. enumera quatro meios de conhecimento: percepção, inferência,
analogia e testemunho; define como verdadeiro o conhecimento que não está sujeito a contradições ou
dúvidas, e que reproduz o objeto como ele é; e faz um inventário dos objetos cognoscíveis e de suas
características. Entre estes inclui o mundo físico, com seus elementos, o homem, em seu corpo e suas
atividades espirituais, o espaço ou o tempo, Deus e, em geral, as condições de existência das coisas físicas
ou espirituais (cfr. G. Tucci, Storia delia filosofia indiana, 1957, pp. 112 ss.).
NIHILISMO (in. Nihilism; fr. Nibilisme, ai. Nihilismus; it. Nickilismó). Termo usado na maioria das vezes
com intuito polêmico, para designar doutrinas que se recusam a reconhecer realidades ou valores cuja
admissão é considerada importante. Assim, Hamilton usou esse termo para qualificar a doutrina de Hume,
que nega a realidade substancial {Lectures on Metaphysics, I, pp. 293-94); nesse caso a palavra quer dizer
fenomenismo. Em outros casos, é empregada para indicar as atitudes dos que negam determinados
valores morais ou políticos. Nietzsche foi o único a não utilizar esse termo com intuitos polêmicos,
empregando-o para qualificar sua oposição radical aos valores morais tradicionais e às tradicionais
crenças metafísicas: "O N. não é somente um conjunto de considerações sobre o tema 'Tudo é vão', não é
somente a crença de que tudo merece morrer, mas consiste em colocar a mão na massa, em destruir. (...) É
o estado dos espíritos fortes e das vontades fortes do qual não é possível atribuir um juízo negativo: a
negação
NIRVANA
713
NOLONTADE
ativa corresponde mais à sua natureza profunda" (Wille zur Macbt, ed. Krõner, XV, § 24).
NIRVANA. Extinção das paixões e do desejo de viver, portanto da corrente dos nascimentos, na doutrina
budista. "Essa ilha incompará-vel em que tudo desaparece e todo apego cessa, chamo de N., destruição da
velhice e da morte" (Suttanipâta, V, 11). Na filosofia ocidental, Schopenhauer adotou essa noção, vendo
nela a negação da vontade de viver, cuja exigência brota do conhecimento da natureza dolorosa e trágica
da vida (Die Welt, I, § 71; II, cap. 41).
NOÇÃO (gr. evvoioc, npó\i\\\tiç; lat. Notio; in. Notion; fr. Notion; ai. Notion; it. Nozioné). Dois
significados fundamentais: um muito geral, em que N. é qualquer ato de operação cognitiva, e outro
específico, em que é uma classe especial de atos ou operações cognitivas. Para Cícero, que introduziu
esse termo, ele corresponde a evvoia, que tem significado muito geral, e a JtpóÀri\)/i.ç, que é a
antecipação, uma espécie particular e privilegiada de conhecimento (Top., 7, 31). Na Idade Média, João
de Salisbury empregou esse termo no sentido geral, referindo-se precisamente ao grego Êvvoia (Metal.,
II, 20); em sentido geral também era empregado por Jungius, que entendia a N. como "a primeira
operação de nosso intelecto, pela qual exprimimos uma coisa com uma imagem" (Log. hamburgensis,
1638, Prol., 3). Locke, ao contrário, pretendia restringir esse termo às idéias complexas "que parecem ter
origem e existência constante mais no pensamento dos homens que na realidade das coisas" {Ensaio, II,
22, 2), enquanto Leibniz observava que "muitos aplicam a palavra N. a qual quer espécie de idéias ou
concepções, tanto às originais quanto às derivadas" (Nouv. ess., II, 22, 2). Berkeley, por sua vez, restringia
esse termo ao conhecimento que o espírito tem de si mesmo e da relação entre as idéias: conhecimento
que, por sua vez, não é uma idéia (Princ. ofHuman Knowledge, I, §§ 27, 89, 140, etc.; cf. a nota ao § 27
da edição dos Principies, em Works, ed. T. E. Jessop, II, p. 53). Kant também atribuía significado restrito
a esse termo, entendendo por N. "o conceito puro, porquanto tem origem unicamente no intelecto",
reservando o termo "representação" para o significado geral de N. (Crít. R. Pura, Dial. transe, I, seção 1).
Wolff, inversamente, afirmara: "A representação das coisas na mente é N., por outros chamada de idéia"
(Log., § 34).
Nenhum dos significados específicos propostos para esse termo teve grande aceitação; hoje resta quase
exclusivamente o significado genérico de operação, ato ou elemento cognitivo em geral.
NOÇÕES COMUNS (gr. KOivai êwouxt; lat. Notiones communes). São as antecipações (v.) dos
estóicos, às quais freqüentemente se fez referência na história da filosofia: cf., p. ex., SPI-NOZA, Et., II,
38, Cor.; LEIBNIZ, NOUV. ess., Avant-propos, etc.
NODAL, LINHA (ai. Knotenliniê). Foi assim que Hegel designou a passagem da quantidade à qualidade
que se dá por mudança da quantidade, p. ex., quando a mudança da quantidade de calor na água produz a
sua passagem do estado líquido para o sólido ou para o gasoso ( Wissenschaft der Logik, I, seção III, cap.
11, B; trad. it., I, pp. 444 ss.). Esse conceito teve mais aceitação fora do hegelismo que em seu seio.
Kierkegaard extraiu daí seu conceito de salto (v.) e Engels fez da passagem da quantidade para a
qualidade uma das leis fundamentais da dialética (Dialektik der Natur, trad. it., p. 57) (v. DIALÉTICA;
SALTO).
NOEMA (ai. Noemd). Na terminologia de Husserl, o aspecto objetivo da vivência, ou seja, o objeto
considerado pela reflexão em seus diversos modos de ser dado (p. ex., o percebido, o recordado, o
imaginado). O N. é distinto do próprio objeto, que é a coisa; p. ex., o objeto da percepção da árvore é a
árvore, mas o N. dessa percepção é o complexo dos predicados e dos modos de ser dados pela
experiência: p. ex., árvore verde, iluminada, nào iluminada, percebida, lembrada, etc. (Ideen, I, § 88). O
adjetivo correspondente é noemático. NOESE (ai. Noesis). Na terminologia de Husserl, o aspecto
subjetivo da vivência, constituído por todos os atos de compreensão que visam a apreender o objeto, tais
como perceber, lembrar, imaginar, etc. (Ideen, I, § 92). O adjetivo correspondente é noético.
NOÉTICA (in. Noetic; fr. Noétique, ai. Noê-tik, it. Noeticd). Foi assim que Hamilton denominou a parte
da lógica que estuda "as leis fundamentais do pensamento", que são os quatro princípios: identidade,
contradição, terceiro excluído e razão suficiente (Lectures on Logic, V, I, p. 72). Esse uso foi adotado por
poucos autores.
NOLONTADE (lat. Noluntas; in. Nolition; fr. Nolonté, ai. Nolitia, it. Nolontâ). Não querer ou fugir. Esse
termo é raríssimo, em todas as lín-
NOME
714
NOME
guas. Segundo S. Tomás de Aquino, "o desejo do bem chama-se vontade, porquanto é o nome do ato de
vontade, mas a fuga ao mal chama-se noluntas. Por isso, assim como a vontade é do bem, a noluntasé do
mal" (S. Tb., II, 1, q. 8, a. 1). No mesmo sentido, esse termo recorre em Wolff (Phil. practica, I, § 38).
Está claro que neste sentido a N. é vontade positiva, assim como a chamada vontade. Outros autores, ao
contrário, a entenderam no sentido de vontade inibida ou ausência de vontade (RENOUVIER e PRAT,
Monadologie, p. 231). Este segundo sentido é decididamente impróprio.
NOME (gr. ÕVOH.0C; lat. Nomen; in. Name, fr. Nom; ai. Name, it. Nome). A palavra ou o símbolo que
indica um objeto qualquer. Os problemas a que o N. dá origem como palavra ou símbolo (p. ex., o de
origem ou de validade) encontram-se no verbete linguagem (v.). Aqui cabe apenas lembrar as
determinações específicas que os lógicos emprestaram ao conceito de N. Quando Platão define o N. como
"instrumento apto a ensinar e fazer discernir a essência, do mesmo modo como a lançadeira está apta a
tecer a tela" (Crat., 388 b), sua definição adapta-se a qualquer termo ou expressão lingüística. Aristóteles,
ao contrário, foi o primeiro a analisar especificamente o N.: "O N. é um som vocal significativo por
convenção, que prescinde do tempo e cujas partes não são significativas se tomadas separadamente" (De
int, 2,16 a 19). Por "prescindir do tempo", o N. distingue-se do verbo, que sempre tem determinação
temporal. Por não ter partes significativas por si mesmas, o N. distingue-se do discurso. E como
Aristóteles observe que a expressão infinita "não homem" não é um N., os lógicos posteriores
acrescentaram à sua definição de N. a caracterização "finita" e também "reta", para excluir os casos
oblíquos do N., que interessam ao gramático, e não ao lógico (PEDRO HISPANO, Summ. log., 1.04). O
próprio Aristóteles advertia (De int, 2, 16 a 23) que o N. nem sempre é simples, e nesse sentido sua
definição era modificada do seguinte modo por Jungius, no séc. XVII: "Por N. entende-se um símbolo ou
signo, instituído para determinada coisa e para a noção que representa a coisa, quer se trate de um N.
gramaticalmente único, quer se trate de um N. composto por mais vocábulos (Log. hamburgensis, 1638,
IV, 2, 10).
Na lógica contemporânea, a função do N. foi analisada principalmente em função daquilo que Carnap
chamou de "antinomia relação-N.".
Esta antinomia fora vislumbrada por Frege ("Über Sinn und Bedeutung", 1892, em Aritmética e lógica,
ed. Geymonat, pp. 215-52), mas foi formulada como tal por Russell ("On Denoting", 1905, agora em
Logic and Know-ledge, pp. 41-56). Resulta do fato de que dois N. sinônimos (que têm o mesmo
significado) devem poder ser substituídos um pelo outro sem que mude o significado e o valor de verdade
de contexto. Ora, "Sir Walter Scott" e "autor de Waverley" são nomes sinônimos, portanto substituíveis.
Contudo, se na frase "Jorge IV perguntou uma vez se Scott era o autor de Waverley" substituirmos "autor
de Waverley' pelo N. sinônimo "Scott", a frase resultante será falsa, pois ficará: "Jorge IV perguntou uma
vez se Scott era Scott."
Essa antinomia recebeu duas soluções principais na lógica contemporânea: a primeira consiste
essencialmente em reduzir a denota-ção a uma descrição em termos direta ou indiretamente redutíveis a
experiências elementares. Esta solução foi proposta por Russell (que a expôs no ensaio citado e depois no
primeiro vol. de Principia mathematica, 1910). Segundo Russell, a frase "Jorge IV, etc." pode significar:
d) "Jorge IV queria saber se um homem e só um homem escreveu Waverley e se Scott era esse homem",
ou b) "Um homem e só um homem escreveu Waverley e Jorge IV queria saber se Scott era esse homem".
E Russell diz: neste segundo caso "o autor de Waverley ocorre de modo primário (primary occurrencé),
porque supõe que Jorge IV tem algum conhecimento direto de Scott. Na primeira, ao contrário, a frase
ocorre de modo secundário, no sentido de que não supõe um conhecimento direto de Scott" ("On
Denoting", op. cit., p. 72). Essa teoria, além de pressupor a diferença entre conhecimento direto e
conhecimento indireto, eqüivale a reduzir os- N. próprios a N. comuns e os N. comuns a N. próprios, que
denotam elementos extraídos da experiência direta. Teorias semelhantes a estas foram apresentadas por
Quine (Methods of Logic, 1950, § 33; From aLogicalPointofView, 1953, cap. 1) e por outros.
A segunda solução da antinomia relação-N. é proposta pelo próprio Frege. Consiste em distinguir o
significado (Bedeutung, Meaning), como denotação, do sentido (Sinn, Sensé). A denotação é a referência
do N. ao objeto: "Sir Walter Scott" e "autor de Waverley' têm a mesma denotação porque se referem ao
mesmo
NOMINAL, DEFINIÇÃO
715
NON CAUSA PRO CAUSA
objeto. O sentido, ao contrário, como dizia Frege, é "algo logo apreendido por quem conhece
suficientemente a língua (ou em geral o conjunto de signos) a que o N. pertence" ("Über Sinn und
Bedeutung", § 1; ed. it. cit., p. 219): assim, dois N. podem ter sentidos diferentes, mesmo que se refiram
ao mesmo objeto. Esse é precisamente o caso das duas expressões citadas, e, como é possível
compreender o sentido de um N. sem conhecer sua denotação, perguntas como a que foi atribuída a Jorge
IV significam um pedido de informações referente à identidade de suas denotações. Essa solução foi
repetida com variações por Carnap (Mea-ning and Necessity, §§ 31-32) e por Church ijntr. to
Mathematical Logic, 1958, § 1). E parece ser uma solução preferível porque não exige pressupostos
particulares sobre a natureza da linguagem.
NOMINAL, DEFINIÇÃO. V. DEFINIÇÃO. NOMINALISMO (in. Nominalism-, fr. Nomi-nalisme, ai.
Nominalismus; it. Nominalismó). Doutrina dos filósofos nominales ou nomina-listas, que constituíram
uma das grandes correntes da Escolástica. Os termos nominalista (nominalis) ou terminista (terministd)
foram usados somente no princípio do séc. XV (v. ~ TERMINISMO), mas 0'ton de Freising, em sua (i
crônica Gesta Friderici imperatoris (I, 47), afirmava que Roscelin fora "o primeiro em nossos tempos a
propor em lógica a doutrina das palavras (sententiam vocurri)". No princípio do séc. XII o N. era
defendido por Abelardo (v. UNIVERSAIS), mas seu triunfo na Escolástica foi devido à obra de Guilherme
de Ockham (c. 1280-C.1349), que com razão foi chamado de Princeps Nominalium. Assim exprimia
Ockham sua convicção sobre o assunto: "Nada fora da alma, nem por si nem por algo de real ou de
racional que lhe seja acrescentado, de qualquer modo que seja considerado e entendido, é universal, pois é
tão impossível que algo fora da alma seja de qualquer modo universal (a menos que isso se dê por
convenção, como quando se considera universal a palavra 'homem', que é particular), quanto é impossível
que o homem, segundo qualquer consideração ou qualquer ser, seja o asno" (In Sent., I, d. II, q. 7 S-T).
Do ponto de vista positivo, o N. admite que o universal ou conceito é um signo dotado da capacidade de
ser predicado de várias coisas. O conceito já fora assim definido por Abelardo (v. UNIVERSAIS, DISPUTA
DOS).
Ao traçar uma breve história do N., a propósito de Nizólio JTeibníz dizia que "sâo norriina-|) listastõdos
os que acreditam que, além dasf substâncias singulares, só existem os nomesl puros e, portanto, eliminam
a realidade das\ ^coisas jibstratas e universais^ paraele, o N. assim entendido começava com Roscelin, e
entre os nominalistas, além do próprio Nizólio, estava também Thomas Hobbes (De stilo phi-losophico
Nizolii, 1670, Op., ed. Erdmann, p. 69). Essas observações e inclusões de Leibniz foram aceitas pelos
historiadores da filosofia.
Em época mais recente, esse termo designou a interpretação convencionalista da física: p. ex., Poincaré
empregou em relação a Le Roy (La science et 1'hypothèse, p. 3).
Algumas vezes os lógicos modernos usam esse termo para indicar a doutrina segundo a qual a linguagem
das ciências contém apenas variáveis individuais, cujos valores são objetos concretos, e não classes,
propriedades e similares (QUINE, From a Logical Point ofView, VI, 4 ss.; CARNAP, Meaning and
Necessity, § 10).
NOMLNALIZAÇÃO (ai. Nominalisierung). Husserl entendeu por "lei de N." a lei segundo a qual "a
cada proposição e a cada forma parcial distinguível na proposição corresponde um elemento nominal"
(Ideen, I, § 119), o que significa, p. ex., que à proposição "Sé P" pode corresponder o elemento único
nominal "o ser Fde S" na qual "ser P" pode significar a semelhança, a pluralidade, etc.
NOMOLOGIA (in. Nomology, fr. Nomologie, ai. Nomologie, it. Nomologid). Termo raramente usado na
filosofia do séc. XIX para indicar a ciência da legislação. Husserl chamou de "N. aritmética" a
matemática universal (Logische Untersuchungen, I, § 64).
NOMOTÉTICO(al. Nomothetisctí). Kant chamou de N., o que dá leis, o juízo reflexivo (v.), porquanto
fornece máximas para a unificação das leis naturais; afirma que não é N. o juízo transcendental, "que
contém as condições para a subsunção em categorias" e só faz "indicar as condições da intuição sensível
nas quais se pode conferir realidade (aplicação) a um conceito dado" (Crít. do Juízo, § 69). Windelband
chamou de nomo-téticas as ciências naturais, em contraposição às ciências do espírito, ou ciências
históricas, denominadas idiográficas (Prüludien, 5
a
ed., II, p. 145) (v. CIÊNCIAS, CLASSIFICAÇÃO DAS).
NON CAUSA PRO CAUSA (gr. TÒ \u\ aítiov oòç aÍTiov). Um dos sofismas enunciados por
NON-ENS LOGICUM
716
NORMA
Aristóteles {El. sof., 5, 167 b 21), que consiste em assumir como causa (ou seja, como premissa) aquilo
que não o é, donde resultam uma conseqüência impossível e a aparente refu-tação do adversário. É uma
falácia que ocorre especialmente na redução ao absurdo. O exemplo dado por Aristóteles é o seguinte:
Quem quiser reduzir ao absurdo a afirmação de que alma e vida são a mesma coisa assim procederá: a
morte e a vida são contrárias; a geração e a corrupção são contrárias; mas a morte é corrupção, logo a vida
é geração. Mas isto é impossível, porque o que vive não gera, mas é gerado; portanto, alma e vida não são
a mesma coisa. A falácia aqui consiste em eliminar a premissa "Alma e vida são a mesma coisa" e
substituí-la por outra: "Morte e vida são coisas contrárias" (cf. PEDRO HISPANO, Summ. log, 7.56-57;
ARNAULD, Log., III, 19, 3; JUNGIUS, Log, VI, 12, 11, etc).
NON-ENS LOGICUM. Era assim que W. Hamilton chamava o ato do pensamento negativo, ou seja, não
pensar em nada de preciso, que eqüivale a não pensar (Lectures on Logic, I, 2
a
ed., 1867, p. 76).
NOOGONIA (ai. Noogonie). Kant designou a doutrina de Locke "sistema de N.", porque descreve a
gênese dos conceitos a partir da experiência {Crít. R. Pura, Anal. dos princ, Nota às anfibolias dos
conceitos da reflexão). NOOLOGIA (lat. Noologia; fr. Noologie, ai. Noologie, it. Noologia). Termo
inventado por Calov em Scripta philosophica (1650) para indicar uma das duas ciências auxiliares da
metafísica [a outra é a gnosiologia (v.)], mais precisamente a que tem por objeto as funções cognitivas.
Esse termo foi retomado no século seguinte por Crusius e outros, no mesmo sentido ou em sentidos
análogos. Kant chamou de noologistas aqueles que, como Platão, acham que os conhecimentos puros
derivam da razão, em contraposição aos em-piristas, que os julgam derivados da experiência {Crít. R.
Pura, Doutr. transe, do método, cap. IV). Ampère propôs chamar de noológicas todas as ciências do
espírito {Essai sur Ia philosophie des sciences, 1834). Nenhum desses usos teve sucesso.
NOOSFERA (fr. Noosphèré). Termo empregado por Le Roy para indicar o domínio da evolução
propriamente humana (portanto contraposto ao domínio da evolução biológica, biosfera), que se realiza
somente com a ajuda de meios espirituais: indústria, sociedade, linguagem, inteligência, etc. {Uexigence idéaliste et le fait de 1'évolution, 1927, pp. 195-96).
NORMA (lat. Norma; in. Norm; fr. Norme, ai. Norm; it. Norma). Regra ou critério de juízo. A N.
também pode ser constituída por um caso concreto, um modelo ou um exemplo; mas o caso concreto, o
modelo ou o exemplo só valem como N. se puderem ser utilizados como critérios de juízo dos outros
casos, ou das coisas às quais o exemplo ou o modelo se referem. A N. distingue-se da máxima (v.) porque,
ao contrário desta (no significado 2), não é apenas uma regra de conduta, mas pode ser regra ou critério
de qualquer operação ou atividade. Distingue da lei (v.) porque pode ser isenta de caráter coercitivo; p.
ex., uma N. de costume torna-se lei quando se torna coercitiva em virtude de uma sanção pública.
Trata-se de conceito recente, cuja origem está no neocriticismo alemão; formou-se através da distinção e
da contraposição entre o domínio empírico do fato (da necessidade natural) e o domínio racional do dever
ser (da necessidade ideal). Sua validade não deriva do fato de ser ou não aceita ou aplicada, mas apenas
do dever ser que exprime. Os filósofos da escola de Baden (Windelband e Rickert) insistiram nesse
caráter da N. Windelband disse: "O sol da necessidade natural brilha igualmente sobre o justo e o injusto.
Mas a necessidade que advertimos na validade das determinações lógicas, éticas e estéticas é ideal; não a
do Mussen e do não-poder-ser-de outro modo, mas do Sollen e do poder-ser-de outro modo" {Praludien,
4
a
ed., 1911, II, pp. 69 ss.). Foi também neste sentido que Kelsen entendeu a N., baseando nela sua teoria
do direito: "A N. é a expressão da idéia de que algo deve acontecer, em especial de que um indivíduo
deve comportar-se de determinada maneira. A N. nada diz sobre o comportamento efetivo do indivíduo
em questão" {General Theory of Law and State, 1945, I, C, a, 5; trad. it., p. 36). Neste sentido, falou-se e
fala-se de "transcendência" da N. em relação às situações que ela regula: por tal transcendência, insistiuse (às vezes oportunamente) na independência do valor da N. em relação à sua efetiva aplicação. P. ex.,
não há dúvida de que as N. destinadas à obtenção de bom produto agrícola ou industrial, determinadas por
disciplinas científicas e tecnológicas apropriadas, continuam válidas independentemente do fato de serem
ignoradas ou desprezadas na maior parte dos casos.
NORMAL
717
NULLIBISTAS
Essa independência, entretanto, não significa que as N. tenham uma orig-jm misteriosa ou inacessível ou
que estejam depositadas em alguma região do ser que tenha apenas uma relação indireta e distante com os
campos da experiência humana que as mesmas visam a regular. As N. exprimem, habitualmente, a
disciplina mais conveniente de determinadas atividades, com vistas a conferir-lhes a maior eficiência e
precisão possíveis. Portanto, se elas nem sempre são generalizações daquilo que jã está sendo feito ou
realizado — porque inclusive podem inspirar-se em uma ordenação completamente diferente —
tampouco são alheias aos campos de atividade humana que visam a regular. Neste sentido Dewey dizia:
"A diferença que se costuma registrar entre os modos como os homens pensam e os modos como devem
pensar é semelhante à diferença que se observa entre o bom e o mau cultivo ou a boa e a má prática da
medicina. Os homens pensam como não devem quando adotam métodos de investigação que a
experiência das investigações anteriores mostra serem inadequados ao fim preestabelecido" {Logic, cap.
VT; trad. it., p. 156). Desse ponto de vista, uma N. é simplesmente uma fórmula técnica para o
desenvolvimento eficaz de determinada atividade.
Portanto, é possível distinguir dois conceitos de N.: ls
como critério infalível para o reconhecimento ou a
realização de valores absolutos (este é o conceito elaborado pela filosofia dos valores (v.), ainda aceito
pelas doutrinas abso-lutistas); 2
a
como procedimento que garante o desenvolvimento eficaz de
determinada atividade.
NORMAL (in. Normal; fr. Normal; ai. Normal; it. Normalê). 1. Aquilo que está em conformidade com a
norma.
2. Aquilo que está em conformidade com um hábito, com um costume, com uma média aproximada ou
matemática, ou com o equilíbrio físico ou psíquico. Neste sentido, diz-se, p. ex., "levar vida N.", para
dizer uma vida segundo os costumes de certo grupo social, ou "tem peso N." ou " altura N.", para dizer
que tem peso ou altura correspondentes à média dos indivíduos da mesma idade, raça, etc, ou " mente
N.", "um organismo N.", para indicar a boa saúde mental ou física. Este uso do termo não é
completamente impróprio porque, embora as normas às quais se refere sejam obtidas de generalizações
empíricas, são empregadas como critério de juízo e estabelecem uma "normalidade".
NORMATIVO (in. Normative, fr. Normatif; ai. Normativ, it. Normativo). Este adjetivo tem dois sentidos
principais, que correspondem aos dois sentidos atribuídos à palavra norma: ls
é N. o que prescreve a regra
infalível para alcançar a verdade, a beleza, o bem, etc, ou seja, um bem absoluto; 2- é N. uma fórmula
técnica que garanta o desenvolvimento eficaz de certa atividade. Na segunda metade do séc. XIX foram
chamadas de N., no ls
sentido, as ciências filosóficas especiais 'lógica, ética e estética), às quais se
atribuiu a tarefa de prescrever as normas com as quais o pensamento, a vontade e o sentimento deveriam
ajustar-se para alcançar a verdade, o bem e a beleza (Windelband, Rickert Wundt, Simmel, Husserl e
outros). Nesse sentido, a qualificação de N. foi repelida pelas disciplinas acima (v. capítulos relativos).
Não se pode, porém, negar que existam disciplinas N. no 2B
sentido, de formular hipoteticamente técnicas
aptas a garantir o desenvolvimento eficaz de determinadas atividades.
NOTA (lat. Nota; in. Note; fr. Note; ai. Merkma; it. Nota). Sinal ou característica de um objeto. Sobre o
princípio: "a N. de uma N. é uma N. da própria coisa", pela qual Kant quis substituir o dictum de omni et
nullo como fundamento do silogismo, v. SILOGISMO.
NOTAÇÃO1
(in. Notation; fr. Notation; ai. Notation; it. Notazioné). Têm este nome os símbolos
primitivos da lógica. A classificação mais comum de tais símbolos divide-os em quatro classes:
constantes, variáveis, conectivos e operadores. Estes dois últimos algumas vezes são chamados,
respectivamente, de operadores e abstratos (v. os verbetes individuais: CONECTIVO; CONSTANTE; OPERADOR).
NOTAÇÃO2
(gr. èruLioXoYÍa; lat. Notatio, in. Notation; fr. Notation; ai. Notation). Em lógica.
argumento (locus) inferido da etimologia do nome: como quando Platão diz que o termo soma (corpo)
deriva de sema (túmulo), como argumento de que o corpo é o túmulo da alma (Crat, 400 c). Esse tipo de
argumento é esclarecido por Cícero (Top., 8, 35) e retomado pelos lógicos do séc. XVII (JUNGIUS, Log.,
V, 25).
NULLIBISTAS (in. Nullibists; ai. Nullibis-ten). Foi assim que Henri Moore chamou os que acreditam
que a alma não ocupa espaço e não tem, portanto, uma sede determinada no corpo (Enchiridion
Metaphysiru.m, 1671, 1, 27, 1).
NÚMENO
718
NÚMERO
NÚMENO (gr. VOOÚLIEVOV; in. Noumenon; fr. Noumène, ai. Noumenon; it. Noumenó). Este termo foi
introduzido por Kant para indicar o objeto do conhecimento intelectual puro, que é a coisa em si (v.). Na
dissertação de 1770, Kant diz: "O objeto da sensibilidade é o sensível; o que nada contém que não possa
ser conhecido pela inteligência é o inteligível. O primeiro era chamado de fenômeno pelas escolas dos
antigos; o segundo, de N." {De mundi sensibilis, etc, § 3). Na realidade, a palavra N. às vezes é usada
pelos filósofos gregos, não em contraposição a fenômeno, mas a sensível, como em Platão: "Se intelecção e opinião verdadeira são duas coisas diferentes, então sem dúvida existirão entes que, conquanto
não sejam sensíveis para nós, são apenas pensados" {Tim., 51 d); algumas vezes é usada em contraposição
ao objeto diretamente apreensivel, como nos estóicos: "A compreensão se produz com a sensação — e
então é compreensão de coisas brancas, pretas, ásperas ou lisas — ou com o raciocínio — e então é
compreensão de nexos demonstrativos, como quando se demonstra que os deuses existem e que exercem
a providência. Das coisas pensadas, algumas são pensadas segundo a ocasião, outras segundo a
semelhança, outras segundo a composição e outras segundo contrariedades" (DiÓG. L., VII, 52). É mais
freqüente nos antigos (sobretudo em Platão, em Aristóteles e nos neopla-tônicos) o uso do termo
inteligível (VOT)TÓÇ), não em contraposição a fenômeno, mas a sensível (cf., p. ex., ARISTÓTELES, Et.
nic, X, 4, 11 74 b34).
NÚMERO (gr. àpiônóç; lat. Numeras; in. Number, fr. Nombre, ai. Zahl; it. Numero). Na história deste
conceito, podem-se distinguir quatro fases conceptuais diferentes, que deram lugar a quatro definições
diferentes: I
a
fase realista; 2a
fase subjetivista; 3a
fase objetivista; 4a fase convencionalista.
I
a A fase realista é caracterizada pela tese de que o N. é um elemento constitutivo da realidade, por ser
acessível à razão, mas não aos sentidos. Essa foi a tese dos pitagóricos, que, segundo relata Aristóteles,
acreditavam que "as coisas são N.", ou seja, "compostas de N. como seus elementos" {Met., XIV, 3, 1090
a 21). A esta crença está ligada a definição de N. como "sistema de unidades", própria dos pitagóricos (J.
STOBEO, Ecl., I, 18): essa definição serviu de modelo à de Euclides ("multidão de unidades",
El., VII, 2) e durante muito tempo fundamentou a matemática. Para Platão, o N. encontrava-se onde
houvesse uma ordem, um limite do ilimitado. Entre a multiplicidade ilimitada (p. ex., dos sons vocais) e a
unidade absoluta, o N. se insere como um limite (p. ex., distinção e enumeração das letras do alfabeto), e
por isso sempre se encontra onde há ordem e inteligência {Fii, 18 a ss.). Por outro lado, o N. neste sentido
não está ligado a algo de visível ou de tangível: é, portanto, diferente do N. utilizado pelo homem em suas
tarefas práticas {Rep., 525 d). Essa tese (que não é a dos platônicos de tendência pitagórica, que
consideravam as idéias como N.; cf. ARISTÓTELES, Met., XIV, 3) é substancialmente apoiada por
Aristóteles: "As entidades matemáticas não são mais substâncias que os corpos; precedem na lógica, mas
não na existência, as coisas sensíveis, e não podem existir separadamente. Mas, desde que não podem
sequer residir nas coisas sensíveis, não devem existir de modo absoluto, ou devem existir de algum modo
especial, que não é a existência absoluta" {Met., XIII, 3, 1077 b 12). Este modo de existência especial,
próprio das entidades matemáticas, é definido pelas próprias proposições matemáticas: "É estritamente
verdadeiro" — diz Aristóteles — "que existem entidades matemáticas e que elas são tais quais a
matemática diz que são" {Ibid., XIII, 3, 1077 b 31). Aristóteles pretende dizer que as entidades
matemáticas têm uma existência análoga às entidades da física (p. ex., ao movimento): são abstraídas das
causas sensíveis, mas não são separáveis destas. Desse ponto de vista, o número é "uma pluralidade
medida ou uma pluralidade de medida", e a unidade não é um N., mas medida do N. {Met., XIV, 1, 1088 a
5): definição que repete a de Platão e antecipa a de Euclides, já lembrada.
2
a
A segunda fase conceptual da noção de N. pode começar com Descartes: "O N. que consideramos em
geral, sem refletirmos sobre coisa alguma criada, não existe fora de nosso pensamento, assim como não
existem todas as outras idéias gerais que os escolásticos incluem sob o nome de universais" {Princ.phil, I,
58). Em outras palavras, o N. é uma idéia, um ato ou uma manifestação do pensamento. A definição daí
resultante é a de operação.- o N. é uma operação de abstração executada sobre coisas sensíveis. Esse
conceito é repetido muitas vezes na filosofia moderna. Hobbes pôs o N. entre as coisas "não existentes",
que são ape-
NÚMERO
719
NÚMERO
nas "idéias ou imagens" (De cotp., VII, § 1). Locke vê no N. uma idéia complexa, mais precisamente um
"modo simples obtido através da repetição da unidade" (Ensaio, II, 16, 2); no mesmo sentido, Leibniz diz
que o N. é uma idéia adequada ou completa, ou seja, "uma idéia tão distinta que todos seus ingredientes
são distintos" (Nouv. ess., II, 31,1). Berkeley afirma que o número "é inteiramente criatura do espírito"
(Princ. of Human Knowledge, I, 12). Newton afirma que por N. é preciso entender "não tanto a multidão
das unidades quanto a relação entre a quantidade abstrata de uma qualidade e uma quantidade do mesmo
gênero que se assume como unidade" (Arithme-tica universalis, cap. 2). Definição análoga é a de Wolff,
para quem "o N. geralmente tem com a unidade a mesma relação que uma reta qualquer pode ter com
uma reta dada" (Ont., § 406). Esta definição, como a de Newton, faz do N. a operação com que se
estabelece uma relação de medida.
Kant só fazia expressar o mesmo conceito geral ao afirmar que o N. é um esquema (v.), mais
precisamente que ele é "a representação que compreende a sucessiva adição de um a um (homogêneos)"
(Crít. R. Pura, Anal. dos princ, cap. 1). A novidade do conceito kan-tiano é que o N. não é uma operação
empírica, efetuada em material sensível, mas uma operação puramente intelectual, que atua sobre a
multiplicidade dada pela intuição pura (do tempo), que é absolutamente homogênea. Isto faz do N. algo
independente da experiência, dotado de um gênero de validade que não é o empírico; mas o N. continua
sendo uma operação do sujeito. Enquanto esta concepção kan-tiana era representada várias vezes na
filosofia do séc. XIX, Stuart Mill voltava ao conceito do N. como operação empírica de abstração: "Todos
os N. devem ser N. de algo: não há N. em abstrato". Portanto, os N. são produtos de uma "indução real,
de uma inferência real de fatos a fatos", e tal indução só é ocultada pela sua natureza abrangente e pela
conseqüente generalidade de linguagem em que desemboca (Logic, II, 6, 2). De certo modo, as posições
de Kant e de Stuart Mill são típicas dessa fase subjetiva do conceito de N.: o N. é uma operação
intelectual pura para Kant, é uma generalização empírica para Stuart Mill, mas em ambos os casos
pertence à esfera da subjetividade. Pertencem a essa concepção do N. as doutrinas de Cantor e de
Dedekind. Para Cantor, o fundamento do N.
é a faculdade que o pensamento tem de agrupar os objetos e de abstrair da natureza e da ordem deles (o
que dá lugar ao N. cardinal) ou apenas da natureza deles (o que dá lugar ao N. ordinal). Dedekind, por sua
vez, fundou o conceito de N. na operação de emparelhar ou acoplar as coisas. Conquanto
matematicamente profícuas, essas noções mantêm o conceito de N. no âmbito da subjetividade.
3
a
A terceira fase conceptual da noção de N. (a de N. objetivo, mas não real) foi iniciada pela obra de
Frege Fundamentos da aritmética (1884). Frege atribuía caráter conceptual ao N., mas também
objetividade. Isto, em primeiro lugar, exclui que o N. seja uma operação ou uma realidade psicológica,
uma idéia no sentido setecentista do termo: "O N. não constitui um objeto da psicologia nem pode ser
considerado resultado de processos psíquicos, assim como não se pode considerar desse modo o Mar do
Norte. Faço uma distinção nítida entre o que é objetivo e o que é palpável, real e ocupa espaço. P. ex., o
eixo terrestre e o bari-centro do sistema solar são objetivos, mas eu não diria que são reais como o é a
terra" (Die Grundlagen der Arithmetik, § 26; trad. it., pp. 70-71). A matemática já havia estabelecido a
insuficiência da definição de N. como coleção de unidade, por isso levaria a excluir 0 e 1 como N.
(Aristóteles reconhecia esse fato no que diz respeito ao 1; Met., XIV, 1, 1088 a 5). Frege assume como
base da definição de número a extensão (v.) do conceito e diz que "o conceito Fé tão numeroso quanto o
conceito G sempre que existe a possibilidade de pôr em correspondência biunívoca os objetos pertinentes
a Ge os pertinentes a F". Em vista disso, dá a seguinte definição de N..- "O N. natural que cabe ao
conceito .Fnada mais é que a extensão aFdo conceito 'tão numeroso quanto'" (Ibid., § 68, p. 134). Esta
definição de Frege foi expressa por Russell em termos de classes, e não de conceitos. Russell diz:
"Quando se tem uma relação termo a termo entre todos os termos de um conjunto e todos os termos de
outro, dizemos que os dois conjuntos são semelhantes. Podemos ver então que dois conjuntos
semelhantes têm o mesmo N. de termos, e definirmos o N. de um conjunto dado como a classe de todos
os conjuntos semelhantes a ele. Resulta a seguinte definição formal: 'o N. dos termos de uma classe dada
define-se como a classe de todas as classes semelhantes à classe dada'" (Our Knowledge of the Externai
World, 3
a
ed.,
NUMERO
720
NUMINOSO
1926, cap. 7; trad. fr., p. 163). A definição de Russell, que serviu de base para Principies of Mathematics
(1905) e Principia mathematica, que ele publicou em 1910 em colaboração com Whitehead (as duas
obras fundamentais da lógica matemática contemporânea), teve grande aceitação na filosofia e na
matemática contemporâneas. Contudo, algumas vezes pareceu restrita demais para as possibilidades de
desenvolvimento da matemática hodierna, que não pretende ficar ligada a um conceito de N. que lhe seja
de algum modo preestabelecido. 4a
A quarta fase foi-se configurando em estreita conexão com a
axiomática moderna, e pode ser associada com os nomes de Peano, Hilbert, Zermelo, Dingler. Para esta, o
N. é um signo, definido por um sistema adequado de axiomas. Dingler diz: "Construímos uma série de
signos (sinais gráficos) passíveis de reprodução, que deve possuir as seguintes propriedades: d) a série
tem um primeiro termo; b) a série possui uma regra de construção enunciá-vel de modo finito tal que: a)
está sempre determinado univocamente qual termo da série vem imediatamente à direita de um termo já
assinalado; B) cada termo da série é diferente de todos os termos que o precedem à esquerda" (Die
Methode derPhysik, 1937, cap. 11, 3,
§ 2; trad. it., pp. 137-38). Este ponto de vista pode ser resumido do seguinte modo:
a) não existe um objeto ou entidade única chamada "N.", cujas especificações sejam os N. definidos nos
diversos sistemas numéricos;
b) a validade dos diversos sistemas numéricos depende apenas da coerência intrínseca de cada sistema,
definida pelos axiomas fundamentais;
c) o conceito de N. presente em um sistema numérico não está ligado a uma interpretação determinada,
mas é susceptível de interpretações indefinidamente variáveis. Em outros termos o N. não está imune a
interpretações (como um sinal que nada signifique) e não está ligado a uma interpretação única,
privilegiada, mas caracteriza-se pela possibilidade de interpretações diferentes.
É esta a noção do N. que costuma ser pressuposta nos mais recentes estudos de matemática (v.).
NUMINOSO (in. Numinous-, ai. Numinosè). Foi assim que Rudolf Otto chamou a consciência do
mysterium tremendum, que é algo misterioso e terrível que inspira temor e veneração; essa consciência
seria a base da experiência religiosa da humanidade {Das Heilige, 1917; trad. it., IIsacro, Bolonha, 1926).
o
O. Na Lógica formal "aristotélica" esta letra é usada como símbolo da proposição particular negativa (v.
A). G. P.
OBEDIÊNCIA (lat. Oboedientia; in. Obe-dience, fr. Obéissance-, ai. Gehorsamkeit; it. Ob-bedienzá).
Segundo Spinoza, esse é o significado específico de fé. Esta consiste "em ter por Deus sentimentos que,
se ausentes, também está ausente a O. a Deus e que, ao contrário, estarão necessariamente presentes
quando estiver presente a O." (Tract. theologico-politicus, cap. 14). Esta redução da fé à O. é expressão
das doutrinas que reduzem fé a ato prático (v. FÉ).
OBJEÇÃO (in. Objection-, fr. Objection; ai. Einwurf; it. Obbiezioné). Argumento cuja conclusão
contradiz certa tese. Leibniz já observava que a verdade não pode ser afetada por "O. invencíveis." "É
preciso ceder sempre às demonstrações, seja as propostas para afirmar, seja as que se apresentem em
forma de obje-ções. E injusto e inútil querer enfraquecer as provas dos adversários sob o pretexto de que
são apenas O., visto que o adversário tem o mesmo direito e pode inverter os nomes, honrando seus
argumentos com o nome de provas e rebaixando os nossos com o depreciativo de O." (Théod., Discours,
§ 25).
OBJETIDADE (fr. Objectité, ai. Objektitàt; it. Oggettitã). Termo utilizado por Schopenhauer para definir
o corpo e as coisas naturais, que seriam "a O. da vontade" no sentido de ser "a vontade objetivada, que se
tornou representação" ÍDie Welt, I, § 18, 25, etc).
OBJETTFICAÇÃO (ai. Objektatiori). Segundo Hartmann, este termo significa "tornar-se objeto para
um sujeito" e define a natureza do conhecimento. AO. éo contrário de objetiva-ção: esta é a transformação
de algo subjetivo em objetivo, enquanto a O. exprime o processo pelo qual um objeto independente do sujeito torna-se objeto de conhecimento (Systema-tische
Philosophie, 1931, § 11).
OBJETIVIDADE (in. Objectivity, fr. Objecti-vité; ai. Objektivitãt; it. Oggettivitã). 1. Em sentido objetivo:
caráter daquilo que é objeto. Neste sentido, Husserl falava de uma "O. primária" que pertenceria às coisas
e as privilegiaria diante dos outros objetos, como propriedade, relações, estados de fato, conjuntos, etc.
Udeen, I, § 10) (v. OBJETO).
2. Em sentido subjetivo: caráter da consideração que procura ver o objeto como ele é, não levando em
conta as preferências ou os interesses de quem o considera, mas apenas procedimentos intersubjetivos de
averiguação e aferição. Neste significado, a O. é um ideal de que a pesquisa científica se aproxima à
medida que dispõe de técnicas convenientes.
OBJETTVISMO (in. Objectivism; fr. Objecti-visme, ai. Objektivismus-, it. Oggettivismó). Qualquer
doutrina que admita a existência de objetos (significados, conceitos, verdades, valores, normas, etc.)
válidos independentemente das crenças e das opiniões dos diferentes sujeitos.
OBJETIVO1
(in. Objective, fr. Objectif, ai. Objektiu, it. Obbiettivó). 1. O mesmo que objeto, quando a
palavra é adotada no sentido de fim ou meta (v. OBJETO).
2. No sentido específico proposto por Meinong, é p objeto do juízo, distinto do objeto da representação. P.
ex., quando se diz: "É verdade que existem antípodas", o O. é constituído por "que existem antípodas". O
O. não é necessariamente existente. Se A não é, o não-ser de Aé um O. tanto quanto o ser de A (JJber
Annahmen, 1902, pp. 142 ss.).
OBJETIVO2
(in. Objective, fr. Objectif, ai. Objektiv-, it. Oggettivó). O que existe como ob-
OBJETIVO2
722
OBJETIVO2
jeto, tem um objeto ou pertence a um objeto. Este adjetivo tem, à primeira vista, mais significados que o
substantivo correspondente, visto que, além dos significados ligados a este último, serviu para significar:
o que é válido para todos, o que é externo em relação à consciência ou ao pensamento, o que é
independente do sujeito, o que está em conformidade com certos métodos ou regras, etc. Tais significados
surgiram principalmente da determinação kantiana do objeto de conhecimento como objeto real ou
empiricamente dado. É possível enumerar três significados fundamentais desse termo: ls
o que existe
como objeto; 2a
o que tem objeto; 3S
o que é válido para todos. Os dois últimos estão intimamente ligados
entre si e com os outros significados arrolados.
1
Q
O primeiro significado corresponde ao significado fundamental de objeto: O. é aquilo que existe como
termo ou limite de uma operação ativa ou passiva. A essa definição corresponde em primeiro lugar o uso
desse termo na última fase da Escolástica, a partir de Duns Scot, quando foi entendido como o que existe
como objeto do intelecto, enquanto pensado ou imaginado, sem que isso implique sua existência fora do
intelecto, na realidade. Neste sentido esse termo era empregado por Scot (De an., 17, 14), por Antônio
Andréa (Super artem veterem, 1517, f. 87 r.), por F. Mayron (In Sent., I, d. 47, q. 4) e por Durand de S.
Pourçain (In Sent., I, d. 19, q. 5, 7). Walter Burleigh diz: "Embora o universal não tenha existência fora da
alma, como dizem os modernos, não há dúvida de que, segundo o parecer de todos, o universal tem
existência O. no intelecto, visto que o intelecto pode entender o leão universalmente sem entender este
leão" (Super artem veterem, 1485, f. 59 r.). "Existir objetivamente" significa, neste caso, existir em forma
de representação ou de idéia, ou seja, como objeto do pensamento ou da percepção: esse significado
reaparece com forma idêntica em Descartes (Méd., III, 11), em Spinoza (Et., I, 30; II, 8 cor., etc.) e em
Berkeley (Siris, § 292). Em todos esses casos, o O. não designa o que é real nem o que é irreal, mas
simplesmente o que é objeto do intelecto e pode, numa segunda consideração, revelar-se real ou irreal.
2
a
Em correspondência com a limitação imposta por Kant ao objeto de conhecimento como objeto "real",
há um segundo significado de O., como o que tem por objeto uma realidade empiricamente dada. Neste sentido, Kant afirma que o conhecimento é "O." ou "objetivamente válido".
Já em suas distinções ter-minológicas Kant inclui esse significado: "Uma percepção que se refira
unicamente ao sujeito, como modificação de seu estado, é sensação; uma percepção O. é conhecimento.
Esta ou é uma intuição ou um conceito. Aquela se refere imediatamente ao objeto e é singular; este lhe diz
respeito de modo mediato, por meio de uma marca, que pode ser comum a várias coisas" (Crít. R. Pura,
Dialética, livro I, seção I). Desse ponto de vista, "validade O." e "realidade" coincidem. Kant diz: "Nossas
considerações ensinam a realidade, ou seja, a validade O. do espaço em relação a tudo o que podemos
defrontar no mundo externo como objeto" (Ibid., § 3); e diz analogamente sobre o tempo: "Nossas
considerações demonstram a realidade empírica do tempo, ou seja, sua validade O. em relação a todos os
objetos que podem estar ligados aos nossos sentidos" (Ibid., § 6). Assim, O. é o empiricamente real, e
para Kant o empiricamente real é produto de uma síntese que, para ser efetuada na consciência comum ou
genérica, vale para todos os sujeitos pensantes, e não para um só deles (Prol, § 22). Kant diz: "Os juízos
são subjetivos quando as representações se referem apenas a uma consciência em um sujeito e nele se
unificam; ou são O. quando estão interligados em uma consciência de modo genérico, ou seja, necessário"
(Ibid., § 22). Essas considerações servem de transição à definição de O. feita por Kant no domínio prático
e sentimental, ao chamar de O. as leis práticas "que podem ser reconhecidas como válidas pela vontade de
cada ser racional" (Crít. R. Prát., § 1), e de "princípio O." o acordo universal no juízo estético (Crít. do
Juízo, § 22).
3
a
Essas considerações de Kant possibilitam uma transição para o terceiro significado fundamental de O.,
o de "válido para todos". Este significado, muito difundido nas escolas cri-ticistas e idealistas
contemporâneas, foi bem expresso por Poincaré: "Uma realidade completamente independente do espírito
que a concebe, a vê ou a sente, é uma impossibilidade. Se existisse um mundo externo nesse sentido, ele
nos seria inacessível. Mas o que chamamos de realidade O. é, em última análise, aquilo que é comum a
vários seres pensantes e poderia ser comum a todos" (La valeur de Ia science, 1905, p. 9). Poincaré fazia
essas consi-
OBJETIVO, IDEALISMO
OBJETO
derações com referência à matemática, mas quase simultaneamente Max Weber impunha esse mesmo
conceito de objetividade à metodologia das ciências sociais, observando que "a verdade científica é válida
para todos os que procuram a verdade" e que mesmo nas ciências sociais há resultados que não são
subjetivos no sentido de serem válidos para uma só pessoa e não para as outras ("A objetividade nas
ciências sociais e na política social", 1904, em TheMethodology oftheSocialSciences, 1949, p. 84). Esse
tipo de objetividade chama-se hoje intersubjetivida.de, e suas condições fundamentais são reconhecidas
na posse e no uso de técnicas especiais que, em dado campo, garantam a comprovação e a aferição dos
resultados de uma investigação. Portanto, "válido para todos" significa também "intersubjetivamente
válido", ou "em conformidade com um método qualificado". A esse mesmo conceito de O. ligam-se os
significados de "independente do sujeito" e "externo à consciência". O que é O. no sentido de ser válido
para todos é de fato independente deste ou daquele sujeito, de suas preferências ou avaliações
particulares; por outro lado, o único meio de que o sujeito dispõe para disciplinar ou frear suas
preferências e avaliações é recorrer a procedimentos metodológicos qualificados. Finalmente, a
equivalência entre O. e exterior é a transposição desses mesmos conceitos para o plano da linguagem
consciencialista em que o uso das palavras "externo" e "interno" se justifique de alguma maneira (v.
EXTERIORIDADE; REALIDADE).
OBJETIVO, IDEALISMO (ai. Objektiverldea-lismus). Um dos três tipos fundamentais de filosofia:
intuição do mundo, segundo Dilthey, mais precisamente a intuição baseada no sentimento e dominada
pela categoria do valor. Nesse tipo de filosofia Dilthey incluía Heráclito, os estóicos, Spinoza, Leibniz,
Shaftesbury, Goethe, Schelling, Schleiermacher, Hegel; considerava o panteísmo uma de suas
características (Das Wesen der Pbilosophie, 1907, III, 2; trad. it., em Crítica da razão histórica, p. 469)
(v. IDEALISMO DA LIBERDADE; NATURALISMO).
OBJETO (lat. Obiectum- in. Object-h. Objetai. Objekt, Gegenstand, it. Oggettó). Termo de qualquer
operação, ativa, passiva, prática, cog-noscitiva, ou lingüística. O significado dessa palavra é
generalíssimo e corresponde ao significado de coisa (v.). O. é o fim a que se tende, a coisa que se deseja,
a qualidade ou a realidade percebida, a imagem da fantasia, o significado expresso ou o conceito pensado. A pessoa é objeto de amor ou de ódio, de estima, de consideração ou
de estudo; neste sentido, o próprio eu é ou pode ser objeto. Toda atividade ou passividade tem como
termo ou limite um O., qualificado em correspondência com o caráter específico de atividade ou de
passividade. Ao lado deste significado genérico e fundamental, em que esse termo é insubstituível,
encontra-se algumas vezes na linguagem filosófica e na comum um significado mais restrito ou
específico, segundo o qual o O. só é O. se tiver alguma validade: p. ex. se é "real", "externo",
independente", etc. (v. OBJETIVO). NO entanto, este segundo significado não elimina o primeiro, mas o
pressupõe.
Essa palavra foi introduzida em filosofia pelos escolásticos, no séc. XIII. É claramente definida por S.
Tomás de Aquino, que diz: "O. de uma potência ou de um hábito é propriamente aquilo sob cuja razão
(ratió) se inclui tudo o que se refere à potência ou ao hábito em questão. P. ex.: o homem e a pedra
referem-se à visão por terem cor; portanto, o que tem cor é o O. da visão" (S. Th., I, q. 1, a. 7). Essa noção
de O. foi substancialmente retomada por Duns Scot, que definiu o O. de um saber como matéria
(subjectum) do saber, enquanto aprendida ou conhecida. Segundo Scot, uma matéria cog-noscível tornase O. conhecido através de um hábito intelectual relativo a esse objeto (Op. Ox., Prol., q. 3, a. 2, nQ
4).
Jungius só fazia expressar com mais simplicidade a mesma noção ao afirmar: "Chama-se de O. aquilo em
torno do que versam as faculdades, seus hábitos e seus atos" (Lógica, 1638, 1, 9, 37). Wolff por sua vez
dizia: "O. é o ente que termina a ação do agente ou no qual terminam as ações do agente: de modo que é
quase um limite da ação" (Ont, § 949).
Esse significado continuou sendo fundamental na filosofia moderna e contemporânea. A questão do
caráter real ou ideal do O. em geral ou de uma classe específica de O. (p. ex., dos O. físicos ou coisas)
não teve influência. Assim, pode-se considerar O. do conhecimento uma idéia (como queria Berkeley),
uma representação (como queria Schopenhauer), uma coisa material (como queria a escola escocesa do
senso comum) ou um fenômeno (como queria Kant), mas como O. é sempre o termo ou limite da
operação cognoscitiva. No entanto, é Kant quem inaugura o uso restrito do termo, segundo o qual o O.,
ou mais exatamente o O. de
OBJETO
724 '■' • * *
OBJETO
conhecimento é, de preferência, O. "real" ou "empírico". Kant diz: "Há grande diferença entre ser algo
dado à minha razão como O. em absoluto ou apenas como O. na idéia. No primeiro caso, meus conceitos
passam a determinar o O.; no segundo, o que existe de fato é só um esquema ao qual não se atribui
diretamente nenhum O., nem por hipótese, mas que serve apenas para representar outros O., em sua
unidade sistemática, por meio de sua relação com a idéia. Assim, digo: o conceito de uma inteligência
suprema é uma simples idéia; vale dizer: sua realidade objetiva não deve consistir em que ele se refira
diretamente a um O. (pois seu valor objetivo não pode ser justificado desse modo), mas é apenas um
esquema, organizado segundo as condições da máxima racionalidade do conceito de uma coisa em geral"
{Crít. R. Pura, Dialética, Apêndice). Essas considerações de Kant são uma reiteração de que a idéia da
razão pura não tem propriamente O. porque O. é somente o empírico (a coisa natural), e a idéia refere-se
apenas indiretamente a um grupo de tais objetos. Todavia, esse significado específico do O. não elimina,
nem para Kant, o significado geral e fundamental. De fato, esse filósofo não só considera o conceito de O.
como o "mais elevado" em filosofia (v. o fim deste verbete), como também fala de uma "distinção de
todos os O. em geral em fenômenos e númenos", considerando o númeno como "o O. de uma intuição
não sensível", admitida em hipóteses, que poderia pertencer a um intelecto divino {Crít. R. Pura, Anal.
dos Princ, cap. III). Por outro lado, para Kant, além do O. de conhecimento, há "o O. da razão prática",
que é "a representação de um O. como de um efeito possível através da liberdade" {Crít. R. Prática, I,
Livro I, cap. 2); isso significa que neste caso o O. é o termo ou resultado de uma ação livre. O que em
todo caso constitui o O. é sua função de limite ou termo de uma atividade ou de uma operação qualquer.
Essa noção não desaparece nem nas formas mais radicais de idealismo: para o próprio Fichte, o O. é o
limite da atividade do Eu: "O Eu põe-se como limitado pelo não-eu" ( Wis-senschaftslehre, 1794, § 4. A),
e o não-eu nada mais é que O. {Ibid., § 4 E. III; trad. it., p. 143). Analogamente, qualquer outra
determinação que os filósofos possam criar sobre a natureza do O. tem como ponto de partida a sua
definição geral. P. ex., o O. pode ser considerado um dado (como costumam fazer os empiristas) ou como umjro-blema (como fizeram os neocriticistas; p. ex. Natorp,
PlatosIdeenlehre, p. 367), mas só pode ser uma ou outra coisa se é considerado como o termo ou limite da
atividade cognoscitiva.
Na filosofia contemporânea, o recurso à noção de intencionalidade{v.) permitiu reconhecer claramente o
caráter geral da noção de O. Brentano, que foi o primeiro a reintroduzir essa noção, diz que "todo
fenômeno psíquico inclui em si alguma coisa como O., embora nem sempre da mesma forma. Na
representação, há algo representado; no juízo, algo reconhecido ou negado; no amor, algo amado; no
ódio, algo odiado, etc." {Psychologie vom empirischen Standpunkt, 1874, I, p. 115). E Husserl ainda
generalizou o conceito, distinguindo O. e "O. percebido": "Deve-se notar que o O. intencional de uma
consciência (tomado como pleno correlato dela) não é absolutamente igual ao O. apreendido {erfasstes).
Costumamos pressupor o ser apreendido no conceito de O. (O. intencional), porquanto, ao pensarmos
nele ou falarmos sobre ele, temo-lo como O. no sentido de apreendido. (...) Com certeza só podemos lidar
com uma coisa física apreendendo-a, e o mesmo se diga de todas as objetividades francamente
representaveis... Ao contrário, no ato de avaliar, de alegrar-se, de amar, de agir, lidamos com valor, com o
O. da felicidade, com o O. amado, com a ação, respectivamente, sem apreender nada de tudo isto" {Ideen,
I, § 37). Paralela e analogamente, Meinong defendia o significado generalíssimo da noção de O.
{Gegenstand), dividindo-a nas classes de O. da representação {Objekte) e de O. do juízo {Objektivé)
{Über Annahmen, 1902, pp. 142 ss.). Quase ao mesmo tempo, no domínio da lógica matemática, Frege
defendia uma noção substancialmente idêntica do O., identificando-o com o significado: "O significado
de uma palavra é o O. que indicamos com ela" {Über Sinn undBedeutung, 1892, § 3; trad. it., p. 222),
pretendendo dizer que o O. é o termo ou limite da operação lingüística, do uso do signo. Wittgenstein, por
sua vez, dizia: "O nome variável '^éo signo do pseudoconceito objeto. Sempre que o termo O. ('coisa',
'entidade', etc.) é usado corretamente, é expresso no simbolis-mo lógico pelo nome variável" {Tractatus,
4.1272). Não muito distante disso está a noção de O. exposta por Dewey, para quem O. é o resultado de
uma operação de investigação: "O nome O. será reservado à matéria tratada, na
OBJETOS, TEORIA DOS 725
OBSERVAÇÃO
medida em que foi produzida e organizada de modo sistemático por meio da investigação;
prolepticamente, objetos são os objetivos da investigação. A ambigüidade que se poderia encontrar no uso
do termo, neste sentido (pois de regra a palavra se aplica às coisas observadas e pensadas), é apenas
aparente, visto que as coisas existem como O. para nós só se tiverem sido preliminarmente determinadas
como resultados de investigação" {Logic, cap. 6; trad. it., p. 175). É fácil ver que a diferença entre essas
definições de O. é apenas a diferença entre as atividades ou as operações consideradas: O. é o termo do
significado, se considerarmos a linguagem e,-em geral, o uso dos signos; é o termo de uma operação de
investigação se considerarmos a pesquisa científica; e assim por diante; mas em todo caso é (como já
julgavam os escolásticos) o termo ou o limite de determinada operação.
Assim, a palavra O. é o termo mais geral de que dispõe a linguagem filosófica. Kant tinha razão ao
afirmar que, se "o conceito mais elevado de que se costuma partir na filosofia transcendental é a divisão
entre possível e impossível", visto que toda divisão pressupõe um conceito a ser dividido, "deve-se aduzir
um conceito ainda mais elevado, que é o conceito de O. em geral, assumido de modo problemático, sem
decidir se ele é algo ou nada" {Crít. R. Pura, Anal. dos Princ, Nota às anfibolias dos conceitos da
reflexão). É óbvio que o conceito de O. não coincide inteiramente com nenhuma de suas especificações
possíveis. As coisas, os corpos físicos, as entidades lógicas e matemáticas, os valores, os estados
psíquicos, etc, são todos O., especificados ou especificáveis por meio de modos de ser particulares ou
procedimentos de verificação particulares; mas nenhuma dessas classes de O. possui uma objetividade
privilegiada e nenhuma se presta a exprimir, em seu âmbito, a característica do O. em geral. OBJETOS,
TEORIA DOS (ai Gegenstands-tbeorié). Foi assim que A. Meinong chamou a ciência que considera os
O. como O. sem levar em conta suas especificações (realidade ou irrealidade, etc). Essa ciência não é a
metafísica no sentido tradicional porque esta considera a totalidade dos O. existentes, que são apenas uma
pequena parte dos objetos possíveis (cf. Über Annahmen, 1902; Gegen-standstheorie, 1904; Zur
Grundlegung der all-gemeinen Werththeorie, 1923) (v. OBJETIVO; OBJETO).
OBRIGAÇÃO (lat. Obligatia, in. Obligation;
fr. Obligation; ai. Verpflichtung; it. Obbligazio-né). 1. Caráter coercitivo, conferido a uma relação
interpessoal por lei jurídica ou por norma moral. Esse caráter é diferente da necessidade (v.), segundo a
qual é impossível que a coisa seja ou aconteça de modo diferente: a O. não impede que a relação de fato,
por ela regida, se configure de modo diferente, mas implica, neste caso, a intervenção de uma sanção.
Algumas vezes o caráter obrigatório da relação expressa-se com a noção de necessidade moral ou ideal
(v. NECESSIDADE), sem que com isto se pretenda reduzi-lo à necessidade propriamente dita. Bergson foi o
único que procurou substancialmente reduzir O. a necessidade de fato, entendendo por O. os costumes
sociais e por O. em geral "o costume de contrair costumes" {Deux sources, cap. I).
2. Na lógica terminista medieval, o compromisso em vista do qual um interlocutor admite na discussão
algo que antes não admitia. Esta é a definição dada por Ockham {Summa log., III, 38), que admite seis
espécies de obrigações: instituição, petição, posição, deposição, dubita-ção e o sit verum.
A instituição (institutio) consiste em atribuir a um vocábulo um significado novo durante a discussão, e
não mais {Summa log., III, III, 38). A petição (petitio) consiste em obrigar o interlocutor a este ou aquele
ato que diga respeito à sua função, como p. ex. a conceder uma proposição {Ibid., III, III, 39). A
deposição (depositió) é a obrigação de sustentar uma proposição como falsa {Ibid., III, III, 42). A
dubitação {dubitatió) é a obrigação de sustentar alguma coisa como dúbia {Ibid., III, III, 43). Quanto a
posição e o sit verum, ver os verbetes respectivos.
OBSERVAÇÃO (in. Observationjr. Observa-tion; ai. Beobachtung). Verificação ou constatação de um
fato, quer se trate de uma verificação espontânea ou ocasional, quer se trate de uma verificação metódica
ou planejada. A O. foi algumas vezes restringida ao primeiro significado; neste caso, contrapõe-se a
experiência ou experimentação como verificação deliberada ou metódica (cf. C. BERNARD, Intro-duction
à 1'étude de Ia medicine expérimentale, 1865,1, cap. 1). Outras vezes foi restringida ao segundo
significado, caso em que se contrapõe a experiência ingênua, primitiva, comum ou ocasional (nesse
sentido, este termo é empregado habitualmente na linguagem científica
OBSERVAÇÃO
726
OCASIONALISMO
contemporânea). Em vista disso, é possível estudar ambos os significados, distinguindo: ls
O. natural, em
que as condições da O. não são planejadas ou planejáveis; e 2° O. experimental (ou experimentação), que
é a O. planejada, caracterizada pela aferição das variáveis. Neste segundo tipo de O., pode-se agir sobre a
variável independente e estudar o comportamento correspondente da variável dependente, ou seja, da
função vinculada.
Qualquer O., seja natural ou experimental, apresenta a divisão entre sistema observante e sistema
observado. A validade desta divisão foi posta à prova (e reconfirmada) pela física quântica, a propósjto
das relações de indeter-minação (v.), ou*seja, da ação que o sistema observante exerce sobre o sistema
observado. Bohr e Heisenberg mostraram que, ao mesmo tempo que o limite entre sistema observante e
sistema observado não é rígido — no sentido de serem possíveis descrições diferentes de um mesmo
fenômeno em que esse limite mude (cf. BOHR, "Wirkumsquantum und Naturbeschrei-bung", em
Naturwissenschaften, 1929 [26], pp. 484-85) —, se ele faltar, também faltará o caráter físico do sistema.
Pode-se evitar calcular a ação perturbadora do sistema observante in-cluindo-o no cálculo. Mas como
mesmo assim resta a indeterminação a respeito da O. do sistema observante, seria preciso incluir no
sistema observado nossos olhos também. Neste caso — nota Heisenberg — "só se poderia tratar
quantitativamente a cadeia de causas e efeitos quando se considerasse o universo inteiro como parte do
sistema observado, mas então a física desapareceria, ficando apenas um esquema matemático. A
subdivisão do mundo em sistema observante e sistema observado impede assim a nítida formulação da lei
causai" (Die physikaliscben Prinzipien der Quanten-theorie, 1930, IV, § 1). Como observa o próprio
Heisenberg, por "sistema observante" não se deve entender necessariamente o observador humano, visto
que por este se pode entender também uma chapa fotográfica ou um aparelho qualquer. Portanto, a
divisão entre sistema observante e sistema observado, que a física julga indispensável para dar significado
físico (não puramente matemático) a seus enunciados, não eqüivale à distinção filosófica tradicional entre
objeto e sujeito, à qual, por outro lado, também se opõe a afirmada mobilidade do limite de demarcação
entre os dois sistemas.
OBSTÁCULO (in. Obstacle, Hindrance, fr. Obstacle, ai. Hinderniss; it. Ostacoló). Limite à atividade.
Fichte definiu o O. do seguinte modo: "O que significa uma atividade e como se torna atividade?
Simplesmente pelo fato de a ela se opor um O." (Sittenlehre, 1798, Intr., § VI; Werke, IV, p. 7). Cf. R. LE
SENNE, Obstacle et valeur, 1934.
OBVERSÃO (in. Obversion; fr. Obversion; ai. Obversion; it. Obversioné). Este termo de origem recente
(provavelmente devido a JEVONS, Elementary Lessons in Logic, p. 85) designa a transformação de uma
proposição em uma proposição equipolente através da dupla negação: p. ex., a transformação da
proposição "todos os homens são mortais" em "nenhum homem é não mortal".
OCAMISMO (in. Ockhamism; fr. Occamis-me; ai. Ockhamismus-, it. Occamismó). Com este termo foi
chamada desde o séc. XV a corrente filosófica iniciada por Ockham no último período da Escolástica
medieval, caracterizada pelos seguintes pontos básicos: I
a
empirismo, como privilégio concedido à
experiência (ou "conhecimento intuitivo") para a prova e a verificação da verdade; 2- nominalismo,
negação da realidade dos universais e sua redução a signos naturais; 3S
terminismo, lógica da suposição
(v.), para a qual os conceitos são termos que estão em lugar das coisas reais; 4a
cepticismo teológico,
segundo o qual é impossível demonstrar ou racionalizar as verdades da fé e atribui-se às provas da
existência de Deus apenas valor provável. Por este último ponto, Lutero denominou-se e foi chamado de
ocamista. Os outros pontos foram defendidos e ilustrados na escolástica da segunda metade do séc. XIV e
dos primeiros decênios do séc. XV.
OCASIÃO (in. Occasion; fr. Occasion; ai. Gelegenheit; it. Occasioné). Situação que provoca ou facilita
a intervenção de uma ação livre. Causas ocasionais: causas consideradas como ocasiões para a ação
direta de Deus (v. OCASIONALISMO).
Kierkegaard ressaltou o valor da O. como "categoria do finito", que pode ser "pretexto ou causa". Neste
sentido, a O. é a "última e verdadeira categoria de transição da esfera da idéia à da realidade" (Autaut, "Os
primeiros amores"; trad. fr., Prior e Guignot, pp. 186 ss.).
OCASIONALISMO (in. Occasionalism, fr. Oc-casionalisme, ai. Occasionalismus-, it. Occasionalismó). Doutrina segundo a qual a única causa de todas as coisas é Deus e que as chamadas
OCORRÊNCIA
727
ONTOLÓGICA, PROVA
causas (segundas ou finitas) são apenas ocasiões de que Deus se vale para levar a cabo seus decretos. Esta
doutrina foi defendida pela primeira vez pela seita filosófica árabe dos Mota-kallimun (cf. MAIMÔNIDES,
Guide des égarés, I, 73), sendo depois retomada na idade cartesiana pelos pensadores que quiseram
utilizar a doutrina de Descartes para defender crenças religiosas tradicionais (Louis De La Forge, Gérard
de Cordemoy, J. Clauberg e A. Geulincx, que viveram no séc. XVII). Geulincx foi o melhor expositor da
doutrina, que visa substancialmente a negar ao homem qualquer poder efetivo no mundo e a atribuí-lo a
Deus. Ao O. opuseram-se Spinoza e Leibniz; era defendido por Male-branche, que a respeito concluía
que, não podendo ser produzido pelas coisas (que não são causas), o conhecimento humano é uma visão
das coisas em Deus (Rechercbe de Ia vérité, 1674-75).
OCORRÊNCIA (in. Tokeri). Esse foi o nome que Peirce deu ao sinsigno, ou seja, "um acontecimento
singular, que ocorre só uma vez, cuja identidade limita-se a essa única ocorrência e ao objeto ou coisa
singular que é um espaço singular ou um único instante do tempo". P. ex., quando se diz que a palavra "o"
aparece vinte vezes em dada página de determinado livro, diz-se que o "o" é uma O.; no entanto, quando
se fala do artigo "o" na língua portuguesa, fala-se de um tipo (Coll. Pap., 4.537). Esse termo passou a ser
empregado comumente em filosofia de língua inglesa. Assim, token-sentence, ou token-reflexive, é um
enunciado do tipo "o enunciado da lousa está mal escrito", ou então um enunciado aduzido puramente
como exemplo, como o discutido por Aristóteles (De int., 9,19 a segs.): "Amanhã haverá uma batalha
naval".
OCULTAS, QUALIDADES, V OCULTO. OCULTISMO (in. Occultism; fr. Occultisme, ai.
Okkultismus-, it. Ocultismo). Crença em fenômenos que se julgam produzidos por forças ocultas ou
crença na validade das ciências ocultas. Por O. pode-se entender o conjunto de tais ciências: magia,
astrologia, metapsíquica, teoso-fia, etc. (v. verbetes específicos).
OCULTO (in. Occult; fr. Occulte- ai. Okkult; it. Occultó). O que se escapa à visão e só pode ser
descoberto por quem tem uma segunda visão, no sentido de ser iniciado numa forma superior de saber.
Neste sentido ciência oculta é, em primeiro lugar, a magia: Cornélio Agripa, em De occultaphilosophia
(1510), incluía na magia
todas as ciências possíveis. Mas hoje também se chama de ciências O. a teosofia, a parapsicologia, etc,
seja por lidarem com fenômenos considerados manifestações de forças O. seja porque se ache que o
estudo de tais fenômenos deve ser reservado a quem se iniciou numa ordem superior de conhecimentos
esotéricos. A partir do séc. XVII começou-se a chamar de qualidades O. as causas formais e finais do
aristotelismo e da escolástica, pretendendo-se ressaltar com essa expressão que recorrer a tais causas
eqüivalia a recorrer a fatores mais desconhecidos que os próprios fenômenos, incapazes, portanto, de
explicá-los. "Os aristotélicos" — dizia Newton — "não deram o nome de qualidades O. às qualidades
manifestadas, mas às qualidades que supunham estar nos corpos como causas desconhecidas de efeitos
manifestados" (Opticks, 1704, III, 1, q. 31).
OFELIMIDADE (in. Opbelimity, fr. Ophé-limité; ai. Ophelimitàt; it. Ofelimitã). Termo criado por
Vilfredo Pareto iCours d'économie politique, Lausanne, 1896) para designar a qualidade fundamental dos
objetos econômicos, que é o valor do uso, que nem sempre coincide com a utilidade; p. ex., um
estupefaciente tem O., mas não utilidade.
OLIGARQUIA. V. GOVERNO, FORMAS DE.
ONIROLOGIA. Interpretação dos sonhos (v. Sonho).
ONIPOTÊNCIA, ONISCIÊNCIA. V TEODICÉIA.
ÔNTICO (in. Ontic; fr. Ontique; ai. Ontisch; it. Onticó). Existente: distinto de ontológico, que se refere
ao ser categorial, isto é, à essência ou à natureza do existente. P. ex., a propriedade empírica de um objeto
é uma propriedade O.; a possibilidade ou a necessidade é uma propriedade ontológica. Essa distinção foi
ressaltada por Heidegger: "'Ontológico', no sentido dado à palavra pela vulgarização filosófica (e aqui se
mostra a ôbnfusão radical) significa aquilo que, ao contrário, deveria ser chamado de O., ou seja, uma
atitude tal em relação ao ente que o deixe ser em si mesmo, no que é e como é. Mas nem por isso se
propôs ainda o problema do ser, e muito menos se atingiu aquilo que deve constituir o fundamento para a
possibilidade de uma 'ontologia'" ( Vom Wesen des Grandes. I, n
g
14; trad. it., p. 23).
ONTOGÊNESE. V. BIOGENÉTICA, LEI.
ONTOLOGIA. V. METAFÍSICA.
ONTOLÓGICA, PROVA. V. DEUS, PROVAS
DE.
ONTOLOGISMO
728
OPERACIONISMO
ONTOLOGISMO (in. Ontologism; fr. Onto-logisme; ai. Ontologismus-, it. Ontologismó). Doutrina
segundo a qual "o trabalho filosófico não começa no homem, mas em Deus; não sobe do espírito ao Ente,
mas desce do Ente ao espírito" (GIOBERTI, Intr. alio studio delia fii, 1840,11, p. 175). O O. opõe-se ao
psicologismo, que segue caminho oposto e é considerado típico da filosofia moderna, a partir de
Descartes. A tese fundamental do O. é de que o homem possui uma visão ou intuição imediata direta do
ente: ou do ente genericamente entendido como noção geral do ser (como julga Rosmini) ou do ente
entendido como o próprio Ente supremo, Deus (como julga Gioberti). Esta tese fundamental deriva do
agostinismo escolástico, que sempre insistiu na iluminação direta do intelecto humano por Deus, e, mais
imediatamente, dos ocasionalistas e de Male-branche, que reduziram toda espécie de conhecimento à
visão em Deus (v. AGOSTINISMO; OCASIONALISMO). Contudo, o O. inclui-se no quadro do retorno
romântico à tradição que domina a filosofia européia na primeira metade do séc. XIX e ressalta os dois
conceitos interligados, revelação e tradição. De fato, intuição do ente é entendida como a revelação que o
ente faz de si próprio ao homem.
O O. de Rosmini limita essa revelação à noção geral do ser ou "ser possível", entendido como forma
fundamental e originária da mente humana e como condição de qualquer conhecimento, que seria síntese
entre a idéia do ser e um dado sensível (Nuovo saggio sull'origine delle idee, 1830, §§ 492, 537). O ato do
conhecimento assim entendido é a percepção intelecti-va (v.). Para Gioberti, porém, Deus revela-se ao
homem (à intuição) em sua própria atividade criadora, e a intuição expressa-se plenamente na fórmula "o
Ente cria o existente", que relaciona três realidades: causa primeira, substâncias criadas e ação criadora
(Int. alio studio delia fii, 1840, II, p. 183). Tanto Rosmini quanto Gioberti tacham a filosofia moderna de
subjetivista, de psicologista e de nihilista, mas na realidade, como já dissemos, sua doutrina é francamente
romântica e encontra correspondência na filosofia do segundo Schelling, na de Schleiermacher e na de
outros expoentes românticos. Uma continuação do O. na filosofia contemporânea pode ser considerada a
filosofia de P. Carabellese, que procurou conciliar Rosmini com Kant. Carabellese considera a
consciência, que é o ponto de partida e o único fundamento da filosofia, como a consciência que o sujeito tem do ser, mas, ao contrário de Rosmini e
de Gioberti, considera o ser como absolutamente imanente à própria consciência. No entanto, também
Carabellese chama esse ser de Deus e considera-o fundamento da objetividade de todas as coisas
particulares que a consciência pode atingir (Critica dei concreto, 1921; II problema teológico come
filosofia, 1931).
ONTOTEOLOGIA. V. TEOLOGIA, 2
a
.
OPERAÇÃO (lat. Operatia, in. Operation, fr. Operation; ai. Operation; it. Operazionè). 1. Atividade em
geral. Este é o significado do termo na Idade Média, quando foi usado como tradução do grego èvépYEia,
que eqüivale a atualidade ou atividade. Foi neste sentido que S. Tomás de Aquino empregou essa palavra
(p. ex., S. Th., II, I, q.3, a.2); para ele, vale o princípio de que "o modo de agir de cada coisa segue seu
modo de ser" (Ibid., I, q. 89, a. 1).
2. Função no significado 1: atividade caracterizada por certo fim e própria de um ser determinado. Neste
sentido se diz, p. ex., que "a O. da física é calcular resultados que possam ser confrontados com a
experimentação", ou que "a O. da ciência é demonstrar", etc.
3- Função no significado 2: relação ou correlação. Neste sentido, fala-se de O. matemáticas ou lógicas.
4. Técnica manual, procedimento manipu-lativo a ser efetuado segundo determinadas regras; p. ex., O. de
medida, O. de produção, etc.
OPERACIONISMO (in. Operationism; fr. Opérationisme, ai. Operationismus; it. Opera-zionismó).
Doutrina segundo a qual o significado de um conceito científico consiste unicamente em determinado
conjunto de operações. O primeiro a propor essa doutrina foi P. W. Bridgman, que assim a ilustrou, com
um exemplo que ficou clássico: "Conhecemos aquilo que chamamos de comprimento só se podemos
dizer qual é o comprimento de qualquer objeto, e o físico não exige mais que isso. Para encontrar o
comprimento de um objeto devemos executar certas operações físicas. Portanto, o conceito de
comprimento é fixado quando são fixadas as operações com as quais o comprimento é medido, ou seja, o
conceito de comprimento implica nada mais nada menos que o conjunto de operações com as quais o
comprimento é determinado. Em geral, por um conceito não entendemos nada mais que con-
OPERADOR
729
OPINIÃO
junto de operações; o conceito é sinônimo do conjunto de operações correspondente. Se o conceito é
físico, tal como o comprimento, as operações são operações físicas reais, como p. ex. aquelas com as
quais o comprimento é medido; se o conceito é mental, como por ex. a continuidade matemática, as
operações são mentais, e através delas determinamos se dado conjunto de grandezas é contínuo"
{TheLogic of Modem Physics, 1927, p. 5). Como se vê, as operações a que Bridgman se referia são as do
significado 4 e 1, mas sua doutrina estendeu-se a qualquer espécie de operação e fora da física foi
utilizada sobretudo pelos psicólogos (cf. S. S. STEVENS, "Psychology and the Science of Science", em
Readings in Phüosophy of Science, ed. P. P., Wiener, 1953, pp. 158-84). Com base nessa extensão da
doutrina do O. e, conseqüentemente, do conceito de operação, os únicos caracteres atribuíveis ao tipo de
operação que pode valer como significado dos conceitos científicos são os de publicidade e repetibilidade: o primeiro exclui o caráter pessoal de certas atividades puramente mentais; o segundo
prescreve a intersubjetividade das operações. Hoje, porém, duvida-se de que o critério operacionista possa
valer para todos os conceitos científicos (cf., p. ex., G. BERGMANN, Phüosophy of Science, 1957, pp.,56
ss.).
OPERADOR (in. Operator, fr. Opérateur, ai. Operator; it. Operatoré). Em lógica: um símbolo
impróprio [ou sincategoremático (v.)], que pode ser usado, juntamente com uma ou mais variáveis e com
uma ou mais constantes ou formas, para produzir uma nova constante ou forma. Esta é a definição dada
por A. Church {Intr. to Mathematical Logic, 1956, § 06); é a mais genérica e permite incluir no âmbito
desse termo, além dos quantificadores, também: o operador de abstração ou abstrator (que é indicado
por uma variável precedida pela letra X) e ao qual, segundo alguns lógicos, se reduzem todos os outros; e
o O. de descrição ou descritor ('), que, quando é a variável do O., como em (X), lê-se:" % tal que". Os O.
quantificadores ou simplesmente quantificadores são: o universal, para o qual se usa a notação "(%)",
posta antes do operando e que se lê "para todos os % é verdade que"; o existencial, para o qual se usa
habitualmente a notação (3) e que, se for a variável do quantificador, como em (3 x), lê-se "existe um x tal
que". A aplicação de um ou mais quantificadores a um operando chama-se quantificação. As notações
citadas são as mais
comumente empregadas na lógica contemporânea, mas não são as únicas. Para maiores informações,
confrontar a citada Introduction de Church.
OPINIÃO (gr. ôóÇa; lat. Opinia, in. Opinion; fr. Opinion; ai. Meinung; it. Opinioné). Este termo tem
dois significados: o primeiro, mais comum e restrito, designa qualquer conhecimento (ou crença) que não
inclua garantia alguma da própria validade; no segundo, designa genericamente qualquer asserção ou
declaração, conhecimento ou crença, que inclua ou não uma garantia da própria validade. Este segundo
significado é mais usado do que explicitamente definido. No primeiro significado, O. contrapõe-se à
ciência (v.).
O primeiro significado já se encontra em Parmênides, que contrapõe "as opiniões dos mortais" à verdade
{Fr., 1, 29-30), mas ambos os significados já se encontram em Platão. Este, por um lado, considera a O.
como algo intermediário entre o conhecimento e a ignorância {Rep., 478 c), incluindo nela a esfera do
conhecimento sensível (conjetura e crença) {Ibid., VI, 510 a); deste ponto de vista, afirma que nem a O.
verdadeira fica imóvel na alma, "até se ligar a um raciocínio causai" e tornar-se ciência {Men., 98 a; cf.
Fil., 59 a). Por outro lado, considera a O. como a conversa que a alma tem consigo mesma, em que
consiste o pensamento {Teet., 190 a-c); neste sentido a própria ciência nada mais é que uma espécie de
opinião. Os dois significados também se encontram em Aristóteles, que por um lado afirma, como Platão,
que, ao contrário da demonstração e da definição, as O. estão sujeitas a mudar e portanto não constituem
ciência {Met., VII, 15, 1039 b 31); por outro lado declara: "Por princípio entendo as O. comuns nas quais
todos os homens baseiam suas demonstrações; p. ex.: que uma asserção deve ser afirmativa ou negativa,
que nada pode simultaneamente ser e não ser, etc." {Ibid., III, 2, 996 b 27).
Na tradição posterior, o significado genérico perdeu-se, permanecendo o outro. Os estóicos definiram a O.
como "assentimento fraco e ilusório" (SEXTO EMPÍRICO, Adv. math., VII, 151; cf. CÍCERO, Tusc, IV, 7,
15), e, no mesmo sentido, Epicuro chamou de O. "uma assunção que pode ser verdadeira ou falsa" (DIÓG.
L., X, 33). Com outras palavras, S. Tomás de Aquino expressava a mesma coisa: "A O. é o ato do
intelecto que se dirige para um lado da contradição por medo do outro" {S. Th., I, q.79, a.9). Wolff
OPINIÃO
730
ORDEM
chamava de O. "a proposição insuficientemente provada" ÍLog., § 602), e Spinoza identificava a O. com o
conhecimento do primeiro gênero, que é o menos elevado e seguro e provém de signos (Et., II, 40, Scol.
II). Da mesma forma Kant diz: "A O. é uma crença insuficiente tanto subjetiva quanto objetivamente, de
que se está cônscio". Estar cônscio consiste em "não poder presumir opinar sem pelo menos saber algo
por meio do qual o juízo problemático tenha certa conexão com a verdade"; de outro modo, "tudo não
passa de jogo da imaginação, sem a menor relação com a verdade" (Crít. R. Pura, Doutr. do Método, cap.
2, seç. 3)- Kant afirmava também (loc. cit.} que "nos juízos que derivam da razão pura não é
absolutamente permitido opinar", e que, portanto, não se pode opinar nem no domínio da matemática nem
no domínio moral. Mas Hegel negava que houvesse opiniões, mesmo no domínio da filosofia: "Uma O. é
uma representação subjetiva, um pensamento casual, uma imaginação que crio desta ou daquela maneira
e que outro pode criar de modo diferente; a O. é um pensamento meu, não um pensamento em si
universal, que seja em si e por si. Mas a filosofia não contém opiniões, já que não existem opiniões
filosóficas" (Geschichte der Philosophie, em Werke, ed. Glockner, XVII, p. 40; trad. it., vol. I, p. 21). Este
ponto de vista foi compartilhado, e ainda é, por todas as filosofias absolutistas; na realidade, é o ponto de
vista da metafísica tradicional. O ponto de vista expresso por Kant, a respeito da impossibilidade de
opiniões em campo científico, foi compartilhado pela ciência positivista do séc. XIX. Mas o falibilismo
que prevalece hoje, tanto em ciência como em filosofia, torna-nos menos desdenhosos e depreciativos em
relação à O. Por um lado, não se considera que a O. seja tão pessoal ou incomunicável quanto afirmara
Hegel. Uma O. científica ou filosófica pode ser compartilhada por muitos, precisamente como O., sem o
disfarce ilusório ou sub-reptício de verdade, ainda que represente em determinada fase da investigação a
hipótese mais racional ou a teoria mais apoiada pelos fatos. Dewey diz: "Na solução de problemas que
pretendem menor exatidão que os casos jurídicos, os juízos são chamados de O., para distingui-los dos
juízos ou asserções justificadas. Porém, se a O. professada tem fundamento, é produto da investigação e,
em tal medida, é um juízo" (Logic, 1939, VII; trad. it., p. 179). Por outro lado, mesmo as hipóteses
ou teorias mais consolidadas apresentam certa amplitude de interpretações possíveis, que deixa grande
margem à diversidade de O. Finalmente a repugnância compartilhada (e com boas razões) por cientistas e
filósofos a considerar a verdade científica ou filosófica como absoluta e necessária, diminui a diferença
entre a verdade e a O., entre a O. e a ciência. O conceito de O. hoje não é diferente da definição dos
antigos: compromisso frágil e sujeito a revisão, ausência de garantia de validade constituem hoje também
as características da O., mas seu campo estendeu-se muito mais do que os antigos imaginariam ou do que
imaginaram e imaginam os filósofos absolutistas; acima de tudo, perdeu-se nitidez dos limites entre
ciência e O., visto não haver lugar ou região da ciência em que não haja intersecção entre O. e verdade.
OPOSIÇÃO (gr. -cà avn.Keiu.eva; lat. Opposi-tio-, in. Opposition; fr. Opposition; ai. Gegensatz,
Opposition; it. Opposizionè). Relação de exclusão entre termos ou objetos em geral. Aristóteles distinguiu
quatro formas de O.: I
a O. corre-lativa, como p. ex. entre o dobro e a metade; 2a O. contrária, como entre
o bem e o mal, o branco e o preto, etc.; 3a
O. entre posse e privação, como entre a visão e a cegueira; 4a
O.
contraditória, que é a contradição (Cat., 10,11 b 15 ss.) (v. em cada uma destas formas os verbetes
separadamente: CONTRADIÇÃO; CONTRARIEDADE; CORRELAÇÃO; POSSE; e ainda QUADRADO DOS OPOSTOS).
ORDEM (gr. tócÇtç; lat. Ordo; in. Order, fr. Ordre, ai. Ordnung; it. Ordiné). Uma relação qualquer entre
dois ou mais objetos que possa ser expressa por meio de uma regra. Esta noção, que é a mais geral, foi
expressa por Leibniz pela primeira vez numa passagem do Discurso de metafísica (1668): "O que passa
por extraordinário é extraordinário somente em relação a alguma O. particular, estabelecida entre as
criaturas porque, quanto à O. universal, tudo é perfeitamente harmônico. Tanto isso é verdade que no
mundo não só nada acontece que esteja absolutamente fora de regra, como também não se saberia sequer
imaginar algo semelhante. Suponhamos que alguém marque uma quantidade de pontos no papel, de um
modo qualquer: digo que é possível achar uma linha geométrica cuja noção seja constante e uniforme
segundo certa regra, e tal que passe por todos esses pontos na mesma O. com que foram traçados pela
mão. E, se alguém traçar uma
ORDEM
731
ORDEM
linha contínua, ora reta, ora curva, ora de outra natureza, é possível achar uma noção, regra ou equação
comum a todos os pontos dessa linha em virtude da qual as mudanças da linha sejam explicadas. P. ex.,
não há nenhum rosto cujo contorno não faça parte de uma linha geométrica e não possa ser traçado de
uma só vez por meio de certo movimento regulado. Mas, quando uma regra é muito complexa, o que lhe
pertence passa por irregular. Assim, podemos dizer que, qualquer que fosse o modo como Deus tivesse
criado o mundo, este teria sido sempre regular e teria uma O. geral" {Disc. de mét., § 6). Neste sentido, a
O. consiste simplesmente na possibilidade de expressar com uma regra, ou seja, de maneira geral e
constante, uma relação qualquer entre dois ou mais objetos quaisquer. A noção de O., neste sentido, não
se distingue da noção de relação constante. Mas este é apenas o significado genérico da noção. No seu
âmbito podemos distinguir três noções específicas: I
a O. serial; 2
a
O. total; 3
a grau ou nível.
\- A O. serial é própria da relação antes e depois. Aristóteles observou que esta relação recorre onde há
princípio, porque neste caso as coisas podem estar mais ou menos próximas do princípio. Um antes ou
um depois pode ser determinado em relação ao espaço e ao tempo, ou em relação ao movimento, à
potencialidade, ou à disposição. Mesmo no conhecimento alguma coisa vem antes de outra por definição
ou no sentido de que a sensação vem antes do conceito. Em geral, de duas coisas vem antes a que pode
ficar sem a outra: segundo Aristóteles, essa é a expressão mais genérica dessa forma de O. (Afeí., V, 1018
b 9). Aristóteles parece deste modo privilegiar como O. serial a O. causai, em que a causa pode subsistir
sem o efeito, mas o efeito não pode subsistir sem a causa, e por isso vem depois dela: interpretação
freqüente na tradição filosófica. Agostinho dizia, p. ex.: "Ou demonstrais que alguma coisa pode
acontecer sem causa, ou acreditais, como eu, que nada acontece sem certa O. de causas", identificando
deste modo a noção de O. com a de causalidade (Deord., I, 4,11). Para Spinoza, a O. das coisas coincidia
com a sua conexão causai; considerava sinônimas as duas expressões: "A O. de toda a natureza" e "o nexo
das causas" (Et., II, 7, Escol.). Kant não só fazia a mesma identificação como considerava a O. causai
como condição da O. temporal: "Uma coisa pode ter lugar determinado no tempo só
sob a condição de se presumir, no estado precedente, uma outra coisa que ela precise seguir sempre,
segundo uma regra; donde resulta, em primeiro lugar, que não posso subverter a série de tal modo que o
conseqüente seja anterior ao precedente, e em segundo lugar que, posto o estado precedente, determinado
acontecimento deve infalível e necessariamente seguir-se" (Crít. R. Pura, Anal. dos Princ, cap. II, seç. 3,
Analogias da experiência). Analogamente, para Bergson, a O. natural é "física", "geométrica" ou
"automática", e fora dela só há O. "vital" ou "desejada", isto é, a ordem dos fins (Évol. créatr, 8
a
edição,
1911, p. 251-52).
No entanto, esse privilégio conferido à O. causai nem sempre obscurece o conceito formal da O. serial. S.
Tomás de Aquino retomava a definição de Aristóteles: "Fala-se sempre de O. em relação a alguns
princípios. E assim como se fala em princípio de muitas maneiras, ou seja, segundo o lugar, como quando
se fala do ponto, segundo o intelecto, como quando se fala do princípio da demonstração, e segundo as
causas singulares, assim também se fala de O." (5. Th., I, q.42, a.3). Nesta passagem, a O. causai é
somente uma exemplificação da O. geral. Do mesmo modo, Wolff definia a O. como " óbvia semelhança,
graças à qual as coisas são postas umas à frente das outras ou uma depois da outra", em que a óbvia
semelhança é a constância de relação (.Ont., § 472). O mesmo Kant expressava claramente o conceito de
O. serial ao identificar O. com regularidade, como fez a propósito do conceito formal de natureza (Crít.
R. Pura, § 26). C. I. Lewis observa que a O. aritmética, que se impõe aos objetos naturais, permite que
"uma infinita multiplicidade seja submetida a uma simplicidade finita de regras" (Mindandthe WorldOrder, 1929; edição 1956, p. 363). Os matemáticos e os lógicos, a partir de Cantor, consideram como O.
uma relação delimitada de certas regras. P. ex., se assumimos a relação precede, bastam as regras
seguintes para obter uma O. simples-. l
s
nenhum termo precede-se a si mesmo; 2a
se a precede be b
precede c, então a precede c; 3Q se a e b são dois termos diferentes quaisquer, «precede bou bprecede a.
Pode-se ter, enfim, aquilo que Cantor chamou de "conjunto bem ordenado" ao admitir uma quarta regra:
em toda classe não vazia de termos há um primeiro termo, que precede todos os outros da mesma classe
(cf. A. CHURCH, Intr. to Mathematical Logic, § 55).
ORFISMO
732
ORGANISMO
2- A segunda espécie de O. consiste na disposição recíproca das partes de um todo: como notava
Aristóteles, essa espécie de O. pode referir-se ao lugar, à potência ou à forma (Met., V, 19, 1022 b 1). Esta
é a O. que os estóicos definiam, segundo relata Cícero (Tusc, I, 40, 142), como "a disposição dos objetos
em seus lugares justos e apropriados"; essa definição, como é óbvio, pressupõe que seja previamente
disposto, para cada objeto, o lugar justo e apropriado, com vistas ao fim a que se destina o objeto; por
isso, baseia-se no conceito de fim. Se a O. serial é essencialmente O. causai, a O. total é essencialmente
O. final. Foi esta O. que Aristóteles comparou à do exército ou da casa, sobre a qual disse: "Todas as
coisas estão ordenadas em torno de uma única coisa: como numa casa em que os homens livres
estipularam todas as suas atividades ou a maior parte delas, enquanto os escravos pouco contribuem para
o bem comum" {Met., 12, 10, 1075 a 18). É a O. que S. Tomás se Aquino chamava de "O. dos fins" ou
"dos agentes" CS. Th., I, 11, 2109 a 6), que Kant chamou de O. moral ou reino dos finsCv), e Bergson de
"O. vital" iÉvol. créatr., 8
a
ed., 1911, p. 251). Obviamente, quando essa O. é atribuída ao mundo,
considera-se o mundo, ou pelo menos sua O., como o produto de um agente livre.
3
3
Finalmente, o terceiro conceito de O. é de grau ou nível. S. Tomás de Aquino já fazia a distinção entre
O. como hierarquia e O. como grau individual da própria hierarquia: "No primeiro sentido" — dizia ele
— "a ordem compreende diversos graus; no segundo, é um único grau, de tal maneira que se fala de
várias ordens de uma única hierarquia" CS. Th., I, q. 108, a. 2). Neste segundo sentido, a O. é
simplesmente o grau, o plano ou o nível de uma O. total.
ORFISMO (lat. Orphismus; in. Orphism; fr. Orphisme; ai. Orphismus, it. Orfismó). Seita fi-losóficoreligiosa bastante difundida na Grécia a partir do séc. VI a.C. e que se julgava fundada por Orfeu.
Segundo a crença fundamental dessa seita, a vida terrena era uma simples preparação para uma vida mais
elevada, que podia ser merecida por meio de cerimônias e de ritos purificadores, que constituíam o
arcabouço secreto da seita. Essa crença passou para várias escolas filosóficas da Grécia antiga (Pitágoras,
Empédocles, Platão), mas a importância que alguns filólogos e filósofos dos primeiros decênios do séc.
XX atribuíram ao O. na determinação das características da filosofia grega já não é reconhecida por ninguém. Cf. O. KERN, Orphicorum
fragmenta, Berlim, 1923; I. M. LINFORTH, The Arts of Orpbeus, 1941.
ORGANICISMO (in. Organicism- fr. Orga-nicisme, ai. Organizismus; it. Organicismó). Toda doutrina
que interprete o mundo, a natureza ou a sociedade por analogia com o organismo. O O. é, portanto,
bastante antigo e difundido, pois nele se incluem tanto as antigas especulações físicas do mundo como
"grande animal" quanto as especulações políticas em que o Estado é concebido por analogia com o
homem. Mas, na realidade, esse termo (que é recente e deriva da biologia) faz habitualmente referência só
a doutrinas recentes, em particular a de Whitehead, o qual deu a seu ponto de vista esse nome ou o de
"filosofia do organismo". A doutrina de Whitehead adota o conceito clássico de organismo como
totalidade cujas partes não precedem o todo, e considera o universo inteiro como um organismo nesse
sentido (Process and Reality, 1929). Ela é um O. também porque atribui sensibilidade a todo o mundo
real (Ibid., p. 249). Fora da filosofia, esse termo às vezes foi empregado para designar as teorias
sociológicas que interpretam a sociedade humana como um organismo: p. ex. a de Spencer (Principies of
Sociology, 1876).
ORGÂNICO (in. Organic; fr. Organique, ai. Organisch; it. Orgânico). Que é um organismo ou pertence
ao organismo. Além dos significados relativos a esse termo, o adjetivo foi e é às vezes empregado para
indicar a subordinação das partes ao todo que se considera típica do organismo. Assim, Saint-Simon e
Comte empregaram o adjetivo O. para indicar as épocas em que todas as manifestações da vida estão
subordinadas a um único princípio, como aconteceu, p. ex., na Idade Média em relação ao princípio
teológico (v. CRISE).
ORGANISMO (gr. òpYaviKÒv atõua; lat. Cor-pus Organicum; in. Organism; fr. Organisme, ai.
Organismus; it. Organismo). O corpo vivo naquilo que o distingue especificamente do corpo não vivo. O
conceito de O. foi formulado pela primeira vez por Aristóteles da seguinte maneira: "Se ó machado tem
de rachar a madeira, deve necessariamente ser duro; e, se tem de ser duro, deve necessariamente ser de
bronze ou de ferro. Ora, exatamente da mesma maneira, o corpo, que é um instrumento como o machado
— visto que cada uma de suas partes, assim como sua totalidade, tem uma finali-
ORGANISMO
733
ORGANISMO
dade própria — tem de ser feito necessariamente assim e assim, se é que deve cumprir sua função"
(Depart. an., I, 1, 642 a 10). Nesta noção, o ponto fundamental é que toda a estrutura do O. subordina-se
à sua função, isto é, a seu fim de sobreviver como O.; dessa característica deriva a outra, de subordinação
das partes ao todo. Por isso, Aristóteles diz, a propósito da composição dos animais, que uma casa não
existe em função dos tijolos e das pedras, mas são os tijolos e as pedras que existem em função da casa
(Ibid., II, 1, 646 a 27), e que "a ciência da natureza trata da composição e da totalidade da substância, e
não das partes que não podem existir separadamente da substância" (Ibid., I, 5, 645 a 33)- A subordinação
das partes ao todo, que — só ele — é substância, passou a ser a característica fundamental do organismo.
Mas esta característica obviamente é determinada pela estrutura finalista do organismo. Justamente
porque ele, na sua totalidade, deve ser apropriado ao fim a que se destina e a ele subordinado, também as
partes do O. devem ser subordinadas à totalidade do O. Portanto, a partir de Aristóteles, o conceito de fim
passou a fundamentar a noção de O. e assim continuou mesmo quando, com Descartes, o O. começou a
ser considerado máquina. Descartes dizia: "Aqueles que sabem quantos autômatos ou máquinas
semoventes a habilidade humana pode construir com poucas peças, comparativamente à infinidade de
ossos, músculos, nervos, artérias, veias, etc, que estão no corpo de cada um de nós, consideram esse corpo
como uma máquina que, saída das mãos de Deus, é incomparavelmente mais bem organizada e tem em si
movimentos mais admiráveis do que as que podem ser inventadas pelos homens" (Discours, V). Com
efeito, um relógio ou uma máquina não deixam de ter um objetivo, e, equiparando o O. à máquina,
Descartes não tencionava negar a sua finalidade, mas simplesmente apresentar a tese de que a estrutura
finalista do O. não depende de uma força externa a ele, da alma, mas da variedade e da coordenação das
partes, ou seja, da organização. Aliás, Leibniz, que insistiu muito na organização finalista do universo,
também considerou o O. como máquina: "Todo corpo orgânico é uma espécie de máquina divina ou de
autômato natural, que sobrepuja infinitamente todos os autômatos artificiais" (Monad., § 64). Só em Kant
a finalidade de um autômato ou de uma máquina foi distinguida da finalidade do organismo. "Num relógio" — observa Kant — "uma peça é o instrumento que serve ao movimento das outras,
mas não é a causa eficiente da produção das outras: uma peça existe, sim, em função das outras, mas não
por meio delas. Por isso, a causa produtora do relógio e da sua for ma (...) está fora dele, num ser que
pode agir segundo as idéias de um todo possível, mediante sua causalidade". No O., ao contrário, "cada
parte é concebida como existente somente por meio das outras, para as outras e para o todo, ou seja, como
um instrumento (órgão)": como "um instrumento que produz as outras partes e é reciprocamente
produzido por elas". Em outros termos, as partes de um O. são ao mesmo tempo causa e efeito umas das
outras, e todas em relação à totalidade do organismo. Neste sentido, o O. não possui a simples força
motriz, como a máquina, mas também possui "uma força formadora tal que se comunica às matérias que
não a têm, podendo assim organizar; uma força formadora que se propaga e que não pode ser explicada
unicamente pela faculdade do movimento" (Crít. do Juízo, § 65).
Estas notas de Kant, esclarecendo muito bem o finalismo intrínseco do O., tornam de algum modo inútil o
finalismo global da natureza e o relegam a segundo plano. A organização finalista do O., com efeito, pode
ser compreendida ou admitida independentemente do finalismo universal da natureza. Todavia, as
especulações da filosofia romântica sobre o O., mesmo partindo dos conceitos kantianos, tendem
justamente a resolver a finalidade intrínseca do O. na finalidade universal, ou melhor, a estender a
primeira ao universo inteiro. Schelling, p. ex., diz: "No produto natural está ainda unido aquilo que, ao
agir livremente, separou-se a serviço do fenômeno. Toda planta é inteiramente aquilo que deve ser; nela, o
livre é necessário, e o necessário é livre (...) Só a natureza orgânica dá a imagem completa da liberdade e
da necessidade reunidas no mundo externo" (System des transzendentalen Idealismus, V; trad. it., p. 289).
Ainda mais arbitrariamente, Hegel considera a terra como primeiro O. porque é "um sistema universal de
corpos individuais" (Ene, § 338); e afirma que, apesar de a vitalidade natural romper-se na multiplicidade
dos animais vivos, estes "são uma única vida na idéia, um único sistema orgânico de vida" (Ibid., § 337).
Aqui o O. não é considerado em suas características específicas, mas simplesmente
ORGANISMO
734
ORGANON
dissolvido no finalismo cósmico. A esse mesmo resultado chega a doutrina de Bergson, que vê no O. o
resultado de um elã vital (ou corrente de consciência) que penetra e sujeita a matéria bruta. O que do
ponto de vista da ciência é "máquina", do ponto de vista da filosofia é o equilíbrio atingido pelo elã vital
em seu esforço formador. E diz: "Para nós, o conjunto da máquina organizada representa o conjunto do
trabalho organizativo (embora mesmo este só seja verdadeiro aproximativamente), mas as peças da
máquina não correspondem às partes do trabalho, visto que a materialidade da máquina não representa
mais um conjunto de meios empregados, mas um conjunto de obstáculos contornados: é uma negação
mais do que uma realidade positiva" iÉvol. créatr., 8
a
ed., 1911, p. 102) A realidade positiva é somente o
elã vital, isto é, a consciência.
A disputa metafísica entre finalismo e me-canicismo, ou entre materialismo e vitalismo, não influencia o
conceito de organismo. Aquilo que, depois de Kant, convencionou-se chamar de "finalidade interna" do
O. não foi posto em dúvida nem (como vimos) por quem concebia o O. como máquina. Por outro lado, a
resolução da finalidade intrínseca do O. no finalismo cósmico, apreciada por todas as formas de vitalismo
e, em geral, por todas as interpretações metafísicas do O., não ajuda em nada a esclarecer o conceito de O.
porque, ao recorrer a uma tese genérica, só dá uma solução aparente ao problema de entender as formas
específicas de ação da finalidade orgânica. Os biólogos contemporâneos tendem, portanto, a fugir à
antítese entre mecanismo e finalismo. Goldstein julga tão inútil o recurso à enteléquia quanto o recurso ao
finalismo cósmico, mas julga indispensável insistir na ação do O. como totalidade. Isso leva a admitir o
finalismo interno do O. "A hipótese de uma tarefa determinada" — diz ele — "é supérflua para a
compreensão do O., mas a hipótese de um objetivo determinado (a realização da essência do O.) é
bastante profícua para a nossa compreensão do O." (Der Aufbau des Organismus, 1934, p. 264). Mais
recentemente Simpson disse: "Sabemos que o fogo não é um elemento ou princípio separado, mas um
processo e uma organização da matéria em que a conduta da matéria é diferente da que existe no nãofogo. Do mesmo modo, não se renuncia à perspectiva materialista quando se considera a vida como um
processo e uma organização em que a
conduta da matéria é diferente da que se observa nos estados não-vivos" (TheMeaning of Evolution, 1952,
p. 125). Por outro lado, a capacidade que o O. tem de desfrutar das possibilidades ou oportunidades que
sua estrutura, suas próprias variações ou mesmo o ambiente lhe oferecem — que Simpson chama de
oportunismo da vida — outra coisa não é senão a própria "finalidade intrínseca" da qual falam os outros
biólogos. Isso fora reconhecido até por um dos fundadores do Círculo de Viena, Moritz Schlick: "Um
grupo de processos ou de órgãos é chamado de finalista em relação a um efeito definido se esse efeito for
normal na cooperação dos processos e dos órgãos. Aqui é preciso ressaltar a cooperação; num caso
específico, esses processos, dependendo das circunstâncias, podem ocorrer de várias maneiras, mas são
interdependentes e interligados de tal maneira que sempre produzem aproximadamente a mesma espécie
de efeitos" ("Naturphiloso-phie", em Die Philosophie in ihren Einzel-gebieten, Berlim, 1925; trad. in. em
Readings in the Philosophy of Science, 1953, p- 529). Este conceito de finalismo decerto nada tem a ver
com a tese do finalismo universal: trata-se de um finalismo limitado, específico, que procede por
tentativas e tem êxito só em certos casos, e não do plano universal infalível, no qual todos os seres se
acham salvaguardados. Algumas vezes foi chamado de teleonomiaCy.)-Desse ponto de vista, o O. pode
ser considerado como máquina, mas uma máquina dotada de unidade funcional, coerente, integral e,
ademais, capaz de autoconstruir-se, com base num plano ou projeto que se mantém relativamente
invariável de geração em geração (cf., p. ex., J. MONOD, Le hasard et Ia necessite, 1970, cap. III).
V. CIBERNÉTICA; SISTEMA; ESTRUTURA.
ORGANON (gr. õpyocvov; lat. Organum). Esse foi o título dado pelos comentadores gregos ao conjunto
das obras lógicas de Aristóteles: Categorias, Sobre a interpretação, Analíticos primeiros (dois livros),
Analíticos segundos (dois livros); Tópicos (oito livros) e Reputações sofísticas. Duas outras vezes o nome
O. aparece como título de livro: Novum Organum (1620), de Francis Bacon, que contrapôs explicitamente
sua lógica à lógica aristotélica, e Neues O. (1764) de J. H. LAMBERT, filósofo iluminista alemão com
quem Kant manteve importante correspondência. O uso desse título, porém, não tem relação exata com a
tarefa atribuída à lógica (v.).
ÓRGÃO
735
OTIMISMO
ÓRGÃO (gr. õpyocvov, lat. Organum-, in. Organ; fr. Organe, ai. Organ; it. Organó). No sentido
específico da biologia, da qual o termo passou à filosofia, o O. foi definido por Aristóteles com base na
função por ele desempenhada e por analogia com o inorgânico: "Todo instrumento e cada parte do corpo
tem um fim próprio, uma ação específica. (...) Assim como a serra é feita para serrar e não o contrário, de
tal modo que serrar é sua função específica, também o corpo é feito para a alma e cada parte do corpo tem
por natureza sua própria função" {Depari. an., I, 5, 645 b 12). Este conceito permaneceu constante em
biologia, filosofia e todos os outros campos em que é empregado. ORIENTAÇÃO (in. Orientation; fr.
Orienta-tion; ai. Orientierung; it. Orientamentó). Este termo foi introduzido na filosofia por Kant, que
com ele designou o problema de como deve a razão comportar-se fora dos limites, bastante restritos, do
conhecimento empírico, ou seja, do conhecimento concreto: "Orientar-se no pensamento em geral
significa determinar-se no domínio do verossímil, segundo um princípio subjetivo da razão, em vista da
insuficiência de princípios objetivos da razão" (Was Heisst. sich im Denken OrientieremP, 1786, A, 310).
Kant excluía a possibilidade de que o homem pudesse orientar-se com base na fé ou num suposto saber
intuitivo. Esse termo foi empregado novamente por Jaspers, que deu o título de "O. filosófica no mundo"
ao primeiro volume da sua Philosophie (1932). Segundo Jaspers, a O. no mundo realiza-se quando o
homem se considera elemento ou coisa do mundo, entre inúmeros elementos ou coisas, e procura achar
deste modo sua própria vida. No entanto, redunda na ruptura do mundo numa multiplicidade de
perspectivas cósmicas (PM., I, pp. 69 ss.). Além desses significados especiais, esse termo é muito
empregado na linguagem comum e filosófica contemporânea, mas com significado bem pouco preciso.
ORIGEM (lat. Origo-, in. Origin; fr. Origine, ai. Ursprung; it. Origine). O termo tem dois significados
freqüentemente confundidos: 1Q começo, ato ou fase inicial; 2S
fundamento ou princípio. A "volta às O.",
característica da Renascença (v.), é uma noção que se baseia na confusão dos dois significados. Nessa
mesma confusão baseou-se a importância dos chamados problemas de origem, discutidos nos sécs. XVIII
e XLX: O. das idéias, da vida, da linguagem, das espécies vivas, etc, visto que nos problemas
assim propostos O. não significava apenas nascimento no tempo, mas também princípio e fundamento do
objeto cuja origem se procurava. O mesmo significado equívoco encontrava-se no antigo problema da O.
do mal: se Deus existe, de onde vem o mal? E se não existe, de onde vem o bem? (cf. S. AGOSTINHO,
Conf., VII, 5). H. Cohen denominou "Juízo de O." o juízo em que algo é dado, como o próprio
pensamento pode achar, e não como material bruto: assim como o sinal x, em matemática, não significa
indeterminação, mas determinabilidade ÍLogik, 1902, p. 83).
ORTOGÊNESE (in. Orthogenesis). Doutrina segundo a qual a evolução da vida segue ou tende a seguir
uma linha reta. As interpretações dadas pelos biólogos a esse conceito são díspares; substancialmente, O.
é a tese defendida por quem admite o finalismo da vida. Às vezes, porém mais raramente, o ponto de vista
oposto à O. chama-se poligênese: o reconhecimento de linhas de evolução diversas e dispares nos
fenômenos da vida (cf. C. G. SIMPSON, The Meaning of Evolution, 1952, p. 132).
OSTENSIVO (gr. SetKUKÓÇ; lat. Ostensivus-, in. Ostensive, fr. Ostensif, ai. Ostensiv-, it. Ostensivo).
Qualificam-se assim as provas diretas, que provam positivamente a verdade de uma tese, distinguindo-se
das provas indiretas, que tendem a provar uma tese negativamente, com a demonstração da falsidade do
seu contrário. As provas indiretas são chamadas apagógicas (v. ABDUÇÃO; REDUÇÃO). A distinção achase em Aristóteles (An.pr, I, 23, 40 b 27) e é reproduzida por Leibniz (Nouv. ess., IV, 8, 2). Segundo Kant,
o uso das provas apagógicas deveria ser abolido em filosofia, enquanto é legítimo nas ciências
experimentais (Crít. R. Pura, Doutrina transe, do método, cap. 1, sec. 4).
OTIMISMO (in. Optimism, fr. Optimisme, ai. Optimismus; it. Ottimismo). Este termo começou a
difundir-se na cultura européia durante as discussões filosóficas sobre a ordem e a bondade do mundo
suscitadas pelo terremoto de Lisboa, em 1755. Num Poema sobre o terremoto de Lisboa (1~'55), Voltaire
combatera a máxima "tudo está bem", considerando-a um insulto às dores da vida; alguns anos depois, no
romance Cândido ou o O. (1759), fizera uma sátira feroz a essa máxima e à atitude que ela implica. O O.,
porém, tinha outros defensores, entre os quais Kant, que no mesmo ano de 1759 publicou um opúsculo
intitulado "Ensaios de algu-
OUTRO
736
OUTRO, PROBLEMA DO
mas considerações sobre o O." (Versucb eini-ger Betrachtungen überden Optimismus) (que depois
repudiou), em que defendia a bondade do mundo com base na tese leibniziana de que "quando Deus faz
uma escolha, escolhe sempre o melhor". Como dizia Voltaire, o O. outra coisa não é senão a teoria do
finalismo universal. Assim, em seu romance, o Doutor Pangloss, mestre de "metafísico-teólogocosmolonigo-logia" diz: "Está demonstrado que as coisas não podem ser de outra maneira: visto que tudo
foi feito para um fim, tudo se dirige necessariamente ao melhor fim. Notai que o nariz foi feito para
suportar lentes e por isso usamos lentes". Leibniz dissera que "Deus escolheu o mundo mais perfeito, ou
seja, o mais simples em hipóteses e ao mesmo tempo o mais rico em fenômenos" (Disc. de mét. § 6), e
que, "se no mundo não houvesse o mínimo mal, não seria mais o mundo que, depois de tudo considerado
e somado, foi julgado o melhor pelo criador que o escolheu" ( Théod., 1,9). Isto pode ser expresso pela
frase com que Cândido constantemente conclui suas infelizes peripécias ("Vivemos no melhor dos
mundos possíveis"), que se tornou a expressão popular do otimismo. O O. é característico das doutrinas
que admitem o finalismo universal, especialmente: le as doutrinas espiritualistas de fundo teológico, tais
como a metafísica aristotélica e a escolás-tica, o leibnizianismo e as formas modernas e contemporâneas
do consciencialismo espiritualista; 2a
das doutrinas idealistas (no sentido romântico do termo), que
compartilham o princípio da coincidência entre realidade e racionalidade (expresso por Voltaire com a
frase "as coisas não podem ser de outro modo"), tipificadas pela doutrina de Hegel. O oposto do O. não é
o pessimismo, que, na formulação de Schopenhauer, apesar de apregoar que "a vida é dor", julga que o
mundo está organizado com vistas à melhor ordem (Die Welt, I, § 28), mas sim a negação do finalismo,
com o reconhecimento do caráter imperfeito, acidental e problemático das ordens observáveis no
universo.
OUTRO (gr. ef|Tr|pOV; in. Other, fr. Autre, ai. Andere, it. Altró). Um dos cinco gêneros supremos do ser,
enunciados por Platão em Sofista, e que são: o ser, o repouso, o movimento, o idêntico e o O. O motivo
para admitir o O. como um gênero à parte é o seguinte: o repouso e o movimento são-, portanto, sob o
aspecto do ser, são idênticos. Mas também são
diferentes um do outro, e essa diversidade é exatamente como é a sua identidade (devida ao fato de que
ambos são). O O. (o diferente) é, portanto, um gênero igualmente originário e irredutível aos outros
quatro ÍSof, 254 ss.). O reconhecimento do O. como gênero supremo é muito importante, pois permite que
Platão resolva a antinomia (típica da sofistica e da erística [v.]), segundo a qual é impossível dizer o falso
porque o falso é o que não é, e dizer o que não é significa dizer nada, ou seja, não dizer. Desse ponto de
vista, o erro deveria ser declarado inexistente, e não haveria sequer diferença possível entre o filósofo,
que se preocupa em estabelecer a distinção entre verdade e erro, e o sofista, que não se preocupa com
isso. Admitido, porém, o O. como gênero supremo, o não-ser poderá ser interpretado: não como o nada,
mas como o O. do ser, mais precisamente do ser de que se fala; p. ex., dizer que algo é não grande ou não
belo significa dizer que é O., diferente do grande e do belo, mas nem por isso é o oposto do ser, o nada
(Ibid., 257 b ss.). Essa afirmação da realidade do não-ser, enquanto O. ou diferente, é apresentada pelo
Estrangeiro eleata, principal protagonista do Sofista, como uma espécie de "parricídio" em relação a Parmênides, que afirmara que só o ser é, e que o não ser não é (Ibid., 242 d). Essas observações de Platão,
sobretudo sobre a categoria do O., depois foram empregadas com freqüência para esclarecer a noção de
nada (v.).
OUTRO, PROBLEMA DO (in. Problem of others; fr. Problème de Vautre-, ai. Problem von fremden
Ichen; it. Problema delValtró). Na filosofia moderna e contemporânea, essa expressão indica o problema
da existência de outros eus (espíritos ou pessoas), independentes do eu que formula o problema. Esse
problema nasce de dois pontos de vista diferentes, mas vinculados por alguns pressupostos comuns. O
primeiro é o do idealismo romântico (v.) segundo o qual, sendo a realidade um Princípio Infinito e
universal (p. ex., o Eu Absoluto de Fichte), é preciso ver de que modo ela se rompe ou se multiplica na
diversidade dos eus singulares. O segundo é o ponto de vista genericamente idealista e espiritualista,
segundo o qual originaria-mente é dado a cada um de nós somente o eu e as suas experiências psíquicas,
dentre as quais algumas (uma parte apenas) se refeririam a outros indivíduos.
Fichte respondeu ao primeiro problema, em Doutrina moral (1798), afirmando o caráter
OUTRO, PROBLEMA DO
737
OUTRO, PROBLEMA DO
originário da idéia do dever, da qual deriva o reconhecimento dos outros eus. A idéia do dever é a
autodeterminação originária do eu, mas ela não poderia ser realizada se não existissem outros eus, outros
sujeitos em face dos quais, somente, a idéia do dever pode ter sua determinação e, portanto, possibilidade
de realização. Portanto, para Fichte, a realidade dos outros eus é um postulado moral: a existência dos
outros eus deverá ser admitida e reconhecida, se o eu quiser realizar concretamente a sua moralidade
(Sittenlebre, § 18). Com algumas variantes, essa concepção foi retomada por outros filósofos, como p. ex.
por Riehl em seu livro sobre o Criticismo (1886-87), e por Cohen, em Ética da vontade pura (1904); este
último deduz a existência das pessoas em geral do caráter jurídico e das funções públicas do homem, de
modo que a multiplicidade dos eus só existiria como multiplicidade de "pessoas jurídicas".
Por outro lado, o ponto de vista segundo o qual o eu só conhece de modo imediato a si mesmo e seus
estados interiores, ou seja, o ponto de vista do acesso privilegiado ao conhecimento interior do eu (v.
CONSCIÊNCIA), dá origem ao problema de se saber como uma parte da experiência do eu pode referir-se a
outro eu, e ao problema ainda mais sério de saber que garantia essa referência oferece em favor da
existência efetiva do outro eu. Para responder a esses problemas foram formuladas duas teorias. I
a A
existência dos outros seria inferida por um "juízo de analogia" a partir das percepções que nos revelam
movimentos análogos àqueles por meio dos quais exprimimos nosso próprio eu. Mas esta teoria,
pertencente à psicologia associacionista, é desmentida pelo fato de que a crença na existência dos outros
seres animados também pode ser encontrada nos animais e nas crianças, que são incapazes de juízos
analógicos. 2a
A segunda teoria postula um órgão específico para o conhecimento da existência do outro,
como p. ex. uma espécie de intuição afetiva (Einfühlung), que nos poria em relação com o que está além
das manifestações corpóreas do outro, com a alma do outro (cf., p. ex., TH. LIPPS, Aesthetik, I [19031; 2a
ed., 1914, p. 106 ss.). Mas o recurso a órgãos desta espécie só faz reduzir a existência de outros espíritos a
objeto de uma crença injustificável, logo irracional.
Na filosofia contemporânea, a partir da obra de Scheler, Essência e forma da simpatia
(1923), o pressuposto subjetivista do problema mostrou-se cada vez mais frágil; e foi também atacado
pela psicologia contemporânea, com base em observações experimentais. Scheler observou que não existe
nenhum privilégio on-tológico ou metafísico a favor dos pensamentos ou dos sentimentos que o eu chama
de "meus". Meu pensamento me é dado como "meu" do mesmo modo como o pensamento de outro me é
dado como pensamento "alheio": esse é o caso comuníssimo e normal, em que compreendemos uma
comunicação qualquer que nos é feita. Entre o meu e o alheio há sempre uma conexão estreitíssima, e os
dois determinam-se e condicionam-se reciprocamente, sem que as respectivas esferas se deixem jamais
fixar rigidamente, como prova o fato de que muitas vezes nós não sabemos dizer se certa experiência
psíquica vem de nós mesmos ou de outros (Sympathie, III, cap. III). Isto eqüivale a negar o caráter
pessoal e rigidamente subjetivo do Eu (v.) e a reconhecer que, a partir de sua constituição e em todas as
suas manifestações, ele se move numa rede de relações intersubjetivas que o constituem e no qual estão
recortadas as esferas correlativas do "meu" e do "teu". Este ponto de vista é freqüente na filosofia
contemporânea, encontrando-se mesmo em escolas diferentes. Mead afirma que "o homem só se torna um
eu na sua experiência na medida em que sua atitude suscita uma atitude correspondente nas relações
sociais". Nesse caso, autoconsciência, ou eu, outra coisa não é senão a atitude generalizada dos outros em
relação a nós. "Assumimos o papel daquilo que poderia ser chamado de outro generalizado e, ao
fazermos isto, aparecemos como objetos sociais, como eu" (Phil. of tbe Present, p. 185). Por outro lado,
Carnap expressou ponto de vista bastante próximo deste, ao insistir no caráter secundário e derivado da
distinção entre o eu e o tu. "Mesmo a caracterização dos elementos fundamentais do nosso sistema
constitutivo como psiquicamente próprios, isto é, como 'psíquicos' e como 'meus', só adquire significado
com a constituição dos campos do não-psíquico (contraposto ao psíquico) e do 'tu'" (Der logische Aufbau
der Welt, § 65). Estas observações demonstram que é cada vez mais difícil sustentar pontos de partida
solipsistas, que pretendam fundar-se em dados pertencentes ao âmbito da consciência pessoal. E mesmo
uma filosofia como a de Sartre, para a qual a outra existência é tal porquanto não é
OUTRO, PROBLEMA DO 738
OVO
minha, de tal modo que a relação interpessoal é uma relação de negação recíproca e só a negação é "a
estrutura constitutiva do ser outro" (JJêtre et le néant, p. 285), apresenta-se como um transcender do
cogito. "O que, por falta de melhor expressão, chamamos de cogito da existência do outro, confunde-se
com o meu próprio cogito. É preciso que o cogito me lance fora dele, sobre o Outro, assim como me
lançou fora dele sobre o em-si, e isto não me revelando uma estrutura minha apriori, que apontaria para o
outro igualmente a priori, mas descobrindo em mim a presença concreta e indubitável deste ou daquele
outro concreto, como já me revelou a minha existência incon-frontável, contingente e, todavia, necessária
e concreta" (Jbid., pp. 308-09). Analogamente, para
Husserl, a experiência do outro é uma espécie de Einfühlung ou empatia, em virtude da qual o outro se
constitui por "apresentação" como "um outro eu mesmo" (Cart. Med., § 52). O próprio eu age de tal modo
que "uma modificação intencional de si mesmo e da sua primor-dialidade chegue à validade sob o título
de percepção da estraneidade, percepção de um outro, de um outro eu" (Krisis, § 54 b).
OVO (gr. 03ÓV; in. Egg; fr. Oeuf, ai. Ei; it. Vovó). Primeiro princípio do mundo, segundo a teogonia
órfica (Orphicorum fragmenta, 53, 54 Kern). A consideração do mundo como um gigantesco animal está
na base desse mito, que tem vários precedentes orientais. Sobre estes e sobre o próprio mito, cf. A.
OLTVIERI, Civiltàgreca neWItalia meridionale, 1931, p. 3-32.
p
P. p. Na lógica contemporânea, indica-se com P determinado cálculo das proposições e com p (e as letras
que seguem em ordem alfabética q, r, etc.) uma única proposição.
PAIDÉIA. V. CULTURA.
PAIXÃO (in. Passion; fr. Passion; ai. Lei-denschaft; it. Passionè). Este termo pode significar: I
a
o
mesmo que afeição, modificação passiva no sentido mais geral do grego jrá6oç e do latim passio (para
este significado, v. AFEIÇÃO); 2
a
O mesmo que emoção (v.), significado em que foi empregado quase
universalmente até o séc. XVIII, até que se foi determinando o significado específico que hoje possui; 3Q
ação de controle e direção por parte de determinada emoção sobre toda a personalidade de um indivíduo
humano.
É neste sentido, o único apropriado e específico, que essa palavra geralmente é empregada hoje. Assim, a
expressão francesa, que se tornou internacional, " amour-passion", indica uma forma de emoção amorosa
que domina a personalidade e é capaz de transpor obstáculos morais e sociais (cf. também " Crime de
passion" ou "Crime passional"). Nas frases "P. pelo jogo", "P. pelas mulheres", "P. pelo dinheiro", também
está claro o significado de tendência dominante e global da personalidade, o que se percebe igualmente
em expressões como "P. política", "P. religiosa", etc. Esse conceito nasce com as análises dos moralistas
dos sécs. XVII e XVIII, que evidenciaram a tendência que têm as emoções de penetrar na personalidade e
dominá-la. Pascal dizia: "Quando se conhece a P. dominante de alguém, estaremos certos de saber
agradar-lhe" {Pensées, 106). Nesta expressão, o adjetivo "dominante" exprime bem o caráter da paixão.
Em Maximes, La Rochefoul-cauld insiste com certo cinismo nesse caráter dominante das paixões ("Se
resistimos às nossas paixões, é mais pela fraqueza delas do que pela nossa força", 122), e Vauvenargues, em Discourssurla
liberte (1737), dizia: "Para resistir à P. seria preciso pelo menos querer resistir. Mas faria a P. nascer o
desejo de combater a P., na ausência da razão derrotada e afugentada?" E acrescentava: "As paixões
ensinaram a razão aos homens" (Réflexions et maximes, 154). Com o mesmo espírito, Helvetius
declarava: "As paixões são no campo moral o que o movimento é no campo físico" {De Vesprit, III, 4), e
Condillac definia a P. como "um desejo que não permite ter outros, ou que, pelo menos, é o mais
dominante" (Traitédessensations, I, 3, § 3). Foi Kant quem nos legou as determinações mais precisas. AP.
éa inclinação que impede a razão de compará-la com as outras inclinações e assim de fazer uma escolha
entre elas (Antr., § 80). Por isso, a P. exclui o domínio de si mesmo, impede ou impossibilita que a
vontade se determine com base em princípios (Crít. do Juízo, § 29). Com observações felizes, Kant
ressalta a capacidade que tem a P. de dominar toda a conduta do homem, de apoderar-se de sua
personalidade. Ao contrário da emoção, que é precipitada e irrefletida, a P. é lenta e refletida para alcançar
seu objetivo, apesar de poder ser violenta. A emoção é como uma enxurrada que rompe o dique; a P. é
como uma corrente que vai aprofundando seu leito. A emoção é como uma embriaguez que se desvanece,
apesar de deixar a dor de cabeça, mas a P. é uma intoxicação ou uma deformação, que precisa de um
médico interno ou externo da alma; este, porém, geralmente não sabe prescrever a cura radical, mas quase
sempre só paliativos (Antr., § 74). Em vista do perigo que a paixão representa para a escolha racional e a
liberdade moral do homem, Kant rejeita qualquer exaltação das paixões. E cita a frase: "Nada
PAIXÃO
740
PALAVRA
de grande no mundo nunca foi realizado sem paixões violentas", para comentá-la: "Pode-se admitir isso a
respeito de diversas inclinações, aquelas sem as quais a natureza viva (inclusive a do homem) não pode
passar, como as necessidades naturais e físicas. Mas que elas possam, ou melhor, precisem tornar-se
paixões, isto a Providência não quis. Esse tipo de explicação pode ser aceita num poeta, como p. ex. em
Pope, que escreveu 'Se a razão é bússola, as paixões são os ventos', mas o filósofo não pode admitir esse
princípio nem mesmo para avaliar as paixões como um artifício provisório da Providência, que as teria
colocado na natureza humana antes que os homens alcançassem um grau razoável de civilização" {Antr.,
§ 80).
O Romantismo aceita e adota o conceito de P. elaborado pelos moralistas franceses e por Kant, ou seja, de
que a P. não é uma emoção ou um estado afetivo particular, mas o domínio total e profundo que um
estado afetivo exerce sobre toda a personalidade (ou "subjetividade") do indivíduo. Por outro lado, inverte
a valo-raçâo negativa feita por Kant. E significativo que Hegel, que expressou com mais rigor o ponto de
vista romântico sobre o assunto, só tenha invertido as valorações kantianas. Hegel define a P. como a
"totalidade do espírito prático posto numa única das muitas determinações limitadas que se opõem entre
si" {Ene, § 473). E acrescentou: "A determinação da P. implica que ela se restringe a uma particularidade
da determinação do querer, na qual imerge toda a subjetividade do indivíduo, seja qual for o conteúdo
dessa determinação. Mas por esse caráter formal, a P. não é boa nem má; sua forma só exprime que um
sujeito pôs num único conteúdo todo o interesse vivo de seu espírito, de seu talento, de seu caráter, de seu
prazer. Nada de grande foi realizado, nem pode ser realizado, sem P. Não passa de moralidade morta, na
maioria das vezes hipócrita, a que investe contra a forma da P. como tal" {Ene, § 474). Aqui, ao mesmo
tempo em que se insiste no caráter totalizante da P. — que limita a um único conteúdo ou determinação
"toda a subjetividade do indivíduo", "o interesse vivo do seu espírito, etc." —, retoma-se a frase criticada
por Kant e declara-se expressão de moralidade morta ou hipócrita a condenação feita por ele. E o mais
curioso é que Kant criticara antecipadamente outra característica da filosofia de Hegel, ou seja, a
justificação das P.
como instrumentos da providência cósmica, como "astúcias" da Razão Infinita, para realizar seus fins:
tese que está entre as mais características da filosofia da história de Hegel {Philosophie der Geschichte,
ed. Lasson pp. 63 ss.). De um ponto de vista diferente, a exaltação da P. também se encontra em
Nietzsche, para quem era sintoma de fraqueza o "temor dos sentidos, dos desejos e das paixões, quando
ela chega para desaconselhá-los", considerando a P. dominante como "a forma suprema de saúde" porque
nela "a coordenação dos sistemas internos e seu trabalho a serviço de um mesmo fim são mais bem
realizados: o que é mais ou menos a definição da saúde" ( WillezurMacht, ed. Krõner, § 778).
Ponto de vista eqüidistante entre a condenação e a exaltação da P. parece prevalecer na cultura
contemporânea. Dewey, p. ex., assim se expressa: "A fase emocional, apaixonada da ação não pode nem
deve ser eliminada em prol de uma razão exangue. Mais paixões, não menos, é a resposta. (...) A
racionalidade não é a força a ser invocada contra impulsos e hábitos, mas sim a conquista de uma
harmonia que atue entre diferentes desejos" {Human Nature and Conduct, pp. 195-96).
PALAVRA (lat. Verbum; in. Word; fr. Parole, ai. Wort; it. Parold). 1. Segundo a distinção feita por
Saussure entre P., língua (v.) e linguagem (v.), a P. seria a manifestação lingüística do indivíduo.
Diferentemente da língua, que é uma função social, registrada passivamente pelo indivíduo, a P. é "o ato
individual de vontade e inteligência, no qual convém distinguir: 1Q
as combinações nas quais o falante
utiliza o código da língua para exprimir seu pensamento pessoal; 2- o mecanismo psicológico que lhe
permite exteriorizar essas combinações" {Cours de linguistique générale, 1916, p. 3D2. O termo P. tem uma ambigüidade evidenciada pelos lógicos: por um lado, pode ser um evento
individual, novo a cada vez que se repete (neste sentido dizemos, p. ex., que um livro é composto por
cinqüenta mil palavras), por outro, pode significar a P.-significado, que é a mesma, por mais que se repita
(neste sentido, sobre o mesmo livro, podemos dizer que é composto por cinco mil palavras). No primeiro
sentido, p. ex., se a P. está for repetida dez vezes numa página será dez palavras; no segundo sentido, é
uma palavra só. Peirce propôs chamar a palavra no primeiro significado token (ocorrência) e no segundo
significado type
PAIINGÊNESE
741
PANENTEÍSMO
(tipo, elemento lingüístico) (Coll. Pap., 4.537). Sobre o mesmo assunto, outros falam, respectivamente,
em signo e símbolo (cf. M. BLACK, Language and Philosophy, VI, 2; trad. it., pp. 181 ss.).
PAIJNGÊNESE (gr. 7taA.iyyEveaía; in. Palin-genesis; fr. Palingénésie, ai. Palingénésie, it.
Palingenestf). Segundo os estóicos, renascimento do mundo depois do término de um ciclo de vida
(NEMES., De nat. hom., 38, cf. MARCO AURÉLIO, Memórias, XI, 1: "o periódico renascimento do
mundo"). Esse termo foi usado freqüentemente neste sentido ou em sentido análogo (p. ex., por C.
BONNET, Palingénésie philosophique, 1769, e por GIOBERT, Protologia, 1857) e às vezes também em
sentidos restritos ou particulares: para designar o renascimento da alma ou, em sentido retórico, para
indicar qualquer renovação radical (v. APOCATÁSTASE).
PAMPNEUMATISMO (ai. Panpneumatis-mus). Termo empregado por Eduard Von Hart-mann, no
mesmo sentido de pampsiquismo (cf. Philosophischen Fragmente, p. 68).
PAMPSIQUISMO (in. Panpsychism- fr. Panpsychisme-, ai. Panpsychismus-, it. Pampsi-chismó). Este
termo, muitas vezes confundido com hilozoísmo(y.), designa na realidade uma teoria simetricamente
oposta. Enquanto o hilo-zoísmo consiste em atribuir à matéria (ou às suas partes) poderes ou atividades
psíquicas (sendo por isso materialismo), o P. consiste em reduzir matéria a alma, ou seja, a propriedades
ou atributos psíquicos (sendo, pois, espiritua-lismo). Com isso, a matéria não é negada (como faz o
imaterialismo [v.]), mas seus atributos fundamentais (p. ex. extensão, movimento, etc.) são reduzidos à
ação de forças ou atributos espirituais.
Neste sentido, pode-se discernir a origem do P. nos platônicos ingleses do séc. XVII (Escola de
Cambridge). Partindo do princípio de que "nenhum efeito pode sobrepujar a força da própria causa",
Cudworth negava que a vida e o ser — muito menos a razão e o intelecto — pudessem derivar de matéria
sem vida. E concluía que "o espírito é o ser primogênito, o senhor natural de tudo o que existe" {The True
Intellectual System ofthe Universe, I, 1, 4). Mas como as coisas não podem ser produzidas pelo
mecanismo da matéria, e como Deus não produz imediata e milagrosamente todas as coisas, é preciso
admitir uma natureza plástica que seja um instrumento inferior e subordinado daquela parte da providência que consiste no movimento regular e organizado da matéria (Ibid., I, 1, 3). Por
sua vez, More elaborava o conceito da mônada física, que seria uma partícula tão pequena a ponto de não
poder ser mais dividida. A mônada física não tem grandeza física propriamente dita, mas é extensa, e a
extensão é uma qualidade espiritual, incorpórea, um atributo de Deus {Enchiridion, Metaphysicum, I, 9,
3; I, 8, 15). Deste modo, Cudworth e More reduziam a matéria e o mecanismo, em seus atributos
fundamentais — extensão e movimento —, a uma manifestação de elementos ou forças espirituais.
É muito provável que Leibniz se tenha inspirado nesses autores dando ao P. sua forma clássica. Segundo
Leibniz, a matéria é constituída por manadas, no sentido de ser um agregado de substâncias espirituais,
como um rebanho de ovelhas ou como um amontoado de vermes. Por isso, os elementos da matéria nada
têm de corpóreo; são átomos de substância ou pontos metafísicos, como poderíamos chamar as mônadas
(Op., ed. Gerhardt, IV, p. 483). O P. de Leibniz foi reproduzido por Lotze em Microcosmo (I, trad. it., p.
50); este identificou os átomos dos quais fala a teoria mecanicista da ciência com os centros de força
espiritual, ou seja, com as mônadas no sentido leibnista. O P. é a característica metafísica do espiritualismo contemporâneo (v. ESPIRITUALISMO), seja ele francês (Ravaisson, Lachelier, Hamelin), inglês (Ward)
ou italiano (Martinetti, Varisco).
PAN-ANIMISMO. O mesmo que animismo (v.).
PANCALISMO (in. Pancalism, fr. Panca-lisme-, it. Pancalismó). Termo empregado por J. M. Baldwin
para designar sua doutrina, segundo a qual a beleza, como objeto da atividade estética, realiza a
conciliação entre a atividade cognoscitiva e a atividade prática, unificando o mundo da experiência (cf.
Genetic Theory of Reality, being the Outcome of Genetic Logic, as Issuing in the Aesthetic Theory of
Reality called Pancalism, 1915).
PANCOSMISMO (in. Pancosmism- fr. Pan-cosmisme, it. Pancosmismo). O mesmo que materialismo.
Este termo foi usado por Grote para designar a doutrina dos pré-socráticos hilozoístas {Plato and the
Other Companions of Sócrates, I, 1, 18). Não teve aceitação.
PANENTEÍSMO (in. Panentheism; fr. Pa-nentheisme, ai. Panentheismus, it. Panenteis-mó). Termo
criado por Christian Krause (1781-
PANLOGISMO
742
PARADOXO
1832) para designar uma síntese entre o teísmo e o panteísmo, que consistiria em admitir que tudo o que
é, é em Deus e existe como revelação e realização de Deus (Voríesungen über das System der
Philosophie, 1828, pp. 254 ss.). Na realidade este é o ponto de vista do panteísmo clássico, e portanto não
se vê utilidade nesse termo, que de fato não teve aceitação (v. DEUS).
PANLOGISMO (in. Panlogism; fr. Panlo-gisme, ai. Panlogismus; it. Panlogismó). Termo empregado
por J. E. Erdmann para designar a doutrina de Hegel (Geschichte der neueren Philosophie, 1853, III, 2, p.
853), ainda hoje utilizado (embora com pouca freqüência) para designar essa mesma doutrina ou
doutrinas análogas que admitam a identidade entre racional e real.
PANSATANISMO (ai. Pansatanismus). Termo empregado polemicamente por O. Lieb-mann para
designar a doutrina de Schopen-hauer, numa contraposição caricaturista ao panteísmo (Zur analysis der
Wirklichkeit, 2-ed., 1880, p. 230).
PANSOFIA (lat. Pansophid). Termo empregado por G. A. Comenius para designar o princípio "ensinar
tudo a todos" (Pansophiae Pro-dromus, 1639; Schola Pansophiae, 1670). Kant chama de P. o conjunto da
poli-história, que é o conhecimento histórico, e da polimatia, que é o conhecimento racional (Logik, Intr.,
SVD.
PANSPERMIA (ai. Panspermi.e). Doutrina defendida por S. Arrhenius, de que a vida sobre a terra
provém de sementes orgânicas difundidas por todo o universo (Werden der Welten, 1907).
PANTEÍSMO (in. Pantheism, fr. Pantheis-me, ai. Pantheismus; it. Panteísmo). O termo pantetsta foi
utilizado pela primeira vez por J. Toland (Socianimism TrulyStated, 1705); o primeiro a empregar o termo
P. foi seu adversário Fay (1709). É a doutrina segundo a qual Deus é a natureza do mundo (v. DEUS)
identificando a causalidade divina com a causalidade natural. Uma das formas de P. humanista é a
chamada "teologia sem Deus". V. DEUS; DEUS, MORTE DE.
PANTEUSMO (ai. Panthelismus). O mesmo que voluntarismo (v.). Esse termo foi usado por E. Von
Hartmann (Philosophischen Fragmente, p. 68).
PARÁBOLA (gr. JtapcepoÂ,r|; lat. Parábola; in. Parable, fr. Parabole, ai. Parabel; it. Parábola).
Argumento que consiste em aduzir
uma comparação ou um paralelo, como quando Sócrates afirma que os governantes não devem ser
escolhidos por sorteio, assim como não são escolhidos por sorteio os atletas para uma competição. É
assim que Aristóteles ilustra essa noção (Ret., II, 19, 1393 b 4). Sentido análogo encontra-se nos
Evangelhos (cf. Marc, XII, 1).
PARADIGMA (gr. 7tápa8etYU.a; in. Para-digm; fr. Paradigme, ai. Paradigma; it. Paradigma). Modelo
ou exemplo. Platão empregou essa palavra no primeiro sentido (cf. Tim., 29 b, 48 e, etc), ao considerar
como P. o mundo dos seres eternos, do qual o mundo sensível é imagem. Aristóteles utiliza esse termo no
segundo significado (An.pr, II, 24, 68 b 38), sobre o que v. EXEMPLO.
PARADOXO (gr. 7tapáôoÇoç ^.óyoç; in. Paradox, fr. Paradoxe, ai. Paradox, it. Para-dosso). O que é
contrário à "opinião da maioria", ou seja, ao sistema de crenças comuns a que se fez referência, ou
contrário a princípios considerados sólidos ou a proposições científicas. Aristóteles, em Refutações softsticas (cap. 12), considera a redução de um discurso a uma opinião paradoxal como o segundo fim da
Sofistica (o primeiro é a refuta-ção, ou seja, provar a falsidade da asserção do adversário). Bernhard
Bolzano intitulou Paradoxos do infinito (1851) o livro no qual introduziu o conceito de infinito como um
tipo especial de grandeza, dotado de características próprias, e não mais como limite de uma série. Esse
conceito seria consolidado na matemática por Cantor e Dedeking (v. INFINITO). A exemplo dele, foram
chamados às vezes de P. as contradições oriundas do uso do procedimento reflexivo, na maioria das vezes
chamadas de antinomias (v.).
No sentido religioso, chamou-se P. a afirmação dos direitos da fé e da verdade do seu conteúdo em
oposição às exigências da razão. P. é, p. ex., a transcendência absoluta e a inefa-bilidade de Deus,
afirmada pela teologia negativa (v.); P. é o "credo quia absurdum" (v.) de Tertuliano; P. é toda a fé,
segundo Kierkegaard, porque todas as categorias do pensamento religioso são impensáveis, e a fé, não
obstante, crê em tudo e assume todos os riscos (cf. Die Krankheit zum Tode, 1849). Kierkegaard viu como
P. a própria relação entre o homem e Deus: "O P. não é uma concessão, mas uma categoria: uma
determinação ontológica que expressa a relação entre um espírito existente e
PARALELISMO PSICOFÍSICO
743
PARA SI
cognoscente e a verdade eterna" {Diário, VII, Ali).
PARALELISMO PSICOFÍSICO (in. Psy-chophysical parallelism, fr. Parallelisme psy-chophysique, ai.
Psycho-physischer Paral-lelismus; it. Parallelismo psicofisicó). Esta expressão foi inventada por Fechner
(Zendavesta, II, p. 141), para designar a doutrina segundo a qual os eventos psíquicos e os físicos
constituem duas séries paralelas, que não agem uns sobre os outros, mas são causalmente determinados
somente pelos eventos homogêneos: os mentais pelos mentais, e os físicos pelos físicos. Essa doutrina era
sugerida pela exigência (ou pelo desejo) de não submeter os eventos mentais à causalidade dos eventos
físicos e pela impossibilidade de considerar estes últimos dependentes dos primeiros. Durante várias
décadas, serviu de hipótese de trabalho para a psicologia experimental, em sua fase inicial de organização
como ciência autônoma ou relativamente autônoma (v. PSICOLOGIA). Foi, portanto, admitida e adotada
por aqueles que contribuíram para os primeiros passos dessa ciência, em particular por Wundt. Este
entendeu como "princípio do P. psicofisicó" o princípio de que "todos os conteúdos empíricos que
pertencem simultaneamente à esfera de consideração mediata ou científica e à imediata ou psicológica
estão em relação recíproca, porquanto cada evento elementar do campo psíquico exprime um evento
correspondente no campo físico" (System der Philosophie, 2
a
ed., 1897, p. 602). Essa doutrina
contrapunha-se, por um lado, ao monismo (v.), que tende a reduzir os eventos mentais a eventos físicos
ou, pelo menos, a submeter os eventos mentais à causalidade dos eventos físicos, e, por outro lado, ao
espiritualismo (v.), que consiste na tentativa simetricamente oposta. Por isso, foi bem aceita como
hipótese de trabalho de investigações que não queriam ancorar a sua validade em nenhuma metafísica.
No período em que a doutrina do P. constituiu o pressuposto da psicologia experimental e foi tema de
grande número de discussões entre psicólogos e entre filósofos, alguns procuraram ligá-la a ilustres
precedentes históricos; o mais óbvio desses precedentes era sem dúvida a metafísica de Spinoza. Spinoza,
com efeito, dissera que "um modo da extensão e a idéia desse modo são uma e mesma coisa, expressa de
duas maneiras" (Et., II, VII, Schol.), e negara a interferência da causalidade da extensão e da causalidade do pensamento, afirmando que a causa de um pensamento é sempre um
pensamento e que a causa de um corpo é sempre um corpo (Ibid., III, 2), enquanto a ordem e a
concatenação das coisas são sempre as mesmas (Ibid., III, 2, Schol.). Estas afirmações podiam ser
interpretadas como expressão da doutrina do P., embora a intenção de Spinoza não fosse afirmar a
independência causai recíproca entre fatos físicos e mentais, mas sim a sua subordinação comum à
causalidade direta de Deus. A doutrina de Spinoza na verdade não é um P., mas um monismo panteísta.
Aliás, a doutrina do P. não deve seus sucessos à sua validade metafísica, mas, ao contrário, à limitação do
compromisso metafísico que ela implicava, podendo ser aceita como hipótese de trabalho
independentemente da crença monista ou espiritualista, não excluindo nem uma, nem outra. Quando a
psicologia abandonou essa doutrina, ela caiu em desuso e deixou de ser tema vivo de discussão (v.
PSICOLOGIA).
PARALOGISMO (gr. 7tapaXoytOLióç; in. Paralogism; fr. Paralogisme, ai. Paralogismus-, it.
Paralogismó). De Aristóteles (El. sof., pas-sim) em diante este termo é usado para indicar um silogismo
ou qualquer argumento formalmente falso (v. também FALÁCIA). Em Kant, "P. da Razão pura" designa a
falsa argumentação da psicologia racional, que se ilude achando que pode deduzir do simples "eu penso"
determinações materiais, mas apriori, do conceito (idéia) de "alma". G. P.
PARAPSICOLOGIA. V. METAPSÍQUICA.
PARA SI (in. Being for self, fr. Pour soi; ai. Für-sich sein; it. Essere per sé) O significado fundamental
deste termo é atribuído por He-gel: ser atual ou real (em contraposição a em si [v.], ser possível), portanto
ser que se desenvolveu através da reflexão e da consciência. Hegel diz.- "Dizemos que é para si aquilo
que suprime o ser outra coisa, a sua relação e a sua participação com outra coisa, ou seja, aquilo que
rejeita a outra coisa e abstrai dela. (...) A consciência já contém em si, como tal, a determinação do ser
para si porquanto se representa o objeto por ela mesma sentido, intuído, etc, porquanto tem em si o
conteúdo desse objeto. (...) Mas a consciência de si é o ser para si acabado e posto, visto que nela o
referir-se a outra coisa, a um objeto externo, está superado" (WissenschaftderLogik, I, 3, A; trad. it., I, pp.
173-74). Neste sentido, a consciência é para si
PARCIMÔNIA, LEI DA
744
PARTIÇÃO
porque anulou a outra coisa (o objeto externo) ou tirou-a do caminho, resolvendo-a em um de seus
próprios conteúdos internos. Sartre retomou este conceito na filosofia contemporânea, chamando de "ser
para si" ou simplesmente "para si" a consciência enquanto anulação ou "nada" do objeto, isto é, do em si
{L'être et le néant, pp. 115 ss.). O mesmo significado é atribuído à expressão por Merleau-Ponty
(Phénoménologie de Ia perception, 1945, pp. 423 ss.).
PARCIMÔNIA, LEI DA. V. ECONOMIA. PARENÉTICA (gr. Tcapaivétucf] té^vri; lat. Praeceptiva; in.
Parenetic, fr. Parénétique, it. Pareneticd). Segundo os estóicos, a parte da moral que consiste em
prescrever preceitos práticos para a conduta de vida nas várias circunstâncias (cf. Sêneca, Ep., 95).
Parenético: exorta tório.
PARÊNTESE (in. Parentheses; fr. Paren-thèse, ai. Parenthese, it. Parentesi). Na lógica e na matemática
os P. são um sinal de associação. Assim, na expressão [n — (x-y)], os P. internos servem exclusivamente
para mostrar a associação das partes x-y da expressão. Na terminologia da fenomenologia contemporânea,
"pôr entre P." significa efetuar a suspensão ou epocbé fenomenológica (v. EPOCHÉ).
PAR-ÍMPAR (gr. ôpTiOTtépiTTov; in. Even-odd; fr. Pair-impair, ai. Gerade-ungerad; it. Parimpari),
Era assim que os pitagóricos antigos definiam a unidade, como princípio do número e das coisas,
porquanto ela seria limitada como o ímpar e ilimitada como o par (ARISTÓTELES, Met,, I, 5, 986 a 15).
PARÔNIMO (gr. 7tapúvi)|K)Ç; lat. Denomi-nativus). Foi assim que Aristóteles denominou os objetos
cuja designação provém de certo nome, com a modificação da desinência: como gramático, que deriva de
gramática, e corajoso, de coragem (Cat., 1, 1 a 11). Os P. têm em comum a essência expressa pela
definição (cf. Boécio, In Cat., I, P. L. 64, col. 167; Pedro Hispano, Summ. log., 3.01; Jungius, Lógica
hamburgensis, I, 2,16). Nisso, são semelhantes aos sinônimos ou unívocos. Aristóteles considera os P.
como certa espécie de objetos designáveis, ao lado dos homônimos ou equívocos e dos sinônimos ou
unívocos (v. EQUÍVOCO; UNÍVOCO).
PARSISMO (in. Parsism; fr. Parsisme, ai. Parsismus, it. Parsismó). Religião dualista dos antigos persas
[(v. MAI, 1 ti); Zorcostrismo].
PARTE (gr. uipoç; lat. Pars; in. Part; fr. Part; ai. Teil; it. Parte). Aristóteles distinguiu três significados
principais desse termo: I
a
aquilo que decorre da divisão de uma quantidade, e neste sentido dois é P. de
três, a menos que se restrinja o significado de parte à unidade de medida, caso em que só um (e não dois)
é P. de três: 2a
aquilo que decorre da divisão de um gênero que não seja uma quantidade, e neste sentido
são partes as espécies de um gênero; 3S
aquilo que decorre da análise de uma proposição que serve de
definição, e neste sentido o gênero é P. da espécie (porque é a espécie que é definida) {Met., V, 25, 1023 b
12). S. Tomás de Aquino por sua vez chamou de partes quantitativas as do le
significado de Aristóteles e
de partes essenciais as dos 2S
e 3S
significados (5. Th., I, q. 76, a. 8; III, q. 90, a. 2). E acrescentou-lhes a
P. subjetiva, "na qual está presente, simultânea e igualmente, toda a virtude do todo, assim como toda a
virtude do animal, porquanto se conserva como tal em qualquer espécie animal", e a P. potencial, "na qual
está presente o todo segundo toda a sua essência, assim como toda a essência da alma está presente em
cada uma de suas potências" (S. Th., III, q. 90, a. 3). Mas é óbvio que estas duas últimas espécies de P.
foram excogitadas com fins teológicos. Outras distinções foram introduzidas com outros intuitos, como
entre a P. próxima e a P. remota, segundo haja ou não, entre a P. e o todo, uma outra P. (cf. JUNGIUS, Log.,
I, 9, 11-12), e entre a P. alíquota e a P. aliquanta, segundo a repetição da parte chegue a adequar
exatamente o todo ou resulte, em certo ponto, menor ou maior que ele (cf. WOLFF, Ont., § 360).
A maioria dessas distinções hoje está em desuso, e com o abandono do velho axioma "a P. é menor que o
todo" (v. INFINITO) O próprio conceito de P. deixou de ser definido a partir do todo e é habitualmente
definido através de certo tipo de relação. Assim, Peirce diz: "Uma P. de um conjunto, chamado seu todo, é
um conjunto tal que tudo o que pertença à P. pertence ao todo, mas alguma coisa que pertence ao todo não
pertence à P." {Coll. Pap., 4173)^
PARTIÇÃO (gr. LtepvoLióç; lat. Partitio-, in. Partitian; fr. Partition; ai. Partition). Os estóicos
designaram com este termo "a ordenação de um gênero em seus lugares" (DIÓG. L., VII, 1, 62), ou seja, a
enumeração das partes que compõem o todo, como quando se enumeram
PARTICIPAÇÃO 745
PATOLÓGICO
os membros do corpo humano; portanto, distinguiram-na da divisão, que é a enumeração das espécies
pertencentes a um gênero (CÍCERO, Top., 5-7, 28-30) (v. DIVISÃO).
PARTICIPAÇÃO (gr. néGeÇiç; lat. Parteci-paticr, in. Participation; fr. Partécipation; ai. Teilnahme,
Partízipation; it. Partecipazioné). 1. Um dos dois conceitos de que Platão se valeu para definir a relação
entre as coisas sensíveis e as idéias; o outro é o de presença ou parúsia (napovaía). "Nada torna bela uma
coisa" — disse ele — "a não ser a presença ou a P. do belo em si mesmo, seja qual for o caminho ou o
modo como a presença ou a P. se realizam" (Fed., 100 d). Mais tarde, Platão entendeu a P. como imitação:
"Parece-me que as idéias estão como exemplares na natureza, que os outros objetos semelhem a elas e
sejam suas cópias, e que essa P. das coisas nas idéias consiste em serem imagem delas" (Parm., 132 d).
Platão não deu muitas outras determinações sobre esse importante conceito da sua filosofia, mas a
metafísica medieval a ele recorreu quando precisou distinguir "o ser por essência", que pertence somente
a Deus, do "ser por P.", que pertence às criaturas; essa distinção garantia a subordinação do ser das coisas
ao ser de Deus. S. Tomás de Aquino disse: "Assim o que tem fogo, mas não é fogo, é afogueado
(igniturri) por P., também o que tem ser, mas não é o ser, é ente por P." (5. Th., I, q. 3, a. 4). Mas o amplo
uso que esse conceito teve na metafísica tradicional não contribuiu muito para esclarecê-lo, e ele
continuou tão indefinido e obscuro quanto em Platão.
2. L. Lévy Bruhl utilizou muito o conceito de participação para ilustrar a mentalidade dos primitivos: a
participação seria anterior à distinção entre as coisas que participam. "A participação não se estabelece
entre um morto e um cadáver mais ou menos nitidamente representados (caso em que teria a natureza de
relação e deveria ser possível esclarecê-la por meio do intelecto); ela não vem depois das representações,
nem as pressupõe, mas é anterior a elas, ou pelo menos simultânea. O que é dado em primeiro lugar é a
participação" {Les carnets, I; trad. it., p. 36-37).
PARTICULAR (gr. KOCTÒ uipoç; lat. Par-ticularis; in Particular, fr. Particulier, it. Par-ticolaré). Que é
uma parte ou pertence a uma parte. A proposição P. foi definida por Aristóteles da maneira seguinte.-
"Chamo de P. a proposição que expressa a inerência a alguma coisa
ou a não inerência a cada coisa" {An. pr., I, 1, 24 a 13). O contrário da proposição P. é a universal (v.). A
lógica medieval indicou com a letra/a proposição P. afirmativa e com a letra O a proposição P. negativa.
Uma proposição P. da forma "alguns Fsão G" pode ser lida de várias as maneiras: "algum F é G",
"alguma coisa é ao mesmo tempo F e G", "alguma coisa que é F é G", "Há um FG", "Existem FG", "FG
existe", etc. (cf. W. v. O. QUINE, Metbods of Logic, § 12).
PARÚSIA. V. PARTICIPAÇÃO.
PASSADO. V. TEMPO.
PASSIVO (gr. 7ta0r|TiKÓÇ; lat. Passivus; in. Passive, fr. Passif, ai. Passiv, it. Passivo). Que sofre uma
ação, que é afetado por alguma coisa. É o adjetivo correspondente a afeição (v.) e contrário a ativo (v.).
PASTORAL, FILOSOFIA (lat. Pastoralis philosophid). Foi assim que Bacon chamou a filosofia "que
contempla o mundo placidamente e quase por ócio": censura que ele faz também à filosofia de Telésio
(Phil. Works, III, § 45).
PATÉTICO (in. Pathetic, fr. Pathétique, ai. Pathetisch; it. Patético). F. Schiller designou com este termo
uma das espécies do sublime (v.) prático, mais precisamente o que deriva de um objeto ameaçador em si
mesmo para a natureza física do homem, portanto doloroso. No sublime prático contemplativo, ao
contrário, não é o objeto, mas a sua contemplação que institui o temor e, conseqüentemente, a
sublimidade (Vom Erhabenen, zur Weiteren Ausfuhrung einiger Kantischen Ldeen, 1793, Über das
Pathetische, 1793).
PATOLÓGICO (in. Pathological; fr. Patho-logique, ai. Pathologisch; it. Patológico). O que representa
doença ou manifestação de doença. O único uso especificamente filosófico deste termo encontra-se em
Kant, em que designa tudo o que diz respeito à "faculdade inferior de desejar", ou seja, ao conjunto das
inclinações humanas naturais. Do ponto de vista kantiano, não é P. somente a chamada "faculdade
superior de desejar", que é a razão prática independente de todas as inclinações sensíveis (Crít. R.
Prática, § 3S
Schol. I). J. Bentham chamou de patologia a consideração e a classificação dos móveis
sensíveis da conduta, indicando com esse termo "a teoria da sensibilidade passiva", enquanto chamava de
dinâmica "o uso possível, por parte do moralista e do legislador, desses mesmos móveis para determinar a
conduta
PATRÍSITCA
746
PECADO
humana com vistas à máxima felicidade possível" (Springs ofAction, 1817).
PATRÍSTICA (in. Patristic; fr. Patristique, ai. Patristik, it. Patristicà). Indica-se com este nome a
filosofia cristã dos primeiros séculos. Consiste na elaboração doutrinai das crenças religiosas do
cristianismo e na sua defesa contra os ataques dos pagãos e contra as heresias. A P. caracteriza-se pela
indistinção entre religião e filosofia. Para os padres da Igreja, a religião cristã é a expressão íntegra e
definitiva da verdade que a filosofia grega atingira imperfeita e parcialmente. Com efeito, a Razão (logos)
que se fez carne em Cristo e se revelou plenamente aos homens na sua palavra é a mesma que inspirara os
filósofos pagãos, que procuraram traduzi-la em suas especulações.
A P. costuma ser dividida em três períodos. O primeiro, que vai mais ou menos até o séc. III, é dedicado à
defesa do Cristianismo contra seus adversários pagãos e gnósticos (Justino, Taciano, Atenágoras, Teófilo,
Irineu, Tertuliano, Minúcio Félix, Cipriano, Lactâncio). O segundo período, que vai do séc. III até
aproximadamente a metade do séc. IV, é caracterizado pela formulação doutrinai das crenças cristãs; é o
período dos primeiros grandes sistemas de filosofia cristã (Clemente de Alexandria, Orí-genes, Basílio,
Gregório Nazianzeno, Gregório de Nissa, S. Agostinho). O terceiro período, que vai da metade do séc. V
até o fim do séc. VIII, é caracterizado pela reelaboração e pela sistematização das doutrinas já
formuladas, bem como pela ausência de formulações originais (Nemésio, Pseudo-Dionísio, Máximo
Confessor, João Damasceno, Marciano, Capella, Boécio, Isidoro de Sevilha, Beda, o Venerável). A
herança da P. foi recolhida, no início do renascimento carolíngio, pela Escolástica (v.). PAZ (in. Peace, fr.
Paix, ai. Friede, it. Pacé). A mais famosa definição de P. foi dada por Cícero, em Filípicas. "Pax est
tranquilla libertas" (Phil., 2, 44, 113), muitas vezes repetida. De modo mais geral, a P. foi definida por
Hobbes como a cessação do estado de guerra, ou seja, do conflito universal entre os homens. Portanto,
"procurar obter a P.", segundo Hobbes, é a primeira lei da natureza (Leviatb., I, 14). Como Hobbes, Kant
julgava que o estado de P. entre os homens não é natural e que, portanto, ele tem de ser instituído, pois "a
ausência de hostilidade não significa segurança, e se esta não for garantida entre vizinhos (o que só pode
realizar-se num estado legítimo) poderá
ser tratado como inimigo aquele a quem se tenha pedido essa garantia em vão" ÍZum ewigen Frieden,
1796, § 2). Para Whitehead, a P. é um conceito metafísico, "a harmonia das harmonias que aplaca a
turbulência destrutiva e ■ completa a civilização" {Adventures ofldeas, XX, § 2).
PECADO (lat. Peccatum; in. Sin; fr. Pé-ché, ai. Sünde, it. Peccató). Transgressão intencional de um
mandamento divino. Esse termo tem conotação sobretudo religiosa: P. não é a transgressão de uma norma
moral ou jurídica, mas a transgressão de uma norma considerada imposta ou estabelecida pela divindade.
O reconhecimento do caráter divino de uma norma e a intenção de transgredi-la são os dois elementos
desse conceito, sem os quais se confunde com os conceitos de culpa, delito, erro, crime, etc, que
designam a transgressão de uma norma moral ou jurídica.
O conceito de P. foi elaborado pela teologia cristã nesses termos. S. Agostinho definia o P. como "o que é
dito, feito ou desejado contra a lei eterna", entendendo por lei eterna a vontade divina cujo fim é
conservar a ordem no mundo e fazer o homem desejar cada vez mais o bem maior e cada vez menos o
bem menor (.Contra Faustum, XXII, 27). S. Tomás de Aqui-no certamente aceitava essa definição ao
dizer que para o homem a lei eterna é dúplice: "Uma é próxima e homogênea, é a própria razão humana; a
outra é a regra primeira, a lei eterna que é quase a razão de Deus" (5. Th., II, 1, q. 71, a. 6). S. Tomás de
Aquino insiste, de um lado, na voluntariedade (intencionalidade) do P., em virtude da qual se poderia
definir o P. unicamente mediante a vontade, não fosse o fato de os atos externos também pertencerem ao
P. e por isso deverem ser mencionados em sua definição (Ibid, ad. 2Q
). Por outro lado, insiste em dizer
que todo P. é, como tal, um P. contra Deus, embora os P. contra Deus constituam, de outro ponto de vista,
uma categoria especial (S. Tb., II, 2, q. 72, a. 4, ad I
a
).
Pode-se dizer que esse conceito de P. não se alterou através dos tempos. Kant repete-o ao definir o P.
como "a transgressão da lei moral vista como mandamento divino" (Religion, I, seç. IV; II, seç. 1, c; trad.
it., Durante, pp. 31, 68); o mesmo faz Kierkegaard, ao afirmar que o P. é perante Deus, e que consiste em
"buscar desesperadamente a identidade ou em fugir desesperadamente à identidade", o que significa que
consiste no desespero de não ter fé
PECADO ORIGINAL
747
PEDAGOGIA
(Díe Krankbeit zum Tode, II, cap. I,- trad. it., Fabro, p. 300). O que Kierkegaard acrescenta é o caráter
excepcional do P., que corresponde ao caráter excepcional da fé. O P. não é de todos os dias: "Ser
pecador, no sentido mais rigoroso, está bem longe de ser meritório. No entanto, como se pode achar uma
consciência essencial do P. (o que aliás é indispensável para o Cristianismo) numa vida tão mergulhada na
trivialidade, tão reduzida à imitação vulgar dos outros, que é quase impossível dar-lhe nome, pois é
desprovida demais de espírito para poder ser chamada de P.?" ilbid, II, B, Acréscimo A; trad. it., p. 328).
PECADO ORIGINAL (lat. Peccatum origi-nale, in. Original sin-, fr. Péché originei; ai. Erbsünd; it.
Peccato originaté). As discussões filosófico-teológicas a respeito do P. original geralmente tiveram como
objeto a maneira como esse P. se transmitiu de Adão aos outros homens. S. Tomás de Aquino enumerava
duas hipóteses principais, aduzidas para a solução desse problema: a hipótese do traducianismo, segundo
a qual "a alma racional transmite-se com a semente, de tal maneira que de uma alma infecta derivam
almas infectas", e a hipótese da bereditariedade, segundo a qual "a culpa da alma do primeiro genitor
transmite-se à prole, embora a alma não se transmita do mesmo modo como os defeitos do corpo se
transmitem de pai para filho". Ambas as hipóteses pareciam insustentáveis a S. Tomás de Aquino, e ele
anunciava a sua dizendo que "todos os homens nascidos de Adão podem considerar-se um único homem,
porquanto têm a mesma natureza, recebida do primeiro genitor, da mesma maneira como nas cidades
todos os homens que pertencem à mesma comunidade se julgam um só corpo, e a comunidade inteira é
como um único homem" (II, 1, q. 81, a. 1). Alguns séculos depois, em sua Teodicéia (1710), Leibniz
enumeraria as mesmas hipóteses (Tbéod., I, § 86), entre as quais oscilou sempre o pensamento teológico.
Aliás, é só em Kant e em Kierkegaard que se encontra uma interpretação filosófica (e não teológica) do P.
original. Kant observou que não se deve confundir a questão da origem temporal de uma coisa com a
questão de sua origem racional: o problema da origem temporal deve ser resolvido pela doutrina bíblica
do P. original, mas o da origem racional do mal deve ser solucionado pela doutrina do "mal radical",
segundo a qual a disposição inata do
homem para o mal deriva da natureza de suas máximas. E diz: "A proposição 'o homem é mau 'significa
apenas que o homem está ciente da lei moral, mas acolheu o princípio de afastar-se ocasionalmente dessa
lei. Dizer que ele é mau por natureza significa que isso vale para toda a espécie humana, não no sentido
de que essa qualidade possa ser deduzida do conceito de espécie humana (do conceito de homem em
geral) — porque então seria necessária —, mas no sentido de que o homem, do modo como é conhecido
por experiência, não pode ser julgado de outra maneira ou no sentido de que se pode pressupor como
objetivamente necessária a tendência ao mal em qualquer homem, até no melhor" (Religion, I, 3; trad. it.,
Durante, p. 18). Substancialmente idêntica a esta é a interpretação do P. original dada por Kierkegaard,
que discerniu a condição e a realidade psicológica dele na angústia: "A proibição de Deus angustia Adão
porque desperta nele a possibilidade da liberdade. O que na inocência era o nada da angústia passou então
a fazer parte da inocência, sendo aí também um nada, ou seja, a possibilidade angustiante de poder. Do
que pode não tem a menor idéia; caso contrário, pressupor-se-ia, como acontece habitualmente, aquilo
que segue, que é a diferença entre o bem e o mal. Em Adão só há a possibilidade de poder, como forma
superior de ignorância, como expressão superior de angústia, porque em sentido mais elevado esta
possibilidade é e não é, e Adão ama-a e foge dela" (Der Begriff Angst, I, § 5; trad. it., Fabro, p. 54).
Também aqui, como se vê, não se trata da origem temporal, mas da origem racional do P. original, e aqui
também essa origem é vista numa possibilidade, indeterminada ou "indefinida", como a chama
Kierkegaard, que é também a possibilidade de agir contra a proibição divina. Para Kierkegaard, assim
como para Kant, o P. original consistiria, portanto, na perspectiva de uma possibilidade, que, como tal,
pode implicar a infração à norma moral ou à proibição divina.
PEDAGOGIA (in. Pedagogy, fr. Pédagogie, ai. Pãdagogik, it. Pedagogia). Este termo, que na sua
origem significou prática ou profissão de educador, passou depois a designar qualquer teoria da
educação, entendendo por teoria não só uma elaboração organizada e genérica das modalidades e
possibilidades da educação, mas também uma reflexão ocasional ou um pressuposto qualquer da prática
educa-
PEDAGOGIA 748 PEDOLOGIA
cional. Neste sentido, na Antigüidade clássica a pedagogia não tinha a dignidade de ciência autônoma,
mas era considerada parte da ética ou da política, e por isso elaborada unicamente em vista do fim que a
ética ou a política propunham ao homem. Por outro lado, os expedientes ou os meios pedagógicos só
eram estudados em relação à primeira educação, ministrada na infância, portanto às mais elementares
aquisições (ler, escrever, contar). Assim, até certa altura, a reflexão pedagógica é dividida em dois ramos
isolados: um de natureza puramente filosófica, elaborado com vistas aos fins propostos pela ética, e outro
de natureza empírica ou prática, elaborado com vistas à preparação primeira e elementar da criança para a
vida.
Pode-se dizer que esses dois ramos se unem pela primeira vez no séc. XVII, graças a G. A. Comênio, que
pretendeu integrar no domínio da P. a organização metodológica que Francis Bacon pretendera integrar no
domínio das outras ciências. Para tanto, elaborou um sistema pedagógico completo, fundado no princípio
da pansofia (v.), que partia de considerações sobre os fins da educação para chegar ao estudo dos meios e
dos instrumentos didáticos. A partir de Comênio, a experiência pedagógica do Ocidente foi-se
enriquecendo e aprofundando, com as tentativas de achar novos métodos educacionais. As obras de
Locke, Rousseau, Pestalozzi, Frõebel são muito importantes desse ponto de vista, inclusive por terem
esses autores combinado os métodos educacionais com as novas concepções filosóficas que iam surgindo
pouco a pouco. Assim, podemos dizer que Locke representa a P. do empirismo; Rousseau, a P. do
iluminismo; Pestalozzi, a P. do criticismo; e Frõebel, a do romantismo. Todavia, a organização científica
da P. deve muito a Herbart, que foi o primeiro a distinguir e unir os dois ramos da tradição pedagógica
num sistema coerente. Herbart distinguiu os fins da educação (que a P. deve haurir da ética) e os meios
educacionais (que a P. deve haurir da psicologia), procurando elaborar, distinta e correlativamente, essas
duas partes integrantes. (Allgemeine Pàdagogik, 1806; Umris pâdagogischer Vorlesungen, 1835).
A partir daí, a psicologia tornou-se a principal ciência auxiliar da pedagogia. A única exceção infeliz a
essa conexão foi representada pela forma de idealismo romântico que prevaleceu na Itália nos primeiros
decênios do
séc. XX. Essa forma de idealismo negava a diversidade das pessoas, julgando-as unidas ao Espírito
Universal, e identificava o desenvolvimento pessoal do homem com o desenvolvimento universal do
Espírito. Estas teses eram apresentadas como uma solução da P. na filosofia. Gentile dizia: "Quando por
espírito só se entende o desenvolvimento, a formação, a educação, em suma, do Espírito, a própria
filosofia (toda filosofia, contanto que a realidade seja concebida absolutamente como Espírito)
transforma-se em P., e a forma científica dos problemas pedagógicos particulares transforma-se em
filosofia" (Sommario di pedagogia, II, 1912, p. 15). Na mesma época, porém, fazia-se a tentativa
simetricamente oposta de reduzir a P. a ciência mecânica, tomando a física como modelo e mudando seu
nome para pedologia (v.), com a alegação de que, dominando-se o mecanismo psicológico, pode-se
dirigir a formação mental dos homens do mesmo modo como é possível dirigir as forças da natureza
utilizando as leis da natureza.
Pode-se dizer que a P. contemporânea, em sua forma mais amadurecida, começa quando são postas de
lado as pretensões opostas de reduzir o homem a espírito absoluto ou a mecanismo, e o homem começa a
ser julgado e considerado como natureza, sem ser degradado o mecanismo. A noção de condicionamento
(v. CONDIÇÃO) é a que prevalece hoje na P., alijando dela tanto o indeterminismo idealista quanto o
determinismo mecanicista. Além disso, a experiência pedagógica hoje é enriquecida pelo estudo da
educação nas sociedades primitivas, o que possibilitou, por um lado, uma generalização do próprio
conceito de edu-cação(v.) e, por outro, fazer confrontos e paralelos eficazes no terreno dos instrumentos
educacionais. Além da psicologia, a antropologia e a sociologia também contribuem hoje para prover a P.
com um conjunto de instrumentais nas áreas em que o problema dos fins permanece aberto; ademais, do
ponto de vista pedagógico, os fins tendem hoje a ser apresentados de forma hipotética, e não da forma
absoluta e dogmática como eram pressupostos pela P. tradicional (v. CULTURA; EDUCAÇÃO).
PEDOLOGIA (in. Paidology, fr. Pédologie, ai. Paidologie, it. Pedologia). Ciência exata da educação,
em oposição à pedagogia, que seria a arte empírica da educação. Pelo menos foi o significado dado a esse
termo por aqueles que o introduziram: o alemão O. Chrisman
PEDOTÊCNICA
749
PENA
{Paidologie, 1894) e o francês E. Blum (cf. seus artigos em Revuephilosophique, maio 1897, novembro
1898). Seu pressuposto deveria ser a psicologia experimental, da qual seriam extraídos os instrumentos
educacionais relativos às várias idades do homem. Esse conceito não desapareceu; ao contrário,
fundamenta boa parte da psicologia contemporânea, mas o termo P., depois de breve aceitação, foi
abandonado.
PEDOTÊCNICA (fr. Pédotechnié). Uma "Sociedade de P." foi fundada em 1906 em Bruxelas por
Décroly: o termo tinha o mesmo significado de pedologia.
PEIRÂSTICA (gr. jtetpacmKÍ] xéxvr|). Segundo Aristóteles, a arte de submeter uma tese à prova,
deduzindo suas conseqüências. É uma parte da dialética e distingue-se da sofistica porque se destina ao
adversário ignorante, ao passo que a sofistica tende a derrotar também quem possui ciência {El. sof., 8,
169 b 25; 171 b 4).
PELAGIANISMO (in. Pelagianism; fr. Péla-gianisme, ai. Pelagianismus; it. Pelagianismó). Doutrina
do monge inglês Pelágio, que, no início do séc. V, ensinou em Roma e Cartago; em polêmica com S.
Agostinho, sua doutrina dizia que o pecado de Adão não enfraqueceu a capacidade humana de fazer o
bem, mas é apenas um mau exemplo, que torna mais difícil e penosa a tarefa do homem. S. Agostinho
combateu essa tese em muitas obras, a partir de 412, defendendo a tese oposta: de que toda a humanidade
pecara com Adão e em Adão e que, portanto, o gênero humano é uma única "totalidade condenada":
nenhum de seus membros pode escapar à punição a não ser por misericórdia e pela graça (não
obrigatória) de Deus (cf. De civ. Dei, XIII, 14) (v. GRAÇA).
PENA (gr. 5ÍKT); lat. Poena; in. Penalty, fr. Peme, ai. Strafe, it. Pena). Privação ou castigo previsto por
uma lei positiva para quem se torne culpado de uma infração. O conceito de pena varia conforme as
justificações que lhe foram dadas, e tais justificações variam segundo o objetivo que se tenha em mente:
I
a
ordem da justiça; 2S
salvação do réu; 3a
defesa dos cidadãos.
l
s
O mais antigo conceito de pena é o que lhe atribui a função de restabelecer a ordem da justiça. Esta é a
função atribuída por Aristóteles, para quem a justiça não consiste na P. de talião, e o objetivo da P. é
restabelecer a justiça em sua devida proporção: "Quando alguém apanhou e outro bateu, ou então quando alguém matou e outro morreu, não há relação de igualdade entre o
dano e o direito, mas o juiz procura remediar essa desigualdade com a P. que inflige, reduzindo a
vantagem obtida" {Et. nic, V. 4, 1132 a 5; cf. 8, 1132 b 21). Este conceito já fora estendido do homem ao
mundo por Anaximandro de Mileto, que afirmara: "Todos os seres devem pagar uns aos outros, segundo a
ordem do tempo, o preço da sua injustiça" {Fr., I, Diels). A P. serve neste caso para restabelecer a ordem
cósmica. Esta também é a função atribuída pelo ponto de vista religioso. Plotino diz.- "Cumprimos a
função que por natureza cabe à alma enquanto não nos perdemos na multiplicidade do universo; e se nos
perdemos sofremos a P., tanto com nossa própria perda quanto com o destino infeliz que mais tarde nos
espera" {Enn., II, 3, 8); as mesmas palavras acham-se em S. Agostinho {De civ. Dei, V, 22). S. Tomás de
Aquino diz: "Como o pecado é um ato contrário à ordem, é óbvio que quem peca age contra certa ordem,
seguindo-se que por essa mesma ordem é reprimido; e essa repressão é a P." {S. Th., I, II, q. 87, a. 1).
Com o mesmo espírito, Kant afirmava de modo só aparentemente paradoxal: "Mesmo que a sociedade
civilizada se dissolvesse com o consenso de todos os seus membros (se, p. ex., um povo que habitasse
uma ilha decidisse separar-se e dispersar-se pelo mundo), o último assassino que estivesse na prisão
deveria antes ser justiçado, para que cada um proferisse a pena por sua conduta e o sangue derramado não
recaísse sobre o povo que não exigiu punição" {Met. derSitten, I, II, seç. 1, E; trad. it., p. 144). Do mesmo
ponto de vista, Hegel considerava a P. como "a verdadeira conciliação do direito consigo mesmo", como
"respeito objetivo e conciliação da lei que se restaura através da anulação do delito e assim se valida"
{Fil. do dir., § 220). As anteriormente citadas são as principais opiniões que podem ser coligidas entre os
filósofos a favor da teoria da P. como restauração da ordem da justiça. Mas são palavras que inspiraram e
até hoje inspiram numerosas doutrinas jurídicas, bem como as instituições e leis nelas fundadas.
2
e
O conceito da P. como salvação ou correção do réu muitas vezes está ligado ao conceito acima. A sua
defesa mais célebre talvez esteja em Górgias, de Platão, para quem é melhor sofrer a injustiça que
cometê-la, e para quem cometeu injustiça a melhor coisa é submeter-se à
PENA
750
PENA
pena. "Se uma culpa é cometida" — diz Platão — "é preciso ir o mais depressa possível aonde a P. possa
ser cumprida, ou seja, ao juiz, que é como um médico, para que a doença da injustiça não se torne crônica
e não torne a alma corrompida e incurável" {Górg., 480 a). Com efeito, "quem cumpre a P. sofre um
bem", no sentido de que "se for punido com justiça, ficará melhor" e "libertar-se-á do mal" (Jbid., Ali a);
assim, a P. é uma purificação ou libertação que o próprio culpado deve querer. Essa função purificadora é
muitas vezes reconhecida por aqueles que vêem na P. o restabelecimento da justiça. Apesar de Kant
afirmar que "a P. nunca pode ser decretada como meio para atingir um bem, seja em proveito do
criminoso, seja em proveito da sociedade civilizada, mas deve ser-lhe aplicada apenas porque ele cometeu
um crime" {Met. derSitten, I, II, seç. 1, E; p. 142), negando assim qualquer conexão entre as duas
concepções de P., S. Tomás de Aquino reconhecia essa conexão e dizia: "As P. da vida presente são
medicinais; assim, quando uma P. não é suficiente para deter um homem, acrescenta-se outra, como
fazem os médicos que empregam diversos remédios quando um só não é eficaz" {S. Th., II, 2, q. 39 a. 4,
ad 3S
). Analogamente, Hegel afirmava que a P. não é somente a conciliação da lei consigo mesma, mas
também a conciliação do delinqüente com sua lei, com a lei "conhecida e válida para ele, destinada à sua
proteção"; nessa conciliação, o delinqüente encontra "a satisfação da justiça e o seu próprio interesse"
{Fil. do dir., § 220).
3
e
A terceira concepção de P. atribui-lhe a função de defender a sociedade. Deste ponto de vista, a P. é: a)
um móvel ou estímulo para a conduta dos cidadãos; b) uma condição física que põe o delinqüente na
impossibilidade de prejudicar. Os filósofos acentuaram sobretudo o primeiro caráter. Aristóteles já notava
que todos aqueles que não tiveram a sorte de receber da natureza uma índole liberal (e são os mais
numerosos) abstêm-se dos atos vergonhosos só por medo das penas. E diz: "A maioria obedece mais à
necessidade que à razão, mais às P. que à honra" {Et. nic, X, 9, 11 80 a 4; cf. 1179 b 11). Mas o que
Aristóteles considerava o móvel das almas servis a concepção aqui examinada considerava o móvel único
e fundamental. Hobbes afirma que "é ineficaz a proibição que não venha acompanhada pelo temor da P.,
sendo, pois, ineficaz uma lei que não contenha ambas as partes, a que proíbe de cometer um
delito e a que pune quem o comete" {De eive, 1642, XIV, § 7). Este conceito seria adotado pela filosofia
jurídica do Iluminismo. É retomado por Samuel Pufendorf, que atribui à P. a tarefa principal "de dissuadir
os homens do pecado com seu rigor" {De jure naturae, 1672, VIII, 3, 4), sem excluir, todavia, a correção
do réu {Ibid., VIII, 3,9). Mas foi com Cesare Beccaria que esse conceito prevaleceu: fundamentou sua
obra Dei diritti e dellepene (1764). Segundo Beccaria, a P. não passa de motivo sensível para reforçar e
garantir a ação das leis, de tal maneira que "as penas que excedam da necessidade de conservar a saúde
pública são injustas por natureza" {Dei diritti e delle pene, § 2). Do mesmo ponto de vista, Bentham
considerava a P. como uma entre as várias espécies de sanções(v.) cuja função é servir de "estimulantes
da conduta humana", porquanto "transferem a conduta e suas conseqüências para a esfera das esperanças
e dos temores: esperanças de um excedente de prazeres; temores que prevêem por antecipação um
excedente de dores" {Deontology, 1834, I, 7). Os mesmos conceitos fundamentais foram validados pela
denominada "Escola Positiva Italiana" (Lombroso, Ferri e outros), que os defendeu com certo sucesso na
discussão filosófico-jurí-dica a respeito do direito penal.
Não há dúvida de que a maioria dos juristas, dos filósofos do direito, dos códigos e dos direitos positivos
vigentes nas várias nações do mundo inspiram-se numa concepção mista ou eclética da P., considerandoa, na maioria das vezes, sob os três ângulos aqui apresentados. Este sincretismo não cria nenhuma
dificuldade do ponto de vista teórico, ainda que os três pontos de vista não tenham o mesmo grau de
homogeneidade. Os primeiros dois unem-se facilmente e também na prática estão freqüentemente juntos,
enquanto o terceiro pertence a uma ordem diferente de pensamento: os dois primeiros inspiram-se na ética
dos fins; o outro, na ética do móvel (v. ÉTICA). Mas as dificuldades começam no terreno prático, quando é
preciso estabelecer a medida da pena. Neste campo, as três concepções manifestam hetero-geneidade. De
acordo com o primeiro ponto de vista, todas as infrações à ordem da justiça são equivalentes: um furto
insignificante fere essa ordem tanto quanto um crime perpetrado com fraude e violência. De acordo com o
segundo ponto de vista, somos levados a crer que a pena, assim como um purgativo, é mais
PENSAMENTO
751
PENSAMENTO
eficaz quanto mais forte. É só de acordo com o terceiro ponto de vista, como notava Hegel, ou seja,
segundo a periculosidade para a sociedade civil, que as P. podem ser convenientemente graduadas (cf.
HEGEL, Fil. do dir., § 218). Neste terreno, portanto, a confusão e a mescla dos vários conceitos de P. está
longe de ser inócua, sendo o motivo principal da desordem e das desigualdades existentes nos sistemas
penais vigentes.
PENSAMENTO (gr. vóncnç, Sictvotoc; lat. Cogitatio-, in. Thought; fr. Pensée, ai. Denken; it. Pensieró).
Podemos distinguir os seguintes significados do termo: l2
qualquer atividade mental ou espiritual; 2Q
atividade do intelecto ou da razão, em oposição aos sentidos e à vontade; 3B
atividade discursiva; 4Q
atividade intuitiva. ■< ls
O significado mais amplo do termo, que indica qualquer atividade ou conjunto
de atividades espirituais, foi introduzido por Descartes: "Com a palavra 'pensar', entendo tudo o que
acontece em nós, de tal modo que o percebamos imediatamente por nós mesmos; por isso não só
entender, querer e imaginar, mas também sentir é o mesmo que pensar" {Princ. phil., I, 9; cf. Méd., II).
Esse significado é conservado pelos cartesianos (cf., p. ex., MALE-BRANCHE, Recherchede Ia vérité, I,
3, 2) e aceito por Spinoza, que inclui entre as maneiras do P. "o amor, o desejo e qualquer outra afeição da
alma" {Et., II, axioma III). Locke fazia alusão a esse significado, mesmo notando que em inglês
pensamento significa mais propriamente "operação do espírito sobre as próprias idéias" (P. discursivo) e
preferindo por isso a palavra "percepção" {Ensaio, II, 9,1). O mesmo significado era aceito por Leibniz,
que definia o P. como "uma percepção unida à razão, que os animais, pelo que nos é dado ver, não
possuem" (Op., ed. Erdmann, p. 464), e observava que esse termo podia ser interpretado também com o
significado mais geral de percepção, e neste caso o P. pertenceria a todas as enteléquias (também aos
animais) (Nouv. ess., II, 21, 72). A tradição desse significado interrompe-se com Kant e não é retomada na
filosofia moderna.
2
a No segundo significado, esse termo designa a atividade do intelecto em geral, distinta da sensibilidade,
por um lado, e da atividade prática, por outro. Neste significado Platão emprega, às vezes, a palavra vÓT|
o"iç, como quando designa com ela todo o conhecimento intelectivo, que encerra tanto o P. discursivo
(ôlávoia) quanto o intelecto intuitivo (voOç) (Rep., VII, 534 a), e outras vezes a palavra Stóvoia, como
faz quando define o P. em geral como o diálogo da alma consigo mesma. "Quando a alma pensa" — diz
ele — "não faz outra coisa senão discutir consigo mesma por meio de perguntas e respostas, afirmações e
negações; e quando, mais cedo ou mais tarde, ou então de repente, decide-se, assevera e não duvida mais,
dizemos que ela chegou a uma opinião" (Teet., 190 e, 191 a; cf. Sof., 264 e). No mesmo sentido geral,
Aristóteles emprega a palavra ôióvoia como quando diz: "Pensável significa aquilo sobre o que existe um
P." (Met., V, 15, 1021 a 31).
Este significado, que é o mais amplo (depois do precedente), tornou-se tradicional e é compartilhado por
todos os que admitem a noção do intelecto como faculdade de pensar em geral: na realidade as duas
noções coincidem. S. Agostinho (De Trin., XIV, 7) e S. Tomás de Aquino (S. Th., II, 2, q. 2 a. 1) admitem
esse significado genérico ao lado do significado específico de P. discursivo (v. adiante). Neste sentido, o
P. constitui a atividade própria de certa faculdade distinta do espírito humano, mais precisamente a
faculdade à qual pertence a atividade cognoscitiva superior (não sensível). Wolff definia neste sentido:
"Dizemos que estamos pensando quando estamos cientes daquilo que acontece em nós, que representa as
coisas que estão fora de nós" (Psychol. empírica, § 23). Este significado constitui, hoje também, o
emprego mais comum desse termo na linguagem corrente.
3
Q
O terceiro significado de P. especifica-o como P. discursivo. É esse o P. que Platão chamava de
dianóia, considerando-o órgão das ciências propedêuticas (aritmética, geometria, astronomia e música),
encaminhamento e preparação para o pensamento intuitivo do intelecto (Rep., VI, 511 d). S. Agostinho
negava que o Verbo de Deus pudesse chamar-se P. neste sentido (De Trin., XV, 16); o mesmo fazia S.
Tomás de Aquino, porque neste sentido pensar é "uma consideração do intelecto acompanhada pela
indagação, sendo portanto anterior à perfeição que o intelecto atinge na certeza da visão" (S. Th., II, 2, q.
2, a. 1; cf. I q. 34, a. 1). Segundo S. Tomás de Aquino, este é o significado "mais apropriado" da palavra
"P.". Neste significado, pode-se integrar o outro, que ele distingue como terceiro (o primeiro é o genérico,
conforme o nB
2), o P. como ato da faculdade
PENSAMENTO
752
PENSAMENTO
cogitativa (virtus cogitativá) ou razão particular (ratioparticularis), que corresponde à capacidade
estimativa dos animais e consiste em reunir e comparar as intenções particulares, assim como a razão
intelectiva ou P. discursivo consiste em reunir e comparar as intenções univer-sais(Ibid., I, q. 78, a. 4).
Viço só fazia expressar os mesmos conceitos ao afirmar, em De anti-quissima italorum sapientia (1710),
que a Deus pertence a inteligência (intelligeré), que é o conhecimento perfeito, resultante de todos os
elementos que constituem o objeto, e ao homem pertence só o pensamento (cogitare), que é como ir
recolhendo alguns dos elementos constitutivos do objeto (De antiquissima italorum sapientia, I, 1). O
empirismo referia-se à mesma noção de P. quando Hume, p. ex., afirmava que tudo o que o P. pode fazer
consiste "no poder de compor, transportar, aumentar ou diminuir os materiais fornecidos pelos sentidos e
pela experiência" (Inq. Cone. Underst., II; trad. it., 1910, p. 17). E este é, finalmente, o conceito de Kant:
"Pensar é interligar representações numa consciência" (.Prol., § 22). O que significa "pensar é o
conhecimento por conceitos", e também "os conceitos, como predicados de juízos possíveis, referem-se a
algumas representações de um objeto ainda indeterminado", e portanto, quando esse objeto não é dado à
intuição sensível, tem-se um "P. formal", mas não um conhecimento propriamente dito, que consiste na
unidade de conceito e intuição (Crít. R. Pura, Anal. dos conceitos, seç. 1, § 22). Ao P. neste sentido
referia-se Hamilton, considerando-o "ato ou produto da faculdade discursiva, ou faculdade das relações"
(Lecture on Logic, V, 10; I, p. 73). Desse ponto de vista, a atividade do P. é definida em termos de síntese,
unificação, confronto, coordenação, seleção, transformação, etc, dos dados que são oferecidos ao P., mas
não por ele mesmo produzidos. Portanto, a característica do P. visto como atividade discursiva é, em
última análise, negativa: o P. discursivo nunca se identifica com seu objeto, mas versa sobre ele, ou seja,
caracteriza-o e expressa-o. Neste sentido, Frege chama de P. o conteúdo de uma proposição, o seu sentido
(v.) ("Über sinn und Bedeutung", § 5; trad. it., em Aritmética e lógica, p. 225). Neste mesmo sentido,
Wittgenstein dizia: "O P. é a proposição significante", e identificava P. e linguagem com o fundamento de
que "a totalidade das proposições é a linguagem" ( Tractatus, 3, 5; 4; 4.001).
4
e
A característica do conceito de P. como intuição é a sua identidade com o objeto. Neste sentido, P. é
atividade do intelecto intuitivo, ou seja, do intelecto que é visão direta do inteligível, segundo Platão
(Rep., VI, 511 c), ou que, segundo Aristóteles, identifica-se com o próprio inteligível em sua atividade
(Met., XII, 2, 1072 b 18 ss.). Para o P. neste sentido os antigos usaram constantemente a palavra intelecto
(v.); já vimos que S. Agostinho e S. Tomás de Aquino recusaram-se a estender a ele o significado de "P.".
Mas no idealismo romântico, ao mesmo tempo em que o intelecto era rebaixado à faculdade do imóvel (v.
INTELECTO), o P. era alçado à posição já ocupada pelo intelecto intuitivo, e identificado com ele. Fichte
foi o primeiro a fazer isso, quando identificou o P. com o Eu ou Autoconsciência Infinita ( Wissenschaftslehre, 1794, § 1); o mesmo fizeram Schelling e Hegel. Schelling afirmava: "Meu eu contém um ser
que precede qualquer pensamento e representação. É porque é pensado; e é pensado porque é. (...)
Produz-se com meu P., graças a uma causalidade absoluta" (Vomlch ais Prinzip der Philosophie, 1795, §
3). Hegel, por sua vez, foi quem expressou com mais clareza a identificação do P. com a autoconsciência
criadora, ou seja, como atividade que coincide com sua própria produção. Ao definir a lógica como
"ciência do P.", afirmava que "ela contém o P. porque é ao mesmo tempo a coisa em si mesma, ou contém
a coisa em si mesma porque é ao mesmo tempo o P. puro" (Wis-senschaft der Logik, Intr., Conceito geral;
trad. it., I, p. 32). E partindo do conceito discursivo de P., Hegel chega ao seu conceito intuitivo: "O P. no
seu aspecto mais próximo mostra-se sobretudo em seu significado subjetivo comum como uma atividade
ou faculdade espiritual, ao lado de outras (sensibilidade, intuição, fantasia, apetição, querer, etc). O
produto dessa atividade, caráter ou forma do P. é o universal, o abstrato em geral. O P. como atividade é,
por isso, o universal ativo, é propriamente aquilo que se faz, visto que o feito, o produto, é justamente o
universal. O P. representado como sujeito, é o pensante; e a expressão simples do sujeito existente como
pensante é o eu" (Ene, § 20). Em outros termos, o P. é ao mesmo tempo a atividade produtiva e o seu
produto (o universal ou conceito): ele é, portanto, a essência ou a verdade de tudo (Ibid., § 21). A partir de
Hegel essa noção intuitiva do P. foi às vezes qualificada pelos seus defensores como concei-
PENSANTE, PENSAMENTO
753
PERCEPÇÃO
to "especulativo" do P., e considerado o único adequado, por entender o P. em sua infinidade e força
criadora. Mas na realidade tratava-se ainda da velha noção de intelecto intuitivo estendida ao homem, sem
levar mais em conta os limites e as condições que os antigos impunham a essa extensão.
PENSANTE, PENSAMENTO. V. ATUALISMO. PERATOLOGIA. Termo com que Ardigó designou a
parte geral da filosofia, cujo objeto é o que se acha além dos campos particulares das ciências filosóficas
especializadas, que são a psicologia e a sociologia (Opere Filosofiche, II, 1884, passirri).
PERCEPÇÃO (gr. àvciA.ií\|nç; lat. Perceptia, in. Perception; fr. Perception; ai. Wahrneh-mung,
Perception; it. Percezioné). Podemos distinguir três significados principais deste termo: I
a
um significado
generalíssimo, segundo o qual este termo designa qualquer atividade cognoscitiva em geral; 2S
um
significado mais restrito, segundo o qual designa o ato ou a função cognoscitiva à qual se apresenta um
objeto real; 3° um significado específico ou técnico, segundo o qual esse termo designa uma operação
determinada do homem em suas relações com o ambiente. No primeiro significado P. não se distingue de
pensamento. No segundo, é o conhecimento empírico, imediato, certo e exaustivo do objeto real. No
terceiro significado é a interpretação dos estímulos. Só no âmbito deste último significado, podemos
entender o que a psicologia hoje discute como "problema da percepção".
1
B
No seu significado mais geral, o termo foi empregado por Telésio, segundo quem "a sensação é a P. das
ações das coisas, dos impulsos do ar e das mesmas paixões e mudanças, especialmente destas últimas"
(De rer. nat, VII, 3). Esta doutrina abria polêmica contra a tese de que a sensação consiste simplesmente
na ação das coisas ou na modificação do espírito. Telésio, porém, afirma que ela consiste na P. de uma ou
de outra. A mesma doutrina foi defendida por Bacon, que se reportava explicitamente à distinção de
Telésio (De augm. scient., IV, 3). Descartes, por sua vez, empregava esse termo para indicar todos os atos
cognitivos, que são passivos em relação ao objeto, em oposição aos atos da vontade, que são ativos (Pass.
deVâme, I, 17). Descartes dividiu-as em: P. que se reportam aos objetos externos, as que se reportam ao
corpo e as que se reportam à alma (Ibid., I, 23-25). Neste sentido geral, a palavra foi usada também por Locke: "A P. é a primeira faculdade da alma exercida em torno das nossas
idéias; por isso, é a primeira e mais simples idéia a que chegamos por meio da reflexão. (...) Na P. pura e
simples, o espírito geralmente é passivo, não podendo deixar de perceber o que em ato percebe" (Ensaio,
II, 9,1). Da mesma maneira, Leibniz entende a P. como o que a alma do homem e a alma do animal têm
em comum, como "a expressão de muitas coisas em uma", e distingue-a da apercepçâo ou pensamento
pelo fato de esta última ser acompanhada pela reflexão (Nouv. ess., II, 9, 1; cf. Op., ed. Erdmann, pp. 438,
464, etc). Não é diferente o sentido geral que Kant atribui à palavra, quando dá nome de P. à
"representação com consciência", distinguindo-a em sensação (se fizer referência apenas ao sujeito) e
conhecimento (se for objetiva) (Crít. R. Pura, Dialética, Livro I, seç. 1). É bastante óbvio que P. nesse
sentido significa o mesmo que pensamento em geral; o próprio Locke notava esta identidade de
significado, mesmo preferindo pessoalmente a palavra P., porque pensamento, em inglês, indica "a
operação do espírito sobre as próprias idéias", enquanto na P. o espírito é geralmente passivo (Ensaio, II,
9, 1).
2° O segundo significado do termo é mais restrito; expressa o ato cognitivo objetivo, que apreende ou
manifesta um objeto real determinado (físico ou mental). Este é o significado originário do termo, tal qual
foi usado pelos estóicos como equivalente de compreensão (KaTÓcÀr|i|riç); "Os estóicos definem a
sensação deste modo: a sensação é P. por meio do sen-sório ou da compreensão" (Aécio, Plac, IV, 8, 1; cf.
Epicuro, Fr. 250; Plotino, Enn., VI, 7, 3, 29, etc). Cícero traduzia como perceptio o termo grego, tendo
particularmente em vista o sentido de representação cataléptica (Acad., II, 6, 17; Definibus, III, 5, 17). Em
sentido análogo, esse termo foi usado por S. Agostinho (De Trin., IV, 20) e por S. Tomás de Aquino; este
último designava com ele "certo conhecimento experimental" (S. Th., I, q. 63, a. 5, ad 2Q
). Essa palavra
foi reintroduzida no uso filosófico por Telésio e Bacon (como já dissemos), e com eles seu significado
começou a distinguir-se do de sensação. Mas foi só Descartes que estabeleceu o significado novo e mais
complexo do termo. Falando das percepções externas, ele afirmava que, conquanto elas sejam produzidas
por movimentos provenientes de coisas externas, "nós as relacionamos com as coisas que
PERCEPÇÃO
754
PERCEPÇÃO
supomos ser suas causas, de tal maneira que acreditamos ver um archote e ouvir um sino quando apenas
sentimos os movimentos que deles vêm" (Pass. de l'âme, I, 23). A partir de então a distinção entre
sensação e P. torna-se fundamental na teoria da percepção. Essa distinção é expressa por C. Bonnet (Essai
analytique sur les facultes de Vâme, 1759, XIV, 195-96) e pela escola escocesa do senso comum,
especialmente por Reid (Jnquiry into the Human Mind, 1764, VI, 2
Q
). Em virtude dela, a sensa- ■ ção é
reduzida à idéia simples de Locke: a uma unidade elementar produzida diretamente no sujeito pela ação
causai do objeto. A P., por outro lado, torna-se um ato complexo que inclui uma multiplicidade de
sensações, presentes e passadas, e também a sua referência ao objeto, ou seja, um ato judicativo.
Identificando P. e intuição empírica, que é o conhecimento objetivo, o resultado da atividade judicante
exercida sobre o multíplice sensível, Kant (.Prol., § 10) já considerara incluído na P. o ato judicativo. A
presença de um juízo na P. torna-se tema comum na filosofia do séc. XIX. Hegel levava essa tese ao
extremo quando considerava a P. (e a coisa que é seu objeto) como um produto do Universal (da
Consciência ou do Pensamento): "Para nós ou em si mesmo, o Universal, como princípio, é a essência da
P., e em face dessa abstração o que percebe e o que é percebido são o não-essencial" (Phãnomen. des
Geistes, I, Consciência II, trad. it., I, p. 97). Mas à parte essa tese extremista (que no entanto foi repetida
até há pouco tempo pelas escolas idealistas), a distinção entre sensação e P. e o reconhecimento do caráter
ativo ou judicativo da P. tiveram como base a sua referência ao objeto externo. Foi o que fizeram
Hamilton, que se inspirava na doutrina da escola escocesa (Lectures onMetaphysics, 5
a
ed., 1870, II, pp.
129 ss.), e Spencer, que muito contribuiu para difundir esse ponto de vista (Principies ofPsy-chology,
1855, § 353). Bolzano (Wissenschafts-lehre, 1837, I, p. l6l), Brentano (Psychologie vom empirischen
Standpunkte, 1874,1, 3, § 1), Helmoltz (Die Tatsachen in der Wahmehmung, 1879, p. 36) enfatizaram a
ação do pensamento ou do intelecto na P.; Brentano identificava P. e juízo ou crença (loc. cit). Em sentido
semelhante, Husserl fazia a distinção entre P. e outros atos intencionais da consciência, com base em sua
característica de "apreender" o objeto (Jdeen, I, § 37). Na percepção, a coisa mesma está presente em seu
ser, assim como está presente na coisa o sujeito que percebe (cf. G. Brand, Welt, ich und Zeit, 1955, 3). É só aparentemente
diferente a noção de Bergson da "P. pura". Bergson diz: "A P. outra coisa não é senão uma seleção. Ela
nada cria: sua tarefa é eliminar do conjunto das imagens todas as imagens sobre as quais eu não teria
nenhuma pretensão e, depois, eliminar das imagens conservadas tudo o que não interessa às necessidades
dessa imagem particular que denomino corpo" (Matièreetmémoire, p. 235). Deste modo, a P. delinearia,
no interminável campo das imagens conservadas na consciência, o objeto destinado a servir às
necessidades da ação e que delimita a ação possível do meu corpo. Mas, mesmo assim, a tarefa da P.
continua sendo apreender ou delinear um objeto.
O conceito de P. ao qual essas doutrinas fazem referência é bastante uniforme: a P. é o ato pelo qual a
consciência "apreende" ou "situa" um objeto, e esse ato utiliza certo número de dados elementares de
sensações. Este conceito, portanto, supõe: I
a
a noção de consciência como atividade introspectiva e autoreflexiva; 2S
a noção do objeto percebido como entidade individual perfeitamente isolável e dada; 3S
a
noção de unidades elementares sensíveis. O abandono desses três pressupostos caracteriza a nova fase do
problema da P., própria da psicologia e da filosofia contemporâneas.
3
a
Segundo o terceiro conceito, P. outra coisa não é senão a interpretação dos estímulos, o reencontro ou a
construção do significado deles. Essa definição é uma fórmula simplificada e genérica para expressar as
características mais evidentes que as teorias psicológicas contemporâneas atribuem à P.; F. H. Allport
enumerou (e analisou criticamente) treze dessas teorias (Theories ofPerception and the Concept of
Structure, 1955). No entanto, é preciso observar que, por terem sido quase todas elas propostas por
psicólogos pesquisadores que as formularam como generalizações experimentais, raramente representam
alternativas que se excluam mutuamente, mas na maioria das vezes só evidenciam ou consideram fatores
ou condições fundamentais que certa ordem de investigações trouxe à tona. Apesar disso é possível
distinguir dois grupos de teorias: d) as que insistem na importância dos fatores e das condições objetivas;
ti) as que insistem na importância dos fatores e das condições subjetivas.
PERCEPÇÃO 755
PERCEPÇÃO
d) Ao primeiro grupo de teorias pertence, em primeiro lugar, a psicologia da forma (Ges-talttheorié), que
é substancialmente uma teoria da percepção. O gestaltismo inicia-se com a obra de Max Wertheimer
sobre a P. do movimento (1912) e tem como outros expoentes Wolfgang Kõhler {GestaltPsychcology,
1929) e Kurt Koffka {Beitrãge Zur Psychologie der Gestalt, 1919)- Seu objetivo é opor-se aos
pressupostos 2- e 3a
da concepção tradicional de percepção. Mostrou, em primeiro lugar, que não existem
(a não ser como abstração artificial) sensações elementares que façam parte da composição de um objeto,
e, em segundo lugar, que não existe um objeto de P. como entidade isolada ou isolável. O que se percebe é
uma totalidade que faz parte de uma totalidade. O gestaltismo dedicou-se a determinar as "leis" com base
nas quais essas totalidades são constituídas, as "leis de organização", que são: da proximidade, da
semelhança, da direção, da boa forma, do destino comum, do fechamento, etc.; elas podem ser vistas em
ação mesmo em experiências muito simples, como p. ex. as que revelam a tendência a agrupar numa
única percepção sinais semelhantes ou suficientemente próximos, ou então constituam uma figura regular.
A afirmação fundamental dessa teoria é que a P. sempre se refere a uma totalidade, cujas partes, se
consideradas separadamente, não apresentam as mesmas características: maiores simplicidade e clareza
possíveis e maiores simetria e regularidade possíveis. Tais características por vezes levaram os gestaltistas
a admitir a teoria do "todo determinante", segundo a qual o todo transcende suas partes e as determina
dinamicamente de acordo com suas próprias leis. Assim, o todo assemelha-se à "coisa" de que fala
Husserl, a propósito da P. transcendente, porquanto a essência da coisa integra em si e ao mesmo tempo
transcende a totalidade de suas manifestações. Esta é a teoria da P. substancialmente aceita em Phenoménologie de Ia perception (1945) de M. Merleau-Ponty. Importante variante dessa teoria é a do campo
topológico de Lewin, segundo a qual o indivíduo, reduzido a um ponto sem dimensões, está submetido à
ação das forças que agem no campo e que ele sente como alheias ao seu corpo. Nesta condição, o
indivíduo é considerado em "locomoção", isto é, como que movendo-se para uma meta positiva ou como
afastando-se de uma meta negativa. O espaço em que ocorre esse movimento é o
denominado "espaço de vida", ou seja, a região onde o indivíduo tem experiência da sua ação, espaço que
não tem propriedades métricas ou direções determinadas, sendo por isso topológico, no sentido de poder
ter em qualquer momento qualquer dimensão ou forma geométrica, ainda que mantenha as propriedades
que possibilitam o movimento (LEWIN, Principies of Topological Psychology, 1936). Podem ser
consideradas variantes dessa teoria: a de Hebb, para quem o campo perceptivo corresponde a um campo
fisiológico, a um "mecanismo de ação neutra seletiva" que, para cada P. particular, se situaria em algum
ponto do sistema nervoso central {The Organization of Behavior, Nova York, 1949), e a teoria do "campo
tônico-sensorial", segundo a qual "as propriedades per-ceptivas de um objeto são função da maneira como
os estímulos provenientes do objeto modificam o estado 'tônico-sensoriaP existente do organismo"
(WERNER e WAPNER, "Toward a General Theory of Perception" em Psychological Review, 1952, pp. 324-
38). Todas as teorias aqui mencionadas, concentradas como estão nos conceitos de "totalidade" ou de
"campo", privilegiam de certo modo o aspecto objetivo da percepção.
ti) Um segundo grupo de teorias tem em vista principalmente o aspecto subjetivo da P. Para estas teorias,
não é válido nem mesmo o 1Q
pressuposto da 2- concepção de P., o da consciência. Estas doutrinas com
efeito não recorrem à noção de consciência nem à consideração introspectiva. Uma quantidade enorme de
observações experimentais evidenciou a importância, para a P., do estado de preparação ou predisposição
do sujeito, aquilo que geralmente se chama de "disposição" (set) per-ceptual. O fato fundamental é que
estar disposto para certo estímulo e para certa reação a um estímulo facilita o ato de perceber e possibilita
a sua realização com maior prontidão, energia ou intensidade. A disposição, em outras palavras, é um
processo seletivo que determina preferências, prioridades, diferenças qualitativas ou quantitativas naquilo
que se percebe; não é diferente do próprio processo perceptivo, nem é um mecanismo inato ou prefixado,
mas um esquema variável aprendido ou construído, ainda que nem sempre voluntariamente (cf. o cap. 9
da obra citada de Allport). As mais recentes teorias da P. levam em consideração esses fatos. Com base
neles, a teoria transacional, p. ex., considera a P. como uma tran-
PERCEPÇÃO
756
PERCEPTO
sação, como um acontecimento que ocorre entre o organismo e o ambiente, e não pode portanto ser
reduzido à ação do objeto ou do sujeito, nem à ação recíproca dos dois. Como transação, a natureza da P.
deriva da situação total em que está inserida e tem suas raízes tanto na experiência passada do indivíduo
quanto em suas expectativas de futuro (DEWEY e BENTLEY, Knowing and the Known, 1949; CANTRIL,
AMES, HASTORF, ITTELSON, "Psychology and Scientific Research", em Science, 1949, pp. 461, 491, 517;
ITTELSON e CANTIL, Perception: a Transactional Approach, 1954). Desse ponto de vista, é fácil
evidenciar o caráter ativo e seletivo da P., o fato de ela valer-se de indícios com base nos quais reconstrói
o significado do objeto e, também sua outra característica fundamental, que é o fato de ser constituída de
probabilidades, e não de certezas. Essas características são apresentadas pelo funcionalismo, chamado de
"New Look" da teoria da P., e levaram à teoria da motivação e à teoria das hipóteses. A primeira, que é
chamada também de teoria do "estado diretivo", funda-se no reconhecimento da influência que as
necessidades físicas, as expectativas do indivíduo (p. ex., um castigo ou um prêmio) e a sua personalidade
exercem sobre o objeto percebido e sobre a rapidez e a intensidade da P. (BRUNER e KRECH, Perception
and Personality. a Symposium, Durham, 1950). Na segunda teoria, confluem todos os dados
experimentais em que se fundamentaram as teorias do presente grupo e boa parte dos dados experimentais
em que se fundamentavam as teorias do primeiro grupo. A idéia fundamental da teoria da hipótese é que
as percepções (aliás, assim como a lembrança ou o pensamento) constituem hipóteses que o organismo
aventa em determinadas situações e que são confirmadas, abandonadas ou modificadas de acordo com
essa situação. A disposição {sei), da qual falava uma das teorias, é justamente a preparação para uma
hipótese desse gênero. A disposição constitui a expectativa perceptual, que se baseia na experiência
precedente e antecipa a futura. Em geral, na P., as disposições são estabelecidas desde muito tempo,
através da atividade perceptiva anterior, e pode estar pronta para entrar em ação quando o organismo
ingressa em dada situação. Através dela, o organismo escolhe, organiza e transforma as "informações"
que lhe chegam do ambiente. Essas informações são indícios ou sinalizações que servem para "evocar" a
hipótese ou para confirmá-la ou desmenti-la. As principais correlações funcionais entre as variáveis que a
teoria comporta são as seguintes: I) Quanto mais forte é a hipótese, tanto maior é a probabilidade da sua
evocação e tanto menor a soma de indícios necessária para confirmá-la. Disso resulta que, quando a
hipótese é fraca, para a sua confirmação é necessária uma enorme quantidade de informações apropriadas.
II) Quanto mais forte é a hipótese, tanto maior é a soma de indícios necessária para invalidá-la; e quanto
mais fraca a hipótese, tanto menor é a quantidade de indícios contrários necessários para invalidá-la (cf. o
art. de L. POSTMAN, em Social Psychology at the Crossroads, org. ROHRER e SHERIF, Nova York, 1951; e
ALLPORT, op cit., cap. 15). O que essa teoria faz é resumir, de forma menos dogmática, tanto os dados
experimentais recolhidos por um expressivo número de observadores quanto as características essenciais
atribuídas à P. pelas doutrinas contemporâneas da psicologia, a partir da Gestalttheorie.
Essas características podem ser recapitula-das da seguinte maneira: 1Q
a P. não é o conhecimento
exaustivo e total do objeto, como julgavam as teorias do número 2, e sim uma interpretação provisória e
incompleta, fundamentada em indícios ou sinalizações. 2- A percepção não implica nenhuma garantia .de
validade, nenhuma certeza; mantém-se na esfera do provável. 3a
Como qualquer conhecimento provável,
para ser validada, a P. precisa ser submetida à prova, sendo então confirmada ou rejeitada. 4Q
A P. não é
um conhecimento perfeito e imutável, mas possui a característica da corrigibilidade.
PERCEPÇÃO INTELECnVA. Foi assim que Rosmini chamou o ato fundamental do conhecimento,
enquanto síntese entre a idéia do ser em geral e a idéia empírica que deriva da sensação (das coisas
externas) ou do sentimento (que o eu tem de si) {Nuovo saggio sull'origine delle idee, 1830, §§ 492, 537,
etc).
PERCEPCIONISMO (in. Percepcionism- fr. Percepcionisme, ai. Perceptionismus; it. Per-cezionismó).
É a doutrina que admite a realidade dos objetos da percepção. O mesmo que realismo ingênuo (v.
REALISMO).
PERCEPÇÕES PEQUENAS. V. INCONSCIENTE.
PERCEPTO (in. Percepi). Na psicologia contemporânea, o P. é a experiência pessoal de um objeto, a
maneira como o objeto se mostra ao
PERCOLUÇÃO
757
PERFEITO
sujeito. Esse nome foi cunhado por analogia com concept (conceito).
PERCOLUÇÃO. PERFORMATTVO. PERFECCIONISMO (in. Perfectionism; fr. Perfectionisme, ai.
Perfektionismus, Perfekti-bilismus; it. Perfezionismó). Esta palavra é (raramente) empregada em dois
significados: ls para indicar o ideal moral que consiste em perseguir a própria perfeição moral ou de
outrem, ou seja, a capacidade de agir em conformidade com o dever, que implica também a cultura das
faculdades físicas e mentais do homem. Neste sentido, é P. o ideal moral expresso por Kant na introdução
ao segundo volume da Metafísica dos costumes-, 2
S
para indicar a crença no progresso, acompanhada
pelo compromisso de contribuir para ele. Neste sentido, a palavra às vezes é usada na filosofia anglosaxônica contemporânea.
PERFECTIHABIA. Foi assim que Ermolao Bárbaro traduziu para o latim o termo grego "enteléquia"
(cf. LEIBNIZ, Monad., § 48).
PERFEIÇÃO (in. Perfection; fr. Perfection; ai. Volkommenheit; it. Perfezionè). Esta palavra foi usada
pelos filósofos somente em relação aos significados 1Q
e 3Q
do adjetivo correspondente: não se considera
P. a P. relativa, ou seja, o estado de uma coisa excelente entre as de sua espécie. S. Tomás de Aquino diz:
"A P. de uma coisa é dúplice, ou seja, primeira e segunda. A primeira P. é aquela em virtude da qual uma
coisa é perfeita na sua substância, e esta P. é a forma do todo que emerge da integridade das partes. A
segunda P. é a do fim; mas o fim é a operação (assim como o fim do citarista é tocar citara) ou é a coisa à
qual se chega através da operação (assim como o fim do construtor é a casa que ele constrói). A primeira
P. é causa da segunda: a forma é com efeito o princípio das operações" {S. Th., I, q. 73, a. 1). Esse mesmo
conceito era com exatidão exposto por Kant: "A P. indica às vezes um conceito que pertence à filosofia
transcendental, o da totalidade dos elementos diferentes que, reunidos, constituem uma coisa; mas pode
ser entendido também como pertencente à teologia, e então significa o acordo das propriedades de uma
coisa com um fim" {Met. der Sitten, Intr., V, A; cf. Crít. do Juízo, % 15). Estas determinações reduzem a
P.: 1Q
à integridade do todo; 2S
à realização do fim. Mas tendem na realidade a privilegiar o primeiro
conceito, que, ao ser aplicado à totalidade do ser, levou a tradição filosófica a identificar P. e realidade.
S. Tomás de Aquino mesmo descreveu a P. de Deus e da criatura como consistente na posse do ser:
"Deus, que é a totalidade do seu ser, possui o ser segundo a virtude integral do ser, e não pode carecer de
nenhuma nobreza que pertença a coisa alguma. Assim como toda a nobreza e a P. inerem a uma coisa
porque a coisa é, também o defeito inere a ela porque, de algum modo, ela não é" {Contra Gent., I, 28).
Deste ponto de vista, uma coisa é tanto mais perfeita quanto maior a sua posse do ser; e como Deus
possui todo o ser, é totalmente perfeito. Essas equações constituíam lugares-comuns da escolástica.
medieval. Duns Scot repete-as, afirmando que a forma nas criaturas implica alguma perfeição porque é
forma partilhada e parcial, enquanto a forma não tem imperfeição em Deus porque não é nem
participação nem parte (Op. Ox., I, d. 8, q. 4, a. 3, n. 22). Descartes recorreu exatamente a esse conceito
de P. ao afirmar que as idéias "que representam substâncias são sem dúvida algo mais e contêm em si
mais realidade objetiva, ou seja, participam por representação de mais graus de ser ou de P. do que as que
representam só modos ou acidentes" {Méd., III). Spinoza identificava explicitamente realidade e P. {Et.,
II, def. 6), e Leibniz declarava entender por P. "a grandeza da realidade positiva tomada precisamente,
pondo-se de lado os limites das coisas que a possuem" {Monad., § 41). Kant falava neste sentido de uma
P. transcendental, que é "a integridade de cada coisa em seu gênero", e de uma P. metafísica, como
"integridade de uma coisa simplesmente como coisa em geral", distinguindo delas a P. como aptidão ou
conveniência de uma coisa a vários fins {Crít. R. Prática, I, I, cap. I, escol. II).
O conceito de P. foi fixado, no curso ulte-rior da filosofia, pelas seguintes determinações: como
integridade do todo ou correspondência ao objetivo; no primeiro significado, foi constantemente
identificado com o conceito de ser. Fora de sua persistência metafísica e teológica, a noção de P. é
pouquíssimo utilizada na filosofia contemporânea. Quando é utilizada, a referência aos significados
tradicionais é evidente: assim acontece, p. ex., em Bergson, que identifica a P. com o absoluto, e ambos
com a totalidade do ser ("Introduction à Ia métaphisique", em Lapenséeetle mouvant, 3
a
ed, 1934, p. 204).
PERFEITO (gr. TéÀeioç; lat. Perfect; fr. Par-fait; ai. Vollkommen; it. Perfeito). Aristóteles
PERFORMATTVO
758
PERSONALIDADE
distinguia três significados do termo: ls
aquilo a que não falta nenhuma de suas partes, ou além do qual
não se pode achar nenhuma parte que lhe pertença; 2Q
o que possui, em sua espécie, uma excelência que
não pode ser sobrepujada, sendo, pois, P. o flautista ou o ladrão que não encontrem rivais; 3B
o que atingiu
seu objetivo, desde que se trate de um bom objetivo {Met., V, 16, 1021 b 12 ss.). No primeiro sentido, P. é
o completo, aquilo a que não falte nenhuma das partes integrantes. No segundo, P. é o excelente em
relação a outras coisas da mesma espécie; no terceiro, P. é o real ou atual, porque cumpriu seu objetivo.
Esses significados não mudaram ao longo da história da filosofia. É claro que, enquanto o 2- significado é
relativo e, portanto, não metafísico — porque exprime só a excelência relativa de uma coisa numa ordem
estabelecida de coisas —, os outros dois são absolutos e pertencem à tradição metafísica.
PERFORMATTVO (in. Performative- fr. Performatif; it. Performativó). Foi esse o nome dado por L.
Austin à classe de enunciados que, apesar de terem forma de enunciados descritivos, não o são e
preenchem duas condições: I
a
não descrevem, não relatam e não constatam nada, e tampouco são
verdadeiros ou falsos; 2a
pronunciar o enunciado é realização de uma ação ou de uma parte dela, mais
precisamente de uma ação que não é normalmente descrita como um simples "dizer algo". Exemplos
disso são o clássico "Sim" com que os noivos respondem à pergunta sacramentai durante a cerimônia
nupcial, ou as frases seguintes: "Dou a este navio o nome de 'Rainha Elizabeth'", pronunciada na
cerimônia de lançamento de um navio ao mar, ao se quebrar uma garrafa contra o casco-, "Deixo meu
relógio como herança a meu irmão", ou frases semelhantes, freqüentes em testamentos; "Aposto um
milhão que amanhã chove" (cf. How to do Things ivith Words, 1962, p. 5).
Austin chamou o P. de ilocução(illocution), para distingui-lo da locução, que é uma expressão com
denotação e conotação, e da perlo-cução, que é a forma persuasiva de uma expressão {Ibid., pp. 98 ss.).
PERIEKON. V. HORIZONTE.
PERIPATETISMO. V. ARISTOTELISMO.
PERIPÉCIA (gr. 7tepi7téxeta; in. Peripety, fr. Péripétie, ai. Peripetie, it. Peripeziá). Segundo Aristóteles,
é um dos elementos fundamentais da tragédia, mais precisamente do enredo trágico. Consiste na mudança súbita de condições ou destino, que deve ocorrer de modo verossímil e
necessário (Poet., 11, 1452 a 22).
PERMANÊNCIA (in. Permanence; fr. Permanence, ai. Beharrlichkeit; it. Perma-nenzd). Segundo Kant
"a P. expressa, em geral, o tempo como correlato constante da presença da aparência, da mudança e da
concomitância". Em outros termos, P. é o tempo enquanto duração {Crtt. R. Pura, Anal. dos princ, cap. II,
seç. 3, Primeira analogia) (v. ANALOGIAS DA EXPERIÊNCIA).
PERPETUIDADE. V. ETERNIDADE.
PERSEIDADE (lat. Perseitas; in. Perseity, fr. Perséité, it. Perseitâ). Termo empregado na Escolástica
(mas raramente) para indicar o estado e a condição do que é por si (v.).
PERSONALIDADE (in. Personality; fr. Personnalité, ai. Persõnlichkeit; it. Personalitã). 1. Condição
ou modo de ser da pessoa. Neste sentido esse termo já foi usado por S. Tomás de Aquino (5. Th., I, q. 39,
a. 3, ad 4
a
) e é geralmente usado pelos filósofos (que muitas vezes o empregam como sinônimo de
pessoa).
2. No significado técnico da psicologia contemporânea, P. é a organização que a pessoa imprime à
multiplicidade de relações que a constituem. É neste sentido que Nietzsche falava de pessoa, observando
que "alguns homens compõem-se de várias pessoas e a maioria não é pessoa. Onde predominarem as
qualidades medianas importantes para que um tipo se perpetue, ser pessoa será luxo. (...) trata-se de
representantes ou de instrumentos de transmissão" {Wille Zur Macht, ed. 1901, § 394). Estes conceitos de
Nietzsche são semelhantes aos da psicologia contemporânea. H. J. Eysenck diz: "P. é a organização mais
ou menos estável e duradoura do caráter, do temperamento, do intelecto e do físico de uma pessoa:
organização que determina sua adaptação total ao ambiente. Caráter designa o sistema de comportamento
conativo {vontade) mais ou menos estável e duradouro da pessoa. Temperamento designa seu sistema
mais ou menos estável e duradouro de comportamento afetivo {emoção); intelecto, seu sistema mais ou
menos estável e duradouro de comportamento cognitivo {inteligência); físico, seu sistema mais ou menos
estável e duradouro de configuração corpórea e de dotação neuro-endócrina" {The Structure of Human
Personality, 1953, p. 2). Nesta definição, em que entram elementos já fixados por Roback, Allport,
McKinnon, o ele-
PERSONALISMO
759
PERSUASÃO
mento dominante é constituído pelo conceito de organização, estrutura ou sistema, elemento que permite
prever o comportamento provável de uma pessoa. Não muito diferente desta é a outra definição,
puramente funcional, cuja finalidade é possibilitar as investigações relativas à P.: "P. é o que permite a
previsão do que fará uma pessoa numa dada situação (R. B. CATTEL, Personality, 1950, p. 2). Neste
sentido, o eu distingue-se da P. como a sua parte conhecida ou aberta à pessoa, à qual esta faz referência
usando o pronome eu; essa parte pode não coincidir — e geralmente não coincide — com a totalidade da
P. (v. Eu).
PERSONALISMO (in. Personalism; fr. Per-sonnalisme, ai. Personalismus-, it. Personalismo). Este
termo foi e é usado para designar três doutrinas diferentes, mas interligadas.
I
a A primeira é doutrina teológica, que afirma a personalidade de Deus como causa criadora do mundo,
em oposição ao panteísmo, que identifica Deus com o mundo. Foi nesse sentido originário que o termo
foi empregado primeiro por Schleiermacher {Reden, 1799), e depois por Goethe, Feuerbach, Teichmüller, etc.
2
a
A segunda é uma doutrina metafísica, segundo a qual o mundo é constituído por uma totalidade de
espíritos finitos que, em seu conjunto, constituem uma ordem ideal em que cada um deles conserva sua
autonomia. Esta concepção foi apresentada pela primeira vez por G. H. Howison, com o nome de P., em
polêmica com Royce e, em geral, com o idealismo absoluto (na discussão publicada com o título The
Conception of God, 1897). Em seguida, esse termo foi usado para designar a mesma concepção
fundamental por Renouvier ÇLe personnalísme, 1903), por W. E. Hocking e por outros escritores dos
Estados Unidos, onde foi criada, inclusive, uma revista destinada a defendê-la {The Personalist, 1919)- O
P., neste sentido, outra coisa não é senão um espiri-tualismo monadológico de cunho leibni-ziano-lotzista,
e de fato o termo P. designa nos Estados Unidos a doutrina que na Europa é chamada de espiritualismo
(v.).
3
a
A terceira é uma doutrina ético-política que enfatiza o valor absoluto da pessoa e seus laços de
solidariedade com as outras pessoas, em oposição ao coletivismo (que tende a ver na pessoa nada mais
que uma unidade numérica), e ao individualismo (que tende a enfraquecer os laços de solidariedade entre
as pessoas).
Foi com esse sentido que Dühring empregou esse termo em Geschichte der National— Õko-nomieide
1899) —; com esse mesmo sentido, voltou a ser usado depois da Segunda Guerra Mundial por E.
Mounier (Ze■ personnalísme, 1950) e, na sua esteira, por numerosos pensadores católicos, defensores do
P. metafísico. Na oratória mais ou menos confusa, que é a característica dominante desta corrente, a nota
conceituai que se consegue discernir é o conceito de pessoa como auto-relação ou consciência.
PERSPECTIVA (in. Prospect; fr. Perspective, ai. Perspektive, it. Prospettivá). Antecipação do futuro:
projeto, esperança, ideal, ilusão, utopia, etc. Esse termo expressa o mesmo conceito designado por
possibilidade (v.), mas de um ponto de vista mais genérico e menos compromissado, visto que podem ser
perspectivas coisas que não têm consistência suficiente para serem possibilidades autênticas. Na filosofia
contemporânea, esse. termo foi empregado especialmente por Ortega y Gasset, Blondel e Mannheim, mas
sem clara formulação conceituai. Por perspectivismo (ai. Perspektivismus) Nietzsche entendeu a condição
em virtude da qual "cada centro de força — e não só o homem — constrói todo o resto do universo
partindo de si mesmo, ou seja, atribuindo ao universo dimensões, forma e modelo proporcionais à sua
própria força" ( Werke, ed. Króner, XVI, § 636). Esse termo às vezes foi usado para designar a filosofia de
Ortega y Gasset.
PERSPICÁCIA (gr. ày^ívota; lat. Perspi-cacitas; in. Perspicacity, fr. Perspicacité, ai. Scharfsinn; it.
Perspicaccià). Rapidez mental, segundo Platão (Carm., 160 a); justeza de metas, segundo Aristóteles {Et.
nic, VI, 9, 1142 b 6). A primeira definição capta a rapidez do processo intelectivo; a outra, seu êxito;
parecem definições complementares. Kant, porém, definiu a P. como "a capacidade de notar as mínimas
semelhanças e dessemelhanças", que gera observações chamadas sutilezas ou simplesmente pedantismo,
quando inúteis (Antr., I, § 44) (v. SAGACIDADE).
PERSPICUIDADE (lat. Perspicuitas; in. Perspicuity, fr. Perspicuité, ai. Perspicuitãt; it. Perspicuita). É
o termo latino que traduz o termo grego èvápTEia (cf. CÍCERO, Acad., II, 6,17) (v. EVIDÊNCIA).
PERSUASÃO (in. Persuasion; fr. Persua-sion; ai. Uberredung; it. Persuasioné). 1. Crença cuja certeza
se apoia em bases principalmente subjetivas, ou seja, pessoais e incomunicáveis.
PERSUASÃO
760
PESSIMISMO
A distinção entre persuasão e ensinamento racional já foi estabelecida por Platão, que dizia: "O
pensamento é gerado em nós por via de ensinamento; a opinião, por via da persuasão. O primeiro baseiase sempre num raciocínio verdadeiro; a outra carece desse fundamento. O primeiro continua firme em
face da P.; a outra deixa-se modificar" {Tim., 51, e). Kant expôs claramente este mesmo conceito: "A
crença que tem fundamento na natureza particular do sujeito chama-se persuasão. É simples aparência
porque o fundamento do juízo, que está unicamente no sujeito, é considerado como objetivo. Portanto,
esse juízo só tem validade pessoal e a crença não pode ser comunicada" (Crít. R. Pura, Doutrina do
método, cap. II, seç. 3). Deste ponto de vista, a pedra de toque que permite distinguir P e convicção (v.) é
"a possibilidade de comunicar a crença e reconhecê-la válida para a razão de qualquer homem" {Ibid.); a
convicção é comunicável; a P. não é. A distinção kantiana foi aceita e simplificada por C. Perelmann e por
L. Olbrechts-Tyteca: "Propomos chamar de persuasiva a argumentação que pretenda servir apenas a um
auditório particular, e chamar de convincente z que acredita poder obter a adesão de qualquer ser racional"
(Traité de Vargumentation, 1958, § 6). Às vezes, P. foi distinguida de convicção por, supostamente,
envolver o sentimento além da razão e, portanto, só ela ser capaz de despertar o que Pascal chamava de
"autômato", que são os comportamentos afetivos e habituais do homem. Pascal dizia: "Somos autômatos
tanto quanto espírito; disso resulta que o instrumento de que se constitui a P. não é apenas a
demonstração" (Pensées, 252). D'Alembert expressou muito bem esse ponto de vista: "A convicção tem
mais a ver com o espírito; a P., com o coração. Diz-se que o orador não deve apenas convencer, ou seja,
provar o que enuncia, mas também persuadir, ou seja, impressionar e comover. A convicção supõe alguma
prova; a P., nem sempre. (...) Persuadimo-nos facilmente do que nos agrada; ficamos às vezes
entristecidos ao nos convencermos daquilo em que não queríamos crer" (CEuvres postbumes, 1799, II, p.
89). Outras vezes a P. foi considerada a forma superior da certeza por estar ligada à verdade objetiva. Foi
o que fez Heidegger, que a entendeu como "um modo de ser da certeza", mais precisamente o que se
funda testemunho da "coisa descoberta", que é verdadeira (Sein und Zeit, § 52). Analogamente, Jaspers
pôs a P. acima da "confirmação pragmática" e da "evidência coercitiva", como o terceiro e último grau da
verdade objetiva (Vernunft und Existem, 1935, III, § 3). Por outro lado, insistiu-se sobre o caráter
"emocional" da P., no sentido de que ela apelaria para motivos "não racionais" (C. L. STEVENSON, Ethics
and Language, 1944, cap. 6). O que emerge dessas indicações é o caráter pessoal e, em certa medida,
incomunicável da P., ou melhor, dos motivos que fundamentam a crença na qual ela consiste.
2. Ato ou procedimento de persuadir, de induzir à persuasão.
PERSUASIVO (gr. 7u8avóv; lat. Persuasible, in. Persuasive, fr. Persuasif, ai. Überzeugend; it.
Persuasivó). Critério de verdade defendido pelos céticos da Nova Academia, em primeiro lugar por
Carnéades. Persuasiva é a representação que se mostra verdadeira, que pode ser falsa, mas que na maioria
das vezes é verdadeira. Carnéades dizia: "Visto que raramente topamos com uma representação
verdadeira, não devemos recusar-nos a crer na representação que na maioria das vezes diz a verdade: com
efeito, juízos e ações são regulados pela maior ou menor freqüência" (SEXTO EMPÍRICO, Adv. math., VII,
175)- A representação persuasiva, segundo os discípulos de Carnéades, também deve ser coerente
eponderada, ainda que essas características nada acrescentem à sua capacidade persuasiva Obid, VII,
184).
PESQUISA. V. INVESTIGAÇÃO.
PESSIMISMO (in. Pessimisni; fr. Pessimis-me, ai. Pessimismus; it. Pessimismo). Em geral, crença de
que o estado das coisas, em alguma parte do mundo ou em sua totalidade, é o pior possível. Esse termo
começou a ser empregado na Inglaterra, no início do séc. XIX, como antítese do otimismo. Portanto, a
tese do P. poderia ser expressa como a inversão da tese do otimismo, com a asserção de que nosso mundo
é o pior dos mundos possíveis. Mas expresso desta forma o P. é uma metafísica, e pode-se falar em P. só a
propósito da filosofia de Schopenhauer e de seus seguidores. Comu-mente, porém, fala-se em P. também
em sentido mais limitado e parcial, quando ocorre pelo menos uma das teses seguintes:
I
a Na vida humana as dores superam os prazeres, e a felicidade é inatingível. Desta forma, o P. foi
defendido pelo cirenaico Egesias, chamado de "persuasor da morte" (DIÓG. L., II, 8, 94).
2
a
Na vida humana os males superam os bens, de tal modo que ela é um complexo de
PESSOA
761
PESSOA
acontecimentos ruins, ignóbeis ou repugnantes. O P. foi defendido dessa forma pelo Padre Apologista
Arnóbio, no início do séc. IV: para ele, a própria existência do homem é inútil à economia do mundo, que
permaneceria o mesmo se o homem não existisse (Adv. nationes, II, 37).
3
a
A vida é, em geral, mal ou dor. Esta é a tese do P. metafísico, da forma defendida pelo budismo antigo e
por Schopenhauer (Die Welt, I, § 57 ss.).
4
a
O mundo é, em sua totalidade, manifestação de uma força irracional: segundo Schopenhauer, de uma
"vontade de vida" que se dilacera e se atormenta (Die Welt, § 61); segundo E. Hartmann, de um princípio
inconsciente que, ao tornar-se progressivamente ciente, destrói as ilusões que regem o mundo
(Philosophied.es Unbewussten, 1869).
Todas as formas do P. negam a possibilidade de progresso e, em geral, de qualquer melhora no campo
específico em que vigoram. O que elas não negam, no entanto, é o caráter finalista do mundo: admitido e
defendido tanto por Schopenhauer (Die Welt, I, § 28) quanto por Hartmann (Op. cit.- trad. fr., II, p. 65). O
mais estranho é que a essência do otimismo (v.) está justamente no finalismo, e o P. pretende ser a antítese
do otimismo.
PESSOA (gr. Ttpóaomov, úrcóaraoiç; lat. Persona; in. Person; fr. Personne, ai. Person; k. Persona). No
sentido mais comum do termo, o homem em suas relações com o mundo ou consigo mesmo. No sentido
mais geral (porquanto essa palavra foi aplicada também a Deus), um sujeito de relações. É possível
distinguir as seguintes fases desse conceito: I
a
função e relação-substância; 2a
auto-relação (relação
consigo mesmo); 3a
heterorrelação (relação com o mundo).
I
a Essa palavra deriva de persona, que, em latim, significa máscara (no sentido de personagem: in.
Character, fr. Personnage-, ai. Rollé) e foi introduzida com esse sentido na linguagem filosófica pelo
estoicismo popular, para designar os papéis representados pelo homem na vida: Epicteto diz: "Lembra-te
de que aqui não passas de ator de um drama, que será breve ou longo segundo a vontade do poeta. E se
lhe agradar que representes a P. de um mendigo, esforça-te por representá-la devidamente. Faze o mesmo,
se te for destinada a P. de um coxo, de um magistrado, de um homem comum. Visto que a ti cabe apenas
representar
bem qualquer P. que te seja destinada, a outro pertence o direito de escolhê-la" (Manual, 17, trad.
Leopardi; cf. Dissertazioni, I, 29, etc). O conceito de papel, neste sentido, pode ser reduzido ao de
relação: um papel outra coisa não é senão um conjunto de relações que ligam o homem a dada situação e
o definem com respeito a ela. Por isso, a noção de P. revelou-se útil quando foi preciso expressar as
relações entre Deus e o Cristo (considerado como o Logos ou Verbo), e entre ambos e o Espírito, mas ao
mesmo tempo foi fonte de mal-entendidos e heresias. Com efeito, por um lado a relação parecia ter sido
somada — acidentalmente somada — à substância da coisa; este pelo menos era seu conceito na filosofia
tradicional e, em particular, na aristotélica (v. RELAÇÃO). Por outro lado, a própria palavra P., lembrando a
máscara de teatro, parecia implicar o caráter aparente e não substancial da pessoa. Daí nasceram as longas
disputas trinitárias que caracterizam a história dos primeiros séculos do Cristianismo e que levaram às
decisões do Concilio de Nicéia (325). Para evitar a associação entre a noção de P. e a de máscara, os
escritores gregos adotaram, em vez de pró-sopon, a palavra hypóstasis, que, em seu significado de
"suporte", revela as preocupações que sugeriram a escolha. Mas sobre o caráter acidental que a relação
parece ter por natureza, muitos padres da Igreja acharam melhor simplesmente negar que a P. fosse
relação, e insistir na sua substancialidade. Era o que fazia, p. ex., S. Agostinho, ao afirmar que P. significa
simplesmente "substância", e que por isso o Pai é P. em relação a si mesmo (ad sé), e não em relação ao
Filho, etc. (De Trin., VII, 6). Com base nisso, Boécio dava a definição de P. que se tornou clássica em
toda a Idade Média: "P. é a substância individual de natureza racional" (De duabus naturis et una persona
Christi, 3 P. L., 64, col. 1345). Mas, como nota S. Tomás de Aquino (S. Th., I, q. 29, a. 4, contra), o
próprio Boécio admitia que "todo atinente às P. significa uma relação"; além disso, não havia outra
maneira de esclarecer o significado das pessoas divinas, senão a de esclarecer as relações entre elas, com
o mundo e com os homens. S. Tomás de Aquino, portanto, em um de seus textos mais notáveis pela
clareza e força filosófica (prescindindo do significado teológico-religio-so), ao elucidar o dogma
trinitário, restabelece o significado do conceito de P. como relação, mesmo afirmando simultaneamente a
substan-
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762
PESSOA
cialidade da relação in divinis. "Não há distinção em Deus, a não ser em virtude das relações de origem.
Contudo, em Deus a relação não é como um acidente inerente ao sujeito, mas é a própria essência divina,
de tal modo que subsiste do mesmo modo como subsiste a essência divina. Assim como a divindade é
Deus, a paternidade divina é Deus Pai, que é P. divina: portanto, a P. divina significa a relação enquanto
subsistente, isto é, significa a relação na forma da substância, que é a hipóstase subsistente na natureza
divina, embora aquilo que subsiste na natureza divina outra coisa não seja senão a natureza divina" (S.
Th., I, q. 29, a. 4). Deste modo, ao lado do caráter substancial ou hipos-tático da P., era energicamente
ressaltado o seu significado de relação. Isto no que se refere às P. divinas. No que concerne à P. em geral,
S. Tomás de Aquino afirmava que, à diferença do indivíduo, que por si é indistinto, "a P., numa natureza
qualquer, significa o que é distinto nessa natureza, assim como na natureza humana significa a carne, os
ossos e a alma que são os princípios que individualizam o homem" (Ibid., I, q. 29, a. 4). Portanto,
segundo S. Tomás de Aquino, mesmo no sentido comum a P. é distinção e relação.
2- A partir de Descartes, ao mesmo tempo em que se enfraquece ou diminui o reconhecimento do caráter
substancial da P., acentua-se a sua natureza de relação, especialmente de auto-relação ou relação do
homem consigo mesmo. O conceito de P. neste sentido identifica-se com o de Eu como consciência, e é
analisado sobretudo no que se refere àquilo que se chama de identidade pessoal, ou seja, unidade e
continuidade da vida consciente do Eu. Lo-cke afirma que a P. "é um ser inteligente e pensante que possui
razão e reflexão, podendo observar-se (ou seja, considerar a própria coisa pensante que ele é) em diversos
tempos e lugares; e isso ele faz somente por meio da consciência, que é inseparável do pensar e essencial
a ele" (Ensaio, II, 27, 11). A P. é aqui identificada com a identidade pessoal, com a relação que o homem
tem consigo mesmo, e esta última com a consciência. Leibniz está de acordo com Locke nesse aspecto,
mas insiste também na identidade física ou real como outro componente da P., além da identidade moral
ou da consciência (Nouv. ess., II, 27, 9). A relação consciente do homem consigo mesmo torna-se, a partir
de então, característica fundamental da pessoa. Wolff diz: "A P. é o ente que
conserva a memória de si mesmo, ou seja, lembra-se que é o mesmo que foi antes, neste ou naquele
estado" (Psychol. rationalis, § 741). E Kant analogamente afirma: "O fato de o homem poder representar
seu próprio eu eleva-o infinitamente acima de todos os seres vivos da terra. Por isso, ele é uma P., e por
causa da unidade de consciência persistente através de todas as alterações que podem atingi-lo, é uma só e
mesma P." (Antr., § 1). Hegel entendia por P. o sujeito autoconsciente enquanto "simples referência a si
mesmo na própria individualidade" (Fil. do dir., § 35). Lotze diz: "A essência da P. não se reporta a uma
oposição passada ou presente do eu ao não eu, mas consiste no imediato ser por si" (Mikrokosmus, I,
1856, p. 575). E Renouvier diz: "A consciência toma o nome de P. quando é levada ao grau superior de
distinção e extensão no qual atinge o conhecimento de si mesma e do universal, bem como o poder de
formar conceitos e aplicar as leis fundamentais do espírito, que são as categorias" (Nouvelle
monadologie, 1899, p. 111). Visto que a P. é, neste sentido, simplesmente a relação do homem consigo
mesmo (o que é a definição da consciência) identifica-se com a consciência, e essa identificação é o único
dado conceptual que se pode achar na exaltação retórica da P. que caracteriza algumas formas
contemporâneas de personalismo (v.).
3
a
Contra a interpretação acima de P. estão obviamente as posições filosóficas que se recusam a reduzir o
ser do homem à consciência e fazem polêmica contra a forma mais radical dessa interpretação, que é o
hegelianismo. Neste sentido, a antropologia da esquerda he-geliana e do marxismo, apesar de não se ter
preocupado, abertamente, em esclarecer o conceito de P., constitui o início de uma renovação desse
conceito ou a evidenciação de um aspecto sobre o qual a tradição filosófica se calara: a P. humana é
constituída ou condicionada essencialmente pelas "relações de produção e de trabalho", de que o homem
participa com a natureza e com os outros homens para satisfazer às suas necessidades (cf. MARX,
Deutsche Ideologie, I). Por outro lado, a doutrina moral kantiana já caracterizara o conceito de P. em
termos de heterorrelação, ou seja, relação com os outros. Quando Kant dizia que "os seres racionais são
chamados de pessoas porque a natureza deles os indica já como fins em si mesmos, como algo que não
pode ser empregado unicamente como meio" (Grundlegung
PESSOA
763
PIET1SMO
Zur Met. der Sitten, II), declarava que a natureza da P., do ponto de vista moral, consiste na relação
intersubjetiva. No entanto, foi só com a fenomenologia que o conceito de P. como he-terorrelação
ingressa explicitamente na filosofia. Husserl, considerando o eu como o "pólo da vida intencional ativa e
passiva e de todos os hábitos criados por ela" {Cart. Med., § 44), acentuava essa relação com outra coisa,
em que consiste a intencionalidade. Mas é sobretudo com Scheler que a P. é explicitamente definida como
"relação com o mundo". Segundo ele, a P. é definida essencialmente por essa relação, assim como o eu é
definido pela relação com o mundo externo, o indivíduo pela relação com a sociedade, o corpo pela
relação com o ambiente. Segundo Scheler, "o mundo nada mais é que correlação objetiva da P.; portanto,
a cada P. individual corresponde um mundo individual" {Formalismus, 1913, p. 408). As esferas objetivas
que se podem distinguir no mundo (objetos internos, objetos externos, objetos corpóreos, etc.) tornam-se
concretos apenas enquanto partes de um mundo correlativo a uma P., enquanto domínio das
possibilidades de ação da própria P. A P., neste sentido, não deve ser confundida com a alma, com o eu ou
com a consciência: um escravo, p. ex., é todas essas coisas, mas não é P. porque não tem possibilidade de
agir sobre o próprio corpo, e assim um elemento de seu mundo escapa-lhe ilbid., p. 499). "A P." — diz
ainda Scheler — "só se dá onde se dá um poder fazer por meio do corpo, mais precisamente um poder
fazer que não se fundamenta apenas na lembrança das sensações ocasionadas pelos movimentos externos
e pelas experiências ativas, mas que precede o agir efetivo ilbid., p. 499)- Não obstante os numerosos e
nem sempre coerentes vaivéns metafísicos a que Scheler submeteu sua doutrina, seu conceito de P. como
de "relação com o mundo" foi fecundo, inclusive porque assumido como ponto de partida da análise
existencial de Heidegger {Sein und Zeit, § 10); esta se centrou precisamente no conceito da P. humana, de
existência, como relação com o mundo.
Esse conceito de P., que, como vimos, não coincide com o de eu, foi formulado em termos análogos e é
geralmente empregado nas ciências sociais. A definição habitualmente recorrente nessas ciências, de P.
como "o indivíduo provido de status social", faz referência à rede de relações sociais que constituem o
status da pessoa. A consideração da P. como unidade individual, com a qual se lida no domínio
considerado por essas ciências, corresponde à mesma determinação conceituai do termo como agente
moral, sujeito de direitos civis e políticos ou, em geral, membro de um grupo social. O homem é P.
porque, nos papéis que desempenha, é essencialmente defiido por suas relações com os outros.
PESSOA JimÍDICA/CIVIiycOLETIVA (lat. Persona civilis; in. furistic person; fr. Personne juridique,
ai. Juristische Person; it. Persona civilé). Segundo Hobbes, P. neste sentido é "aquilo a que se atribuem
palavras e ações humanas, próprias ou alheias": se à P. são atribuídas ações próprias, trata-se de uma P.
natural; se lhe são atribuídas ações alheias, trata-se de P. fictícia {De bom., 15, § 1). Esta definição de
Hobbes é a mais genérica e ao mesmo tempo a mais exata das definições da P. civil e jurídica já dada
pelos filósofos. O próprio Hegel define a P. neste sentido como genérica "capacidade jurídica" {Fil. do
dir, § 36).
PETIÇÃO DE PRINCÍPIO (lat. Petitio principií). É a conhecidíssima falácia (v.), já analisada por
Aristóteles {Top., VIII, 13,162 b; El. sof, 5, 167 b; An.pr., II, 16, 64 b), que consiste em pressupor, na
demonstração, um equivalente ou sinônimo do que se quer demonstrar (cf. PEDRO HISPANO, Summ. log.,
753). G. P.
PICNÁTOMOS (ai. Pyknatomerí). Foi esse o nome que Haeckel deu aos átomos, dotados de movimento
e sensibilidade, que ele julgava elementos constitutivos de todas as formas de ser, por serem produzidos
por condensação (picnose) da matéria primitiva (WELTRÀTSEL, 1899; trad. it., 1904, p. 296 ss.).
PIEDADE. V. COMPAIXÃO.
PIETISMO (in. Pietism; fr. Piétisme-, ai. Pietismu; it. Pietismó). Reação contra a ortodoxia protestante
que ocorreu no norte da Europa, especialmente na Alemanha, na segunda metade do séc. XVII. Foi
comandada por Felipe Spener (1635-1705), e um de seus expoentes foi o pedagogo August Franke (1663-
1727). O P. pretendia voltar às teses originais da Reforma protestante: livre interpretação da Bíblia e
negação da teologia; culto interior ou moral de Deus e negação do culto externo, dos ritos e de qualquer
organização eclesiástica; compromisso com a vida civil e negação do valor das denominadas "obras" de
natureza religiosa. Deste último aspecto deriva a aceitação de muitos ensinamentos de caráter prático e
utilitário nas
PBRRONISMO
764
PLÁSTICA, NATUREZA
instituições educacionais pietistas (cf. A RITSCHL, Geschichte des Pietismus, 3 vol., 1880-86).
PIRRONISMO (in. Pyrrhonism; fr. Pyrrho-nisme, ai. Pyrrhonismus-, it. Pirronismó). Forma extrema do
ceticismo grego, tal como foi defendida por Pírron de Élis, que viveu no tempo de Alexandre Magno
(Pírron acompanhou-o em sua expedição ao Oriente) e morreu por volta do ano 270 a.C. Conhecemos sua
doutrina pelos Silloi (versos jocosos) de Tímon de Fliunte e pelas exposições de Diógenes Laér-cio e
Sexto Empírico. A tese fundamental do P. é a necessidade de suspender o assentimento. Visto que para o
homem as coisas são ina-preensíveis, a única atitude legítima é a de não julgá-las verdadeiras ou falsas,
nem belas ou feias, nem boas ou ruins, etc. Não julgar também significa não preferir ou não evitar: assim,
a suspensão do juízo é já por si mesma ataraxia, ausência de perturbação. Diógenes Laércio conta que
Pírron caminhava sem olhar para nada e sem afastar-se de nada, arrostando carros, se os encontrasse,
precipícios, cães, etc. (DIÓG. L., LX, 62).
Mais tarde houve um retorno ao P., entre o fim do último século a.C. e o fim do II século d.C. por obra de
Enesidemos de Cnossos (que ensinou em Alexandria), de Agripa e do médico Sexto Empírico. Este
último, que atuara entre os anos 180 e 210 d.C, deixou três obras: Hipotipose pirrônica, Contra os
dogmáticos e Contra os matemáticos, que constituem uma síntese de todo o ceticismo antigo. A tese
pirrônica da suspensão do assentimento é rigorosamente mantida, mas, como guia para a conduta da vida,
são adotadas a aparência sensível e as normas da vida comum {Pirr. hyp., I, 21) (cf. MARIO DAL PRA, IO
scetticismo greco, 1950).
PISTIS SOPHIA. Segundo a cosmogomia dos gnósticos, é o último dos Eons (v.) (emanações), ou eon
decaído, que dá origem à matéria (HIPÓLITO, Philosophumena, VI, 30 ss.) (cf. GNOSTICISMO).
PUAGORISMO (in. Pythagoreanism, fr. Py-thagorisme, ai. Pythagoreismus, it. Pitagorismo). Doutrina
da antiga escola pitagórica; pouco ou nada deve ao seu fundador, Pitágoras, sobre quem pouco se sabe
com certeza e que provavelmente nada escreveu. As teses características do P. foram as seguintes:
\- metempsicose{v.), nas quais se baseavam as crenças místicas e os ritos da seita;
2- os números constituem os princípios ou os elementos constitutivos das coisas; esta doutrina, por meio
do platonismo, também presidiram os primórdios da ciência moderna;
3
a
os corpos celestes (que para os pitagó-ricos eram dez, por razões de simetria) giram todos em torno de
um fogo central {Lestia), do qual o sol seria um reflexo. Esta é a primeira manifestação daquilo que, na
idade moderna, viria a ser o sistema de Copérnico. (Cf. Ipi-tagorici, testimonianze e frammenti, aos
cuidados de Maria Timpanaro Cardini, Florença, 1958 e a bibliografia aí contida.)
PLANO (in. Plane, fr. Plan; ai. Schicht, it. Piano). Esta noção é empregada em filosofia para designar
graus ou níveis do ser, caracterizados por qualidades próprias, não redutíveis às de outros graus ou níveis.
O conceito de P. foi introduzido com esse sentido por Boutroux: "No universo é possível distinguir
diversos mundos, que seriam como P. sobrepostos uns aos outros. Acima do mundo da pura necessidade,
que é a quantidade sem qualidade, idêntico ao nada, podem-se distinguir: o mundo das causas, o mundo
das noções, o mundo físico, o mundo vivo e o mundo pensante" {De Ia contingence des lois de Ia nature,
1874, ConcL). Segundo Boutroux, cada P. é caracterizado: ls
por certa dependência do P. inferior; 2- pela
irredutibilidade de suas qualidades fundamentais e de suas leis específicas à qualidade ou às leis do P.
inferior. Nisso consistiria a contingência da realidade. Concepção análoga foi apresentada por N.
Hartmann, que distinguiu quatro P. da realidade: inorgânico, orgânico, psíquico e espiritual {Der Aufbau
der realen Welt, 1940). Hartmann também admite que cada P. da realidade é regido por leis próprias e
irredutíveis, mas, ao contrário de Boutroux, acentua a dependência dos P. superiores em relação aos
inferiores. P. ex., as leis do mundo psíquico não são redutíveis às do mundo orgânico, mas as pressupõe,
ácrescentado-se-lhes: representam, por isso, um supradeterminismo, que se soma ao determinismo das
leis inferiores. Portanto, a conclusão a que chega a análise da estratificação do ser feita por Hartmann não
é a contingência, e sim a supranecessidade (v. LIBERDADE).
PLÁSTICA, NATUREZA (in. Plastic nature, fr. Nature plastique, ai. Plastisch Natur, it. Natura
plástica). A força P. ou formadora, dirigida por Deus e dele dimanada, mas diferente, à qual está confiada
a tarefa de or-
PLATONISMO
765
PNEUMA
ganizar a matéria. É o conceito de natureza ectipa, admitido pelos platônicos de Cambrid-ge (v. ÉCTIPO).
PLATONISMO (in. Platonism; fr. Platonis-me, ai. Platonismus, it. Platonismó). Os elementos da
doutrina de Platão considerados característicos desde Aristóteles podem ser re-capitulados da seguinte
maneira:
1
Q
A doutrina das idéias, segundo a qual são objetos do conhecimento científico entidades ou valores que
têm um status diferente do das coisas naturais, caracterizando-se pela unidade e pela imutabilidade (v.
IDÉIA). Com base nesta doutrina, o conhecimento sensível, que tem por objeto as coisas na sua
multiplicidade e mutabilidade, não têm o mínimo valor de verdade e podem apenas obstar à aquisição do
conhecimento autêntico.
2- A doutrina da superioridade da sabedoria sobre o saber, ou seja, do objetivo político da filosofia, cuja
meta final é a realização da justiça nas relações humanas e portanto em cada homem (v. SABEDORIA).
3
fi A doutrina da dialética como procedimento científico por excelência, como método através do qual a
investigação conjunta consegue, em primeiro lugar, reconhecer uma única idéia, para depois dividi-la em
suas articulações específicas (v. DIALÉTICA).
Estes são também os três aspectos polêmicos que opôs Aristóteles e Platão; por marcarem a diferença
entre P. e aristotelismo, serviram para caracterizar este último ao longo dos séculos. E óbvio que não
esgotam a doutrina original de Platão, que, portanto, não coincide com o "P".
É preciso notar que as teses acima expostas não caracterizam o denominado P. da Renascença. Este, na
realidade, é um neoplatonismo que lança mão das teses fundamentais do neoplatonismo antigo (v.).
PLEROMA (gr. JiA.iípco(4.a). Segundo o gnóstico Valentim (séc. II), a totalidade da vida divina plena
ou perfeita (IRENEU, Adv. haer., I, 11, D.
PLURALISMO (in. Pluralism- fr. Pluralis-me, ai. Pluralismus; it. Pluralismo). 1. A partir de Wolff, este
termo foi contraposto a egoísmo (v.) como "a maneira de pensar em virtude da qual não se abarca o
mundo no eu, mas nos consideramos e nos comportamos apenas como cidadãos do mundo" (Kant, Antr.,
I, § 2). Mas enquanto o termo egoísmo continuou designando uma atitude moral, visto que, para a
doutrina metafísica correspondente, prevaleceu solipsismo(y?>, o termo P., no uso que dele se fez em
seguida, assumiu um significado metafísico, passando a designar a doutrina que admite pluralidade de
substâncias no mundo. A expressão típica dessa doutrina é a mo-nadologia de Leibniz, e foi neste sentido
que o termo voltou a ser usado por alguns espiritualistas modernos (J. Ward, TheRealm ofEnds or
Pluralism and Theism, 1912; W. James, A Plu-ralistic Universe, 1909). James insistiu particularmente na
exigência proposta pelo P.: a de não considerar o universo como massa compacta, em que tudo está
determinado no bem ou no mal e não há lugar para a liberdade, mas sim como uma espécie de república
federativa na qual os indivíduos, apesar de solidários entre si, conservem autonomia e liberdade. O
universo pluralista, segundo James, é um pluriverso ou multiverso, sua unidade não é a implicação
universal ou integração absoluta, mas continuidade, contigüidade e concatena-ção: é uma unidade de tipo
sinequia, no sentido atribuído a esta palavra por Peirce {A Plu-ralistic Universe, p. 325). Um universo
assim distingue-se do universo monadológico de Leibniz justamente pelo caráter não absoluto nem
necessitante da unidade que o constitui. Até mesmo Deus, no universo pluralista, é finito.
2. Na terminologia contemporânea, designa-se freqüentemente com este nome o reconhecimento da
possibilidade de soluções diferentes para um mesmo problema, ou de interpretações diferentes para a
mesma realidade ou conceito, ou de uma diversidade de fatores, situações ou evoluções no mesmo
campo. Assim, fala-se em "P. estético" quando se admite que uma obra de arte pode ser considerada
"bela" por motivos diferentes, que nada têm a ver um com o outro; fala-se em P. sociológico quando se
admite ou se reconhece a ação de vários grupos sociais relativamente independentes uns dos outros.
PNEUMA (gr. 3ive0(J.a; lat. Spiritus; in. Pneuma-, fr. Pneuma; ai. Pneuma-, it. Pneumd). Este termo só
ganhou significado técnico com os estóicos, que com ele designaram o espírito, ou sopro animador, com
que Deus age sobre as coisas, organizando-as, vivificando-as e diri-gindo-as. Diógenes Laércio diz: "Para
os estóicos a natureza é um fogo artífice destinado a gerar, isto é, um P. da espécie do fogo e da atividade
formativa (VII, 156; Plut., De stoic.
PNEUMÁTICOS
766
POESIA
repugn., 43, 1054). Virgílio aludia a essa concepção com versos famosos: "Spiritus intus alit Totamque
infusa per artus, Mens agitat molem et totó se corpore miscet" (En., VI, 726), aos versos recorria
Giordano Bruno para ilustrar sua concepção do Intelecto artífice ou "ferreiro do mundo" (De Ia causa,
princípio e uno, II). Os magos do Renascimento falavam no mesmo sentido do espírito através do qual a
alma do mundo age sobre todas as partes do universo visível (Agripa, De occulta philosophia, I, 14). No
livro da Sabedoria(l, 5-7, etc), o P. é entendido no sentido estóico. E em sentido análogo, S. Paulo fala do
"corpo pneumático", que ele contrapunha ao "corpo psíquico" ou animal como corpo vivo e vivificante
que ressurgirá depois da morte (I Cor., XIV, 44 ss.). Na tradição cristã, P. é o Espírito Santo, do qual S.
Tomás de Aquino dizia: "O nome espírito nas coisas corpóreas parece significar certo movimento ou
impulso, visto que chamamos de espírito a respiração e o vento. Mas é próprio do amor mover e impelir a
vontade do amante em direção ao ser amado. E como a pessoa divina age pelas vias do amor, graças ao
qual Deus é convenientemente amado, ela chama-se Espírito Santo" (S. Th., I, q. 36, a. 1). Finalmente, da
mesma doutrina do espírito vivificante deriva a dos espíritos "psíquicos", "animais" ou "corpóreos", que
foram admitidos pela medicina antiga (v. PNEUMÁTICOS) e pela medieval, sendo mencionada muitas
vezes pelos filósofos: os espíritos animais foram mencionados por S. Tomás de Aquino (In Sent., IV, 49,
3; cf. S. Th., I, q. 76, a. 7, ad. 2S
) e mais tarde por Telésio (De rer. nat., V, 5), por Bacon (Nov. Org., II, 7;
De augm. scient., IV, 2), por Hobbes (De corp., 25, 10) e especialmente por Descartes, que reexpôs a
doutrina de seu próprio ponto de vista (Pass. de 1'âme, I, 10).
No sentido comum de ar ou sopro, essa palavra é usada por alguns filósofos que consideram a alma como
ar: p. ex., por Anaxímenes, cuja doutrina é um corolário do princípio de que tudo é ar (Fr, 2, Diels), e por
Epicuro (Ad Herod., 63).
PNEUMÁTICOS (gr. TrveuuáxiKoi; lat. Spi-ritales-, in. Pneumatics-, fr. Pneumatiques-, ai.
Pneumatiker, it. Pneumaticí). Foram indicados com este termo: I
a
os seguidores da escola médica de
Galeno, que, inspirando-se nos estói-cos, identificavam no pneuma (v.) o princípio da vida; distinguiam: o
pneuma psíquico, que reside no cérebro, o pneuma zoótico ou animal, que reside no coração, e o pneuma físico ou natural, que reside no fígado, atribuindo a cada um deles
funções especiais no organismo; 2a
alguns padres da Igreja e alguns gnósticos, que ressaltaram a distinção
presente no Novo Testamento (v. PNEUMA) entre corpo psíquico ou animal e corpo P., insistindo na
superioridade deste último; 3a
alguns químicos dos sécs. XVII e XVIII (Boyle, Black, Cavendish e
outros), que iniciaram as investigações sobre os gases e descobriram certo número de elementos e
compostos gasosos.
PNEUMATOLOGIA (in. Pneumatology, fr. Pneumatologie, Pneumatique; ai. Pneuma-tologie,
Pneumatik, it. Pneumatologid). Leibniz introduziu o termo P. para indicar "o conhecimento de Deus, das
almas e das substâncias simples em geral" (Nouv. ess., Avant-propos, Op., ed. Erdmann, p. 199). Este
termo pretendia significar "ciência dos espíritos" e foi retomado por Wolff para indicar o conjunto da
psicologia e da teologia natural (Log., 1728, Disc. Pref., § 79). Crusius adotava o termo P. para indicar "a
ciência da essência necessária de um espírito e das distinções e qualidades que podem ser atribuídas
apriori" (Entwurf der not-wendigen Vernunftwahrheiten, § 424). Ros-mini excluía da P. a consideração de
Deus e a restringia ao estudo dos "espíritos criados", isto é, da alma humana e dos anjos (Psicol, 1850, §
27). D'Alembert restringia o termo à significação "da primeira parte da ciência do homem", que é "o
conhecimento especulativo da alma humana", que ele indicava também com o nome de metafísica
particular. Para D'Alembert, o conhecimento das operações da alma constituía o objeto da lógica e da
moral (Discours préliminaire de lEncyclopédie, em ÇEuvres, ed. Condorcet, 1853, p. 116). Kant
observava a respeito que a psicologia racional nunca poderá tornar-se pneumatologia, ou seja, ciência
propriamente dita, da mesma maneira como a teologia não pode tornar-se teosofia (Crít. do Juízo, § 89)-
Esse termo hoje está completamente em desuso.
PODERES DO ESTADO. V. ESTADO POESIA (gr. 7COÍT|aiç; lat. Poesia; in. Poetry, fr. Poésie, ai.
Dichtung; it. Poesia). Forma definida da expressão lingüística, que tem como condição essencial o ritmo.
Podem-se distinguir três concepções fundamentais: I
a
a P. como estímulo ou participação emotiva; 2- a P.
como verdade; 3- a P. enquanto modo privilegiado de expressão lingüística.
POESIA
767
POESIA
\- A concepção de P. como estímulo emotivo foi exposta pela primeira vez por Platão: "A parte da alma
que, em nossas desgraças pessoais, tentamos refrear, que tem sede de lágrimas e gostaria de suspirar e
lamentar-se à vontade — pois é essa a sua natureza — é justamente a parte a que os poetas dão satisfação
e prazer. (...) Quanto ao amor, à cólera e a todos os movimentos dolorosos ou agradáveis da alma, que são
inseparáveis de todas as nossas ações, pode-se dizer que sobre eles a imitação poética produz os mesmos
efeitos, visto que, embora fosse preciso estancá-los, ela os irriga e nutre, transformando-nos em servos
das faculdades que, ao contrário, deveriam obedecer-nos para que nos tornássemos mais felizes e
melhores" (Rep., X, 606 a-d). Platão observa que o lado emocional da arte não é menor por tratar de
emoções alheias, porque "necessariamente as emoções alheias passam a ser nossas" (Ibid., 606 b). Não há
dúvida, portanto, de que para Platão a característica fundamental da P. imitativa (assim como da razão de
sua condenação) é a participação emocional em que ela se baseia, bem como o reforço das emoções que
ela consegue com tais participações. Giambattista Viço não só estendeu ao universo inteiro a participação
emotiva, considerada própria da P., como também eliminou o caráter condenatório que se encontra em
Platão. "O sublime trabalho da P." — escreveu ele — "é dar sentido e paixão às coisas insensatas, sendo
propriedade das crianças de tomar nas mãos coisas inanimadas e, brincando, conversar com elas como se
fossem pessoas vivas. Esta dignidade filológico-filosófica comprova que os homens do mundo criança
foram, por natureza, poetas sublimes" (Scienza nuova, 1744, Degn. 37). Portanto, segundo Viço, a P. está
ligada aos "robustos sentidos" e às "vigorosíssimas fantasias" dos homens primitivos ou brutos; seu
tríplice objetivo é "achar fábulas sublimes que se adaptem aos interesses populares", "perpetuar ao
máximo" e "ensinar o vulgo a agir virtuosamente" (Ibid., II., cf. Lettera a Gherardo degli Angioli). Deste
ponto de vista, P. e filosofia são antípodas, e "quanto mais robusta é a fantasia, tanto mais fraco é o
raciocínio" (Ibid., Degn. 36). Esse mesmo conceito de P. como estímulo ou participação emocional achase na teoria da empatia (v.), que considera a atividade estética como a projeção das emoções do indivíduo
no objeto estético. Segundo o principal defensor dessa teoria, Theodor Lipps, a
empatia (v.) é um ato original, essencialmente independente da associação de idéias e profundamente
arraigado na própria estrutura do espírito humano (Àsthetik I, 1903, pp. 112 ss.): deste modo, é postulada
como uma faculdade à parte, à qual está confiada a função de animar a materialidade bruta do mundo
exterior, tornando o mundo mais familiar e agradável ao homem. Com base na distinção entre o uso
simbólico da linguagem e o seu uso emocional, atribuiu-se à P. "a forma suprema da linguagem emotiva",
cujo único objetivo é estimular "emoções e atitudes" (I. A. RICHARDS, Principies of Literary Criticism,
1924; 14a
ed., 1955, p. 273). A função simbólica (ou científica) da linguagem consiste em simbolizar a
referência ao objeto e em comunicar essa referência ao ouvinte, levando-o a reconhecer a referência ao
mesmo objeto. A função emotiva, por sua vez, consiste em exprimir emoções, atitudes, etc, e em evocálos no ouvinte: funções que podem ser incluídas na da "evocação", que é o estímulo da emoção (C. K.
OGDEN, I. A RICHARDS, The Meaning ofMeaning, 1923, 10a
ed., 1952, p. 149). Obviamente, este ponto de
vista não passa de repetição quase literal da concepção platônica. E não tem significado diferente o modo
como C. Morris definiu o discurso poético: "principalmente discurso valora-tivo e apreciativo", cujo
objetivo é "lembrar e sustentar valores já conhecidos" ou "explorar novos valores" (Signs, Language
andBehavior, 1946, V, 7).
2- A concepção de P. como verdade começa com Aristóteles, que a considerou como tendência à
imitação, para ele inata em todos os homens como manifestação da tendência ao conhecimento (Poet., 6,
1448 b 5-14). Segundo Aristóteles, a imitação poética tem validade cognoscitiva superior à imitação
historiográfica, porque a P. não representa as coisas realmente acontecidas, mas "as coisas possíveis,
segundo a verossimilhança e a necessidade" (Ibid., 1451 a 38). Por isso, ela "é mais filosófica e mais
elevada que a história, porque exprime o universal, enquanto a história exprime o particular. Com efeito,
temos o universal quando um indivíduo de certa índole diz ou faz certas coisas com base na
verossimilhança e na necessidade, e é essa a intenção da P., que dá nome à personagem justamente com
base nesse critério. Por sua vez temos o particular quando dizemos, p. ex., o que Alcibíades fez e o que
lhe aconteceu" (Ibid., 9, 1451 b 1, 10). Estas famosas
POESIA
768
POESIA
observações de Aristóteles eqüivalem a colocar a P. na esfera da verdade filosófica, já que esta capta a
essência necessária das coisas, e no domínio das vicissitudes humanas a essência é constituída pelas
relações de verossimilhança e necessidade, que são objeto da poesia. A P., portanto, não possui um grau
de verdade inferior à filosofia, mas sim a mesma verdade, no domínio que lhe é próprio, o dos feitos
humanos. Esta concepção de P. dominou a tradição filosófica, na qual podemos distinguir duas
interpretações fundamentais: A) a P. tem uma verdade de grau ou natureza diferente da verdade intelectual
ou filosófica; B) a P. contém a verdade filosófica absoluta.
A) A primeira posição está na origem da estética moderna. Baumgarten afirmou que o objeto estético, a
beleza, é "a perfeição do conhecimento sensível enquanto tal", e que por isso ele não coincide com o
objeto do intelecto, que é o conhecimento distinto (Aesthetica, 1750-58, § 14). Como perfeição do
conhecimento sensível, a beleza é universal, mas de uma universalidade diferente do conhecimento,
porque abstrai da ordem e dos signos, realizando uma forma de unificação puramente fenomenal Qbid.,
% 18). Segundo Baumgarten, a P. é, particularmente, "um discurso sensível perfeito", de tal maneira que
seus vários elementos (representações, nexos, palavras ou sinais que as expressam) tendem ao
conhecimento das representações sensíveis (Medita-tiones philosophicae de nonnulis ad poema
pertinentibus, 1735, §§ 1-9). A qualificação "sensível" esclarece o caráter da P.; graças a isso, ela tem por
objeto representações claras, mas que se confundem, ao passo que as representações claras e distintas, ou
seja, completas e adequadas, não são sensíveis, portanto não são poéticas; desse modo, filosofia e P. não
se encontram, pois a primeira exige as distinções de conceitos que a segunda alija de seu domínio
(Medit., cit., § 14). Analogamente Viço afirmava: "A sabedoria poética, que foi a primeira da gentilidade,
teve de começar com alguma metafísica, não a metafísica arrazoada e abstrata dos eruditos de agora, mas
sensiva e imaginativa tal como deve ter sido a de tais primeiros homens, pois eles eram de nenhum
raciocínio, mas de sentidos robustos e vigorosíssimas fantasias" {Sc. nuova, 1744, II, Delia sapienza
poética). Mas foi Hegel quem expressou melhor essa tese: "A P. é mais antiga que a linguagem prosaica
artisticamente formada. Ela é a representação originária da verdade, é o saber no qual o universal não foi ainda separado por sua existência
viva no particular, no qual a lei e o fenômeno, o fim e o meio ainda não foram contrapostos, para serem
depois novamente interligados pelo raciocínio, mas compreendem-se um no outro e um através do outro.
Por isso, a P. não se limita a exprimir através da imagem um conteúdo que já é conhecido por si em sua
universalidade, mas, ao contrário, de acordo com seu conceito imediato, ela permanece na unidade
substancial, onde ainda não ocorreu tal separação nem tal relação" (Vorle-sungen über die Àsthetik, ed.
Clockner, III, p. 239). Com isso, para Hegel, a P. (assim como toda a arte) continua aquém ou abaixo da
filosofia, pois é só nesta que a Idéia se revela ou se realiza em sua verdadeira natureza, que é
universalidade ou razão, não imediação ou imagem; mas a P. pertence à esfera da verdade absoluta, ao
lado da filosofia e da religião (à qual está subordinada). No idealismo de origem romântica, o conceito de
P. continuou sendo substancialmente o expresso por Hegel. Croce, depois de insistir na prioridade da arte
sobre o conhecimento intelectual propriamente dito, portanto em sua relativa autonomia em face da
filosofia (com a qual, porém, nunca negou que a arte compartilhasse o status de conhecimento), acabou
insistindo cada vez mais nas características de totalidade e universalidade da expressão artística, que a
aproximam da verdade filosófica. Ao contrário do sentimento, "a expressão poética é uma teorese, um
conhecer, e por isso mesmo, enquanto o sentimento adere ao particular e, por mais elevado e nobre que
seja em sua origem, move-se necessariamente na unilateralidade da paixão, na antinomia do bem e do mal
e na ansiedade do prazer e da dor, a P. reata o particular ao universal, acolhe com igualdade dor e prazer,
superando-os, e, acima do embate das partes contra as partes, eleva a visão das partes no todo, a harmonia
sobre o contraste, a extensão do infinito sobre a angústia do finito. Este cunho de universalidade e de
totalidade é o seu caráter" (La poesia, 1936, pp. 8-9). Assim, o valor da P. estava justamente em sua
teoreticidade, ou seja, na sua validade cognoscitiva; e vinha a ser o que Hegel já havia dito que era: uma
verdade filosófica que se manifesta na imediação da imagem, e não na universalidade do conceito. B) Ao
lado dessa concepção, há outra que, apesar de estreitamente aparentada, não vê na
POESIA
769
POESIA
P. a aproximação da verdade absoluta, mas a própria verdade absoluta. Schiller já se expressara sobre a
poesia nesses termos. Na obra Sobre a poesia ingênua e sentimental (1795-96), afirmou que o poeta é a
natureza, ou seja, sente naturalmente e portanto imita a natureza, ou sente-se afastado da natureza e vai à
sua procura nostalgicamente, configurando-a como ideal. No primeiro caso, o poeta é ingênuo, como na
antiga Grécia; no segundo caso, é sentimental, como na era moderna. Mas em ambos os casos, a P. é o
absoluto. Com efeito, a P. ingênua é representação absoluta, concluída, total e definitiva; a P. sentimental
é representação do absoluto, de um ideal de perfeição consumado, conquanto longínquo (Werke, ed. Karpeles, XII, pp. 122 ss.). Schiller valeu-se desse aspecto para afirmar resolutamente a superioridade da P.
sobre a filosofia: não hesitava em dizer que "o único homem verdadeiro é o poeta, diante do qual o
melhor filósofo não passa de caricatura" {Epistolãrio Goethe-Schiller, 71-1795; trad. Santangelo). Essa
tese representa sem dúvida um filão importante e bem determinado da concepção romântica da poesia.
Schelling dizia: "A faculdade poética é a intuição originária na sua primeira potência; e vice-versa, a
única intuição produtiva que se repete na mais elevada potência é o que chamamos de faculdade poética"
{System des transzendentalen Idealismus, 1800, VI, § 3). A faculdade poética atualiza a unidade das
atividades consciente e inconsciente, que constitui a natureza do Eu absoluto. "O que chamamos de
natureza é um poema, fechado em caracteres misteriosos e admiráveis. Mas se o enigma pudesse ser
revelado, reconheceríamos nele a odisséia do Espírito, que, por maravilhosa ilusão, buscando-se, foge de
si mesmo" (Ibid). Na filosofia contemporânea, esse ponto de vista foi reexpresso por Heidegger: "AP. é a
nominação fundadora do ser e da essência de todas as coisas; não é um simples dizer qualquer, mas é
dizer pelo qual é revelado inicialmente tudo o que nós debatemos e tratamos depois na linguagem de
todos os dias. Por conseguinte a P. nunca recebe a linguagem como matéria a ser manipulada,
pressuposta, mas, ao contrário, é a P. que começa a possibilitar a linguagem. A P. é a linguagem primitiva
de um povo, e a essência da linguagem deve ser compreendida a partir da essência da P." (Holderlin und
das Wesen der Dicbtung, 1936, § 5). Como linguagem originária, a P. é a própria verdade, isto é, a manifestação ou revelação do Ser (Holzwege, 1950, pp. 252 ss.).
3
a
A terceira concepção fundamental à primeira vista é menos filosófica que as outras, porque não
consiste em atribuir à P. determinada tarefa em dada metafísica, nem em ligá-la a determinada faculdade
ou categoria do espírito, ou em reservar-lhe um lugar na enciclopédia do saber humano, mas apenas em
descobrir certas características que a P. possui em suas realizações históricas mais bem-sucedidas, e em
resumi-las numa definição generaliza-dora. Todavia, é este o único procedimento que pode gerar uma
definição funcional da P., que sirva para expressar e orientar o trabalho efetivo dos poetas. Portanto, para
essa definição os poetas contribuíram mais que os filósofos, apesar de estes também terem por vezes
conseguido captar alguns de seus aspectos importantes. Obviamente, deste ponto de vista, a P., pelo
menos à primeira vista, é apenas um modo privilegiado de expressão lingüística: privilegiado em virtude
de uma função especial a ele atribuída. O privilégio atribuído ao modo poético de expressão é
freqüentemente determinado como "liberdade". Depois de dizer que "as artes da palavra" são a eloqüência
e a P., Kant afirma: "A eloqüência é a arte de tratar uma função do intelecto como livre jogo da
imaginação; a P. é a arte de dar a um livre jogo da imaginação o caráter de função do "intelecto" (Crít. do
Juízo, § 51). Aqui, a noção de "jogo" serve para ressaltar o caráter livre da atividade poética em face de
qualquer outro fim utilitário; a noção de "função do intelecto" serve para designar a disciplina a que se
sujeita a P., mesmo na liberdade de seu jogo. Deste ponto de vista, a função da expressão poética é a
libertação da linguagem de seus usos utilitários e a sua elaboração numa disciplina autônoma. Dewey
insistiu nas mesmas características da expressão poética: "Se, entre prosa e poesia, não há uma diferença
passível de ser definida com exatidão, entre prosaico e poético há um abismo, pois são termos extremos
que limitam tendências da experiência. O prosaico realiza o poder que as palavras têm de exprimir "por
meio da extensão"; o poético, o de exprimir por meio da intensão. O prosaico lida com descrição e
narração, acumulando detalhes; o poético inverte o processo: "condensa e abrevia, dando assim às
palavras uma energia e expansão quase explosiva". Por isso, na P. "cada palavra é imaginativa, assim
como, na verdade,
POESIA
770
POESIA
também o foi na prosa até que, pelo desgaste do uso, as palavras foram reduzidas a simples
enumeradores"; "a força imaginativa da literatura é uma intensificação da função idealizante cumprida
pelas palavras na linguagem comum" (Art as Experience, 1934, cap. 10; trad. it., pp. 284-85). A maior
intensidade de que fala De-wey não é emotiva, mas expressiva: é a maior força do significado das
palavras que não estão desgastadas pelo uso. Ora, confiar à P. a função de conservar e restabelecer na
linguagem a força de significação, de purificá-la, mantê-la eficiente, renová-la e aperfeiçoá-la é o que, de
há um século a esta parte, têm afirmado muitos dos poetas que refletiram sobre o próprio trabalho. As
teses fundamentais da concepção da P. elaborada e pressuposta pelos poetas modernos podem ser
recapituladas da seguinte maneira:
PAP.é independente de qualquer objetivo prático ou utilitário. Este caráter foi expresso pela fórmula da
arte pela arte, à qual aderiram no século passado artistas como Flaubert, Gau-tier, Baudelaire, Walter
Pater, Oscar Wilde e Allan Poe. O alvo contra o qual se dirige essa fórmula é a subordinação da P. à
emoção, à verdade ou ao dever; seu significado positivo é a liberdade da P. no sentido afirmado, p. ex.,
por Kant. Flaubert diz: "Compor versos simplesmente, escrever um romance, cinzelar mármore, eram
coisas boas nos tempos em que não existia a missão social do poeta. Agora qualquer obra deve ter
significado moral, ensinamento bem dosado; é preciso que um soneto tenha alcance filosófico, que um
drama pise nos calos dos monarcas e que uma aquarela enobreça os costumes. A mania de advogar
insinua-se em toda a parte, juntamente com a so-freguidão de discutir, perorar, arengar" (Lettre ã Louise
Colet, 18 de setembro de 1846). No editorial introdutivo do periódico Vartiste (14 de dezembro de 1856),
Gautier proclamava: "Cremos na autonomia da arte; para nós a arte não é um meio para um fim. Um
artista que corre atrás de um objetivo que não seja a beleza em nossa opinião não é artista". A fórmula da
arte pela arte é, portanto, substancialmente a defesa da P. contra qualquer tentativa de torná-la instrumento
de propaganda de um objetivo qualquer.
2- A beleza é o único fim da poesia. Visto que a arte não pode estar subordinada ao bem, à verdade ou a
coisas que pretendam ter tais características, resta-lhe como único fim a beleza, mais precisamente a
beleza formal, que
independe dos conteúdos que lhe são oferecidos pela emoção ou pelo intelecto. Flaubert diz: "Poeta da
forma! Eis a grande palavra inju-riosa que os utilitários lançam em face dos verdadeiros artistas. (...) Não
há belos pensamentos sem belas formas e vice-versa... A quem escreve em bom estilo censura-se o
descuido da idéia, do fim moral; como se a tarefa do médico não fosse curar, a do pintor pintar, a do
rouxinol cantar e como se a finalidade da arte não fosse, antes de tudo, o belo" {Lettre à Louise Colet, 18
de setembro de 1846). E Poe afirmava: "A P., enquanto arte da palavra, é a criação rítmica da beleza. Seu
único árbitro é o gosto: com o intelecto ou com a consciência ela só tem relações colaterais. A não ser por
acaso, ela não cuida absolutamente do dever nem da verdade" ("The Poetic Principie", Works, ed.
Harrison, XIV, p. 275).
3
Q
O caráter da beleza é objetivo; ela está além da experiência emotiva. Flaubert dizia: "Quanto menos se
sente uma coisa tanto mais se tem capacidade para exprimi-la tal qual ela é (tal qual ela é sempre, em si
mesma, na sua universalidade, livre de todas as suas contingências efêmeras). É preciso, porém, ter a
faculdade de fazer-se senti-la, e isso é o gênio" {Lettre â Louise Colet, 6 de julho de 1852). E T. S. Eliot,
apoiando esse conceito, escrevia: "AP. não é um livre movimento da emoção, mas uma fuga da emoção;
não é a expressão da personalidade, mas a fuga da personalidade. Naturalmente, porém, só os que
possuem personalidade e emoção sabem o que pretendemos dizer quando aludimos à necessidade de fuga
dessas coisas. (...) A emoção da arte é impessoal. E o poeta não pode alcançar essa impessoalidade sem
entregar-se inteiramente à obra que deve ser feita" (The Sacred Wood, 1920; trad. it., pp. 124-25). No
mesmo sentido Ungaretti disse: "Toda a minha atividade poética, desde 1919, desenvolvia-se nesse
sentido, um sentido mais objetivo, (...) uma projeção e uma contemplação dos sentimentos nos objetos,
uma tentativa de elevar a idéias e a mitos a minha própria experiência biográfica" {La terra promessa,
Nota de Leone Piccioni).
4
Q
A P. tem caráter construtivo-, a beleza tem caráter construído. Estas foram teses de Poe, Baudelaire e
Valéry. O primeiro descreveu a construção poética como uma espécie de trabalho artesanal ("The
Philosophy of Compo-sition" em Works, ed. Harrison, XIV, p. 196). Baudelaire, por sua vez, insistiu no
conceito da
POESIA
771
POESIA
arte como composição: "Todo o universo visível é só um armazém de imagens e de signos aos quais a
imaginação atribuirá um lugar e um valor relativo; é uma espécie de forragem que a imaginação precisa
digerir e transformar" ("Salon de 1859", CEuvres, ed. Le Dantec, II, p. 232). Mas foi Valéry quem mais
enfatizou o caráter da arte como construção: "As criações do homem são feitas com vistas ao próprio
corpo — e dá a esse princípio o nome de utilidade— ou com vistas à própria alma — e isso ele procura
com o nome de beleza. Mas, por outro lado, quem constrói ou cria, comprometido como está com o resto
do mundo e com o movimento da natureza, que tendem perpetua-mente a dissolver, corromper ou
arruinar o que ele faz, precisa discernir um terceiro princípio, que tenta comunicar às próprias obras,
capaz de exprimir a resistência que estas deverão opor ao seu destino de obras perecíveis. Em suma, ele
cria a solidez e a duração. Eis as grandes características de uma obra completa. Só a arquitetura exige-as
e eleva-as ao ponto culminante. Considero-a a arte mais completa" (Eupalinos, trad. it., pp. 141-42).
Assim, o caráter arquitetônico da arte é condicionado pela resistência que ela encontra nas forças naturais
e pela vitória sobre essa resistência. Por outro lado, um corolário do caráter construtivo ou arquitetônico
da atividade poética é o controle sobre a inspiração, já ressaltado por Baude-laire: "Alimento
substancioso e regular é a única coisa necessária para os escritores fecundos. A inspiração é
decididamente irmã do trabalho cotidiano. Esses dois contrários não se excluem, tanto quanto não se
excluem os contrários que constituem a natureza. A inspiração obedece, tanto quanto a fome, a digestão, o
sono" ("Conseilsauxjeuneslittérateurs", 6, CEuvres, ed. Le Dantec, II, p. 388).
5
Q
A P. tem caráter comunicativo. Flaubert dizia: "O poeta deve simpatizar com tudo e com todos para
compreendê-los e descrevê-los" (Lettre àMlle. Leroyer de Chantepie, 12 de dezembro de 1857). E
Baudelaire: "Prefiro o poeta que está em permanente comunicação com os homens de seu tempo,
trocando com eles pensamentos e sentimentos que se traduzem em linguagem nobre e suficientemente
correta. Situado num dos pontos da circunferência da humanidade, o poeta retransmite na mesma linha,
com vibrações mais melodiosas, o pensamento humano que lhe foi transmitido. O verdadeiro poeta deve
ser uma
encarnaçâo" ("Pierre Dupont", CEuvres, ed. Le Dantec, I, p. 404).
6
B
Deve-se buscar a perfeição formal, que é a exatidão ou precisão expressiva. Flaubert queria que a P.
fosse "tão exata quanto a geometria" (Lettre ã Louise Colet, 14 de agosto de 1853) e afirmava: "Quanto
mais uma idéia é bela tanto mais a frase é harmoniosa. A exatidão do pensamento faz (ou melhor, é) a
exatidão da palavra" (Lettre ã Mlle. Leroyer de Chantepie, 12 de dezembro de 1857). Mallarmé insistiu
nesse aspecto da P.: "A arte suprema consiste em mostrar, com a posse impecável de todas as faculdades,
que se está em êxtase, sem demonstrar de que maneira se chega ao cume" (Lettre à Henri Cazalis, 27 de
novembro de 1863). Valéry escreveu a respeito: "Procurei a exatidão nos pensamentos, para que,
patentemente gerados pela observação das coisas, se transformassem, como por um processo espontâneo,
nos atos da minha arte. Distribuí minhas atenções, refiz a ordem dos problemas; começo onde antes eu
terminava, para ir um pouco mais adiante. (...) Avaro de fantasias, concebo como se perseguisse"
(Eupalinos; trad. it, p. 91). E Ungaretti disse no mesmo sentido: "Eu sonhava com uma P. em que os
mistérios da alma, não atraiçoados nem falseados em seus impulsos, se conciliassem com uma extrema
sabedoria do discurso" (Quaranta sonetti di Shakespeare, Nota intr.). Mallarmé estendeu a preocupação
da exatidão à própria escrita: "O arcabouço intelectual do poema dissimula-se e sustenta-se — acontece
— no espaço que isola as estrofes e o branco do papel: silêncio significativo, de composição tão bela
quanto a dos próprios versos" (Lettre non datée à Charles Morice, cf. Propôs sur Iapoésie, ed. Mondor, p.
164).
7
a
Finalmente, como recapitulaçâo de todos os aspectos acima enumerados da P., também lhe é atribuída a
função de manutenção de uma linguagem eficiente. Essa função foi explicada com toda a energia e
clareza possíveis por Ezra Pound: a função da literatura "não é a coerção ou a persuasão por vias
emocionais" nem a coação a adotar certas opiniões. "Sua função tem a ver com a clareza e o vigor de
qualquer pensamento ou opinião. Diz respeito à preservação e ao esmero dos instrumentos, à saúde da
própria substância do pensamento. Com exceção de casos raros e limitados de invenção nas artes plásticas
ou na matemática, o indivíduo não pode pensar e comunicar o
POÉTICA
772
POLISSBLOGISMO
seu pensamento, o governante e o legislador não podem agir eficazmente e redigir suas leis sem as
palavras, e a solidez e a validade dessas palavras dependem dos cuidados dos malditos e desprezados
literatos" {Literary Essays; trad. it., p. 47). Desse ponto de vista, "a manutenção de uma linguagem
eficiente é tão importante para as finalidades do pensamento quanto em cirurgia é importante manter os
bacilos do tétano distantes das ataduras"; essa função cabe à P., que "é simplesmente linguagem carregada
de significado no máximo grau possível" {Ibid., p. 49). A P. executa essa função de três maneiras; por
isso, são três as espécies de P.: melopéia, na qual "as palavras, além do seu significado comum,
comportam alguma qualidade musical que condiciona o alcance e a direção desse significado"; fanopéia,
que "é a projeção de imagens sobre a fantasia visual"; e logopéia, na qual as palavras são usadas não só
em seu significado direto, mas também em vista de usos e costumes, do contexto, das concomi-tâncias
habituais, das acepções conhecidas e da ironia {Ibid., p. 52). Não há dúvida de que essas observações de
Pound constituem o ponto culminante da estética contemporânea da poesia.
POÉTICA. V. ESTÉTICA. POIÉTTCO (gr. JCOIT|TI.KÓÇ,; in. Poietic; fr. Poiétique, ai. Poietik, it.
Poieticó). Produtivo ou criativo, enquanto diferente de prático. Segundo Aristóteles, a arte é produtiva,
enquanto a ação não é {Et. nic, VI, IV, 1140 a 4). Plotino chamava as causas eficientes de P. {Enn., VI, 3,
18, 28). V. ENCICLOPÉDIA.
POLARIDADE (in. Polarity, fr. Polarité, ai. Polaritàt; it. Polaritã). Conexão necessária de dois
princípios opostos entre si. Neste sentido, o conceito foi empregado por Schelling na obra Sobre a alma
do mundo (1798). A alma do mundo, segundo Schelling, age na natureza por meio das duas forças opostas
de atração e repulsão, cujo conflito constitui o dualismo e cuja unificação constitui a P. da natureza {Werke, I, II, p. 381). Por vezes o conceito de P. foi generalizado, transformando-se em princípio. Na filosofia
contemporânea, isso foi feito por Morris R. Cohen, que não o entendeu como princípio da identidade,
"mas da necessária co-presença e da subordinação recíproca das determinações opostas". Na física, esse
princípio seria representado pela lei de ação e reação e pela lei segundo a qual onde há força há também
resistência. Na biologia, seria expresso
pelo aforismo de Huxley, de que o proto-plasma só consegue viver morrendo continuamente. Na ética,
seria expresso pela interdependência do sacrifício e da realização pessoal {Introduction to Logic, IV, 2;
trad. it., p. 125). POLÊMICO (in. Polemic; fr. Polemique, ai. Polemisch; it. Polemico). Kant entendeu
por "uso P. da razão" a defesa de seus enunciados contra as negações dogmáticas. As negações
dogmáticas dos enunciados racionais são as negações cépticas, consideradas por Kant como as posições
do dogmatismo negativo, simplesmente preparatório com respeito à crítica da razão que é o exame das
limitações e dos limites exatos da razão {Crít. R. Pura, Doutrina transcendental do método, cap. I, seç. 2).
POLIÁDICO (in. Polyadic). Na lógica contemporânea, são qualificados com este termo os enunciados
(ou relações) constituídos por três termos ou mais.- p. ex., o enunciado "Fulano deve dinheiro a Sicrano",
em que aparecem três termos, Fulano, Sicrano e dinheiro (cf. p. ex., DEWEY, Logic, XVI; trad. it., pp. 413
ss.). POLIGÊNESE. V. ORTOGÊNESE. POLIGONIA. Gioberti falou em "P. do catolicismo", que é a
refração da palavra revelada na individualidade de cada um, que, apesar disso, continua una, assim como
o polígono é uno, apesar de ter um número infinito de lados {Riforma cattolica, ed. Balsamo-Crivelli, pp.
147-48). O mesmo que multilateridade.
POLILEMA (in. Polilemma; fr. Polilemme, ai. Polilemma; it. Polilemma).Termo moderno para indicar
um dilema (v.) com três alternativas ou mais (Troxler, Logik., II, 1829, p. 102; B. Erdmann, Logik, 1892,
§ 75).
POLIMATIA (gr. 7r.OAA)ucc8ía). Saber muitas coisas. Heráclito disse: "Saber muitas coisas não ensina
a ter inteligência; senão teria ensinado isso a Hesíodo e a Pitágoras, e ainda mais a Xenofonte e a
Hecateu" {Fr. 40, Diels). Kant chamou de P. o domínio dos conhecimentos racionais, enquanto polihistória seria o saber histórico ou dos fatos, e pansofia seria o conjunto dos dois {Logik, Intr., § VI).
POLISSEMIA (in. Polysemy, fr. Polysémie, ai. Polysémie, it. Polisemid). Diversidade de referências
semânticas (dos "significados") possuídas pela mesma palavra (cf. BRÉAL, Essai de sémantique, cap. 14;
S. ULLMANN, The Principies ofSemantics, 2
a
ed., 1957, pp. 63, 114, 174).
POLISSILOGISMO (in. Polysyllogism; fr. Polysyllogisme, ai. Polysyllogismus-, it. Polisillo-gismó).
Termo empregado no séc. XVIII para
POLITEÍSMO
773
POLÍTICA
indicar um silogismo multíplice ou composto, ou seja, uma cadeia de silogismos. Essa cadeia pode estar
ordenada de tal modo que todo silogismo sirva de fundamento para o que o segue e de conseqüência para
o que o precede. O silogismo da série que contém a razão da premissa de um outro silogismo é chamado
prossilogismo; o que contém a conseqüência de outro silogismo é chamado epissilogismo (v.). Toda
concatenação de raciocínios, portanto, é constituída por prossi-logismos e epissilogismos (WOLFF, Log.,
§§ 492-94; KANT, Logik, § 86; HAMILTON, Lectures on Logic, § 68; B. ERDMANN, Logik, § 85).
POLITEÍSMO (in. Polytheism; fr. Polythéis-me, ai. Polytheismus; it. Politeismó). (Sobre a noção de P.,
v. DEUS, 3, a). O P. está bem longe de ser uma crença primitiva e grosseira, inconciliável com a reflexão
filosófica. Visto que já está presente na distinção entre divindade e Deus, na realidade são politeístas
muitas filosofias às vezes consideradas tipicamente mono-teístas, como p. ex. a de Aristóteles. O P. foi às
vezes explicitamente defendido por filósofos modernos. Hume já observava, em História natural da
religião (1757), que a passagem do P. para o monoteísmo não deriva da reflexão filosófica, mas da
necessidade humana de adular a divindade para obter sua benevolência, e que o monoteísmo é
acompanhado muitas vezes pela intolerância e pela perseguição, visto que o reconhecimento de um único
objeto de devoção leva a considerar absurdo e ímpio o culto de outras divindades (Essay, II, pp. 335 ss.).
Na era moderna, a superioridade do P. foi ressaltada por Renouvier (Psychologie rationelle, 1859, cap.
25) e James 04 Pluralistic Universe, 1909), mas muitas outras doutrinas são politeístas, inclusive a de
Bergson. Max Weber considerou o P. como a luta entre os diversos valores ou as diversas esferas de
valores, entre os quais o homem deve tomar posição, luta que nunca termina com a vitória de um só valor.
Neste sentido, o mundo da experiência nunca chega ao monoteísmo, mas se detém no P. iZwischen zwei
Gesetze, 1916, em Gesammelte Politische Schriften, pp. 60 ss.).
POLÍTICA (gr. 7CoA,ittKií; lat. Política; in. Politics; fr. Politique, ai. Politik, it. Política). Com esse
nome foram designadas várias coisas, mais precisamente: I
a
a doutrina do direito e da moral; 2- a teoria
do Estado; 3a
a arte ou a ciência do governo; 4a
o estudo dos comportamentos intersubjetivos.
I
a O primeiro conceito foi exposto em Ética, de Aristóteles. A investigação em torno do que deve ser o
bem e o bem supremo, segundo Aristóteles, parece pertencer à ciência mais importante e mais
arquitetônica: "Essa ciência parece ser a política. Com efeito, ela determina quais são as ciências
necessárias nas cidades, quais as que cada cidadão deve aprender, e até que ponto" (Et. nic, L, 2, 1094 a
26). Este conceito da P. teve vida longa na tradição filosófica. Hobbes, p. ex., dizia: "A P. e a ética, ou
seja, a ciência do justo e do injusto, do equânime e do iníquo, podem ser demonstradas apriori, visto que
nós mesmos fizemos os princípios pelos quais se pode julgar o que é justo e equânime, ou seus contrários,
vale dizer, as causas da justiça, que são as leis ou as convenções" ÇDehom., X, § 5). Neste sentido,
Althusius dava a seu tratado sobre o direito natural o título de Política methodice digesta (1603), e todas
as obras sobre direito natural foram consideradas tratados de P. (v. DIREITO).
2
a
O segundo significado do termo foi exposto em Política de Aristóteles: "Está claro que existe uma
ciência à qual cabe indagar qual deve ser a melhor constituição: qual a mais apta a satisfazer nossos ideais
sempre que não haja impedimentos externos; e qual a que se adapta às diversas condições em que possa
ser posta em prática. Como é quase impossível que muitas pessoas possam realizar a melhor forma de
governo, o bom legislador e o bom político devem saber qual é a melhor forma de governo em sentido
absoluto e qual é a melhor forma de governo em determinadas condições" (Pol, IV, 1,1288 b 21). Neste
sentido, segundo Aristóteles, a P. tem duas funções: I
a
descrever a forma de Estado ideal; 2a
determinar a
forma do melhor Estado possível em relação a determinadas circunstâncias. Efetivamente, a P. como
teoria do Estado seguiu o caminho utópico da descrição do Estado perfeito (segundo o exemplo da
República de Platão) ou o caminho mais realista dos modos e dos instrumentos para melhorar a forma do
Estado, o que foi feito pelo próprio Aristóteles numa parte de seu tratado. As duas partes, todavia, nem
sempre são facilmente distinguíveis e nem sempre foram distintas. Quando, a partir de Hegel, o Estado
começou a ser considerado "o Deus real" (v. ESTADO) e o caráter da divindade do Estado foi aceito pela
historiografia, a P., enquanto teoria do Estado, pretendeu ter caráter descritivo e normativo ao mesmo
tempo.
POLÍTICA
774
POLITICISMO
Assim, Treitschke esboçava a sua tarefa no seguinte sentido: "A tarefa da P. é tríplice: em primeiro lugar
deve investigar, através da observação do mundo real dos Estados, qual é o conceito fundamental de
Estado; em segundo lugar, deve indagar historicamente o que os povos quiseram, produziram e
conseguiram e por que conseguiram na vida política; em terceiro lugar, fazendo isto, consegue descobrir
algumas leis históricas e estabelecer os imperativos morais" (Politik, 1897, intr.; trad. it., I, pp. 2-3).
Como já na obra de Treitschke, a P. como teoria do Estado muitas vezes foi teoria do Estado como/orf#,
pois este é de fato o significado de qualquer divinização do Estado (v.).
3
a
A P. como arte e ciência de governo é o conceito que Platão expôs e defendeu em Político, com o nome
de "ciência regia" (Pol., 259 a-b), e que Aristóteles assumiu como terceira tarefa da ciência política. "Um
terceiro ramo da investigação é aquele que considera de que maneira surgiu um governo e de que
maneira, depois de surgir, pôde ser conservado durante o maior tempo possível" (Ibid., IV, 1, 1288 b 27).
Foi este o conceito de P. cujo realismo cru Maquiavel acentuou com as palavras famosas: "E muitos
imaginaram repúblicas e principados que nunca foram vistos nem conhecidos como existentes. Porque é
tanta a diferença entre como se vive e como se deveria viver, que quem deixa o que faz pelo que deveria
fazer aprende mais a arruinar-se do que a preservar-se, pois o homem que em tudo queira professar-se
bom é forçoso que se arruine em meio a tantos que não são bons. Donde ser necessário ao príncipe que,
desejando conservar-se, aprenda a poder ser não bom e a usar disso ou não usar, segundo a necessidade"
(Princ, XV). Neste sentido, Wolff definia a P. como "a ciência de dirigir as ações livres na sociedade civil
ou no Estado" ÍLog., Disc, § 65). Esta é a ciência ou a arte política à qual se faz referência mais
freqüentemente no discurso comum. Referindo-se justamente a este conceito, Kant dizia: "Embora a
máxima 'A honestidade é a melhor P.' implique uma teoria infelizmente desmentida com freqüência pela
prática, a máxima igualmente teórica 'A honestidade é melhorque qualquer F'.' é imune a objeções; aliás é
a condição indispensável da P." iZum ewigen Frieden, Apêndice, I). Hegel, por outro lado, dizia: "Já se
discutiu muito sobre a antítese entre moral e P. e sobre a exigência de a segunda conformar-se à primeira.
Sobre isso cumpre
apenas notar, em geral, que o bem do Estado tem um direito completamente diferente do bem do
indivíduo, e que a substância ética, o Estado, tem sua existência, seu direito, imediatamente numa
existência concreta, e não abstrata, e que somente essa existência concreta (e não uma das muitas
proposições gerais, consideradas como preceitos morais) pode ser o princípio de sua ação e de seu
comportamento. Aliás, a visão do suposto erro que sempre deve ser atribuído à P. nesta suposta antítese
baseia-se na superficialidade das concepções de moralidade, de natureza do Estado e de suas relações do
ponto de vista moral" (Fil. do dir., § 337). Estas palavras de Hegel outra coisa não são senão a reiteração
do princípio do ma-quiavelismo. O que Hegel chama de existência do Estado outra coisa não é senão a
realidade efetiva de Maquiavel, que a P. deveria sempre ter presente. Apesar de Hegel ter declarado
superada a antítese entre P. e moral, o conflito entre as duas exigências ainda está vivo na prática política
e na consciência comum, e as formas de equilíbrio, por elas alcançadas, ainda hoje são provisórias e
instáveis.
4
a
Finalmente, o quarto significado de P. começou a ser usado a partir de Comte, e identifica-se com o de
sociologia. Comte deu o nome de Sistema deP. positiva (1851 -54) à sua obra máxima sobre sociologia,
pois julgou que os fenômenos políticos, tanto em coexistência quanto em sucessão, estão sujeitos a leis
invariáveis, cujo uso pode permitir influenciar esses mesmos fenômenos. Foi nesse sentido que G. Mosca
entendeu por P. a ciência da sociedade humana. Justificou esse termo da seguinte maneira: "Chamamos de
ciência política o estudo das tendências acima mencionadas ["leis ou tendências psicológicas constantes,
às quais os fenômenos sociais obedecem"] e escolhemos essa denominação porque foi a primeira a ser
usada na história do saber humano, porque ainda não caiu em desuso e também porque a nova
denominação sociologia, adotada depois de Auguste Comte por muitos escritores, ainda não tem
significação bem determinada e precisa, compreendendo, no uso comum, todas as ciências sociais
{Elementos de ciência política, 1922,1, 1, § II). Mas neste sentido o termo hoje é impróprio.
POLITICISMO (fr. Politisme, ai. Politismus-it. Politicismò). A prevalência ou a excessiva importância
que as exigências políticas às vezes assumem na vida moderna, em detrimento
POLTTOMIA
775
POR SI
de outras exigências, como as científicas, artísticas, morais, religiosas, etc.
POLTTOMIA(fr. Polytomie, ai. Polytomie, it. Politomià). Divisão não dicotômica. Kant observa que a P.
exige intuição: ou a intuição a priori, como acontece com a matemática, ou a intuição empírica, como nas
ciências naturais. Em outros termos, a P. é sempre empírica, enquanto a dicotomia, por ser fundada no
princípio da contradição, é a priori (Logik, § 115).
POLTVALENTE, LÓGICA. V. TERCEIRO EXCLUÍDO, PRINCÍPIO DO.
POLTZETÊTICA. V. INTERROGAÇÃO MÚLTIPLA.
PONTE DOS ASNOS (lat. Pons asinorum; in. Asses' bridge, fr. Pontauxânes; ai. Eselsbrü-cke, it. Ponte
degli asint). Foi chamado deste modo, devido à aparente dificuldade, um diagrama construído pelo lógico
Pedro Tartareto (cuja atividade literária termina entre os anos 1480 e 1490), cujo fim era ajudar o
estudante a encontrar o termo médio entre as várias figuras do silogismo. Esse diagrama é registrado por
Prantl (Geschichte der Logik, IV, p . 206). Por vezes esse termo foi estendido, designando alguma
dificuldade de um ensinamento ou doutrina.
PONTO (lat. Punctum; in. Point; fr. Point; ai. Punkt; it. Puntó). Ao lado do P. matemático e do P. físico,
Leibniz admitiu o P. metafísico, que é a substância espiritual como elemento constitutivo do mundo.
Distinguia do seguinte modo as três espécies de P.: "Os P. físicos são indivisíveis só aparentemente; os P.
matemáticos são exatos, mas são apenas modos; só os P. metafísicos ou de substância, constituídos pelas
formas ou almas, são ao mesmo tempo exatos e reais; sem eles não haveria nada de real porque nas
verdadeiras unidades não haveria multiplicidade" (Système nouveau de Ia nature, 1695, § 11). Os P.
metafísicos não são outra coisa senão as mônadas (v.).
PÔR (gr. TtGfjvm; lat. Ponere, in. Posit; fr. Poser, ai. Setzen; it. Porre). Este verbo foi usado na
linguagem filosófica com dois diferentes significados: I
a
asseverar ou assumir como hipótese; 2a
P. como
ser, produzir.
I
a O primeiro significado já era empregado por Platão e Aristóteles: o primeiro no sentido de estabelecer
uma hipótese (Teet., 191 c), o segundo no sentido de estabelecer uma premissa (An. pr., I, 1, 24 b 19) ou
de admitir uma tese (Top., II, 7, 113 a 28). Correspondentemente, a palavra posição vale genericamente
como asserção, e Kant afirma que a existência
pode ser posta, ou seja, asseverada ou reconhecida, mas não deduzida (Dereinzig mógli-che Beweisgrund
zu einer Demonstration des Daseins Gottes, I, § 2).
2
a
Este verbo foi usado por Fichte no sentido de pôr como ser, produzir ou criar: "O ser cuja essência
consiste puramente em pôr-se como existente é o Eu, como sujeito absoluto. E porque se põe, é; e porque
é, põe-se. O Eu, portanto, é absoluta e necessariamente para o Eu" (Wissenschaftslehre, 1794, § 1). Este
uso é mantido por toda a tradição do idealismo romântico e, em geral, por toda filosofia que identifique
razão com realidade, portanto ato lógico de P. com ato real de produzir.
POR ACIDENTE (gr. Karà o~ou|tepT|KÓç,; lat. Per accidens). Aquilo que é ou acontece sem conexão
necessária com o sujeito do acontecimento, como quando acontece um músico construir; com efeito, entre
ser músico e ser construtor não há conexão (cf. Aristóteles, Met., V, 7, 1017 a 10).
POR IMPOSSÍVEL. V. ABSURDO. PORÍSTICO (in. Poristic; fr. Poristique, ai. Poristie, it.
Poristico). De porisma = corolário. Este termo designa aquilo que é corolário ou concerne a um
corolário.
POR SI (gr. Ka8'aí)"CÓ; lat. Per se, in. By itself; fr. Parsoi; ai. Fürsictí). O que existe em virtude da sua
substância e não por outra coisa; o que existe na consciência e pela consciência. Estes são os dois
significados fundamentais do termo, que remontam respectivamente a Aristóteles e a Hegel.
Aristóteles (Met., V, 18, 1022 a 24 ss.) enumerava cinco significados deste termo:
I
a Diz-se que uma coisa é por si o que ela é em virtude de sua essência necessária ou substância. P. ex.,
Cálias é por si o que ele é substancialmente, isto é, homem;
2
a
Diz-se que uma coisa é por si o que ela é em virtude de uma parte de sua essência necessária, de uma
parte de sua definição (já que a definição expressa a essência necessária). Neste sentido, diz-se que Cálias
é por si animal, porque "animal" faz parte da definição de Cálias;
3
e
Em terceiro lugar, diz-se que uma coisa é por si o que ela é em virtude de uma de suas qualidades ou
determinações primárias. Neste sentido, diz-se que o homem é vivo por si, porquanto a vida é uma de
suas determinações primárias (sendo parte da alma, que é substância do homem);
\ Mi**"-. •'•••'••' ' •
POSIÇÃO .(< 776 . -
POSITIVISMO
4
a
Diz-se por si o que não tem, ou do qual não se considera, uma coisa externa. Neste sentido, o homem é
por si enquanto homem, ou seja, porque sua causa é sua própria substância, e não porque ele é animal,
bípede, etc; 5a
Diz-se que é por si a coisa que é o que a ela pertence propriamente ou que pertence
somente a ela. Neste sentido, pode-se dizer que a alma pensa por si.
Estes cinco significados na realidade são todos integráveis no primeiro, segundo o qual se diz que é por si
a coisa que existe em virtude de sua substância. Com efeito, o 2a
significado refere-se às partes da
substância; o 3a
significado refere-se às qualidades ou determinações que derivam da substância; o 4S
e o
5
S
significados referem-se à causalidade própria da substância. O significado fundamental ou genérico,
segundo o qual é por si o que é em virtude da sua substância, é o mais freqüente na história da filosofia.
Este é, p. ex., o significado da expressão atribuída a S. Tomás de Aquino ou a Duns Scot. S. Tomás de
Aquino afirma que "Deus é o próprio ser subsistente por si" {S. Th., I, q. 44, a. 1), visto que o ser pertence
à essência ou substância de Deus Ubid., I, q. 3, a. 4), e que a alma não pode corromper-se porque é
"forma subsistente por si" {Ibid., I, q. 75, a. 6). Duns Scot reserva o ser por si à forma total e perfeita que
compreende todas as partes, mas que não é parte {Quodl., q. 9, n. 17). Ambos os filósofos designam,
portanto, como por si o ser substancial, apesar de Duns Scot restringir o significado mais que S. Tomás de
Aquino.
POSIÇÃO (gr. Bécriç; lat. Positia, in. Posit; fr. Position; ai. Setzung, Position; it. Posizioné). 1.
Assunção não demonstrada: I
a
da premissa de um raciocínio; 2a
da existência de alguma coisa. ls
No
primeiro sentido, o termo é constantemente usado por Aristóteles (cf. An.post., I, 2, 72 a 15) e por toda a
tradição lógica mesmo recente, na qual às vezes é explicitamente redefinido (cf. H. REICHENBACH, The
Rise of Scientific Philosophy, 1951, p. 240).
2
a
Kant foi o primeiro a distinguir P. relativa, que é o reconhecimento do ser predicativo (ser expresso
pela cópula) que põe em relação duas determinações de uma coisa, e a P. absoluta, que é o
reconhecimento da existência da coisa. Kant dizia: "Em um existente, nada é posto além do que já está no
puro possível (trata-se com efeito de seus predicados), mas através de um existente é posto algo mais que
um puro possível, porque se trata da P. absoluta da
mesma coisa" {Der einzig mõgliche Beweis-grund zu einer Demonstration des Daseins Gottes, 1763, §
3). Para Kant, a P. é o reconhecimento (empírico) de uma existência. No idealismo romântico, a partir de
Fichte, a P. foi entendida como criação. Diz Fichte: "Aquilo cujo ser (ou essência) consiste apenas em
pôr-se como existente é o Eu como sujeito absoluto. Porque se põe, é; e porque é, põe-se"
{Wissenschaftslehre, 1794, § 1). O conceito de P., neste sentido, não se distingue do de criação. Volta a
distinguir-se de criação em Husserl, para quem a P. é a afirmação da existência do objeto intencional. Ele
distinguiu P. atual, que se tem quando o objeto intencional está presente, da P. potencial, que se tem
quando ele não está presente ildeen, I, § 113). Husserl usa também o termo posicionalidade (alemão
Positionalitát) para indicar em geral o caráter, comum a todas as vivências, de pôr o objeto intencional
(como existente, desejado, ou pretendido, etc). Às vezes são chamados de P. os próprios objetos físicos
não definíveis em termos de experiência, mas reconhecidos como existentes apenas como intermediários
úteis entre a experiência e a linguagem (QUINE, From a Logical Point of View, II, 6).
2. Na lógica terminista medieval, uma obrigação (v.), mais precisamente a que consiste em sustentar uma
proposição como verdadeira (Ockham, Summa log., III, III, 40).
POSITIVISMO (in. Positivism; fr. Positivis-me, ai. Positivismus; it. Positivismo). Este termo foi
empregado pela primeira vez por Saint-Simon, para designar o método exato das ciências e sua extensão
para a filosofia {De Ia reli-gion Saint-Simonienne, 1830, p. 3). Foi adotado por Augusto Comte para a sua
filosofia e, graças a ele, passou a designar uma grande corrente filosófica que, na segunda metade do séc.
XIX, teve numerosíssimas e variadas manifestações em todos os países do mundo ocidental. A
característica do P. é a romantização da ciência, sua devoção como único guia da vida individual e social
do homem, único conhecimento, única moral, única religião possível. Como Romantismo em ciência, o P.
acompanha e estimula o nascimento e a afirmação da organização técnico-industrial da sociedade
moderna e expressa a exaltação otimista que acompanhou a origem do industrialismo. É possível
distinguir duas formas históricas fundamentais do P.: o P. social de Saint-Simon, Comte e John Stuart
Mill, nascido da exigência
POSITIVISMO JURÍDICO
|IIBLI0TECA GiWTIJi]
POS-PREDICAMENTOS
de constituir a ciência como fundamento de uma nova ordenação social e religiosa unitária; e o P.
evolucionista de Spencer, que estende a todo o universo o conceito de progresso e procura impô-lo a
todos os ramos da ciência (para o positivismo evolucionista, v. EVOLUCIONISMO). As teses fundamentais
do P. são as seguintes:
1- A ciência é o único conhecimento possível, e o método da ciência é o único válido: portanto, o recurso
a causas ou princípios não acessíveis ao método da ciência não dá origem a conhecimentos; a metafísica,
que recorre a tal método, não tem nenhum valor.
2
a
O método da ciência é puramente descritivo, no sentido de descrever os fatos e mostrar as relações
constantes entre os fatos expressos pelas leis, que permitem a previsão dos próprios fatos (Comte); ou no
sentido de mostrar a gênese evolutiva dos fatos mais complexos a partir dos mais simples (Spencer).
3
a
O método da ciência, por ser o único válido, deve ser estendido a todos os campos de indagação e da
atividade humana; toda a vida humana, individual ou social, deve ser guiada por ele.
O P. presidiu à primeira participação ativa da ciência moderna na organização social e constitui até hoje
uma das alternativas fundamentais em termos de conceito filosófico, mesmo depois de abandonadas as
ilusões totalitárias do P. romântico, expressas na pretensão de absorver na ciência qualquer manifestação
humana.
POSITIVISMO JURÍDICO (in. Juridical positivism; fr. Positivismejuridique, it. Positivismo
giurídicó). Foi esse o nome que Hans Kel-sen deu à sua doutrina formalista do direito e do Estado
{General Theory ofLaw and State, 1945; cf. especialmente o apêndice "A doutrina do direito natural e o P.
jurídico") (v. DIREITO,-ESTADO).
POSITIVISMO LÓGICO (in. Logical Positivism; fr. Positivisme Logique, ai. Neuposi-tivismus; it.
Positivismo lógico). (V. EMPIRISMO
LÓGICO.)
POSITIVO (in. Positive, fr. Positif, ai. Po-sitiv, it. Positivo). 1. O que é posto, estabelecido ou
reconhecido como um fato. Leibniz chamava de "verdades P." as verdades de fato, que se distinguem das
verdades de razão porque constituem "leis que aprouve a Deus dar à natureza" {Théod., Discours, § 2).
No mesmo sentido, fala-se em religião P. como religião
estabelecida de fato, que vigora como um complexo de instituições históricas, ao contrário da religião
natural, que pode não vigorar de fato. Fala-se de direito P. como direito vigente em determinado Estado,
em contraposição ao direito natural, que pode não ter validade de fato. As expressões "fato P." e
"realidade P." têm valor análogo porque designam o fato ou a realidade reconhecida ou reconhecível
como tal em virtude de um método objetivo. Portanto, nesta acepção, o significado fundamental do termo
é aquilo que vigora de fato ou tem realidade efetiva. Comte expressava esse significado ao afirmar:
"Considerada na sua acepção mais antiga e mais comum, a palavra P. designa o que é real em oposição ao
que é quimérico" {Discours sur Vesprit positif, § 31)- O positivismo chamou de P. o método da ciência
porque visa ao reconhecimento puro e simples dos fatos e de suas relações (v. POSITIVISMO). Em sentido
não diferente deste, Schelling chamou de P. o conhecimento que considera o ato com que a realidade é
posta. Distinguiu as condições negativas do conhecimento, que são aquelas sem as quais o conhecimento
não é possível, das condições P., que são aquelas graças às quais o conhecimento se realiza. As primeiras
são as formas racionais do ser e dizem o que o ser pode ou deve ser; as segundas expressam a existência e
consistem substancialmente na vontade de Deus de manifestar-se {Werke, II, III, pp. 57 ss.).
2. O mesmo que afirmativo. Neste sentido, o termo recorre em locuções como "declarações P." ou
"notícias P.", ou mesmo para designar doutrinas que caracterizem seus objetos com afirmações, e não com
negações; p. ex., "teologia P.", em oposição a teologia negativa; "existencialismo P.", etc.
3. O mesmo que positivista, no sentido em que, a partir de Comte, se diz "filósofos positivos".
PÓS-PREDICAMENTOS (gr. LIETÒ tàc, KOCTriTopíaç; lat. Postpredicaments, in. Postpredi-caments;
fr. Post-prédicaments, ai. Postprãdi-kamente, it. Postpredicamenti). Começaram a ser chamados com este
termo pelos glosadores de Aristóteles (p. ex., por Filópono, séc. VI em Cat., 39 a, 33) os conceitos que
Aristóteles anunciou depois das categorias, no livro que tem este nome; são eles: de oposição {oppo-sito),
de prioridade {prius), de simultaneidade {simul), de movimento {motus) e de ter {ha-
'• "M.f* :
*
POSSE 778
POSSÍVEL
beré) {Cat., 10-15). Para estes conceitos, v. os verbetes relativos.
POSSE (in. Possession; fr. Possession; ai. Besitz-, it. Possessó). 1. Alguma garantia da possibilidade de
dispor de uma coisa ou de usá-la. Este é o conceito de Kant: "O que é meu de direito {meum júris) é
aquilo a que estou tão ligado que o seu uso por outra pessoa, sem o meu consentimento, se daria em meu
prejuízo. A P. é a condição subjetiva da possibilidade de uso em geral" {Met. der Sitten, I, § 1). A noção
de P., portanto, diz respeito à relação entre o homem e as coisas, e expressa certa garantia (que pode ter
significados e limites muito diferentes) da possibilidade de uso que determinado indivíduo tem em
relação a determinada coisa. E imprópria a noção de P. com referência às relações entre as pessoas.
2. Na significação mais generalizada, esse termo designa qualquer relação predicativa e existencial;
dizemos, p. ex., "A coisa x possui a qualidade a" ou "O objeto x possui existência". Neste sentido, o uso
do termo corresponde ao que se encontra em Aristóteles, em oposição a privação (cf. Met., X, 4, 1055 a
33) (V. PRIVAÇÃO).
POSSIBILIDADE. V. POSSÍVEL.
POSSÍVEL (gr. TO fruvoaóv; lat. Possibilis; in. Possible, fr. Possible, ai. Mõglich; it. Possibilé). O que
pode ser ou não ser. Esta definição nominal geralmente é pressuposta pelas definições conceptuais desse
termo, mas só estas últimas permitem tratar dos problemas peculiares a essa noção. As definições
conceptuais de possível podem ser: A) negativas (de natureza lógica); B) positivas. Por sua vez estas
últimas podem ser I
a
de possibilidade real; 2° de possibilidade objetiva. As três classes de definições daí
resultantes correspondem quase perfeitamente às três espécies de P. distinguidas por Aristóteles em
Metafísica: "O P. significa: 1Q
o que não é necessariamente falso; 2- o que é verdadeiro; 3Q
o que pode ser
verdadeiro" {Met., V, 12, 1019 b 30).
I
9 As definições negativas de P. são de natureza lógica; definem o P. como aquilo que não é
necessariamente falso ou não inclui contradição. Era com esse sentido que Aristóteles definia o P. no
trecho citado. Este conceito passou à tradição filosófica com a denominação de "P. lógico", distinto do "P.
real". S. Tomás de Aqui-no chama-o de "P. absoluto" e diz que resulta ex habitudine terminorum, isto é,
da não repugnância entre predicado e sujeito (5. Th., I,
q. 25, a. 3). Duns Scot chama-o de P. lógico, considerando-o próprio da "composição do intelecto",
porquanto os termos desta não incluem contradição {Op. Ox., I, d. 2, q. 6, a. 2, n. 10). Ockham julga que
o P., neste sentido, outra coisa não é senão o não-impossível {Summa log., II, 25). Foi este o conceito
ressaltado por Leibniz: "Quando vos digo que há uma infinidade de mundos P., pressuponho que não
impliquem contradições, assim como se podem escrever romances que nunca se realizarão, mas que são
possíveis. Para que uma coisa seja P., basta que seja inteligível" {Carta aBourguet, 1712, em Op., ed.
Gerhardt, III, p. 558). Neste sentido, Leibniz distinguia o P. do compossível(y), que é a possibilidade
objetiva. A noção de P. neste sentido continua na escola wolffista (Wolff, Ont., § 85; Crusius, Vernunftwahrheiten, § 56; Lambert, Dianoiologie, % 39); Kant considerava-a válida em seus limites, mas opunhalhe a noção de possibilidade objetiva {Dereinzig mógliche Beweisgrund zu einerDe-monstration des
Daseins Gottes, 1763, II, 1).
As duas teses fundamentais desta noção do P. são as seguintes: I) redução do P. ao não-impossível; II)
inferência do P. a partir do necessário, no sentido de que o necessário deve ser possível. Trata-se de dois
princípios estreitamente interligados. Aristóteles enunciou-os pela primeira vez no famoso tratado sobre o
P., que se encontra em De interpretatione. O necessário deve ser P. — raciocinou Aristóteles — porque, se
não fosse P., seria impossível, o que é contraditório {De int., 13, 22 b 28 ss.). A identificação do P. com o
não-impossível já está clara nesse raciocínio, mas em todo caso tornou-se explícita com Aristóteles. Ele
observa que, tanto no caso de possibilidades pertencentes a entes imutáveis quanto de possibilidades
pertencentes a entes mutáveis, é sempre verdadeira a proposição "não é impossível que seja" {De int., 13,
23 a 13). A mesma doutrina era repetida por S. Tomás de Aquino, que, no entanto, se restringia
explicitamente ao P. lógico {Contra Gent., III, 86). As mesmas teses estão presentes nas doutrinas
contemporâneas sobre o P. Peirce diz: "É essencial ou logicamente P. tudo que uma pessoa, que não
conhece fatos mas está a par do raciocínio e tem familiarida-de com as palavras que ele contém, seja
incapaz de declarar falso" {Coll. Pap., 4, 67). Aqui a noção de falso substituiu a de contraditório, mas o P.
continua sendo reduzido àquilo que não é falso. Carnap, por sua vez, define o P. como o
POSSÍVEL
779
POSSÍVEL
"não impossível" (Meaning and Necessity, § 39-3)- Essa é a definição mais freqüente na lógica
contemporânea. Obviamente, a noção de P. neste sentido implica um conceito bem definido de
impossibilidade, isto é, da contradição ou falsidade lógica. Mas este conceito não parece estar à
disposição dos lógicos, visto o seu desacordo sobre a noção contrária e complementar de impossibilidade,
que é a noção de necessidade (v.).
2
a A definição de P. como possibilidade real identifica o P. com o potencial (v.) e vê no potencial o que se
destina infalivelmente a realizar-se. Foi graças a essa interpretação que Deodoro Cronos, famoso filósofo
de Mégara, afirmava, com o argumento vitorioso (v.), que tudo o que é P. se realiza, e o que não se realiza
não é P. (ARISTÓTELES, Met., 9, 3, 1046 b 24 ss.; EPICTETO, Diss., II, 19,1; CÍCERO, De fato, 6 ss.).
Deodoro Cronos inferia deste princípio a tese da necessidade de tudo o que é: nada do que foi, é ou será,
pôde ser, pode ou poderá ser diferente de como foi, é ou será. Mas o próprio Aristóteles, que combatia a
tese de Deodoro Cronos baseando-se nos outros significados de P., às vezes admitia a tese fundamental
desta concepção de possibilidade: "Não pode ser verdade que alguma coisa é P. mas não será, pois neste
caso não existiriam impossibilida-des" (Met., IX, 4, 1047 b 3). Esta concepção do P. foi acolhida pela
Escolástica árabe a partir de Avicena. A divisão de Avicena entre o ser necessário e o ser P. é na verdade a
divisão entre aquilo que extrai seu ser de si mesmo (Deus) e aquilo que extrai seu ser de outro (as coisas
criadas). Deste ponto de vista, o P. é possível enquanto não é nada; assim que começa a ser, este é o sinal
de que estão presentes todas as condições ou causas do seu ser, e ele tornou-se necessário: no sentido de
necessário em relação a outra coisa (Met., II, 1-2; Algazel, Met., I, 8; etc). Este "necessário em relação a
outra coisa" era o contingente (v.).
Esta doutrina foi repetida muitas vezes na história da filosofia. Uma de suas melhores expressões está em
Hobbes: "Chama-se de impossível o ato para cuja produção nunca haverá potência plena. Pois a potência
plena é aquela para a qual concorrem todas as condições necessárias à produção do ato; se nunca houver a
potência plena, sempre faltará alguma das condições sem as quais o ato não pode produzir-se, de tal modo
que esse ato nunca poderá produzir-se, portanto será um ato impossível. O ato que não é impossível, é possível. Portanto, todo ato P. deve verificar-se de tempos em
tempos: se nunca se verificasse, nunca concorreriam todas as condições necessárias à sua produção, e ele
seria então, por definição, um ato impossível, o que contraria a hipótese" (De corp., 10, § 4). Esta
elaboração do conceito de P. outra coisa não é senão a repetição do argumento vitorioso de Deodoro
Cronos, que reaparece toda vez que se reduz o P. a uma potencialidade, na qual devam estar presentes
todas as condições de realização, estando, pois, destinada infalivelmente a realizar-se. Este é o conceito
de P. encontrado em Hegel, que distinguia possibilidade real e mera possibilidade; esta seria "a vã
abstração da reflexão em si", ou seja, uma simples representação subjetiva, ao passo que se tem a
possibilidade real quando ocorrem todas as condições de uma coisa, de tal maneira que a coisa deve
tornar-se real; é óbvio que, neste caso, possibilidade real não se distingue de necessidade (Ene, § 147). A
noção de possibilidade real neste sentido é freqüentemente empregada pelos seguidores de Hegel, sejam
eles idealistas ou marxistas. Muitas vezes esta noção foi empregada para designar a predeterminação dos
eventos históricos em suas condições, portanto para fundamentar a possibilidade de previsão infalível da
evolução futura da história. Foi deste modo que G. LUKÁCS usou esse conceito (Geschichte und
Klassenbewusstsein, 1923; trad. fr., 1960, p. 104 ss.). Com o mesmo significado de potencialidade, esse
conceito está pressuposto num livro de S. Buchanan, em que a possibilidade é definida como "a idéia
reguladora da análise do todo em suas partes", sendo as partes definidas como "a potencialidade do todo"
(Pos-sibility, 1927, pp. 81 ss.).
Finalmente, o último exemplo deste conceito é a denominada "lei modal fundamental" de N. Hartmann,
que compreende as seis teses seguintes: "Ia
o que é realmente P. é também realmente factível; 2- o que é
realmente factível é também realmente necessário; 3a
o que é realmente P. é também real e
reciprocamente necessário; 4a
aquilo cujo não ser é realmente P. é também realmente infactível; 5a
o que é
realmente infactível é também realmente impossível; 6a
aquilo cujo não ser é realmente possível é
também realmente impossível" (Móglichkeit und Wirklichkeit, 1938, p. 126). Estas teses não passam de
redução explícita do conceito de possibilidade real no conceito de necessidade:
POSSÍVEL
780
POSSÍVEL
redução à qual na verdade não poderíamos objetar.
Faz parte desta noção do P. a redução do conceito de P. à ignorância ou à imaginação postfactum. O
primeiro caminho foi seguido por Spinoza: "Chamo de P. as coisas singulares, porquanto, considerando as
causas pelas quais devem ser produzidas, ignoramos se elas estão determinadas a produzi-las" {Et., IV,
def. 4; CogitMet., I, 3). O segundo caminho foi seguido por Bergson: "O P. é a miragem do presente no
passado; e como sabemos que o futuro acabará por tornar-se presente e que o efeito da miragem
continuará a produzir-se, dizemos que em nosso presente atual, que será o passado de amanhã, a imagem
do amanhã já está contida, apesar de não chegarmos a alcançá-la. Nisso está precisamente a ilusão" ("Le
Possible et le réel", 1930, em Lapenséeetle mouvant, 3
a ed, 1934, p. 128).
3
B
O terceiro conceito de P. é de possibilidade objetiva, que remonta a Platão. A possibilidade de agir ou
de sofrer uma ação foi assumida por Platão como a definição do ser em geral (V. SER), contra os
materialistas, por um lado, e contra os idealistas, por outro. "Digo que é existente tudo aquilo que tem por
natureza a possibilidade de fazer uma coisa qualquer ou de sofrer uma ação (inclusive tudo o que existe
em medida mínima e por uma vez só, e com respeito à coisa mais insignificante). Por isso, faço a seguinte
definição: os entes não são outra coisa senão possibilidades" (Sof., 247 e). Aristóteles definia a
possibilidade neste sentido como "aquilo que pode ser verdadeiro" (Met., V, 12, 1019 b 32). E S. Tomás
de Aquino defendia essa possibilidade contra o neces-sitarismo árabe: "O P. ou contingente, que se opõe
ao necessário, tem em seu conceito que não deve realizar-se necessariamente quando não é, visto que ele
se segue necessariamente da sua causa" (Contra Gent., III, 86). Ockham incluía o mesmo conceito entre
os significados do termo P., como "aquilo que não está em ato, mas poderá estar", ou que "não é nem
necessário nem impossível" (Summa log., II, 25). O conceito de compossível(v), de Leibniz, é outra
expressão dessa mesma noção de possibilidade, defendida por Kant já antes de suas "Críticas", quando,
opondo-se à escola wolffista, ele mostrava a insuficiência do conceito de possibilidade lógica: "Existir
possibilidade e no entanto não existir nada de real é contraditório, porque, se nada existe, nada de
pensável é dado, e estaremos em contradição se ainda quisermos que haja alguma coisa de P." (Dereinzig
móglicheBeweisgrundzu einer Demonstration des Daseins Gottes, I, 2, 2). Ou, em outros termos,
"subtraindo-se do P. o material e os dados, também se nega a possibilidade" (Ibid., I, 2, 3). Aqui, Kant
parece negar até mesmo a legitimidade da noção de P. lógico. Em outro ponto, admite também esta
possibilidade: "O conceito é P. todas as vezes que não se contradiz. É este o caráter lógico da
possibilidade, e com isso o seu objeto é distinto do nihil negativum. Mas não pode ser um conceito vazio.
(...) Esta é uma advertência a não deduzir imediatamente a possibilidade (real) das coisas da possibilidade
(lógica) dos conceitos" (Crít. R. Pura, Dialética, II, cap. 3, seç. 4, n. [A 597, B 625D. A possibilidade
objetiva ou real baseia-se, então, nos dados da experiência e é uma possibilidade que só a experiência, e
não o simples conceito, autoriza a admitir. Todavia, não se trata de uma possibilidade real no sentido de
que falamos ao ne
2, isto é, de uma potencialidade destinada infalivelmente a realizar-se: "As proposições
de que as coisas podem ser P. sem ser reais e que, portanto, não se pode deduzir a realidade a partir da
possibilidade ajustam-se à razão humana" (Crít. do Juízo, § 76). Kant chama de real ou transcendente a
possibilidade que se baseia nos dados da experiência, mas não a identifica com a necessidade: ela só
significa que ao conceito pode corresponder um objeto (Crít. R. Pura, Anal. dos Princ, cap. III [A 244, B
3031).
Se Kant insistia na conexão do P. objetivo com a experiência, Kierkegaard insistia, em polêmica com
Hegel, na indeterminação do P. Respondendo negativamente quando lhe perguntaram se o passado era
mais necessário que o futuro, Kierkegaard afirmou que o P. não se toma necessário pelo fato de realizarse, mas que permanece P.: "O passado não é necessário no momento em que devêm; não se tornou
necessário por devir (o que seria uma contradição); e torna-se ainda menos necessário através do
entendimento da pessoa". Neste caso, com efeito, o passado ganharia o que o intelecto perdesse: não seria
entendido pelo que é, mas por uma outra coisa (PhilosophischeBroken, IV, Intermédio, § 4; trad. fr., pp.
162 ss.). Toda a especulação de Kierkegaard baseia-se nessa noção de possibilidade objetiva e
indeterminada, com a qual esclarece as noções de angústia (v.) e de desesperança (v.). No entanto,
POSSÍVEL
781
POSSÍVEL
Kierkegaard às vezes utiliza expressões que não são rigorosamente compatíveis com a indeterminação
objetiva das possibilidades, como p. ex. "Tudo é P." ou "todas as possibilidades". Considerando as
possibilidades como infinitas, acaba-se por excluir sua indeterminação e limitação: de fato, o que falta a
uma delas para realizar-se infalivelmente pode ser suprido pelas outras, se elas forem infinitas; as
possibilidades transformam-se, então, em potencialidades necessárias.
Na filosofia contemporânea, porém, o conceito de possibilidade objetiva é entendido no seu sentido
empiricamente determinado e finito. Peirce fala em "possibilidades substanciais" (em oposição às
possibilidades lógicas), como as que se fundam em informações referentes aos fatos e a suas leis; e diz
que tais possibilidades coincidiriam com a necessidade só na hipótese de uma informação onisciente
(Coll. Pap., 4, 67). Dewey entende a possibilidade, no âmbito da matemática e, em geral, da investigação
científica, como possibilidades de operações ou de transformações {Logic, XV e XX, 3). Wittgenstein
afirma que possibilidade é o que se expressa por uma proposição sensata, que se distingue da tautologia,
que é a proposição da lógica ou da matemática, que "nada diz", e da contradição {Tractatus, 5, 525). Em
outros termos, para Wittgenstein, a proposição sensata é apenas a expressão da possibilidade de um fato.
Lukasiewicz e Tarski formularam os princípios de uma lógica da P., cujo fim seria evitar o determinismo
(v. os textos citados em TERCEIRO EXCLUÍDO, PRINCÍPIO DO). Reichenbach, por sua vez, distinguiu da
possibilidade lógica a possibilidade física e a possibilidade técnica: a primeira significa algo que não
contradiz as leis empíricas; a segunda, algo que pertence ao reino dos métodos práticos conhecidos
("Verifiability, Theory of Meaning", em Proceedings of the American Academy ofArts and Sciences, 1951,
[80a
, p. 53). Além disso, pôs a possibilidade física como fundamento da probabilidade {Theory
ofProbability, § 74). Mas está claro que esse ponto de vista pode ser generalizado, e que só se pode
identificar uma possibilidade objetiva em contextos particulares, ou seja, com base em condições e regras
vigentes em determinado campo. P. ex., no que diz respeito ao homem, a possibilidade física que ele tem
de realizar determinada ação não coincide necessariamente com as possibilidades jurídicas
ou morais que lhe são oferecidas pelo sistema social em que vive.
Muitas das possibilidades que seu organismo físico permitem efetivar são-lhe obstadas pelas normas
jurídicas e morais. Portanto, para cada possibilidade objetiva é indispensável a referência a um contexto
de condições e de regras técnicas determinadas, e falar-se em possibilidade sem especificar esse contexto
só pode dar ensejo a equívocos. Aliás, o mesmo se pode dizer das ciências: uma possibilidade ló-gicomatemática nem sempre é uma possibilidade física, ou seja, passível de efetivação com base em leis da
física, e assim por diante (cf. J. R. LUCAS, The Concept ofProbability, 1970, p. 6 e passim).
No campo da metodologia historiográfica, a noção de possibilidade objetiva foi considerada indispensável
por Max Weber (Kritische Studien aufden Gebiet der Kulturwissenscha-ftlichen Logik, 1906; cf.
especialmente a segunda parte; trad. in., em The Methodology of the Social Sciences, pp. 164 ss.; trad. it.
em II método delle scienze storico-sociali, pp. 207 ss.) sendo empregada também em obras mais recentes
(p. ex., W. DRAY, Laws and Explana-tion in History, 1957, VI, 3; cf. HISTÓRIA; HISTORIOGRAFIA). NO
campo das ciências biológicas, essa noção foi utilizada por Gold-stein {Der Aufbau des Organismus,
1934; trad. fr. 1951) e tende a ser utilizada no domínio psiquiátrico (cf., p. ex., M. TORRE, "La categoria
dei possibile in psicopatologia", em Note e Riviste dipsichiatria, 1957). Além disso, a genética e a teoria
da evolução utilizam constantemente esse conceito, designando-o às vezes com outro nome (p. ex., com o
nome de oportunidade, cf. G. SIMPSON, The Meaning of Evolution, cap. XII, "The Opportunism of Evolution"). Na sociologia, os conceitos que, implícita ou explicitamente, recorrem à noção do P. são os mais
numerosos. Lévy-Bruhl falou do "limite do P." como constitutivo da experiência racional, por isso como
deficiente ou ausente na mentalidade primitiva {Les carnets, 1949; trad. it., p. 98 ss.). Toda a teoria da
probabilidade, seja qual for a sua interpretação, baseia-se nessa noção de P. (cf., p. ex., REICHENBACH,
Theory of Probability, § 74; e POPPER, que fala da probabilidade como "vector no espaço das
possibilidades"; v. PROBABILIDADE). Finalmente, é quase supérfluo lembrar a importância que a noção de
possibilidade objetiva tem na filosofia existencialista, em que constitui o principal
POST HOC ERGO PROPTER HOC
782
POTÊNCIA
instrumento de análise (v. EXISTENCIALISMO). Está claro que, de acordo com esta terceira interpretação, o
oposto de P. não é impossível, mas não-possível.
POST HOC ERGO PROPTER HOC. Célebre falácia (v.) que constitui um caso particular da falácia
non causapro causa (cf. ARISTÓTELES, El. sof, 5, 167 b); esta consiste em estabelecer uma conexão
causai, portanto necessária, com base numa conexão meramente acidental ou secundária. No caso de post
boc ergo propter hoc, o sofisma consiste em estabelecer uma conexão de causa e efeito entre Ae Bpelo
simples fato de B vir depois de A. G. P.
POSTULADO (gr. aixr|u.a; lat. Postulatum; in. Postulate, fr. Postulai; ai. Postulai; it. Pos-tulató). Em
geral, uma proposição que se admite ou cuja admissão se deseja, com o fim de possibilitar uma
demonstração ou um procedimento qualquer. Esse termo nasceu na matemática e é elucidado por
Aristóteles em correlação com axioma(v.). Enquanto os axiomas são evidentes por si e têm de ser
admitidos necessariamente, mesmo não sendo demonstráveis, o P., apesar de demonstrável, é assumido e
utilizado sem demonstração. Além disso, o P. é uma proposição ainda não admitida ou aceita por aquele a
quem é endereçada (senão seria inútil pedir-lhe que a admitisse); nisso difere da hipótese (v.), que
também é uma proposição demonstrável, não demonstrada, mas considerada verdadeira por aquele a
quem é dirigido o discurso {An. post., 10, 76 b 24 ss.). A distinção entre axioma e P. foi adotada por
Euclides em seus Elementos, enquanto os axiomas expressam verdades evidentes e são chamados por
Euclides de noções comuns, os P. expressam o que se propõe ser admitido e concernem à existência de
determinados elementos geométricos. A distinção entre P. e axioma deixou de ser usada na lógica e na
matemática moderna (v. AXIOMÂTICA).
Kant chamou de "P. do pensamento empírico" os princípios correspondentes a priori às categorias da
modalidade, segundo os quais é possível tudo o que está de acordo com as condições formais da
experiência (intuições puras e categorias); o que está de acordo com as condições materiais da experiência
(com as sensações) é real; e aquilo cuja conexão com a realidade é determinada segundo as condições
universais da experiência é ou existe necessariamente (Crít. R. Pura, Anal. dos princ, cap. II, seç. III, 4)
Depois, chamou de "P. da razão prática" as condições que tornam possível a moralidade, isto é, a liberdade, a imortalidade e a existência de
Deus (Crít. R. Prática, Dialética, seç. II).
POTÊNCIA (gr. 5óvau.tç; lat. Potentia, in. Power, fr. Puissance, ai. Vermõgen; it. Poten-zá). 1. Em geral
o princípio ou a possibilidade de uma mudança qualquer. Esta foi a definição do termo dada por
Aristóteles, que distinguiu este significado fundamental em vários significados específicos, mais
precisamente: a) capacidade de realizar mudança em outra coisa ou em si mesmo, que é a P. ativa; b)
capacidade de sofrer mudança, causada por outra coisa ou por si mesmo, que é a P. passiva; c) capacidade
de mudar ou ser mudado para melhor e não para pior; d) capacidade de resistir a qualquer mudança (Met.,
V, 12, 1019 a 15; IX, 1, 1046 a 4). Estas distinções praticamente não mudaram ao longo da tradição
filosófica (v. ATO). A tradição medieval repetiu-as sem variações, e, ainda no séc. XVIII, Wolff as repetia
em fórmulas epigráficas que em nada mudam os velhos conceitos (Ont., 1729, § 716). Mesmo Locke, em
sua famosa análise dessa noção, não lhe altera o conceito (Ensaio, II, 21, 1).
O conceito, todavia, implica uma ambigüidade fundamental porque pode ser entendido: A) como
possibilidade; B) como preformação e portanto predeterminação ou preexistência do atual. Em Aristóteles
e em todos aqueles que seguem a metafísica aristotélica, ambos os significados estão presentes e muitas
vezes são confundidos. Assim, quando Aristóteles defende o conceito da potência contra a negação do
mesmo feita por Deodoro Cronos (v. POSSIBILIDADE), entende a P. no sentido A), ao passo que, ao afirmar
"que não pode ser verdade dizer que algo é possível mas não será" (Met., IX, 4, 1047 b 3), ou ao afirmar a
superioridade do ato sobre a P., com base no princípio de que sem o ato a P. não existiria (o ovo não
existiria sem a galinha), está entendendo a P. como preformação e predeterminação, e considerando-a
como um modo de ser menor ou preparatório do ato (Ibid., IX, 8, 1049 b 4). Confusão análoga acha-se no
ensaio de Bergson "O possível e o real" (1930), pois nele Bergson, rejeitando o conceito de possível como
"não-im-possível", ou seja, como "não impedido de ser", identifica-o no entanto com o de potencial e
considera o potencial como "a miragem do presente no passado" (La pensée et le mouvant, 3
a
ed., 1934,
pp. 128-30). Visto
POTENCIAÇÃO, LÓGICA DA
783
PRAGMÁTICO
que o conceito de potencial faz constante referência à atualidade ou realidade, enquanto o de possível não
possui necessariamente essa referência, as noções de preformação, preexistência e predeterminação
podem ser consideradas estreitamente conexas com a de potência.
2. Faculdade ou poder da alma (v. FACULDADE).
3. Domínio ou predomínio, como na expressão "vontade de P.".
POTENCIAÇÃO, LÓGICA DA. Tentativa de lógica simbólica, que consiste em eliminar as leis de
tautologia e de absorção e em introduzir os símbolos de potência e de coeficiente. Este tipo de lógica
deveria fundar-se no princípio de que qualquer relação modifica os entes relativos, contrário ao princípio
habitualmente admitido pela lógica simbólica contemporânea (cf. P. Mosso, Principi di lógica dei P.,
Turim, 1924; A. PASTORE, La lógica dei P., Nápoles, 1936).
POVO (lat. Populus; in. People, fr. Peuple, ai. Volk, it. Popoló). Comunidade humana caracterizada pela
vontade dos indivíduos que a compõem de viver sob a mesma ordenação jurídica. O elemento geográfico
não é suficiente para caracterizar o conceito de P.; como dizia Cícero, "P. não é uma aglomeração
qualquer de homens, reunidos de qualquer maneira, mas uma aglomeração de gente associada pelo
consentimento ao mesmo direito e por comunhão de interesses" (Rep., I, 25, 39). Portanto, ao P.
contrapõe-se a plebe, que é o conjunto das pessoas que, mesmo vivendo com o P., participam da mesma
ordenação jurídica. Por outro lado, o conceito de P. distingue-se do de nação (v.) porque este contém um
conjunto de elementos necessitantes que se somam à noção de destino comum, ao qual os indivíduos não
podem subtrair-se legitimamente. O conceito de nação começou a formar-se a partir do conceito de P.
quando, com Montesquieu, começaram a ser ressaltadas as causas naturais e tradicionais (clima, religião,
tradições, usos e costumes, etc.) que contribuem para formar o que Montesquieu chamou de "espírito
geral" ou "espírito da nação" (Esprit des lois, XIX, 4-5). A diferença entre P., nação e plebe era
estabelecida com bastante clareza por Kant {Antr., II, O Caráter do povo), mas o conceito de P. era
confundido muitas vezes com o de nação no nacionalismo do séc. XIX (v. NACIONALISMO; ESPÍRITO
NACIONAL).
PRAGMÁTICA (in. Pragmatics, fr. Pragmatique, ai. Pragmatik, it. Pragmática). Uma das partes da semiótica (v.), mais precisamente a que
compreende o conjunto de investigações que têm por objeto a relação dos signos com os intérpretes, ou
seja, a situação em que o signo é usado. Esse aspecto da semiótica já havia sido ressaltado por C. S.
Peirce, Ogden e Ri-chards, mas foi principalmente Morris que considerou a P. como parte integrante da
semiótica; seu ponto de vista é amplamente aceito na lógica contemporânea (cf. C. MORRIS, Foundations of the Theory of Signs, 1938, cap. V; CARNAP, Foundations of Logic and Mathe-matics, 1939, §
2). As outras partes da semiótica são semântica e sintaxe (v.).
PRAGMÁTICO (gr. TipaTLia-UKÓÇ; in. Prag-matic, fr. Pragmatique, ai. Pragmatiscb; it.
Pragmático). Esse adjetivo foi usado pela primeira vez por Políbio, para quem há nítida distinção entre a
história "P.", que cuida dos fatos, e a história que se ocupa das lendas, como a que fala da genealogia das
famílias e da fundação das cidades (IX, 1, 4). Políbio acrescenta também que a história P. é a mais útil
para ensinar como o homem deve proceder na vida social. Depois, esse adjetivo foi usado com freqüência
na história política, especialmente alemã, a propósito de decisões constitucionais cujo caráter deveria ser
ressaltado, sendo então chamadas de "sanções P.". Kant dizia: "Chamam-se P. as sanções que não derivam
propriamente dos direitos dos Estados considerados como leis necessárias, mas de compromisso para com
o bem-estar geral. Uma história é composta pragmaticamente quando nos toma prudentes, vale dizer,
quando ensina à sociedade de hoje a maneira de obter mais benefícios que a sociedade de ontem, ou pelo
menos tantos benefícios quanto ela obteve" (Grund-legung zur Met. der Sitten, II, Nota). Kant chama
também de P. os imperativos hipotéticos da prudência que visam ao bem-estar ilbid., II, Nota). Ele chama
de P. a fé fundada em juízo subjetivo da situação, como p. ex. a do médico que não conhece bem a doença
que deve tratar (Crít. R. Pura, Doutrina do Método, cap. 2, seç. 3). E chama sua antropologia de P. porque
ela considera o que o próprio homem faz de si mesmo, e não o que ele é por natureza {Antr., Pref.).
Na linguagem contemporânea essa palavra voltou a ter o seu sentido inicial. Quando não
PRAGMATISMO
784
PRAGMATISMO
se refere a pragmatismo, designa simplesmente o que é ação ou que pertence à ação.
PRAGMATISMO (in. Pragmatism; Pragma-ticism; fr. Pragmatisme, ai. Pragmatismus, it.
Pragmatismo). Esse termo foi introduzido na filosofia em 1898, por um relatório de W. James a
Califórnia Union, em que ele se referia à doutrina exposta por Peirce num ensaio do ano 1878, intitulado
"Como tornar claras as nossas idéias". Alguns anos mais tarde, Peirce declarava ter inventado o nome P.
para a teoria segundo a qual "uma concepção, ou seja, o significado racional de uma palavra ou de outra
expressão, consiste exclusivamente em seu alcance concebível sobre a conduta da vida"; dizia também
que preferira esse nome a pra-ticismo ou praticalismo porque, para quem conhece o sentido atribuído a
"prático" pela filosofia kantiana, estes últimos termos fazem referência ao mundo moral, onde não há
lugar para a experimentação, enquanto a doutrina proposta é justamente uma doutrina experi-mentalista.
Todavia, no mesmo artigo, Peirce declarava que, em face da extensão do significado de que o P. fora alvo
por obra de W. James e de F. C. S. Schiller, preferia o termo pragmaticismo, para indicar sua própria
concepção, estritamente metodológica, do P. ("What Pragmatism Is", TheMonist, 1905; Coll. Pap., 5,411-
37). Desta maneira, Peirce acabava distinguindo duas versões fundamentais de P., que podem ser assim
caracterizadas: I
a
um P. metodológico, que é substancialmente uma teoria do significado; 2a
um P.
metafísico, que é uma teoria da verdade e da realidade.
I
a O P. metodológico rÁo pretende definir a verdade ou a realidade, mas apenas um procedimento para
determinar o significado dos termos, ou melhor, das proposições. Peirce dizia no artigo do ano de 1878,
geralmente considerado data de nascimento do P.: "É impossível ter em mente uma idéia que se refira a
outra coisa que não os efeitos sensíveis das coisas. Nossa idéia de um objeto é a idéia de seus efeitos
sensíveis. (...) Assim, a regra para atingir o último grau de clareza na apreensão das idéias é a seguinte:
Considerar quais são os efeitos que concebivelmente terão o alcance prático que atribuímos ao objeto da
nossa compreensão. A concepção destes efeitos é a nossa concepção do objeto" {Chance, Love and Logic,
I, 2, § 1; trad. it., p. 39). O princípio dessa regra metodológica é que "a função do pensamento é produzir
hábitos de ação", crenças. A
regra proposta por Peirce era, portanto, sugerida pela exigência de achar um procedimento experimental
ou científico para fixar as crenças, entendendo por científico ou experimental o procedimento que não
recorre ao método da autoridade nem ao método aprioriilbid., I, 1, § 2, pp. 9 ss.). Pode-se dizer que
pertence ao mesmo tipo o P. de Dewey, que, para evitar qualquer equívoco, preferiu o termo instrumentalismo (v.). "A essência do instrumenta-lismo pragmático" — escreveu ele — "é conceber o
conhecimento e a prática como meios para tornar seguros, na experiência, os bens, que são as coisas
excelentes de qualquer espécie" {TheQuestforCertainty, 1929, p. 37). Deste ponto de vista, Dewey
compartilhava o experimentalismo de Peirce, porque para ele "a experimentação faz parte da
determinação de qualquer proposição justificada" (Logic, 1939, p. 461), ao mesmo tempo em que
evidenciava o caráter instrumental e operacional de todos os procedimentos do conhecer, considerados
como meios para passar de uma situação indeterminada para uma situação determinada, ou seja, ao
mesmo tempo distinta e unificada (Logic, cap. VI). É, portanto, bastante óbvio o parentesco desse tipo de
P. com a metodologia científica contemporânea, em particular com o operacionismo (v.), por um lado, e
com as teses fundamentais da lógica simbólica, por outro. Os pragmatistas italianos Giovanni Vailati e
Mário Calderoni ressaltaram este aspecto. O primeiro observava a propósito que o principal ponto de
contato entre lógica e P. "está na tendência comum a ambos de considerar o valor e o próprio significado
de uma asserção como algo intimamente vinculado ao emprego que se pode ou se deseja fazer deles na
dedução e na construção de determinadas conseqüências ou grupos de conseqüências" ("Pragmatismo e
lógica matemática", 1906, em // método delia filosofia, p. 198). Estas palavras definem bem o caráter
funcional do P. de inspiração metodológica.
2
a
A concepção de P. metafísico encontra-se em W. James e em F. C. S. Schiller; suas teses fundamentais
consistem em reduzir verdade a utilidade, e realidade a espírito. A segunda destas teses foi compartilhada
pelo P. metafísico com boa parte da filosofia contemporânea; o próprio James reconheceu e gabou a
concordância substancial de sua filosofia com a dos espiritualistas franceses, especialmente a de Bergson.
A primeira tese é característica dessa
PRAGMATISMO
785
PRATICO
forma de pragmatismo. Seu pressuposto é o principio que ela tem em comum com o P. metodológico: a
instrumentalidade do conhecer. Mas este pressuposto é entendido e realizado por ela de modo totalmente
diferente. Em primeiro lugar, ela procura evidenciar a dependência de todos os aspectos do conhecimento
(ou do pensamento) em relação a exigências da ação, portanto em relação às emoções em que tais
exigências se concretizem. Também a "racionalidade", segundo James, é uma espécie de sentimento ("O
sentimento da racionalidade" em The Will to Believe, 1897). Deste ponto de vista, as ações e os desejos
humanos condicionam a verdade: qualquer tipo de verdade, inclusive a científica. Portanto não é legítimo,
deste ponto de vista, recusar-se crer em doutrinas que tenham condições de exercer ação benéfica na vida
do homem só porque elas não são apoiadas por provas racionais suficientes. Em casos como estes,
afirmava James, é preciso correr o risco de acreditar. E F. C. S. Schiller levava esta doutrina às suas
conseqüências extremas, ressuscitando palavras de Protágoras, "o homem é a medida de todas as coisas",
e afirmando a relatividade do conhecimento em relação à utilidade pessoal e social {Humanism, 1903).
Enquanto Schiller se limitava a este relativismo, James abria caminho, através dele, ao teísmo e às
doutrinas espiritualistas tradicionais, com a alegação de que elas são úteis à ação e benéficas à vida
humana. Embora procurasse limitar o dogmatismo dessas doutrinas, insistindo no caráter pluralista do
universo (v. PLURALISMO) e no caráter finito da divindade (v. DEUS), O P. foi para ele essencialmente uma
via de acesso à metafísica tradicional. Um dos motivos que James aduzia para justificar o exercício da
vontade de crer é que a crença pode produzir sua própria justificação: é o que acontece às vezes nas
relações humanas, quando acreditar que alguém é nosso amigo leva-nos a ter comportamento amistoso
para com essa pessoa, conquistando a sua amizade. Dificilmente se pode fazer uso teológico ou
metafísico dessa proposição; no entanto, ela tornou-se um princípio importante da sociologia
contemporânea. Quanto ao resto, enquanto o P. metodológico teve continuação nos estudos de lógica e de
metodologia e em algumas correntes do neo-empirismo, o P. gnosiológico confluiu para as correntes
espiritualistas (cf. H. W. SCHNEIDER, A HistoryojAmerican Philosophy, 2
a
ed., 1957).
A este P. metafísico vinculam-se as outras manifestações fora do circuito anglo-saxão; em primeiro lugar,
vincula-se com a filosofia de Hans Vaihinger, exposta na obra Filosofia do como seCPhilosophie desAls
Ob, 1911), na qual ele afirma o caráter fictício de todo conhecimento e o caráter biológico da preferência
por um conhecimento e não por outro. Vincula-se também ao P. pluralista de A. Aliotta {A guerra eterna
e o drama da existência, 1917), em que está presente a mesma tônica espiritualista do P. de James (cf. de
ALIOTTA, O sacrifício como significado do mundo, 1947). Finalmente, vincula-se ao fideísmo pragmatista
de Miguel de Unamuno, na forma exposta no Comentário ao Dom Quixote (1905) e em Do sentimento
trágico da vida (1913), e de José Ortega y Gasset (O tema do nosso tempo, 1923; Sobre Galileu, 1933;
História como sistema, 1935, etc), que, porém, especialmente nas últimas obras, revela a influência do
existencialismo de Heidegger.
PRÁTICO (gr. TtpaKTiKÓÇ; lat. Practicus, in. Practical; fr. Pratique, ai. Praktisch; it. Pratico). Em
geral, o que é ação ou diz respeito à ação. Há três significados: le
o que dirige a ação; 2Q
o que pode
traduzir-se em ação; 3S
o que é racional na ação.
1
Q
O primeiro é o significado filosófico tradicional. Platão já distinguia a ciência prática (p. ex.,
construção civil), que é "inerente por natureza às ações", da ciência cognitiva (como a aritmética), que
não se relaciona com a ação ÇPol., 258 d-e). Aristóteles dizia que "nas ciências P. a origem do movimento
está em alguma decisão de quem age porque 'P.' e 'escolha' são a mesma coisa" (Met., VI, 1, 1025 b 22).
Para Aristóteles, as ciências P. eram a política, a economia, a retórica e a ciência militar; a ética é parte
fundamental da política {Et. nic, I, 2, 1094 b). Este significado continuou uniforme na tradição filosófica.
P. ex., quando S. Tomás de Aquino diz que teologia é, em parte, ciência prática (_S. Th., I, q. 1, a. 4) e
quando Duns Scot afirma que ela é totalmente ciência P. (Op. Ox., Prol., q. 4, n. 31), estão fazendo
referência ao significado tradicional: P. é o que dirige a ação. De modo semelhante, Wolff definia a
filosofia P. como a ciência que "dirige as ações livres mediante regras generalíssimas" iPhilos. prac-tica,
§ 3), e, como Aristóteles, dividia-a em Ética, Economia e Política. Este significado prevalece no uso
filosófico do termo.
2° No segundo significado, que pertence à linguagem comum mais que à filosófica, P. é
PRAXIOLOGIA 786
PRAZER
tudo aquilo que é fácil ou imediatamente tradu-zível em ação, no sentido, p. ex., de produzir sucesso ou
proporcionar vantagem. Neste sentido, uma idéia é chamada de "P." porque pode ser concretizada e levar
ao sucesso. Homem P. é o que tem idéias P., que são realizáveis com facilidade ou com probabilidades de
vantagem ou sucesso. Este significado geralmente não tem lugar na linguagem filosófica.
3
Q
O terceiro significado é o mais restrito e foi empregado por Kant. Este entende por P.: "Tudo o que é
possível por meio da liberdade". Mas a liberdade nada tem a ver com o arbítrio animal; assim, o que é
independente de estímulos sensíveis, portanto pode ser determinado por motivos representados apenas
pela razão, chama-se de livre arbítrio-, e tudo o que a ele se liga, como princípio ou como conseqüência,
chama-se P." (Crít. R. Pura, Doutrina do Método, cap. II, seç. I). Esse uso restrito do termo, característico
de Kant, não teve seguidores.
PRAXIOLOGIA (in. Praxiology; fr. Pra-xéologie, it. Prassiologià). Termo criado por Kotarbinsky, para
designar "a teoria geral da atividade eficaz", que deveria compreender a totalidade dos domínios da
atividade útil dos sujeitos agentes, do ponto de vista da eficácia de suas ações (.Praxiology, An
Introduction to the Science of EfficientAction, Oxford, 1965; a obra polonesa original é de 1955). V.
TECNOLOGIA.
PRÂXIS. Com esta palavra (que é a transcrição da palavra grega que significa ação), a terminologia
marxista designa o conjunto de relações de produção e trabalho, que constituem a estrutura social, e a
ação transformadora que a revolução deve exercer sobre tais relações. Marx dizia que é preciso explicar a
formação das idéias a partir da "práxis material", e que, por conseguinte, formas e produtos da
consciência só podem ser eliminados por meio da "inversão prática das relações sociais existentes", e não
por meio da "crítica intelectual" (A ideologia alemã, 2; trad. it., p. 34) (v. MATERIALIS-MO HISTÓRICO).
Por "inversão da P.", Engels entendeu a reação do homem às condições materiais da existência, sua
capacidade de inserir-se nas relações de produção e de trabalho e de transformá-las ativamente: esta
possibilidade é a subversão da relação fundamental entre estrutura e superestrutura, em virtude da qual é
somente a primeira (a totalidade das relações de produção e de trabalho) que determina a
segunda, constituída pelo conjunto das atividades espirituais humanas (cf. ENGELS, Anti-dübring, 1878).
PRAZER (gr. rjSovií; lat. Voluptas; in. Plea-sure, fr. Plaisir, ai. Lust; it. Piaceré). P. e dor constituem os
tons fundamentais de qualquer tipo ou forma de "emoção". A determinação de suas características
depende da função que se atribui às emoções, e por isso está relacionada com a teoria geral das emoções.
Aqui é preciso observar que, na tradição filosófica, essa palavra tem um significado diferente do de
felicidade, mesmo quando ligada a ela: o P. é indício de um estado ou condição particular ou temporária
de satisfação, enquanto a felicidade é um estado constante e duradouro de satisfação total ou quase total
(v. FELICIDADE).
A mais famosa definição do P. foi a de Aristóteles, que, aliás, utilizava os conceitos de Platão (Rep., IX,
583 ss.; Fil., 53 c): "P. é o ato de um hábito conforme à natureza" (Et. nic, VII, 12, 1153 a 14), sendo
preciso lembrar que hábito significa "disposição constante". Essa definição servia para desvincular o P. de
sua conexão com sensibilidade, visto que um hábito pode ser sensível ou não. A partir do Renascimento
as definições de P. basearam-se em sua função biológica. Para Telésio, é aquilo que favorece a
conservação do organismo (De rer. nat., IX, 2). Descartes definiu a alegria, considerada uma das seis
emoções fundamentais, como "a emoção prazerosa da alma, na qual consiste a fruição do bem que as
impressões do cérebro lhe representam como seu" (Pass. de Vâme, § 91). Spinoza afirmava: "Entendo por
alegria a paixão graças à qual a mente eleva-se a uma perfeição maior" (Et., III, 11), o que é uma
paráfrase da definição aristo-télica. Enquanto Hobbes voltava à definição biológica, vendo no P. o sinal de
um movimento proveitoso ao corpo, transmitido pelos órgãos sensoriais ao coração (De corp., 25, 12),
Nietzsche afirmava: "O P.: sensação de maior potência" (WilleZurMatcht, ed. Krõner, § 660). Em
oposição a essas teorias, que podem ser chamadas de positivas, encontra-se a teoria negativa de
Schopenhauer, segundo a qual o P. é simplesmente a cessação da dor, de tal modo que ele é conhecido ou
sentido apenas me-diatamente, através da lembrança do sofrimento ou da privação passada (Die Welt, I, §
58). A psicologia moderna manteve as características tradicionais atribuídas ao P.: reiterou sua função
biológica, mas ao mesmo tempo, com
PRAZER, PRINCIPIO DO 787
PREDICAT1VO
base na observação, também confirmou o caráter ativo que Aristóteles reconhecia no P. (cf. J. C. FLUGEL,
Studies in Feeling and Desire, 1955, p. 118 ss.).
PRAZER, PRINCÍPIO DO (in Pleasure principie, ai. Lustprinzip, it. Principio dipiacerè). Esse foi o
nome que Freud deu a um dos dois princípios fundamentais que regem o funcionamento mental, mais
precisamente o que dirige a atividade psíquica para libertar-se da dor. O outro princípio seria o da
realidade, graças ao qual a busca do prazer não se dá pelas vias mais curtas, mas obedecendo às
condições impostas pelo mundo externo (Triebe und Triebschicksale, 1915).
PREAMBULA FIDEI. Foi esse o nome que S. Tomás de Aquino deu ao conjunto das verdades cuja
demonstração é necessária à própria fé, em primeiro lugar a da existência de Deus (In Boet. de Trinit., a.
3) (v. DEUS, PROVAS DE;
TOMISMO).
PRÉ-ANIMISMO. V. ANIMISMO.
PRECISÃO (in. Precision; fr. Précision; ai. Prãcisione, it. Precizioné). Procedimento pelo qual se
considera cada parte de um todo, sem considerar o todo e as outras partes, de tal maneira se chegue a
determiná-la em seus caracteres próprios. Foi desse modo que a Lógica de Arnauld (I, 5) definiu a P.,
considerando, portanto, uma forma particular de abstração (v.). O resultado desse procedimento
obviamente é a caracterização exata das partes de um todo; portanto, na linguagem corrente, "P." tornouse sinônimo de exatidão, e "preciso", de exato. Peirce falou, no sentido próprio, de abstração precisiva (v.
ABSTRAÇÃO).
PRÉ-CISÃO (in. Prescissiori). Abstração "pré-cindente", que Peirce distingue da abstração hipostática,
como a operação de escolha que está implícita no mais simples fato de percepção: p. ex.: perceber uma
cor significa prescindir da forma e em todo caso isolar essa determinação "cor" das outras, às quais a cor
esteja unida (Coll. Pap., 1.549 n; 2.428; 4.235) (v. ABSTRAÇÃO).
PREDESTINAÇÃO (lat. Praedestinatia, in. Predestination-, fr. Prédestination; ai. Prà-destination; it.
Predestinazioné). Na teologia cristã, é a escolha que Deus faz dos eleitos, daqueles que se salvarão:
segundo S. Agostinho, foi feita antes da criação do mundo (Deprae-destinatione, 10). Para os problemas
relativos a ela, v. GRAÇA. A P. é sempre P. à salvação, mas às vezes também foi defendida (e condenada
pela Igreja) a P. dupla, para a salvação e para a condenação. Esta doutrina foi defendida, p. ex., pelo
monge Godescalco de Corbie e combatida por Hinkmar (sec. IX). Na era moderna, foi defendida pelos
Calvinistas (v. PRETERIÇÃO). PREDETERMINISMO (in. Predeterminism; fr. Prédeterminisme, ai.
Prádeterminismus, it. Predeterminismó). Termo empregado por Kant para designar o determinismo
rigoroso, aquele segundo o qual "as ações voluntárias, enquanto acontecimentos de fato, têm suas razões
suficientes no tempo anterior que, juntamente com o que ele contém, não está mais em nosso poder"
(Religion, I, cap. IV, Observação Geral) (v. DETERMINISMO).
PREDICADO (in. Predicate, fr. Prédicat; ai. Prãdikat; it. Predicató). Na lógica aristotélica, a
proposição consiste em afirmar (ou negar) algo de alguma coisa: portanto, divide-se em dois termos
essenciais, o sujeito, aquilo de que se afirma (ou se nega) alguma coisa, e o P. (raTr|-Yopoú(J.evov), que é
justamente o que se afirma (ou nega) do sujeito: assim em "Sócrates é branco", "Sócrates" é o sujeito;
"branco", o predicado. O P. pode ser essencial, próprio, ou simplesmente acidental. Através de Boécio,
essa doutrina passou à Lógica medieval (cf. PEDRO HISPANO, 1.07: "Subiectum est de quo aliquid dicitur;
praedicatum est quod de altero dicitur") e, dela, a toda a Lógica ocidental. Na lógica contemporânea, com
a crise da concepção predicativa da proposição (segundo a qual a proposição consiste na atribuição de um
P. a um sujeito), o termo "P." passou a ter uso oscilante. Russell (Princ. math., I2
, pp. 51 ss.) dá o nome de
"P." às funções proposicionais de primeira ordem, que contêm somente variáveis individuais
(substituíveis apenas por nomes próprios, que denotam indivíduos). Hilbert e Ackermann (Grundzüge der
theoretischen Logik), retornando de alguma maneira ao uso clássico, entendem propriamente por "P." o
functor de uma proposição funcional qualquer com uma ou mais variáveis. Analogamente, mas com
maior precisão, Carnap (cf. p. ex., Einfuhrung in die Symbolische Logik, 1954, pp. 4 ss.) usa "P." para
indicar o símbolo de propriedades ou relação atribuídas a indivíduos.
G. P.
PREDICAMENTO. V. CATEGORIA.
PREDIÇÃO. V. PREVISÃO.
PREDICATTVO (in. Predicative, fr. Prédi-catif, ai. Prüdicativ-, it. Predicativó). 1. Chama-se P. o uso
do verbo ser como cópula de uma
PREDICÁVEIS
788
PRÉ-LÓGICO
proposição, ou seja, em seu significado não existencial (v. SER).
2. Chama-se de P. uma definição que não é impredicativa, no sentido que Poincaré deu a este termo (v.
IMPREDICATIVA, DEFINIÇÃO); portanto, chama-se de P. também a teoria que exclui por princípio as
definições impredicativas ou o cálculo proposicional baseado nessa exclusão (cf. p. ex., CHURCH, Intr. to
Mathemati-cal Logic, § 58) (v. ANTINOMIA).
PREDICÁVEIS (gr. Kon:r|Yopoúu.eva; lat. Praedicabilia; in. Predicablesi; fr. Prédicables; ai.
Prãdicabilien; it. Prèdicabili). Os universais, porquanto aptos por natureza a ser predicados de muitas
coisas. Porfírio foi o primeiro a enumerar os cinco universais simples ou primitivos, que são gênero,
espécie, diferença, próprio e acidente Usaq., 1). Aristóteles enumerou como elementos de cada
proposição ou problema quatro elementos, que são definição, próprio, gênero e acidente (Top., I, 4, 101 b
24), mas esta enumeração, ao incluir a definição (que é composta de gênero e de espécie), não leva em
consideração a simplicidade dos elementos. A enumeração de Porfírio tornou-se clássica e passou a fazer
parte integrante da lógica tradicional.
Não teve seguidores, porém, a proposta kantiana de chamar de P. os conceitos do intelecto derivados das
categorias, que seriam os conceitos de força, ação, paixão (deriváveis da categoria da reciprocidade),
surgir, perecer, mudar (deriváveis das categorias da modalidade), etc. iCrít. R. Pura, § 10).
A noção desse termo desapareceu da lógica contemporânea (v. os verbetes particulares).
PREENSÃO (in. Prehension). Termo com que Whitehead (Process andReality, 1929) designou a
percepção, porquanto nela o sujeito apreende ou "apropria-se" de uma "entidade real", uma coisa ou um
evento. Na realidade, o próprio nome de percepção já tem esta conotação (v. PERCEPÇÃO).
PREESTABELECIDA, HARMONIA. V. PREFORMAÇÃO.
PREEXISTÊNCIA. V. METEMPSICOSE.
PREFORMAÇÃO (in. Preformation; fr. Pré-formation; ai. Prãformation-, it. Preformazio-né). Com o
nome de teoria da P. (ou pre-formismo) foi designada no séc. XVIII a teoria sobre a formação dos
organismos, segundo a qual seus órgãos já estão preformados no ovo. Malpighi, em 1637, propusera essa
teoria, reconhecendo que os órgãos não se acham preformados no ovo assim como serão no embrião ou no adulto, mas em forma de filamentos ou estames, cada
um dos quais é a potência de um órgão {La formazione dei pollo nelVuovo, 1637). Essa teoria foi aceita
no séc. XVIII por muitos biólogos, como Haller, Spallanzani e Bonnet, que se chamavam "ovistas", para
distingui-los dos "animaculistas", que no fim do séc. XVII afirmavam que o espermatozóide é um
homúnculo que contém todas as partes do feto humano. A doutrina da P. era aceita por Leibniz, para quem
"Deus formou previamente as coisas de tal maneira que os novos organismos não passam de
conseqüência mecânica de um organismo precedente" (Théod., pref.). Segundo Kant, uma vez admitido o
princípio teológico para a produção dos seres organizados, só há duas hipóteses para explicar a causa de
sua forma final: a do ocasionalismo, segundo a qual Deus intervém diretamente em cada nova formação
orgânica, ou a da harmonia preesta-belecida, segundo a qual um ser orgânico produz o seu semelhante.
Por sua vez, esta última pode ser ou teoria da P, — se a geração for considerada como simples
desenvolvimento de uma forma preexistente — ou teoria da epigenesia — se a geração for considerada
como produção. Kant não escondia sua simpatia pela teoria da epigenesia, porquanto parecia reduzir
muito mais que a outra a ação das causas sobrenaturais e prestar-se mais a provas empíricas (Crít. do
Juízo, § 81). A moderna teoria da evolução eliminou o próprio fundamento da oposição entre teoria da P. e
teoria da epigenesia (v. EPIGENESIA; EVOLUÇÃO).
PREFORMACIONISMO ou PREFORMIS-MO. V. PREFORMAÇÃO.
PREGUIÇA DA RAZÃO. V. RAZÃO PREGUIÇOSA.
PRÉ-LÓGICO (fr. Prélogiqué). Adjetivo introduzido por L. Lévy-Bruhl para caracterizar a mentalidade
dos povos primitivos, considerada indiferente ao princípio de contradição e fundada na participação (v.)
(Lesfonctions men-tales dans les sociétés inférieures, 1910, pp. 78 ss.). Depois, Lévy-Bruhl abandonou
esse conceito: "Não há mentalidade primitiva que se distinga da outra por dois caracteres que lhes são
próprios (místico e P.). Existe mentalidade mística mais acentuada e mais facilmente observável entre os
primitivos do que em nossas sociedades, mas que está presente em todo o espírito humano" (Les carnets,
1949, VI; trad. it., p. 161).
PREMISSA
789
PRESSUPOSTO
PREMISSA (gr. 7tpÓTamç; lat. Praemissa; in. Premise, fr. Premisse, ai. Prãmísse, it. Pre-messd). Toda
proposição da qual se infere outra proposição.
PREMOÇÃO (lat. Praemotio, in. Premotion, fr. Premotion; it. Premozionè). Termo empregado pelos
teólogos do séc. XVII para indicar a determinação física, por parte de Deus, da vontade humana:
determinação física que não eliminaria a liberdade do homem. Malebranche discutiu essa noção em
Refléctions sur Ia P. physique (1705).
PRENOÇÃO (in. Prenotion; fr. Prenotion; ai. Vorbegriff, it. Premozionè). Termo introduzido por
Durkheim para indicar os conceitos pré-científicos fundados na generalização imperfeita ou apressada,
que F. Bacon chamava de antecipações ou ídolos {Régles de Ia méthode sociologique, p. 23) (v.
ANTECIPAÇÃO). PREOCUPAÇÃO. V. CUIDADO; CURA. PRÉ-PERCEPÇÃO (in. Preperception-, fr.
Preperception; ai. Práperzeption; it. Preperce-zionè). Assim foi às vezes chamada a função seletiva que a
atenção intelectual exerce sobre a percepção sensível (cf., p. ex., James, Princ. ofPsychol, I, pp. 438-45).
PRESCIÊNCIA. V. TEODICÉIA. PRESENÇA (in. Presence, fr. Présence, ai. Anwesenheit; it. Presenzd).
Este termo é empregado em dois significados principais: 1Q existência de um objeto em certo lugar, pelo
que se diz, p. ex., "estava presente à reunião de ontem à tarde"; 2e
existência do objeto numa relação
cognitiva imediata; assim, diz-se que um objeto está presente quando é visto ou é dado a qualquer forma
de intuição ou de conhecimento imediato.
No âmbito do primeiro significado, e com objetivos teológicos (para descrever a presença de Deus ou dos
anjos nas coisas ou a presença do corpo de Cristo no pão do sacramento do altar), os escolásticos
distinguiam duas formas de P.: a chamada circunscriptiva, em que uma coisa está inteira em todo o
espaço que ocupa, com parte em cada parte do espaço, e a definitiva, em que uma coisa está inteira na
totalidade do seu espaço e inteira também em cada uma das partes dessa totalidade. A primeira P. é um
modo de ser quantitativo; a segunda exclui qualquer quantidade (cf., p. ex., S. TOMÁS DE AQUINO, S. Th.,
I. q. 52, a. 2; OCKHAM, Quodi, VII, q. 19).
Heidegger chamou de P. ou simples P. ( Vor-handenheif) o modo de ser das coisas, que é
diferente do modo de ser do homem, que é a existência iSein und Zeit, § 9). Sartre, por sua vez, falou de
"P. do para-si no ser", ou seja, da consciência, no sentido de que tal presença implicaria que "o para-si é
testemunha de si em P. do ser como não sendo o ser": o que significaria que a P. no ser é "P. do para-si em
não sendo" (L'être et le néant, pp. 166-67).
PRESENTAÇÃO (in. Presentation; fr. Presentation; ai. Prãsentation; it. Presentazioné). Conhecimento
imediato ou direto: percepção ou intuição. Esse termo foi introduzido por Spencer, que fazia a distinção
entre conhecimento presentativo (que se tem quando "o conteúdo de uma proposição é a relação entre
dois termos, ambos diretamente presentes, como quando machuco o dedo e estou simultaneamente ciente
da dor e da sua localização") e o conhecimento representativo, que é a lembrança ou a imaginação do
outro conhecimento (Princ. of Psychology, § 423). Esse termo foi aceito por muitos psicólogos no séc.
XIX, mas hoje está em desuso.
PRESENTACIONISMO (in. Presentatio-nism; fr. Présentationisme, it. Presentazionis-mó). Foi assim
que Hamilton chamou seu "realismo natural", doutrina segundo a qual a percepção é uma relação
imediata com o objeto existente iDissertations on Reid, p. 825).
PRESENTE. V. INSTANTE; AGORA; TEMPO.
PRESSUPOSTO (in. Presupposition; fr. Presupposition; ai. Voraussetzung; it. Presuppos-tó). 1.
Premissa não declarada de um raciocínio, utilizada no decorrer de um raciocínio, mas que não foi
previamente enunciada, não havendo, pois, um compromisso definitivo em relação a ela. Diferentemente
da premissa, do postulado, da hipótese, etc, o P. é introduzido sub-repticiamente no decorrer de um
raciocínio, limitando ou dirigindo-o de maneira dissimulada ou oculta. Pode ser também definido como
regra sub-reptícia de inferência. Portanto, o princípio da eliminação dos P. é fundamental para todos os
campos da investigação no mundo moderno. A expressão "eliminação dos P." (ai. Voraussetzungslosigkeii) parece ter sido cunhada apenas por Fr. Strauss (Leben Jesu, 1836, p. IX), mas a exigência que ela
encerra está na origem da ciência moderna (que com Galileu procurou livrar-se dos P. metafísicos) e da
filosofia moderna (que com Bacon e Descartes afirmou a exigência de uma investigação radical, fundada
apenas em premissas declara-
PRESUNÇÃO
790
PREVISÃO
das). A eliminação dos P. também tem o fim de evitar que, em certo campo de investigações, atuem
crenças pertencentes a campos diferentes que limitem a investigação de modo não controlável. Husserl
fez uso mais restrito e técnico do princípio da eliminação dos P., lançando mão dele para delimitar a
esfera fenomenológica (Logiscbe Untersuchun-gen, II, Intr., § 7).
2. O mesmo que premissa, postulado ou hipótese. Este segundo significado pode levar a confusões.
PRESUNÇÃO (lat. Praesumptio; in. Pre-sumption; fr. Présomption; ai. Prüsumption; it. Presunzioné) .
1. Juízo antecipado e provisório, que se considera válido até prova em contrário. P. ex., "P. de culpa" é um
juízo de culpabilidade que se mantém até que seja aduzida uma prova em contrário; têm significado
análogo as expressões "P. de verdade" ou "P. favorável" ou "P. contrária" a uma proposição qualquer.
2. Confiança excessiva em suas próprias possibilidades; e neste sentido chama-se de presunçoso quem
alimenta tal confiança.
PRETERIÇÃO (in. Preterition; fr. Prêtéri-tion; it. Preterizioné). Conceito utilizado pela teologia
calvinista para atenuar a doutrina da dupla predestinação: os réprobos são assim porque Deus "os
preteriu" em sua escolha (cf. Calvin, Institutions de Ia religion chrétienne, III, cap. 24)_.
PREVISÃO (gr. JtpÓTVOXJiç; in. Prediction; fr. Prévision; ai. Voraussage, it. Previsioné). Um dos
objetivos fundamentais da explicação científica, ou a própria explicação. Na ciência antiga, a importância
da P. foi acentuada apenas em medicina (HIPÓCRATES, Prognostikon, I). Galileu expunha esse conceito
afirmando que "chegar ao conhecimento de um único efeito para suas causas abre-nos o intelecto ao
entendimento e à certeza de outros efeitos, sem necessidade de recorrer à experiência" (Discor-si intorno
a due nuove scienze, Opere, ed. Utet, II, p. 799). A P. foi utilizada por Hume em sua crítica da
causalidade: "Por sermos levados pelo costume a transferir o passado para o futuro, em todas as nossas
inferências, sempre que o passado se manifesta regular e uniforme, esperamos o acontecimento com a
máxima certeza e não damos ocasião a suposições contrárias" ilnq. Cone. Underst., VI). Comte pôs esse
conceito em primeiro plano com sua fórmula "Ciência, portanto P.; P., portanto ação" (Cours dephil. pos.,
1830, I, p. 51). Heltz expressou-o nas palavras de abertura da Introdução a Prinzipien derMechanik(1894): "O problema mais
imediato e, certamente, o mais importante que nosso conhecimento da natureza permite resolver é a
previsão dos acontecimentos futuros, de tal modo que possamos organizar nossas atividades presentes de
acordo com tais previsões". Para Peirce, a P. é a base da verdade prática da hipótese científica: "Na
indução não é o fato previsto que, em alguma medida, determina a verdade da hipótese ou a torna
provável, mas sim o fato de ele ter sido previsto com sucesso e de ser uma amostra aleatória de todas as P.
que podem basear-se na hipótese e que constituem a verdade prática dela" (Coll. Pap., 6.527).
No neoempirismo contemporâneo, alguns filósofos tendem a reduzir a P. à explicação; outros, a reduzir a
explicação à previsão. No primeiro sentido, Carnap expressa-se dizendo que "a natureza de uma P., no
que diz respeito à confirmação ou à comprovação, é a mesma de um enunciado sobre um evento presente
não diretamente observado por nós, como p. ex. sobre um processo em curso no interior de uma máquina
ou um acontecimento político na China ("Testability and Meaning", em Readings in the Phil. of Science,
1953, p. 87). No segundo sentido, Quine declara acreditar que o esquema conceituai da ciência é, em
última análise, um instrumento para prever a experiência futura à luz da experiência passada (From a
Logical Point of View, II, 6). A identidade entre lógica da P. e lógica da explicação foi asseverada por
Feigl (em Readings, cit., p. 417-18), enquanto Hempel defendeu a tese da identidade estrutural (ou da
simetria) entre explicação e P., no sentido de que "toda explicação adequada é potencialmente uma P., e,
inversamente, toda P. adequada é potencialmente uma explicação" (Aspects of Scientific Explanation,
1965, p. 367). Popper, depois de afirmar que todas as ciências teóricas, inclusive as sociais, são ciências
de P., ressaltou a distinção entre a P. científica e a profecia histórica, porque esta última carece do caráter
condicional da primeira: "As P. comuns da ciência são condicionais. Asseveram que certas mudanças (p.
ex., da temperatura da água numa chaleira) serão acompanhadas por certas transformações (p. ex., a
ebulição da água)" {Conjectures and Refutations, 1965, p. 339).
Reichenbach usou o termo pós-visibilidade (post-dictability) para indicar a possibilidade
PRIMADO
791
PRIMITIVO
de determinar "os dados passados em termos de observações dadas" {Philosophic Founda-tions of
Quantum Mechanics, 1944, p. 13). O termo pós-visão ou retrovisão (postidiction or retrodictiori) foi
empregado para indicar o inverso lógico de uma P., ou seja, a inferência que procede de um
acontecimento presente para trás, em direção a uma condição inicial já conhecida (HANSON, The Concept
of the Po-sition, 1963, p. 193). V. EXPLICAÇÃO.
PRIMADO (in. Primacy, fr. Primauté, ai. Pritnat; it. Primató). Importância primária de uma coisa ou o
que condiciona uma coisa em relação às outras. Kant diz: "Por P. entre duas ou mais coisas ligadas pela
razão, entendo a superioridade de uma delas por ser o primeiro motivo que determina a ligação com todas
as outras". Mais precisamente, "P. da razão prática" significa a prevalência do interesse prático sobre o
teórico, no sentido de a razão admitir, por ser prática, proposições que não poderia admitir no uso teórico
e que não constituem uma de suas extensões cognoscitivas: os postulados da razão prática (Crít. R.
Prática, II, cap. 2, seç. 3). A palavra P. foi usada no campo político para indicar a função predominante
que certo elemento (povo, nação, classe, grupo social, etc.) tem ou deve ter na totalidade à qual pertence.
Gioberti falou neste sentido do P. moral e civil dos italianos(1843). Nesta extensão, o termo adquire
significados ainda mais vagos e arbitrários que no primeiro significado. PRIMALIDADE (lat.
Primalitas; ai. Prima-litãt; it. Primalitã). Princípio constitutivo do ser, segundo Campanella. Há três P.:
poder (potentiá), saber isapientià) e amor {amor), que em Deus são infinitas e nas coisas são limitadas
pelos seus contrários — impotência, insipiência e ódio —, que constituem o não ser (Metaphisica, 1638,
VI, Proem). Esse termo tem o mesmo valor de princípio (v.).
PRIMÁRIAS e SECUNDARIAS, QUALIDADES. V. QUALIDADE.
PRIMÁRIO (lat. Primarius; in. Primary, fr. Primaire, ai. Primar, it. Primário). 1. O que é primeiro ou
mais importante num campo qualquer, ou o que é primeiro no sentido de condicionar o que vem depois,
sem ser condicionado por ele. Este era um dos sentidos — o fundamental — que Aristóteles atribuía à
palavra "primeira" (Met., V, 11, 1019 a 2), sendo o mais freqüentemente relacionado com o uso do termo.
"Qualidades P.", p. ex., são as qualidades que não podem faltar nos corpos e que
condicionam as "qualidades secundárias". "Escola P." é aquela que todos devem freqüentar e que prepara
aos outros tipos de escola. "Atenção P." foi o nome dado por alguns psicólogos à atenção primitiva,
originária, etc. Diz-se "importância P." para dizer importância fundamental ou condicionante.
2. O mesmo que primitivo (v.).
PRIMEIRO MOTOR. V. DEUS, PROVAS DE.
PRIMEIRO MÓVEL. V. MÓVEL, PRIMEIRO.
PRIMrnVISMO (in. Primitivism, fr. Primi-tivisme, it. Primitivismó). 1. Atitude ou mentalidade dos
povos primitivos, especialmente no aspecto de conformação do indivíduo aos valores do ambiente. É
neste sentido que esse termo é usado, p. ex., por Scheler {Sympathie, cap. III; trad. fr., p. 362, n. 2).
2. Crença de que a forma mais perfeita de vida humana é a que existiu no primeiro período da
humanidade (mito da idade do ouro), ou a que se observa nos povos primitivos, considerados mais jovens
(mito do "bom selvagem"). Quanto a este significado de P., v. Lovejoy e Boas, Primitivism and Related
Ideas in Anti-quity, 1935; Boas, Essays on Primitivism and Related Ideas in the Middle Ages, 1948).
PRIMITIVO (in. Primitive, fr. Primitif, ai. Primitiv, it. Primitivo). 1. O mesmo que originário (v.), nos
dois sentidos deste termo: a) o que pertence à fase inicial de um desenvolvimento ou de uma história, e
neste sentido dizemos "a nebulosa P.", "a humanidade P.", etc; b) o que funciona como condição,
princípio ou premissa, e por isso determina outras coisas, não sendo, porém, determinado por elas; neste
sentido, dizemos "proposições P.", "função P.". Chamam-se "símbolos P." os introduzidos diretamente,
sem ajuda de outros símbolos.
2. O que é simples, no sentido de constituir a forma mais elementar que certo objeto pode assumir; neste
sentido fala-se em "homens P." ou simplesmente "os P.". Durkheim utilizou esse significado para definir
os P., juntamente com o significado estudado em {a) (Les formes élementaires de Ia vie religieuse, 1937,
p. 1). Mas Lévy-Bruhl escreveu: "Com este termo impróprio, mas de uso quase indispensável,
pretendemos designar simplesmente os membros das sociedades mais simples que conhecemos" (Les
fonctions mentales dans le sociétes inférieures, 1910, p. 2). No mesmo sentido, emprega-se hoje a palavra
primário (v.).
No que diz respeito às interpretações do mundo P., podem ser agrupadas em duas cias-
PRIMORDIAL
792
PRINCÍPIO
ses: d) as que consideram o mundo P. como pré-lógico, pré-empírico e místico, portanto de constituição
completamente diferente da sociedade civilizada; esta foi a interpretação defendida especialmente por
Lévy-Bruhl (do qual além da obra citada, v.: La mentalitéprimitive, 1922; L'âmeprimitive, 1927;
Uexpérience mys-tique et le symboles chez les primitifs; 1938), mas corrigida por ele mesmo, no sentido
de matizar ou atenuar a diferença entre a mentalidade P. e a não P., que é mais de grau que de qualidade
{Les carnets, 1949); b) as que admitem nas comunidades P. a posse de abundante patrimônio de
conhecimentos fundados na experiência e na razão, considerando que o homem P. tende a recorrer à
magia ou ao misticismo só quando os conhecimentos que possui não o ajudam mais. Esta é a
interpretação defendida principalmente por Bronislaw Mali-nowski (Magic, Science and Religion, 1925)
e hoje adotada por quase todos os sociólogos.
PRIMORDIAL (in. Primordial; fr. Primordial; it. Primordialé). O mesmo que originário (v.).
PRINCÍPIO (gr. àpjcí; lat. Principium; in. Principie, fr. Príncipe; ai. Prinzip, Grundsatz; it. Principio).
Ponto de partida e fundamento de um processo qualquer. Os dois significados, "ponto de partida" e
"fundamento" ou "causa", estão estreitamente ligados na noção desse termo, que foi introduzido em
filosofia por Ana-ximandro (Simplício, Fís., 24,13); a ele recorria Platão com freqüência no sentido de
causa do movimento (Fed., 245 c) ou de fundamento da demonstração (Teet., 155 d); Aristóteles foi o
primeiro a enumerar completamente seus significados. Tais significados são os seguintes: le
ponto de
partida de um movimento, p. ex., de uma linha ou de um caminho; 2- o melhor ponto de partida, como p.
ex. o que facilita aprender uma coisa; 3e
ponto de partida efetivo de uma produção, como p. ex. a quilha
de um navio ou os alicerces de uma casa; 4S
causa externa de um processo ou de um movimento, como p.
ex. um insulto que provoca uma briga; 5e
o que, com a sua decisão, determina movimentos ou mudanças,
como p. ex. o governo ou as magistraturas de uma cidade; 6a
aquilo de que parte um processo de
conhecimento, como p. ex. as premissas de uma demonstração. Aristóteles acrescenta a esta lista: "'Causa'
também tem os mesmos significados, pois todas as causas são princípios. O que todos os significados têm
em comum é que, em todos,
P. é ponto de partida do ser, do devir ou do conhecer" {Mel, V, 1, 1012 b 32-1013 a 19).
Esses reparos de Aristóteles contêm quase tudo o que a tradição filosófica posterior disse a respeito dos
princípios. Talvez caiba distinguir outro significado: como ponto de partida e causa, o P. às vezes é
assumido como o elemento constitutivo das coisas ou dos conhecimentos. Este, provavelmente, era um
dos sentidos da palavra entre os pré-socráticos, às vezes utilizado pelo próprio Aristóteles (Met., I, 3, 983
b 11; III, 3, 998 b 30, etc). Neste sentido, Lucrécio chamava os átomos de P. (De rer. nat., II, 292, 573,
etc), e os estóicos distinguiam elementos e P., pelo fato de que os P. não são gerados e são incorruptíveis
(DIÓG. L., VII, 1, 134).
No séc XVIII, ao definir o P. como "o que contém em si a razão de alguma outra coisa", Wolff (Ont., §
886) observava que esse significado estava de acordo com a noção de Aristóteles e que os escolásticos
não se haviam afastado dela (Ont., § 879). Baumgarten, a quem a terminologia moderna tanto deve,
repetia a definição de Wolff (Met., § 307). Kant, por um lado, restringia o uso do termo ao campo do
conhecimento, entendendo por P. "toda proposição geral, mesmo extraída da experiência por indução, que
possa servir de premissa maior num silogismo", mas por outro lado introduzia a noção de "P. absoluto" ou
"P. em si", vale dizer, conhecimentos sintéticos originários e puramente racionais, que ele julgava
insubsis-tentes, mas aos quais a razão recorreria no seu uso dialético (Crít. R. Pura, Dialética, II, A).
Na filosofia moderna e contemporânea a noção de P. tende a perder importância. Com efeito, inclui a
noção de um ponto de partida privilegiado, não de modo relativo (em relação a certos objetivos), mas
absoluto, em si. Um ponto de partida desse gênero hoje dificilmente poderia ser admitido pelas ciências.
Poincaré observava com razão que um P. não passa de lei empírica que se considere cômodo subtrair ao
controle da experiência por meio de convenções oportunas: portanto, um P. não é verdadeiro nem falso,
mas apenas cômodo (La valeur de Ia science, 1905, p. 239). Em matemática e lógica, nas quais há
oportunidades dessa natureza, esse termo está em desuso para indicar as premissas de um discurso, e foi
substituído por axioma ou postulado. Nestes campos, é freqüente dar-se o nome de P. a teo-remas
particulares, cuja importância para o
PRINCÍPIO ATIVO
793
PROBABILIDADE
desenvolvimento ulterior de um sistema simbólico se queira ressaltar. Peirce chamara de P. guia (Leading
Principie) o P. que "se deve supor verdadeiro para sustentar a validade lógica de um argumento qualquer"
(Coll. Pap., 3,168; cf. DEWEY, Logic, I; trad. it., p. 46).
PRINCÍPIO ATIVO (gr. xò rcoioüv). Foi esse o nome que os estóicos deram à Razão, à Causa ou Deus
que dá forma à matéria (que é o P. passivo), produzindo nela os seres individuais (DIÓG. L., VII, 134);
identificaram esse princípio com o Fogo, no sentido de calor ou de espírito animador (Lbid., VII, 156;
CÍCERO, De nat. deor., II, 24).
PRINCÍPIO DE AÇÃO MÍNIMA; DE CAUSALIDADE; DE CONTRADIÇÃO; DE
IDENTIDADE; DOS INDISCERNÍVEIS; DE IN-DIVIDUAÇÃO; DE RAZÃO SUFICIENTE; DO
TERCEIRO EXCLUÍDO; etc.V. termos relativos.
PRIORIDADE (in. Priority, fr. Priorité, ai. Prioritàt; it. Prioritã). 1. Precedência no tempo. 2. Caráter
do que é primário (v.). PRIVAÇÃO (gr. OTéptiaiÇ; lat. Privatio; in. Privation-, fr. Privation; ai.
Privation-, it. Priva-zioné). Falta daquilo que, j>or qualquer razão, poderia ou deveria ser. E este o
sentido da definição de Wolff: "Ausência de uma realidade que podia ser ou à qual não repugna ser"
(Ont., § 273). Aristóteles incluíra entre os significados desse termo (todos redutíveis ao que acabamos de
enunciar) também a falta de um atributo que não pertence naturalmente à coisa, como quando se diz que
uma planta não tem olhos {Met., V, 22, 1022 b 22). Mas essa generalização excessiva torna o conceito
quase que inútil. O próprio Wolff fazia a distinção entre entidades privativas, que consistem na falta
(como cegueira, morte, trevas, etc.) e em seus nomes relativos, de entidades positivas e seus nomes (Ont.,
§ 273-274); essa distinção foi reproduzida por John Stuart Mill, que observava a respeito: "Os nomes
denominados privativos indicam duas coisas: ausência de certos atributos e presença de outros, a partir
dos quais se poderia esperar naturalmente a presença dos primeiros" (Logic, I, 2, § 6). Estas distinções
conservaram-se na lógica tradicional do séc. XIX (cf., p. ex., SIGWART, Logik., 1889, I, § 22).
PROBABILIDADE (gr. xò EÍKÓÇ; lat. Pro-babilitas; in. Probability, fr. Probabilité; ai.
Warhscheinlichkeü; it. Probabilita). Grau ou a medida da possibilidade de um evento ou de
uma classe de eventos. Nesse sentido, P. sempre supõe uma alternativa, e é a escolha ou preferência por
uma das alternativas possíveis. Se dissermos, p. ex., "amanhã provavelmente choverá", estaremos
excluindo como menos provável a alternativa "amanhã não choverá"; se dissermos "a P. de uma moeda
dar coroa é de metade", o significado dessa afirmação decorre do confronto com a outra alternativa
possível, de ela dar cara. Podemos exprimir esse caráter da P. dizendo que ela é sempre função de dois
argumentos. Outro caráter geral da P. (seja qual for a interpretação) é que do ponto de vista quantitativo
ela é expressa com um número real cujos valores vão de 0 a 1.
O problema a que a noção de P. dá origem é o do significado, ou seja, do próprio conceito de
probabilidade. O cálculo de P., p. ex., não dá origem a problemas enquanto não é interpretado: os
matemáticos estão de acordo sobre todas as coisas que podem ser expressas por símbolos matemáticos,
porém seu desacordo começa quando se trata de interpretar tais símbolos. Carnap (The Two
ConceptsofProbability, 1945, agora em Readings in the Pbilosophy of Science, 1953, pp. 441 ss.) e
Russell (Human Knowledge, 1948, V, 2) falaram da existência de dois conceitos diferentes e irredutíveis
de P.; o primeiro chamou, respectivamente, de P. indutiva (ou grau de confirmação) e P. estatística (ou
freqüência relativa); o segundo falou em grau de credibilidade e P. matemática. Foram propostos outros
nomes para esses dois tipos de P. Kneale deu o nome de aceitabilidade 3.0 primeiro tipo e de acaso
(chance) ao segundo (Probability and Induction, 1949, p. 22); Braithwaite denominou o primeiro de
razoabi-lidadee o segundo de P. (ScientificExplanation, 1953, p. 120).
Os dois conceitos defrontaram-se nos últimos quarenta anos, procurando cada qual eliminar o outro, o
que é tipicamente representado nas posições de Von Moisés e de Jeffreys. O primeiro rejeita, por ser
subjetivo, o conceito de P. indutiva, considerando sem sentido utilizar o termo P. fora do conceito
estatístico (Probability, Statistics and Truth, 1928, ed. 1939, lect. I, III). O segundo acha que a chamada
definição objetiva de P. é inutilizável e que nem os estatísticos a empregam, porque "todos usam a noção
de grau de crença razoável, em geral sem notarem que a estão usando" (Theory of Probability, 1939, p.
300). Visto que as observações de Carnap e de Russell tornam
PROBABILIDADE 794
PROBABILIDADE
essa polêmica sem significado, mas ao mesmo tempo confirmam a existência de dois conceitos diferentes
de P., pode-se, com base em tais conceitos, fazer um apanhado das doutrinas relativas. Para se evitarem
qualificações polêmicas (e inexatas), como "subjetivo", "objetivo", etc, pode-se simplesmente considerar
como característica distintiva dos dois conceitos de P. a função desempenhada por cada um deles e falar,
conseqüentemente, de ls
P. singular, 2- P. coletiva.
\° Para caracterizar o primeiro conceito de P. pode-se dizer que ele tem em vista o grau de possibilidade
de um evento único e que, portanto, seus argumentos são eventos, fatos ou estados de coisas ou
circunstâncias, sendo a probabilidade expressa por proposições do tipo "Amanhã provavelmente
choverá". O antecedente histórico remoto dessa noção é o conceito neo-acadêmico de representação
persuasiva (v.), cujos graus eram enumerados por Carnéa-des, que os determinava por provas ou por
indícios negativos ou positivos (v. PERSUASIVO).
Os criadores do cálculo de P. tinham em mente esse conceito de probabilidade. Ber-nouilli deu a seu
tratado, primeira obra importante sobre o assunto, o nome de Ars con-jectandi (1713). A grande obra de
Laplace, intitulada Théorie analytique des probabilités (1812), inspirava-se no mesmo conceito; em sua
introdução, Laplace afirmava que "a P. dos eventos serve para determinar o temor ou a esperança das
pessoas interessadas na existência deles" (Essai philosophique sur lesprobabilités, 1,4), e toda a sua obra
não trata de estatística, mas dos métodos para estabelecer a aceitabilidade das hipóteses. Desse ponto de
vista, a P. era definida como "a relação entre os números de casos favoráveis e o de todos os casos
possíveis". O princípio fundamental para avaliar as P. era o chamado princípio de indiferença ou de
eqüiprobabilidade, segundo o qual, na falta de qualquer outra informação, assume-se que os vários casos
são igualmente possíveis; desse modo, p. ex., quando se lança um dado, admite-se que cada uma de suas
faces tem idênticas P. de aparecer, uma vez que cada face tem a mesma P. de 1/6 (.Op. cit., I, 3).
Embora esta teoria tenha sido acerbamente criticada, foi retomada em 1921 pelo economista inglês John
Maynard Keynes, em seu Tratado sobre a P., e mais tarde exposta por F. P. Ramsey {The Foundations of
Mathematics, 1931) e por H. Jeffreys {Jheory of Probability,
1939). Todos esses escritores definem a P. como um "grau de crença racional" e admitem a validade do
princípio de indiferença, mas, como notou o próprio Carnap, o caráter subjetivo dessa definição é apenas
aparente, pois o que eles procuraram determinar são os possíveis graus de confirmação de determinada
hipótese. De fato, os graus de crença só poderiam ser estabelecidos por métodos psicológicos, ao passo
que, na realidade, os métodos propostos por esses autores nada têm de psicológicos; são lógicos e
referem-se à disponibilidade e à natureza das provas que podem confirmar uma hipótese. Com base nesse
conceito objetivo de P. singular, Carnap criou um sistema de lógica quantitativa indutiva, com
fundamento no conceito de confirmação èm suas três formas: positiva, comparativa e quantitativa
(Logical Foundations of Probability, 1950). O conceito positivo de confirmação é a relação entre dois
enunciados h (hipóteses) e p (prova), que pode ser expressa por enunciados da seguinte forma: "h é
confirmado por p"; "h é apoiado porp"; "pé uma prova (positiva) para h"; "pé uma prova que
consubstancia (ou corrobora) a assunção de h". O conceito comparativo (topológicó) de confirmação
geralmente é expresso em enunciados que têm a forma "h é mais fortemente confirmado (apoiado,
consubstanciado ou corroborado, etc.) por p do que ti porp". Finalmente o conceito quantitativo (ou
métrico) de confirmação (conceito de grau de confirmação) pode ser determinado nos vários campos por
métodos análogos aos utilizados para introduzir o conceito de temperatura, com o fim de explicar os de
"mais quente" ou "menos quente" ou o de quociente intelectual, para determinar os graus comparativos de
inteligência. Carnap também defendeu o princípio de indiferença (mesmo considerando-o como forma
limitada), aplicando-o às distribuições estatísticas, e não às distribuições individuais. A teoria de Carnap
foi amplamente discutida e aceita. Foram propostas outras determinações do conceito de grau de
confirmação (cf. p. ex., HELMER e OPPENHEIM, "A Syntactical Definition of Probability and Degree of
Confimnation" em Journal ofSymbolic Logic, 1945, p. 25-60).
O conceito de P. singular, ou seja, de grau de confirmação, é o único a que se faz geralmente referência
nos acontecimentos da vida e que é assumido, explícita ou implicitamente, como orientador dos
comportamentos indivi-
PROBABILIDADE
795
PROBABILIDADE
duais. É preciso observar que, entre os indícios ou provas que podem ser assumidos como confirmação de
uma hipótese qualquer, como fundamento de um juízo de P., nada impede que se inclua a consideração
das freqüências estatísticas às quais se reduz o segundo conceito de P. Às vezes, porém, a P. estatística faz
parte de determinação da P. singular com sinal invertido; p. ex., para quem aposta na loteria, a freqüência
com que certo número foi sorteado nos últimos tempos é um indício de P. negativa: para ele, são bons os
números menos sorteados durante um período mais ou menos longo.
2- O segundo conceito fundamental é de P. coletiva ou estatística, cujo objeto nunca são eventos ou fatos
individuais, mas classes, espécies ou qualidades de eventos, podendo, portanto, ser expressos apenas por
funçõespropo-sicionais (v.), e não por proposições. Seu antecedente histórico mais distante é o conceito
aristotélico do verossímil (v.): "Provável é aquilo que sabidamente acontece ou não na maioria das vezes,
que é ou não na maioria das vezes" (An.pr., II, 27, 70 a 3; Ret., I, II, 1357 a 34). Mas a formulação
rigorosa desse conceito só foi feita recentemente por Fischer {Philo-sophical Transactions ofthe Royal
Society, série A. 1922), por Von Moisés {Probability, Statistics and Truth, 1928), por Popper (Logik der
Fors-chung, 1934) e por Reichenbach ( Wahrschein-lichkeitslebre, 1935; Tbeory of Probability, 1948).
Como ilustração dessa noção de P., podemos escolher a elaboração de Von Moisés, com o conceito da
freqüência-limite. Se para n observações o evento examinado ocorre m vezes, o quociente m/né a
freqüência relativa da classe de eventos em questão: relativa ao número n de observações. Mas se
quisermos falar simplesmente em freqüência, sem limitar a extensão das observações, podemos supor
que, à medida que o numerador e o denominador vão ficando maiores, a função m/n tende para um valorlimite, podendo-se considerar esse valor-limite como medida da freqüência, ou seja, como medida da P.
no sentido proposto. Assim, p. ex., se lançando uma moeda 1.000 vezes tivermos freqüência 550 para
cara, se em 2.000 vezes tivermos freqüência 490, em 3.000 freqüência 505, em 4.000, freqüência 497, em
10.000, freqüência 5.003, e assim por diante, visto que o valor-limite dessas séries é 0.5, assumiremos
esse valor-limite como valor da
P. do acontecimento em questão. Mas esse acontecimento nunca é singular, portanto a P. assim calculada
não servirá para prever o resultado do próximo lance da moeda e permitir, p. ex., que um jogador escolha
a sua aposta. A P. dessa espécie vale para classes de eventos, e não para eventos singulares. Não se pode
falar, p. ex., da P. de um indivíduo qualquer morrer no ano em curso, mesmo quando conhecemos o limite
de freqüência da mortalidade no grupo ao qual ele pertence (cf. também de VON MOISÉS, Kleines
Lehrbuch des Positivismus, % 14). Reinchenbach afirmou a propósito: "A asserçâo que concerne à P. de
um caso individual tem significado fictício, construído através da transferência de significado do caso
geral para o particular. A adoção dos significados fictícios não é justificável por motivos cognitivos, mas
porque é útil aos objetivos da ação considerar tais asserçòes dotadas de significado" (Theory of
Probability, p. 377). A outra característica fundamental da teoria é a eliminação do princípio de
indiferença, ou seja, da P. apriori. A teoria estatística da P. de fato nada pode dizer a respeito da P. de uma
classe de eventos se antes não tiver determinado as freqüências desse evento; portanto, qualquer grau de
P. só pode ser determinado a posteriori, ou seja, depois de efetuada a determinação das freqüências
(REICHENBACH, Op. cit., § 70, pp. 359 ss.).
A teoria coletiva ou estatística da P. foi amplamente aceita na filosofia contemporânea (vejam-se, além
das obras citadas, J. O. Wis-DOM, Foundations of Inference in Natural Science, 1952, e BRAITHWAITE,
Scientific Expla-nation, 1953). Outra determinação dessa doutrina foi feita por Popper, principalmente
com vistas à sua utilização na teoria quântica. Como dissemos, a P. estatística não se refere a eventos
singulares, mas a classes ou seqüências de eventos. Popper propõe considerar como decisivas as
condições sob as quais a seqüência é produzida, vale dizer, considerar que as freqüências dependem das
condições experimentais e portanto constituem uma qualidade dis-posicionalda ordenação experimental.
Popper diz: "Qualquer ordenação experimental é capaz de produzir uma seqüência de freqüências que
dependem dessa particular ordenação, se repetirmos a experiência mais vezes. Estas freqüências virtuais
podem ser denominadas probabilidades. Mas, visto que as P. dependem da ordenação experimental, elas
podem ser
PROBABÜISMO
796
PROBLEMA
consideradas propriedades dessa ordenação. Caracterizam a disposição ou propensão da ordenação
experimental a dar origem a certas freqüências características, quando o experimento é repetido várias
vezes" ("The Propensity Interpretation of the Calculus of Probability and the Quantum Theory", em
Observation and Interpretation, A Symposium ofPhilosophers and Physicists, ed. por Kõrner, 1957, p.
67). A vantagem dessa interpretação seria considerar fundamental "a P. do resultado de um experimento
único em relação com suas condições, e não a freqüência dos resultados numa série de experimentos"
(Ibid., p. 68). Popper faz analogia entre esse conceito e o de campo (v.), observando que nesse caso uma
P. pode ser considerada um "vetor no espaço das possibilidades" (Ibid). Essa interpretação tende,
obviamente, a diminuir a distância entre os dois conceitos fundamentais de probabilidade.
PROBABILISMO (in. Probabilism; fr. Pro-babilisme, ai. Probabilismus, it. Probabilismó). 1. Ceticismo
da Nova Academia que, mesmo negando a existência de um critério de verdade, considerava critério
suficiente para dirigir a conduta da vida aquilo que Arcesilau chamava de plausível {SEXTO E., Adv.
math., VII, 158) e Carnéades, de provável (Ibid., VII, 166; Pirr. hyp., I, 33, 226).
2. Doutrina à qual freqüentemente recorria a casuística dos jesuítas do séc. XVII, segundo o qual, para
não pecar, nos casos de regra da moral duvidosa, basta ater-se a uma opinião provável, considerando-se
provável a opinião defendida por algum teólogo. Leibniz observava a respeito: "O defeito dos moralistas
laxistas foi, em grande parte, terem uma noção demasiadamente limitada e insuficiente do provável, que
eles identificaram com o opinável de Aristóteles", enquanto o provável é, segundo Leibniz, um conceito
muito mais amplo (Nouv. ess., IV, 2, 14). O P. teve, especialmente no séc. XVII, inúmeras variantes, entre
as quais podemos lembrar: o probabiliorismo, segundo o qual, nos casos de aplicação duvidosa de uma
regra moral, não se deve adotar uma opinião provável qualquer, mas a mais provável, e o tutiorismo,
segundo o qual é preciso seguir a opinião que se conforma com a lei. Trata-se de doutrinas ou disputas
que não têm significado fora da casuística jesuíta do séc. XVII (cf. A. SCHMITT, Zur Geschi-chte des
Probabilismus, 1904).
3. Corrente da ciência contemporânea, que atribui caráter de probabilidade a grande número de
conhecimentos ou a todos eles (v. CAUSALIDADE; CONDIÇÃO; DETERMINISMO).
PROBLEMA (gr. 7tpópA.T|LUX; lat. Problema; in. Problem; fr. Problème, ai. Problem; it. Problema).
Em geral, qualquer situação que inclua a possibilidade de uma alternativa. O P. não tem necessariamente
caráter subjetivo, não é redutível à dúvida, embora, em certo sentido, a dúvida também seja um problema.
Trata-se mais do caráter de uma situação que não tem um significado único ou que inclui alternativas de
qualquer espécie. P. é a declaração de uma situação desse gênero.
A noção de P. foi elaborada pela matemática antiga, que a distinguiu da noção de teorema (v.). Por
problema entendeu-se uma proposição que parte de certas condições conhecidas para buscar alguma coisa
desconhecida. Alguns geômetras (provavelmente os da escola platônica) acreditavam que sua ciência era
constituída essencialmente por problemas; outros, por teoremas (PROCLO, Com. ao I de Euclides, 11, 7-
81, 22, Friedlein). Aristóteles definia o P. como um procedimento dialético que tende à escolha ou à
recusa, ou também à verdade e ao conhecimento" (Top., I, II, 104 b), no qual as palavras "escolha" ou
"recusa" significam as alternativas que se apresentam aos problemas de ordem prática, enquanto
"verdade" e "conhecimento" designam as alternativas teóricas. Aristóteles exemplifica sua definição
dizendo que pertence à primeira espécie o P. de saber se o prazer é um bem ou não; à segunda espécie, o
P. de saber se o mundo é eterno (Ibid., 104 b 8). Visto que, onde existem P. também existem silogismos
contrários, os P., segundo Aristóteles, só podem nascer quando não há discurso concludente: em outros
termos, o P. pertence ao domínio da dialética, isto é, dos discursos prováveis, e não ao da ciência. Seja
como for, para Aristóteles o P. conserva o caráter de indeterminação que lhe é dado pela alternativa. No
uso matemático do termo, porém, esse caráter foi-se atenuando. A lógica medieval desprezara a análise e
a definição dessa noção, e quando ela volta a atrair a atenção dos lógicos, no séc. XVII, o significado que
eles lhe atribuem é extraído da matemática. Assim, Jungius diz que "o P. ou a proposição problemática é
uma proposição principal enunciando que alguma coisa pode ser feita, mostrada ou achada" (Lógica
hamburgensis,
PROBLEMA
797
PROBLEMÁTICO
1638, IV, 11, 7). Leibniz notava que "por P. os matemáticos entendem as questões que deixam em branco
uma parte da proposição" (Nouv. ess., IV, II, 7). E foi recorrendo ao uso matemático que Wolff definiu: o
P. como "uma proposição prática demonstrativa", entendendo por "prática" a proposição "com a qual se
afirma que alguma coisa pode ou deve ser feita" e excluindo explicitamente o significado aristoté-lico do
termo (Log., §§ 266, 276). Não muito diferente é a definição de Kant: "P. são proposições demonstráveis
que exigem provas ou expressam uma ação cujo modo de execução não é imediatamente certo" (Logik, §
38).
Também no pensamento moderno a noção de P. foi e continua sendo das mais negligenciadas. Embora
falem o tempo todo em P. e achem que é sua função solucionar certo número deles, especialmente dos
definidos como "máximos", os filósofos não se preocuparam muito em analisar a noção correspondente.
Na maioria das vezes o P. foi considerado como condição ou situação subjetiva e confundido com a
dúvida. O próprio Mach o definia neste sentido, como "a discordância dos pensamentos entre si"
(Erkenntniss undlrrtum, cap. XV; trad. fr., pp. 252-53). Só recentemente foi reconhecido o caráter de
indeterminação objetiva, que define o P.: isto aconteceu na Lógica(1959) de Dewey, para quem o P. é a
"propriedade lógica primária". O P. é a situação que constitui o ponto de partida de qualquer indagação,
ou seja, a situação indeterminada. "A situação indeterminada torna-se problemática no próprio processo
de sujeição à indagação. Decorre de causas reais, como acontece, p. ex., no desequilíbrio orgânico da
fome. Nada há de intelectual ou cognitivo na existência de situações desse gênero, a não ser que elas são a
condição necessária para operações ou indagações cognitivas. O primeiro resultado do fato de promover a
indagação é que a situação é reconhecida como problemática (Logic, cap. VI, trad. it., p. l6l). A
enunciação do P. permite a antecipação de uma solução possível, que é a idéia-, a idéia exige o
desenvolvimento das relações inerentes ao seu significado, que é o raciocínio. Finalmente, a solução real
é a determinação da situação inicial, em que se chega a uma situação unificada em suas relações e
distinções constitutivas. Análise análoga a esta, em sua estrutura fundamental, foi feita por G. Boas, que
define o P. como "a consciência de um desvio da norma" (The Inquiring Mind,
1959, p. 56). Contudo, à análise de Dewey cabe acrescentar uma determinação fundamental: o
reconhecimento do fato de que um P. não é eliminado ou destruído pela sua solução. Um "P. resolvido"
não é um P. que não se apresentará mais como tal, mas é um P. que continuará a se apresentar com
probabilidade de solução. A descoberta de um medicamento que cure uma doença é a solução de um P.,
mas nem por isso o P. está eliminado, pois a doença continuará a ocorrer; portanto, o que a solução
permite é, em certos limites, resolver o P. todas as vezes que ele se apresente. Com base neste caráter do
P., fala-se da problematicidadedos campos em que se apresenta o P. Neste sentido, o P. é diferente não só
da dúvida (que, uma vez resolvida, está eliminada e é substituída pela crença), mas também da pergunta,
que, uma vez respondida, perde o significado.
PROBLEMÁTICA (ai. Problematik). Reunião ordenada ou sistemática de problemas.
PROBLEMATICIDADE. Caráter de um campo de indagação em que os problemas não são eliminados
pela sua solução. P. ex., "P. da experiência" é o caráter em virtude do qual, na experiência, os chamados
problemas resolvidos são apenas possibilidades de soluções previamente apresentadas para os problemas
que vão surgindo, e que têm algumas garantias de sucesso. Esse termo é empregado freqüentemente na
filosofia contemporânea, sem esclarecimentos explícitos.
PROBLEMATICISMO. Termo difundido na Itália por Ugo Spirito, para designar a doutrina da "vida
como busca": Vida condenada a procurar a verdade sem encontrá-la, oscilando então entre o dogmatismo
e o cepticismo (La vita come ricerca, 1937).
PROBLEMÁTICO (in. Problematic; fr. Pro-blématique, ai. Problematish; it. Problemático). 1. O que
representa um problema ou diz respeito a um problema.
2. O que não implica contradições nem garantia de verdade, de tal modo que pode ser afirmado ou negado
arbitrariamente. Este é o significado que Kant atribui ao termo: "A proposição P. é a que exprime só uma
possibilidade lógica (não objetiva), ou seja, a livre escolha de assumir tal proposição como válida" (Crít.
R. Pura, § 9). "Chamo de P. um conceito que não contém contradições e que, como limitação de conceitos
dados, liga-se a outros conhecimentos, mas cuja verdade objetiva não pode
PROCESSÃO
798
PROGRESSO
ser conhecida de modo algum" (Ibid., Anal. dos Princ, cap. III).
PROCESSÃO (gr. TtpóoSoç; lat. Processio, in. Procession; ai. Procession; it. Processioné). O que
procede de Deus, segundo os Neopla-tônicos: essa procedência dá origem a realidades de classe inferior,
que se assemelham àquelas das quais provêm. "Toda P. realiza-se por meio de semelhança das coisas
segundas com relação às primeiras", diz Proclo Unst. Theoi, 29; cf. PLOTINO, Enn., IV, 2, 1, 44; V, 2, 2;
SCOTUS ERIGENA, De áivis. nat., III, 17, 19, 25). A teologia cristã empregou a mesma noção para
determinar a relação entre as pessoas divinas. S. Tomás de Aquino distinguia a processio ad extra, na qual
a ação tende para algo de externo, e a processio ad intra, na qual a ação tende para algo de interno, como
acontece na P. que vai do intelecto ao objeto do entendimento, que continua dentro do próprio intelecto.
Neste segundo sentido, segundo S. Tomás de Aquino deve-se entender que a P. de pessoas divinas é de
Deus pai (S. Th., I, q. 27, a. 1).
PROCESSO (lat. Processas; in. Process; fr. Processus; ai. Process, it. Processo). 1. Procedimento,
maneira de operar ou de agir. P. ex., "o P. de composição e de resolução", para indicar o método que
consiste em ir das causas ao efeito, ou do efeito às causas (cf., p. ex., S. TOMÁS de Aquino, S. Th., III, q.
14, a. 5); "P. ao infinito", que é ir de uma causa a outra, infinitamente (Ibid., I, q. 46, a. 2).
2. Devir ou desenvolvimento, p. ex., "o P. histórico". É nesse sentido que Whitehead emprega o termo
para designar a formação do mundo (Process and Reality, 1929).
3. Concatenaçâo qualquer de eventos, como p. ex. o "P. digestivo" ou "o P. químico".
PRODUÇÃO (gr. 7toíecn.Ç; lat. Productio, in. Production; fr. Production; ai. Production; it.
Produzioné). Pôr como ser alguma coisa que poderia não ser. Platão definia como arte produtiva
"qualquer possibilidade que se torne causa de geração de coisas que antes não existiam" (Sof., 265 b), e
Aristóteles via na P. a função da arte, distinguindo-a da ação e do saber: "Toda arte concerne à geração e
procura os instrumentos técnicos e teóricos para produzir uma coisa que poderia ser e não ser e cujo
princípio reside em quem a produz, e não no objeto produzido" (Et. nic, VI, 4, 1140 a 10). Deste ponto de
vista, a P. distingue-se da ação, que é a operação cujo fim está em si mesma; diferença na qual S. Tomás
de Aquino insistiu
(v. AÇÃO). O platonismo, porém, diminuíra essa diferença. Plotino afirmou que, para a natureza, "ser o
que é significa produzir; ela é contemplação e objeto de contemplação porque é razão; e como é
contemplação e objeto de contemplação e de razão, produz. A P. é contemplação" (Enn., III, 8, 3). Estas
considerações foram freqüentemente repetidas do ponto de vista idealista, o que não impede que a melhor
definição do termo em questão continue sendo a aristotélica.
PRODUTO LÓGICO. É a figura (a b) resultante de multiplicação lógica (v.). G. P.
PROERESE. V. ESCOLHA.
PROFUNDO (in. Profound, Deep, fr. Pro-fond; ai. Tiefi it. Profondó). O que possui significado oculto e
inexprimível. Esse termo adquiriu significado técnico na filosofia e na psicologia contemporânea para
indicar aquilo que fica fora ca formulação explícita dos problemas, constituindo uma esfera que pode ser
"sentida" ou "intuída" de alguma maneira, portanto interpretada ou expressa metaforicamente; indica
também aquilo que, em algum campo de indagação, foge ao alcance de seus procedimentos, mas
manifesta sua presença de modo obscuro. Já Husserl opunha-se à noção de P. em filosofia: "A ciência
propriamente dita, em tudo o que abrange a sua doutrina autêntica, não conhece sentido profundo. Cada
momento de uma ciência perfeita é um todo de elementos de pensamentos, cada um deles compreendido
imediatamente, portanto sem sentido P." (Phil. ais strenge Wissenschaft, 1910, no fim, trad. it., p. 81).
Hoje, a noção de P. prevalece principalmente em certas correntes psicológicas e antropológicas, como a
psicanálise, o intuicionismo, o existen-cialismo, mas, apesar da riqueza de análises a que deu origem, já
começa a suscitar reações críticas salutares. "As psicologias abissais" — escreveu Y. Belaval — "e as
filosofias que nelas se inspiram não criaram novos fenômenos: supuseram processos e intenções ocultas,
propuseram novas idéias sobre o homem, mas essas hipóteses ou idéias sempre deixam de ser formuladas
na língua dos conhecimentos progressivos em que cada palavra designa univocamente um fenômeno
determinado, e cada regra de sintaxe uma operação técnica precisa" (Les conduites d'échec, 1953, p. 274).
PROGRESSO (in. Progress; fr. Progrès; ai. Fortschrift; it. Progresso). Esse termo designa duas coisas:
I
a
uma série qualquer de eventos
PROGRESSO
799
PROGRESSO
que se desenvolvam em sentido desejável; 2a
a crença de que os acontecimentos históricos desenvolvemse no sentido mais desejável, realizando um aperfeiçoamento crescente. No primeiro sentido, fala-se, p.
ex., do "P. da química" ou do "P. da técnica"; no segundo sentido, dizemos simplesmente "o P.". Neste
segundo sentido, a palavra designa não só um balanço da história passada, mas também uma profecia para
o futuro.
O primeiro sentido restrito do termo não dá origem a problemas e acha-se em toda parte. Os antigos
também o possuíram, em particular os estóicos, que o empregaram para indicar o avanço do homem no
caminho da sabedoria e da filosofia (J. STOBEO, Ecl., II, 6, 146: o termo é rcpoKomí).
O segundo sentido do termo não foi conhecido na Antigüidade clássica e na Idade Média. A concepção
geral que os antigos tiveram da história foi a de decadência, a partir de uma perfeição primitiva (idade do
ouro), ou de ciclo de eventos, que se repete identicamente sem limites (v. HISTÓRIA). Costuma-se atribuir
a primeira enunciação da noção de P. a Francis Bacon, que assim a expôs num famoso trecho do Novum
Organum (1620): "Por antigüidade deveria entender-se a velhice do mundo, que deve ser atribuída aos
nossos tempos e não à juventude do mundo, aos antigos. Do mesmo modo como de um homem idoso
podemos esperar um conhecimento muito maior das coisas humanas e um juízo mais maduro que o de um
jovem, graças à experiência e ao grande número de coisas que viu, ouviu e pensou, também da nossa era
(se ela tivesse consciência de suas forças e quisesse experimentar e compreender) seria justo esperarmos
muito mais coisas que dos tempos antigos, pois esta é a maiorida-de do mundo, em que ele está
enriquecido por inúmeras experimentações e observações" (Nov. Org., I, 84). Bacon conclui com a
expressão de Aulo Gélio (ou melhor, que Aulo Gélio atribuía a um antigo poeta): veritasfilia
temporis(Noct. Att., XII, 11). Alguns anos antes, conceitos semelhantes a estes haviam sido expostos por
Giordano Bruno em Cena delle Ceneri (1584). No séc. XVII a noção de progresso dá os primeiros passos,
principalmente por meio da disputa sobre os antigos e os modernos (v. ANTIGOS), enquanto no séc.
XVIII, com Voltaire, Turgot e Condorcet, prevaleceria na concepção da história. Mas foi só no séc. XIX
que esse conceito se afirmou totalmente, tornando-se, já
nas primeiras décadas, a bandeira do Romantismo e assumindo o caráter de necessidade. O conceito de
necessidade do plano progressista da história era expresso por Fichte da maneira mais enérgica:
"Qualquer coisa que realmente exista, existe por absoluta necessidade; e existe necessariamente na forma
exata em que existe". Essa necessidade é racionalidade pura: "Nada é como é porque Deus o queira
arbitrariamente, mas porque Deus não pode manifestar-se de outro modo. (...) Compreender com
inteligência clara o universal, o absoluto, o eterno e o imutável, que é o guia da espécie humana, é tarefa
dos filósofos. Fixar de fato a esfera cambiante e mutável dos fenômenos, através dos quais prossegue a
marcha segura da espécie humana, é tarefa do historiador, cujas descobertas são só casualmente
lembradas pelo filósofo" (Grundzüge des gegenwàr-tigen Zeitalters, 1806, 9). Idêntica concepção era
defendida pelo positivismo, que, com Augusto Comte, exalta o P. como idéia diretiva da ciência e da
sociologia, considerando-o como "o desenvolvimento da ordem" e esten-dendo-o também à vida
inorgânica e animal {Politiquepositive, 1851, I, pp. 64 ss.). On the Origin of Species (1859), de Darwin,
atribuía base positiva ou científica ao mito do P., aduzindo provas favoráveis ao transformismo biológico
interpretado em sentido otimista ou progressista. A obra de Spencer (First Principies, 1862) utilizava a
noção de P. para dar da realidade uma interpretação metafísica que pretendia ser positiva ou científica.
Estas são apenas as etapas mais marcantes da afirmação de um conceito que dominou todas as
manifestações da cultura ocidental do séc. XIX e ainda continua sendo pano de fundo de muitas
concepções filosóficas e científicas. As principais implicações dessa noção são as seguintes: I
a
o curso dos
eventos (naturais e históricos) constitui uma série unilinear; 2a
cada termo desta série é necessário no
sentido de não poder ser diferente do que é; 3a
cada termo da série realiza um incremento de valor sobre o
precedente; 4a
qualquer regressão é aparente e constitui a condição de um P. maior. As vezes, como na
filosofia de Hegel, limitam-se as condições de validade da 3a
proposição por se admitir que a história
constitui um círculo no qual as fases mais elevadas, já realizadas, constituem as condições para as mais
baixas, de tal modo que estas possuem a mesma racionalidade ou perfeição do todo (cf. HEGEL, Wissens-
PROJEÇÃO
800
PROPEDÊUTICA
chaft der Logik, I, I, I, cap. II, nota I, "O progresso infinito"; CROCE, Lastoria comepensiero e come
azione, 1938, p. 25). Mas nenhuma dessas quatro teses encontra apoio nas regras da metodologia
historiográfica que permitem delimitar, hoje, o campo da "história"; nenhuma delas é compatível com tais
regras; portanto, a idéia de P. não pertence ao domínio da historiografia científica. Por outro lado, na
cultura contemporânea a crença no P. foi muito abalada pela experiência das duas guerras mundiais e pela
mudança que elas produziram no campo da filosofia, pondo por terra a tendência romântica que a tinha
como pedra angular. Portanto, no estágio atual dos estudos, essa idéia só pode ser considerada válida
como esperança ou empenho moral para o futuro, e não como princípio diretivo da interpretação
historiográfica. Sobre o período áureo da crença no P., cf. J. B. BURY, Theldea ofProgress, 1932 (v.
HISTÓRIA).
PROJEÇÃO (in. Projection; fr. Projection; ai. Projektion; it. Proiezioné). Com este termo era freqüente
designar, na psicologia do séc. XK, a referência da sensação ao objeto, graças à qual o objeto é localizado
no espaço circun-dante, embora a sensação só ocorra no órgão do sentido. Quem mais contribuiu para o
êxito desse termo foi Helmholtz (Pbysiologische Optik, 1867, p. 602). Hoje está em desuso, visto que o
problema já não subsiste nos mesmos termos, em vista do novo conceito de percepção (v.).
Hoje, chamam-se projetivas as técnicas de averiguação psicológica que consistem em apresentar um
material (especialmente figuras) de significação ambígua, que pode ser interpretado segundo tendências,
necessidades ou repressões, e cuja interpretação pode revelar o estado de quem o interpreta. O mais
conhecido destes artifícios projetivos foi criado em 1921 pelo suíço Rorschach (cf. H. H. ANDERSON, e G.
L. ANDERSON, AnIntroduction toProjective Techniques, 1951).
Na psicanálise, o conceito de P. é usado para descrever o processo mediante o qual um indivíduo atribui a
outro as atitudes ou os sentimentos de que sente vergonha ou que ache difícil ou penoso reconhecer em si
mesmo (cf. J. R. SMITHIES, "Analysis of Projection" em British Journal of Philosophy of Science, 1954,
p. 120).
PROJETO (in. Plan; fr. Projet; ai. Projekt, Entwurf it. Progettó). Em geral, a antecipação de possibilidades: qualquer previsão, pre-dição, predisposição, plano, ordenação, pre-determinação,
etc, bem como o modo de ser ou de agir próprio de quem recorre a possibilidades. Neste sentido, na
filosofia existencialista, o P. é a maneira de ser constitutiva do homem ou, como diz Heidegger (que
introduziu a noção), sua "constituição ontológica existencial" (Sein und Zeit, § 31). Heidegger insistiu
também na tese de que todo projetar-se, por antecipar possibilidades de fato, incide sempre no fato e não
vai além: de tal modo que a máxima do homem que se projeta é "Sê o que és" (.Ihid.). Em outro trecho
Heidegger disse que o P. do mundo, em que consiste a existência humana, é antecipadamente dominado
pela facticidade, que ele procura transcender, mas acaba reduzindo-se e nivelando-se com a facticidade
(Vom Wesen des Grandes, 1929, 3; trad. it., pp. 67 ss.). Sartre substancialmente repetiu esses conceitos de
Heidegger, mas ressaltou a gratuidade perfeita dos "P. do mundo", em que consiste a existência. Chamou
de "fundamental" ou "inicial" o P. constitutivo da existência humana no mundo e considerou-o contínua e
arbitrariamente modificável: "A angústia que, ao ser revelada, manifesta-nos à consciência a nossa
liberdade, é testemunho da perpétua possibilidade de modificar nosso P. inicial" iUêtre et le néant, 1943,
p. 542).
Apesar de característica da filosofia existencialista, a noção de P. passou a fazer parte da terminologia
filosófica e científica contemporânea. Mostrou ser útil para expressar aspectos importantes das situações
humanas tanto das mais gerais, analisadas pela filosofia, como das específicas, que constituem o objeto
das ciências antropológicas: psicologia, sociologia, etc. V. ESTRUTURA e MODELO.
PROLEGÔMENOS (in. Prolegomena; fr. Prolégomènes; ai. Prolegomena; it. Prolegome-ní). Estudo
preliminar, introdutivo e simplificado. Esse termo aparece no título de algumas obras de filosofia, como a
de Kant, P. a toda metafísica futura (1783).
PROLEPSE. V. ANTECIPAÇÃO.
PROPEDÊUTICA (gr. 7ipo7iouôeía; in. Propaedeutics; fr. Propédeutique, ai. Propá-deutik, it.
Propedêutica). Ensino preparatório. Foi assim que Platão chamou o ensino das ciências especiais
(aritmética, geometria, astronomia e música), relativamente à dialética ÇRep., VII, 536 d). Ainda hoje se
dá esse nome à
PROPENSÃO 801
PROPOSIÇÃO
parte introdutiva de uma ciência ou de um curso que sirva de preparação a outro curso.
PROPENSÃO (lat. Propensio; in. Propen-sity; fr. Propension; ai. Neigung, it. Propensio-né). Tendência,
no significado mais geral. Hu-me usava esse termo para definir o costume: "Sempre que a repetição de
um ato ou de uma ação particular produz P. para repetir esse ato ou ação sem a coação por raciocínio ou
por processo intelectual, dizemos que essa P. é o efeito do costume" {Inq. Cone. Underst., V., 1).
PROPORÇÃO. V. ANALOGIA
PROPOSIÇÃO (gr. rcpóraotç; lat. Propositio, in. Proposition; fr. Proposition; ai. Satz; it. Proposizionè).
Enunciado declarativo ou aquilo que é declarado, expresso ou designado por tal enunciado. Os dois usos
do termo foram nitidamente distinguidos por Carnap {Intr. to Semantics, 1941, § 37), mas ainda são
freqüentemente confundidos, conquanto a distinção tenha sido amplamente aceita na lógica
contemporânea (cf. CHURCH, Intr. to Mathema-tical Logic, § 04; W. KNEALE e M. KNEALE, The
Development of Logic, pp. 49 ss.). Os dois usos são determinados por dois conceitos diferentes de P., mais
precisamente os seguintes: 1) P. como expressão verbal de uma operação mental, freqüentemente
chamada de juízo. 2) P. como entidade objetiva ou valor de verdade de um enunciado.
1. A doutrina de que a P. é expressão verbal de uma operação mental foi formulada pela primeira vez por
Aristóteles, para quem o conjunto (<Tuu,7tXoKf|) dos termos (nome e verbo) do discurso declarativo
(A.Ó70Ç à7to<pavTtKóç) corresponde a um pensamento(vór|LL(x) inerente necessariamente ao ser
verdadeiro ou falso; portanto, "o verdadeiro e o falso" versam sobre a composição e sobre a divisão
(oúvGeoiç KOCÍ ôtaípeotç) {De interpr., 1, 16 a 9 ss.). O discurso declarativo é, assim, expressão de um
pensamento que procede compondo e dividindo: a composição dá origem à afirmação; a divisão, à
negação ijbid., 6,17 a 23). Nos Analíticos (na teoria do silogismo), Aristóteles chamou o discurso
declarativo de "prótasis"(cujo equivalente latino é "propositio"), ou seja, "premissa de raciocínio",
definindo-a como "o discurso que afirma ou que nega alguma coisa de alguma coisa" {An. pr. I, 1, 24 b
16), ou como "a asserção de um dos membros da contradição" {Ibid. II, 12, 77 a 37). Desse ponto de
vista, a P. difere do problema (v.) apenas na forma, visto que, enquanto o problema consiste em perguntar (p. ex., o homem é um animal bípede terrestre ou não?), a P. consiste na asserção (p. ex., o homem é
um animal bípede terrestre) ou na asserção contraditória {Top., I, 4101 b 28). Porém, em qualquer caso, a
verdade ou a falsidade de uma P. depende do fato de a composição ou divisão dos termos nos quais
consiste corresponder ou não àquela que o intelecto encontra nas coisas existentes. Aristóteles diz.- "Não
és branco porque acreditemos que és branco, mas, por seres branco, dizemos a verdade ao afirmarmos
isso. Se algumas coisas estão sempre unidas e não podem ser divididas, e outras estão sempre divididas e
não podem estar unidas, se outras coisas ainda podem ser compostas ou divididas, o 'ser' consistirá em ser
combinado ou ser dividido, e o 'não ser' consistirá em ser dividido ou em ser várias coisas" {Met., IX, 10,
1051 a 34). Ao combinar seus termos, a P. expressa a ação com-binante ou dissociante do intelecto que se
segue à combinação e à dissociação das coisas existentes.
Essa doutrina conservou-se substancialmente inalterada na tradição, antiga, exceção feita aos estóicos (e
pela corrente aí iniciada), que introduziram a noção de enunciado (v.). A tradição medieval e boa parte da
lógica moderna conservou-a. S. Tomás de Aquino dizia que a verdade e a falsidade estão no intelecto,
porquanto este procede compondo e dividindo: "de fato, em toda P. uma forma significada pelo predicado
aplica-se a alguma coisa significada pelo sujeito ou se distancia dessa coisa" {S. Th., I, q. 16, a. 2). Na
linha da lógica terminista, Ockham admitia uma "P. mental", que identificava com ato do intelecto
{liberperiermenias proemiurrí), ainda que para ele a verdade da P. dependesse da suppositio (v. abaixo,
2). A partir de Descartes o termo "P." é substituído pelo termo "juízo", porque a atenção da lógica
filosófica estará cada vez mais concentrada na operação intelectual que encontra expressão na P. (v. Juízo,
4).
Mas até mesmo Russell reduz a P. a atitude mental, embora a distinguindo do enunciado. Na verdade,
considera-a como "crença" ou "atitude proposicional", e afirma que as P. devem ser definidas como
eventos psicológicos (ou fisiológicos) de certa espécie: imagens complexas, expectativas, etc. Segundo
Russell, isso é evidenciado pelo fato de que as P. podem ser falsas {An Lnquiry into Meaning and Truth,
PROPOSIÇÃO
802
PROPOSIÇÃO
cap. XIII, A; ed. Pelican Books, p. 172; Cf. Human Knowledge, pp. 449-50) (v. Juízo, 3).
2. A doutrina segundo a qual a P. constitui o designado do enunciado assume formas diferentes, segundo a
natureza atribuída ao designado. Às vezes, este é entendido como "P. em si" ou "entidade" de algum tipo;
outras vezes, como objeto, situação objetiva, estado de coisas ou caráter. Em todos os casos, essa
interpretação de P. não faz referência a atos ou a operações mentais.
Os estóicos, que introduziram a noção de enunciado (v.), consideram que este expressa uma condição ou
um estado de coisas. Assim, afirmavam que "quem diz 'É dia' mostra que acha que é dia. Ora, se
realmente for dia, o enunciado que está diante de nós será verdadeiro; se não for dia, será falso " (Dióg.
L., VII, 65). Deste ponto de vista, o fato de ser dia é o significado ou o valor de verdade do enunciado "É
dia". A lógica terminista medieval designou o significado denotativo dos termos da P. com o conceito da
suposição (v.), segundo o qual uma P. é verdadeira se os termos dos quais resulta correspondem ao objeto
existente (cf. OCKHAM, Summa log., II, 2). Nas Laws of Thought (1854) Boole distinguia as P. primárias,
que expressam uma relação com a coisa, e as P. secundárias, que expressam uma relação entre
proposições (Cap. IV, § 1). Mas Bolzano opusera à P. verbal a P. em si{Satz un Sich), que é válida
independentemente do fato de ser ou não ser expressa ou pensada, e constitui o elemento da matemática
pura ( Wissens-chaftslehre, 1837, § 19). Retomando a polêmica de Husserl contra o psicologismo,
Meinong distinguia em todo "juízo" (termo para ele equivalente a P.) o objetivo{Objektiv), que é o
conteúdo interno do juízo, e o objeto (Õbjeki), que é a entidade externa à qual o juízo se refere ( Über
Annahmen, 1902, p. 52). Para todos os efeitos, essa distinção eqüivale àquela que Frege estabelecera entre
sentido e significado {Über Sinn undBedeutung, 1892) (v. SIGNIFICADO). A propósito da P., Frege dissera
que, enquanto o sentido {Sinn) da P. é um "pensamento" — não entendido subjetivamente, mas como
"conteúdo objetivo que pode constituir a posse comum de muitos" —, o significado {Bedeutung) da P. é o
seu "valor de verdade", isto é, "a circunstância de ser verdadeira ou falsa". Deste modo, a P. pode ser
considerada como um nome próprio, e o verdadeiro ou falso é o objeto da P. Mas como todas as P.
verdadeiras terão o mesmo
significado (o verdadeiro), assim como todas as projeções falsas (o falso), segue-se que uma P. não pode
reduzir-se apenas ao seu significado, nem apenas ao seu sentido (que seria um pensamento puro), mas
deve resultar do conjunto de ambos {Über Sinn und Bedeutung, § 5, em Phil. Writings of G. F., ed. Geach
and Black, pp. 63 ss.). Nas P. indiretas ou oblíquas, nas quais há verbos como "dizer", "ouvir", "pensar",
"acreditar", "concluir" e semelhantes (como p. ex. em "Copérnico acreditava que as trajetórias dos
planetas eram circulares"), a P. secundária introduzida por que vale apenas como o nome de um
pensamento, podendo por isso ser variada sem comprometer o valor da verdade da P. inteira {Ibid, § 6;
em Geach, pp. 66 ss.).
Em torno desse conceito de Frege giram as discussões da lógica contemporânea a respeito da natureza da
P. Das duas dimensões da P. admitidas por Frege, Wittgenstein procurou eliminar o sentido {Sinrí), como
"pensamento" ou "conteúdo objetivo", e usar essa mesma palavra para designar aquilo que Frege entendia
por significado {Bedeutung), empregando esta última apenas como denotaçâo dos nomes e dos signos. "A
P." — disse ele — "é uma figuração {Bild, picturé) da realidade: de fato, tomo conhecimento da situação
por ela representada tão logo compreendo a P. E compreendo a P., sem que o seu sentido me seja
explicado" {Tractatus, 4.021). Desse ponto de vista, "a forma universal da P. é: as coisas estão assim e
assim" {Ibid., 4. 5). Por essa razão, compreender uma P. significa simplesmente saber "como estão as
coisas, no caso de ela ser verdadeira" {Ibid., 4.024), não sendo, pois, necessário recorrer a um pensamento
ou a qualquer conteúdo objetivo. Portanto, para Wittgenstein, o "sentido" de que falava Frege é inútil,
porque o sentido da P. é o seu próprio significado, e "a P. mostra seu sentido" {Ibid., 4.022). Por outro
lado, Wittgenstein afirma que "a P. possui um sentido independente dos fatos" (4.061) e que "as P. 'p e
'nãop' têm sentido oposto, embora nelas se expresse uma única e mesma realidade" (4.0621), o que, na
terminologia de Frege, implicaria um sentido que não depende do significado.
Opondo-se a Wittgenstein, alguns lógicos contemporâneos tendem a reduzir o significado ao sentido,
empregando o termo "significado" {Meaning) para indicar aquilo que Frege chamava de sentido. Assim,
Ayer definiu a P.
PROPOSIÇÃO ATRIBinWA 803
PRÓPRIO
como a "classe dos enunciados que têm o mesmo significado (significance) intencional para qualquer um
que o entenda" (.Language Truth and Logic, [1936], 1948, p. 88). Neste mesmo sentido, Quine
considerou as P. como "os significados dos enunciados" (From a Logi-cal Point of View, VI, 2; p. 109;
Word and Object, 1960, § 42). Mais próximos da posição de Frege estão Carnap e Church. Carnap
distinguiu a extensão de um enunciado, que é seu valor de verdade, de sua intensão, que é a P. que ele
expressa. No sentido de Carnap, todavia, a P. é uma entidade tão objetiva quanto a "propriedade", embora
apenas de natureza lógica. Segundo Carnap, pode-se falar de P. também a propósito de enunciados falsos,
porque as P. são entidades complexas, compostas por outras entidades; e ainda que se admita que os
componentes últimos de uma P. devem ser "exemplificados" (isto é, devem ser verdadeiros), nem por isso
a P., em seu conjunto, deverá sê-lo {Meaning andNecessity, § 6; pp. 26-30). Church, que aceitou a
terminologia de Frege, usa o termo "P." como equivalente ao termo "sentido", de Frege, e afirma dever-se
a uma decisão de algum modo arbitrária o fato de recusarmos o nome de P. aos sentidos dos enunciados
(das linguagens naturais), porquanto expressam um sentido, mas não têm valor de verdade {Jntr. to
Mathematical Logic, % 04, op. 27). Por outro lado, Bergmann utilizou o termo de Brentano e de Husserl,
"intenção", para reinterpretar o "significado" de Frege. A intenção é o objeto dos atos intencionais, e a P. é
o "caráter" correspondente à intenção. "No paradigma", disse ele, "a intenção é um fato expresso em 'isto
é verde'. Chamo de caráter correspondente 'a P. isto é verde' e uso P. como um nome geral para essa
espécie de caráter" {Logic and Reality, 1964, p. 32).
As discussões havidas entre os lógicos a respeito da P., bem como a respeito de suas equi-valências ou
sinonímias, além de outros problemas relativos, continuam centrados na distinção entre sentido e
significado, ou suas distinções correspondentes.
PROPOSIÇÃO ATRIBUTIVA; ATÔMICA; COMPARATIVA; DECLARATTVA; DESCRITIVA;
SECUNDARIA. V. esses adjetivos.
PROPOSIÇÃO FUNCIONAL (in. Functio-nal proposition; fr. Proposition fonctionelle, ai.
Funktionellsatz; it. Proposizione funzionalé). Dá-se esse nome às P. moleculares (ou seja, P.
complexas, compostas de P. simples através dos conectivos lógicos 'não', 'ou', 'e', 'implica'), cuja verdade
(ou falsidade) seja unicamente função da verdade ou falsidade das P. componentes. A questão de
existirem ou não P. moleculares não funcionais foi amplamente discutida na Lógica contemporânea,
contra a tese extensional, defendida principalmente por Wittgenstein, segundo a qual todas as P.
moleculares são funções-verdade das componentes; Russell e outros defenderam a possibilidade de P.
compostas que não sejam funções, como p. ex., "A crê em p" (onde 'A' é um nome de pessoa e 'p é uma
P.).
PROPOSICIONAL CALCULO, FUNÇÃO. V. CÁLCULO; FUNÇÃO PROPOSICIONAL.
PROPRIEDADE (in. Property, fr. Propriété, ai. Eigenschaft; it. Proprietã). 1. Determinação ou
característica própria de um objeto em um dos sentidos do termo próprio (v.).
2. Qualquer qualidade, atributo, determinação que sirva para caracterizar um objeto ou para distingui-lo
dos outros.
PROPRIEDADE COMUTATIVA, DISTRIBUTIVA. V. COMUTATIVO, DlSTRIBUTIVO.
PROPRINCIPIA. Termo usado por Cam-panella para indicar os dois princípios que entram na
constituição das coisas finitas, isto é, o Ser e o Não-ser (Met., II, 2, 2) (v. PRIMALIDADE).
PRÓPRIO (gr. 'íSiov; lat. Proprium; in. Proper, fr. Propre, ai. Eigen; it. Próprio). 1. Uma determinação
que pertence a toda uma classe de objetos, pertencendo sempre e somente a essa classe, mesmo que não
faça parte de sua definição. Este é o sentido fundamental do termo, da maneira como foi esclarecido por
Aristóteles {Top., I, 5, 102 a 18) e passou a fazer parte da tradição lógica (cf. Arnauld, Log., I, 7; Jungius,
Lógica hamburgensis, I, I, 33). Neste sentido, o P., apesar de não fazer parte da essência substancial de
uma coisa, está estritamente conexo a essa essência ou deriva dela de algum modo. O exemplo aduzido
por Aristóteles é o do aprendizado da gramática: esta determinação é P. do homem, no sentido de que
quem é capaz de aprender gramática é homem, e é homem quem é capaz de aprender gramática: as duas
determinações "homem" e "capaz de aprender gramática" são reciprocáveis. Neste sentido, o P. é uma
determinação privilegiada que está entre a essência e as determinações acidentais.
2. No entanto, mesmo Aristóteles chama de próprias também as determinações acidentais
PROSSILOGISMO
804
PROTÓTESE
ao fazer a distinção entre P. por si, "que é estabelecido com relação a todos os objetos e separa o objeto
em questão de qualquer outro (como no caso de ser P. do homem ser um animal mortal que pode receber
o saber)" e o P. em relação a outra coisa, "que distingue o objeto apenas de algum objeto dado e não de
qualquer outro objeto" (Top., V, 1, 128 b 34). O "P. por si" é o P. no sentido estrito, ou seja, a
determinação sempre que pertence a todo o objeto dado, e somente a ele, enquanto o P. "em relação a
outra coisa" foi distinguido por Porfírio (com base nas mesmas considerações de Aristóteles) em outras
três determinações: I
a
aquilo que pertence a uma única espécie, mas não a todos os indivíduos da espécie
(neste sentido ser filósofo é P. do homem); 2- aquilo que pertence a todos os indivíduos de uma espécie,
mas não a uma única espécie (ser bípede é P. do homem); 3a
aquilo que pertence a todos os indivíduos de
uma única espécie, mas nem sempre (neste sentido, encanecer é P. do homem). Porfírio enumerava como
quarto significado o mais restrito Gsag., 12, 12 ss.). Os quatro significados de Porfírio foram
habitualmente reproduzidos pela lógica medieval (cf., p. ex., PEDRO HISPANO, Summ. log., 2, 13), mas a
partir da Lógica de Arnauld (I, 7), mesmo mencionando-se as quatro distinções de Porfírio, preferiu-se
limitar o conceito de P. ao mais restrito. Na realidade, em seu significado lato, o conceito de P. pode
incluir qualquer determinação, atribuída a qualquer título a um objeto, perdendo, assim, característica ou
utilidade específica. Seja como for, a noção está estritamente ligada à da lógica aristotélica e à sua estreita
vinculação com a teoria da substância, sendo por isso abandonada pela lógica contemporânea.
PROSSILOGISMO. V. POLISSILOGISMO.
PRÓTASE. V. PROPOSIÇÃO.
PROTENSIVIDADE (in. Protensity, ai. Pro-tention; it. Protensionè). Duração de consciência. Termo
introduzido por Kant, que observava-. "A felicidade é a satisfação de todas as nossas propensões, tanto
extensivas em sua multiplicidade quanto intensivas (em relação ao grau) e protensivas (em relação à
duração)" {Cru. R. Pura, Doutr. do Método, cap. II, seç. II). Husserl chamou de P. "a pré-lembrança
reprodutiva em sentido próprio", ou seja, o estado de expectativa que prepara a reprodução da lembrança
(Jdeen, I, § 77).
PROTOCOLO (in. Protocol; fr. Protocol; ai. Protokoll; it. Protocolo). Termo introduzido pelo Círculo
de Viena para indicar o registro do dado imediato ou experiência direta (sensação, percepção, emoção,
pensamento, etc). As "proposições protocolares" são as que contêm unicamente P. e por isso fazem
referência direta aos dados imediatos; por serem instrumento da verificação empírica, não precisam de
verificação porque sua verdade é garantida pelo P. que contêm, graças ao qual correspondem
imediatamente ao dado empírico (cf. R. Carnap, em Erkenntnis, II, 1931, pp. 437 ss.). A noção de P. está
ligada à fase do neopositivismo que, para declarar significativa uma proposição, exigia a verificação
direta da proposição mediante protocolos. Mas mesmo Carnap, a partir da obra Testability and Meaning
(1936), limitava essa exigência afirmando que, para serem significativos, os enunciados devem ser confirmáveis, ou seja, devem conter apenas "predicados-coisa observáveis". Estes predi-cados-coisa não são
mais P., isto é, dados da experiência imediata, mas nomes de qualidades elementares (p. ex., "vermelho").
Para uma crítica do conceito de P., no âmbito do positivismo lógico, cf. K. Popper, Logik der Fors-chung,
1934, trad. in., 1958 (v. EXPERIÊNCIA).
PROTOFILOSOFIA (in. Protophilosophy, fr. Protophilosophie, ai. Protophilosophie, it. Protofilosofià).Termo empregado principalmente pelos sociólogos para indicar a filosofia dos povos primitivos,
expressa na forma do mito (v.).
PROTOLOGIA (in. Protology, fr. Protologie, ai. Protologie, it. Protologid). Termo empregado por
alguns escritores italianos do início do séc. XIX, especialmente por Ermenegildo Pini (/>., 3 vols., 1803),
para designar aquilo que Fichte denominava doutrina da ciência ou ciência das ciências. Esse termo foi
adotado por Vincenzo Gioberti na sua última obra, publicada postumamente CP., 1857). Gioberti define a
P. como "a ciência do ente inteligível, intuída através do pensamento imanente"; essa ciência é a base de
qualquer outra, sendo também anterior à ontologia. O uso desse termo parou em Gioberti.
PROTON PSEUDOS (gr. xtpwTOV V|/eüSoç). Falsidade da premissa maior, que determina a falsidade
do silogismo (Aristóteles, An. pr., II, 18, 66 a 16).
PROTÓTESE (in. Protothesis; fr. Protothèse, ai. Protothèse, it. Prototesi). Termo empregado por W.
Ostwald para indicar as hipóteses sus-
PROTÓTIPO
805
PROVA
cetíveis de verificação experimental no estado atual da ciência, que por isso se distinguem das que não o
são (Die Energie und ihre Wand-lungen, 1888, § 68). Na realidade, nenhuma hipótese é, como tal,
diretamente verificável (v. HIPÓTESE; TEORIA).
PROTÓTIPO (gr. 7ipraTÓTU7ioç;; lat. Prototy-pus-, in. Prototype, fr. Prototype, ai. Prototyp-, it.
Protótipo). Modelo originário. O mesmo que arquétipo (v.).
PROTRÉPTICO (gr. jtpoxpEJTUKÓç). Exortação à filosofia (cf. PLATÃO, Eutid., 278 c; CRISIPO,
Stoicurom fragmenta, III, 189). Essa palavra foi empregada como título de livro por Aristóteles, Epicuro,
Cleante e outros.
PROVA (gr. tetcuiípiov; lat. Probatia, in. Proof,h. Preuve, ai. Beweis; it. Prova). Procedimento apto a
estabelecer um saber, isto é, um conhecimento válido. Constitui P. todo procedimento desse gênero,
qualquer que seja sua natureza: mostrar uma coisa ou um fato, exibir um documento, dar testemunho,
efetuar uma indução são P. tanto quanto as demonstrações da matemática e da lógica. Portanto, esse termo
é mais extenso que demonstração (v.): as demonstrações são P., mas nem todas as P. são demonstrações.
O conceito foi estabelecido no sentido restrito por Aristóteles, que, ao dizer "Dizem que P. é o que produz
saber", fez a distinção entre prova e indício, que proporciona apenas conhecimento provável (An. pr., II,
27, 70 b 2). Em Retórica acrescentou: "Quando se acha que o que foi dito não pode ser refutado, acreditase ter apresentado uma P., porquanto a P. é sempre demonstrada e perfeita"; o próprio silogismo é uma P.
necessária nesse sentido (Ret., I, 2, 1357 b 5). O mesmo conceito de procedimento que estabelece ou
descobre um conhecimento foi expresso pelos estóicos na definição do sinal indicativo, como "enunciado
que, procedendo com conexões corretas, descobre o que se segue" (SEXTO EMPÍRICO, Pirr. hyp., II, 104),
ou de raciocínio demonstrativo, que, "por meio de premissas estabelecidas, descobre por dedução uma
conclusão patente" (Jbid., II, 135) Os entendimentos aos quais se faz alusão nessas definições são P. por
serem "aptos a descobrir", ou seja, por produzirem (e justificarem) conhecimentos. No séc. XVII, Locke
reproduzia a seu modo (com o pressuposto cartesiano da superioridade da intuição) este conceito de P.:
"As idéias intermediárias que servem para demonstrar a concordância entre duas outras
idéias são chamadas de P.; quando por esse meio é clara e evidentemente percebida a concordância ou a
discordância, dá-se-lhe o nome de demonstração, pois então a coisa é mostrada ao intelecto, e o espírito é
levado a ver que ela é assim" (Ensaio, IV, 2, 3). Mas a doutrina de Locke marca uma guinada importante
ha história do conceito de P. porque admite, pela primeira vez, a possibilidade de P. prováveis. "A
probabilidade" — dizia Locke — "não passa de aparência da concordância ou discordância entre duas
idéias mediante a intervenção de P., cuja ligação não é constante nem imutável, ou, pelo menos, não é
percebido como tal, mas é ou parece ser na maioria das vezes, sendo suficiente para induzir o espírito a
julgar que a proposição é verdadeira ou falsa, e não o contrário" (Jbid., IV, 15,1). Wolff, por sua vez,
mesmo identificando a P. com o silogismo, distingue-a da demonstração, pois ela seria um silogismo "que
utiliza apenas premissas que são definições, experiências indubitáveis e axiomas" (Log., § 498). Mas
foram principalmente Hume e Kant que estabeleceram as distinções fundamentais nesse campo. Hume
propôs distinguir todos os argumentos em demonstrações, P. e probabilidades, entendendo por P. "os
argumentos extraídos da experiência, que não admitem dúvida e objeções" (Jnq. Cone. Underst., IV,
nota); nessa distinção, as demonstrações se limitariam ao domínio das puras conexões de idéias. Kant, por
sua vez, distinguiu quatro espécies de P.: I
a
a P. lógica rigorosa, que vai do geral ao particular e é a
demonstração propriamente dita; 2a
o raciocínio por analogia; 3a
a opinião verossímil; 4a
a hipótese, que é
o recurso a um princípio explicativo simplesmente possível (Crít. do Juízo, § 90). Afirmou que as P.
demonstrativas ou apodíticas acham-se apenas no domínio da matemática, visto que esta procede
mediante a construção de conceitos, e que os princípios empíricos de P. não podem produzir nenhuma P.
apodítica (Crtt. R. Pura, Doutrina do Método, cap. I, seç. II). Esta era substancialmente uma aceitação do
ponto de vista de Hume. Dewey também aceitou esse ponto de vista, observando que há, "por um lado, a
demonstração racional, que é questão de rigorosa conseqüencialidade no discurso, e, por outro, a
demonstração puramente ostensiva "(Logic, cap. XII; trad. it., p. 327). É freqüente a distinção entre
demonstração, "P. lógica" "P. dedutiva", "P. necessária" e a P. em geral (cf. p. ex., W. HAMILTON, Lectures
on Logic, 1866, II, p. 38; G.
PROVA
806
PRÓXIMO
BERGMANN, Philosophy of Science, 1957, p. 4), mas, enquanto a análise dos procedimentos de P. usados
pelas ciências individualmente (e portanto da noção de P. em geral) recebeu pouca atenção dos filósofos
metodológicos e não fez progressos, a noção de P. lógica foi repetidamente elaborada por matemáticos e
lógicos. Os princípios da "teoria da P." foram estabelecidos por D. Hilbert da maneira seguinte: "Uma P. é
uma figura que deve ser apresentada como tal; consiste em conseqüências inferidas segundo o esquema:
S S-+T
T
em que cada uma das premissas (fórmulas S e S—>7)é um axioma (posto diretamente como tal), ou
coincide com a fórmula final Tde um raciocínio anteriormente agregado à P., ou seja, consiste na assunção
dessa fórmula final. Diz-se que uma fórmula é suscetível de P. se ela é axioma (isto é, assumida como
axioma por posicionamento) ou é a fórmula final de outra P. ("Die Logischen Grundlagen der Mathematik", em Mathematisch Annalen, 1923, p. 152). Em outros termos, uma P. lógica é um procedimento
que consiste na manipulação de fórmulas: manipulação que, por sua vez, é um conjunto de fórmulas.
Church diz: "Uma seqüência finita de uma ou mais fórmulas bem formadas será uma P. se cada uma das
fórmulas bem formadas da seqüência for um axioma ou for inferida imediatamente das fórmulas
precedentes da seqüência, por meio de uma das regras de inferência" (Intr. to Mathematical Logic, 1956,
§ 07). Wittgenstein já dissera a respeito: "A P. em lógica é apenas um expediente mecânico para
reconhecer mais facilmente a tautologia quando complicada" CTrac-tatus, 6, 1262).
A teoria matemática da P. consiste substancialmente em reduzi-la à P. da não-contradição. Ora, um
teorema estabelecido por K. Gõdel em 1931 afirma que, com a ajuda de uma parte da matemática, só se
pode provar a não-contradição de uma parte mais restrita da própria matemática, mas não se pode provar
a não-contradição do conjunto da matemática ou de uma parte mais extensa dela. Pode-se, p. ex.,
demonstrar a não-contradição da teoria dos números inteiros partindo da teoria dos números reais, mas
não reciprocamente (cf. CARNAP,
Logical Syntax of Language, 1937, §§ 35-36; QUINE, Mathematical Logic, 1940, cap. 7). O teorema de
Gõdel, como observa Quine, leva à maturidade um novo ramo da teoria matemática, conhecido como
metamatemática ou "teoria da P.", cujo objeto é a própria teoria matemática (Methods of Logic, § 41).
Esse teorema estabelece, porém, que uma P. de coerência é sempre relativa, pois seu resultado vale apenas
na medida em que se admite a coerência do sistema com base no qual ela é efetuada (cf. QUINE, From a
Logical Point ofView, pp. 99 ss.). Cf., também, E. Nagel e J. R. Newmann, GôdeVs Proof 1958 (v.
MATEMÁTICA).
PROVÁVEL (in. Probable, fr. Probable, ai. Wahrscheinlich; it. Probabilé). 1. Evento ou proposição com
grau comparativo suficiente de confirmação ou de credibilidade (v. PROBABILIDADE, 1).
2. Classe ou seqüência de eventos dotada de certo grau de freqüência relativa (v. PROBABILIDADE, 2).
3. Aquilo que é considerado verdadeiro pela maioria ou pelos competentes. Este é o conceito de endoxon,
em que Aristóteles baseou a dialética (v.); tem pouco ou nada a ver com as duas noções precedentes.
PROVIDÊNCIA (gr. 7tpóvoia; lat. Providen-tia; in. Providence, fr. Providence, ai. Vorse-hung; it.
Provvidenza). Governo divino do mundo, geralmente distinguido de destino, pois é considerado como
existente em Deus, ao passo que o destino é esse governo visto através das coisas do mundo (v. DESTINO).
A noção de providência faz parte integrante do conceito de Deus como criador da ordem do mundo ou
como sendo Ele mesmo esta ordem (v. DEUS). Para os problemas conexos ao conceito de P.,
V. MAL; TEODICÉIA.
PROVIDENCIALISMO (in. Providentialism, it. Provvidenzialismó). 1. Confiança na ação da
providência.
2. Doutrina que vê na história uma ordem ou um plano providencial, (v. HISTÓRIA).
PRÓXIMO (gr.tòv 7tA.T|críov; lat. Proximus; in. Neighbour, fr. Prochain; ai. Nãchste, it. Pros-simo). Na
interpretação do Evangelho de Lucas (X, 29-37) da máxima bíblica "Ama ao P. como a ti mesmo"
{Levítico, XIX, 18), P. é o outro homem em geral, independentemente de quaisquer laços de raça, de
amizade ou parentesco, na medida em que ele é misericordioso para nós ou nós para com ele. Isso
significa que a misericórdia deve ser praticada em relação
PRUDÊNCIA 807 PSICANÁLISE
a qualquer homem que esteja conosco, não se restringindo a um círculo determinado de pessoas.
PRUDÊNCIA (lat. Prudentia; in. Prudence, fr. Prudence, ai. Klugheit; it. Prudenza). V. SABEDORIA.
PSEUDOCONCEITO. P., "ficções conceituais" ou "conceitos finitos" foram os nomes dados por Croce
às noções geralmente denominadas conceitos, em contraposição ao "conceito puro" ou "conceito
autêntico" com que ele designou a Razão Universal em sua forma cognitiva. Os P. serviriam para
conservar e classificar os conhecimentos adquiridos {Lógica, 1920, cap. II).
PSEUDOPROPOSIÇÕES (in. Pseudostate-ment; ai. Pseudosãtzen; it. Pseudoproposi-zioni). Termo
empregado por Carnap para indicar "expressões erroneamente consideradas proposições, mas que não
possuem conteúdo cognitivo, embora possam ter componentes de significado não cognitivo, por exemplo
emotivo" {Meaning and Necessíty, § 5). Segundo Carnap, muitas proposições da metafísica clássica são P.
nesse sentido (cf. Erkenntnis, II, 193DPSICANÁLISE (in. Psychoanalysis; fr. Psy-chanalyse, ai. Psychioanalyse, it. Psicanalisi). A designação
P. compreende: 1Q
um método de tratamento de certas doenças mentais; 2-uma doutrina psicológica; 3S
uma doutrina metafísica; e, mais freqüentemente, certa mescla desordenada dessas três coisas. Os
fundamentos da P. foram resumidos por seu fundador, Sigmund Freud, na introdução de uma de suas
principais obras, da seguinte maneira: I
a
os processos psíquicos são em si mesmos inconscientes, e os
processos conscientes são apenas atos isolados, frações da vida psíquica total; 2-os processos psíquicos
inconscientes são em boa parte dominados por tendências que podem ser qualificadas de "sexuais" no
sentido restrito ou lato do termo, Este último pressuposto na realidade é a característica fundamental da P.,
que consiste essencialmente na tentativa de explicar a vida do homem (não só a pessoal ou individual,
mas também a pública ou social) recorrendo a uma única força, que é o instinto sexual ou libido (v.) no
sentido técnico deste termo {Einführung in díe Psycho-analyse, 1917, intr.). Do conflito entre os impulsos
sexuais do inconsciente e as superestru-turas morais e sociais constituídas por proibições e censuras
acumuladas e consolidadas pela
infância, nascem os fenômenos a seguir descritos: d) Sonhos: expressões deformadas e simbólicas dos
desejos reprimidos (cf. Die Traumdeutung, 1900). b) Atos falhos, ou lapsos: distrações falsamente
atribuídas ao acaso, chegando às brincadeiras e ao humorismo (cf. Zur Psychopathologie des
Alltagslebens, 1901; Der Witz und seine Bedeutung Zum Unbewussten, 1905). c) Doenças mentais: que
podem ser tratadas levando o paciente a identificar os conflitos dos quais elas emergem, através da
conversação. A esse respeito, o sintoma de uma doença deve ser considerado como "sinal e substituição
de uma satisfação instintiva que ficou latente, resultado de um processo de recalque" {Hemmung,
Symptom und Angst, 1926, cap. 2; trad. it, p. 29). Um dos fenômenos característicos do tratamento
psicanalítico é a transferenciados sentimentos do doente (positivos ou negativos, de amor ou de ódio)
para a pessoa do médico {Einführung, cit., cap. 27; trad. fr., pp. 461 ss.). d) Sublimaçâa transferência do
impulso sexual para outros objetos, o que ensejaria os fenômenos chamados espirituais: arte, religião, etc.
é) Complexos, sistemas ou mecanismos associativos, relativamente constantes em todas as pessoas, aos
quais devem ser atribuídas as principais perturbações mentais. A noção de complexo e o seu termo foram
introduzidos por um discípulo de Freud, C. G. JUNG (Wandlungen und Symbole der Libido, 1912), mas já
em Interpretação dos sonhos Freud esboçara todos os fatos fundamentais do chamado "complexo de
Édipo", em virtude do qual o menino inclui no amor pela mãe certo ciúme ou aversão pelo pai.
Em 1923, na obra EgoeldiDasIch und das Es), Freud expôs uma teoria psicológica que foi amplamente
aceita pela psicologia de sua época. Dividia o espirito em três partes: Ego, que é organização e
consciência, e por isso está em contato com a realidade e procura submetê-la a seus fins; Superego, aquilo
a que geralmente se dá o nome de consciência moral e que é o conjunto das proibições insuladas ao
homem em seus primeiros anos de vida, acompanhando-o depois, mesmo que de forma inconsciente; e
Id, que é constituído pelos impulsos múltiplos da libido, sempre voltada para o prazer. Esta doutrina, que
foi revisada pelo próprio Freud mais tarde (cf. Hemmung, Symptom und Angst, 1926), revelou-se bastante
útil tanto para a des-
PSICANÁLISE
808
PSICÓIDE
crição e a interpretação das doenças mentais quanto para a teoria da personalidade.
Freud e seus seguidores não apresentaram nem apresentam seus conceitos como hipóteses ou
instrumentos de explicação, mas como realidades absolutas, de natureza metafísica. Pode-se chamar de
própria metafísica — e até de mitologia — a teoria formulada por Freud numa de suas últimas obras, Das
Unbehagen in der Kultur (1930, trad. in., com o título de Civilisation and its Discontents, 1943), em que
considera a história da humanidade como a luta entre dois instintos, o da vida (Eros) e o da morte
(Tanatos): "É nessa luta que consiste essencialmente a vida, e por isso o desenvolvimento da civilização
pode ser descrito como a luta da espécie humana pela existência. Trata-se de uma batalha de titãs, que
nossas babás tentam compor com suas ladainhas sobre céu" {Civilisation and its Discontents, 1943, p.
102). Essa doutrina outra coisa não é senão a expressão — não muito atualizada — do dualismo
maniqueísta.
A importância da P. consiste, em primeiro lugar, em dar destaque à função do fator sexual em todas as
manifestações da vida humana. Pela primeira vez, esse fator deixou de ser uma zona de ignorância
obrigatória para a ciência e para a filosofia e pôde ser estudado em seus reais modos de ação. Em segundo
lugar, a P. forneceu um conjunto de conceitos que, conquanto não muito compatíveis entre si, prestam-se
a ser utilizados por vários ramos da psicologia contemporânea, principalmente se isentos do dogmatismo
com que alguns seguidores de Freud os trataram. Este segundo aspecto positivo tem, porém, uma
contrapartida negativa: a P. dá a muitos diletantes a oportunidade de apresentar explicações
aparentemente plausíveis e fáceis dos fenômenos humanos mais díspares, confundindo também, às vezes,
essa explicação com uma justificação moral ou metafísica. Em terceiro lugar, a P. teve o mérito de
propiciar um instrumento de tratamento que continua sendo eficaz, apesar de perdidas muitas das ilusões
otimistas inicialmente suscitadas.
Entre as muitas tendências interpretativas que modificaram em maior ou menor grau as doutrinas
fundamentais da P., é possível lembrar duas, a de Jung e a de Adler. Jung concebeu o instinto fundamental
do homem não como de natureza sexual, mas como uma energia originária e criativa que se identifica
com o conceito genérico de divindade e constitui o
inconsciente coletivo, que é a base comum da natureza humana (Psicologia do incosciente, 19425
). Adler,
ao contrário, identificou o instinto fundamental do homem com a vontade de potenciade que falava
Nietzsche, ou seja, como um espírito de agressão e de luta em conflito com outro instinto, o sentimento
de comunidade humana, que liga o indivíduo a todos os outros. A interação dessas duas forças
determinaria o caráter de cada homem e suas manifestações patológicas (Conhecimento do homem, 1927).
PSICANÁLISE EXISTENCIAL (fr. Psycha-nalyse existenciellé). Sartre deu este nome à análise
filosófico-existencial, porquanto ela procura determinar a "escolha originária" que está na base de todo
"projeto humano de vida". O princípio dessa psicanálise é que "o homem é uma totalidade, e não uma
coleção", e o seu objetivo é "decifrar os comportamentos empíricos do homem". Além disso, seu ponto de
partida é a experiência e seu método é o comparativo (L'être et le néant, 1943, p. 656). A P. f
existencial distingue-se da de Freud, que Sartre f chama de "empírica", porque procura determij nar a escolha originária, não os "complexos" j Qbid., p. 657).
|
PSICODÉLICO (in. Psychedelic). Adjetivo que deveria significar "o que manifesta a psique", cunhado
para qualificar as experiências produzidas pelo uso do ácido lisér-gico (LSD) ou de outras drogas,
consideradas revelações de uma realidade mais profunda que a manifestada na experiência comum e que
seria de natureza divina ou representaria a própria divindade imanente no mundo (cf. W. BRADEN, The
Private Sea, Londres, \
1967).
PSICOFÍSICA. V. PSICOLOGIA, ti).
PSICOGÊNESE (in. Psychogenesis, fr. Psy-chogénèse, ai. Psychogenese, it. Psicogenesi).
Desenvolvimento dos processos mentais, ou o estudo desse desenvolvimento.
PSICOGNOSE (in. Psychognosy). Termo empregado por Peirce para indicar o conjunto |
das ciências psíquicas (Coll. Pap., 1.242).
PSICOGRAFIA (in. Psychograph; fr. Psy-chographie, ai. Psychographie-, it. Psicografid). Descrição
dos processos ou das características psíquicas de um indivíduo.
PSICÓIDE (in. Phychoid; fr. Psychoid; ai. Psychõide, it. Psicoidê). Nome dado pelo biólogo vitalista H.
Driesch à força psíquica que
PSICOLOGIA
809
PSICOLOGIA
preside à formação e ao desenvolvimento dos organismos (v. VITALISMO).
PSICOLOGIA (in. Psychology, fr. Psycho-logie, ai. Psychologie, it. Psicologia). Disciplina que tem por
objeto a alma, a consciência ou os eventos característicos da vida animal e humana, nas várias formas de
caracterização de tais eventos com o fim de determinar sua natureza específica. As vezes, tais eventos são
considerados como puramente "mentais", ou seja, como "fatos de consciência"; outras vezes, como
eventos objetivos ou objetivamente observáveis, ou seja, como movimentos, comportamentos, etc, mas
em todo caso a exigência a que essas definições correspondem é a de delimitar o domínio da indagação
psicológica ao campo restrito dos fenômenos característicos dos organismos animais, em especial do
homem. Do ponto de vista da formulação conceituai (que interessa à filosofia) podemos distinguir as seis
correntes fundamentais seguintes: d) P. racional; h) P. psicofísica; c) beha-viorismo; ã) gestaltismo; é) P.
do profundo;/) P. funcional.
a) A P. racional ou filosófica foi fundada por Aristóteles, o primeiro a coligir em seu livro De Anima as
opiniões que seus predeces-sores haviam expresso a respeito desse assunto. Essa P. tem por objeto "a
natureza, a substância, e as determinações acidentais de alma", entendendo-se pôr alma "o princípio dos
seres vivos" (De an., I, 1, 402 a 6). O pressuposto fundamental dessa P. está explícito nas seguintes notas:
nos eventos estudados, pressupõe um princípio único e simples, uma substância necessária, da qual seja
possível de-duziras determinações que esses eventos possuem constantemente ou na maioria das vezes.
Neste sentido, a P. é uma ciência dedutiva da alma, cujos fenômenos particulares só são considerados
como confirmações ocasionais dos teoremas que a constituem. Com muita razão, no séc. XVIII, Wolff
dava a essa P. o título de "racional", porquanto ela trata de "derivar a priori, do único conceito de alma
humana, todas as coisas observadas a posteriori como de sua competência" (Log., Disc, prel., § 112). Mas
foi mérito de Wolff acrescentar a tal P. uma outra, "empírica", definida como "a ciência que, através da
experiência, estabelece os princípios capazes de esclarecer o que acontece na alma humana" (Ihid., § 111;
Psychologia empírica, 1732, § 1). Neste sentido, a P. racional continua sendo uma corrente das filosofias
que
se inspiram na metafísica tradicional, mas deixou de ter eficácia sobre o desenvolvimento científico da
psicologia.
è)AP. psicofísica ou, mais simplesmente, a psicofísica constituiu a primeira corrente empírica,
experimental ou científica da psicologia. Wolff já lhe prescrevera um método indutivo ou experimental,
característico de todas as ciências empíricas; no início do séc. XK, Maine de Biran prescrevia seu campo
de ação: a consciência (Essai sur les fondements de Ia psychologie, 1812). No entanto, ainda não existiam
todas as condições para a fase científica da psicologia. Faltavam duas, estreitamente inter-relacionadas:
em primeiro lugar, o reconhecimento da estreita relação entre os eventos psíquicos e os físicos, através da
ação do sistema nervoso; em segundo lugar, a introdução de alguma técnica de medição. A concretização
dessas duas condições levou a P. a constituir-se como psicofísica. Isto aconteceu graças a Helmholtz,
Weber, e Fechner: o primeiro conseguiu medir, em 1850, a velocidade do impulso nervoso, enquanto o
segundo enunciava a denominada "lei" da relação entre o estímulo e a sensação (segundo a qual o
aumento do estímulo necessário para ser percebido como tal é proporcional à intensidade do estímulo
originário), e o último estabelecia a "lei psicofísica fundamental", representada pela fórmula matemática
que expressa a lei de Weber. Em 1860 Fechner publicava os Elementos de psicofísica, que a definiam
como "a ciência exata das relações funcionais ou relações de dependência entre o espírito e o corpo". Esse
foi o programa da P. científica nessa primeira fase de sua organização: programa no qual logo
encontraram lugar os resultados das análises do empirismo inglês, desde Locke até Spencer. Este último,
em Princípios de P. (1855), também definira como psicofísica a tarefa da P., afirmando que "a P.
distingue-se das ciências em que se apoia [anatomia e fisiolo-gia] porque cada uma de suas proposições
leva em conta tanto o fenômeno interno conexo quanto o fenômeno externo conexo, ao qual se refere."
(Principies of Psychology, 3
a
ed., 1881, p. 132). Do empirismo inglês, a P. extraiu duas características
fundamentais, que a acompanharam nessa primeira fase, de constituição: o atomismo(y.) e o associacionismo (v.). Desse modo, suas estruturas teóricas fundamentais podem ser resumidas da seguinte maneira;
PSICOLOGIA
810
PSICOLOGIA
PAP. tem por objeto os "fenômenos internos" ou "fatos da consciência", e seu principal instrumento de
indagação é a introspecção ou reflexão. Graças a esse aspecto, a corrente em exame foi muitas vezes
chamada de P. subjetiva ou reflexiva, ou — mais raramente — "crítica".
2
Q
Os fatos de consciência ou fenômenos internos são estudados pela P. em sua conexão funcional com os
fenômenos externos (fisiológicos ou físicos). Graças a esse aspecto, que é o mais característico da fase em
questão, tal P. foi chamada de psicofísica ou também/2's/o/ó-gica (por Wundt). Com este aspecto tem
relação a hipótese que sustentou nesta fase o trabalho experimental da P.: o paralelismopsi-coftsico (v.).
3
e
Tendência a resolver o fato de consciência por elementos últimos (sensações, emoções elementares,
reflexos ou instintos elementares) e explicar os fenômenos mais complexos com a combinação de tais
elementos (atomismo, associacionismo).
4
a
O caráter científico da P. é constituído pelo recurso aos procedimentos de indução, de experimentação e
de cálculo matemático, que estabelece o caráter descritivo reivindicado pela P., analogamente ao que
fazem as outras disciplinas empíricas.
c) A P. da forma ou gestaltismo concentra seus ataques no 3a
princípio fundamental da P. psicofísica, o
atomismo e o associacionismo. Consiste em assumir como ponto de partida o princípio simetricamente
oposto ao da P. associativa: o fato fundamental da consciência não é o elemento, mas a forma total, visto
que esta nunca é redutível à soma ou à combinação de elementos. Seus fundadores foram Weltheimer,
Kõhler e Koffka; mesmo mantendo inalterado o 2- princípio fundamental da psicofísica, deixou de falar
em fatos e fenômenos de consciência para considerar formas, configurações ou campos, em sua estrutura
total. O gestaltismo tratou principalmente da percepção, a respeito da qual acumulou um número enorme
de traballlos experimentais (v. PERCEPÇÃO, 3, a).
d) AP. objetiva ou behaviorismo concentra seus ataques noP princípio fundamental da P. psicofísica,
negando que o instrumento fundamental da P. seja a introspecção ou a reflexão e que os fatos de
consciência ou fenômenos internos sejam objeto dessa ciência; afirma que, ao contrário, os objetos da P.
são as reações dos organismos aos estímulos, entenden-do-se por reações movimentos ou fenômenos objetivamente
observáveis, relacionados com os eventos do ambiente, que funcionam como estímulos. Em 1907, o
fisiologista russo Bech-terev publicava uma P. objetiva (depois traduzida para inglês e francês), que
defendia justamente essa tese, mais tarde difundida e defendida pelos estudos de Pavlov sobre os reflexos
condicionados (y. AÇÃO REFLEXA). Portanto, pode-se dizer que aí tem início o behaviorismo. Esse nome,
porém, só lhe foi atribuído alguns anos mais tarde, pelo americano J. B. Watson, em um artigo de 1913 e
depois num livro intitulado Comportamento, introdução à P. comparativa (Behavior, An In-troduction to
Comparative Psychology, 1914). Nessa primeira fase, o behaviorismo assumia caráter de necessitarismo
rigoroso; a reação do animal era considerada efeito causai necessário do estímulo, por isso infalivelmente
previsível a partir dele. O abandono desse necessitarismo e o reconhecimento do caráter simplesmente
estatístico ou probabilístico das constantes verificáveis nas reações de resposta dos organismos aos
estímulos constitui a fase mais moderna do behaviorismo (v. BEHAVIORISMO).
é) As denominadas P. abissais ou P. do profundo concentram seus ataques no 4S
princípio fundamental da
P. científica clássica, considerando a P. como ciência de interpretação, e não de descrição. Com efeito,
para a psicanálise, que é a maior e a mais coerente expressão das P. abissais, o ponto de partida da
interpretação não está nos fatos, como faz a descrição, mas nos sintomas, e a noção de sintoma é
fundamental em psicanálise (v. INCONSCIENTE). Na interpretação dos sintomas a psicanálise segue uma
única regra básica: reduzir o sintoma a símbolo ou expressão deformada de uma necessidade ou de um
conflito de natureza vagamente sexual, atinente à libido (v. LIBI-DO; PSICANÁLISE; SEXUALIDADE). São
variantes da psicanálise a denominada P. individual de Alfred Adler, que insiste particularmente no caráter
finalista dos problemas psíquicos (Praxis und Theorie der Individualpsychologie, 1924), e a P. analítica
de C. G. Jung, que na realidade é muito pouco analítica (no sentido próprio do termo), pois não faz senão
atribuir caráter simbólico a muitos sintomas que para Freud tinham significado direto {Coll. Pap.
onAnaly-ticalPsychology, 1916). (V. INCONSCIENTE; PROFUNDO.)
PSICOLÓGICO
811
PSICOLOGISMO
f) Para a P. funcional ou funcionalismo, o objeto da P. é constituído pelas funções ou operações do
organismo vivo, consideradas como unidades mínimas indivisíveis. O funcionalismo inicia-se com uma
obra de Dewey, Conceito do arco reflexo em P. (1896), na qual se afirmava categoricamente que o arco
reflexo não pode ser dividido em estímulo e resposta, mas deve ser considerado como uma unidade da
qual apenas o estímulo e a resposta auferem significado. Para indicar a unidade da função, o próprio
Dewey empregou depois a palavra transação (v.), que servia para ressaltar a impossibilidade de
considerar os elementos de uma função qualquer como entidades autônomas e independentes da relação
de que participam (cf. Knowing and the Known, 1949, em colaboração com A. F. Bentley). A corrente
fun-cionalista abandona os pressupostos I
a
, 2
Q
e 3Q da P. tradicional. Abandona o ls
porque o objeto que se
propõe estudar não é um fato de consciência, e sim uma função, ou seja, uma operação em virtude da qual
o organismo entra em relação com o ambiente. Abandona o 2S
princípio fundamental porque o método de
que este se vale não é introspectivo, mas objetivo ou comportamentista: as funções devem ser estudadas
mediante procedimentos de observação objetiva. Finalmente, o funcionalismo tem em comum com o
gestaltismo o abandono do 3a
princípio fundamental. Mas a principal novidade do funcionalismo é o probabilismo, que consiste em negar não só aos procedimentos da ciência, mas também a todas as funções
cognitivas humanas (inclusive a percepção imediata), o caráter de certeza infalível, e em atribuir a todas
essas funções a possibilidade de atingirem uma validade apenas provável. Por este probalilismo, o
funcionalismo constitui a inserção da P. no campo das idéias fundamentais da ciência contemporânea (cf.
BRUNSWIK, Psychology in Terms of Objects, 1936, CANTRIL, AMES, HASTORF, ITTELSON, "Psychology
and Scientific Research, em Science, vol. 110, 1949; CANTRIL, The "Why" of Man's Experience, 1950;
trad. it., As motivações da experiência, 1958; v. também as obras citadas na bibliografia deste último
livro).
PSICOLÓGICO (in. Psychological; fr. Psy-chologique; ai. Psychologisch; it. Psicológico). 1. O que
concerne à psicologia; nesta acepção, esse termo tem tantos significados quantas são as correntes
conceituais da psicologia.
2. O que se refere à consciência do indivíduo, ou seja, às atitudes ou às valorações individuais. Nesse
sentido, dizemos, p. ex., que se trata de uma "questão puramente P." quando diante de uma questão cuja
base não pode ser encontrada nos fatos ou no âmbito de determinado universo de discurso (p. ex.,
científico, lógico, etc).
PSICOLOGISMO (in. Psychologism; fr. Psychologisme, ai. Psychologismus, it. Psicolo-gismó). 1. Este
termo tem origem no séc. XIX; designa em primeiro lugar qualquer filosofia que assuma como
fundamento os dados da consciência, como reflexão do homem sobre si mesmo. Foi assim que G. F. Fries
(1773-1844) e F. E. Beneke (1798-1854) entenderam O P., em oposição ao idealismo hegeliano. Ambos
assumiram explicitamente como método e tarefa da filosofia a auto-observação ou consciência. Desse
ponto de vista, a psicologia, I como descrição da experiência interna, torna- ! se a única
filosofia possível (cf. FRIES, Neue , oder anthropologische Kritik der Vernunft, 1828; Beneke, Die
Philosophie in ihrem Ver-haltnis zur Erfahrung, zur Speculation und Zum Leben, 1833). Mais genérica e
polemicamente, V. Gioberti entendia por P. o procedimento filosófico que vai do homem a Deus,
contraposto àquele que vai de Deus ao homem. Este último é o ontologismo (v). O P. é j
considerado por Gioberti como a caracterís- : tica da filosofia moderna, de Descartes em diante
{Jntr. alio studio delia filosofia, 1840. II, p. 175). I
2. No seu uso polêmico, o termo é constan- {
temente empregado para designar a confusão j
entre a gênese psicológica do conhecimento e j
sua validade; ou a tendência a julgar justificada ; j
a validade de um conhecimento, quando na j
verdade só se explicou seu acontecimento na 1
consciência. Neste sentido, foi Kant o primeiro 1
a esclarecer o conceito de P. (apesar de não ter I
usado esse nome); foi quem iniciou a polêmica I
contra ele, fazendo a distinção a propósito dos I
conceitos apriori, entre a quaestiofactide sua "derivação fisiológica", isto é, do seu acontecimento na
mente ou na consciência do homem, e a quaestio júris, que consiste em perguntar o fundamento de sua
validade, exigindo como resposta a dedução (v. DEDUÇÃO TRANSCENDENTAL) (Crít. R. Pura, § 12). Essa
distinção, sempre presente na obra de Kant, significa a descoberta da dimensão lógico-objetiva do
conhecimento; irredutibilidade dessa dimensão à
JZ£%è*r-. -*
PSICOLOGISMO
812
PSICOTERAPIA
consciência ou às condições subjetivas do conhecer foi defendida por muitas escolas kan-tianas: pela
escola de Baden (Windelband, Rickert), pela de Marburgo (Cohen, Natorp) e pela fenomenologia
(Husserl), que, na filosofia dos últimos decênios do séc. XIX e nos primeiros do séc. XX, combateram
constantemente o psicologismo. Herman Lotze, em Lógica (1874), insistiu sistematicamente no ponto de
vista antipsicológico, fazendo a distinção entre ato psíquico de pensar, que existe só como determinado
evento temporal, e o conteúdo do pensamento, que tem outro modo de ser, o da validade. Na lógica
matemática, Frege impusera o mesmo ponto de vista: "Que não se tome como definição matemática a
simples descrição do modo como se forma em nós certa imagem, nem como demonstração de um teorema
o rol de condições físicas ou psíquicas que em nós devem ser satisfeitas para que possamos compreender
seu enunciado. Que não se confunda a verdade de uma proposição com o fato de ela ser pensada! É
preciso lembrar bem: que uma proposição não deixa de ser verdadeira quando não a penso, assim como o
sol não deixa de existir quando fecho os olhos" {Die Grundla-gen derArithmetik, 1884, Intr.; trad. it.,
em^4ní-mética e lógica, p. 23). Essas considerações eram repetidas quase literalmente por Husserl
(Logische Untersuchungen, 1900, I, §§ 17 ss.), que mais tarde reforçava: "se dissermos que um número é
uma formação psíquica, incidiremos num absurdo, chocar-nos-emos contra o sentido intrínseco do
discurso aritmético, que está acima de todas as teorias e em todos os momentos e claramente
contemplável em sua plena validade" Çldeen, 1,1913, § 22), prevenindo contra a tendência a
"psicologizar o eidé-tico", a identificar as essências com a consciência que se tem delas em cada caso
ilbid., § 61). A corrente antipsicológica, nesse sentido, hoje é a base de filosofias aparentemente díspares,
como p. ex. do existencialismo, na forma observada na obra de Heidegger, que é a análise das situações
humanas em sua essência, e não em sua ocorrência psíquica (cf. Sein und Zeit, § 7); o mesmo se pode
dizer do empirismo lógico, cujo principal representante, R. Carnap, travou polêmicas constantes contra o
P. (cf. Der Logische Aufbau der Welt, 1928, §§ 151 ss.; "Empiricism, Semantics, and Ontology", 1950, em
Readings in Phil. of Science, 1953, p. 514). A polêmica contra o P. é, aliás, freqüente
no empirismo lógico (cf. p. ex., A. Pap, Ele-ments of Analytic Philosophy, 1949, p. 406).
PSICOMETRIA (in. Psychometry, fr. Psy-chométrie, ai. Psychometrie, it. Psicometrid). Medida da
freqüência, da intensidade ou da duração dos eventos psíquicos. Esse termo (psycheometria), bem como a
exigência de se aplicarem medidas a fatos psíquicos, foram propostas de Wolff (Psychol. empírica, § 522,
6l6). O termo foi muito empregado pela psicofí-sica, que às vezes se identificou com a psico-metria.
Atualmente está em desuso.
PSICOPATIA (in. Psychopaty, fr. Psychopathie, ai. Psychopathie, it. Psicopatid). Distúrbio ou doença
mental, ou as formas menos graves dessas doenças. Neste último sentido, a P. seria diferente da psicose
(v.).
PSICOSE (in. Psychosis; fr. Psychose; ai. Psychose, it. Psicosi). No significado atualmente um uso,
doença mental grave que implica perda ou distúrbio dos processos mentais. Psico-neurose ou
simplesmente neurose, doença ou distúrbio mental menos grave. Em geral, entende-se por P. o
enfraquecimento ou o desaparecimento da relação verificável com as coisas ou com cs outros; essa
relação é constituída pela personalidade (v.), e sua alteração, portanto, comporta o desequilíbrio da
personalidade. Por relação verificávelpode-se entender a relação passível de confirmação, ou a que não
seja desmentida por critérios comumente considerados válidos, ou a que, de qualquer modo, não
equivalha à negação de qualquer relação possível.
PSICOSSOMÁTICO (in. Psychosomatic; fr. Psychosomatique, ai. Psychosomatik, it. Psico-somatico).
Que concerne à influência das atitudes mentais (modo de pensar e de sentir de uma pessoa) sobre os
processos orgânicos. Chama-se psicossomático o ramo da medicina que estuda tais influências (compare
F. Ale-xander, Psychosomatic Medicine, 1949).
PSICOTÉCNICA (in. Psychotechnic- fr. Psychotechnique, ai. Psychotechnik; it. Psicotécnica).
Aplicação da psicologia aos problemas do trabalho e da produção: engenharia psicológica.
PSICOTERAPIA (in. Psychotherapy, fr. Psy-chothérapie, ai. Psychotherapie, it. Psicotera-pid). Solução
dos conflitos individuais ou de grupo, ou o tratamento de estados mentais patológicos por meio de
aconselhamento, esclarecimentos ou sugestões verbais, sem recorrer a meios materiais. A psicanálise é a
PSIQUE
813
PURO
forma mais conhecida e difundida de psicote-rapia. Uma forma mais recente é a denominada "P. não
diretiva", segundo a qual o método de tratamento consiste em procurar encontrar, através uma
conversação amigável com o paciente, a imagem que ele faz de si mesmo e de seus objetivos na vida,
ajudando-o a livrar-se dos conflitos (cf. C. R. ROGERS, Counseling and Psychotherapy, 1937) (v.
PSICANÁLISE).
PSIQUE (in. Psyche, fr. Psyché, ai. Psyche, it. Psichè). Alma ou Consciência. Ver esses dois termos.
PSITACISMO (in. Psittacism; fr. Psittacisme, ai. Psittazismus; it. Psittacismó). Uso das palavras sem
referência aos objetos, como fazem os papagaios. Leibniz dizia: "Raciocina-se muitas vezes com as
palavras, quase sem ter o objeto no espírito" (...); neste caso, "nossos pensamentos e nossos raciocínios,
contrários ao sentimento, são uma espécie de P." (Nouv. ess., II, 21, 35). Sobre a linguagem oratória
considerada como uma espécie de P., cf. C. K. Ogden-I. A. Richards, The Meaning of Meaning, 10a
ed.,
1952, p. 218.
PUBLICIDADE (in. Publicity, fr. Publicité, ai. Óffentlichkeít;it. Pubblicitã).SegundoKant, é o critério
para reconhecer imediatamente a legitimidade de uma pretensão jurídica. Kant chama de fórmula
transcendental do direito público o seguinte princípio: "São injustas todas as ações relativas ao direito de
outros homens cuja máxima não seja suscetível de P." {Zum ewigen Freiden, apêndice II).
PÚBLICO (in. Public; fr. Publique, ai. Of-fentlicb; it. Pubblicó). Esse adjetivo foi usado em sentido
filosófico (especialmente por escritores anglo-saxões) para designar os conhecimentos ou os dados ou
elementos de conhecimento disponíveis a qualquer pessoa em condições apropriadas e não pertencentes à
esfera pessoal e não verificável da consciência. Neste sentido, é P. o que Kant denominava objetivo (v.):
aquilo de que todos podem participar igualmente, podendo portanto também ser expresso ou comunicado
pela linguagem (cf. B. RUSSELL, Human Knowledge, II, 1; trad. it., p. 81).
PUNIÇÃO. V. PENA. PURIFICAÇÃO. V. CATARSE. PURISMO (in. Purism; fr. Purisme, ai. Purismus; it. Purismo). 1. Em sentido moral: "espécie de pedantismo relativo à observação do dever
considerado no sentido mais lato"
(KANT, Met. der Sitten, Doutrina da virtude, I, § 7).
2. Em sentido lingüístico: espécie de pedantismo relativo à pretensão de conservar a forma clássica e
original de uma língua.
3. Em sentido metafísico: espécie de pedantismo relativo à separação excessivamente rigorosa de uma
faculdade humana da outra. A palavra foi usada nesse sentido por G. C. Ha-mann, como título de uma
obra {Metacrítica doP. da razão, 1788, póstumo), na qual repreendia Kant por essa espécie de pedantismo
com respeito à razão.
PURO (in. Purê, fr. Pur, ai. Rein; it. Puro). O que não está misturado com coisas de outra natureza, ou,
com mais exatidão, o que é constituído de modo rigorosamente conforme à própria definição. Esta
segunda definição explica o enorme uso que os filósofos fazem desse adjetivo, porquanto, depois de
definirem um objeto, muitas vezes se acham na obrigação de distinguir as condições em que o objeto se
apresenta rigorosamente em conformidade com sua definição, das condições em que dela se afasta em
alguma medida: nas primeiras condições, o objeto é chamado de P. Anaxágoras dizia que o intelecto é P.
porque só ele, "entre todos os entes, é simples e sem mistura" (ARISTÓTELES, De an., 405 a 16). Platão
falava em prazer "P.", sem mistura de dor CR/., 51 a, 52 c). Descartes falava da matemática "P." (Méd.,
VI); Leibniz, da "P." razão (Op., ed. Erdmann, pp. 229-230, etc), assim como Wolff {Psychol. empírica,
% 495). O primeiro motor de Aristóteles foi chamado de "Ato P." por ser atividade perfeita, desprovida de
potência, mas essa expressão não é aristotélica (cir. Met., XII, 6, 1071 b 22; 8, 1074 a 36).
2. Kant chamou de P., ou "absolutamente P.", o conhecimento "no qual, em geral, não se misture nenhuma
experiência ou sensação, sendo por isso possível completamente a priori" (Crit. R. Pura, Intr., § VII).
Neste sentido, razão P. "é a que contém os princípios para conhecer algo absolutamente a priori". Ciência
da razão P. é uma crítica, e não uma doutrina, porquanto não pode proporcionar um sistema acabado da
razão P., mas pode apenas ter função negativa, "servindo para purificar, e não para ampliar, a nossa razão,
libertando-a dos erros" (Ibid.). Neste sentido, o oposto de P. é empírico. Esse adjetivo foi usado no mesmo
sentido por Fichte, que disse ser P. o Eu absoluto (ou a sua atividade), por ser diferente do eu
PURPÚREA, DLIACE, AMABIMUS
814
PURPÚREA, ILIACE, AMABIMUS
empiricamente condicionado e porque sua atividade prescinde completamente da experiência
(Wissenschaftslehre, 1794, III, § 5, II). Este uso foi constante no idealismo de inspiração romântica.
Gentile chamou o pensamento pensante de ato P. por ser independente de condições ou de conteúdo
empírico (.Teoria generale dello spirito come attopuro, 1920).
3. Na linguagem comum, chama-se P. uma ciência ou uma disciplina tratada teoricamente, sem
consideração de suas possíveis aplicações; neste caso, P. é o contrário de aplicado. Hamilton já anotava a
impropriedade desse uso (Lectures on Logic, I, 1866, p. 62).
PURPÚREA, ILIACE, AMABIMUS, EDEN-TULI. Termos mnemônicos da lógica tradicional para
exprimir a equivalência das quatro proposições modais, cada uma representada por uma sílaba na seguinte
ordem: possível, contingente, impossível, necessário. A vogai
que se acha em cada uma das sílabas (A ou E ou /ou Ü) indica se o modo deve ser afirmado ou negado e
se a proposição deve ser afirmada ou negada. A significa a afirmação do modo e a afirmação da
proposição; E, a afirmação do modo e a negação da proposição; /, a negação do modo e a afirmação da
proposição; U, a negação do modo e a negação da proposição. Desta maneira, todas as quatro proposições
indicadas pela mesma palavra são eqüipolentes, de tal forma que, se uma é verdadeira, as outras também
são verdadeiras (ARNAULD, Log., II, 8). P ex., se p for uma proposição qualquer, para a palavra Purpúrea
temos:
Possível = U = Não é possível que não p Contingente = U = Não é contingente que nãop
Impossível = E = É impossível que não p Necessário = A = É necessário que p. Analogamente para as
outras palavras.
Q
QUACRISMO (in. Quakerism; fr. Quake-ristne, it. Quaccherismó). A mais radical e liberal das correntes
religiosas da Reforma. O movimento foi iniciado em 1649 na Inglaterra por George Fox, e o verdadeiro
nome dos quacres foi "Sociedade dos Amigos" (Friends Society). O nome quacre foi cunhado pelo juiz
Bennet porque durante um longo interrogatório de George Fox este lhe disse que "tremia ante as palavras
do Senhor". Entre as maiores personalidades religiosas que aderiram a esse movimento estava W. Penn,
que, no período das perseguições, emigrou para a América e fundou a colônia de Pennsyl-vania, e Robert
Barkley, teórico do movimento. O Q. caracteriza-se: le
pela resoluta aversão a qualquer forma de culto
externo, de rito, de pregação, etc; 2Q
pelo reconhecimento de que o único guia do homem é a luz interior,
proveniente de Deus; 3Q
pelo caráter ativo e otimista que semelhante fé interior adquire nos quacres, que
consideram o próprio pecado original como uma corrupção natural superável; 4fi pela condenação da
violência, portanto pela aversão à guerra. Em Cartas sobre os ingleses (1734), Voltaire exaltava a justeza
e a validade da religiosidade dos quacres (Cartas, IV) (cf. ELFRIDA VIPONT, The Story of Quakerism,
1652-1952, Londres, 1954).
QUADRADO DOS OPOSTOS. Indicado, segundo o uso escolástico, por A, E, I, e O, respectivamente,
a proposição universal afirmativa ("todo homem corre"), a universal negativa ("nenhum homem corre"), a
particular afirmativa ("algum homem corre") e a particular negativa ("algum homem não corre") e
dispondo-as em Q. deste modo: obtemos suas relações
A contrárias E
I subcontrárias O
lógicas fundamentais. A e E são contrárias. ambas podem ser falsas, mas não podem ser ambas
verdadeiras; A e O, E e I são contraditórias: não podem ser ambas verdadeiras nem ambas falsas; I e O
sào subcontrárias: podem ser ambas verdadeiras, mas não ambas falsas; A e I, E e O são subalternas, no
sentido de que A se subalterna (implica) a I, E se subalterna (implica) a O (mas não vice-versa). A origem
deste célebre artifício didático, certamente medieval, é obscura. Foi atribuída erroneamente por Prantl ao
platônico bizantino M. Pselo, e por isso o Q. é também chamado de "Q. de Pselo"; no entanto, está
presente em documentação mais antiga, Introductiones in logicam, de Guilherme de Thyreswood
(segunda metade do séc. XII), embora não faltem exemplos de paradigmas e esquemas deste gênero em
textos anteriores.
QUADRÍVIO. V. CULTURA, ARTE.
QUAESTIO. Método escolástico de tratar um argumento a partir do séc. XII. O primeiro exemplo desse
método está em Sic et Non de Abelardo, que é uma coletânea de opiniões
QUALIDADE
816
QUALIDADE
(sententiaé) de Padres da Igreja, dispostas por problemas, de tal maneira que as várias sentenças aparecem
como respostas positivas ou negativas do problema proposto (daí o título sim e não). Na sua forma
madura, o Q. é constituído pelas seguintes partes: I
a
enunciado (ex.: Utrum deum esse sit perse notum); 2-
relação das razões favoráveis à tese que será rejeitada pelo autor (Ad primum sic proceditur Videtur quod
deumesse sit per se notum); 3
a
relação das razões favoráveis à tese oposta (Sed contra;...); 4
a
enunciação
da solução escolhida pelo autor (Conclusio); 5- ilustração dessa solução; 6a
refu-tação das teses aduzidas
pela solução rejeitada, na ordem em que foram aduzidas {Adprimum ergo dicendum... Ad secundum...). A
ordem em que as questões eram tratadas era fornecida por algum texto ao qual toda a coletânea servia de
comentaria algum livro da Bíblia, alguma obra de Boécio ou de Aristóteles ou, mais freqüentemente, as
Sentenças de Pedro Lom-bardo. Quaestiones quodlibetales ou mais simplesmente Quodlibeta eram as
coletâneas de questões que os aspirantes ao título em teologia deviam discutir duas vezes por ano (antes
do Natal e antes da Páscoa) sobre qualquer tema, de quolibet. As quaestiones disputatae, ao contrário,
eram resultado das diputationes ordinariae que os professores de teologia sustentavam durante seus
cursos sobre os mais importantes problemas filosóficos e teológicos (cf. sobre esses assuntos, MARTIN
GRABMANN, DieGeschichtederscholastischenMethode, 1911, nova ed., 1956).
QUALIDADE (gr. 7toiÓTr|ç; lat. Qualitas; in. Quality, fr. Qualité, ai. Qualitát, it. Qualitã). Qualquer
determinação de um objeto. Como determinação qualquer, a Q. distingue-se da propriedade (v.), que, em
seu significado específico, indica a Q. que caracteriza ou individualiza o próprio objeto, sendo portanto
própria dele. A noção de Q. é extensíssima e dificilmente pode ser reduzida a um conceito unitário.
Podemos dizer que ela compreende uma família de conceitos que têm em comum a função puramente
formal de servir de resposta à pergunta qual? Aristóteles distinguiu quatro membros dessa família, sendo
esta ainda a melhor exposição já feita sobre o conceito de qualidade.
1. Em primeiro lugar, entendem-se por Q. os hábitos e as disposições, que se distinguem porque o hábito
é mais estável e duradouro que a disposição. São hábitos a temperança, a
ciência e, em geral, as virtudes; são disposições a saúde, a doença, o calor, o frio, etc. (Cat., 8, 8 b 25; cf.
Met., V, 14, 1020 a 8-12). A filosofia contemporânea às vezes também recorre a hábitos disposicionais
(cf., p. ex., C. L. STEVENSON, EthicsandLanguage, III, § 4,1950, 5a
ed., p. 46 ss.), mas o precedente
aristotélico geralmente é ignorado.
2. Uma segunda espécie de Q. consiste na capacidade ou incapacidade natural; neste sentido fala-se em
lutadores, corredores, sãos, doentes, etc. (Cat., 8, 9 a 14). Esta é a Q. que os escolásticos chamaram de
ativa (cf., p. ex., S. TOMÁS, S. Th., III, q. 49, a. 2).
3. O terceiro gênero de Q. é constituído pelas afeições e suas conseqüências: estas são as Q. sensíveis
propriamente ditas (cores, sons, sabores, etc). (Cat., 8, 9 a 27; cf. Met., V, 14, 1020 a 8). Os escolásticos
chamaram essas espécies de Q. passivas (cf. S. TOMÁS, loc. cit.).
4. A quarta espécie de Q. é constituída pelas formas ou determinações geométricas, como p. ex. pela
figura (quadrado, círculo, etc.) ou pela forma (retilínea, curvilínea) (Cat., 8, 10 a 10).
Na história ulterior da filosofia pouco ou nada foi acrescentado a essas determinações e distinções feitas
por Aristóteles sobre a qualidade. Querendo-se eliminar delas o que é devido à sua mais estreita conexão
com a metafísica aristotélica, pode-se obter maior simplificação, e reduzir a três os quatro grupos acima,
caracte-rizando-os da seguinte maneira:
a) determinações disposicionais, que compreendem disposições, hábitos, costumes, capacidades,
faculdades, virtudes, tendências, ou qualquer outro nome que se queira dar às determinações constituídas
por possibilidades do objeto;
b) determinações sensíveis, simples ou complexas, que são fornecidas por instrumentos orgânicos: cores,
sons, sabores, etc;
c) determinações mensuráveis, que se submetem a métodos objetivos de medida: número, extensão,
figura, movimento, etc.
Com esta modificação, a divisão aristotélica corresponde exatamente à de Locke; com efeito, as Q. (a)
são as que Locke incluiu na terceira espécie de Q.: "aquelas que todos concordam em considerar apenas
como meras capacidades que os corpos têm de produzir certos efeitos, embora se trate de Q. tão reais no
objeto quanto as que, para adequar-me ao modo comum
QUALIDADE 817
QUALQUER
de falar, chamei de Q., mesmo distinguindo-as das outras pelo nome de Q. secundárias" {Ensaio, II, 8,
10). Por outro lado, as Q. (b) e (c) correspondem às que Locke chamava, respectivamente, de qualidades
primárias e secundárias (v. mais adiante). Assim retificada, a distinção entre as várias espécies de Q.
abrange todo o campo das discussões e dos problemas a que deu origem na tradição filosófica.
d) À noção de determinação disposicional faz referência não só a noção de Q. oculta, mas também a de
força, que a suplantou nos pri-mórdios da ciência moderna. Newton dizia: "Os aristotélicos não deram o
nome de Q. oculta a qualidades manifestas, mas a Q. que eles supuseram além dos corpos, como causas
desconhecidas de efeitos manifestos; estas seriam as causas da gravidade, da atração magnética e elétrica
ou das fermentações, se supuséssemos tratar-se de forças ou ações derivadas de Q. que desconhecêssemos
ou que fossem impossíveis de descobrir ou manifestar. Tais Q. ocultas impedem o progresso da filosofia
natural, e por isso foram abandonadas nestes últimos anos" {Optics, 1740, III, 31). Com o mesmo
espírito, Wolff definia como oculta a Q. "desprovida de razão suficiente", e acrescentava: "Q. oculta é, p.
ex., a gravidade se for concebida como força primitiva ou como força que Deus infundiu à matéria, para a
qual não se possa dar apriori nenhuma razão natural. Tal é também a força motriz, se for considerada uma
força primitiva que Deus infundiu à matéria no momento da criação. Certamente Aristóteles e seus
seguidores, que admitiram as Q. ocultas, usaram esse termo com o mesmo significado" {Cosm., § 189). O
reparo de Wolff é mais claro que o de Newton: uma força será uma Q. oculta se dela não se der razão
suficiente natural, mas não o será se for dada tal razão. Mas disso resulta também que tanto a noção de Q.
oculta quanto a de força são integráveis na noção de Q. como disposição.
O mesmo significado de Q. está presente no conceito de qualificação. "Qualificar-se para" ou "ser
qualificado para" significa ter a capacidade ou a competência, ou seja, a qualidade disposicional para
realizar dada tarefa ou alcançar determinado objetivo. Às vezes, porém, o termo "qualificado" significa
somente "limitado" ou "caracterizado por dadas condições", como acontece na linguagem jurídica.
b, c) As Q. nos sentidos B e C são as Q. tradicionalmente distinguidas como primárias e secundárias. Os
termos "primário" e "secundário" remontam a Boyle, mas a distinção é bastante antiga e remonta a Demócrito {Fr. 5, Diels). Depois de
muitos séculos foi retomada por Galileu (cf. Opere, ed. nac, VI, p. 347, ss.), por Hobbes {Decorp., 25, 3),
por Descartes {Princ. phil., I, 57; Méd., VI) e por Locke {Ensaio, II, 3, 9), que a difundiu na filosofia
européia. A base da distinção é a possibilidade de quantificação que as Q. no sentido c têm em relação às
do sentido b. por esta possibilidade, fogem às valorações individuais, mostrando-se independentes do
sujeito e plenamente "objetivas" ou "reais". Em seguida a distinção foi combatida (p. ex., por Berkeley),
principalmente com o fim de mostrar que nem mesmo as Q. primárias são objetivas, e que todas são
igualmente subjetivas, ou seja, consistem em "idéias" {Principies ofHuman Knowledge, I, § 87). Segundo
Husserl, o significado da distinção seria o seguinte: "A coisa experimentada fornece o simples hoc, um x
vazio que se torna portador das determinações matemáticas e das fórmulas inerentes, e que não existe no
espaço perceptivo, mas num espaço objetivo do qual o primeiro é apenas indício, ou seja, numa variedade
euclideana tridimensional de que só é possível fazer uma representação simbólica" {Ideen, 1, § 40). Neste
sentido, as Q. objetivas delineariam a natureza de um objeto transcendente à percepção sensível, ao qual
esta acenaria como a algo distante.
QUALIDADE DAS PROPOSIÇÕES (lat. Qualitas propositionum-, in. Quality of pro-positions; fr.
Qualité des propositions; ai. Qualitãt des Urteils; it. Qualità delle propo-sizioni). Foi provavelmente o
neoplatônico Apuleio, contemporâneo de Galeno, o primeiro a usar as palavras Q. e quantidade para
indicar, respectivamente, a distinção das proposições em afirmativas e negativas e em universal e
particular {De int., p. 266; cf. PRANTL, Geschichte derLogik, I, p. 581). Kant acrescentou aos dois juízos
tradicionais de Q. o juízo infinito. (V. INFINITO, JUÍZO)
QUALIFICAÇÃO. V. QUALIDADE.
QUALQUER (gr. nãç, lat. Omnis; in. Any; fr. Chaque; ai. feder, it. Ogni). Na lógica contemporânea, "Q"
é um operador de campo, cujo símbolo mais usado é "{x)", p. ex. em fórmulas como "O)" . "f{x)", que se
lê "para qualquer x, f{x) é verdadeiro". Isso corresponde a um produto lógico (ou conjunção lógica)
operado no campo de validade de {x), ou seja, à conjunção "f{á) e f{b) e f{c) e...". Sempre que f{x) for
QUÂNTICA, FÍSICA
818
QUANTIDADE
predicado, ela eqüivale à fórmula habitual Q. xéf", ou então "todos os x são/" da lógica tradicional.
Aristóteles utilizara "Q." na proposição universal afirmativa "Qualquer A é B", o que foi adotado pela
lógica medieval. Neste uso, a função de "Q." não se distingue da de "todo/todos". No entanto, a lógica
terminista medieval distinguiu dois significados de "todos": o significado coletivo, quando se diz, p. ex.,
"Todos os Apóstolos são 12", donde não se segue que "Estes Apóstolos são 12", e o significado
distributivo, quando se diz, p. ex., "Todos os homens desejam naturalmente saber", donde se segue que
"Qualquer homem deseja naturalmente saber". Neste último caso, "Q." indica uma disposição da. coisa
que pode funcionar como sujeito ou predicado (PEDRO HISPANO, Summ. log., 12.04-06).
Na lógica moderna, a distinção entre Q. e todo foi feita por Frege (Grundgesetz der Arithmetik, 1893, I, §
17) e por Russell. Segundo este último, tal distinção consiste no fato de que uma asserção que contenha
uma variável x(p. ex., "JC= x") pode ser válida para todos os exemplos ou para um exemplo qualquer, sem
decidir a qual exemplo se faz referência. Neste segundo caso, utiliza-se o operador qualquer. Assim, nas
demonstrações de Euclides, toma-se como base de raciocínio um triângulo qualquer ABC sem determinar
que espécie de triângulo é. Neste caso, o triângulo ABC vale como variável real: ele é um triângulo
qualquer, ainda que continue o mesmo durante toda a demonstração. O operador todos, ao contrário, tem
como base variáveis aparentes, que, seja qual for a determinação dada, não mudam o valor da função.
Russell considera que a distinção entre todos e Q. é necessária ao raciocínio dedutivo (Matbematical
Logic as Based on the Theory of Types, 1908, em Logic and Knowledge, p. 64 ss.; cf. Principies of
Mathematics, § 60-61; Principia mathematicd).
QUÂNTICA, FÍSICA. V. COMPLEMENTARIDADE; CONDIÇÃO; DETERMINISMO; FÍSICA;
INDETERMINADA.
QUANTIDADE (gr. rcorjóv; lat. Quantitas; in. Quantity, fr. Quantité, ai. Quantitãt; it. Quantitã). Em
geral, a possibilidade da medida. Foi esse o conceito emitido por Platão e Aristóteles. Platão afirmou que
a Q. está entre o ilimitado e a unidade, e que só ela é o objeto do saber; p. ex., conhece realmente os sons
quem não admite que eles sejam infinitos nem procura reduzi-los a um único som, mas conhece a Q. deles, ou seja, seu número (Fil., 17a, 18 b). Aristóteles, por sua vez, definiu a Q. como o que é
divisível em partes determinadas ou determinaveis. Uma Q. numerável é uma pluralidade divisível em
partes descontínuas. Uma Q. mensurável é uma grandeza divisível em partes contínuas, em uma, duas ou
três dimensões. Uma pluralidade completa é um número; um comprimento completo é uma linha; uma
extensão completa é um plano; uma profundidade completa é um corpo (Met., V, 13, 1027 a 7).
Essas determinações de Aristóteles foram repetidas na escolástica e passaram a fazer parte das noções
geralmente aceitas no início da Idade Moderna. Pareceu indubitável que a matemática pudesse ser
definida como "a ciência da Q." até que a evolução dessa ciência mostrasse que essa definição era restrita
e imprópria (v. MATEMÁTICA). Foi justamente pensando na matemática que no séc. XVIII Wolff definiu a
Q. como "aquilo em virtude do que as coisas semelhantes, ressalvada a sua semelhança, podem diferir
intrinsecamente" (Cosm., § 348), definição que poderia ser facilmente invertida dizendo-se que Q. é
aquilo em virtude do que as coisas dessemelhantes, ressalvada a sua des-semelhança, podem ser
semelhantes. Mas com esta forma, que corresponderia mais aos conceitos matemáticos modernos, não se
estaria definindo a Q., e sim a grandezaCv.). De fato, em matemática o termo Q. tornou-se sinônimo de
grandeza, que é específico de certo campo de indagação e que depende da escolha oportuna de unidades
de medida. Portanto, a Q. como categoria ou conceito generalíssimo não pertence mais às ciências, e no
máximo pode-se dizer que constitui o caráter generalíssimo comum aos objetos díspares das ciências
positivas, que é a possibilidade de serem medidos.
A tendência geral do pensamento científico a reduzir qualidade a Q. foi interpretada de maneira singular
por Hegel, que falou em "linha nodal das relações de medida". A mudança gradual da Q. levaria, em certo
ponto (ponto ou "linha nodal"), à mudança da qualidade, e a mudança gradual desta nova qualidade
levaria a outro ponto nodal, e assim por diante. Hegel observava que, do lado qualitativo, a passagem para
uma nova qualidade "é um salto: as duas qualidades são postas de modo completamente extrínseco uma à
outra", e que por isso a gra-dualidade da mudança quantitativa não permi-
QUANTIDADE DAS PROPOSIÇÕES 819
QUEDA
te compreender o devir (Wissenschaft der Logik, I, seç. 3a
, cap. 2; trad. it., I, pp. 446-47). Com isso ele
negava que a passagem da Q. à qualidade ou vice-versa servisse para alguma coisa. Isso, porém, não
impediu que Engels considerasse "a conversão Q. em qualidade" como lei fundamental da dialética e
visse em Hegel o descobridor dessa lei (Dialektik der Natur, trad. it., pp. 57 ss.). (V. DIALÉTICA; NODAL;
LINHA; SALTO).
QUANTIDADE DAS PROPOSIÇÕES. Foi o neoplatônico Apuleio (v. QUALIDADE DAS PROPORÇÕES)
o primeiro a chamar de Q. a divisão das proposições em universais e particulares, individuais e
indefinidas (ARISTÓTELES, De int., 7; An. pr., I, 1). Kant reduziu a três as classes dos juízos segundo a Q.,
mais precisamente proposições universais, particulares e individuais (Crít. R. Pura, 9). Hamilton também
falou da Q. dos conceitos, distinguindo a Q. intensiva, que é a intenção ou compreensão, e a Q. extensiva,
que é a extensão ou denotação (Lectures on Logic, I, pp. 140 ss.).
QUANTIFICAÇÃO (in. Quantification; fr. Quantification; ai. Quantifikation; it. Quan-tificazioné). Em
Lógica, designa-se por "Q." a operação mediante a qual, com o uso de símbolos chamados
quantificadores, se determina o âmbito ou a extensão de um termo da proposição. Na Lógica de
Aristóteles e em toda a Lógica clássica derivada, conhecia-se apenas a Q. do sujeito da proposição: em
Aristóteles, mediante os operadores "todo" e "em parte" ("[o predicado] B pertence a todo [o sujeito] A";
"B pertence em parte a A"); na Lógica medieval ou moderna, por meio dos operadores "omnis"e "aliquis"
("omnisA estB"; "aliquisA atf B"). A proposição quantificada com 'todo" era chamada de universal; a
quantificada com "em parte" ("algum") era chamada de particular; a não quantificada era chamada de
indefinida. No séc. XIX a exigência de submeter a silogística tradicional a alguma espécie de cálculo
matemático induziu alguns lógicos ingleses (Ben-tham, 1827; Hamilton, 1833) a quantificar também o
predicado, interpretando, p. ex., a proposição universal afirmativa "todos os A são B" como "todos os A
são alguns B". Deste modo, porém, a proposição era interpretada unilateralmente como uma relação de
inclusão ou exclusão, parcial ou total, entre classes. A Lógica contemporânea retomou essa concepção,
mas integrou-a. Nela, porém, os quantificadores, que agora são o quantificador universal
[na notação de Russell, "(x)" = "todos") e o quantificador existencial [cs., "(3x)" = "existe pelo menos um
x que..."], de novo referem-se apenas aos argumentos ou variáveis de uma função proposicional,
transformando estas em variáveis aparentes e as funções em proposições propriamente ditas (universais
ou particulares): p. ex., "x é mortal" é uma função "(x). 'x é mortal'" (= "todos os x são mortais"), é uma
proposição universal. G. P.
QUANTIFICAÇÃO DO PREDICADO (in. Quantification ofpredicaté). Opondo-se à lógica
tradicional, Hamilton defendeu o princípio da Q. do predicado, afirmando: ls
o predicado é tão extensivo
quanto o sujeito; 2a
a linguagem comum quantifica sempre que ocorre o predicado: diretamente, por meio
do uso de quantificadores (p. ex., "Pedro, João, Tiago, etc, são todos apóstolos"), ou indiretamente,
através da limitação e da exceção, como quando se diz "A virtude é a única nobreza", ou então "Sobre a
terra não há nada de grande a não ser o homem" (Lectures on Logic, II, pp. 257 ss.).
QUANTIFICADOR. V. OPERADOR.
QUANTCFRENIA (in. Quantophrenia; fr. Quantophrénie, it. Quantofreniã). Foi assim que P. Sorokin
chamou a "mania de quantificar a qualquer custo" no campo das ciências psicológicas e sociais (Fads and
Faibles in Modem Sociology andRelatedSciences, 1956, caps. VII-VIII).
QUATERNIO TERMINORUM. Expressão usada para indicar o tipo mais comum de falácia lógica,
constituída pela duplicidade de significado de um dos termos empregados no raciocínio, como no
exemplo tirado de Sêneca: "Mus (o rato) é uma sílaba; o rato rói o queijo; portanto a sílaba rói o queijo"
(Ep., 48) (v. EQUIVOCAÇÃO).
QUEDA (gr. êiotTCXTiÇ; lat. Casus, in. Fali; fr. Chute, ai. Fali; it. Cadutã). O mito da Q., segundo o
qual a alma humana teria decaído de um estado original de perfeição, no qual contemplava a verdade de
frente, na bem-aven-turança, é exposto em Fedro (248a ss.) de Platão e repetido por Plotino (Enn., VI, 9,
9), por outros neoplatônicos, petos gnósticos(y.) e pelos padres da Igreja Oriental. Orígenes explicou a
formação do mundo sensível a partir da queda de substâncias intelectuais que habitavam o mundo
inteligível: Q. devida à sua preguiça e à aversão ao esforço exigido pela prática do bem. Deus
estabelecera que o bem
QUIDIDADE
820
QUODLEBETA
dependeria exclusivamente da vontade dessas substâncias intelectuais e deu-lhes liberdade. Sua Q. (e
assim a formação do mundo sensível) depende exclusivamente do mau uso dessas liberdades (Deprinc, II,
o, 2; Fr. 23 A). Os gnósticos, ao contrário, negaram essa liberdade. No mundo moderno, a teoria da Q. foi
retomada por Renouvier {Nova tnonadologia, 1899). O homem, saído das mãos de Deus como criatura
livre, ao usar a liberdade provocou sua queda e, ao mesmo tempo, a ruína do mundo harmonioso criado
por Deus. Poderá erguer-se através da própria liberdade e da sucessão de provas dolorosas que o
reeducarão, devolvendo-o à harmonia original do universo (v. APOCATÁSTASE).
QUIDIDADE (lat. Quidditas; in. Quiddi-ty fr. Quiddité, ai. Quidditàt; it. Quidditã). Termo introduzido
pelas traduções latinas feitas no séc. XII (do árabe) a partir das obras de Aristóteles; corresponde à
expressão aristoté-lica xó xi nv eivou (quod quid erat esse). Esse termo significa essência necessária
(substancial) ou substância (v. ESSÊNCIA; SUBSTÂNCIA).
QUIETISMO (in. Quietism; fr. Quiétisme, ai. Quietismus, it. Quietismó). Crença de que o estado de
graça ou de união com Deus pode ser obtido pondo-se a vontade pessoal nas mãos de Deus, sem qualquer
rito ou prática religiosa. O Q. foi adotado por muitas correntes religiosas, mas esse termo foi cunhado
com referência à forma por ele assumida no catolicismo por obra de Miguel Molinos (1627-1696), cujas
teses foram condenadas pelo papa Inocêncio XI em 1687.
QUIETIVO (in Quietive; fr. Quiétif, ai. Quietiv, it. Quietivó). Foi assim que Schopen-hauer chamou o
conhecimento filosófico, por analogia e antítese com motivo, porquanto ele leva à negação da vontade de
viver, ao as-cetismo: essa negação "ocorre depois que o conhecimento total do ser tornou-se Q. do querer"
(Die Welt, I, § 68). Q., neste sentido, também é a arte como contemplação desinteressada das idéias
platônicas (Ibid., 1, § 70).
QUILIASMO (in. Chíliasm- fr. Chiliasme, ai. Chiliasmus, it. Chiliasmó). Q. ou milenarismo
é o nome que se dá hoje à crença no advento de uma renovação radical do gênero humano e na
instauração de úm estado definitivo de perfeição. O Apocalipse de S. João é o principal documento de
crenças semelhantes, que foram muito freqüentes nos primeiros séculos do cristianismo, voltando a
apresentar-se também na Idade Média. Gioacchino da Fiore (séc. XII) preconizou o iminente advento de
uma terceira era da história humana, a do Espírito Santo (Concórdia Novi et Veteris Testamenti, IV, 35).
Kant falou de um Q. filosófico "que aspira a um estado de paz perpétua, fundada na união das nações,
como república mundial (Reli-gion, I, 3).
QUINQUE VOCÊS. São os cinco conceitos generalíssimos, ou cinco tipos de predicado universal (por
isso chamados também de "pre-dicáveis") da Lógica clássica: gênero, espécie, diferença, próprio e
acidente. O cerne da sua distinção e da problemática relativa está nos Tópicos de Aristóteles, mas o
estudo formal e explícito delas como categorias fundamentais da lógica acha-se em Isagoge de Porfírio.
Foi sobretudo graças à versão e aos comentários de Boécio sobre esta obra que elas passaram para a
Lógica medieval.
QUINTESSÊNCIA, (lat. Quinta essentia; in. Quintessence, fr. Quintessence, ai. Quintessenz; it. Quinta
essenzà). 1. O éter, isto é, a substância que, segundo Aristóteles, compõe os céus, que é diferente dos
quatro elementos que compõem os corpos sublunares (V. ÉTER).
2. Extrato corpóreo de uma coisa, obtido pela sua análise alquímica mediante a separação do elemento
dominante dos outros elementos que estão misturados nela. Segundo Paracelso, na Q. estão os arcanos,
que são as forças ativas de um mineral, de uma pedra preciosa, de uma planta; são utilizados pela
medicina na feitura de medicamentos (De misteriis naturalibus, I, 4). Neste sentido, emprega-se também
o termo para indicar o princípio ativo de uma coisa ou a sua parte mais pura.
QUODLIBETA. V. QUAESTIO.
I
R
RAÇA. V. RACISMO.
RACIOCÍNIO (gr. Koyia\ióc,; lat. Ratiocina-. tio, in. Reasoning; fr. Raisonnement; ai. Ver-nunftschluss;
it. Ragionamentó). Qualquer procedimento de inferência ou prova; portanto, qualquer argumento,
conclusão, inferência, indução, dedução, analogia, etc. Stuart Mill dizia: "Inferir uma proposição de uma
ou mais proposições precedentes, e crer ou pretender que se creia nela como conclusão de qualquer outra
coisa significa raciocinar, no mais amplo sentido do termo" {Logic, II, I, 1). John Stuart Mill excluía do
âmbito do R. somente "os casos nos quais a progressão de uma verdade para outra é apenas aparente,
porque o conseqüente é mera repetição do antecedente" (Ibid., II, 1, 3); além disso, identificava raciocínio
e inferência. Mas essa restrição desapareceu do uso corrente do termo, que hoje compreende também as
inferências tautoló-gicas, consideradas próprias da matemática e da lógica (cf. P. F. STRAWSON, Intr. to
Logical Tbeory, 1952, p. 12 ss.). Portanto, a ilustração dos significados do termo pode ser achada nos
verbetes que constituem a extensão do termo em questão, e especialmente nos seguintes: DEDUÇÃO,
INDUÇÃO, PROVA, DEMOSTRAÇÃO, INFERÊNCIA, SILOGISMO, ARGUMENTO, ANALOGIA. Contudo, a
classificação fundamental dos R. divide-os em dedutivos e indutivos Essa distinção, já estabelecida por
Aristóteles (An. pr., II, 23, 68 b 13), costuma ser utilizada ainda hoje, às vezes com nomes um pouco
diferentes. Peirce, p. ex., falava em R. explicativos analíticos ou dedutivos, por um lado, e de R.
explicativos, sintéticos, ou indutivos, por outro (Chance, Love and Logic, I, 4, 3; trad. it., p. 67), que são
justamente os nomes mais empregados para designar as duas espécies fundamentais do raciocínio.
RACIOCÍNIO APAGÓGICO. V. APAGÓGICO.
RACIOCÍNIO POR ANALOGIA. V. ANALO GIA.
RACIONAL (gr. ÀoytKóç; lat. Rationalis, Rationabilis; in. Rational; fr. Rationnel, Rai-sonnable, ai.
Vernünftig; it. Razionale, Ragione-volé). 1. Aquilo que constitui a razão ou diz respeito à razão, em
qualquer dos significados deste termo (v.).
2. Quem tem a possibilidade do uso da razão; nesse sentido diz-se que o homem é um animal racional. S.
Agostinho afirma que os sábios "chamaram de racionável (rationabilis) quem faz ou pode fazer uso da
razão, e de racional (rationalis) aquilo que é feito ou dito pela razão"; portanto, acha que é preciso chamar
de racionais os discursos ou os banhos, e de racionáveis aqueles que os praticam (De ordine, XI, 31). Mas
essa distinção não é facilmente defensável porque os antigos chamaram também o homem de
racional(cf., p. ex., QUINTILIANO, Inst., V, 10, 56). Por outro lado. chamamos hoje de racionável também
aquilo que se conforma à razão.
3. Que tem por objeto a razão, sua forma e seus procedimentos. Neste sentido, Sêneca (Ep., 89, 17) e
Quintiliano (Inst., XII, 2, 10) chamaram a lógica de "filosofia R.", o que foi imitado por Wolff (Log.,
1728) e por outros.
RACIONALISMO (in. Rationalism; fr. Ra-tionalisme, ai. Rationalismus; it. Razionalis-mó). Em geral, a
atitude de quem confia nos procedimentos da razão para a determinação de crenças ou de técnicas em
determinado campo. Esse termo foi usado a partir do séc. XVII para designar tal atitude no campo
religioso: "Há uma nova seita difundida entre eles [presbiterianos e independentes], que é a dos
racionalistas: o que a razão lhes dita, eles consi-
RACIONAUSMO
822
RACISMO
deram bom no Estado e na Igreja, até que achem algo melhor" (CLARENDON, State Papers, II, p. XL, na
data de 14-X-1946). Nesse sentido Baumgarten dizia: "R. é o erro de quem elimina da religião todas as
coisas que estão acima da própria razão" (Ethica philosophica, 1765, § 52).
Kant foi o primeiro a adotar esse termo como símbolo de sua doutrina, estendendo-o do campo religioso
para os outros campos de investigação. Deu o nome de R. à sua filosofia transcendental (no texto de 1804
sobre os "Avanços da Metafísica", Werke, V, 3, p. 101), ao passo que chamava de noologistas ou
dogmáticos os filósofos que a historiografia alemã do séc. XIX chamou depois de racionalistas: de um
lado Platão e de outro os seguidores de Wolff {Crít. R. Pura, Doutr. do Método, cap. IV). No terreno da
moral, defendia "o R. do juízo, que da natureza sensível toma apenas o que a Razão Pura pode pensar por
si, ou seja, a conformidade com a lei", opondo-se por isso ao misticismo e ao empirismo da razão prática
{Crít. R. Prática, I, cap. II, Da tipologia do juízo puro prático). No campo estético, falava analogamente
de um "R. do princípio do gosto" {Crít. dojuízo, § 58). Finalmente, caracterizava como R. seu ponto de
vista em matéria religiosa: "O racionalista, em virtude desse mesmo título, deve manter-se nos limites da
capacidade humana. Portanto, nunca usará o tom contundente do naturalista nem contestará a
possibilidade nem a necessidade de uma revelação. (...) Porquanto sobre tais assuntos nenhum homem
pode decidir o que quer que seja pela razão" (Religion, IV, seç. I; trad. it., Durante, p. 169).
Por outro lado, Hegel foi o primeiro a caracterizar como R. a corrente que vai de Descartes a Spinoza e
Leibniz, opondo-o ao empirismo de origem lockiana. Por R. ele entendeu a "metafísica do intelecto", que
é a "tendência à substância, em virtude da qual se afirma, contra o dualismo, uma única unidade, um
único pensamento, da mesma maneira como os antigos afirmavam o ser" {Geschichte der Philosophie,
ed. Glockner, III, pp. 329 ss.; trad. it., III, 2, pp. 68 ss.). A contraposição entre racionalismo é empirismo
fixou-se depois nos esquemas tradicionais da história da filosofia, por mais que o próprio Hegel notasse
seu caráter aproximati-vo. Quanto ao "R. religioso", Hegel afirmava que ele é "o oposto da filosofia"
porque coloca "o vazio no lugar do céu" e porque sua forma é um raciocinar sem liberdade, e não um
entender conceitualmente" (Jbid., I, p. 113; trad. it., I, p. 95). Com base nessas observações históricas, pode-se
dizer que o termo em foco compreende os seguintes significados:
l
e
O R. religioso designa algumas correntes protestantes, ou um ponto de vista semelhante ao de Kant.
2
a O R. filosófico designa propriamente a doutrina de Kant (que adotou esse termo), ou então a corrente
metafísica da filosofia moderna, de Descartes a Kant.
3
a
Em sua significação genérica, pode ser usado para indicar qualquer orientação filosófica que recorra à
razão. Mas, nessa acepção tão vasta, esse termo pode indicar as filosofias mais díspares e carece de
qualquer capacidade de individualização.
RACIONALIZAÇÃO (in. Rationalization; fr. Rationalisation; ai. Rationalisíerung, it. Razionalizzazioné). 1. Esse foi o nome às vezes dado ao processo de constituição das ciências da natureza
em disciplinas teóricas, com adoção dos procedimentos da matemática; supunha-se que esse processo se
realizaria perfeitamente na mecânica racional (cf. HUSSERL, Ideen, I, § 9). O ideal da R. foi atualmente
substituído pelo da axiomatização (v. AXIOMÂTICA).
2. Termo freqüentemente empregado por psicólogos e sociólogos para indicar a tendência a procurar
argumentos e justificações para crenças cuja força não está nesses processos racionais, mas em emoções,
interesses, instintos, preconceitos, hábitos, etc.
RACISMO (in. Racialism; fr. Racisme, ai. Rassismus-, it. Razzismó). Doutrina segundo a qual todas as
manifestações histórico-sociais do homem e os seus valores (ou desvalores) dependem da raça; também
segundo essa doutrina existe uma raça superior ("ariana" ou "nórdica") que se destina a dirigir o gênero
humano. O fundador dessa doutrina foi o francês Gobineau, em seu Essai sur 1'inégalité des races
humaines (1853-55), que visava a defender a aristocracia contra a democracia. No início do séc. XX, um
inglês naturalizado alemão, Hous-ton Stewart Chamberlain, difundiu o mito do arianismo na Alemanha
{Die Grundlagen des XIX Jahrhunderts, 1899), identificando a raça superior com a alemã. Como o antisemitismo era antigo na Alemanha, a doutrina do determinismo racial e da raça superior encontrou fácil
difusão, traduzindo-se no apoio dado ao preconceito contra os judeus e à crença de que existe uma
conspiração judaica para do-
RACISMO
823
RADICALISMO
minar o mundo; assim, o capitalismo, o marxismo e, em geral, as manifestações culturais e políticas que
enfraquecem a ordem nacional são fenômenos judaicos. Depois da Primeira Guerra Mundial, os alemães
viram no R. um mito consolador, uma fuga da depressão da derrota; Hitler transformou-o no carro-chefe
de sua política, e a doutrina foi elaborada por Alfred Rosenberg, em Mito do século XX (1930). Rosenberg
afirma um rigoroso determinismo racial: qualquer manifestação cultural de um povo depende de sua raça.
A ciência, a moral, a religião e os valores que a cultura descobre e defende dependem da raça e são
expressões da força vital da raça. Portanto, a verdade é verdade apenas para determinada raça. A raça
superior é a ariana que, provindo do Norte, difundiu-se na Antigüidade para o Egito, a índia, a Pérsia, a
Grécia e Roma, dando origem às civilizações antigas, que decaíram porque os arianos se misturaram com
raças inferiores. Todas as ciências, artes e instituições fundamentais da vida humana foram criadas por
essa raça. Em oposição a ela, está a anti-raça parasitária judaica, que criou os venenos da raça, que são a
democracia, o marxismo, o capitalismo, o inte-lectualismo artístico e até mesmo os ideais de amor,
humildade e igualdade difundidos pelo cristianismo, que representa uma corrupção ro-mano-judaica dos
ensinamentos do ariano Jesus. Em seu conjunto, essa doutrina foi apresentada explicitamente pelo
nazismo como um mito, criado, difundido e mantido pela força vital da raça. Isso não significa que não se
procurou racionalizá-la, atribuindo base científica ao conceito de raça, que era seu fundamento. Na
realidade, porém, o próprio uso que o R. faz da noção de raça revela, do ponto de vista científico e
filosófico, a inconsistência da doutrina. Hoje, o conceito de raça é considerado unanimemente pelos
antropólogos como um recurso útil à classificação e capaz de fornecer o esquema zoológico no qual
podem ser situados os vários grupos do gênero humano. Essa palavra, portanto, deve ser reservada
exclusivamente aos grupos humanos dotados de características físicas diferentes, que podem ser
transmitidas por hereditariedade. Tais características são principalmente: a cor da pele, a altura, a
conformação da cabeça e do rosto, a cor e a qualidade dos cabelos, a cor e a forma dos olhos, o formato
do nariz e a compleição física. Convencionou-se distinguir três grandes raças, que são a branca, a amarela
e a negra, ou
seja, a caucasiana, a mongólica e a negróide. Portanto, os grupos nacionais, religiosos, geográficos,
lingüísticos e culturais não podem ser chamados de "raças" por nenhum motivo; não constituem raças os
italianos, os alemães, os ingleses, assim como não constituíram os latinos ou os gregos, etc. Não existe
nenhuma raça "ariana" ou "nórdica", assim como não há qualquer prova de que a raça ou as diferenças
raciais exerçam algum tipo de influência nas manifestações culturais ou nas possibilidades de
desenvolvimento da cultura em geral. Tampouco existem provas de que os grupos em que pode ser
dividido o gênero humano diferem em sua capacidade inata de desenvolvimento intelectual ou emocional.
Ao contrário, os estudos históricos e sociológicos tendem a fortalecer a idéia de que as diferenças
genéticas são fatores insignificantes na determinação de diferenças sociais e culturais entre grupos
humanos diferentes. Foram inúmeras as transformações sociais ocorridas sem relação com mudanças
raciais. Tampouco está provado que as misturas raciais produzam resultados biológicos prejudiciais. É
muito provável que não haja "raça pura" e que nunca tenha havido, até onde se possa averiguar no
passado. Os resultados sociais das misturas raciais, sejam eles bons ou maus, podem ser atribuídos a
fatores sociais.
Em 1951, junto à UNESCO, em Paris, uma comissão composta por cinco geneticistas e seis antropólogos,
de países diferentes, elaborou uma declaração sobre as raças, que consiste na exposição dos princípios
acima mencionados (sobre eles, cf. RUTH BENEDICT, Race, Science and Politics, 1940; e RALPH LINTON,
The Science ofMan in the World Crisis, 7
â
ed., 1952). Na realidade, esteja onde estiver e seja qual for a sua
justificativa, o R. é da alçada da psiquiatria, que Veblen chamava de aplicada, ou seja, à arte de explorar
para fins pessoais um preconceito preexistente. Trata-se neste caso de um preconceito extremamente
pernicioso porque contradiz e impede o encaminhamento moral da humanidade para a integração
universalista e porque transforma os valores humanos (a começar pela verdade) em fatos arbitrários que,
por expressarem a força vital da raça, não têm substância própria e podem ser livremente manipulados
com fins violentos ou abjetos.
RADICALISMO (in. Radicalism; fr. Radica-lisme, ai. Radikalismus; it. Radicalismo). 1. Positivismo
social que se desenvolveu na Inglater-
RAIZ
824
RAZÃO
ra entre o fim do séc. XVIII e a primeira metade do séc. XIX; seus expoentes foram Jeremias Bentham
(1748-1832), James Mill (1773-1836) e John Stuart Mill (1806-1873). Esta corrente valeu-se do
positivismo filosófico, do utilitarismo moral e das doutrinas econômicas de Malthus e Ricardo para
defender reformas "radicais" na organização do Estado e no sistema de distribuição das riquezas (v.
LIBERALISMO).
2. Mais genericamente, esse termo é hoje usado para designar qualquer tendência filosófica ou política
que proponha a renovação radical dos sistemas vigentes, representada pela transformação dos princípios
nos quais se apoiem os sistemas de crenças ou as instituições tradicionais.
RAIZ (gr. píÇcoLUX; in. Root; fr. Racine, al. Wurzel, it. Radicé). Termo com que, na linguagem
filosófica, se designa freqüentemente um princípio primeiro ou um elemento último. Empédodes chamou
de R. os quatro elementos (água, ar, terra e fogo) que compõem as coisas (Fr. 6, Diels); a partir daí, os
filósofos utilizaram freqüentemente esse termo para indicar elementos ou princípios. Schopenhauer, p.
ex., deu a uma de suas dissertações o título de Sobre a raiz quádrupla do princípio de razão suficiente
(1813), razão por que o adjetivo radical passou a indicar o que diz respeito a um princípio ou constitui um
princípio. Kant deu o nome de "mal radical" à tendência do homem para o mal, inerente à sua estrutura
moral (cf. Religion, cap. I). Hoje, chama-se de radical a análise que remonte aos princípios ou às
primeiras origens. Husserl, p. ex., insistia na radicalidade da filosofia como ciência dos verdadeiros
princípios e das primeiras origens: "A ciência do que é radical deve ser radical também em seu método e
sob todos os aspectos" (Phil. alsstrenge Wissenschaft, 1911; trad. it., p. 83).
RAMIFICADA, TEORIA DOS TIPOS. V. ANTINOMIA.
RAZÃO (gr. AÓ"yoç; lat. Ratio, in. Reason; fr. Raison; al. Vernunft; it. Ragioné). Esse termo tem os
seguintes significados fundamentais:
l
9
Referencial de orientação do homem em todos os campos em que seja possível a indagação ou a
investigação. Nesse sentido, dizemos que a R. é uma "faculdade" própria do homem, que o distingue dos
animais.
2° Fundamento ou R. de ser. Visto que a R. de ser de uma coisa é sua essência necessária ou substância
expressa na definição, assume-se às vezes por "R." a própria substância ou a sua
definição. Este é um significado freqüente na filosofia aristotélica ou nas correntes nela inspiradas.
Quanto a isso, v. ESSÊNCIA; FUNDAMENTO; FORMA; SUBSTÂNCIA.
3
S
Argumento ou prova. Nesse sentido dizemos: "Ele expôs suas R." ou "É preciso ouvir as R. do
adversário". A esse significado refere-se também a expressão "Ter R.", que significa ter argumentos ou
provas suficientes, portanto, estar com a verdade. Quanto a esse significado
V. ARGUMENTO; PROVA.
4
S
Relação, no sentido matemático. Nesse sentido fala-se também em "R. direta" ou "R. inversa" (em
inglês o termo empregado nesse caso é ratió). Quanto a esse significado, v. RELAÇÃO.
No significado de referencial da conduta humana no mundo, a R. pode ser entendida em dois significados
subordinados: A) como faculdade orientadora geral; E) como procedimento específico de conhecimento.
A) Este é o sentido fundamental, do qual a palavra extraiu a potência de significado que a transformou, há
séculos, no emblema da livre investigação. A R. é a força que liberta dos preconceitos, do mito, das
opiniões enraizadas mas falsas e das aparências, permitindo estabelecer um critério universal ou comum
para a conduta do homem em todos os campos. Por outro lado, como orientador tipicamente humano, a R.
é a força que possibilita a libertação dos apetites que o homem tem em comum com os animais,
submetendo-os a controle e mantendo-os na justa medida. Esta é a dupla função atribuída à R. desde os
primórdios da filosofia ocidental. A polêmica de Heráclito e Parmênides contra as opiniões da maioria, ou
seja, contra as crenças discordantes e ilusórias aceitas pela maioria, foi assestada em nome da R., que
deve ser o único critério orientador de todos os homens. Heráclito diz: "É preciso seguir o que é universal,
comum a todos; e só a R. é universal. No entanto, a maioria vive como se cada um tivesse uma mente
particular" (Fr. 2, Diels). E Parmênides: "Afasta o pensamento dessa via de investigação e não permitas
que te levem para ela o costume de guiar-se por um olho que não vê, por um ouvido que ressoa, pela
palavra: em lugar disso, julga com a R." (Fr. 1, 33-37, Diels). Platão e Aristóteles, por outro lado, opõem
a R. à sensibilidade, que é fonte das crenças comuns (PLATÃO, Fedro, 83a; ARISTÓTELES, Met., 1,1, 980 b
26), e aos apetites que o homem tem em comum com os animais
RAZÃO
825
RAZÃO
V3.
"A
(PLATÃO, Tim., 70a; ARISTÓTELES, Et. nic, I, 13, 1102 b, 15). Em ambos os casos, R. tem, ao mesmo
tempo, função negativa e positiva: negativa em relação às crenças infundadas e aos apetites animais;
positiva no sentido de dirigir as atividades humanas de maneira uniforrnej tante. Mas foi principalmente
com o^£stóic( que prevaleceu a doutrina da R. como único guia dos homens. Para eles, havia uma espécie
de divisão simétrica entre os animais e os homens: os animais são guiados pelo instinto, que os leva a
conservar-se e a procurar o que (J ^^ ^ vantaJ
oso; aos homens foi dado o guia mais *< ^(ü perfeito, que é a R.;
desse modo, para eles, vi-
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*
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j ^ver segundo a natureza significa viver segundo \ >a R. (DióG. L., VII, 1, 15-86). Esses conceitos |!
^constituíram um dos eixos da cultura clássica. Cícero dizia: "A R., única diferença que nos distingue do
bruto, por meio da qual podemos conjecturar, argumentar, rebater, discutir, levar a termo e concluir,
certamente é comum a todos; diferente em termos de preparação, mas igual quanto a ser faculdade de
aprender" (De leg., I, 10, 30). Sêneca exaltava a R. por sua imutabilidade e universalidade.-. "A R. é
imutável e firme no seu juízo porque não é escrava, mas senhora, dos sentidos. A R. é igual à R. assim
como o justo ao justo; portanto também a virtude é igual à virtude porque a virtude outra coisa não é
senão a reta R." (Ep., 66). Deste ponto de vista também a metafísica estóica da R., para a qual ela é —
como diz o próprio Sêneca (Ibid) — "uma parte do espírito divino infundida no corpo do homem", não
nega sua autonomia, mas, ao contrário, exalta-a e confirma-a. Certamente foi nesses conceitos que S.
Agostinho se inspirou ao fazer o elogio da R., que constitui os últimos capítulos de De ordine. "A R. é o
movimento da mente que pode distinguir e correlacionar tudo o que se aprende" (De ord., II, 11, 30). É a
força criadora do mundo humano: inventou a linguagem, a escrita, o cálculo, as artes, as ciências; é o que
de imortal existe no homem (Ibid., II, 19, 50). O entusiasmo de S. Agostinho pela razão se explica
facilmente: para ele, a vida é busca, e a R. é o princípio que institui e dirige a busca, tornando-a fecunda.
No entanto, o neoplatonismo já subordinara a R. ao intelecto, considerando-o superior à razão porque
dotado do caráter intuitivo ou imediato que o transforma na visão direta da verdade. Segundo Plotino, a
R. emana do intelecto, "que está presente em todas as coisas
que são" (Enn., III, 2, 2). Em outros termos, ela é a função formadora e plasmadora do intelecto; para
dispor todas as coisas do mundo (boas e más) em sua ordem apropriada, ela deve adaptar-se à matéria
(Ibid., III, 2, 11-12). Nesse sentido, a R. é a técnica da criação e do governo do mundo, pois graças a ela
os seres criados não se destroem entre si, mas concordam e combinam-se da melhor maneira. Piojtiria,diz:
"Graças à R., cada ser age ou sofre ações segundo necessidades, e não ao acaso e desordenadamente"
(Ibid., II, 3, 16). Esse conceito de superioridade do intelecto foi herdado pela escolástica medieval. R. e
intelecto são identificados no significado geral de princípio orientador (cf., p. ex., S. TOMÁS DE AQUINO,
S. Th., I, q. 29, a. 3, ad. 4Q
; q. 79, a. 8). Mas em seguida a razão é subordinada ao intelecto por seu caráter
discursivo, que parece inferior ao caráter intuitivo daquele (v. adiante). Mais tarde, o próprio Bacon
considerava a R. como uma atividade especial do intelecto (ao lado da memória e da fantasia), mais
precisamente a função cuja tarefa é dividir e compor as noções abstratas "segundo a lei da natureza e a
evidência das próprias coisas" (De augm. scient., II, 1). Assim, é só com Descartes que a R. volta a ser o
guia fundamental do homem.
Identificando razão e bom senso, Descartes restabelece o conceito clássico de R., e com base nele formula
o problema novo do méto-dgJ"A capacidade de bem julgar e de distinguii o verdadeiro do falso, que
recebe o nome de senso ou R., é por natureza igual em todos os homens; portanto, a disparidade de nossas
opi niões não provém do fato de que umas são mais racionais que as outras, mas apenas de conduzirmos
nossos pensamentos por cami nhos diferentes, sem levar as coisas em con sideração. Não basta ter o
espírito são; o prinj ipal é aplicá-lo bem'T(I)iscours. 1). Estas palavras famosas rejntroduziram no_
mundo moderno o conceito antigo (e especialmente _estóicoJ_de R. como guia de todo o gênero humano.
Assim, S_pjnoza surpreendia-se ao ver que às vezes queriam "submeter a R., máximo dom de Deus e luz
realmente divina, às palavras", não se considerando crime "falar indig-namente desse verdadeiro
testemunho do Verbo de Deus, que é a R., declarando-a corrupta, cega e impura" (Tract. theologicopoliticus, cap. 15). Leibniz, por sua vez, insistia na velha tese de que a R! pertence ao homem e somente
ao homem (Nouv. ess., IV, 17, 2), e Locke atriV
>'*
r
A
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V
Si
te
Cx
o
S
RAZÃO
T
RAZÃO
buía à R. uma determinação fundamental, que^1
* a filosofia só concede àqueles que advertiram
constitui a única inovação autêntica do concei- <5-, ^ a exigência interior de compreender" CF//. Í/O
to moderno em relação ao clássico: "a R. é <SL vtf <//r., Pref.; trad. it. Messineo, p. 17). Isso signiinstrumento do conhecimento provável, e nãov \|fica que a razão não guia, mas chega postfacíum
apenas do conhecimento estabelecido". Locke,^$la compreender a realidade, a justificá-la
£*—- _—-
dizia: "Assim como a razão percebe a correia ção necessária e indubitável entre as idéias ou provas, em
cada grau de qualquer demonstração que produza conhecimento, de maneira análoga também percebe a
correlação provável entre as idéias ou provas em qualquer grau de uma demonstração à qual julgue ser
devido o assentimento" {Ensaio, IV, 17, 2). Com essa determinação, a R. era qualificada segundo a
função que lhe era atribuída pelo iluminismo sete-centista: princípio de crítica radical da tradição e de
renovação igualmente radical do homem. Kant tentava realizar plenamente o ideal ilu-minista da R. Por
um lado, identificava-a com a própria liberdade de crítica ("Sobre a liberdade de crítica repousa a
existência da R., que não tem autoridade ditatorial, mas cuja sentença nunca deixa de ser o acordo dos
cidadãos livres, cada um dos quais deve poder formular sem obstáculos as suas dúvidas e até seu veto") e
por outro pretendia levar a R. diante de seu tribunal e instaura a "crítica da R. pura", que "não se imiscui
nas controvérsias imediatamente referentes aos objetos, mas é instituída para determinar e julgar os
direitos da R. em geral" {Crít. R. Pura, Teoria transcendental do método, cap. I, seç. II). Está de acordo
com o conceito iluminista de R. a definição de Whitehead: "a função da razão é promover a arte da vida",
no sentido de que a R. teria a tarefa de agir sobre o ambiente para promover formas de vida mais
satisfatórias e perfeitas {TheFunction ofReason, 1929, cap. I; trad. it. Cafaro, pp. 6 ss.). Enquanto isso,
aquilo que à primeira vista parece ser a maior garantia da eficácia da R. — crer que ela habita a realidade
e a domina, de tal modo que não há realidade não racional, nem racionalidade não real — na verdade
constitui o abandono da função diretiva da R. Hegel, que afirmou com mais rigor esse ponto de vista,
também negou a função diretiva da R.: "O que está entre a R. como espírito autocons-ciente e a R. como
realidade presente, o que diferencia aquela desta e não permite que se encontre satisfação nesta, é o
estorvo de alguma abstração que se não libertou e não se transformou em conceito. Reconhecer a R. no
presente e, assim, fruí-lo é o reconhecimento racional que reconcilia com a realidade, o que
É) Oreconhecimento da R. como guia cõns" tante, uniforme e (às vezes) infalível de todos os homens, em
todos os campos da atividade destes, é acompanhado na maioria das vezes pela determinação de um
procedimento espet cífico no qual se reconhece a atuação própria da razão. As determinações já
concebidas sobre a técnica específica da R. podem ser resumidas nos seguintes conceitos fundamentais:
d) disoirso; b) autoconsciência; c) auto-revelação; d) tautologia. NíraRÍcà
a) O procedimento ((liscursivo^é a técnica mais freqüentemente consicTerãcla própria da razão. A ele
PJatão recorre para marcar a diferença entre a opinião verdadeira e a ciência: as opiniões podem dirigir a
ação tão bem quanto a ciência, mas tendem a fugir para todos os lados, como as estátuas de Dédalo,
enquanto não "são amarradas por um raciocínio causai" {Men., 98 a). Esse atamento ou essa conexão é a
técnica discursiva. Técnica discursiva é todo o procedimento silogístico de Aristóteles, à parte a
determinação dos princípios, que são intuídos pelo intelecto; discursivas são a silogística necessitante e a
dialética {An. post., I, 33, 89 b 7; Et. nic, VI, 11, 1143 b 1). No mesmo sentido, os estóicos definiam a R.
como "um sistema de premissas e conclusões" (DIÓG. L., VII, 1, 45). A função freqüentemente atribuída à
razão
'Tdístin^r,ronjejaHonar .rnmparar e>tr [v. OS
trechos de Cícero e"S. AgostirthtrcTtados em A]) não passa de expressão do mesmo procedimento. S.
Tomás de Aquino dizia: "Os homens chegam a conhecer a verdade inteligível procedendo de uma coisa à
outra; por isso são chamados de racionais. É evidente que raciocinar está para entender assim como
mover-se está para ficar parado, ou adquirir para ter: destas coisas, a primeira é própria do imperfeito; a
segunda, do perfeito" {S. Th., I, q. 79, a. 8). No começo da Idade Moderna Descartes moldava-se no
mesmo procedimento para determinar suas regras do método: "Os longos encadea-mentos de razões,
todas simples e fáceis, de que os geômetras costumam lançar mão para chegar às suas demonstrações
mais difíceis, deram-me a oportunidade de imaginar que todas as coisas que podem chegar ao
conhecimento dos homens correlacionam-se da
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VI
fètt
RAZÃO
mesma maneira" (Discours, II). A Lógica de Port-Royal expressava de maneira diferente os mesmos
conceitos (ARNAULD, Log., III, 1) em que também Locke baseava sua doutrina da razão: "Na R. podemos
considerar estes quatro graus: o primeiro e mais elevado consiste em achar e descobrir as/verdades; o
segundo, em dispô-las de maneira regular e metódica, siste-matizando-as numa ordem clara e justa, de tal
modo que sejam percebidas com evidência e facilidade sua força e suas interconexões; o terceiro, em
perceber tais conexões; o quarto, em tirar uma justa conclusão" (.Ensaio, IV, 17, 3). A distinção que
Spinoza estabelecia entre o segundo gênero de conhecimento, que ele chamava de R., e o terceiro, que
chamava de ciência intuitiva, é a distinção tradicional entre o procedimento discursivo e o intelecto
intuitivo (Et., II, 40, schol. 2). E Leibniz só fazia encontrar a expressão mais simples para o mesmo
conceito de R. ao afirmar que a R. é "a concate-nação das verdades" (Op., ed. Erdmann, p. 479, 393).
Wolff dava o nome de "juízo discursivo" à operação da R., na medida em que consiste na correlação das
proposições (Log., §§ 50-51).
O conceito de R. como discurso entra em crise com Kant, que, ao mesmo tempo em que atribui caráter
discursivo a toda a atividade cognoscitiva humana, considerando que apenas Deus possui o conhecimento
intuitivo (v. DISCURSIVO), distingue nitidamente a R. do intelecto, apesar do caráter discursivo comum
aos dois. A R. é a faculdade^'que produz os_concei-_ tos por si"; portanto, pode ser chamadadej^rculáade dos princípios. Mas os conceitos que a R. produz não têm base na experiência; por isso, são
simplesmente fictícios. "Se o intelecto pode ser uma faculdade da unificação dos fenômenos por meio de
regras, a R. é a faculdade de unificar as regras do intelecto por meio de princípios. Por isso, ela nunca visa
imediatamente à experiência ou a um objeto qualquer, mas ao intelecto, para, por meio de conceitos,
imprimir aos múltiplos conhecimentos deste uma unidade apriori; essa unidade, que pode ser chamada de
racional, é de espécie totalmente diferente da outra que pode ser produzida pelo intelecto" (Crít. R. Pura,
Dialética transcendental, Intr. II, a). Assim como o intelecto, a R. procede discursivamente, mas considera
que os procedimentos discursivos do intelecto se realizem em idéias de totalidade e unidade (alma,
mundo, Deus), que são perfeitas, umas não podem ser confrontadas com a
i^ i1
- • experiência, portanto puramente fictícias e apenas fonte de raciocínios dialéticos, ou seja,
sofísticos (v. IDÉIA; ANTINOMIAS). O resultado dessa distinção kantiana é que só é válido o procedimento
do intelecto cujos conceitos derivam imediatamente da experiência, e que o procedimento discursivo
racional, com suas pretensões totalitárias, só dá origem a noções fictícias. Portanto, depois de Kant fica
difícil manter a definição da razão como técnica discursiva. ~> *<-- A* Ç_ %<-•-■ -7/.-V> K* -
O conceito da R. como discurso permite a, ■ consideração formal do procedimento racional: possibilita
uma lógica, que é na realidade a lógica tradicional na forma elaborada pelos filósofos desde Aristóteles
até o fim do séc. XIX. Entendida neste sentido, a lógica é ao mesmo tempo descritiva e normativa:
descritiva em relação aos procedimentos próprios da R., normativa no sentido de que essa mesma
descrição vale como regra para o uso correto da razão. Nesse sentido, a lógica tradicional era definida
com exatidão como "arte de raciocinar". ____------------------—-—
U) O conceito da R. como(^toconsciêncía) '£, remonta a Fichte. Caracteriza-se pela identifi- -f cação entre
R. e realiHade^ejrrf-sgnpõé o ron- ■;
ceito d£R. como discursa Como discurso, a R. ^ eãecrüçap; como dedução, tem um único princí- ;;
pio, que é o Eu. Do Eu deriva, com necessi- "^ dade infalível, todo o sistema do saber, que é -í ao
mesmo tempo o sistema da realidade. "Fonte de toda a realidade é o Eu. Somente com o Eu e pelo Eu é
dado o conceito de realidade. Mas o Eu é porque se põe e põe-se porque é. Portanto, pôr-se e ser são uma
só e mesma coisa" (Wissenschaftslehre, 1794, § 4, C; trad. it., p. 92). As equações em qjLie essa
doutrinasse^ baseia são as seguintes£R. = saber dedutivo;; ( sábêr"Sêdutivo = realidade^ realidade + saber
= autoconsciênçia. Schelling expressava essas Tnesmas equações ao afirmar: "A natureza alcança seu fim
mais elevado, que é tornar-se inteiramente objeto de si mesma, com a última e mais elevada reflexão, que
nada mais é que o homem ou, de modo mais geral, aquilo que chamamos de razão. Temos assim, pela
primeira vez, o retorno completo da natureza a si mesma, estando evidente que a natureza é originariamente idêntica àquilo que em nós se revela como princípio inteligente e consciente (System des
transzendentalen Idealis-mus, 1800, Intr., § 1; trad. it., p. 9). E Hegel expressava o mesmo conceito da
seguinte
RAZÃO
828
RAZÃO
maneira: "A autoconsciência, ou seja, a certeza de que suas determinações são tão objetivas —
determinação da essência das coisas—quanto seus próprios pensamentos, é a R.; esta, por ser tal
identidade, é não só a substância absoluta, mas também a verdade como saber" (Ene, § 439). Em outras
palavras, para Hegel a R. é a identidade da autoconsciência como pensamento com suas manifestações ou
determinações, que são as coisas ou os acontecimentos; é a identidade de pensamento e realidade. De
forma epigráfica, esse conceito era expresso por Hegel da seguinte maneira: "a R. é a certeza da
consciência de ser realidade: assim o idealismo expressa o conceito de R." (Phãnomen. des Geistes, I, V,
I; trad. it., p. 209). É óbvio que, desse ponto de vista, a R. não é discursiva no sentido de concatenar
expressões lingüísticas e inferir uma da outra por meio de regras determinadas ou determináveis, mas é a
inferência (pretendida) das determinações do pensamento e da realidade, umas das outras, num processo
único cuja perfeita "necessidade" é afirmada. Este ponto de vista impossibilita a consideração formal das
técnicas racionais, que está ligada à concepção d) de R. Como autoconsciência, a R. nunca é formal: é
sempre idêntica à realidade. Hegel diz: "O intelecto determina e firma as determinações. A R. é negativa e
dialética porque em nada resolve as determinações do intelecto. Ela é positiva porque gera o universal e
nele compreende o particular" (Wissenschaft der Logik, Pref. da I
a
ed.; trad. it., p. 5). Por "compreender o
particular" entende-se que compreende as coisas ou as determinações reais, que, em última análise, nada
mais são que suas manifestações particulares. A negação da lógica formal é parte integrante desse ponto
de vista; por isso, retorna sempre que ele aparece. Basta lembrar que Croce rejeitava a lógica formal
baseada no mesmo pressuposto hegeliano de identidade entre R. e realidade, expresso na forma de
identidade entre filosofia e história: "A riqueza da realidade, dos fatos, da experiência, de que pareceria
carecer o conceito puro, portanto a filosofia, em virtude da declarada distância em relação às ciências
empíricas, é-l lhe devolvida e reconhecida; e não mais na forma diminuta e imprópria do empirismo, mas
sim de modo total e integral. Isso se realiza pela conjunção, que é unidade, de filosofia e história"
.ilógica, 1920o p. 392).
c) O conceito de R. como auto-revêlãçãõ õíT evidência foi estabelecido por Husserl. Para
ele, a R. é o manifestar-se fenomenológico dos objetos (que podem ser coisas ou essências), seja esse
manifestar-se dotado de caráter necessário ou apodítico, seja de caráter assertório. Husserl diz: "A visão
por assim dizer assertória de uma individualidade, como p. ex. o perceber uma coisa ou uma facilidade
individual, distingue-se em seu caráter racional da visão apodítica da compreensão de uma essência ou de
uma relação de essências" (Ideen, I, § 137). O termo mais abrangente, o conceito que com-preede tanto a
visão assertória, que é dada de fato, mas pode ser diferente, quanto a visão apodítica, que é necessária, é a
consciência racional, que Husserl chama também, em geral, de evidência (Ibid., 137). Desse ponto de
vista, o caráter fundamental da racionalidade é a validade do posicionamento: se o objeto é
verdadeiramente posto, o ato é válido, e a posição tem caráter racional (Ibid., § 139). Mas aquilo que do
ponto de vista do ato noético é a posição do objeto, do ponto de vista objetivo é a evidenciaçâo do objeto,
seu dar-se ou seu revelar-se (Ibid., § 139). E como, em qualquer esfera do ser, o modo de auto-revelar-se
dos objetos é diferente, todo tipo de realidade traz consigo "uma nova doutrina concreta da R." (Ibid., §
152). Esse conceito de R. como autorevelação ou auto-evidência é aceito integralmente por Heidegger:
"Apenas porque a função do logos é fazer ver algo, fazer perceber o ente, logos pode significar R." (Sein
undZeit, § 7, B). Esse mesmo conceito é apresentado de forma mais mítica por Jaspers: "A R. não é de
fato uma verdadeira nascente originária, mas, por ser conexão de tudo, é semelhante a uma nascente
originária na qual vêm à luz todas as nascentes" (Vernunft undExistenz, 1935, II, 5; trad. it., p. 50). A
direção para a qual a R. se move é a infinita clareza, e aquilo que nela tenta aclarar-se é a existência: "a
existência alcança a clareza somente por meio da R.: a R. só tem conteúdo em virtude da existência"
(Ibid., II, 6; p. 53). E óbvio que, mesmo deste ponto de vista, é impossível a consideração formal do
procedimento racional. A R. nunca é formal porque é sempre preenchida pelo conteúdo que nela se
manifesta evidente ou se esclarece.
d) O conceito de R. como tautologia tem origem em Hume, que foi o primeiro a fazer a distinção nítida
entre "relações de idéias" e "coisas de fato". "À primeira classe pertencem ciências como a geometria, a
álgebra e a aritmética; em suma, toda proposição intuitiva ou
RAZÃO
829
RAZÃO
demonstrativamente certa [no sentido lockia-no]. (...) As proposições dessa classe podem ser descobertas
com uma pura operação do pensamento, e não dependem de coisas que existem em algum lugar do
universo" (Inq. Cone. Underst., IV, 1). Na verdade, Hume não afirmou explicitamente o caráter
tautológico ou (para usar um termo kantiano) analítico das proposições que expressam simples relações
das idéias entre si, mas de algum modo o pressupôs quando insistiu no fato de que as proposições que
expressam coisas de fato não são logicamente deriváveis uma da outra. Todavia, para formar a concepção
de R. em foco interveio também outro componente conceptual, exposto pela primeira vez por Hobbes: a
redução da R. a cálculo das proposições verbais. Hobbes disse: "A R. nada mais é que o cálculo — a
adição e a subtração — das conseqüências dos nomes gerais usados para caracterizar e significar nossos
pensamentos: para caracterizá-los quando calculamos para nós mesmos, para significá-los quando
demonstramos ou comprovamos nossos cálculos para os outros homens" (Leviath., I, 5). Esta idéia de
Hobbes concretizou-se apenas a partir de meados do séc. XIX, com a fundação da lógica matemática por
parte de G. Boole (Laws ofThought, 1854), que foi o primeiro a mostrar a impossibilidade de reduzir o
raciocínio matemático às formas de raciocínio descritas por Aristóteles, dando início a uma lógica
estreitamente ligada aos métodos de cálculo. O sucesso ulterior dessa lógica, principalmente graças a
Frege e a Russell (v. LÓGICA), constitui um antecedente histórico indispensável do conceito de R. em
exame. Que tal procedimento tivesse caráter tão lógico só ficou claro mais tarde, no Círculo de Viena,
com a obra de Wittgenstein (1922). O fundamento dessa obra é a redução da R. à linguagem. Wittgenstein
afirmava que "as proposições da lógica são tautologias" ( Tractatus, 6.1), que "nada dizem (são as
proposições analíticas)" {Ibid., 6.11), e que "são sempre falsas as teorias que mostram uma proposição da
lógica provida de conteúdo" (Ibid., 6.111). E acrescentava: "A característica especial das proposições
lógicas é que, só pelo símbolo, pode-se reconhecer que são verdadeiras, e este fato encerra em si toda a
filosofia da lógica. Analogamente, um dos fatos mais importantes é que a verdade ou falsidade das
proposições não lógicas não pode ser reconhecida somente a partir da proposição" (Tractatus, 6.113).
Assim, o procedimento racional julgado característico das disciplinas às quais Hume atribuía por objeto
apenas as relações de idéias (lógica e matemática) foi reduzido à tautologia. Wittgenstein diz que as
proposições da lógica, assim como as da matemática (Ibid., 6.21), nada dizem. No entanto, isso não quer
dizer que são inúteis, pois revelam a identidade de significado existente sob formas proposicionais
diferentes e podem, portanto, ser usadas para a transformação de uma proposição numa outra que tenha o
mesmo significado, mas forma diferente. Contudo, nenhuma das proposições da lógica e da matemática
fornece qualquer informação acerca do mundo. A redução da R. a procedimento tautológico tem, pois, os
seguintes resultados: 1Q
são racionais, no sentido próprio do termo, somente os procedimentos formais da
lógica e da matemática (como parte ou todo da lógica); portanto, racionalidade e logi-cidade coincidem;
2
Q
racionalidade e logicidade nada têm a ver com realidade. Portanto, esse conceito da R. constitui a
inversão simétrica do conceito tí), que, ao contrário, identificou racionalidade e realidade, e opôs ambas
as concepções à formalidade lógica pura, declarada sem valor (cf. sobre a concepção em exame, R. VON
MISES, Kleines Lehrbuch des Positivismus, 1939, § 10; trad. it., pp. 164 ss.; J. R. WEINBERG, An
Examination of Logical Positivism, 1950), cap. II; trad. it., pp. 86 ss.).
As quatro alternativas típicas que a teoria da R. seguiu até hoje são claramente insuficientes em face da
tarefa que se atribui à R. de guiar o homem em todos os campos. A primeira delas esgotou-se
historicamente, e o abandono da lógica em que era expressa é um sinal desse esgotamento. As alternativas
(b) e (c) impossibilitam a determinação de procedimentos rigorosos; a (b) põe em risco a própria função
diretiva da razão. A alternativa (d) possibilita o desenvolvimento de uma disciplina autônoma, que é a
moderna lógica matemática, mas é restrita demais para expressar as tarefas da R. em todos os campos. É
certamente possível empregar em todos os campos as técnicas lógico-matemáti-cas construídas com base
na noção de R. como tautologia, mas nem todos os procedimentos que podem ser definidos como
racionais podem ser reduzidos a tais técnicas. Em geral, comportamento racional é o que permite dominar
uma situação, enfrentar suas mudanças e corrigir os eventuais erros do próprio procedimento. Portanto, a
racionalidade de um proce-
RAZÃO DE ESTADO
830
REAIS CIÊNCIAS
dimento só pode ser determinada em relação à situação específica que ele permite enfrentar. E a
consideração da R. remete desde logo (como queria Husserl) à consideração das esferas ou dos campos
específicos, unicamente em relação aos quais se pode decidir sobre a racionalidade de um procedimento.
Deste último ponto de vista, a teoria da R. hoje não pode ser dada por uma metafísica da R., mas por
investigações metodológicas e críticas que, do exame de procedimentos autônomos de que o homem
dispõe em cada campo de pesquisa, remontem às condições gerais em que esses procedimentos podem ser
projetados.
RAZÃO DE ESTADO. João Botero, que introduziu essa expressão como título de um livro seu {Delia
ragion di stato, 1589), usou-a para designar "a resenha dos meios aptos a fundar, conservar e ampliar um
Estado", que é "o domínio firme sobre os povos". Mas na realidade essa expressão passou a indicar o
princípio do maquiavelismo vulgar, e isso graças ao próprio Botero, que, mesmo se opondo a Maquiavel,
admitia o princípio de que os fins justificam os meios em política (v. MAQUIAVELISMO).
RAZÃO PREGUIÇOSA (gr. àpTÒç AÓ70Ç; lat. Ignava ratia, ai. Faule Vernunft, it. Ragionpigrd).
Raciocínio ou argumento que leva à inércia. Já Platão chamava de preguiçoso o argumento sofista de que
é inútil indagar por que não se pode indagar aquilo que se sabe (uma vez que se sabe) nem aquilo que não
se sabe, uma vez que não se sabe o que indagar (Men., 86 b). Mas com o nome de R. preguiçosa chegou
até nós especialmente um argumento de provável origem megárica, exposto pelo estóico Crisipo
(PLUTARCO, Moralia, II, p. 574 e; cf. Stoicorum fragmenta, II, p. 277), que Cícero assim relatou: "Se for
teu destino curar-te dessa doença, vais curar-te recorrendo ou não a um médico. Assim também, se for teu
destino não te curares dessa doença, não vais curar-te recorrendo ou não ao médico. Ora, teu destino é
uma dessas duas coisas; portanto, de nada te adianta recorrer ao médico" (De fato, 12, 28). Leibniz fez
alusão a esse velho argumento megárico ou estóico (Teod., I, 55). Mais genericamente, Kant chama de R.
preguiçosa "todo princípio que leve a considerar como absolutamente cumprida a investigação, de tal
modo que a R. se tranqüiliza, ao dar por cumprida sua tarefa" (Crít. R. Pura, Dialética, Apêndice à
Dialética transcendental: do objetivo final, etc). É neste
sentido mais geral que essa expressão costuma ser usada até nossos dias.
RAZÃO PURA, V. PURO.
RAZÃO SUFICIENTE. V. FUNDAMENTO.
RAZOÁVEL (lat. Rationabilis ou Rationalis; in. Reasonable, fr. Raisonable, ai. Vernunftig; it.
Ragionevolé). Aquilo que está em conformidade com a razão ou com as regras que ela prescreve em
determinado campo de pesquisa ou em geral. Neste sentido, Locke falava da "racionabilidade do
cristianismo". Fala-se também de "certeza R." para designar a certeza que pode ser deduzida das regras do
domínio a que se faz alusão, mas não é absoluta. Dewey diz: "A racionabilidade é questão de relação
entre os meios e os fins. (...) É R. buscar e escolher os meios que, com toda a probabilidade, produzirão
os efeitos desejados" (Logic, I; trad. it., pp. 41-42).
Como correlativo de racionabilidade, o termo R. implica uma conotação limitativa que, em primeiro
lugar, exclui a infalibilidade da razão e, em segundo, inclui a consideração dos limites e das
circunstâncias em que a razão vem a agir. Portanto, "ser R." significa, na língua comum, dar-se conta das
circunstâncias e das limitações que elas comportam, renunciando-se a atitudes absolutas, sejam elas
teóricas ou práticas.
RAZÕES SEMINAIS (gr. ÀÓYOtcnrepLLfxUKOÍ; lat. Rationes seminales). Partes da razão divina que
dão origem às coisas. Segundo os estóicos, assim como todo ser vivo é produzido por uma semente, todas
as coisas são produzidas por uma partícula da razão divina, que por isso é uma semente racional. Essa
noção ressalta a predeterminação daquilo que é gerado (AÉCIO, Plac, 1.7, 33; cf. J. STOBEO, Ecl, I, 17, 3);
foi retomada pelos neoplatônicos (cf. PLOTINO, Enn., II, 3, 16) e por S. Agostinho (De diversis quaestionibus, 83, q. 46).
REAÇÃO (in. Reaction; fr. Reaction-, ai. Reaction-, it. Reazioné). 1. Ação igual e de sentido contrário a
determinada ação. É neste sentido que a física newtoniana utiliza essa palavra.
2. Em psicologia: qualquer resposta a um estímulo. Tempo de reação: intervalo entre estímulo e resposta.
3. Em política: movimento que tende a anular ou a neutralizar os efeitos de uma revolução ou de uma
mudança qualquer, ou mesmo impossibilitar a ocorrência de mudanças.
REAIS CIÊNCIAS. V. CIÊNCIAS, CLASSIFICAÇÃO DAS.
REAL
831
REALIDADE
REAL (lat. Realis, in. Real; fr. Réel; ai. Real; it. Realé). 1. Que se refere à coisa. P. ex., "definição R." é a
definição da coisa e não do seu nome.
2. Aquilo que existe de fato ou atualmente. Corresponde aos vários sentidos do termo realidade (v.).
3. Herbart chamou de Reais os seres efetivamente existentes, "cuja natureza simples e própria
desconhecemos, mas sobre cujas condições interiores e exteriores é possível adquirir uma soma de
conhecimentos que podem aumentar infinitamente". Tais entes são irrela-tivos entre si e por isso qualquer
das suas relações deve ser considerada uma constatação acidental (züfallige Ansichi) que não qualifica e
não modifica sua natureza (Einleitung in die Philosophie, 1813, §§ 152 ss.).
REALIDADE (in. Reality, fr. Réalité, ai. Realitüt, Wirklichkeit; it. Realtã). 1. Em seu significado próprio
e específico, esse termo indica o modo de ser das coisas existentes fora da mente humana ou
independentemente dela. A palavra realitas foi cunhada no fim da es-colástica, mais precisamente por
Duns Scot. Este a usou sobretudo para definir a individualidade, que consistiria na "última realidade do
ente", que determina e contrai a natureza comum ad esse hanc retn, à coisa singular (Op. Ox, II, d. 3, q. 5,
n. 1). Duns e seus discípulos preferiram chamar essa realitas de haecceitas. Mais tarde, esse termo
passaria a designar o esse in re da escolástica, p. ex. no sentido com que S. Anselmo pretendia passar,
através da prova ontológica, do esse in intellectu ("Ente superior a tudo") ao seu esse in reiProsl. 2), ou
então no sentido com que os escolásticos falavam do universal in re, "incorporado nas coisas". Assim, o
oposto de R. é idealidade, que indica o modo de ser daquilo que está na mente e não pode ser ou ainda
não foi incorporado ou atualizado nas coisas. A referência a coisas também evidente está em expressões
como "definição real", para indicar a definição da coisa, e não do nome, e "direitos reais", para indicar os
direitos pertinentes às coisas, e não às pessoas.
O problema suscitado diretamente pela noção de R. é o da existência das coisas ou do "mundo exterior".
Esse problema nasceu com Descartes, ou seja, com o princípio cartesiano de que o objeto do
conhecimento humano é somente a idéia. Desse ponto de vista, torna-se imediatamente duvidosa a
existência da realidade a que a idéia parece aludir, mas sem provas, assim como uma pintura não prova a R. da coisa
representada. Para justificar a R. das coisas, Descartes recorreu à veridicidade de Deus: em sua perfeição,
Deus não pode enganar-nos, não pode permitir que haja em nós idéias que nada representem (Méd., IV).
Mas Descartes chegou à existência de Deus não só reelabo-rando a prova ontológica como também
admitindo o princípio de que "na causa eficiente e total deve haver pelo menos tanta R. quanto no efeito",
princípio com base no qual a idéia de Deus, que é a idéia da máxima perfeição, deve ter como causa um
ser que tenha tanta "R." quanto aquela que a idéia representa: Deus (Ibid., III). A evolução ulterior do
problema levou à negação da realidade. O empirismo inglês, com Berkeley e Hume, reduzia a R. das
coisas ao ser percebido, negando-a, pois, como modo de ser autônomo. Por outro lado, com Leibniz, o
racionalismo resolvia as coisas em elementos ou átomos (mônadas) de natureza espiritual, negando,
também desse modo, o caráter específico de sua R. (v. IMATERIAUSMO). Kant de algum modo reafirmou a
R. das coisas, mantendo na palavra R. {Realitüt) a significação específica de R. das coisas ou, como ele
mesmo diz, "coisalidade" (Sacbheii) (Crít. R. Pura, Analítica, II, cap. I), contrapondo-lhe a "idealidade"
do espaço e do tempo, que são formas da intuição, e não das coisas (Ibid., § 3). Mas, para ele, o problema
diz respeito à existência (Daseiri) mesma das coisas. É o que ele examina em "Refutação do Idealismo".
A solução então proposta é que "a consciência de minha própria existência é ao mesmo tempo consciência
da existência de outras coisas fora de mim". A prova dessa asserção é que a consciência do tempo, isto é,
da mudança, não seria possível sem a consciência de algo permanente; e esse algo permanente, não
podendo ser dado pela própria consciência do tempo, pode ser dado apenas pela coisa exterior à
consciência. Seja válida ou não essa demonstração, está claro que, por um lado, Kant julgava válido o
primado da consciência estabelecido por Descartes, para quem a R. das coisas é um problema que exige
demonstração, e, por outro, tendia a destruir essa formulação, relacionando a consciência da existência
com a existência das coisas (V. CONSCIÊNCIA). Ele nem sequer se propunha o problema do modo de ser
específico das coisas, do tipo de existência que lhes é próprio. Contudo, esse problema está intima-
REALIDADE
832
REALIDADE
mente ligado ao da "existência" das coisas, e só uma resposta a ele (seja ela qual for) pode dar significado
à sua solução positiva. Isto porque, se as coisas existem, surge imediatamente a pergunta: qual é o sentido
de sua existência? Portanto, deve-se considerar que o problema da R. é composto por esses dois
problemas inseparáveis: o da existência e o do modo de ser específico das coisas. O idealismo póskantiano deteve-se mais no segundo que no primeiro desses problemas. Segundo Fichte, a R. consiste em
geral na atividade do Eu, que "põe o objeto limitando-se" e transporta para o objeto uma parte de sua
atividade. "A fonte da realidade (Realitái) é o Eu" — diz Fichte. "Apenas pelo Eu e com o Eu é dado o
conceito da realidade. Mas o Eu é porque se põe, e se põe porque é. Portanto, pôr-se e ser são uma e
mesma coisa. Mas o conceito de pôr-se e o de atividade em geral são, por sua vez, uma só e mesma coisa.
Portanto, toda R. é ativa e toda coisa ativa é R." (Wissenschaftslehre, § 4, E). Essa idéia de R. como
atividade passou a fazer parte da bagagem do Romantismo e influenciou o desenvolvimento posterior do
problema. "Atividade é R. propriamente dita" — dizia Novalis (Fragmente, 190). Schopenhauer afirmava
categoricamente "que a essência dos objetos intuíveis é a sua ação-, que é na ação que consiste a R. do
objeto, e que a pretensão de uma existência do objeto fora da representação do sujeito e mesmo de uma
essência da coisa real diferente da sua ação não tem sentido; ao contrário, é uma contradição" (Die Welt, I,
§ 5). Como se vê, na origem da redução de R. a atividade está um sentido idealista. Todavia, ela serviu
para abrir uma nova alternativa de solução para o problema: a R. não seria simples objeto de
conhecimento, mas um modo de ser que se revela melhor para outras formas de experiência. A noção de
atividade, tão apreciada pelo Romantismo, representa o primeiro modelo dessa solução. Por outro lado, o
sensacio-nismo de Condillac mostrara que a idéia de R. derivava do sentido do tato; mas o sentido era
entendido por Condillac de maneira ativa e dinâmica, como guiado e sustentado pela necessidade e por
desejos (Traité des sensations, 1754,1, 3, 1; I, 7, 3; II, 5, 5). Mais tarde, Destut de Tracy relacionara a
idéia de R. com a experiência da resistência que as coisas opõem ao movimento (Idéologie, 1801, cap. 8).
Na filosofia contemporânea, Dilthey defendeu idéia análoga (Contribuição à solução do problema da
origem da nossa crença na realidade do mundo exterior, em Gesammelte Schriften, 1890, V, 1, pp. 90
ss.). A resistência definiria o modo de ser da R., isto é, das coisas; correspondentemente, a experiência
dessa R. seria mais volitiva e prática que cognitiva. Scheler aceitou esta interpretação da R. (Die Wissensformen und die Gesellschaft, pp. 455 ss.). Tese substancialmente análoga foi apresentada por
Santayana no livro Ceticismo e fé animal (1923), no qual ele mostrava que a crença na realidade é devida
a experiências puramente animais (fome, luta, etc.) e só é justificável com base em tais experiências. O
mesmo Santayana expusera essa noção de R. em Essays in Criticai Realism (1920), obra publicada por
sete filósofos americanos (v. REALISMO).
Na filosofia mais recente o problema da R. praticamente deixou de ser problema da "existência" das
coisas para tornar-se cada vez mais problema do modo de ser específico das coisas. Suas formulações são
feitas segundo a alternativa aberta pelas doutrinas que reconhecem o caráter não simplesmente cognitivo
da experiência da realidade. Heidegger negou explicitamente o primado da consciência, do qual nascia o
problema da existência das coisas. "Crer na realidade do 'mundo exterior' (com ou sem direito),
demonstrar essa realidade (suficientemente ou não), pressupor essa realidade (explicitamente ou não),
tudo isso são tentativas que pressupõem antes de mais nada o sujeito sem mundo, vale dizer, não
consciente de seu mundo, que deve, portanto, começar por fundar a segurança de seu mundo" (Sein und
Zeit, § 43, a). O problema da existência do mundo exterior ou das coisas desaparece por si mesmo uma
vez que se elimine o pressuposto falaz do "sujeito sem mundo", ou seja, pressuposto de que o homem não
é já e sempre sobretudo um ser no mundo. Restabelecido este caráter fundamental do modo de ser do
homem, que por isso é um "ser-aí" (em que aí indica sua relação com o mundo), o problema da R. tornase o problema do modo como as coisas do mundo se apresentam ao homem ou estão em relação com ele.
Segundo Heidegger, esse modo de ser é a "simples presença", uma vez que a existência é o modo de ser
reservado ao ser-aí, ao homem. "Se a expressão R. significa ser do ente (res) simplesmente presente no
mundo (e de fato nada mais deve ser pensado dela) na análise desse modo de ser segue-se
REALIDADE 833
REALIDADE
que o ente intramundano só é concebível ontologicamente se for esclarecido o fenômeno da
intramundanidade. Mas este se baseia no fenômeno do mundo, que, por sua vez, enquanto momento
essencial da estrutura do ser-no-mundo, pertence à constituição fundamental do ser-aí. O ser-no-mundo,
novamente, é ontologicamente articulado na totalidade do ser do ser-aí, que se caracteriza como Cuidado
{Cura)" {Ibid., § 43, b). Precisamente porque o ser do ser-aí (a existência humana) é Cuidado, os entes de
que essa existência se ocupa, que são diferentes dela — as coisas (cujo modo de ser é a R.) —
caracterizam-se pela instrumenta-lidade. "O modo de ser desse ente é a instru-mentalidade, que, no
entanto, não deve ser vista como tendências de interpretação. (...) A instrumentalidade é determinação
ontológico-categorial do ente como é em si" {Ibid., § 15). De tal modo, Heidegger destacou o caráter
instrumental das coisas, em virtude do qual elas podem valer como meios para o homem. Mas Heidegger
julga que esse caráter não pertence às coisas na medida de sua relação com o homem, mas constitui seu
ser "em si", sua essência. À parte essa pretensão, a análise de Heidegger pode ser considerada uma
caracterização do modo de ser das coisas ou da "R.", entendida em seu significado próprio e específico.
Por outro lado, essa mesma análise mostrou o caráter arbitrário do "problema da R.", no modo como foi
entendido a partir de Descartes, como problema de uma R. "exterior" à consciência. Mostrou que tal
problema surge de um pressuposto filosófico infundado, representado pela tese do "sujeito sem mundo"
ou, em outras palavras, de uma existência do homem que não consiste na relação com o mundo.
É significativo observar que quase simultaneamente a essas análises de Heidegger o problema da R.
exterior era considerado um "pseudoproblema" de um ponto de vista totalmente diferente, do Círculo de
Viena. Carnap {Scheinsprobleme in derPhilosophie, dasFremd-psychische und der Idealismus-streit,
1928) e Schlick {Positivismus und Realismus, reed. em Gesammelte Aufsãtze, 1938) rejeitavam tanto a
tese da irrealidade do mundo exterior quanto da sua R. tachando-as de pseudo-afirmações, porquanto
nenhuma das duas se prestava a verificações experimentais. Mas o Círculo de Viena não apresentou
qualquer solução do segundo aspecto — o mais legítimo — do problema
da R.: o modo de ser das coisas. A esse respeito, limitou-se (como fazem seus seguidores até hoje) a
repropor a velha tese de Mach {Analyse der Empfindungen, 1900), segundo a qual as coisas são
compostas pelos mesmos elementos últimos que compõem o eu (as sensações), e estes elementos últimos
são neutros em si, ou seja, nem subjetivos, nem objetivos. Esta tese obviamente não dá conta do caráter
específico da R. das coisas, não explica por que um conjunto de tais elementos neutros assume, em cada
caso diferente, as características de uma "coisa" ou de um "eu".
Além do significado cujas interpretações estudamos até aqui, a palavra R. também costuma ser usada nos
outros significados abaixo, que devem ser considerados secundários porque são designados com mais
propriedade por outros termos do vocabulário filosófico.
2. Em oposição a aparência, ilusãoe outros semelhantes, R. significa às vezes o ser em qualquer dos seus
significados existenciais. Assim p. ex., na obra de Bradiey, Appearance and Reality (1893), a oposição
anunciada pelo título é entre o aparecer e o ser, uma vez que ele não é limitado à realidade no seu sentido
específico, vale dizer, ao modo de ser das coisas. Dewey empregou a palavra no mesmo sentido, mas com
uma conotação crítica- "Na sua fórmula mais breve, a R. torna-se existência, qual gostaríamos que fosse
depois que analisamos seus defeitos e decidimos quais devem ser eliminados; a 'R.' é aquilo que seria a
existência se nossas preferências racionalmente justificadas estivessem tão completamente estabelecidas
na natureza que esgotassem e definissem seu ser por inteiro, tornando, pois, desnecessárias a luta e a
busca. O que é eliminado (uma vez que a perturbação, a luta, o conflito e o erro ainda existem
empiricamente, algo é eliminado), sendo excluído por definição da R. plena, é atribuído a um grau ou a
uma ordem do ser que se afirma ser metafisica-mente inferior; essa ordem recebe varias designações:
aparência, ilusão, espírito mortal ou puramente empírico, em contraposição ao que é, real e
verdadeiramente" {Experience and Nature, cap. II, p. 54).
3. Em oposição a possibilidade, potencialidade e às vezes também a necessidade, essa palavra significa
atualidade, efetividade ou aquilo que se atualizou ou efetivou e possui existência de fato. O termo alemão
Wirklichkeit, diferente de Realitüt, tem esse sentido específico, em-
REALIDADE PRESUNTTVA
834
REALISMO
bora os filósofos nem "sempre se atenham estritamente a essa distinção. Nesse sentido, a palavra designa
uma das categorias da lógica de Hegel. "A R. é a unidade imediata, que se produziu, da essência e da
existência, ou do interno e do externo" {Ene, § 142): com isso, Hegel pretende dizer que a R. é a essência
que se atualizou como existência, ou o interno que se manifestou efetivamente no externo. Quem insistiu
na distinção entre Wirklichkeit e Realitàtíoi Lotze (Mikrokosmos, III, p. 535). N. Hartmann, por sua vez,
utilizou a distinção, descobrindo na efetividade (Wirklichkeit) o sentido primário do ser (Móglichkeit und
Wirklichkeit, 1938) (v. SER).
REALIDADE PRESUNTIVA (ai. Prasump-tive Wirklichkeif). Foi assim que Husserl chamou a R. das
coisas em relação à "R. absoluta", necessária, da consciência (Ideen, I, § 46).
REALISMO (lat. Realismus, in. Realism; fr. Réalisme, ai. Realismus, it. Realismo).Estapalavra começou
a ser usada em fins do séc. XV, designando a corrente mais antiga da Esco-lástica, em oposição à
chamada corrente "moderna" dos nominalistas ou terministas. O primeiro a usá-la foi provavelmente
Silvestro Mazolino de Prieria, em Compendium dialec-ticae, de 1496 (cf. PRANTL, Geschichte derLogik,
IV, p. 292). O R. afirmava a realidade dos universais (gêneros e espécies), entendendo contudo de
maneiras diferentes essa mesma realidade (v. UNIVERSAL).
No sentido mais geral e moderno, esse termo foi retomado por Kant na primeira edição de Crítica da
Razão Pura, para indicar, por um lado, a doutrina (oposta à que ele defendia) segundo a qual o espaço e o
tempo são independentes de nossa sensibilidade, que é o R. transcendental, e por outro lado uma doutrina
sua, que admite a realidade exterior das coisas e que é o R. empírico. Kant dizia: "O idealista
transcendental é um realista empírico que atribui à matéria, como fenômeno, uma realidade que não
precisa ser deduzida, mas é imediatamente percebida" (Crít. R. Pura, I
a
ed., Dialética transcendental,
Crítica do quarto paralogismo da psicologia transcendental). Com Kant, esse termo entrou em filosofia,
designando doutrinas de interesse atual, e não simplesmente histórico. Fichte afirmava que "a doutrina da
ciência é realista" porque "mostra que é absolutamente impossível explicar a consciência das naturezas
finitas se não se admitir a existência de uma força independente delas,
oposta a elas, da qual elas dependem em sua existência empírica" (Wissenschaftslehre, 1794, § V, II; trad.
it., 231). Schelling falava de um idealismo realista (Real-idealismus) ou de um R. idealista (Idealrealismus) (Werke, I, X, p. 107) no mesmo sentido que Fichte. A partir de então, o R. foi qualificado e
definido das maneiras mais diferentes, e quase sempre as doutrinas que o adotaram como insígnia
qualificaram também como realistas as doutrinas do passado que coincidiam com seu ponto de vista.
Assim, p. ex., Platão foi considerado realista porque admitia a realidade das idéias (seja qual for a
significação disto), mas também foi definido como idealista porque tratava de idéias. Semelhantes
análises (e as controvérsias que provocam) não passam de perda de tempo. Menos inútil talvez seja
esclarecer o significado das formas mais conhecidas que o R. assumiu na filosofia moderna. Nesse caso,
além das já citadas, podem ser lembradas as seguintes:
d) O R. empírico de Kant assumiu vários nomes, permanecendo substancialmente o mesmo:
independência da existência das coisas em relação ao ato de conhecer. W. Hamilton chamou esse ponto de
vista de R. natural ou pre-sentacionismo, considerando-o típico da escola escocesa, da qual derivava sua
filosofia (v. PRESENTACIONISMO). O famoso artigo de G. E. Moore, publicado em Mindde 1903, "Refutação do idealismo", inspira-se num ponto de vista análogo: defende a independência do objeto conhecido
em relação ao ato psíquico com que é conhecido. Essa independência era chamada de tese do R. ingênuo
(ai. Naiven Realismus) por G. Schuppe (Grundriss der Erkenntnistheorie und Logik, 1910, pp. 1-2). O.
Külpe dava a esse mesmo ponto de vista o nome de R. científico (Die Realisierung, II, 1920, p. 148),
enquanto J. Maritain, que defendeu a mesma forma de realismo porque, segundo ele, correspondia mais à
tradição to-mista, chamou-o de R. crítico (Distinguerpour unir, 1932, p. 149). Finalmente, o mesmo tipo
de R. é chamado de materialismo pelos defensores do materialismo dialético: é o que faz, p. ex., Lenin
(Materialismo e empiriocriticismo, 1909, trad. it., p. 75). Essa mesma forma de R., sem adjetivos ou com
adjetivos vários, é freqüente na filosofia contemporânea; pode ser facilmente encontrada no
existencialismo, no instrumentalismo, no empirismo lógico e em todas as correntes filosóficas que adotam
o pensamento científico como ponto de partida.
RECEPTIVIDADE
835
RECIPROCIDADE
b) R. transfigurado (Transfigurared Rea-lisrri) de H. Spencer: "O R. com que estamos comprometidos
sustenta simplesmente que a existência objetiva é separada e independente da existência subjetiva. Mas
não afirma que cada um dos modos da existência objetiva seja na realidade aquilo que parece ser, nem
que as conexões entre os modos sejam objetivamente aquilo que parecem ser. Por isso, esse R. distinguese claramente do R. cru; para marcar a distinção podemos chamá-lo propriamente de R. transfigurado"
(Principies ofPsychology,§472).
c) O novo R. defendido em volume coletivo por um grupo de pensadores americanos (E. B. HOLT, W. T.
MARWIN, W. P. MONTAGUE, R. B. PERRY, W. B. PITKIN, E. G. SPAULDING, The New Realism, 1912)
baseia-se no princípio segundo o qual a relação cognoscitiva não modifica os seres entre os quais se
estabelece; portanto, o fato de os seres conhecidos parecerem estar apenas em relação conosco não
implica que seu ser se esgote nessa relação. Segundo o novo R., também são seres objetivos os conceitos
abstratos utilizados pela ciência; o próprio erro é um fato objetivo devido a uma distorção fisiológica.
Ponto de vista análogo, também baseado nas correntes da fenomenologia e do logicismo, foi defendido
por Nicolai Hartmann numa série de obras que começaram com Grundzüge einer Metaphysik der
Erkenntnis (1921). Constituem o R. de Hartmann as duas teses seguintes: I
a
a relação cognitiva é extrínseca ao ser, que não é qualificado nem modificado por ela; 2- o ser é constituído não só por coisas, mas
também por objetos ideais ou abstratos, ou por valores.
d) O R. crítico foi defendido em um volume coletivo por um grupo de pensadores americanos (D. DRAKE,
A. O. LOVEJOY, J. B. PRATT, A. K. ROGERS, G. SANTAYANA, R. W. SELLARE, C. A. STRONG, Essays in
Criticai Realism, 1920), que defendia fundamentalmente o ponto de vista de Santayana, segundo o qual o
objeto imediato ao conhecimento é uma essência (v.), ao passo que a existência nunca é apreendida
imediatamente ou intuída, mas apenas afirmada, posta ou reconhecida por exigências emocionais e
práticas que Santayana chamava de fé animal (Scepticism and Animal Faith, 1923).
RECEPTIVIDADE (in. Receptivity, fr. Récep-tivité, ai. Receptivitát; it. Recettivitã). Capacidade de
sofrer uma ação ou de registrar os efeitos da ação sofrida. Kant chamou de R. a capacidade de receber
impressões, e a opôs ao caráter ativo
do conhecimento, que se baseia na "espontaneidade dos conceitos" (Crít. R. Pura, Lógica Transcedental,
Intr., I).
RECEPTOR (in. Receptor). Termo da psicologia contemporânea que designa qualquer órgão ou
estrutura com que o organismo recebe os estímulos. São R. tanto os órgãos dos sentidos (p. ex., olho,
ouvido, etc.) quanto as estruturas nervosas que recebem estímulos da pele, dos músculos, das
articulações, etc. Os primeiros são chamados de exterorreceptores, os outros, de propriorreceptores. Às
vezes fala-se também de enterorreceptores para indicar os R. situados nas vísceras.
RECIPROCAÇÃO (lat. Reciprocatio; in. Re-ciprocation-, it. Reciprocazionè). Na lógica de 1600, um
modo de refutação que consiste em usar contra o adversário o mesmo argumento por ele utilizado; com
isso, demonstra-se que o argumento é vicioso (cf. JUNGIUS, Lógica ham-burgensis, 1638, VI, 16, 20).
RECIPROCIDADE (in. Reciprocity, fr. Re-ciprocítê, ai. Wechseltvirkung; it. Reciprocitã d'azioné). É o
princípio da conexão universal das coisas no mundo, em virtude do qual elas constituem uma
comunidade, um todo organizado. Portanto, a ação recíproca nada tem a ver com o princípio de ação e
reação enunciado por Newton. Kant faz da ação recíproca um princípio puro do intelecto, e vê nele a
terceira analogia da experiência (v.), expressa com as seguintes palavras: "Todas as substâncias, quando
podem ser percebidas no espaço como simultâneas, estão entre si numa ação recíproca universal". Assim
como a sucessão temporal tem fundamento na conexão causai, também a simultaneidade temporal tem
fundamento na R. de ação entre as substâncias. Kant diz: "Sem comunidade, cada percepção (dos
fenômenos no espaço) se separaria das outras, e a cadeia das representações empíricas, isto é, a
experiência, deveria recomeçar do início a cada novo objeto, sem que a precedente pudesse ligar-se a ele
ou estar em relação temporal com ele." CCrít. R. Pura, Anal. dos princ, III, 3). O sentido da conexão
recíproca é esclarecido em seguida por Kant da seguinte maneira (loc. cii): "A palavra Gemeinscbaft [=
comunidade] tem duplo significado: pode significar tanto communio quanto comercium. Aqui a
empregamos no segundo sentido, como comunidade dinâmica, sem a qual nem a comunidade espacial
(communio spatiz) poderia ser conhecida empiricamente." Não admira que o Romantis-
RECIPROCO
836
REDUÇÃO
mo tenha valorizado ao máximo essa noção, de caráter tão nitidamente metafísico e espiritua-. lista.
Schelling afirma (System des transzenden-talen Idealismus, p. 228) que "a relação de causalidade não
pode ser construída sem a ação recíproca", enquanto Hegel (Ene, §§ 154 ss.) vê na passagem da
causalidade à ação recíproca a passagem da necessidade ao desven-damento da necessidade, ou seja, à
liberdade. O que tudo isso significa é expresso com toda a clareza por Lotze, em Microcosmo (III2
, p.
482): "A ação recíproca das substâncias finitas no mundo só poderá ser entendida se elas forem partes de
uma Substância infinita que as abranja todas em si mesma." Essa noção é freqüente nas concepções
espiritualistas do mundo, não passando de transcrição, em termos mais modernos, da simpatia universal
(v. SIMPATIA) que as concepções mágicas (v. MAGIA) admitiam entre as coisas do mundo. Portanto, não é
de surpreender que Schopenhauer afirmasse que "a ação recíproca não existe", porquanto "ela pressuporia
que o efeito é a causa da sua causa, e que aquilo que segue é, ao mesmo tempo, o que precede" (Über die
vierfache Wurzel des Satzes vom zureichenden Grunde, 1813, § 20).
RECÍPROCO (in. Reciprocai; Converse, fr. Reciproque, ai. Reziprok, it. Reciproco). Em lógica, chamase de recíproca a proposição obtida pela conversão da proposição dada, isto é, pela troca entre sujeito e
predicado. O termo latino tradicional para tal proposição é conversa, e foi empregado por Boécio (De
syllogismo categórico, P. L., 64, col. 804; cf. HAMILTON, Lectures on Logic, II, p. 259). Por
"inversa"entende-se comumente a negativa de uma proposição (v. CONVERSÃO).
RECONCILIAÇÃO. V. SÍNTESE
RECONHECIMENTO (in. Recognition; ack-nowledgment; fr. Reconnaissance, ai. Anerkn-nung; it.
Riconoscimentó). 1. Em geral, conhecer algo por aquilo que é. Neste sentido diz-se, p. ex., "Reconheci-o
como ladrão", ou "Reconheço a justiça dessa observação".
2. Um dos aspectos constitutivos da memória, porquanto os objetos lhe são dados como já conhecidos (v.
MEMÓRIA).
RECORDAÇÃO. V. MEMÓRIA.
RECORRÊNCIA (in. Recurrence, fr. Récur-rence, ai. Recurrenz; it. Ricorrenzd). 1. Aquilo que volta a
acontecer ou se repete a intervalos regulares ou irregulares. Neste sentido, chama-se de recorrente um
acontecimento que se repete mais ou menos do mesmo modo, a intervalos.
2. Designa-se também com este termo o raciocínio reflexivo ou auto-reflexivo que dá origem às
antinomias lógicas (v. ANTINOMIAS).
3. Em matemática a expressão "raciocínio por R." designa o princípio da indução matemática (v.
INDUÇÃO MATEMÁTICA).
RECUSA, GRANDE (in. Great refusal; fr. Grand refus, it. Gran rifiutó). É a recusa da realidade em
favor da imaginação e das possibilidades que ela desvenda em arte. Essa expressão foi empregada com
esse sentido por André Breton no primeiro manifesto dos surrealistas (1924) (Les manifestes du surréalisme, 1946). Foi adotada por H. Marcuse para indicar "o protesto contra a repressão supérflua, a luta pela
forma definitiva de liberdade: viver sem angústia" (Eros and Civilization, 1954, cap. VII). V. UTOPIA.
REDENÇÃO (in. Salvation; fr. Salut; ai. Heil; it. Salvezzd). Libertação de um mal mortal que ameace o
corpo ou a alma do homem. A R. pode ser entendida: l9
como libertação de um mal específico que pese
sobre o homem no mundo; este é o sentido com que o termo é entendido mesmo fora da religião; 2- como
libertação do mundo, entendido como um mal em sua totalidade; portanto, é o rompimento definitivo da
cadeia de nascimentos (budismo), ou libertação de sofrimentos, dores ou punições. Neste sentido, o termo
tem significado especificamente religioso (v. RELIGIÃO).
REDUÇÃO (in. Reduction-, fr. Reduction; ai. Reduktion-, it. Riduzioné). 1. Transformação de um
enunciado em outro eqüipolente mais simples ou mais preciso, ou capaz de revelar a verdade ou a
falsidade do enunciado originário. Fala-se também de "R. da ciência aos termos da experiência imediata"
(QUINE, From a Logical Point ofView, II, 5) ou de R. das extensões às intenções, das classes às
propriedades (CARNAP, Meaning and Necessity, §§ 23, 33).
2. Explicação que consiste em considerar que certas ordens de fenômenos estão sujeitas a leis mais bem
estabelecidas ou mais precisas que uma outra ordem de fenômenos; p. ex., a que consiste em considerar
que os fenômenos orgânicos estão submetidos às leis dos fenômenos físicos, enquanto estes últimos estão
sujeitos às leis dos fenômenos mecânicos. (Sobre este tipo de explicação, cf. E. NAGEL, "The Meaning of
the Reduction in the Natural Sciences", 1949, em Science and Civilization, ed. R. T. Staufer, 1949, pp. 99-
138.)
REDUPUCAÇÃO
837
REFLEXÃO
3- Por R. fenomenológica Husserl entendeu a epoché fenomenológica, que é a neutralização da atitude
natural, ou pôr o mundo entre parênteses (Ideen, 1, §§ 56 ss.). Às vezes, mais particularmente, ele
entendeu por R. o momento positivo da epoché, que é o da reflexão interna sobre o ato, em busca de
captar o ato em sua intencionalidade (cf. especialmente Krisis, 1954, p. 247).
4. Quanto a R. aos princípios, v. RETORNO, 2.
REDUPUCAÇÃO (gr èavaSín^comç; lat. Reduplicatio, fr. Réduplication; it. Reduplicazio-nè). Com este
termo, que significa predicação repetida, eram indicadas em lógica algumas palavras usadas para
relacionar o predicado com o sujeito: como, enquanto, na qualidade de, etc. P. ex.: "o homem, enquanto
animal, é mortal". As proposições em que ocorre a R. chamam-se reduplicativas (ARISTÓTELES, An.pr., I
38 49 a 26; DUNS SCOT, In An.pr., I, 35 em Obras, I, p. 327 a; JUNGIUS, Lógica hamburgensis, II, 11, 22).
REDUTIBILIDADE, AXIOMA DE. V. ANTINOMIAS.
REFERÊNCIA (in. Reference, fr. Référence, ai. Bericht; it. Riferimentó). 1. Em geral, o ato de pôr um
objeto qualquer em qualquer relação com outro objeto. Neste sentido, esse termo tem um significado
bastante amplo: um mesmo objeto (p. ex., um comportamento) pode referir-se ao seu autor, aos seus
efeitos, ao seus fins, às suas intenções, às suas condições, etc. O sentido específico da R., ou seja, a
relação que ela estabelece, é esclarecido ou sugerido em cada caso pelo contexto.
2. Mais particularmente, chama-se de R. o ato que estabelece uma relação entre o símbolo e o seu objeto,
ou seja, o ato de interpretação (v.). Foram sobretudo Ogden e Richards que difundiram o uso do termo
nesse sentido. Identificaram a R. com o pensamento, e ambos com aquilo que chamaram de significado
cognitivo (The Meaning ofMeaning, 10a
ed., 1952, pp. 9 ss.). No âmbito deste significado, os mesmos
autores chamaram de referendo (referend) o veículo ou o instrumento de um ato de R., e de referente
(refereni) o objeto a que o ato de R. visa.
REFERENTE. V. REFERÊNCIA.
REFLEXA, AÇÃO. V. AÇÃO REFLEXA.
REFLEXÃO (in. Reflection; fr. Réflexion; ai. Réflexion; it. Riflessioné). Em geral, o ato ou o processo por
meio do qual o homem considera suas próprias ações. Este conceito foi determinado de três maneiras, a
saber: I
a
como conhecimento que o intelecto tem de si mesmo; 2-como consciência; 3a
como abstração.
I
a Mesmo não empregando o termo R., Aristóteles admite o fato óbvio de que o intelecto "pode pensar-se"
(De an., III, 429, b 9). Os escolásticos expressaram esta possibilidade com o termo "R.". S. Tomás de
Aquino diz: "Ao refletir sobre si mesmo, o intelecto entende, conforme essa R., tanto o seu entender
quanto a espécie por meio da qual entende" (5. Th., I, q. 85, a. 2). Desse modo, atribui à R. uma função
específica porque o intelecto, cujo objeto é o universal, só pode entender o particular refletindo sobre si
mesmo e considerando aquilo de que abstrai o universal (Ibid., I, q. 86, a. 1). Os escolásticos, porém, não
consideravam a R. como fonte autônoma de conhecimento. Isso só acontece com Locke.
2
a
Com Locke inicia-se o conceito da R. como consciência. Segundo Locke, a segunda das duas fontes
principais (a primeira é a sensação) de onde o intelecto aufere suas idéias é a R., entendida como
"percepção das ações exercidas por nossa alma sobre as idéias que recebeu dos sentidos: tornando-se o
objeto das R. da alma, essas ações produzem na inteligência uma outra espécie de idéias, que os objetos
exteriores não poderiam ter fornecido; tais são as idéias daquilo que se chama perceber, pensar, duvidar,
crer, raciocinar, conhecer, querer, etc." (Ensaio, II, 1, 4). Além disso, Locke também chama a R. de
sentido interno, nada mais sendo, então, que consciência, nome com que foi freqüentemente chamada
pelos filósofos ingleses posteriores. A definição de Vauve-nargues, "R. é o poder de dobrar-se sobre as
idéias, de examiná-las, de modificá-las ou de combiná-las de maneiras diferentes: ela é o grande princípio
do raciocínio, do juízo, etc." (Intr. ã Ia connaissance de Vesprit humain, 1746, I, 2), bem como a de
Leibniz, "a R. nada mais é que a atenção àquilo que está em nós, enquanto os sentidos não nos dão
inteiramente o que já temos em nós" (Nouv. ess., Avant-propos), têm o mesmo significado: a R. é
consciência. Era exatamente com este termo que Kant a definia: "A R. (reflexio) não visa aos objetos em
si para chegar aos conceitos deles; é o estado de espírito em que começamos a dispor-nos a descobrir as
condições subjetivas que nos permitem chegar aos conceitos. Ela é a consciência da relação entre as
representações dadas e as várias fontes de conhecimento" (Crít. R. Pura, Anal. dos Princ, Anfibolia dos
REFLEXÃO
838
REFLEXIVO/REFLEXIONANTE
conceitos da reflexão). Além disso, Kant distin-guia a R. lógica, que é o simples confronto das
representações entre si, da R. transcendental, dirigida para os objetos, que contém "a razão da
possibilidade da comparação objetiva das representações entre si. O objeto da R. transcendental, portanto,
são os conceitos de identi-dade-diversidade, de concordância-posição, de interior-exterior, de matériaforma, que representam o fundamento de qualquer possível confronto entre as representações" (Ibid.). O
caráter ativo e criativo da R., que traz à luz a verdadeira natureza daquilo que se investiga, e portanto
produz tal natureza de algum modo, foi um dos pontos fundamentais da filosofia de Hegel: "Uma vez que,
na R., se obtém a verdadeira natureza, e esse pensamento é minha atividade, essa verdadeira natureza é do
mesmo modo produto do meu espírito, isto é, do meu espírito como Sujeito pensante, de mim na minha
simples universalidade, como Eu que é por si mesmo, da minha liberdade" (Ene, § 23). Maine de Biran
também atribuiu à R. uma função metafísica: "Chamo de R. a faculdade que o espírito tem de perceber,
num grupo de sensações ou numa combinação de fenômenos, as relações comuns de todos os elementos
com uma unidade fundamental: p. ex.: de vários modos ou qualidades com a unidade de resistência, de
vários efeitos diferentes com uma mesma causa, de modificações variáveis com o mesmo eu ou sujeito,
etc." (Fondements de Ia psychologie, ed. Naville, II, p. 225). Não é muito diferente o significado que
Husserl lhe atribui quando afirma: "Toda cogitatiopode tornar-se objeto da chamada percepção interna e
depois objeto de uma avaliação reflexa, de aprovação ou desaprovação, etc." (Ideen, I, § 68). Neste
sentido, a R. é aquilo que Husserl chama de percepção imanente, que constitui unidade imediata com o
percebido, sendo a própria consciência (Jbid., § 68). Husserl distinguiu também a R. natural, que se
realiza na vida comum, da R. fenomenológica ou transcendental, feita através da epoché (v.) universal
quanto à existência ou à não-existência do mundo (Cart. Med., § 15).
3
3
O terceiro conceito de R. considera-a como abstração, mais precisamente como abstração falseadora;
esse conceito pertence ao idealismo romântico. Começou com Fichte, que viu na R. o ato com que o eu se
considera limitado pelo objeto: "O Eu tem em si a lei de refletir sobre si mesmo como algo que preenche o infinito. Mas não pode refletir sobre si mesmo e, em geral, sobre nada, se aquilo sobre que reflete
não é limitado. Portanto, o cumprimento desta lei é condicionado e depende do objeto"
(Wissenschaftslehre, 1794, § 8). Como esclarecia Schelling, neste sentido a R. é uma abstração, porque
leva a separar o objeto do Eu do próprio Eu, enquanto, na realidade, o objeto não passa de produto do Eu.
"Essa separação entre ato e produto, no uso ordinário da linguagem, chama-se abstração. Portanto, como
primeira condição da R. tem-se a abstração" (System des transzendentalen Idealismus, III, época III, I;
trad. it., p. 179). Quanto a Hegel, ao mesmo tempo em que exaltava (como se viu) a R. como atividade
que não só traz à tona, mas também produz a natureza racional das coisas que investiga, considerava
falseador o intelecto reflexivo. "Por intelecto reflexionante ou reflexivo deve-se entender, em geral, o
intelecto abstrator, portanto separativo, que persiste em suas separações. Fazendo face à razão, esse
intelecto comporta-se como o intelecto humano comum, ou senso comum, e impõe sua visão de que a
verdade repousa na realidade sensível; de que os pensamentos são apenas pensamentos (no sentido de que
a percepção sensível lhes dá substância e realidade) e de que a razão, que permanece em si e por si, nada
produz além de sonhos" (WissenschaftderLogik, Intr.; trad. it., I, p. 27). Em outros termos, a R.
caracteriza-se pela separação entre conceito e realidade, o que é uma falsa abstração; ao mesmo tempo, a
razão caracteriza-se pela identidade entre conceito e realidade. Assim, para Hegel, a filosofia da R. é a do
senso comum, cujo ápice está na filosofia de Kant, que afirma a incognoscibi-lidade da coisa em si.
Na filosofia contemporânea, esse termo é usado principalmente no 2
a
significado, sendo, portanto,
sinônimo de consciência (nos sentidos 1 e 2 do verbete respectivo), introspecção, sentido interior,
observação interior.
REFLEXIBILIDADE (in. Reflectivity, fr. Re-flexivité, ai. Reflectivitat; it. Riflessivita). Caráter da
relação não aliorrelativa, ou seja, tal que um termo possa ter consigo mesmo. P. ex., a relação não
maiorqueé reflexiva (v. RELAÇÀO).
REFLEXIVA, PSICOLOGIA. V. PSICOLOGIA, B).
REFLEXIVO/REFLEXIONANTE E DETERMINANTE (in. Reflecting and determinant; fr.
Réflechissant et determinant; ai. Reflectierend
REFORMA
839
REFUTAÇÃO
und Bestimmend; it. Riflettente e determinante). Juízo determinante e juízo R. são, segundo Kant, os dois
modos de ação da faculdade do juízo (v. JUDICATIVA, FACULDADE). Em geral, ainda segundo Kant, o
juízo é "a faculdade de pensar o particular como conteúdo do geral". Dado o geral (regra, princípio, lei), o
juízo que realiza a subsunção do particular é chamado de determinante. Se, ao contrário, é dado o
particular, o juízo que encontra nele o geral é chamado de R. {Crít. do Juízo, Intr., § IV). "Juízo
determinante" significa juízo que determina ou constitui o objeto: é o que, segundo Kant, faz o juízo
intelectual (considerado na Crít. R. Pura), que forma o objeto empírico unificando o material da
experiência segundo as categorias. Juízo R. significa juízo que já encontra o objeto constituído, devendo,
pois, limitar-se a refletir sobre ele para encontrar o modo de subordiná-lo a uma unidade ou lei
simplesmente subjetiva; como fazem, por um lado, o juízo de gosto (que julga os objetos segundo o
critério de belo) e, por outro, o juízo teleológico, que julga os objetos segundo o critério do fim.
REFORMA (in. Reformation; fr. Reforma-tion; ai. Reformation; it. Riformd). Renovação religiosa
ocorrida na Europa durante o séc. XVI, como retorno às origens do cristianismo. Preparada pelo
humanista Erasmo de Roterdã (1466-1536), a R. foi iniciada pelo monge agos-tiniano Martinho Lutero
(1483-1546), que, em 1517, afixou nas portas da catedral de Wittenberg noventa e cinco teses contra a
venda das indulgências. Em sua orientação global, a R. protestante apresenta-se como uma das vias de
realização do retorno aos princípios, lema do Renascimento (v.). No domínio religioso, o retorno aos
princípios levava a negar o valor da tradição, portanto da Igreja, que se julgava sua depositária e
intérprete. No texto Contra Henrique VIIIda Inglaterra (1522), Lutero contrapunha à tradição eclesiástica
e a todos os rituais e interpretações por ela acumulados durante séculos o retorno direto à palavra de Jesus
Cristo, concretizada no Evangelho. Segundo Lutero, o ensinamento fundamental do Evangelho é a
justificação por meio da fé, que implica dois corolários fundamentais. 1Q
Um deles é a negação do valor
das obras como técnicas religiosas (ritos, sacrifícios, cerimônias), com a redução dos sacramentos aos
mencionados na Bíblia (batismo, penitência e eucaristia), mas sem qualquer supervisão sacerdotal, sendo
eles considerados expressão da relação direta do homem com Deus. Ao culto sacerdotal, Lutero opôs o exercício dos deveres civis, como único
"serviço divino" com valor religioso. 2e
O outro é a negação da liberdade humana e o reconhecimento da
predestinação por parte de Deus. A fé é o sinal seguro dessa predestinação, portanto indício de salvação
{De libertate christiana, 1520). Foi este aspecto que deu origem à polêmica entre Erasmo e Lutero: à
Diatribe de libero arbítrio (1524) de Erasmo, Lutero respondeu com De servo arbítrio (1525), em que
insistia no caráter imperscrutável da escolha divina (cf. PREDESTINAÇÃO).
Das outras duas figuras principais da R. protestante, Ulrich Zwinglio (1484-153D e João Calvino (1509-
1564), o primeiro foi bem além de Lutero na negação das formas religiosas tradicionais, atribuindo ao
próprio sacramento da eucaristia valor meramente simbólico e negando a obediência passiva à autoridade
política; o segundo considerou o retorno aos princípios especialmente como retorno à religiosidade do
Antigo Testamento. Em Instituição da religião cristã (publicada em latim em 1536 e em francês em 1541
[essa tradução é o primeiro texto literário da prosa francesa]), Calvino propôs-se efetivamente a mostrar a
unidade do Antigo e do Novo Testamentos, extraindo daquele o princípio de que o bom sucesso nas
atividades da vida é prova evidente do favorecimento de Deus, sinal de sua predileção. Foi esse princípio
que transformou o calvinismo em ética inspiradora da burguesia capitalista emergente, com seu espírito
ativo e agressivo, marcado pelo desprezo por sentimentos e orientado para o bom êxito dos negócios.
REFUTAÇÃO (gr. eteyicoç; lat. Confutato-, in. Confutation; fr. Refutation; ai. Wider-legung; it.
Confutazioné). Método adotado por Sócrates, que consiste em evidenciar a contradição à qual leva a
asserçâo do interlocutor, permitindo, pois, isentar o próprio interlocutor da presunção de saber. Platão
sempre considerou esse procedimento como a propedêutica indispensável da investigação científica {Ap.,
21 a ss.; Men., 84 a-c; Sof, 230 b ss.). Aristóteles definiu a R. como a "demonstração do contraditório"
{El. sof, I, 165 a 2), isto é, como o silogismo que a tem como conclusão (que é assim "refutada"). Para
Aristóteles, as R. {elencos) sofísticas não são verdadeiras R.; suas duas classes (as que utilizam o modo
de exprimir-se
REGIÃO
840
REGULA FIDEI
e as que prescindem dele) são não demonstrações negativas, mas artifícios ou truques verbais cuja
finalidade é reduzir o adversário ao silêncio e de levar a melhor.
REGIÃO (ai. Regiori). 1. Termo empregado por Husserl para indicar "a unidade superior e completa de
gênero, à qual pertence um concreto", ou seja, "a totalidade ideal de todos os indivíduos possíveis de uma
essência concreta" (Ideen, I, § 16). P. ex., "todo objeto empírico concreto insere-se, com sua essência
material, num gênero material superior, numa R. de objetos empíricos" (lbid., § 9)- A natureza é uma
região desse tipo (lbid., § 10). Correspondentemente, Husserl fala de uma "ontologia regional", referente
às estruturas de determinada região.
2. O gestaltismo empregou esse conceito com sentido diferente, ligado à noção topo-lógica
correspondente (v. TOPOLOGIA). K. Lewin entende por R.: 1Q
tudo aquilo em que um objeto do espaço de
vida (p. ex., uma pessoa) tem lugar ou move-se; 2S
tudo aquilo em que se possam distinguir várias
posições ou partes ao mesmo tempo, ou que seja parte de um todo mais amplo. Com base nessa definição,
a própria pessoa é uma R. no espaço de vida, e também o espaço de vida, como um todo, é uma R.
(Principies of Topological Psychology, 1936, p. 93).
REGIME (lat. Regimen). Em geral, orientação ou direção; em particular, orientação ou direção do
Estado, o governo.
REGRA (lat. Regula-, in. Rule-, fr. Règle, ai. Regei; it. Regola). Chama-se de R. qualquer proposição de
natureza prescritiva. Esse termo é generalíssimo e compreende as noções mais limitadas de norma,
máxima e lei. Neste sentido, Wolff definiu a regra como "uma proposição que enuncia uma determinação
em conformidade com a razão" (Ont., § 475). Kant, analogamente, afirmava.- "Chama-se de regra a
representação de uma condição geral à qual certa multiplicidade pode ser submetida; quando deve ser
submetida, chama-se lei") (Crít. R. Pura, 1- ed., Dedução dos conceitos puros do intelecto, 4). Esse
significado generalíssimo continua caracterizando a R. (v. LEI; MÁXIMA; NORMA).
REGRESSÃO (in. Regression; fr. Regression; ai. Regression; it. Regressioné). Em geral, movimento
inverso ou retorno. Freqüentemente com conotação pejorativa de regresso como movimento oposto ao
progresso. Às vezes, foi chamado de regressivo o método analítico, e de progressivo o método sintético (cf. HAMILTON, Lectures on
Logic, II, p. 7). (V. ANÁLISE.)
REGRESSO (it. Ricorsó). Com esse termo, Viço designou o retorno da história sobre seus próprios
passos, que se verifica quando os remédios que a Providência dispõe contra a corrupção dos estados se
esgotam ou não agem eficazmente. O R. consiste em voltar ao estado de selvageria, em retornar aos
rigores da vida primitiva, que dispersa e extermina os homens, até que o pequeno número de homens
remanescentes e a abundância das coisas necessárias à vida possibilitem o renascimento da civilização,
novamente com base na religião e na justiça (Ciência nova, 1744, Conclusão).
REGULADOR (in. Regulative, fr. Régulatif; ai. Regulativ, it. Regolativo). Kant chamou de R. o uso das
idéias da razão pura como regras simples do trabalho intelectual, em oposição ao seu uso constitutivo, em
virtude do qual elas são consideradas constitutivas do objeto da atividade intelectual. "Afirmo que as
idéias transcendentais nunca são de uso constitutivo, tal que por meio delas possam ser dados os
conceitos de certos objetos, e que se forem assim entendidas serão simplesmente conceitos sofísticos
(dialéticos). Ao contrário, têm um uso R. excelente e indispensável, que consiste em dirigir o intelecto
para certo objetivo, em vista do qual as linhas diretivas de todas as suas regras convergem como para um
ponto; este, embora nada mais seja que uma idéia (Jocus imaginarius), ou um ponto do qual, na realidade,
não partem os conceitos do intelecto porque ele está fora dos limites da experiência possível, ainda assim
serve para conferir a tais conceitos a maior unidade com a maior extensão possível" (Crít. R. Pura,
Apêndice à dialética, Do uso regulador, etc). (V. IDÉIAS.)
REGULA FIDEI. 1. Com esta expressão designa-se em teologia a regra que determina o objeto da fé, o
conteúdo autêntico da revelação. Na filosofia patrística e escolástica, foi adotado como regra desse tipo o
"Símbolo dos Apóstolos" (Symbolum Apostolorum), que compreendia, além do conteúdo da Bíblia,
também o conjunto da tradição eclesiástica (decisões conciliares e papais, opiniões dos escritores
aprovados pela Igreja, etc.) (cf. M. GRABMANN, Die Geschichte der scholastischen Methode, I, pp. 76
ss.). Essa regra continuou válida para o cristianismo católico, mas o cristianismo protestante limitou-a ao
conteúdo da Bíblia. A dife-
REGULARIDADE
841
RELAÇÃO
rença entre catolicismo e protestantismo gira precisamente em torno da diferença da regula fidei (v.
REFORMA).
2. Com a mesma expressão designa-se às vezes o princípio segundo o qual a fé é a regra da verdade. É
assim em S. Tomás de Aquino: "Uma vez que a fé se baseia na verdade infalível, e como é impossível
demonstrar o contrário do verdadeiro, é evidente que os argumentos aduzidos contra a fé não são
demonstrações, mas argumentos refutáveis" (S. Th., I, q. 1, a. 8).
REGULARIDADE (in. Regularity, fr. Régu-lanté, ai. Regelmássigkeit; it. Regolaritã). Em geral,
conformidade com a regra. Kant viu na R. a condição ao mesmo tempo do pensamento e da realidade: "A
R. que conduz ao conceito de um objeto é a condição indispensável (conditio sine qua nori) para perceber
o objeto numa única representação e determinar a multiplicidade em sua forma" (Crít. do Juízo, § 22,
nota). Kant considera a própria natureza em geral como "R. dos fenômenos no espaço e no tempo" (Crít.
R. Pura, § 26) (v. NATUREZA).
REIFIGAÇÃO (fr. Réification; ai. Verdingli-cbung; it. Reificazioné).Termo empregado por alguns
escritores marxistas para designar o fenômeno, ressaltado porMarx, de que, na economia capitalista, o
trabalho humano torna-se simples atributo de uma coisa: "A magia consiste simplesmente em que, na
forma de mercadoria, devolvem-se aos homens, como espelho, as características sociais de seu próprio
trabalho, transformadas em características objetivas dos produtos desse trabalho, na forma de
propriedades sociais naturais das coisas produzidas; portanto a mercadoria espelha também a relação
social entre produtores e trabalho global, como relação social de coisas existentes fora dos próprios
produtos. Por meio desse quidpro quo os produtos do trabalho tornam-se mercadorias, coisas
sensivelmente supra-sensíveis, isto é, sociais" (Das Kapital, I, I, § 4). O termo R. para indicar esse
processo foi usado e difundido por G. Lukács (cf. Geschichte undKlassenbewusst-sein, 1922; trad. fr.,
1960, pp. 110 ss.).
REINO (lat. Regnum; in. Realm; fr. Royau-me, ai. Reich; it. Regnó). Termo introduzido na filosofia por
Bacon para indicar o domínio do homem sobre a natureza (cf. o título da primeira parte do Novum
Organum. "Aforismos sobre a interpretação da natureza e sobre o R. do homem"). Leibniz usou esse
termo com sentido diferente, como domínio ou campo de validade
de um princípio, e falou de um "R. físico da natureza" e de um "R. moral da graça" (Monad., § 87). No
mesmo sentido, Kant falou de um R. dos fins (v. FINS), de um R. da liberdade (cf. Religíon, 11, seç. II), de
um R. da graça e de um R. da natureza (Crít. R. Pura, Doutrina transe. do método, cap. 11, seç. II). Mais
recentemente, Santayana empregou esse termo com significação semelhante (Realms ofBeing, 4 vols.:
The Realm of Essence, The Realm of Matter, The Realm ofTruth, The Realm of Spirit, 1927-40).
REINO DOS FINS. V. FINS.
RELAÇÃO (gr. TO Ttpóç; lat. Ad aliquid, Re-latio-, in. Relation; fr. Relation; ai. Relation-, it.
Relazioné). Modo de ser ou de comportar-se dos objetos entre si. Esta definição não passa de
esclarecimento verbal do termo, que não pode ser definido em geral de outro modo, ou seja, fora das
interpretações específicas que os filósofos lhe deram. Esta é, aliás, a definição retificada que Aristóteles
deu da R.: como aquilo "cujo ser consiste em comportar-se de certo modo para com alguma coisa" (Cat.,
7, 8 a 33), o que coincide substancialmente com a definição de Peirce: "R. é um fato em torno de certo
número de coisas" (Coll. Pap., 3-416).
Os dois problemas fundamentais oriundos do conceito de R., de cuja solução dependem as determinações
do próprio conceito, são os seguintes: ls
Devem ser consideradas incluídas, no conceito de relação, as
determinações substanciais (essenciais ou qualitativas), ou tais determinações devem ser excluídas do
conceito? 2- As R. constituem entidades reais ou são apenas realidades mentais? Esses problemas,
obviamente, são interdependentes, e com base nas respostas interligadas que lhes foram dadas ao longo da
história é possível distinguir três doutrinas fundamentais: A) a que admite a objetividade e a realidade das
R.; S) a que nega a realidade e a objetividade das R.; Ô a que admite a objetividade das R., mas não sua
realidade.
A) Platão certamente admitiu a objetividade das R., mas é duvidoso que admitisse sua realidade: "Creio
que admites que, de alguns dos entes, se deve dizer que são unicamente por si, enquanto, de outros, que
estão sempre em relação com outros" (Sof., 255 c-d). No entanto, os entes em R., assim como o diferente
e o idêntico, não são o ser (Ibid., 255 c-d): isso também poderia significar que eles não têm existência ou
realidade como tais. A doutrina de Aristóteles é igualmente confusa neste pon-
RELAÇÃO
842
RELAÇÃO
to. Ele distinguiu três espécies de R.: I
a
as quantitativas, como as expressas por dobro, metade, etc; 2a
as
potenciais, que consistem numa potência ativa ou passiva, como ser causa ou causado, cortar ou ser
cortado, etc; 3a as R. que têm termo num objeto real, como a medida com respeito ao mensurável, o
conhecimento com respeito ao cognoscível, a sensação com respeito ao sensível {Met., V, 15, 1020 b 25).
A I
a
espécie já parece implicar a existência de R. reais (as da 2a
e da 3a
espécies); na realidade, o próprio
Aristóteles diz que "algumas R. acham-se necessariamente dentro ou em torno das coisas às quais se
referem", e que "tal é o caso da simetria, da propriedade e da disposição" {Top., IV, 4, 125 a 33). No
entanto, boa parte do capítulo das Categorias dedicado às R. discute o problema de saber se entre as R. há
substâncias; a conclusão, embora não categórica, é negativa: certamente não há substâncias primeiras
entre as R., e também é difícil dizer que as substâncias segundas sejam R. {Cat., 7, 8 b 15). Além disso,
um dos argumentos aduzidos por Aristóteles contra a doutrina das idéias é o fato de que ela levaria a
admitir a realidade das R.: "A R. não é sobretudo natureza ou substância; vem depois da qualidade e da
quantidade e é, antes, uma determinação da quantidade, como se disse, mas não matéria" {Met., XIV, 1,
1088 a 21). Neste caso, Aristóteles considera, evidentemente, apenas as R. da I
a
espécie, mas a sua
afirmação não é condicionada por qualquer limitação. Não admira, portanto, que depois tenham recorrido
a Aristóteles tanto os que afirmavam quanto os que negavam a realidade das R. Plotino reproduz a
doutrina de Aristóteles com as mesmas confusões {Enn., VI, 1, 6). A escolástica cristã estilizou-a na
distinção entre R. de razão, R. potencial e R. real, o que corresponde exatamente às espécies distintas por
Aristóteles. Mas, por motivos teológicos, a escolástica cristã tinha interesse em admitir a realidade das R.,
utilizando esse conceito para esclarecer o dogma da trindade; essa era a tese defendida por S. Tomás de
Aquino contra "os que afirmaram não ser a R. coisa de natureza, mas somente de razão", o que ele
declarou falso porque "as coisas têm uma ordem ou uma disposição natural umas com respeito às outras"
(5. Th., I, q. 13, a. 7). Com base nisso, S. Tomás de Aquino reexpôs as distinções de Aristóteles,
defendendo o caráter real das R. em que consistem a ciência e a sensibilidade, porquanto tais R. "são
ordenadas para conhecer e perceber as coisas" (Ibid.). As R. de razão são somente aquelas em que ambos os termos são entes
de razão; são as R. existentes "quando a ordem ou a disposição só pode existir segundo a apreensão da
razão, como no caso de se afirmar que uma coisa é idêntica à outra" {Ibid.X
Mas afirmar a realidade das R. significa privilegiar certo tipo de R., moldando todas elas de acordo com a
segunda e a terceira espécie de Aristóteles; mais precisamente, significa considerar qualquer tipo de R.
como uma potencialidade ou disposição, ou como uma condição ou um estado dos termos relativos. No
fim do séc. XIII, Duns Scot insistiu nessa natureza da R., propondo a doutrina da R. como res-pectus,
termo que pretende traduzir a palavra grega a%éaiç (usada, por exemplo, por SIM-PLÍCIO, Ad Cat., 61 B) e
significa disposição. O principal argumento aduzido por Scot em favor de sua teoria era que, a não se
admitir tal respectus, não é possível compreender a composição dos entes, visto que, se a união de a e b
não passa de a e b absolutos, o composto de ae b em nada difere de a e b separados, logo não é um
composto {Op. Ox., II, d. 1, q. 4, n. 5). Essa doutrina foi adotada por todos os escritores escotistas, mas
combatida por Ockham e pelos nominalistas e terministas do séc. XIV (ver mais adiante). No séc. XVII,
Jungius ainda recorria a tal doutrina, considerando a R. como habitudo ou respectus {Lógica
hamburgensis, I, 8, 4). Em época recente, o problema das R. foi tratado de modo semelhante ao de Duns
Scot por F. H. Bradley, que mostrou que as R. só podem ser entendidas como atributos do relativo,
consistindo portanto numa qualidade ou modificação dos termos relativos. Seja como for, a relação é
incompreensível porque só faz predicar o idêntico com o diferente e o diferente com o idêntico
{Appearance and Reality, 1902, 2a
ed., pp. 21 ss.). Essa doutrina, conhecida como "doutrina das R.
internas", foi combatida especialmente pelos lógicos matemáticos.
B) A segunda doutrina fundamental das R. nega sua objetividade e realidade, considerando-as acidentais
ou subjetivas. Foi proposta pela primeira vez por Avicena, que reproduzia um ponto de vista defendido
pela seita mao-metana motakallimum, valendo-se de teses aristotélicas análogas. Avicena dizia: "Ao
afirmar-se que uma R. existe, imediatamente é preciso dizer que ela é um acidente, porque não há dúvida
de que não pode ser entendida
RELAÇÃO 843
RELAÇÃO
por si, mas sempre de algo com respeito a algo" (Met., III, 10). Afirmar o caráter acidental das R.
eqüivalia, para Avicena, a negar sua realidade, uma vez que, como acidentes, as R. não são substâncias.
Quando essa doutrina foi retomada pelos filósofos nominalistas e terministas, no séc. XIV, assumiu a
forma de redução da R. a pura "entidade de razão", destituída de realidade ou fundamento fora da alma
humana. Tal é a doutrina sustentada por Henrique de Gand (Quodl, IX, q. 3; V. q. 6), por Herveus Natalis
(Quodl., I, q. 9) e por Pedro Auréolo. Este último afirmava: "A R. não tem existência nas coisas,
prescindindo de apreensão intelectivo-sensível, mas existe subjetivamente apenas na alma, porquanto nas
coisas só há fundamentos e termos: o hábito e a conexão das coisas deriva da alma cognoscitiva" (In
Sent., I, d. 30, q. 1). Este foi também o ponto de vista defendido por Ockham, que instituiu uma crítica
minuciosa da doutrina do respectus. Segundo ele, esta doutrina multiplicaria as entidades ao infinito:
"Com o movimento do meu dedo, eu encheria todo o universo, o céu e a terra de novos acidentes, pois
que, mudando a posição do dedo com respeito às outras partes do céu haveria outros tantos novos
respectus nessas partes, que são infinitas, portanto haveria infinitos novos acidentes" (Quodl, VII, q. 8; In
Sent., II, q. 2, Y). Todo corpo conteria, por motivos análogos, infinitas realidades, uma vez que todo corpo
pode ser considerado duplo com respeito à sua metade, e esta metade pode ser considerada o dobro de sua
metade, e assim por diante (Quodl, VI, q. 10; Summa log.,
I, 50). No entanto, Ockham não afirma o caráter puramente mental das R., como fizera Avicena (v.
abaixo). Essa doutrina reapareceu no âmbito do cartesianismo. Foi defendida por Locke, que considerou
as R. como idéias complexas, que consistiriam em "considerar e confrontar uma idéia com a outra"
(Ensaio, II, 12, 7), e reconheceu explicitamente o caráter subjetivo delas, embora não excluísse a alusão
às coisas. "Uma vez que os modos mistos e as R. não têm outra realidade além da que possuem no
espírito humano, para tornar real essa espécie de idéias só é preciso que elas sejam forjadas de tal maneira
que haja possibilidade de existência em conformidade com elas" (Ibid.,
II, 30, 4). Por sua vez, Leibniz afirmava que as R. têm realidade mental ou fenomênica (Nouv. ess., II,
12.7) e que, por conseguinte, "têm uma realidade dependente do espírito, tais como as
verdades, mas não do espírito dos homens, porque há uma inteligência suprema que as determina em
todos os tempos" (Ibid., II, 30, 4). Em conformidade com este mesmo conceito, Wolff definia a R. como
"aquilo que não convém à coisa de maneira absoluta, mas que só é entendida quando se refere a outra
coisa" (Log., § 856); e completava: a R. "não acrescenta nenhuma realidade ao ente" (Ibid., § 857). A
subjetividade das R., além disso, é o princípio fundamental do kantismo: "Se suprimíssemos nosso sujeito
ou mesmo apenas a natureza subjetiva dos sentidos em geral, toda a natureza. todas as R. entre os objetos
no espaço e no tempo, aliás, o espaço e o tempo mesmo desapareceriam" (Crít. R. Pura, § 8). Nesse
mesmo princípio (aduzido na maioria das vezes de maneira implícita) baseia-se boa parte da filosofia
contemporânea.
O A terceira concepção fundamental considera que as R. não são reais, mas são objetivas. Ockham, que
foi o mais resoluto crítico da realidade das R., afirmara também, a seu modo, seu caráter objetivo: "Não é
o intelecto que torna Sócrates semelhante a um outro, assim como não é o intelecto que o torna branco"
(In Sent., I, d. 30, q. 1, P); isso significa que a relação, como intenção ou conceito da alma, refere-se a
várias coisas isoladas ou é várias coisas isoladas, "assim como o povo é vários homens e nenhum homem
é povo" (Ibid.). No entanto, nestas afirmações, assim como nas de Locke e de outros que insistiam na
referência objetiva da R. (como conceito ou idéia), tal referência é entendida como referência à realidade.
A característica da doutrina moderna, nesse sentido, é que a objetividade da R. não implica sua realidade,
ou seja, reconhecer que a R. é objetiva não implica que em todos os casos ela ocorra entre coisas ou
entidades reais. Este sentido da R. está intimamente ligado ao sentido que o ser predicativo assumiu na
lógica contemporânea (v. SER). Desse ponto de vista a matemática e a lógica foram definidas como
"ciências das R." (v. LÓGICA; MATEMÁTICA). Em particular, no que diz respeito à lógica, pode-se dizer
que tanto o cálculoproposicional quanto o de classes versam exclusivamente sobre R., porquanto são R.
os conectivos (e, ou, não, se... então) de que trata o cálculo proposicional e as entidades de que trata a
álgebra das classes. Contudo, o cálculo das R. também constitui um ramo específico da lógica
contemporânea, ramo cujos avanços se devem espe-
RELAÇÃO
844
RELATIVIDADE, TEORIA DA
cialmente a E. Schrõder (Álgebra der Logik, 1895) e a Peirce (The Logic ofRelatives, 1897, Coll. Pap.,
3.456-526). Neste sentido restrito, entendem-se por R. as funções proposicionais diádicas ou poliádicas
(com duas ou mais variáveis), que são escritas na forma f(x, y) ou, mais freqüentemente, xRy. As
características mais gerais da R. neste sentido são as seguintes:
I
a Se 7? ocorre não só entre xe y, mas também entre y e x, diz-se que é simétrica. É simétrica, por
exemplo, a relação entre dois irmãos. Caso contrário, é chamada de assimétrica. As R "antes", "depois",
"à esquerda" são assimétricas.
2- Se R é tal que, quando x tem R. R com y e y tem R. R com z, também x tem a R. R com z, chama-se
transitiva. São transitivas as R. "menor", "precede", "à esquerda"; é intransitiva a R. de paternidade.
3
a
Se R é tal que nenhum termo está em R. R consigo mesmo, a R. é chamada de aliorre-lativa. São
aliorrelativas as R. "irmão", "marido", "pai", etc.
4-Se Ré tal que, dados dois termos diferentes do campo, x e y, pode ocorrer entre x e y ou entre ye xou
entre xe ye entre y e x, a R. é chamada de coerente. É coerente a R. "maior ou menor"; não é coerente a R.
"antepassado".
5
a
O termo x que tem R. i? com um ou mais termos (y, z...) chama-se dominante, enquanto são chamados
de dominantes inversos os termos com que o termo x tem a R. R, quais sejam, os termos y, z, etc. Na R. de
"paternidade", pai é dominante, "filhos" são dominantes inversos.
6
a
O campo de uma R. consiste no conjunto do dominante e dos dominantes inversos. No caso da R. de
paternidade, o campo é o conjunto pai-filhos.
7
a
Diz-se que uma R. implica outra se esta é válida sempre que a primeira é válida.
Essas noções elementares definem a natureza objetiva, conquanto não real, das R., na forma
constantemente empregada pela lógica e pela matemática contemporâneas. Trata-se de características que
generalizam ao máximo a noção de R., permitindo incluir nela e esclarecer com ela os conceitos mais
díspares (cf. WHITEHEAD e RUSSELL, Principia mathematica, vol. I, 1925). Para uma exposição sumária
da noção das R. em função dos conceitos fundamentais da matemática, cf. RUSSELL, Introduc-tion to
Mathematical Philosophy, 1918; trad. it., 1947. Quanto aos aspectos matemáticos, cf. W.
v. O. QUINE, Methods of Logic, 1942, especialmente o § 40.
RELAÇÃO DE COISAS. V. ESTADO DE COISAS.
RELACIONAL(in. Relational; ai. Relationnel; it. Relazionale). O que é uma relação ou diz respeito a
uma relação. O adjetivo exclui o significado relativista que pode ter o termo relativo (v.). Portanto, é
preferido pelos filósofos que, mesmo insistindo na importância da relação, não pretendem chegar a
conclusões re-lativistas. Nesse sentido, N. Hartmann distinguiu relacionalidade de relatividade: p. ex., os
valores estão em relação com o homem e com seu mundo sem perder sua absolutidade irrelativa (Ethik,
1949, p. 140). O termo rela-cionismo(relazionismo) foi usado na Itália para indicar uma filosofia que
considera a relação como fenômeno essencial do universo e do homem, mas sem implicações relativistas
(cf. E. PACI, DalVesistenzialismo ai relazionismo, 1957, p. 45 e passim).
RELATIVIDADE, TEORIA DA (in. Theory of relativity, fr. Théorie de Ia relativité; ai.
Relativitátstbeorie, it. Teoria delia relativitã). Com este termo designam-se dois corpos de doutrinas
formuladas por Einstein: o primeiro em 1905 como o nome de R. restrita e o segundo em 1913 com o
nome de R. geral. A R. restrita baseia-se no reconhecimento de que a escolha de um sistema de
referências, indispensável para fazer medições, pode influenciar os resultados dessas medições; e que, não
existindo um sistema de referências privilegiado (ou "absoluto"), à diferença do que julgara a física
clássica, por um lado é preciso explicitar o sistema segundo o qual é feita a medição e por outro lado é
necessário encontrar fórmulas de conversão que tornem válidas tais medições também em outros
sistemas. A R. geral é substancialmente a extensão do princípio de R. a todos os sistemas, e não apenas
aos sistemas inerciais para os quais é válida a R. restrita; assim, é substancialmente uma teoria que recluz
a gravitação a uma deformação do contínuo quadrimen-sional do espaço-tempo (cf. A. EINSTEIN, L.
INFELD, The Evolution of Physics, 1938, trad. it., 1950; quanto à bibliografia, o volume dedicado a
Einstein na coleção "Living Philoso-phers" de Schilpp, 1949).
A teoria da R. teve numerosas interpretações filosóficas. Uma delas é a relativista, que a entendeu como
confirmação do relativismo filosófico (cf., p. ex., A. ALUOTTA, Relativismo, idealismo e
REIATTVISMO
845
REIATIVISMO
teoria de Einstein, 1948). Outra é a idealista ou espiritualista, defendida especialmente por A. Eddington
{The Nature of the Phisical World, 1928; The Philosophy ofPhysical Science, 1939), mas na realidade a
teoria da R. presta-se muito menos a interpretações filosóficas do que as teorias clássicas. A relatividade
de que ela fala nada tem a ver com o relativismo: uma medida por certo é relativa, não ao homem nem ao
sujeito cognoscente, mas ao sistema de referência, podendo também ser expressa com base em outros
sistemas. Tampouco se pode dizer que a teoria da R. seja mais subjetivista ou idealista que a física
clássica. A lição mais importante que a filosofia pode aprender com ela diz respeito ao método, e pode ser
inferida das seguintes palavras de Einstein: "Para o físico, um conceito só tem valor quando é possível
estabelecer se ele convém ou não. Portanto, precisamos de uma definição da simultaneidade que forneça o
método para reconhecer por meio de experiências se dois relâmpagos foram simultâneos ou não.
Enquanto essa condição não se realizar, eu, como físico (e também como não físico), estarei me iludindo
se achar que posso atribuir significado à expressão de simultaneidade" {Uberdiespazielle und die
allgemeine Relativitütstheorie, 1917, § 8; trad. it., p. 18). Essas palavras expressam a exigência geral de
que, para ser válida, qualquer proposição deve poder ser confirmada ou comprovada por métodos hábeis
(v. SIGNIFICADO). RELATIVISMO (in. Relativism; fr. Relati-visme; ai. Relativismus; it. Relativismus).
Doutrina que afirma a relatividade do conhecimento, no sentido dado a esta expressão no séc. XIX, a
saber: le
como ação condicionante do sujeito sobre seus objetos de conhecimento; 2e como ação
condicionante recíproca dos objetos de conhecimento. Este condicionamento duplo dos objetos de
conhecimento foi primeiramente tomado como fundamento do R. por W. Hamilton, que, por um lado,
insistia no fato de que todos os objetos existentes podem ser conhecidos apenas em relação com as
faculdades humanas e em condições ditadas por essas mesmas faculdades {Lectures on Metaphysics, 1,
1870, 5a
ed, p. 148), e, por outro, na con-dicionalidade que os objetos de conhecimento exercem uns sobre
os outros {Discussion on Philosophy, 1852, p. 13). Com base nesses dois pontos (que nada tinham de
original, pois podem ser facilmente reconhecidos como as teses mais genéricas do empirismo e do
criticismo), Hamilton afirmava, ao mesmo tempo, a incognoscibilidade e a existência do Absoluto, uma vez que se pode crer também naquilo que não se
conhece {Lectures, cit., II, pp. 530-531). Essas teses foram utilizadas como apologética religiosa por E. L.
Mansel {Philosophy of the Conditioned, 1866). Mas o principal responsável por sua difusão foi o
positivismo, pois Spencer aceitava o ponto de vista de Hamilton, admitindo a relatividade do
conhecimento humano, a incognoscibilidade do Absoluto e sua existência {First Principies, 1862, §§ 23
ss.).
Fora do positivismo, o R. foi aceito por algumas correntes do neocriticismo e do pragmatismo. No
neocriticismo, E. Renouvier {Essais de critique générale, 1854-64) insistiu na relatividade do fenômeno,
que só subsiste em relação com outros fenômenos e em relação com o sujeito cognoscente {Essais, I, pp.
50 ss.); G. Simmel afirmava que "o R. pode ser afirmado da seguinte maneira, com referência aos
princípios do conhecimento: os princípios constitutivos fundamentais, que expressam definitivamente a
essência das coisas, tornam-se princípios reguladores, que são apenas pontos de vista para o progresso do
conhecimento" {Philosophie des Geldes, 1900, p. 68). No âmbito do pragmatismo, o R. era defendido por
F. E. S. Schiller; desse ponto de vista, era a negação das verdades "absolutas" ou "racionais" e o
reconhecimento de que a verdade é sempre relativa ao homem, é válida porque útil a ele; por isso,
Schiller via no ditado de Protágoras "o homem é a medida de todas as coisas" a maior descoberta da
filosofia {Studies in Humanism, 1902, pp. X ss.). A sofistica antiga, o ceticismo e (em parte) o empirismo
e o criticismo tornavam-se, desse ponto de vista, manifestações de um R. que buscava precedentes e
tentava criar tradição. Na realidade, porém, o R. foi um fenômeno moderno, ligado à cultura do séc. XIX,
e constituiu uma espécie de subversão da filosofia dogmática do séc. XX. Isso pode ser notado com certa
facilidade na manifestação extrema (a única autêntica) do R., que é a doutrina exposta por O. Spengler em
seu livro A decadência do Ocidente (1918-22), em que se afirma não só a relatividade do conhecimento,
mas também de todos os valores fundamentais da vida humana nas épocas da história consideradas como
entidades orgânicas, cada uma das quais cresce, desenvolve-se e morre sem relação com a outra. Segundo
esse ponto de vista, a relatividade está não só na verdade reli-
RELATIVO
846
RELIGIÃO
giosa e filosófica, mas também na verdade moral e científica. "Cada cultura" — dizia Spengler — "tem
seu próprio critério, cuja validade começa e termina com ela. Não há moral humana universal" (Der
Untergang des Abendlandes, I, cap. I, p. 55).
Nesta forma, que é a única rigorosamente coerente, o R. afirma a relatividade dos valores somente porque
considera necessária a relação entre eles e a época histórica à qual pertencem, negando-lhes a
possibilidade de serem relativos a outros homens, a outras épocas ou a outras circunstâncias, obtendo
assim uma autonomia parcial que desmentiria o R. Esse mesmo ponto de vista é defendido com
freqüência naquilo que hoje se chama de R. cultural, que parte do reconhecimento da diversidade dos
costumes e das normas vigentes em culturas diversas. Esse R. tem raízes remotas (Heródoto, Protágoras e
Discursos duplos, texto de inspiração sofista, talvez da primeira metade do séc. IV a.C), mas hoje se
apoia no reconhecimento quase universal da pluralidade e da heteroge-neidade das culturas. Em sua
forma extrema, foi defendido por Herskovits (CulturalAnthro-pology, 1955); a respeito, v. o volume
coletivo Relativism and the Study of Man, org. por SCHOECK e WIGGINS, 1961).
RELATIVO (lat. Relativus; in. Relative, fr. Relatif ai. Relativ, it. Relativo). 1. Aquilo que participa de
uma relação ou desempenha a função de termo numa relação. Neste sentido, diz-se "o fenômeno x é
relativo a y como causa".
2. Termo que não tem significado, ou que não tem significado exato, a não ser em referência a outro
termo. Neste sentido "maior", "menor", "duplo", etc. são R. porque são sempre citados com referência a
alguma outra coisa.
3. Aquilo que vale somente em determinadas circunstâncias ou condições e não vale fora delas. Neste
sentido, diz-se que o conhecimento é R. ou que os valores são R., e que o oposto de R. é "absoluto" ou
"incondicionado".
4. O que é relação ou concerne a uma relação. Neste sentido, diz-se, p. ex., que "o conhecimento é R.",
"significando que ele consiste em estabelecer relações entre dados. Contudo, neste caso, o adjetivo
relacionai (v.) é mais apropriado.
5. Como substantivo, o termo é usado por Schrõder (Álgebra derLogik, 1895) e por Peirce (Coll. Pap.,
3.456.526: "The Logic of Relatives", 1897), sendo sinônimo de relação.
RELEVANTE (in. Relevant; fr. Relevant; ai. Be-deutend; it. Rilevantè). Chama-se de R. a um
enunciado significante, especialmente se for importante para o significado total do contexto em que se
acha. Às vezes também são chamados de R. os elementos de fato, importantes para o juízo de
determinada situação.
RELIGIÃO (lat. Religia, in. Religion; fr. Religion; ai. Religion; it. Religioné). Crença na garantia
sobrenatural de salvação, e técnicas destinadas a obter e conservar essa garantia. A garantia religiosa é
sobrenatural, no sentido de situar-se além dos limites abarcados pelos po-deres do homem, de agir ou
poder agir onde tais poderes são impotentes e de ter um modo de ação misterioso e imperscrutável. A
origem sobrenatural da garantia não implica necessariamente que ela seja oferecida por uma divindade e
que, portanto, a relação com a divindade seja necessária à R.: na realidade, existem R. ateístas, como o
budismo primitivo, retomado e defendido neste seu caráter por escolas posteriores (cf. G. Tucci, Storia
delia filosofia indiana, pp. 71 ss.; 312 ss.). Além da determinação da relação do homem com a divindade,
a função de demonstrar a existência desta e de esclarecer suas características e funções em relação ao
homem e ao mundo sempre foi atribuída mais à filosofia que à R.; o cumprimento dessa tarefa pode até
ter caráter anti-religioso, como aconteceu no epicurismo, que pretendeu estabelecer ao mesmo tempo a
existência da divindade e sua indiferença para com o mundo e os homens, regulando com base nisso as
relações da divindade e do homem. (EPICURO, Carta a Meneceu, 123-24; FILODEMO, De pietate, p. 122;
fr. 38, Usener). Por outro lado, hoje, para alguns teólogos, a relação entre o homem e Deus é artigo de fé,
e não de R., porque não depende das formas míticas que a R. assumiu e é constitutiva da existência
humana no mundo (v. FÉ; DEUS; DEUS, MORTE DE).
Em qualquer caso, a salvação de que a R. pretende ser garantia não se refere necessariamente a este ou
aquele mal do mundo: pode inclusive significar livrar-se do mundo, já que este é considerado um mal em
sua totalidade, como de fato acontece no próprio budismo. Além disso, na definição proposta, convém
sublinhar a diferença entre a crença na garantia sobrenatural e as técnicas que permitem obter ou
conservar tal garantia. Por técnicas entendem-se todos os atos ou práticas de culto: oração, sacrifício,
ritual, cerimônia, serviço divino ou serviço social. A crença na garantia sobrenatural é a atitude religiosa
fundamental, poden-
RELIGIÃO
847
RELIGIÃO
do ser simplesmente interior e pessoal (religiosidade individual); ao contrário, as técnicas destinadas a
obter e conservar essa garantia constituem o lado objetivo e público da R., seu aspecto institucional. Uma
R. natural é constituída simplesmente por essa atitude; uma R. positiva é constituída essencialmente por
essas técnicas.
O conceito de R. compreende ambos os aspectos. Etimologicamente, essa palavra significa
provavelmente "obrigação", mas, segundo Cícero, derivaria de relegere. "Aqueles que cumpriam
cuidadosamente todos os atos do culto divino e, por assim dizer, os reliam atentamente foram chamados
de religiosos — de relegere —, assim como elegantes vem de elegere, diligentes de diligere e inteligentes
de intelligere, de fato, em todas essas palavras nota-se o mesmo valor de legere, que está presente em R."
{De nat. deor., II, 28, 72). Para Lactâncio {Inst. Div., IV, 28) e S. Agostinho {Retract., I, 13), porém, essa
palavra deriva de religare, e a propósito Lactâncio cita a expressão de Lucrécio "soltar a alma dos laços
da R." {De rer. nat., I, 930).
Deve-se notar também que o grego não possui o equivalente exato da palavra latina e moderna. Aaxpeía
significa serviço divino; portanto, refere-se apenas ao segundo dos elementos da R. S. Agostinho {De civ.
Dei, X, 1) estabelecia a correspondência entre religio e 9pT|07ceía, mas também esta palavra se refere
exclusivamente às técnicas da R.
As diferentes definições até hoje feitas de R. podem ser classificadas com base nos dois problemas
fundamentais a que correspondem, a saber: I. Com base no problema da origem da R., que na realidade é
o problema do tipo de validade da R.; II. Com base no problema da função atribuída à R., ou seja, o
caráter específico da garantia que ela oferece à salvação do homem.
I. Como acontece também em outros casos, o problema da origem consiste na realidade em saber que tipo
de validade se pretende atribuir à R. É possível distinguir três soluções para este problema, a saber: I
a
a
doutrina da origem divina da R.; 2a
a doutrina da origem política; 3a a doutrina da origem humana da
religião.
I
a A doutrina da origem divina expressa o reconhecimento do valor absoluto (ou infinito) da R. É óbvio
que a pretensão de ter origem divina ou sobrenatural é intrínseca em qualquer R., já que todas elas
afirmam ter como fundamento uma revelação originária que garante sua verdade ou consideram as crenças e as instituições com
que se identificam continuamente confirmadas por testemunhos sobrenaturais, o que é o mesmo. Portanto,
do ponto de vista da filosofia, o reconhecimento da origem divina ou do valor absoluto da R. concretizase na tese de que a R. é revelação. Pode-se dizer que essa tese nada mais é que a expressão filosófica do
valor absoluto que a R. se atribui. Esse ponto de vista foi expresso com toda a clareza por Hegel: "No
conceito da verdadeira R., que é aquela em que está contido o Espírito absoluto, está posto essencialmente
que ela é revelada, e revelada por Deus" {Ene, § 564). E acrescenta que "se a Deus for negada a
revelação, não restaria outro conteúdo a atribuir-lhe senão a inveja. Mas, se é que a palavra espírito tem
sentido, significa a revelação de si" {Ibid., § 564). Não é diferente deste o conceito que Schleiermacher
tinha de R: "O universo é uma atividade ininterrupta que se nos revela a todo momento. Todas as formas
que ele produz, todos os seres aos quais dá, pela plenitude da sua vida, uma existência particular, todos os
acontecimentos que ele gera em seu seio sempre rico e fecundo, correspondem a uma ação que ele exerce
sobre nós; assim, em aceitar cada coisa particular como parte do Todo, cada coisa finita como expressão
do Infinito, consiste a R." {Reden über dieReligion, 1799, II; trad. it., p. 39). Pode-se expressar essa
mesma doutrina afirmando que a R. é a experiência do divino e que, como toda experiência, revela a
realidade de seu objeto. Este era o conceito que Bergson tinha da R. autêntica, ou seja, o misticismo: "Se
as semelhanças exteriores entre os místicos cristãos dependem de uma comunidade de tradições e de
ensinamentos, seu acordo profundo é sinal de identidade de intuição, que pode ser explicada de maneira
mais simples pela existência real do ser com o qual acreditam estar em comunicação" {Deux sources, III;
trad. it., pp. 270-71).
2
a
A doutrina da origem política reduz a R. a um estratagema político: portanto, anula seu valor
intrínseco. O primeiro a defender essa teoria foi Crítias, um dos trinta tiranos de Atenas. Segundo ele, "os
antigos legisladores inventaram a divindade como uma espécie de inspetor das ações humanas, boas ou
más, a fim de que ninguém ofendesse ou traísse seu próximo, por medo da vingança dos deuses". Esse
estratagema foi necessário porque "as leis realmente dis-
RELIGIÃO
848
RELIGIÃO
suadiam os homens de praticar violências às claras, mas eles as cometiam às escondidas", de tal maneira
que "algum homem talentoso e experiente inventou o temor dos deuses para que os malvados se
sentissem amedrontados mesmo no que fizessem, dissessem ou pensassem às escondidas" (SEXTO
EMPÍRICO, Adv. math., IX, 54). Concepções análogas recorrem de vez em quando na história da filosofia:
podem ser reconhecidas no libertinismo e em algumas correntes do iluminismo e do marxismo.
3
a
A doutrina da origem humana considera a R. como formação humana, cujas raízes estão na situação do
homem no mundo. Essa doutrina não está empenhada em atribuir à R. determinada validade, mas sim em
compreendê-la como fenômeno humano e expressá-la num conceito suficientemente amplo para abranger
todas as suas manifestações mais díspares. Essa concepção orientou-se para dois tipos de explicações. O
primeiro considerou a religião como uma forma de satisfação da necessidade teorética, ou seja, de
conhecimento. O segundo considerou que a R. é sugerida ao homem pela situação em que ele se encontra
no mundo, substancialmente por suas necessidades práticas. Solução do primeiro tipo encontra-se em
Epicuro, para quem a origem da R. está nas imagens oníricas e na necessidade humana de explicar a
regularidade dos movimentos celestes (LUCRÉCIO, De rer. nat., V, 1167 ss.). A R. seria mais
contemplativa que prática. Hobbes foi o primeiro a atribuir-lhe origem prática; citando as palavras de
Estácio "Primus in orbe deosfecit timor" ( Theb., III, 66l), Hobbes afirmava que a principal causa do
aparecimento da R. é o temor que nasce da incerteza do futuro: "Por ser inegável que existem causas para
todas as coisas que existem ou existirão, é impossível, para o homem que tenta prevenir-se contra os
males que teme e obter os bens que deseja, deixar de viver em contínua preocupação com o porvir, de tal
maneira que todos os homens, sobretudo os mais previdentes, vivem num estado semelhante ao de
Prometeu." É desse estado de temor, bem como da esperança de garantir os bens de que necessita e do
desejo de atingir um conhecimento completo do mundo, que, segundo Hobbes, nasce a R. (Leviath., I,
12). Doutrina análoga, mas exposta de maneira mais pormenorizada, foi reapresentada por Humeera
História natural da religião (1757). A R. não surge da contemplação, mas do interesse do homem pelos
acontecimentos da vida e, portanto, das esperanças e dos temores incessantes que o agitam. Suspenso
entre a vida e a morte, entre a saúde e a doença, entre a abundância e a privação, o homem atribui a
causas secretas e desconhecidas os bens de que frui e os males pelos quais é continuamente ameaçado
(Natural History of Religion, II, em Essays, II, p. 316). Voltaire expunha da seguinte maneira esse mesmo
conceito: "É natural que um povo, assustado com o trovão, afligido pela perda de suas colheitas,
maltratado pelo povo vizinho, sentindo todos os dias a sua fraqueza, sentindo por todos os lados um poder
invisível, tenha finalmente dito: 'Há algum ser superior a nós que nos faz bem e mal'"
{Dictionnairephilosophique, 1764, v. Religion, II).
Essa doutrina eclipsou-se no início do séc. XX. Por um lado, mesmo o conceito romântico de R. como
revelação ou sentimento do infinito foi compartilhado até por filósofos que negavam a validade da R.
Feuerbach, p. ex., transformando a teologia em antropologia, afirmava: "A R. é a consciência do infinito:
por isso, não é e não pode ser outra coisa senão a consciência que o homem tem da infinidade de seu ser,
e não de sua limitação" (Wesen der Christenthum, 1841, § 1). Analogamente, Max Müller via a essência
da R. na potencial capacidade humana de "apreender o infinito" ( Vorlesungen über den Ursprung und die
Ent-wicklung der Religion, 1880, p. 28). Embora, com essas expressões, se pretendesse ressaltar a origem
humana da R., lançava-se mão de conceitos que se prestavam mais a exprimir sua origem divina e seu
valor absoluto. Por outro lado, também no campo da investigação sociológica, que começava a examinar
as formas de R. dos povos primitivos, manifestava-se a tendência a considerar a R. como contemplação,
interpretando-a como concepção do mundo (ou filosofia) certamente grosseira, mas não destituída de
certa coerência. E. B. Tylor via a essência da R. primitiva no animismo (v.), que é a crença em seres
espirituais considerados presentes em todas as coisas e causadores de todos os eventos (Primitive Culture,
1871). Nesses termos, a R. seria uma metafísica da natureza. Segundo Durkheim, porém, ela seria
metafísica da sociedade; para ele, R. é "o mito que a sociedade faz de si mesma", no sentido de que
"sociedade é a realidade que as mitologias representaram com tantas formas diferentes, mas que é a causa
objetiva, universal e
RELIGIÃO
849
RELIGIÃO
eterna das sensações suigenerisde que é feita a experiência religiosa" (Formes élémentaires de Ia vie
religieuse, 1937, p. 597). Isso quer dizer que a R. primitiva consiste em atribuir a uma suposta realidade
as características da sociedade primitiva- as que essa sociedade considera essenciais para si mesma. Essas
teses baseavam-se principalmente numa interpretação do totemismo: para Durkheim, o totem é símbolo
da força que sustenta o indivíduo: a própria sociedade; nela, a mente primitiva haure todas as suas
categorias para a interpretação do mundo. Assim, para Durkheim, a R. tem um caráter contemplativo,
também atribuído a ela por outro grande sociólogo francês, Lucien Lévy-Bruhl, que expressa essa tese
identificando com o misticismo não só a R., mas a vida dos povos primitivos em sua totalidade (L'expérience mystique et les symboles chez les primitifs, 1938). Para todas essas correntes filosóficas e
sociológicas, a R. é, em sua origem, um fato cognitivo: é uma tentativa de explicar o mundo ou de formar
uma idéia do mundo com base em certo número de experiências mais freqüentes na vida dos homens.
O retorno à concepção setecentista de R., segundo a qual sua origem está na situação do homem no
mundo, verifica-se apenas nas correntes mais modernas e críticas da sociologia. Foi W. Robertson Smith
quem começou a insistir na importância assumida pelo segundo dos dois elementos (as técnicas) na R.
primitiva. "A R. nos tempos primitivos não foi um sistema de crenças com aplicações práticas; foi um
corpo de práticas tradicionalmente fixadas, às quais todos os membros de uma sociedade se conformavam
naturalmente. Os homens criam regras gerais de conduta antes de começarem a expressar em palavras os
princípios gerais; as instituições políticas são mais antigas que as teorias políticas e, de maneira
semelhante, as instituições religiosas são mais antigas que as teorias religiosas" (Lectures on the Religion
ofthe Semites, 1907, p. 16). Mais tarde, a obra de G. Frazer (The Colden Bough, 1911-14) mostrava a
estreita conexão entre R. e magia, partindo da consideração de que o homem é dominado em primeiro
lugar pela preocupação de controlar os acontecimentos naturais, com o objetivo de submetê-los às
exigências da vida. A diferença entre magia e R., segundo Frazer, consiste no seguinte: a primeira tende
ao controle direto dos acontecimentos naturais, ao passo que a segunda procura os meios de tornar propícios os poderes superiores que dominam a natureza. Esta foi a doutrina mais aceita por
sociólogos e filósofos. A. Loisy sustentava um ponto de vista bem próximo ao de Frazer (Essai historique
sur le sacrifice, 1920) e B. Malinowski apresentava novas provas para a mesma tese. Segundo
Malinowski, a R. e a magia surgem e funcionam em situações de tensão emocional: crises da vida,
tentativas malogradas, morte e iniciação nos mistérios da tribo, amores infelizes e ódios insatisfeitos. R. e
magia também têm em comum o fato de oferecerem uma saída para tais situações por meio de crenças e
práticas que se referem ao domínio do sobrenatural. Distinguem-se contudo pelo fato de a magia utilizar
técnicas limitadas e simples, enquanto a R. compreende um conjunto de técnicas; a magia limita-se a uma
classe de pessoas que faz dela profissão, ao passo que a R. é assunto de todos, e cada indivíduo participa
dela ativamente. Por fim, ambas têm funções diferentes: a da magia é suprir a deficiência ou a
imperfeição dos instrumentos naturais com instrumentos sobrenaturais, enquanto a função da religião é
fortalecer certas atitudes especiais, como a coragem e a confiança na luta contra as dificuldades (Magic,
Science and Religion, 1925). Não muito diferente desta, embora expressa em termos teológicos e
místicos, foi a tese defendida por Rudolf Otto em seu livro intitulado O sagrado (1917). Segundo Otto,
deriva do medo o sentimento de estar em presença de um poder superior, que se cristaliza naquilo que ele
chama de tremendum ou maiestas; deriva do sentimento de desesperança, impotência, insignificância o
sentimento criatural descrito no Antigo Testamento; e das fantasias compensadoras nasce o conceito
daquilo que é completamente outro, que se mistura aos acontecimentos mais corriqueiros sem deixar de
parecer novo e estranho. Assim, os ingredientes do sobrenatural eram atribuídos, também por Otto, à
situação do homem no mundo. Esse foi o ponto de partida das mais modernas teorias da religião.
Segundo Freud, a R. "dá aos homens informações acerca da fonte e da origem do universo, garante-lhes
proteção e felicidade final apesar das cambiantes vicissitudes da vida e guia seus pensamentos e suas
ações com preceitos apoiados na força da autoridade" (A New Series of Introductory Lectures on PsychoAnalysis, 1933, P- 220). Com esses fundamentos, Freud acredita que a R. consiste na crença de um pai
sobrenatural
RELIGIÃO
850
RELIGIÃO
que protege os homens dos perigos, recom-pensando-os ou punindo-os conforme o caso. Assim, a relação
entre o homem e a divindade estaria moldada na relação entre pai e filho (Ibid., pp. 222 ss.). Sem levar
em conta o fundo psicanalítico desta concepção, pode-se dizer que ela não difere muito das outras
mencionadas anteriormente: a R. é entendida como corretivo, defesa ou protesto diante da situação de
incerteza que o homem encontra no mundo. Este é também o conceito que Bergson apresenta de R.
estática, à qual ele opôs a R. dinâmica (o misticismo). R. estática seria, pois, "a reação defensiva da
natureza contra o poder desagregador da inteligência", no sentido de que a inteligência mostra claramente
ao homem a incerteza e os perigos da vida, bem como a inexorabilidade da morte, enquanto a R. seria o
conjunto das reações defensivas contra as representações intelectuais da condição humana no mundo
(Deux sources, 1932, cap. II, trad. it., pp. 131 ss.). Estritamente sobre a R. primitiva, tese análoga foi
defendida com base em ampla documentação por P. Radin em seu livro sobre a R. dos primitivos
(Primitive Religion, its Nature and Origin, 1937).
II. O segundo dos problemas aos quais as definições de R. já propostas pretendem dar resposta é o da
função específica da R. Esse problema pode ser entendido em dois sentidos. Em primeiro lugar, para o
problema da garantia de salvação que a R. pretende oferecer ao homem, é possível distinguir três soluções
principais: I
a a R. como meio de libertar-se do mundo; 2a
a R. como verdade; 3a
a R. como moralidade.
Em segundo lugar, o próprio problema pode ser entendido do ponto de vista da função exercida pela R. na
sociedade ou na economia geral da vida humana (4a
).
I
a A garantia que a R. pretende oferecer ao homem pode ser antes de mais nada a de libertá-lo do mundo,
que é considerado um mal. Essa é a doutrina do budismo: "Não se deve fruir aquilo que nasce e se
transforma, aquilo que se forma e constitui, que é instável, dependente da velhice e da morte, fonte de
doenças, frágil, surgido do trânsito dos alimentos. Fugir desse estado significa encontrar outro estado,
tranqüilo, situado além do domínio do pensamento, estável, não nascido, não formado, sem dor, sem
paixão, felicidade que põe fim às condições de miséria e destrói para sempre os elementos da existência"
(Itivuttaka, 43, trad. Pavolini). Esse estado de destruição da
existência chama-se nirvana. Mas, segundo o próprio budismo, o nirvana também é o estado de bemaventurança de quem, já nesta vida, eliminou o desejo e, portanto, o germe da futura existência. Desse
ponto de vista, a salvação é concebida pelo budismo não só como libertar-se do mundo, mas também
como libertar-se dos males do mundo. Esses dois aspectos estão presentes em muitas R., com exceção da
de Israel, que ignora o primeiro: a promessa de bem-aventurança a ser alcançada além do mundo ou após
a morte costuma ser acompanhada pela promessa de felicidade, de paz ou de bem-estar já na vida terrena.
Quando a felicidade ou a paz pode ser alcançada nesta vida só com a superação da condição humana e da
deificação, que é a união com Deus e com o princípio cósmico, tem-se o misticismo(v.). No misticismo,
Bergson viu a R. dinâmica, a continuação supra-orgânica do elâ vital, o impulso para a criação de uma
sociedade nova, baseada no amor universal (Deux sources, 1932, cap. III). Na realidade, o misticismo é
apenas uma das soluções para o problema da salvação, sendo típico de uma religiosidade pessoal,
contemplativa e solitária, para a qual as atividades e as relações humanas são alheias e insignificantes.
2
a
A garantia infalível da verdade é pretensão implícita em qualquer R. Do ponto de vista filosófico, essa
tese apresenta-se como identidade entre R. e filosofia, com diferenças puramente formais entre elas. Essa
foi, p. ex., a teoria defendida por Hegel: "A filosofia tem o mesmo objeto da R. porque ambas têm como
objeto a verdade, no sentido superior da palavra, porquanto Deus, e somente Deus, é a verdade" (Ene, §
1). Todavia, a R. distingue-se da filosofia por não expressar a verdade em forma de conceito, mas em
forma de representação e sentimento. Hegel diz: "R. é a relação com o Absoluto na forma de sentimento,
de representação, de fé; no seu centro, que tudo abarca, tudo está apenas como algo acidental e evanescente" (Fil. do dir., § 270). Portanto, aquilo que a R. intui de modo acidental, aproximativo e confuso é
demonstrado com caráter de necessidade pela filosofia (Ene, § 573). Está claro, porém, que a doutrina da
identidade entre R. e filosofia também pode ser afirmada do ponto de vista da superioridade da R. como
forma ou revelação da verdade: é o que faz a filosofia da fé de Haman, Herder e Jacobi, à qual o próprio
Hegel se opõe (v. FÉ, FILOSOFIA DA). Contudo é
RELIGIÃO
851
RELIGIÃO
evidente que nesse caso não é à religião que se confia a garantia da verdade, mas a um órgão, a fé, da qual
depende a validade da filosofia e da R., bem como de qualquer outro tipo de saber. Portanto, atribuir à R.
como objetivo específico a verdade na maioria das vezes significa, do ponto de vista filosófico, atribuirlhe a função de manifestar a verdade numa forma sem dúvida infalível e certa, mas inferior à forma que a
verdade pode assumir em filosofia. Assim, para Gentile, a R. é "a exaltação do objeto subtraído aos
vínculos do espírito, no que consiste a idealidade, a cognoscibilidade e a racionalidade do objeto" {Teoria
gen. dello spi-rito, 1913, XIV, 7). Portanto, a essência da R. é o misticismo, que é a anulação do sujeito no
objeto, em virtude do que o ser de Deus é o não-ser do sujeito (Discorsi di religione, 1920, p. 78). A R.
encontra sua verdade apenas na filosofia, que resolve Deus no ato do pensamento. "Como pode esse Deus
ser uma vontade a reconhecer, suplicar e esconjurar, à qual é preciso subordinar-se, se Deus está dentro do
homem, do seu eu, sendo propriamente o seu eu em seu atualizar-se?" (Sistema di lógica, II, 1922, IV, 8,
4). De maneira mais clara e insofismável, Croce disse que a R. é uma forma provisória e imperfeita de
filosofia, e por isso o filósofo deveria ver o religioso como "o seu irmão menor, ele mesmo num momento
anterior" (Fil. delia pratica, 1909, p. 314).
3
a
É crença bem antiga que a R. garante os valores morais do homem, entendendo-se por morais os
valores que regulam a ordem da vida social. Era essa a função que Platão atribuía à R.: "A divindade que,
segundo a tradição, rege o princípio, o fim e o curso de todos os seres, e procede conforme sua natureza
no seu movimento circular; atrás dela vem sempre a justiça punitiva para quem despreza a lei divina"
(Leis, 715 e, 716 a).
No mundo moderno, esse ponto de vista foi adotado e defendido por Kant: "A R., considerada do ponto
de vista subjetivo, é o conhecimento de todos os nossos deveres como mandamentos divinos. A R. em que
preciso antes saber que alguma coisa é um mandamento divino para considerá-lo meu próprio dever é a
R. revelada (ou que exige uma revelação); ao contrário, a R. em que devo saber que algo é um dever antes
de considerá-lo um mandamento divino, é a R. natural" (Religion, IV, seç. I). Kant observa que essa
definição de R. previ-ne várias interpretações falsas desse conceito.
Em primeiro lugar, exclui que a R. exija ciência de Deus e inclui que basta possuir a simples idéia de
Deus. Em segundo lugar, essa definição previne a "falsa idéia de que a R. é um conjunto de deveres
especiais que se referem imediatamente a Deus", e impede, portanto, que, além dos deveres humanos
ético-sociais, sejam admitidos "os serviços corteses com que poderíamos tentar compensar nossas faltas
para com os deveres da primeira espécie" (Ibid., IV, seç. I, nota). Nesta interpretação, porém, o que a R.
garantiria seria o absolutismo do mandamento moral: não garantiria (porque isso é da alçada da liberdade
humana) a efetivação do mandamento moral, isto é, a realização propriamente dita dos valores morais no
mundo. Contudo, na maior parte das vezes pede-se ou atribui-se à R. esta segunda espécie de garantia: de
que os valores morais e, em geral, os que interessam ao homem e à sua vida espiritual não fiquem
confiados unicamente à boa vontade humana, mas encontrem na providência divina a salvaguarda
infalível, capaz de garantir seu triunfo final. Neste sentido, H. Hõffding afirmou que a R. é a "crença na
conservação dos valores" (Religionsphilosophie, 1902, p. 13): a fé religiosa seria a convicção "da solidez,
da certeza e da continuidade da relação fundamental dos valores com a realidade" (Ibid., 1902, p. 105).
Esse é precisamente o otimismo providencialista que muitas correntes filosóficas idealistas e
espiritualistas haurem ou pretendem haurir na R., em nome do qual instituem apologéticas religiosas mais
ou menos engajadas.
4
a
Não mais considerando a R. em termos de garantia sobrenatural de salvação, mas com referência às
relações inter-humanas, nas quais se insere como sistema de crenças e de instituições, é fácil evidenciar a
sua utilidade biológica e social. Não que haja acordo unânime entre os filósofos sobre esse aspecto. Ao
afirmarem a não-ingerência da divindade nas atividades humanas, os epicuristas tinham em vista eliminar
o medo que os deuses inspiravam, pois consideravam a R. como um motivo suplementar de preocupação
e medo, e não de ajuda (cf. EPI-CURO, Ep. aMenaceu, 123; Ep. a Heródoto, 77; Mass. Cap., 1). Alguns
sociólogos contemporâneos tampouco deixaram de observar que muitas vezes os ritos religiosos e as
crenças a eles associadas são motivo de angústia, de tal maneira que o efeito psicológico do ritual parece
ser um sentimento de insegurança e perigo (cf.
REMESISCÊNCIA
852
RENASCIMENTO
A. R. RADCLIFFE-BROWN, StructureandFunction in Primitive Society, 1952, pp. 148-49). Mas mesmo
nesses casos é possível reconhecer a função social da R., na forma de fortalecimento dos laços sociais,
principalmente nas sociedades primitivas ilbid., pp. 157 ss.). A. Loisy dizia: "Entregue à ação dos
elementos, do clima, daquilo que a terra dá ou recusa, da boa ou má sorte na caça e na pesca, das
vicissitudes na luta contra semelhantes, o homem acredita encontrar um meio de regularizar com
simulacros de ação as suas possibilidades mais ou menos incertas. O que faz não tem utilidade para o
objetivo almejado, mas ele ganha confiança em seus feitos e em si mesmo; ousa e, ousando, realmente
obtém mais ou menos o que quer. Confiança rudimentar por vias humildes, mas é o começo da coragem
moral" (Essai historique sur le sacrifice, 1920, p. 533). Esse ponto de vista foi desenvolvido mais tarde
por Mali-nowski {Magic, Science and Religion, ed. An-chor Books, 1925, p. 89). Como vimos, é mais ou
menos isso que Bergson pensa. Trata-se de ponto de vista válido sobretudo para as sociedades primitivas,
mas também se sabe (v. PRIMITIVOS) que a sociologia contemporânea tende a eliminar o abismo entre
mentalidade primitiva e mentalidade civilizada. Ultrapassados os limites de controle dos acontecimentos
por meio de técnicas racionais — limites, ademais, bastante estreitos — o homem reivindica liberdade de
fé e entrega-se a crenças libertadoras ou consoladoras, a técnicas que lhe prometam salvação infalível.
Obtendo ou não o cumprimento dessas promessas, a função dessas técnicas é bem clara: dar esperança e
coragem, consolidar as relações com os outros homens e com o mundo.
REMEMSCÊNCIA. V. ANAMNESE.
RENASCIMENTO (in. Renaissance, fr. Renaissance, ai. Renaissance, it. Rinascimento). Designa-se
com este termo o movimento literário, artístico e filosófico que começa no fim do séc. XTV e vai até o
fim do séc. XVI, difundindo-se da Itália para os outros países da Europa. A palavra e o conceito de R. têm
origem religiosa, como ficou demonstrado pelos estudos de Hildebrand, Walser e Burdach: renascimento
é o segundo nascimento, o nascimento do homem novo ou espiritual de que falam o Evangelho de São
João e as Epístolas de São Paulo. Durante toda a Idade Média, tanto o conceito quanto a palavra
designavam o retorno do homem a Deus, sua restituição à vida perdida
com a queda de Adão. A partir do séc. XV, porém, essa palavra passa a ser empregada para designar a
renovação moral, intelectual e política decorrente do retorno aos valores da civilização em que,
supostamente, o homem teria obtido suas melhores realizações: a greco-ro-mana. Assim, o R. foi forçado
a ressaltar as diferenças que o distinguiam do período medieval, em sua tentativa de vincular-se ao
período clássico e de haurir diretamente dele a inspiração para suas atividades. Contudo não faltam
elementos de continuidade entre a Idade Média e o R., e muitos dos problemas preferidos por humanistas
e filósofos do R. eram os mesmos já discutidos pela Idade Média, com as mesmas soluções. Isso explica
por que a interpretação do R. sempre oscilou entre dois extremos: de um lado, a oposição radical entre ele
e a Idade Média; de outro, a continuidade intrínseca entre os dois. A primeira posição foi defendida por
Burckhardt (Die Kulturder Renaissance in Italien, 1860), sendo repetida e ampliada por Gentile e seus
discípulos. A segunda concepção inspira-se sobretudo na obra de K. Burdach ( Vom Mittelalter zu Reformation, Renaissance, Humanismus, 19262
) e ganhou forma extremada com G. Toffanin (História do
humanismo, 1933). As características fundamentais do R. podem ser brevemente re-capituladas da
seguinte maneira:
1- Humanismo, como reconhecimento do valor do homem e crença de que a humanidade se realizou em
sua forma mais perfeita na Antigüidade clássica (v., a respeito, HUMANISMO).
2- Renovação religiosa, através da tentativa de reatar os laços com uma revelação originária, na qual se
teriam inspirado os próprios filósofos clássicos, como é o caso do platonismo (Nicolau de Cusa, Pico
delia Mirandola, M. Ficino), ou através da tentativa de restabelecer o contato com as fontes originárias do
cristianismo, ignorando a tradição medieval, como é o caso da Reforma protestante, (v. REFORMA).
3
a Renovação das concepções políticas; com o reconhecimento da origem humana ou natural das
sociedades e dos Estados (Maquiavel) ou com a tentativa de voltar às formas históricas originárias ou à
natureza das instituições sociais (Jusnatufalismo, [v.]).
4- Naturalismo, como novo interesse pela investigação direta da natureza, tanto na forma do
aristotelismo, das manifestações de magia ou da metafísica da natureza (Campanella e
REPETIÇÃO
853
REPRESENTAÇÃO
Giordano Bruno) quanto na forma das primeiras conquistas da ciência moderna.
Sobre o R. cf. a Bibliografia de H. BARON, "Renaissance in Italien", em ArchivfürKultur-geschichte,
1927,1931. (Em especial E. CASSIRER, Indivíduo e cosmo na filosofia do R., e os textos de E. Garin; em
particular: Idade Média e R., 1954).
REPETIÇÃO (in. Repetition; fr. Répétition, ai. Wiederbolung; it. Ripetizioné). 1. Termo introduzido na
terminologia existencialista por Kierkegaard. Este, para esclarecer sua significação, aproximou-o da
expressão aristotélica quod quid erat esse (v. ESSÊNCIA; SUBSTÂNCIA), que, significando literalmente
aquilo que o ser era, expressa a necessidade e a imutabilidade do ser, a sua repetição. Kierkegaard valeuse desse conceito sobretudo para descrever a natureza da vida ética: à diferença da vida estética, que
procura evitar a R., buscando novidades a todo instante (sendo por isso simbolizada por Don Juan), a vida
ética baseia-se na continuidade, na escolha repetida que o indivíduo faz de si mesmo e de sua tarefa,
sendo, pois, simbolizada pelo matrimônio (Die Wiederbolung, 1843; cf. Diário, IV, A, 15 6). Heidegger,
por sua vez, utilizou esse conceito para caracterizar a existência autêntica, como ela se realiza na angústia.
A angústia, por libertar o homem "das possibilidades nulas e liberá-lo para as autênticas", consiste em
retomar, para o porvir, as possibilidades que já foram no passado: isso é R. (Sein undZeit, § 68 b). Desse
ponto de vista, R. é decisão autêntica: "A R. é a transmissão explícita, ou seja, o retorno às possibilidades
do ser-aí que é já tendo sido. A autêntica R. de uma possibilidade de existência que já foi, o fato de o seraí escolher seus heróis, baseia-se existencialmente na decisão antecipa-dora, porque é nela que se escolhe
a escolha que liberta para a sucedaneidade da luta e para a fidelidade àquilo que deve ser repetido" (Ibid.
§ 74). Isso quer dizer que a decisão autêntica, em que consiste a historicidade da existência humana, é
uma R. ou, pelo menos (como Heidegger diz no mesmo trecho), uma réplica de possibilidades passadas.
2. Na filosofia da ciência, o conceito de R. é empregado para expressar o fundamento das proposições
indutivas, que (segundo Hume) seriam a expressão da R. de casos (cf. HUME, Inq. Cone. Underst., V, 1).
Desse ponto de vista, a R. muitas vezes foi considerada a justificação das proposições universais. K.
Popper criticou essa doutrina, que ele chama "doutrina do primado
da R." (The Logic cf Scientific Discovery, 1959, pp. 420 ss.) (V. INDUÇÃO; TEORIA).
REPRESENTAÇÃO (lat. Repraesentatio, in. Re-presentation; fr. Représentation; ai. Vorstellung; it.
Rappresentazioné). Vocábulo de origem medieval que indica imagem (v.) ou idéia ([v.] no 2a
sentido), ou
ambas as coisas. O uso desse termo foi sugerido aos escolásticos pelo conceito de conhecimento como
"semelhança" do objeto. "Representar algo" — dizia S. Tomás de Aquino — "significa conter a
semelhança da coisa" (De ver., q. 7, a. 5). Mas foi principalmente no fim da escolástica que esse termo
passou a ser mais usado, às vezes para indicar o significado das palavras. (Cf., p. ex., GRA-ZIANO DI
ASCOLI, Perihermenias, 2.) Ockham distinguia três significados fundamentais: "Representar tem vários
sentidos. Em primeiro lugar, designa-se com este termo aquilo por meio do qual se conhece algo; nesse
sentido, o conhecimento é representativo, e representar significa ser aquilo com que se conhece alguma
coisa. Em segundo lugar, por representar entende-se conhecer alguma coisa, após cujo conhecimento
conhece-se outra coisa; nesse sentido, a imagem representa aquilo de que é imagem, no ato de lembrar.
Em terceiro lugar, por representar entende-se causar o conhecimento do mesmo modo como o objeto
causa o conhecimento" (Quodl., IV, q. 3). No primeiro caso, a R. é a idéia no sentido mais geral; no
segundo, é a imagem; no terceiro, é o próprio objeto. Esses são, na realidade, todos os possíveis
significados do termo, que voltou a ter importância com a noção cartesiana de idéia como "quadro" ou
"imagem" da coisa (Méd., III) e foi difundido sobretudo por Leibniz, para quem a mônada era uma R. do
universo (Monad., § 60). Inspirado nessa doutrina, Wolff introduziu o termo Vorstellung, para indicar a
idéia cartesiana, no uso filosófico da língua alemã (Vernünftige Ge-danken von Gott, der Welt und der
Seele des Menschen, 1719, I, §§ 220, 232, etc). Deve-se a Wolff a difusão do uso desse termo nas outras
línguas européias. Kant estabeleceu seu significado generalíssimo, considerando-o gênero de todos os
atos ou manifestações cognitivas, independentemente de sua natureza de quadro ou semelhança (Crít. R.
Pura, Dialética, livro I, seç. I), e foi desse modo que o termo passou a ser usado em filosofia. Hamilton
defendia o uso dessa palavra também em inglês (Lectures on Logic, 2
a
ed., 1966, I, p. 126).
REPRESENTATIVO
854
RESPEITO
Mas neste sentido, os problemas inerentes à R. são os mesmos que inerem ao conhecimento em geral (v.
CONHECIMENTO) e à realidade que constitui o termo objetivo do conhecimento (v. REALIDADE), OU, em
outra direção, os concernentes à relação entre as palavras e os objetos significados (quanto a isso, v.
SIGNO; SIGNIFICADO) .
REPRESENTATIVO (in. Representative, fr. Re-présentatif, ai. Vorstellend; it. Rappresentativó). 1. O
sentido deste adjetivo é mais limitado que o do substantivo correspondente, uma vez que contém
referência ao caráter de "semelhança" ou "quadro", excluído por alguns dos significados do substantivo.
Assim, "idéia R." é a idéia que se concebe como imagem ou reprodução de seu objeto. Diz-se que o
conhecimento tem natureza R. quando se acha que ele constitui imagem ou cópia do objeto.
2. Emerson chamou de homens R. aqueles que Hegel chamava de "indivíduos da história universal" ou
outros românticos chamavam de "heróis": homens que são símbolos e, ao mesmo tempo, instrumentos de
realização das aspirações de todos os homens {Representative Men, 1850).
3. No sentido político, sistemaR. é o sistema que se baseia no princípio de delegação de certos poderes
políticos a alguns cidadãos, feita por uma parte dos cidadãos.
REPUGNÂNCIA. O mesmo que incompatibilidade (v. COMPATIBILIDADE).
RES DE RE NON PRAEDICATUR. Máxima de Abelardo (citada por JOÃO DE SALISBURY, Metalogicus, II, 17), segundo a qual o universal não pode ser uma coisa nem uma palavra, mas somente uma
expressão {sermó), uma vez que só a expressão pode ser predicado de várias coisas (v. UNIVERSAL).
RESÍDUO FENOMENOLÓGICO (ai. Pháno-menologische Residuum). Foi esse o nome que Husserl
deu ao ser da consciência que "não é atingido em sua essência absoluta pela neutralização
fenomenológica", isto é, pela epoché {Ideen, I,§ 33).
RESÍDUOS, MÉTODO DOS (in. Method of residues-, fr. Méthodedes résidus-, ai. Rückstandsmethode, it. Método dei residui). Um dos quatro métodos da pesquisa experimental enumerados por
Stuart Mill, mais precisamente o expresso pela regra: "Uma vez subtraída de um fenômeno a parte que,
através de deduções anteriores, é identificada como efeito de determinados antecedentes, o resíduo do
fenômeno é o efeito
dos antecedentes restantes" {Logic, III, 8, § 5)
(V. CONCOMITÂNCIA; CONCORDÂNCIA; DIFERENÇA).
RESÍDUOS E DERIVAÇÕES (in. Residues and derivations, fr. Résidus et dérivations-, it. Residui e
derivaziont). Com estes termos, Vilfredo Pareto designou os dois fatores das teorias não científicas
correspondentes às afirmações experimentais e às deduções lógicas das teorias científicas. Os resíduos
são os instintos, os sentimentos, os interesses, etc, que constituem os materiais das teorias não científicas;
as derivações são as sistematizações lógicas ou pseudológicas dadas a esse material {Trattato di
sociologia generale, 1916, §§ 803, 750, 210, 1397). (Cf. a discussão desta doutrina em TALCOTT
PARSONS, The Structure of Social Action, 2- ed., 1949, pp. 196 ss.)
RESPEITO (gr. oriôúç; lat. Respectus-, in. Res-pect; fr. Respect; ai. Achtung; it. Rispettó).
Reconhecimento da dignidade própria ou alheia e comportamento inspirado nesse reconhecimento.
Demócrito foi o primeiro a transformar o R. em princípio da ética: "Não deves ter para com os outros
homens mais R. que para contigo mesmo, nem agir mal quando ninguém o saiba mais do que quando
todos o saibam; deves ter para contigo mesmo o máximo R. e impor à tua alma a seguinte lei: não fazer o
que não deve ser feito" {Fr. 264, Diels). No discurso com que Protágoras, no diálogo homônimo de
Platão, expõe a origem da sociedade humana, diz-se que "temendo que nossa estirpe se extinguisse, Zeus
ordenou que Hermes trouxesse o R. recíproco e a justiça para o meio dos homens, a fim de que esses
fossem princípios ordenadores das cidades, criando entre os cidadãos vínculos de benevolência" {Prot.,
322 e). O R. recíproco e a justiça são, assim entendidos, os dois ingredientes fundamentais da "arte
política", que é a técnica de vida em comunidade.
Aristóteles, porém, incluiu o R. entre as emoções, excluindo-o das virtudes {Et. nic, II, 7, 1108 a 32), e o
opôs ao temor {Ibid., 10, 9, 1179 b 11). Kant também o reduziu à esfera das emoções, considerando-o,
porém, como um sentimento suigeneris, aliás como o único sentimento moral e não patológico. O
sentimento de R. "é produzido apenas pela razão. Não serve ao juízo das ações nem como fundamento da
lei moral objetiva, mas simplesmente como móbil paru transformar essa lei em máxima". O R. sempre se
refere às pessoas, nunca às coisas; é próprio do ser racional finito porque supõe a ação negativa da razão
sobre a sensibi-
RESPONSABILIDADE
855
RESSENTIMENTO
lidade, portanto a própria sensibilidade. Por isso, "não se pode atribuir R. à lei a um ser supremo ou a um
ser isento de sensibilidade, para quem, portanto, esta não pode ser obstáculo à razão prática" (Crít. R.
Pratica, 1,1, cap. III). Mesmo fora da filosofia, a noção de R. foi fortemente influenciada por essas
observações de Kant. Por R. entende-se comumente o empenho em reconhecer nos outros homens, ou em
si mesmo, uma dignidade que se tem o dever de salvaguardar.
RESPONSABILIDADE (in. Responsibility, fr. Responsabilité; ai. Verantwortlichkeit; it.
Responsabilitâ). Possibilidade de prever os efeitos do próprio comportamento e de corrigi-lo com base em
tal previsão. R. é diferente de imputabilidade (gr. arríct; lat. Imputatio; in. Imputability, fr. Imputabilitá;
ai. Zurechenbar-keit; it. Imputabilitá), que significa a atribuição de uma ação a um agente, considerado
seu causador. Platão aludia à noção de imputabilidade quando, a propósito da escolha que as almas fazem
de seu próprio destino, afirmava: "Cada qual é a causa de sua própria escolha, ela não pode ser imputada
à divindade" (Rep., X, 617 e; cf. Tim., 42d). Wolff definia a imputa-çâo como "o juízo em virtude do qual
o agente é declarado causa livre daquilo que se segue à sua ação, ou seja, do bem e do mal que dela
decorrem para ele mesmo ou para os outros" (Philosophiapractica, I, § 527). Essa definição era
simplesmente repetida por Kant: "A impu-tação (imputatio) no significado moral é o juízo em virtude do
qual alguém é considerado como autor (causa livre) de uma ação que está submetida a leis e se chama
fato" (Met. der Sitten, I, Intr., IV). A imputabilidade assim entendida é um conceito completamente
diferente do de responsabilidade.
O termo R. e seu conceito são recentes: aparecem pela primeira vez em inglês e em francês em 1787 (em
inglês, aparecem em Federalist de Alexandre Hamilton, f. 64; cf. R. MCKEON, Revue Internationale de
Philosophie, 1957, ne 1, pp. 8 ss.). O primeiro significado do termo foi político, em expressões como
"governo responsável" ou "R. do governo", indicativas do caráter do governo constitucional que age sob
controle dos cidadãos e em função desse controle. Em filosofia, o termo foi usado nas controvérsias sobre
a liberdade e acabou sendo útil principalmente aos empiristas ingleses, que quiseram mostrar a
incompatibilidade do juízo moral com a liberdade e a necessidade absolutas (cf.
HUME, Inq. Cone. Underst., VIII; STUART MILL, nota a Analysis ofthePhenomena oftheHuman MinddeJ.
MILL, 1869, II, p. 325). Na verdade, a noção de R. baseia-se na de escolha, e a noção de escolha é
essencial ao conceito de liberdade limitada (v. LIBERDADE). Está claro que, no caso da necessidade, a
previsão dos efeitos não poderia influir na ação, e que tal previsão não poderia influir na ação no caso da
liberdade absoluta, que tornaria o sujeito indiferentes previsão. Portanto, o conceito de R. inscreve-se em
determinado conceito de liberdade, e mesmo na linguagem comum chama-se alguém de "responsável" ou
elogia-se seu "senso de R." quando se pretende dizer que a pessoa em questão inclui nos motivos de seu
comportamento a previsão dos possíveis efeitos dele decorrentes (cf. o fascículo citado da Revue
Internationale de Philosophie, especialmente os artigos de McKeon, Abbagnano e Weil. Para a distinção
entre imputabilidade e R., cf. SCHELER, Der Formalismus in der Ethik, pp. 504 ss.) (v. INTENÇÃO).
RESPOSTA. V. AÇÃO REFLEXA. RESSENTIMENTO (in. Resentment; fr. Ressen-timent; ai.
Ressentiment; it. Risentimentó). Ódio impotente contra aquilo que não se pode ser ou não se pode ter.
Essa noção foi introduzida por Nietzsche em Genealogia da moral(.1887): "A revolta dos escravos na
moral contemporânea começa quando o R. se torna criador e gera valores: R. dos seres aos quais é negada
a verdadeira reação, a da ação, e que portanto só encontram compensação numa vingança imaginária"
(Genealogie der Moral, I, § 10). Segundo Nietzsche, a moral cristã é fruto do R., no sentido de ser
manifestação do ódio contra os valores da casta superior aristocrática, inacessíveis aos indivíduos
inferiores. Outra manifestação do R., ainda segundo Nietzsche, é a raiva secreta dos filósofos contra a
vida, em vista do que a filosofia foi até agora "a escola da calúnia": calúnia contra o mundo real ou
sensível, que os filósofos tentaram substituir pelo mundo ideal da metafísica e da moral (Wille zur Macht,
ed. 1901, §§ 259, 287). Por sua vez, Scheler insistiu na ação do R. no campo moral, embora negando que
ele possa ser aplicado à concepção cristã, à qual Nietzsche fazia alusão. Segundo Scheler, os produtos do
R. são o hu-manitarismo e o altruísmo modernos, e não o amor cristão. O conceito de igualdade entre os
homens, a afirmação do subjetivismo dos valores e a subordinação de todos os valores à utili-
RESTRIÇÃO
856
RETÓRICA
dade são outros três produtos do R. na vida moderna, segundo a concepção de Scheler. (Über
Ressentiment, 1912; trad. fr., 1958). (Cf. R. K. MERTON, Social Theory and Social Structure, 2-ed., 1957,
pp. 155 ss.).
RESTRIÇÃO (lat. Restriction in. Restrition, fr. Restriction; ai. Restriktion; it. Restrizioné). A partir da
lógica do séc. XIII, esse termo designa a limitação da extensão ou denotação de um termo comum, de tal
modo que ele se refira a um número menor de objetos designados (cf. Lamberto de Auxerre em PRANTL,
Geschichte derLogik, III, p. 31, nQ
130). Pedro Hispano distinguiu quatro espécies de R.: a que se faz com
o nome, como quando se diz "homem branco", em que o termo homem não supõe inon supponit pro) os
negros; a que se faz per participio, como quando se diz "o homem discute correndo"; e a que se faz por
implicação, como no caso "o homem, que é branco, corre" ÇSumm. log., 11.02). O processo inverso é a
ampliação ou extensão. Hamilton chamou de R. a relação de subalter-nação (v.).
RESTRIÇÃO MENTAL (lat. Reservatio, in. Reservation; fr. Restriction-, ai. Reservation; it. Riservd).
Um dos tópicos característicos da casuística católica do séc. XVII, bem como do probabilismo ou
laxismo: a tese de que uma mentira deliberada não compromete quem a pronuncia e não é pecado. Na IX
de suas Cartas provinciais (1656), Pascal fez uma crítica famosa a essa tese.
RETIDÃO (gr. òpOÓTnç; KocTÓpScixnç; Reti-tudo; in. Rectitude, fr. Rectitude, ai. Recht-lichkeit; it.
Rettitudiné). Critério ou medida racional das coisas, ou seja, o princípio para julgá-las. Platão diz, por
exemplo, que "a R. do nome é mostrar o que a coisa é" (Crat., 428 e), entendendo que este é o critério
para julgar acerca da justeza do nome. Com o mesmo sentido Aristóteles usa a expressão reta razão
(óp0òç XÓ70Ç), identificando-a com a sabedoria Et. nic, VI, 13, 1144 b 23). Mas foram sobretudo os
estóicos que deram significado técnico ao termo, ao designarem com ele "a conveniência ou bem, que
consiste em estar de acordo com a natureza" (CÍCERO, De finibus, III, 14, 45). Como o acordo com a
natureza é o critério de avaliação, a R. não é senão esse critério. Com sentido análogo, Duns Scot chamou
as proposições teológicas de rectitudines, porquanto fornecem o conhecimento do reto comportamento do
homem em face de Deus (Op. Ox., Prol., q. 4, n. 31).
Na filosofia contemporânea, Heidegger contrapôs a R. à verdade, entendida como revelação do ser.
Segundo Heidegger, foi Platão quem introduziu o conceito de verdade como R., ou seja, como critério do
juízo humano, preparando assim o terreno para o nascimento do subjetivismo moderno ("Die Zeit des
Welt-bildes", em Holzwege, 1950, p. 84).
RETÓRICA (in. Rhetoric; fr. Rhétorique, ai. Rhetorik, it. Retórica). Arte de persuadir com o uso de
instrumentos lingüísticos. A R. foi a grande invenção dos sofistas, e Górgias de Leontinos foi um de seus
fundadores (séc. V a.C). O diálogo de Platão intitulado Górgias insiste no caráter fundamental da R.
sofista: sua independência em relação à disponibilidade de provas ou de argumentos que produzam
conhecimento real ou convicção racional. O objetivo da R. é "persuadir por meio de discursos os juizes
nos tribunais, os conselheiros no conselho, os membros da assembléia na assembléia e em qualquer outra
reunião pública" iGórg., 452 e); portanto, o retórico é hábil "em falar contra todos e sobre qualquer
assunto, de tal modo que, para a maioria das pessoas, consegue ser mais persuasivo que qualquer outro
com respeito ao que quiser" ilbid., 457 a). Assim entendida, a R. pareceu a Platão mais próxima da arte
culinária que da medicina: mais apta a satisfazer o gosto do que a melhorar a pessoa {Ibid., 465 e). Platão
opôs a ela a R. pedagógica ou educativa, que seria "a arte de guiar a alma por meio de raciocínios, não
somente nos tribunais e nas assembléias populares, mas também nas conversações particulares" (Fedro,
26 1 a); no entanto, a R. assim entendida identifica-se com a filosofia. Portanto, Platão não atribuiu à R.
uma função específica. Isso, na verdade, foi feito por Aristóteles, que a considerou em íntima relação com
a dialética, como se fosse a contrapartida desta (Ret., I, 1, 1354 a. 1). Segundo Aristóteles, a R. é "a
faculdade de considerar, em qualquer caso, os meios de persuasão disponíveis" Ubid., I, 2, 1355 b 26).
Enquanto qualquer outra arte só pode instruir ou persuadir em torno de seus próprios objetos, a R. não se
limita a uma esfera especial de competência, mas considera os meios de persuasão que se referem a todos
os objetos possíveis ilbid., I, 2, 1355 b 26). Portanto, a R. haure da Tópica a consideração dos elementos
prováveis (os que têm capacidade de persuadir) e fornece as regras para o uso estratégico de tais
argumentos.
RETÓRICA
857
RETORNO
Esse conceito de R., estabelecido por Aristóteles, prevaleceu por muitos séculos. O humanismo ressaltou
a importância da R., na qual identificou, segundo o exemplo de Platão e Cícero, um valor substancial (cf.
Testi umanistici sulla R. de M. Nizolio, F. Patrizi, P. Ramus, org. por E. GARIN, P. ROSSI, E. VASOLI,
1953). Com P. Ramus, a tarefa da R. volta a ser substancialmente a que já lhe fora atribuída por
Aristóteles: "A técnica de persuasão, que Ramus estuda nos textos de Cícero, essa capacidade de usar a
linguagem para criar as expressões mais bem feitas e tecnicamente elaboradas, deve contudo estar sempre
unida ao exercício da filosofia, à qual está confiada a construção essencial de todos os princípios
cognitivos, com o uso da dialética. Por isso, à R., entendida no significado mais técnico e particular,
Ramus só concederá as duas funções propedêuticas da elocutio e da pro-nunciatio(...), ao passo que,
contra as opiniões de Quintiliano e de Cícero, atribuirá à dialética a tarefa de organizar a verdadeira
substância do discurso lógico" (E. VASOLI, Op. cit., pp. 117-118). Depois do florescimento do
Renascimento, a sorte da R. decaiu, chegando ao desaparecimento quase completo que a caracterizou no
séc. XIX. O dogmatismo racionalista iniciado por Descartes e adotado maciçamente no séc. XLX foi a
maior causa da decadência da retórica. Onde a razão é tudo e pode tudo, uma arte que busque seus
instrumentos da persuasão obviamente está deslocada. Por isso, não admira que, com o abandono do
dogmatismo racionalista, a R. volte hoje a ser homenageada como a arte clássica da persuasão, mas com a
ressalva de que deve levar em conta uma multiplicidade de condições. O Traité de Vargumentation de
Perelman e Olbrechts-Tyteca (1958) começa com as seguintes palavras: "A publicação de um tratado
dedicado à argumentação e sua vincula-ção com a velha tradição da R. e da dialética gregas constituem a
ruptura com a concepção de razão e raciocínio que se iniciou com Descartes e deixou marcas na filosofia
ocidental dos três últimos séculos." Não há dúvida de que essa observação é correta. Se a razão é infalível
e a investigação humana pode ser confiada às suas regras infalíveis em qualquer campo, não há lugar para
a R., que é a arte da persuasão. Mas, se, na esfera do saber humano, a parte do incerto, do provável, do
aproximativo é mais ou menos ampla, a persuasão pode ter alguma função e sua arte pode ser cultivada.
RETORNO (gr. è7UOTpo<pií; lat. Conversia, in. Return; fr. Retour, ai. Rúckgang). 1. No neoplatonismo antigo, o movimento graças ao qual a alma percorre de volta o processo de emanação,
reintegrando-se na sua origem (bem, causa, Deus, unidade) através da contemplação. Plotino dizia: "A
purificação é necessária à união: a alma une-se ao Bem, voltando para ele. Mas então à conversão seguese a purificação? Exatamente: o R. acontece depois da purificação. O R., então, é a virtude da alma? Sim,
é a virtude que do R. resulta e deriva para a alma. E o que é o R.? É a contemplação e a impressão que os
objetos inteligíveis produzem na alma, do mesmo modo como a visão é produzida pelos objetos visíveis"
{Enn., I, 2, 4). Proclos generalizava o conceito de R., atribuindo-o a todas as manifestações do ser, cada
uma das quais efetuaria o R. a seu modo. "Cada ser realiza seu R. apenas em relação à substância ou
também em relação à vida e ao conhecimento, visto que, ou recebeu da Causa apenas o ser, ou recebeu
também a vida, ou recebeu também a faculdade cognitiva. Se é apenas, realiza um R. à Substância; se
vive, retoma à vida; se conhece, retorna ao Conhecimento. Com efeito, do mesmo modo como procedeu
da Causa primeira, assim retorna para ela; e as medidas do R. são determinadas pelas medidas da
processão" (Jnst. theol., 39).
2. O Renascimento, ao retomar esta concepção generalizada de Proclos, considerou o R. aos princípios
como a única via de renovação radical da vida pessoal e social do homem. Pico delia Mirandola unia o
antigo conceito neoplatônico de R. aos princípios com o novo princípio de via de renovação {De ente et
uno, VII, Proem.). Maquiavel considerava a "redução aos princípios" a única via de renovação das
comunidades humanas, evitando-se a decadência e a derrocada, porquanto todos os princípios contêm em
si algo de bom, de que as coisas podem retirar vitalidade e força primitiva {Discursos, III, 1). E
Campanella via o caminho da renovação religiosa no princípio que ele julgava estar expresso no salmo
XXII: Quod reminiscentur et convertentur ad Dominum universifines terrae, cujas primeiras duas
palavras ele usava como título do texto em que anunciava a renovação religiosa {Quod reminiscentur,
1615). Outrossim, a própria Reforma protestante obedecia à exigência de voltar aos princípios,
remontando diretamente à fonte
RETRODUÇAO
858
REVOLUÇÃO
primitiva da religiosidade cristã, a Bíblia; por outro lado, a Contra-Reforma pretendeu reconduzir a Igreja
à força expansionista que ela possuía em suas origens. Outra forma do mesmo princípio é a do R. à
natureza, considerada na maioria das vezes como princípio ou origem dos seres. Nesta forma, o R. aos
princípios é uma exigência freqüente no pensamento dos séc. XVII e XVIII.
3. Eterno R. (v. CICLO DO MUNDO).
RETRODUÇAO (in. Retroductiori). Termo introduzido por Peirce para indicar o primeiro estágio da
investigação, que, assim como a indução, parte do conseqüente para o antecedente, mas é realizado de
forma espontânea, ou seja, sem método rigoroso ("Reality of God", em Values in a Universe of Chance,
pp. 368 ss.) (V. ABDUÇÃO).
RETROSPECÇÃO (in. Retrospection; fr. Ré-trospection-, it. Retrospezionè). Bergson designou com
esse termo a tendência a "relegar as realidades atuais para o passado, para um estado de possibilidade ou
virtualidade" (.Lapensée et le mouvant, 3
a
ed., 1934, p. 26).
REVELAÇÃO (in. Revelation; fr. Révélation; ai. Offenbarung; it. Rivelazioné). Manifestação da
verdade ou da realidade suprema aos homens. A R. foi entendida de duas maneiras: I
a como R. histórica;
2- como R. natural.
I
a É histórica a R. que toda religião positiva adota como fundamento. Consiste na iluminação com que
foram agraciados alguns membros da comunidade, cuja tarefa teria sido encaminhar a comunidade para a
salvação. Neste sentido, a R. é um fato histórico, ao qual se atribui a origem da tradição religiosa.
2
a
A R. natural é a manifestação de Deus na natureza e no homem. Às vezes essa forma de R. é admitida
ao lado da outra, outras vezes é negada ou subordinada à outras. Só o conceito de R. natural tem valor
filosófico, sendo o outro especificamente religioso. Contudo a filosofia hauriu o conceito de realidade
natural e humana como manifestação de um princípio sobrenatural ou divino da própria religião, sendo
esse conceito típico das filosofias que têm caráter ou finalidade religiosa. Na Antigüidade, esse conceito
pertenceu aos neoplatônicos, para quem o mundo, como produto da emanação divina, revela, pelo menos
parcial ou imperfeitamente, a natureza divina que o produz. Desse ponto de vista, Scotus Erigena
chamava de teofania (v.) o processo de descida de Deus
ao homem e de subida do homem a Deus; também chamava de teofania toda a obra da criação, porquanto
ela manifesta a substância divina que se torna sensível nela e através dela (De divis. nat., I, 10; V, 23).
Este conceito reapareceu com freqüência na história da filosofia, mas a maior recorrência se deu na
filosofia do romantismo (v.). Fichte, p. ex., dizia: "O saber é a existência, a manifestação, a perfeita
imagem da força divina" (Grundzüge der gegen-wártigen Zeitalters, 1806, LX). Este pensamento domina
também as filosofias de Scheling e de Hegel. No entanto, cumpre observar que nelas a R. não é apenas
manifestação: é também — como dizia Fichte — existência (isto é, realização) de Deus. É essa a
característica específica assumida pelo conceito de R. no romantismo e conservada de maneira mais ou
menos decisiva nas filosofias da R. que constituem a segunda fase do romantismo e têm como lema a
defesa da tradição. As filosofias de Maine de Biran, Rosmini, Gioberti, Mazzini partem todas do princípio
de que a consciência é a revelação de Deus. A propósito, Maine de Biran nada mais fazia que exprimir
uma convicção bastante difundida ao afirmar que a R. não é apenas externa (tradição oral ou escrita), mas
é também interna ou da consciência, visto que ambas procedem diretamente de Deus (CEuvres, ed.
Naville, III, p. 96).
O conceito de R. foi adotado como fundamento da filosofia de Heidegger, mas sem o tom religioso do
séc. XIX. A R. do ser, segundo Heidegger, nunca é perfeita e exaustiva porque o ser se esconde ao mesmo
tempo em que se revela: "O ser subtrai-se a si mesmo enquanto se revela no ente. Assim, o ser,
iluminando o ente, ao mesmo tempo o desvia e o encaminha para o erro" (Holzwege, p. 310). Segundo
Heidegger, a R. do ser ocorre através da linguagem, que não é instrumento humano, mas o próprio ser em
sua R. (Brief über den Hu-manismus, p. 81). Por outro lado, a concepção da linguagem como R. hoje não
pertence apenas a Heidegger (v. LINGUAGEM), O que é mais uma prova da persistência em filosofia do
conceito teológico de revelação.
REVERSÍVEL (in. Reversible, fr. Réversible, ai. Umkehrbar, it. Reversibilé). São qualificados com este
termo os processos que não têm sentido definido (V. IRREVERSÍVEL).
REVOLUÇÃO (in. Revolution; fr. Révolution, ai. Revolution; it. Rivoluzioné). Violenta e rápida
destruição de um regime político, ou mudança
RIGORISMO
859
MTSCHIIANISMO
radical de qualquer situação cultural. Neste segundo sentido fala-se de "R. filosófica", "artística",
"literária", "dos costumes", etc, ou também de "R. copernicana". Mas está claro que, neste sentido, o uso
da palavra visa somente a ressaltar a importância da mudança ocorrida, e não tem significado preciso. O
único significado preciso do termo é o político, que teve início no séc. XVIII. R. propriamente ditas
foram a inglesa, a americana, a francesa e a russa, mas às vezes também são chamadas de R.
transformações políticas que tiveram menor importância na história geral do mundo, apesar de serem
marcos fundamentais na história de determinado país.
RIGORISMO (in. Rigorism; fr. Rigorisme, ai. Rigorismus; it. Rigorismó).Na terminologia religiosa do
séc. XVIII, R. opõe-se a laxismo e designou o ponto de vista de todos aqueles que (especialmente
jansenistas e padres do oratório) hostilizavam o princípio de moral relaxada (cf. BAYLE, Dictionnaire
historique et critique, v. "Rigoristes"). Segundo Kant, foram comu-mente chamados de rigoristas os que
não admitiam "nenhuma neutralidade moral {adia-phora) nem nos atos nem nos caracteres humanos",
enquanto os outros eram chamados de latitudinários{Religion, I, Observação). O próprio Kant, porém, na
mesma passagem, demonstra aceitar pessoalmente o princípio rigo-rista, de tal modo que, não sem razão,
falou-se e continua-se falando de "R. moral" com referência à doutrina moral kantiana.
RISCO (gr. KÍVÔWOÇ; in. Risk, fr. Risque, ai. Wagniss, Gefahr, it. Rischió). Em geral, o aspecto
negativo da possibilidade, o poder não ser. Essa noção é freqüente nas filosofias que reconhecem o
possível, tais como nas de Platão e dos existencialistas contemporâneos. Aristóteles considerava o R.
como "o aproximar-se daquilo que é terrível" {Ret., II, 5, 1382 a 33). Para Platão, o R. era belo e inerente
à aceitação de certas hipóteses ou crenças {Fed., 114 d). No existencialismo, o R. é considerado inerente à
escolha que o eu faz de si mesmo e a toda decisão existencial (cf. JASPERS, Phil., II, pp. 180, 403, etc). A
aceitação do R. implícito nessa escolha é um dos pontos fundamentais do existencialismo contemporâneo:
"A pretensão implícita na decisão baseia-se numa indeterminação efetiva, ou seja, na possibilidade de que
as coisas se passem de maneira diferente daquilo que eu decido; mas também se baseia no fato de eu, que
decido,
assumir esse R., bem como na consideração de todas as possíveis garantias que eu possa obter
(ABBAGNANO, Introduzione aWesistenzialismo, 4
a
ed., 1957, I, 3).
RISO. V. CÔMICO.
RITMO (in. Rhythm- fr. Rythme, ai. Rhythmus, it. Ritmo). Alternância de fenômenos opostos no mesmo
processo. Este é o significado atribuído ao termo pelo positivismo, que o utilizou pela primeira vez de
modo específico, estendendo seu significado primitivo de movimento regularmente recorrente. Spencer
falou de uma lei do R., segundo a qual o máximo e o mínimo, a queda e a elevação, alternam-se no
desenvolvimento de todos os fenômenos; essa lei seria um dos princípios fundamentais da evolução
{FirstPrincipies, II, cap. 10). Dessa mesma lei falaram Ardigó {Op., II, p. 227; V. pp. 232, etc.) e, mais
recentemente, Whitehead: "No modo do ritmo, uma série de experiências que formam determinada
sucessão de contrastes obteníveis no âmbito de um método preciso é regulada de tal maneira que o fim de
um ciclo é o estágio que antecede o início de um outro ciclo semelhante. O ciclo é tal que, ao completarse, produz as condições para sua simples repetição" {The Function of Reason, 1929, cap. I, trad. it., p. 25;
cf. The Aims of Education, cap. II, III).
RITO (in. Rite, fr. Rite, ai. Ritus; it. Rito). Técnica mágica ou religiosa que visa a obter sobre as forças
naturais um controle que as técnicas racionais não podem oferecer, ou a obter a manutenção ou
conservação de alguma garantia de salvação em relação a essas forças. O conceito de R. como "prática
relativa às coisas sagradas" foi esclarecido por Durkheim {Formes élémentaires de Ia vie religieuse, 1912,
passim) (cf. T. PARSONS, The Structure of Social Action, 2
a
ed., 1949, pp. 420 ss., 673 ss., etc; cf.
RELIGIÃO).
RITSCHLIANISMO(in. Ritschlianism, fr. Rits-chlianisme, ai. Ritschlianismus, it. Ritschilianis-mo).
Corrente do cristianismo protestante do séc. XIX, iniciada por Alberto Ritschl (1822-89), segundo a qual
a religião baseia-se exclusivamente no sentimento e na revelação interior; essa revelação se concretiza
especialmente nos juízos de valor, que são independentes dos fatos e elevam o homem para uma esfera
superior à de sua limitação empírica. Ao fortalecer a revelação do sentimento interior, a comunidade dos
fiéis realiza as exigências dessa revelação; o reino de Deus realiza-se nela (cf. K.
ROMANTISMO
860
ROMANTISMO
BARTH, Die protestantische Theologie in 19, Jahrhundert, 1947).
ROMANTISMO (in. Romanticism, fr. Roman-tisme, ai. Romanticismus-, it. Romanticismó). Designa-se
com este nome o movimento filosófico, literário e artístico que começou nos últimos anos do séc. XVIII,
floresceu nos primeiros anos do séc. XIX e constituiu a marca característica desse século. O significado
comum do termo "romântico", que significa "sentimental", deriva de um dos aspectos mais evidentes
desse movimento, que é a valorização do sentimento, categoria espiritual que a Antigüidade clássica
ignorara ou desprezara, cuja força o séc. XVIII iluminista reconhecera, e que no R. adquiriu valor
preponderante. Essa grande valorização do sentimento é a principal herança recebida do movimento
Sturm und Drangiv.), que constitui a tentativa de, através da experiência mística e da fé, superar os limites
da razão humana, reconhecidos pelo ilumi-nismo. Segundo os filósofos do Sturm und Drang, Haman,
Herder e Jacobi, pode-se obter com a fé o que a razão não é capaz de dar, sendo a fé entendida como fato
de sentimento ou de experiência imediata. Mas, precisamente por isso, para os seguidores do Sturm und
Drang (entre os quais estiveram Goethe e Schiller, na juventude) a razão continuava sendo o que fora para
o Iluminismo: uma força humana limitada, capaz de transformar o mundo gradualmente, mas que não é
absoluta nem onipotente, estando, pois, sempre mais ou menos em conflito com o mundo e em luta com a
realidade que se destina a transformar. Do Sturm und Drang passa-se para o R. somente quando esse
conceito de razão é abandonado e começa-se a entender como razão uma força infinita (onipotente) que
habita o mundo e o domina, constituindo sua própria substância. O princípio da autoconsciência (v.),
infinidade da consciência que é tudo e faz tudo no mundo, é fundamental no R., e dele derivam os
aspectos relevantes do movimento. Fichte foi o primeiro a identificar a razão com o Eu infinito ou
Autoconsciência Absoluta, fazendo dele a força pela qual o mundo é produzido. A infinidade, nesse
sentido, era de consciência ou de potência, e não de extensão ou duração; seu modelo encontrava-se em
conceitos da filosofia neoplatônica, especialmente em Plotino. Hegel, a propósito, opunha o falso infinito,
ou mau infinito, que é diferente do finito, isto é, da realidade ou do mundo e se opõe a ele e tenta
transformá-lo
ou superá-lo, ao verdadeiro infinito, que se identifica com o finito, com o mundo, e se realiza nele e por
ele. Este infinito é um Princípio espiritual criativo: aquele que Fichte chamou de Eu, Schelling de
Absoluto e Hegel de Idéia. Mas o infinito, ou melhor, a infinidade da consciência pode ser entendida de
duas maneiras. Em primeiro lugar, como atividade racional, que se move de uma determinação para outra
com necessidade rigorosa, de tal forma que qualquer determinação pode ser deduzida da outra de modo
absoluto e apriori. É este o conceito de infinidade de consciência encontrado em Fichte, Schelling e
Hegel (quanto ao segundo, apenas numa primeira fase de sua filosofia). Em segundo lugar, a infinidade
de consciência pode ser entendida como atividade livre, amorfa, privada de determinações rigorosas, e tal
que se coloca continuamente além de qualquer de suas determinações: neste sentido a infinidade de
consciência é o sentimento. O sentimento é o infinito na forma do indefinido, e foi desta forma que
Schleiermacher e a chamada escola romântica (F. Schlegel, Novaiis, Tieck e outros) reconheceram a
infinidade da consciência.
De fato, o R. literário começou com a obra de Schlegel (1772-1829), que, entre 1798 e 1800, publicou em
colaboração com o irmão o periódico Athenaeum, primeiro porta-voz da escola romântica. Schlegel
apontava explicitamente Fichte como iniciador do movimento romântico, como descobridor do conceito
romântico de infinito, mas interpretava o infinito como algo exterior e superior à racionalidade, como
infinidade de sentimento. O mesmo conceito do infinito aparece no poeta e literato Ludwig Tieck e em
Novaiis: este sustentava um idealismo mágico, segundo o qual o mundo não passa de uma grande obra de
poesia. A essa mesma corrente pertence o teólogo Frie-drich Schleiermacher (1768-1834), que definiu a
religião como "sentimento do infinito".
Nesta interpretação do princípio de infinito baseia-se a supremacia que por vezes o R. atribui à arte. Com
efeito, se o infinito é sentimento, revela-se melhor na arte que na filosofia, porque a filosofia é
racionalidade, ao passo que a arte apresenta-se aos românticos como "expressão do sentimento". Para
Schelling, que tendia a essa interpretação, a melhor manifestação do absoluto estava na arte, o mundo era
uma espécie de poema ou de obra artística cujo autor seria o absoluto, para o homem a expe-
ROMANTISMO
861
ROMANTISMO
riência artística era o único meio eficaz de aproximar-se do absoluto, ou seja, do modo como o absoluto
deu origem ao mundo.
Quando o movimento romântico se difundiu fora da Alemanha, foi exatamente essa a sua bandeira. O R.
de Madame de Staêl e de Chateaubriand consiste sobretudo na exaltação dos valores do sentimento, e foi
com essa mesma forma que o R. encontrou expressão na Itália.
Essas duas interpretações da autoconsciên-cia muitas vezes se opuseram; Hegel, principalmente, abriu
polêmica contra a primazia do sentimento. No conjunto, porém, é sobretudo nessa oposição e nessa
polêmica que consiste a característica fundamental do R. No entanto, pertence apenas à escola do
sentimento um dos aspectos mais evidentes do R.: a ironia, que representa a impossibilidade de a
consciência infinita levar a sério e considerar sólidos os seus produtos (natureza, arte, o eu), nos quais vê
apenas suas próprias manifestações provisórias.
São, porém, caracteres comuns e fundamentais de todas as manifestações do R. o otimismo, o
providencialismo, o tradicionalismo e o titanismo. Otimismo é a convicção de que a realidade é tudo
aquilo que deve ser, e de que é em todos os momentos racionalidade e perfeição. É devido a esse
otimismo que o R. tende a exaltar a dor, a infelicidade e o mal, pois a infinidade do espírito também se
manifesta nesses aspectos da realidade, superando-os e conciliando-os em sua perfeição. Hegel apresentanos o mundo romântico na felicidade de sua perfeita pacificação racional. Schopenhauer apresenta-o na
infelicidade de suas oposições irracionais, mas ainda assim satisfeito por reconhecer-se nesse contraste. A
vontade irracional de Schopenhauer é um princípio tão otimista quanto a razão absoluta de Hegel.
Com o otimismo metafísico do R. relaciona-se seu providencialismo histórico. A história é um processo
necessário, no qual a razão infinita se manifesta ou se realiza; por isso, nela nada há de irracional ou
inútil. Nesse aspecto, o R. opõe-se radicalmente ao iluminismo. Este último contrapõe tradição e história:
à força da tradição, que tende a conservar e perpetuar preconceitos, ignorâncias, violências e fraudes,
opõe a história como reconhecimento dessas coisas tais quais são, e como esforço racional para libertar-se
delas. Para o R., porém, tudo o que a tradição lega é manifestação da Razão
Infinita: é verdade e perfeição. Portanto, o espírito iluminista é crítico e revolucionário; o espírito
romântico é exaltativo e conservador. O conceito de história como projeto providencial do mundo domina
toda a filosofia do séc. XIX; mesmo no séc. XX, a filosofia só consegue libertar-se desse conceito através
de amargas experiências históricas e culturais. É nessa concepção de história que mais se manifesta a
afinidade entre idealismo e positivismo no sentido comum de romantismo. Comte tem o mesmo conceito
de história de Fichte, Schelling — mais tarde —, Croce e dos epígonos do romantismo no séc. XX. A
história como manifestação de um princípio infinito (Eu, Autoconsciência, Razão, Espírito, Humanidade,
ou qualquer outro nome que se lhe dê) é racionalidade total e perfeita, não conhecendo imperfeição ou
mal. A forma extremada desse conceito de história está em Hegel (repetido por Croce): a história não é
progresso ao infinito, visto que, se assim fosse, cada um de seus momentos seria menos perfeito que o
outro; ela é infinita perfeição de todos os seus momentos. A contraposição hegeliana entre o "verdadeiro
infinito" e o "mau infinito" não significa outra coisa. E óbvio que, num conceito da história semelhante,
não há lugar para o indivíduo e suas liberdades, pelos quais o iluminismo se batera. Há lugar apenas para
os "heróis" ou "indivíduos da história cósmica", instrumentos de que a providência histórica se vale para
realizar astutamente seus fins.
Aspecto importante do providencialismo romântico é o tradicionalismo-. com efeito, a exaltação das
tradições e das instituições que a encarnam é um dos aspectos típicos do movimento romântico. A essa
atitude deveu-se a revalorização da Idade Média, que é característica do R. A Idade Média afigurara-se ao
iluminismo (assim como, antes, ao humanismo) como uma época de decadência e de barbárie, em que
haviam sido perdidos os valores humanos e racionais criados pela Antigüidade clássica. Para o R. não
existem épocas de decadência ou de barbárie porque toda a história é racionalidade e perfeição. Na Idade
Média, aliás, mais do que no mundo clássico, pode-se e deve-se ver — segundo o R. — a origem do
mundo moderno: assim, o retorno à Idade Média constitui uma de suas palavras de ordem. Em virtude
dessa mesma atitude, o R. alemão começou a exaltar as tradições originárias da nação alemã, surgindo a
primeira
ROMANTISMO 862
RUPTURA
forma de nacionalismo, que se difundiria e acabaria por tornar-se uma das marcas da cultura européia do
séc. XIX. De fato, o conceito de nação é composto por elementos tradicionais (raça, língua, costumes,
religião), que não podem ser negados ou renegados sem traição, pois constituem aquilo que a nação foi
desde sempre. Ao contrário, o conceito setecentista de povo era definido pela vontade e pelos interesses
comuns dos indivíduos. Tradicionalismo e nacionalismo fincam raízes no terreno comum do
providencialismo romântico.
Finalmente, um dos aspectos fundamentais e mais evidentes do R. é o titanismo. De fato, o culto e a
exaltação do infinito têm como contrapartida negativa a inaceitabilidade do finito ou a impossibilidade de
satisfazer-se com ele. Nessa inaceitabilidade (ou insatisfação) estão as raízes da atitude de rebeldia contra
tudo o que parece ser ou é limite ou regra e do desafio incessante a tudo o que, por sua finitude, parece
inferior ou inadequado ao infinito. Prometeu é adotado como símbolo desse titanismo, numa interpretação
muito distante do espírito do antigo mito grego. Para este, Prometeu era o homem que transgredira a lei
do destino para possibilitar a sobrevivência do gênero humano, sofrendo as conseqüências dessa
transgressão. Para o R., porém, é o símbolo do desafio e da rebeldia ao finito: atitudes cuja razão de ser
não está naquilo a que se opõem, mas apenas no fato de que aquilo a que se opõem não é o infinito. A
atitude titânica não conduz à crítica das situações de fato e ao esforço de transformá-las, pois não julga
que uma situação de fato seja ou possa ser superior ou preferível a outra; exaure-se num protesto
universal e genérico, e não pode empenhar-se em qualquer decisão concreta.
O culto e a exaltação do infinito, o fato de não se contentar com menos que a infinidade, constituem
características marcantes do espírito romântico. Como já foi dito, o próprio positivismo se enquadra nesse
espírito. Ele estende o conceito de progresso a toda a história do mundo: na verdade, é esse o sentido de
"evolução". Faz da história humana um progresso necessário e
infalível. E faz da ciência, que é sua manifestação humana preferida, o infinito da verdade, elegendo-a
como única diretriz dos homens em todos os campos.
As características assumidas pelo R. em política, arte e costumes estão intimamente ligados aos aspectos
ora esclarecidos. Em política, o R. é defesa e exaltação das instituições humanas fundamentais, nas quais
se personifica o Princípio infinito: Estado, Igreja, com tudo o que implicam. Em arte, busca a realização
do infinito através de formas grandiosas e dramáticas, em que os conflitos são levados ao extremo para
depois reconciliarem-se e pacificarem-se de maneira igualmente extremada e definitiva. Nos costumes, o
amor romântico busca a unidade absoluta entre os amantes, sua identificação no infinito; em favor dessa
unidade ou identificação sacrifica o sentido autêntico da relação amorosa e sua possibilidade de constituir
a base para uma vida em comum (v. AMOR).
ROSMINIANISMO. São designadas com este termo as principais características da filosofia de Antônio
Rosmini Serbati (1797-1855), em especial: I
a
tradicionalismo, como preocupação em defender os valores
tradicionais e em justificar a tradição como produto ou manifestação de Deus; 2a
ontologismo-. tese
segundo a qual o espírito humano frui um conhecimento do ser imediato e indubitável, conquanto parcial,
sendo tal conhecimento a base de todo saber (v. ONTOLOGIA); 3
a
escolasticismo: concepção da filosofia
como instrumento para justificar as verdades da religião.
RUPTURA (ai. Zerrissenheit). Termo introduzido pelas filosofias existencialistas. Para Jaspers, a R. do
mundo se dá quando a busca da totalidade absoluta, que tudo abarca, desemboca numa multiplicidade de
perspectivas, cada uma das quais é relativa a determinado ponto de vista e nenhuma, portanto, pode
eqüivaler a um mundo {Phil., I, pp. 64 ss.). Segundo Hei-degger, a R. do mundo ocorre com a ciência e a
técnica, que organizam a separação entre o homem e a natureza (Erláuterungen zu Hólder-lin, pp. 271
ss.).
s
SABEDORIA1
(gr. 9póvr|crtç; lat. Sapientia, Prudentia; in. Wisdom, fr. Sagesse, ai. Weis-heit; it.
Saggezzà). Em geral, a disciplina racional das atividades humanas: comportamento racional em todos os
domínios ou virtude de determinar o que é bom e o que é mau para o homem. O conceito de S. refere-se
tradicionalmente à conduta racional nas atividades humanas, ou seja, à possibilidade de dirigi-las da
melhor maneira. Não é o conhecimento de coisas elevadas e sublimes, afastadas da humanidade comum,
o que é expresso por sapientia, mas o conhecimento das atividades humanas e da melhor maneira de
conduzi-las. A superioridade atribuída à prudentia ou à sapientia demonstra a interpretação fundamental
que se tem de filosofia: o predomínio da segunda é típico do conceito de filosofia como contemplação
pura; o primado concedido à prudentia expressa o conceito de filosofia como guia do homem no mundo
(v. FILOSOFIA, II).
Em Aristóteles, encontra-se uma distinção nítida entre dois tipos de sabedoria, que não se encontra em
Platão. Este chama de sofia (oo(pía) a ciência que preside à ação virtuosa (Rep., IV, 443 e; cf. 428 b), que
corresponde à prudentia. Diz que ela é "a mais elevada e, sem a menor dúvida, a mais bela, pois trata da
organização política e doméstica, à qual se dá o nome de prudência e justiça" (OBanq., 209 a). As formas
de saber que constituem fins em si mesmas são alheias à concepção filosófica de Platão. Esse saber, no
entanto, é exaltado por Aristóteles, que o considera a forma mais elevada e divina: o outro tipo de
sabedoria restringe-se a coisas meramente humanas, portanto, de menor valor. Desse ponto de vista, ela é
definida como "hábito prático e racional que diz respeito ao que é bom ou mau para o homem" (Et. nic,
VI, 5, 1140 b 4). Mas "o homem não
é o melhor ser do mundo" (Ibid., VI, 7, 1141 a 21); é um ser mutável, e a S. que lhe diz respeito é também
mutável, ao passo que a verdadeira sabedoria é sempre a mesma {Ibid., 1141 a 20 ss.). Portanto,
Aristóteles põe esse tipo de sabedoria acima de tudo, sendo seu objeto aquilo que não pode mudar nem
ser diferente do que é: o necessário.
A distinção e a oposição feitas por Aristóteles mantiveram-se através dos séculos, e o modo de entender
os dois tipos de S. (que em algumas línguas são indicadas pela mesma palavra) revela a orientação geral
de determinada filosofia: para a contemplação ou para a ação. Após Aristóteles, prevaleceu o ideal de
sabedoria prática. Epicuro dizia que a S., "de que nascem todas as virtudes, é até mais preciosa que a
filosofia" (CartasaMenec, 132). Os estóicos identificavam esse tipo de S. com virtude total, da qual todas
as outras provêm (DIÓG. L., VII, 125-26). O neoplatonismo, por sua vez, exaltava o outro tipo de
sabedoria (PLOTINO, Enn., V, 8, 4), ao passo que S. Tomás reproduzia essa distinção, chamando a S.
prática de prudentia e considerando-a "conselheira em todas as coisas referentes à vida humana, bem
como o fim precípuo da vida humana" (S. Th., II, 1, q. 57, a 4). O mundo moderno dá preferência ao ideal
prático da S., que retorna em Descartes (Princ. phil, pref.) e em Leibniz. Este último une, em sua
definição, o aspecto teórico e o prático: "a S. é o perfeito conhecimento de todos os princípios e de todas
as ciências, bem como da arte de aplicá-los" (De Ia sagesse, Op., ed. Erdmann, p. 673), mas a inclusão do
aspecto prático significa a refutação do ideal de sapientia. Ao mesmo âmbito pertence a definição de
Kant: "A S. consiste na concordância da vontade de um ser com seu objetivo final" (Met. der Sitten, II, §
45).
SABEDORIA2
864
SABEDORIA2
Hegel acentuava o caráter humano e terreno da S., ao falar de uma S. terrena(Weltweisheit), que o
Renascimento teria oposto como razão humana, à razão divina, à religião (Geschichte der Philosophie,
ed. Glockner, I, pp. 92 ss.). Schopenhauer acentua ainda mais o caráter terreno da S., entendendo por ela
"a arte de levar a vida da maneira mais agradável e feliz possível" (Aphorismen zur Lebensweisheit,
Pref.).
Para os filósofos contemporâneos a palavra S., em suas duas acepções, parece solene demais para que
eles se detenham na tarefa de esclarecer seu conceito. No entanto, para eles, assim como para os antigos,
a S. continua ligada à esfera dos afazeres humanos, e pode-se dizer que é constituída pelas técnicas
antigas ou novas de que o homem dispõe para a melhor conduta de vida.
SABEDORIA2
(gr. oocpíoi; lat. Sapientia-, in. Wisdom; fr. Sagesse, ai. Weisheit; it. Sapienzd). É o
conhecimento superior das coisas excelentes. Caracteriza-se: I
a
por ser o grau mais elevado de
conhecimento, ou seja, o mais sólido e completo; 2° por ter como objetivo as coisas mais elevadas e
sublimes, que são as coisas divinas.
Esse, pelo menos, foi o conceito inicial para distinguir os dois tipos de S., o que ocorreu em Aristóteles.
Até ele, e mesmo em Platão, o conceito era um só e identificava-se com o de sabedoria como conduta
racional da vida humana (cf. PLATÃO, Rep. 428 b; 4-33 e). Aristóteles distinguiu e contrapôs as duas
coisas: "A sofia é o mais perfeito dos saberes. Quem o detém deve saber não só o que deriva dos
princípios, mas também conhecer os princípios. Assim, a
5. pode ser chamada ao mesmo tempo de intelecto e ciência, e, encabeçando todas as ciências, será a
ciência das coisas mais excelentes" (Et. nic, VI, 7, 11 4 Ia 16). Intelecto e ciência têm aí o sentido
específico definido por Aristóteles: intelecto (voüç) como conhecimento direto dos princípios da
demonstração (Ibid., VI,
6, 1141 a 7), ciência como "hábito da demonstração" ou faculdade de demonstrar (Ibid., VI. 3 1139b 31).
Portanto, a S. (oocpía) é o conhecimento mais certo e perfeito, por ser, ao mesmo tempo, conhecimento
dos princípios e das demonstrações que deles resultam. Além disso, como tal, também é a ciência das
coisas mais elevadas e sublimes. "Por natureza, há outras coisas muito mais divinas que o homem, como
os astros luminosos de que se compõe o mundo. (...) Por isso se diz que Anaxágoras, Tales e outros
homens desse tipo são sábios, porque
não conhecem as coisas que lhes são úteis, mas as coisas excepcionais, maravilhosas, difíceis e divinas,
porém inúteis, visto que não indagam acerca dos bens humanos" (Ibid., VI, 7, 1041 b 1). Portanto, o
objeto específico da S. é o necessário, aquilo que não pode ser de outro modo (Ibid., 1041 b 11), ao passo
que a S. tem por objetivo as atividades humanas mutáveis e contingentes. Essa doutrina de Aristóteles
constitui um dos aspectos que mais acentuam a divergência entre ele e Platão, porquanto a filosofia de
Platão tem em mira a sabedoria humana, enquanto a de Aristóteles opõe a esta a sabedoria divina. A
afirmação do primado desse tipo de S. caracteriza as filosofias de tipo contemplativo, tanto quanto a
afirmação da superioridade da sabedoria prática caracteriza as filosofias orientadoras (v. FILOSOFIA, II).
Em vista do caráter "divino" da S. (oocpía), não admira que nas filosofias de fundo religioso da época
alexandrina e posteriores, ela tenha sido substancializada e entendida como uma espécie de intermediária
entre Deus e o mundo: um equivalente do logos (v.). Segundo Plotino, há uma S. que é substância, e
nenhuma outra S. é melhor que ela: "cria todos os seres, todos emanam dela; ela mesma é os seres que
nascem com ela e com ela se identificam, de tal maneira que S. e substância são uma única coisa''(Enn.,
V, 8, 4). Esta concepção já se encontrava no livro bíblico da Sabedoria, onde se diz: "É um vapor da
virtude divina e uma emanação sincera da luz de Deus onipotente. É esplendor da luz eterna, espelho
imaculado da majestade de Deus e a imagem de Sua bondade. Embora sendo una, pode tudo, e,
permanecendo em si, inova todas as coisas e transporta-se de nação a nação nas almas santas, que
constituem os amigos de Deus e os profetas" (Prov., VII, 25-27). Por outro lado, os gnósticos haviam
personificado a S., transformando-a na última emanação ou eon, que quer sair de seu estado de desejo e
alcançar o conhecimento direto do Pai (IRINEU, Adv. Haer., II, 5). Os próprios estóicos chamaram Deus,
como alma do mundo, de "perfeita S." (CÍCERO, Acad., I, 29).
A filosofia medieval, com S. Tomás, retoma o conceito aristotélico de S. Segundo ele, a S. tem em
comum com todas as ciências a capacidade de deduzir conclusões de princípios, mas também tem algo
mais que as outras ciências, "porquanto julga todas as coisas, não só quanto às conclusões, mas também
quanto
SABEDORIA POÉTICA
865
SÁBIO
aos primeiros princípios; assim, é uma virtude mais perfeita que a ciência" (S. Th., III, q. 57, a. 2, ad ls
).
Na filosofia moderna, esse termo conservou o significado de conhecimento perfeito, tanto por ser
completo quanto pela natureza de seu objeto.
SABEDORIA POÉTICA (it. Sapienza poética). No segundo livro de Ciência nova (1744), Viço deu esse
nome à cultura primitiva do gênero humano, que se basearia na sensibilidade, mais que na inteligência:
"A S. poética, que foi a primeira S. dos gentios, teve que começar de uma metafísica não racional e
abstrata, como a dos doutos de hoje, mas sentida e imaginada, que devia ser a daqueles primeiros homens,
assim como eram eles, de nenhum raciocínio mas de sentidos robustos e vigorosíssimas fantasias". Como
partes da S. poética, Viço fala de lógica poética, moral poética, economia poética, história poética, física
poética, cosmografia poética, astronomia poética, cronologia poética e geografia poética.
SABELIANISMO (in. Sabellianism; fr. Sa-bellianisme, ai. Sabellianismus; it. Sabellianis-mo). Doutrina
trinitária sustentada por Sabélio na primeira metade do séc. II d.C: insistindo na unidade da Substância
Divina, reduzia as Pessoas Divinas a três modos ou manifestações da Substância Única. Por isso, essa
doutrina foi chamada de modalismo (v.).
SABER (in. Knowing, To knoiv, fr. Savoir, ai. Wissen-, it. Saperé). Este verbo substantivado é usado com
dois significados principais:
l
e
Como conhecimento em geral, e neste caso designa: qualquer técnica considerada capaz de fornecer
informações sobre um objeto; um conjunto de tais técnicas; ou o conjunto mais ou menos organizado de
seus resultados. W. James aceitou a distinção estabelecida por J. Grote (Exploratiophilosophica, 1856, p.
60) entre conhecer uma coisa, uma pessoa ou um objeto qualquer (que significa ter certa familia-ridade
com esse objeto), e S. algo a respeito do objeto (o que significa ter dele um conhecimento talvez limitado,
mas exato, de natureza intelectual ou científica) {The Meaning of Truth, 1909, pp. 11-12). Mas essa
distinção difundiu-se especialmente na forma dada por Russell em famoso artigo de 1905: "A distinção
entre experiência direta iacquaintancè) e conhecimento sobre (knowledge about) é a distinção entre as
coisas que nos estão imediatamente presentes e as que nós alcançamos
apenas por meio de frases denotativas" ("On denoting", 1905, em Logic and Knowledge, 1956, p. 41). Tal
distinção constituiu um dos pontos altos da doutrina do Círculo de Viena; embora Carnap tenha
reconhecido desde logo suas dificuldades ("Testability and Meaning" in Readings in the Philosophy of
Science, 1953, pp. 48 ss.) ela continuou sendo e ainda é o pressuposto de muitas doutrinas, inclusive a de
Carnap (v. EXPERIÊNCIA).
2- Como ciência, ou seja, como conhecimento cuja verdade é de certo modo garantida (para este
significado v. CIÊNCIA).
SÁBIO (gr. acxpóç; lat. Sapiens; in. Sage, fr. Sage, ai. Weise, it. Saggio). A figura estereotipada do S. foi
traçada pela filosofia grega do período alexandrino por epicuristas, estóicos e céticos (sobretudo pelos
estóicos) e entrou para a tradição com certas características fundamentais. O caráter primordial e
fundamental que as três escolas atribuem ao S. é o de serenidade ou indiferença em relação às vicissitudes
ou aos movimentos humanos, ao que dão o nome de ataraxia, aponia ou apatia (v.). As outras
características são as seguintes:
I
a
Isolamento, como claro afastamento dos outros mortais, com os quais o S. nada tem em comum. Os
estóicos levaram esse afastamento ao limite extremo, admitindo duas espécies de homens, os que
praticam a virtude e os que não a praticam, dizendo que os primeiros são sábios e todos os demais,
loucos. 0- STOBEO, Ecl, II, 7, 11; 65, 12).
2- Impossibilidade de progresso, quem não é S. é tolo ou louco, e não pode haver S. que seja mais S. que
outro. Cícero diz: "Quem está imerso na água, mesmo que esteja tão perto da superfície a ponto de quase
emergir, não consegue respirar tanto quanto se estivesse ainda no fundo (...): da mesma maneira, quem
avançou um pouco em direção ao hábito da virtude não está menos sujeito à infelicidade do que quem não
avançou nem um pouco" (Definibus, III, 14, 48).
3
a Autarquia. Este caráter já foi exaltado por Aristóteles: "O justo ainda necessita de pessoas que possa
tratar com justiça, com as quais ser justo; o mesmo se diz do homem moderado, do corajoso e cada um
dos outros homens virtuosos. OS., ao contrário, pode contemplar sozinho, tanto mais quanto mais for S.;
talvez seja melhor quando tem colaboradores, contudo é totalmente auto-suficiente" {Et. nic, X, 7, 1177 a
30). No entanto, Aristóteles fazia alusão à ati-
SÁBIOS, SETE
866
SAGRADO ou SACRO
vidade contemplativa, à qual se limitava o S.; as escolas pós-aristotélicas estendem o caráter de autosuficiência do S. a todas as manifestações de sua vida, não limitada necessariamente à contemplação.
4
a Renúncia. Foi nesse caráter que os estéticos latinos, Epicteto, Sêneca e Marco Aurélio mais insistiram.
Em vista da distinção feita por Epicteto entre as coisas que o homem pode dominar (seus estados de
espírito), e as que ele não pode (as coisas exteriores), o S. deve renunciar às coisas externas e colocar o
bem e o mal unicamente nas que estão em seu poder (Manual, 31). Isso implica a renúncia a ocupar-se
das coisas e a aceitação da máxima "suporta e abstém-te" (A. GÉLIO, Noct. Att., XVII, 19, 6).
5
a Consciência. Esta característica foi acrescentada à figura do S. pelo neoplatonismo, que exaltou
principalmente a faculdade de olhar para dentro de si, extraindo tudo de si mesmo. Plotino diz: "O S.
extrai de si mesmo aquilo que manifesta aos outros: olha apenas para si: não só tende a unificar-se e a
isolar-se das coisas exteriores, mas também está voltado para si e encontra em si todas as coisas" (Enn.,
III, 8, 6; cf. I, 4, 4). Este movimento de olhar para si mesmo e encontrar tudo em si é a consciência (v.);
segundo este ponto de vista, é só no S. que a consciência se realiza e vive.
SÁBIOS, SETE (gr. Eo<piOTaí; in. Seven Sa-ges; fr. Sept Sages; ai. Sieben Weisen; it. Sette Saví). Esse
foi o nome dado a algumas personalidades da Antigüidade grega que expressaram sua sabedoria em
sentenças ou expressões brevíssimas; por esta última característica também receberam o nome de
gnômicos. Eles foram enumerados de várias maneiras pelos escritores antigos. Tales, Bias, Pítaco e Sólon
estão incluídos em todas as listas. Platão, que foi o primeiro a enumerá-los, acrescentou Cleóbulo, Míson
e Quílon (Prot., 343 a). A Tales atribui-se o ditado "Conhece-te a ti mesmo" (DIÓG. L., I, 40); a Bias
foram atribuídas as frases "A maioria é malvada" (Ibid. I, 88) e "Pelo fardo se conhece o homem"
(ARISTÓTELES, Et. nic, V, 1, 1029 b 1); a Pítaco, o ditado "Aproveita o dia de hoje" (DIÓG. L., I, 79); a
Sólon, a máxima "Leva a sério as coisas importantes" e a expressão "Não mais além" (Ibid., I, 60, 63); a
Cleóbulo, a máxima "O melhor é a medida" (Ibid., I, 93); a Míson, o ditado "Procura as palavras nas
coisas, e não as coisas nas palavras" (Ibid., I, 108); a Quílon, os ditados
"Cuida de ti mesmo" e "Não desejes o impossível" (Ibid, I, 70).
SACERDOTALISMO (in. Sacerdotalisni). Termo usado principalmente por escritores anglo-saxões para
designar a tendência a atribuir, em religião, a máxima importância ao aspecto eclesiástico e sacramentai,
em detrimento do aspecto interior e espiritual.
SACRIFÍCIO (in. Sacrifice, fr. Sacrifice, ai. Opfer, it. Sacrifício'). Destruição de um bem ou renúncia ao
mesmo, em honra à divindade. O S. é uma das técnicas religiosas mais difundidas. Seu objetivo é a
purificação de alguma culpa ou pecado: neste caso, é desinteressado, ou seja, não tem objetivo utilitário
imediato. Seu objetivo também pode ser a consagração, que é uma finalidade mais ou menos utilitária,
pois consiste em persuadir a divindade a dar garantias à coisa ou à pessoa que se consagra. Tanto a
purificação quanto a consagração na maioria das vezes têm caráter simbólico, no sentido de que a dádiva
sacrificada não tem apenas o valor econômico que a comunidade lhe atribui, mas também certa relação
simbólica com o objetivo (purificação ou consagração) da cerimônia sacrificai. Essas características
podem ser identificadas nas técnicas sacrificais de todas as religiões, seja qual for seu grau de
desenvolvimento ou de refinamento intelectual (cf. S. REINACH, Cultes, mytheset religions, 1905; E.
DURKHEIM, les formes élémentaires de Ia vie religieuse, 1912; A. LOISY, Essai historique sur le sacrifice,
1920; P. RADIN, Primitive Religion, 1937).
SAGACIDADE (gr. eíxruveoía; lat. Sagacitas; in. Sagacity, fr. Sagacité, ai. Sagazitüt; it. Saga-cia).
Perspicácia na investigação. Aristóteles identificou a S. com o ato de apreender (Et. nic, VI, 10, 1143 a
17), e Kant definiu-a como "o dom natural que consiste em julgar por antecipação (judicium praeviurrí)
onde pode ser encontrada a verdade e de aproveitar as menores circunstâncias para descobri-la" (Antr, I,
§56).
SAGRADO ou SACRO (gr. iepóç; lat. Sacer, in. Sacred; fr. Sacré, ai. Heilig; it. Sacro). Objeto religioso
em geral, ou seja, tudo o que é objeto de garantia sobrenatural ou que diz respeito a ela. Como essa
garantia às vezes pode ser negativa ou proibitiva, o S. tem caráter duplo, de santo e sacrílego: S. porque
prescrito e exaltado pela garantia divina, ou porque proibido ou condenado pela mesma garantia (cf.
DURKHEIM, Les formes élémentaires de Ia vie
SALTO
867
SANSIMONISMO
religieuse, 1912). R. Otto chamou estes dois aspectos, respectivamente, de fascinante e tremendo {Das
Heilige, 1917). Heidegger, interpretando uma poesia de Hõlderlin que identifica a natureza com o S.,
considerou o S. como raiz do destino dos homens e dos deuses: "O S. decide inicialmente, acerca dos
homens e dos deuses, quem serão, como serão e quando serão" {Erlüuteerungen zu Hõlderlin, 1943, pp.
73-74). Heidegger afirma também que "O S. não é S. porque divino, mas o divino é divino porque S."
{Ibid., p. 58).
SALTO (lat. Saltus; in. Leap, fr. Saut; ai. Sprung; it. Salto). Termo empregado por Kier-kegaard para
indicar a "passagem qualitativa", brusca e sem mediação de uma categoria para outra ou de uma forma de
vida para outra (p. ex., da vida ética para a vida religiosa) ou, em geral, de um estado para outro (p. ex.,
da inocência para o pecado, do pecado para a fé, etc). Kierkegaard opôs essa noção de S. à noção
hegeliana de mediação (v.) e ilustrou-a aproximando-a: 1Q
do entimema(v); 2
a
da analogia e da indução;
3
B
da teoria hegeliana. ls Entimema é o silogismo contraído, no qual se omite uma premissa e se passa
diretamente da premissa maior à conclusão ("Todos os animais são mortais, logo o homem é mortal")
(Diário, VI A, 33). Nesse sentido, a palavra S. é encontrada em Kant com o mesmo uso: "S. {saltus) na
dedução ou na prova é a conexão de uma premissa com a conclusão, de tal maneira que a outra premissa é
negligenciada" {Logik, 1800, § 91). 2o
A analogia estabelece uma relação entre coisas qualitativamente
diferentes e a indução passa do particular ao universal {Diário, V A, 74). 3a
A doutrina hegeliana sobre a
mudança quantitativa que provoca uma mudança qualitativa é a fonte autêntica do conceito
kierkegaardiano. Hegel dizia: "A água, com a mudança da temperatura, não só se torna mais ou menos
quente, mas passa pelos estados sólido, gasoso e líquido. Esses estados diferentes não nascem aos poucos,
mas o próprio processo gradativo de mudança na temperatura é por eles interrompido, e o aparecimento
de um novo estado é um salto. Qualquer mudança e qualquer morte, em lugar de ser um contínuo pouco a
pouco é um truncamento do pouco a pouco e um salto da mudança quantitativa para a mudança
qualitativa {Wissenschaft der Logik, I, seção III, cap. II, B; trad. it., pp. 418-419). Kierkegaard censura
Hegel por haver limitado este conceito ao domínio da lógica {DerBegriff
Angst, I, § 2; trad. it., p. 35 e nota). Jacobi, no entanto, usara a expressão salto mortale (em italiano) para
caracterizar a passagem da fé ao conhecimento filosófico {Werke, IV, pp. XL ss.), ao passo que Kant
utilizou a mesma expressão para indicar a passagem da razão para a fé cega {Religion, B 158).
SALVAÇÃO. V. REDENÇÃO. SAMSARA. V. BUDISMO. SANÇÃO (lat. Sanctio; in. Sanction; fr.
Sanction; ai. Sanktion; it. Sanzioné). Há dois conceitos para este termo, correspondentes às duas
orientações fundamentais da ética (v).
I
a No primeiro, que corresponde à ética dos fins, a S. é a conseqüência agradável ou dolorosa
(recompensa ou castigo) que determinada ação produz em determinada ordenação (natural, moral ou
jurídica). Neste caso, a natureza da S. depende da natureza da ordenação à qual se faz referência,
existindo então S. naturais, morais e jurídicas, segundo a natureza da ordenação que a determine.
2
Q
No segundo significado, a S. é, em geral, um estímulo à conduta. Este é o conceito de S. estabelecido
por Bentham: "Os estimuladores da conduta transferem a conduta e suas conseqüências para a esfera das
esperanças e dos temores: das esperanças que nos oferecem um excedente de prazeres; dos temores que
prevêem um excedente de dor. Esses estimuladores podem receber o nome de S." {Deontology, 1834,1,
7). Este mesmo conceito de S. foi aceito pelos utilitaristas ingleses (cf. STUART MILL, Utilitarianism, cap.
III) (v. PENA).
SANQUIA. Um dos grandes sistemas filosóficos hindus, segundo o qual existem duas substâncias
opostas, mas ambas eternas e infinitas: as almas (purushã), que são múltiplas, simples e inativas, e a
natureza {prakrti), que é única, complexa e dinâmica. Esse sistema não admite a existência de uma
divindade reguladora do mundo. Tudo nasce da natureza e volta a ela por um movimento circular que se
repete indefinidamente (cf. G. Tucci, História da filosofia indiana, 1957, cap. V, e a bibliografia
respectiva).
SANSIMONISMO (in. Saint-Simonism; fr. Saint-Simonisme, ai. Saint-Simonismus; it. Sansimonismo).
Doutrina do conde Claude Henri de Saint-Simon (1760-1825), exposta em numerosos textos, sendo os
principais: Intro-duction aux travaux scientifiques du XIX' siè-cle, 1807; Uindustrie, 1816-18; Nouveau
chris-tianisme, 1825, etc. Saint-Simon é o verdadeiro
SANTIDADE
868
SEITA
fundador do positivismo social, cujo objetivo era utilizar a ciência e a filosofia nela baseada como
fundamento de uma reorganização radical da sociedade humana. Na nova sociedade, o poder espiritual
seria entregue aos cientistas, e o poder temporal, aos industriais. No Novo cristianismo, Saint-Simon
definiu o surgimento da sociedade tecnocrática como retorno ao cristianismo primitivo. O S. contribuiu
para a consciência da importância social e espiritual das conquistas da ciência e da técnica, incentivando
poderosamente o desenvolvimento industrial: ferrovias, bancos, indústrias e até a idéia de construir os
canais de Suez e do Panamá couberam a sansimonistas (v. POSITIVISMO).
SANTIDADE (gr. ócruóTr|Ç; lat. Sanctitas; in. Holiness; fr. Sainteté, ai. Heiligkeit; it. Santitã). Este
termo tem dois significados fundamentais: um objetivo, que designa a inviolabilidade e em geral um valor
a ser reconhecido e salvaguardado; 2Q
um subjetivo, que designa o grau excelente e superior da virtude ou
da religião como virtude.
No primeiro sentido chama-se de santo o que é sancionado ou garantido por uma lei humana ou divina: p.
ex., a santidade das leis, do juramento, etc. No segundo sentido, é chamado de santo o ser que realiza em
si a vida moral ou religiosa no seu grau mais elevado. No primeiro sentido, Platão diz "atribuir
corretamente a todos o que é justo e santo" (Pol, 301 d); no segundo, ele nega que a S. consista em "fazer
coisas agradáveis aos deuses" (Eut., 6 e) e identifica a S. com o grau supremo de virtude, que é a justiça
(Rep., X, 6l5b; Leis, II, 663b, etc). Ainda neste segundo sentido, S. Tomás identificava a S. com a
religião, isto é, com a mais alta virtude (S. Th., II, 2, q. 81, a. 8), e Kant definia a S. como "a
conformidade completa da vontade à lei moral". Assim, segundo Kant, a S. é "uma perfeição de que não é
capaz nenhum ser racional do mundo sensível em nenhum momento de sua existência". Portanto, ela só
pode ser admitida como limite do progresso infinito para a perfeição moral (Crít. R. Prática, I, II, cap. II,
§ 4). Por outro lado, Kant admite também a S. no sentido objetivo, que ele define como inviolabilidade.
Assim, diz que "a lei moral é santa (inviolável)" (Jbid., § 5) e que "a humanidade deve ser santa para nós
em nossa pessoa" (Jbid., § 5): nesses casos, obviamente, a noção de S. é de valor supremo, que não pode
ser ignorado. Essas observações de
Kant foram amplamente repetidas na filosofia moderna.
SAPERE AUDE. Estas palavras de Horácio (Epist. XII, 40) foram adotadas no séc. XVIII como lema do
Iluminismo ("Ousa conhecer"); neste sentido, foi citado por Kant em sua obra sobre o Iluminismo (Was
ist Aufklü-rung?, 1784, em Werke, ed. Cassirer, IV, p. 169), que, ao traduzi-lo, dizia: "Tem coragem de
usar teu próprio intelecto". Já em 1736 essa frase fora adotada como lema por uma "Sociedade dos
Aletófilos" de Berlim, que se inspirava em Wolff (cf. sobre os empregos dessa expressão:
FRANCOVENTURI, Rivista Sto-rica Italiana, 1959, pp. 119 ss.).
SARCASMO (gr. oapKaauóç; in. Sarcasm; fr. Sarcasme, ai. Sarkasmus; it. Sarcasmo). Ironia unida à
zombaria. O conceito é de origem estóica (cf. J. STOBEO, Ecl, II, 6, 222).
SCHEBLIMINI. Termo que aparece no título de uma obra de J. G. Hamann (Golgotha und S., 1784)
dirigida contra Mendelssohn. O termo, provavelmente extraído de um texto de Lutero, significa
inspiração divina e a exaltação que ela comunica, donde sua oposição simétrica a "Gólgota", que é o
símbolo da humilhação. (Cf. os esclarecimentos de L. SCHREINEIR no vol. II de /. G. Hamanns
Hauptschriften erklart, 1956; e V. VERRA, Dopo Kant. Ilcriticismo neWetã pre-romantica, 1957, pp. 147
ss.).
SECUNDÁRIA, PROPOSIÇÃO (in. Secon-dary proposition; fr. Proposition secondaire, ai. Sekundàr
Satz; it. Proposizione secondarià). Boole indicou com esta expressão as proposições que têm por objeto
outras proposições, ao passo que chamou de primárias as proposições que têm por objeto as relações entre
coisas (Laws of thought, 1854, cap. XI).
SECUNDARIAS e PRIMÁRIAS, QUALIDADES. V. QUALIDADE.
SECUNDUM QUID ET SIMPLICITER (FALÁCIA). Já identificada por Aristóteles (El. sof., 5, 167
a), é a falácia (v.) que consiste em passar de uma premissa, em que certo termo é tomado em sentido
relativo, para uma conclusão em que o mesmo termo é tomado em sentido absoluto ("Se o não-ser é
objeto de opinião, o não-ser é"). (Cf. PEDRO HISPANO, Summ. log., 7. 46 ss.)
SEITA (lat. Secta; in. Sect; fr. Secte, ai. Sekte, it. Settd). 1. Escola ou corrente filosófica. É neste sentido
que a palavra é empregada pelos escritores latinos (CÍCERO, Brut., 31,120; QUINT., Inst. or., V, 7, 35, etc).
SELEÇÃO
869
SEMELHANTE
2. Grupo de pessoas que defendem com fanatismo ou intolerância uma crença qualquer. É este o sentido
com que se usa hoje o adjetivo sectário.
SELEÇÃO (in. Selection; fr. Selection; ai. Selektion; it. Selezioné). Escolha: entendida como
procedimento consciente ou como resultado de um procedimento não deliberado. Neste segundo sentido,
C. Darwin falou de S. natural como procedimento através do qual a luta pela vida assegura a
sobrevivência do mais apto (Origin ofSpecies, IV, § 1).
SEMÂNTICA (in. Semantics; fr. Séman-tique, ai. Semantik). Propriamente, a doutrina que considera as
relações dos signos com os objetos a que eles se referem, que é a relação de designação. Este termo,
proposto para tal doutrina por Bréal (Essais de sêmantique. Science dessignifications, 1897), encontra
justificação etimológica no verbo grego OT|U,(XÍVEIV, introduzido por Aristóteles para indicar a função
específica do signo lingüístico, em virtude da qual ele "significa", "designa" algo. A S. seria portanto a
parte da Lingüística (e mais especialmente da Lógica) que estuda e analisa a função significativa dos
signos, os nexos entre os signos lingüísticos (palavras, frases, etc.) e suas significações. Embora seja esta
a acepção mais difundida, hoje em dia, em filosofia e lógica esse termo também tem outras acepções. Por
ex., A. Korzybski (Science and Sanity) utiliza "S." para indicar uma teoria relativa ao uso da linguagem,
sobretudo em relação às neuroses que, segundo esse autor, são efeitos ou causas de certos maus usos
lingüísticos. Os lógicos poloneses em geral (e em particular Chwistek), que contribuíram sobremaneira
para o surgimento desse último ramo da lógica formal, não costumam distinguir entre proposição e
enunciado, entre significado lógico e forma lingüística de uma proposição, e usam esse termo para indicar
a lógica formal em seu conjunto. Não obstante, foi graças ao impulso dado pelos estudos dos lógicos
poloneses que, por volta de 1956, começou-se a delimitar o campo dessa nova disciplina. Foi graças a Ch.
W. Morris e R. Carnap que no seio da semiótica (teoria dos signos em geral, dos signos lingüísticos em
particular) começaram a ser distinguidos alguns aspectos fundamentais: pragmática, que estuda o
comportamento gestual dos seres humanos que fazem sinais por determinados motivos, para atingirem
certos objetivos, etc. (portanto, é um ramo da psicologia e/ou da sociologia); S., que, sem considerar as circunstâncias concretas (psicológicas e sociológicas) do
comportamento lingüístico, restringe seu campo de investigação à relação entre signo e referente
{significatum, designatum, denotatum); e sintática, que, abstraindo até mesmo dos significados, estuda as
relações entre os signos de determinado sistema lingüístico. S. e sintática na verdade constituem dois
grandes capítulos que dividem a lógica formal pura. Desta última, porém, faz parte mais a S. pura, que
constitui a priori as regras de um sistema sintático geral, do que a S. descritiva, que é uma investigação
empírica com vistas à descrição de determinado sistema semântico (ou grupo de sistemas afins), portanto
mais pertinente à lingüística que à lógica. Assim, a S.pura, mais que doutrina dos significados, é uma
teoria geral da verdade e da dedução nos sistemas sintáticos interpretados; por isso, distingui-la da
sintática torna-se difícil e problemático (cf. MORRIS, Foundations ofthe Theory ofSigns, 1938, cap. IV;
CARNAP, Foundations qfLogic and Mathe-matics, 1939, I, 2; Meaning and Necessity, 1957, p. 233;
Introduction to Semantics, 1942; 2- ed., 1958; LINSKY, editor, Semantics and the Philosophy qfLanguage,
1952).
Mais recentemente, Quine insistiu na diferença entre a referência semântica propriamente dita, que seria o
significar, e a referência do nomear. Tal diferença resulta, p. ex., do fato de que se pode nomear o mesmo
objeto, como quando se diz "Scott" e "o autor de Waverley", mesmo que os significados sejam diferentes.
A S. conteria, assim, duas partes: uma teoria do significado, à qual pertenceria a análise dos conceitos de
sinonímia, significação, analiticidade, implicação; e uma teoria da referência, à qual pertenceria a análise
dos conceitos de nomeação, verdade, de-notação e extensão. Mas o próprio Quine observa que até agora a
palavra S. foi empregada principalmente para a teoria da referência, embora esse nome fosse mais
adequado à teoria do significado (From a Logical Point qf View, 1953, VII, 1; II, 1). V. SIGNIFICADO.
SEMASIOLOGIA. O mesmo que semântica (v.).
SEMELHANTE (gr. õ^otoç; lat. Similis, fr. Semblable, in. Alike, Similar, ai. Âhnlich; it. Similé). Aquilo
que tem qualquer determinação em comum com uma ou mais coisas. Aristóteles distinguiu os seguintes
significados do termo: 1Q
são S. as coisas que têm a mesma
SEMENTES
870
SENSAÇÃO
forma, ainda que sejam substancialmente diferentes; neste sentido são S. um quadrado maior e um menor,
bem como duas linhas retas desiguais; 2a
são S. as coisas que têm a mesma forma, mas estão sujeitas a
variações quantitativas, quando suas quantidades são iguais; 3a
são S. as coisas que têm em comum a
mesma afeição, como p. ex. o branco; 4a
são S., as coisas cujas afeições iguais são mais numerosas que as
afeições diferentes (Met., X, 3, 1054 b 3). É graças ao primeiro significado que em geometria as figuras
são chamadas de S. (cf. EUCLIDES, El., VI, def. 1, 3; def. 11, etc). Na tradição posterior, a semelhança foi
entendida especialmente em relação à qualidade comum (PEDRO HISPANO, Sutnm. log., 3. 29), mas às
vezes também com relação à forma (S. TOMÁS, Contra Gent, I, 29; cf. S. Th., I, q. 4a 3). Mais
genericamente, Wolff dizia que "são S. as coisas que são idênticas naquilo em que deveriam distinguir-se
uma da outra" (Ont., § 195). Determinações desse tipo definem pouco e dizem apenas que os critérios de
semelhança podem ser variados indefinidamente; o importante é que sejam declarados explicitamente em
cada caso.
Foi só na matemática moderna que a noção de semelhança recebeu definição diferente, graças à teoria dos
conjuntos. São considerados S. os conjuntos que apresentem relação de termo a termo. Russell, p. ex.,
diz: "Diz-se que uma classe é S. a outra quando existe uma relação de termo a termo, em que uma classe é
dominante enquanto a outra é o dominante inverso" (Jntroduction to Mathematical Philosophy, cap. II,
trad. it, p. 27). Esta noção tem grande importância para definição matemática do infinito (v.).
SEMENTES (gr. orcépiiaxa; lat. Seminà). Assim foram chamados freqüentemente os elementos últimos
das coisas. Anaxágoras foi o primeiro a usar esse termo para designar as partículas que Aristóteles
chamou de homeo-merias (Fr. 4, Diels). Esse termo foi usado depois por Epicuro {Fr. 250, Uesener) e por
Lucrécio (De rer. nat., VI, 201 ss.; VI, 444, etc). A mesma metáfora está presente na noção estóica de
razões seminais (v.).
SEMIOSE (in. Semiosis). O processo em que algo funciona como signo, que é o objeto da semiótica, no
sentido de Morris (Founda-tions ofthe Theory ofSigns, 1938, II, 2). Essa palavra é equivalente à
expressão comportamento gestual (por sinais), que o próprio
Morris preferiu no volume Signs, Language and Behavior, 1946, I, 2 (v. SIGNO).
SEMIÓTICA (gr. TO OT|m.ümKÓV; in. Semio-tic, fr. Sémiotique, ai. Semiotik, it. Semiótica). Este
termo, usado inicialmente para indicar a ciência dos sintomas em medicina (cf. GALENO, Op., ed. Kün,
XIV, 689), foi proposto por Locke para indicar a doutrina dos signos, correspondente à lógica tradicional
(Ensaio, IV, 21, 4); depois foi empregado por Lambert como título da terceira parte do seu Novo Organon
(1764). Na filosofia contemporânea, E. Morris utilizou o conceito de S. como teoria da semiose (v), mais
do que do signo, dividindo a S. em três partes, que correspondem às três dimensões da semiose:
semântica, que considera a relação dos signos com os objetos a que se referem; pragmática, que
considera a relação dos signos com os intérpretes; e sintática, que considera a relação formal dos signos
entre si (Foundations ofthe Theory of Signs, 1938, II, 3). Aceita por Carnap (Foundations of Logic and
Mathematics, 1939, I, 2), essa distinção difundiu-se amplamente em filosofia e lógica contemporâneas (V.
PRAGMÁTICA; SEMÂNTICA; SINTAXE).
SEM-LEI (it. eslegè). Viço dá esse nome ao estado que "a providência divina impôs aos ferozes e
violentos que se conduzissem para a humanidade e se organizassem em nações, despertando neles uma
idéia confusa de divindade... E assim, por temor a tal divindade imaginada, começaram a organizar-se de
algum modo" (Scienza nuova, dign. 31). Segundo Viço esse tempo de estado prova a função que a
religião exerceu no surgimento da sociedade civilizada.
SENSAÇÃO (gr. aio9r|C7iÇ; lat. Sensus, Sen-sia, in. Sensation; fr. Sensation; ai. Empfin-dung; it.
Sensazionè). Este termo tem dois significados fundamentais: I
a
um significado gene-ralíssimo, em virtude
do qual designa a totalidade do conhecimento sensível, ou seja, todos e cada um de seus elementos; 2a
um
significado específico, em virtude do qual designa os elementos do conhecimento sensível, ou seja, as
partes últimas, indivisíveis, de que supostamente é constituído. Este segundo significado aparece somente
na filosofia moderna.
I
a Para Aristóteles esse termo significa: a) as qualidades elementares, como branco, preto, doce, etc.
(Dean., III, 2passim); b) a percepção do objeto real, chamada de S. em ato, que coincide com a realidade
do objeto: pelo que
SENSAÇÃO
871
SENSAÇÃO
uma sensação auditiva em ato é idêntica ao som em ato {Md., III, 2, 425 b 26); c) a faculdade de sentir,
em geral, ou senso comum (v.), ao qual atribui a função de perceber tudo o que é sensível e as próprias S.
(ou seja, sentir o sentir) {De somno, 2, 445 a 17; De an., III, 2, 246 b 11; 415 b 12); d) o sentido
específico, como a audição, a visão, etc. {De somno, 2, 445 a 14; De an., III, 2, passini); e) o órgão do
sentido, chamado mais freqüentemente de sensório {De pari. an., II, 10, 657 a 3; IV, 10, 686 a 8; De
sensu, 3, 440 a 19). Esta terminologia mantém-se por muito tempo na história do pensamento ocidental,
até que, com Descartes, o conceito de S. começa a ser distinguido nitidamente do de percepção.
2
3 Descartes especificou mais o significado de S., entendendo por S. o simples advertir "movimentos
provenientes das coisas"; distinguiu-a de percepção, que é a referência à coisa externa {Pass. de 1'âme, I,
23). A partir desta distinção, que se consolidou cada vez mais depois de Descartes, especialmente graças à
escola escocesa, a S. foi reduzida a unidade elementar do conhecimento sensível, o que Locke chamou de
"idéia simples"; era considerada material de conhecimento, ao passo que a função cognitiva propriamente
dita, vale dizer, a referência ao objeto, cabia à. percepção {v.). Foi esse o conceito aceito e difundido por
Kant, que diz: "A S. é o elemento puramente subjetivo da nossa representação das coisas que estão fora de
nós, mas é propriamente o elemento material dessa representação, o real, aquilo com que é dado algo de
existente" {Crít. do Juízo, Intr., § VII; cf. Crít. R. Pura, § I; Dialética transcendental, livro I, seç. I: "Uma
percepção que se refira unicamente ao sujeito, como modificação de seu estado, é S."). O caráter
primordial ou elementar da S. também era acentuado por Hegel, embora de maneira arbitrária e
fantasiosa: "A S. é a forma da agitação obtusa do espírito em sua individualidade destituída de
consciência e de intelecto." Em certo sentido, é verdadeira, segundo Hegel, a asserção de que "tudo está
na S.", com o sentido de que ela é fonte e origem de tudo; mas fonte e origem significam apenas a
primeira e mais imediata maneira como algo aparece, e a S. não se justifica por si {Ene, % 400).
O conceito de S. como elemento simples e último do conhecimento foi primeiramente aceito e ilustrado
por filósofos, sendo depois utilizado como fundamento da psicologia nascente pelos primeiros estudiosos que cultivaram esta ciência. Condillac foi o primeiro a dar-se conta do
alcance desse conceito. Se a S. é o elemento último do conhecimento, deve ser possível reconstituir, a
partir dela, todo o mundo do conhecimento ou da atividade espiritual humana. Foi essa a demonstração
que ele tentou dar no Tratado das S. (1754), em que adotou como fundamento o princípio de que "o juízo,
as reflexões, as paixões e, numa palavra, todas as operações da alma não passam da própria S. que se
transforma de várias maneiras" {Traité des sensations, Compêndio da primeira parte). Mesmo
polemizando contra o sensacionismo, Maine de Biran reconhece o caráter simples e elementar da S.
{CEuvres, ed. Navine, II, p. 115); esse mesmo caráter da S. é reconhecido por Herbart {Allgemeine
Metaphysik, 1828, II, p. 90).
O conceito de caráter elementar da S. foi tomado como base da psicologia por H. Spencer, que afirmava:
"as S. são estados de consciência primariamente indecomponíveis" {Principies of Psychology, 1855, §
211). Esse princípio era consagrado por G. Fechner em Elemente der Psychophysik (1860) e por Wundt,
que definia as S. explicitamente como "os estados de consciência que não podem ser divididos em partes
mais simples" {Grundzüge derphysiologischen Psychologie, 1893, 4a
ed., p. 281). Tornou-se lugarcomum em psicologia, que em sua primeira fase foi atomista e associacionista (v. PSICOLOGIA).
Por outro lado, o modo como os filósofos interpretaram a S. quase sempre pressupôs um caráter
elementar ou atômico. Helmholtz eliminou dela o caráter representativo, considerando-a simples sinal das
coisas, mas reconheceu seu caráter elementar {Vortrage und Reden, I, 1884, p. 393). Husserl considerava
as S. como componentes elementares das experiências representativas {Logische Untersuchungen, II, p.
714), e Mach valeu-se de seu caráter elementar para considerá-las neutras (nem objetivas, nem
subjetivas), portanto como componentes simples de qualquer objeto físico ou psíquico {Analyse der
Empfindungen, 1903, 4a
ed., pp. 14, 17, etc). As experiências elementares de que R. Carnap falava em
Visão lógica do mun-dosão, mais uma vez, as S. {DieLogischeAujbau der Welt, 1928, § 67).
Quando o gestaltismo (v. PSICOLOGIA) eliminou o atomismo e o associacionismo da antiga psicologia, o
conceito de S. tornou-se pratica-
SENSACIONISMO
872
SENSO COMUM
mente inútil. A psicologia fala ainda de S. para indicar sons, cores, etc, mas como esse material é dado ao
homem somente em relação com o objeto externo, ou seja, na percepção, é esta última que passa a
interessar à psicologia, tornando-se inútil o conceito de S. como unidade psicológica elementar.
SENSACIONISMO (in. Sensationalism; fr. Sensualisme, Sensationisme, ai. Sensualismus, it. Sensismó).
Doutrina que reduz conhecimento a sensação e realidade a objeto da sensação. Kant chamava Epicuro de
sensacionista (Crít. R. Pura, Doutrina do Método, cap. IV). Nas filosofias modernas, esse nome foi
reservado às doutrinas segundo as quais todos os conhecimentos derivam dos sentidos: essa tese foi
entrevista por Hobbes (Leviath., I, 1), mas foi só Condillac que procurou demonstrá-la, dizendo que das
sensações desenvolvem-se gradati-vamente os conhecimentos e as próprias faculdades humanas iTraité
des sensations, 1754). Esse termo costuma ser aplicado a doutrinas desse tipo. É raro (e impróprio) que
ele seja aplicado ao empirismo de cunho lockiano (que admite, ao lado da sensação, uma outra fonte de
conhecimento, que é a reflexão).
SENSIBILIDADE (in. Sensibility, Feeling; fr. Sensibilité, ai. Sinnlichkeit; it. Sensibilitâ). 1. Esfera das
operações sensíveis do homem, considerada em seu conjunto, o que inclui tanto o conhecimento sensível
quanto os apetites, os instintos e as emoções.
2. Capacidade de receber sensações e de reagir aos estímulos. P. ex., "a S. dos vegetais".
3. Capacidade de julgamento ou avaliação em determinado campo. P. ex., "S. moral", "S. artística", etc.
4. Capacidade de compartilhar as emoções alheias ou de simpatizar. Nesta acepção, diz-se que é sensível
quem se comove com os outros, e insensível quem se mantém indiferente às emoções alheias (V.
SIMPATIA).
SENSITIVO (in. Sensitive, fr. Sensitif ai. Sensitiv). Sensível no 2Q
significado. Às vezes, quem é
extremamente sensível.
SENSÍVEL (gr. aio9T|TÓÇ; lat. Sensibilis; in. Sensible, fr. Sensible, ai. Sensibel; it. Sensi-bilé). 1. Aquilo
que pode ser percebido pelos sentidos. Nesta acepção, "o S." é objeto do conhecimento S., assim como o
"inteligível" é objeto do conhecimento intelectivo (ARISTÓTELES, Dean., II, 6, 418 a 7; KANT, Crít. R.
Pura, Anal. dos princ, cap. III, Nota). Aristóteles distinguiu os S. próprios e os S. comuns (v. SENSO
COMUM),
e o S. acidental do S. por si, na medida em que o primeiro é percebido acidentalmente, como acontece
quando se percebe o branco ao se perceber que uma pessoa é branca {De An., II, 6, 418 a 16).
2. Aquilo que tem a capacidade de sentir. Nesta acepção, os animais são chamados de "seres S.", ou dizse que "xé particularmente S. a algo". Em inglês, é chamado de S. (sensible) quem possui bom senso ou,
em geral, é capaz de julgar corretamente.
3. Quem tem capacidade de compartilhar as emoções alheias ou de simpatizar (v. SIMPATIA).
SENSO (in. Sense; fr. Sens; ai. Sinn; it. Senso). Capacidade de julgar em geral. Com esta significação, a
palavra é empregada nas seguintes expressões: bom S., que Descartes considera sinônimo de razão e
define como "faculdade de bem julgar e de distinguir o verdadeiro do falso" (Discours, I); S. moral, que
Shaftesbury (Characteristics of Men, 1111) e Hutchinson (System of Moral Philosophy, Y755)
consideraram capacidade instintiva de avaliação moral, portanto como guia infalível do homem; S.
racional ou S. lógico, que Romagnosi considerou como atividade que julga e organiza as sensações (Che
cos'è Ia mente sana, 1827, § 10). Com esta mesma acepção do termo relaciona-se a expressão S. comum,
à qual foi dedicado um verbete à parte, bem como expressões como S. prático, S. financeiro, S. artístico,
etc, que designam a capacidade de julgar ou de orientar-se nos campos especiais, indicados pelo adjunto
adnominal.
SENSO COMUM (gr. KOIVIÍ aio0r|ecaç; lat. Sensus communis; in. Common sense, fr. Sens commun; ai.
Gemeinsinn; it. Senso comune). 1. Aristóteles designou com esta expressão a capacidade geral de sentir, à
qual atribuiu duas funções: I
a
constituir a consciência da sensação, que é o "sentir o sentir", porquanto tal
consciência não pode pertencer a um órgão especial do sentido, como, p. ex., à visão ou ao tato (De
somno, 2, 455 a 13); 2Q
perceber as determinações sensíveis comuns a vários sentidos, como o
movimento, o repouso, o aspecto, o tamanho, o número e a unidade (De an., III, I, 425 a 14). Essa noção
foi admitida também pelos estóicos, que atribuíam ao S. comum as mesmas funções (J. STOBEO, Ecl, I,
50). Retomada por Avicena (Dean., III, 30), passou para a escolástica medieval (cf. S. TOMÁS, S. Th., I, q.
78, a 4) e mais tarde também foi comumente aceita por todos os aristotélicos e pelos escrito-
SENSO COMUM
873
SENTIDO
res que se inspiraram de algum modo na psicologia aristotélica.
2. Nos escritores clássicos latinos, essa expressão tem o significado de costume, gosto, modo comum de
viver ou de falar. Neste sentido, Cícero adverte que no orador é falta grave "abominar o gênero vulgar do
discurso e o costume do S. comum" {Deor., I, 3, 12; cf. 2, 16, 68), e Sêneca afirma que "a filosofia visa a
desenvolver o S. comum" (Ep., 5, 4; cf. 105, 3)-Viço expressava numa fórmula lapidar o pensamento
tradicional dos autores latinos ao afirmar: "O S. comum é um juízo sem reflexão, co-mumente sentido por
toda uma ordem, todo um povo, toda uma nação, ou por todo o gênero humano" {Ciência nova, 1744,
Dignidade 12), e ao atribuir ao S. comum a função de confirmar e determinar "o arbítrio humano, incertíssimo por sua própria natureza, (...) no que diz respeito às necessidades ou utilidades humanas" ilbid.,
Dignidade 11). Essa expressão teve o mesmo significado na Escola Escocesa. Em Investigação sobre o
espírito humano segundo os princípios do senso comum (1764), T. Reid usa essa expressão para designar
as crenças tradicionais do gênero humano, aquilo em que todos os homens acreditam ou devem acreditar.
Para essa escola, o S. comum é o critério último de juízo e o princípio que dirime todas as dúvidas
filosóficas.
Hoje, essa expressão costuma ter significado análogo, embora sem a conotação elogiosa atribuída pelos
filósofos escoceses. Dewey, p. ex., ressalta o caráter prático do S. comum: "Visto que os problemas e as
indagações em torno do S. comum dizem respeito às interações entre os seres vivos e o ambiente, com o
fim de realizar objetos de uso e de fruição, os símbolos empregados são determinados pela cultura
corrente de um grupo social. Eles formam um sistema, mas trata-se de um sistema de caráter mais prático
que intelectual. Esse sistema é constituído por tradições, profissões, técnicas, interesses e instituições
estabelecidas no grupo. As significações que o compõem são efeito da linguagem cotidiana comum, com
a qual os membros do grupo se intercomunicam" {Logic, VI, 6; trad. it., p. 170).
3- Na doutrina de Kant o S. comum é o princípio do gosto, da faculdade de formar juízos sobre os objetos
do sentimento em geral. "Tal princípio só poderia ser considerado S. comum, que é essencialmente
diferente da inteligência comum, que às vezes também é chamada de S. comum {sensus communis), pois esta não julga conforme o sentimento, mas conforme conceitos,
embora se trate em geral de conceitos obscuramente representados" {Crít. do Juízo, § 20). A inteligência
comum {Ge-meine Verstand) neste trecho é o S. comum dos escritores latinos e da escola escocesa, que
Kant considera inútil em filosofia {Prol., A 197); essa também é a opinião de Hegel e de outros (cf. R.
CANTONI, Trágico e senso comu-ne, pp. 35 ss.).
SENSORIAL (in. Sensory, fr. Sensoriel; ai. Sensorisch; it. Sensorialè). Que concerne ao sensório, aos
órgãos dos sentidos.
SENSÓRIO (gr. aio8típiov; lat. Sensorium). Na terminologia aristotélica, o órgão de um sentido {Dean.,
II, 9, 421 b 32; Depart. an., II, 10, 657 a 3, etc): aquilo que hoje é chamado de receptor.
SENSUALIDADE (lat. Sensualitas-, in. Sen-suality; fr. Sensualité, ai. Sinnlichkeit; it. Sensualitã) .
Tendência a entregar-se aos prazeres sensíveis.
SENSUALISMO (fr. Sensualismè). 1. A atitude que consiste em atribuir uma importância excessiva aos
prazeres dos sentidos. Em tal sentido a palavra é usada por Berkeley {Alci-phron, II, 1 6).
2. O mesmo que sensacionismo (v.). Este emprego, que só aparece raramente em alguns escritores
italianos e franceses do século passado, é devido à sugestão do termo alemão correspondente a
sensacionismo: Sensualismus.
SENTENÇA (lat. Sententia; in. Sentence, ai. Ausspruch; it. Sentenzd). Juízo, opinião ou máxima: p. ex.,
"as S. de Epicuro" (cf. CÍCERO, De nat. deor., I, 30, 85). Na terminologia medieval, além do significado
genérico, esse termo assumiu outro mais específico, de definição autêntica do significado das Escrituras
Sagradas e, em geral, de "concepção definida e certíssima". Uma coletânea de S. constitui uma Summa: a
mais famosa foi a de PEDRO LOMBARDO, Libri quattuor sententiarum, composta entre 1150 e 1152 (cf.
M. GRABMAN, Die Geschichte der scholastischen Methode, II, pp. 21 ss.).
SENTIDO (gr. aío9T)cn.ç; lat. Sensus; in. Sen-se, fr. Sens; ai. Sinn; it. Senso). 1. Faculdade de sentir, de
sofrer alterações por obra de objetos exteriores ou interiores. Essa foi a definição dada por Aristóteles {De
an., II, 5, 4l6 b 33) que permaneceu na tradição filosófica. (S. TOMÁS, S. Th., I. q. 78, a. 3; DUNS SCOT,
In Sent., I, d 3, q. 8; WOLFF, Psychol. emp., § 67; KANT, Antr., I,
SENTIDO COMPOSTO e DIVIDIDO 874
SENTIMENTO
§ 7, etc). Nesta acepção, o S. compreende tanto a capacidade de receber sensações quanto a consciência
que se tem das sensações e, em geral, das próprias ações: capacidade que na filosofia moderna é chamada
mais freqüentemente de S. interno ou reflexão (cf. LOCKE, Ensaio, II, I, 4; KANT, Crít. R. Pura, Estética,
§ 1), e às vezes de S. íntimoQAMNE DE BIRAN, Journal Intime, I, pp. 13-14; CEuvres, ed. Tisserand, p.
15, etc.) ou consciência (v.).
2. Sensação ou conjunto de sensações, como quando se diz "os S. mostram que...", ou então apetites
sensíveis, em especial os desejos sexuais.
3. Órgãos dos S., aquilo que se chama mais propriamente de sensório, ou, na terminologia moderna,
receptor.
4. O mesmo que significado (v.). SENTIDO COMPOSTO e DIVIDIDO, FALÁCIA DO. V.
COMPOSIÇÃO; DIVISÃO.
SENTIMENTAL (in. Sentimental; fr. Sentimental; ai. Sentimentalisch; it. Sentimentalé). O significado
deste adjetivo, no uso comum, não tem relação com o significado geral de sentimento, mas costuma
referir-se a uma emoção particular, o amor. "Problemas S.", "crises S.", etc. são expressões que se referem
a situações em que está em jogo o amor, mais precisamente o amor sexual. Freqüentemente esse adjetivo
também inclui referência ao amor em sentido romântico (v.), como acontece no título de dois romances
famosos: A viagem S. de Sterne e Educação S. de Flaubert.
Em sentido específico, esse adjetivo foi empregado por F. Schiller para indicar uma espécie de poesia, em
oposição à poesia ingênua (v. INGENUIDADE).
SENTTMENTALIDADE ou SENTIMENTALISMO (in. Sentimentalism; fr. Sentimenta-lisme, ai.
Sentimentallitãt; it. Sentimentalità ou Sentimentalismo). Consiste em entregar-se às emoções próprias ou
alheias, em exaltar-se com elas desproporcionalmente à força, aos limites e à função dessas emoções.
Kant viu no sentimentalismo a fraqueza de deixar-se dominar, até contra a vontade, pela participação no
estado emocional de outrem. Por isso, opôs à S. o autodomínio, que possibilita a sutileza de sentimentos
graças à qual as emoções alheias não são julgadas segundo a força de quem julga, mas segundo a fraqueza
de quem sente. Diante do autodomínio, é ridículo e pueril deixar-se dominar pela emoção alheia,
compartilhando-a indiscriminadamente (Antr., I, § 62). Na realidade, porém, existe sentimentalismo mesmo quando alguém se entrega às suas próprias emoções ou à sua
manifestação externa, ilu-dindo-se quanto à sua força e consistência, e aumentando sua importância.
SENTIMENTO (in. Sentiment; fr. Sentiment; ai. Gefühl; it. Sentimento). Esse termo pode significar: 1D
o
mesmo que emoção, no significado mais geral, ou algum tipo ou forma superior de emoção. Para este
significado, v. EMOÇÃO; 2
e
pressentimento, no sentido em que se usam frases como "sinto que algo não
vai bem" para dizer que se tem uma opinião que não é possível justificar naquele momento; quanto a esse
sentido, v. OPINIÃO; 3Q
fonte de emoções, como princípio, faculdade ou órgão que preside às emoções, e
do qual elas dependem, ou como categoria na qual elas se enquadram.
É com este último sentido que essa palavra é comumente empregada hoje, p. ex. quando se opõe o "S." à
"razão" (considerada como órgão ou faculdade de conhecimentos objetivos), em frases como "não se faz
política com sentimentos". Este emprego é justificado por uma tradição filosófica relativamente recente,
só encontrada na Idade Moderna. Isto porque a filosofia antiga e a medieval não conheceram o S. como
fonte ou princípio das afeições, afetos ou emoções e portanto não usam essa noção como categoria para
organizar e classificar as afeições da alma. Nem a psicologia platônica, que distingue uma alma racional,
uma concu-piscível e uma irascível iRep., TV, 12-15), nem a psicologia aristotélica, que distingue um
princípio vegetativo, um sensitivo e um intelec-tivo (De an., II, 2), reconhecem uma fonte e um princípio
autônomos das emoções: estas são repartidas entre as várias divisões ou princípios admitidos, sem
exclusão do princípio racional ou intelectivo. O mesmo acontece com a filosofia medieval, que segue as
pegadas da psicologia aristotélica. Na realidade, o reconhecimento de uma fonte ou princípio autônomo
das emoções relaciona-se com o reconhecimento da subjetividade humana como algo irredutível a um
conjunto de elementos objetivos ou objetiváveis ou a modificações passivas produzidas por tais
elementos. Este reconhecimento caracteriza os primórdios da filosofia moderna e é, como todos sabem,
uma contribuição do cartesianismo.
Os pressupostos desse reconhecimento devem ser buscados na linha de pensamento que
SENTIMENTO 875
SENTIMENTO
vai de Pascal aos moralistas franceses e ingleses (La Rochefoucauld, Vauvenargues, Shaftes-bury e
Hume) e chega até Rousseau e Kant, culminando neste último: essa é a linha que levou à elaboração do
conceito moderno de paixão como emoção dominante e à noção de gosto (v.) que está intimamente
relacionada com a de sentimento. "S.", "coração", "espírito de fineza" foram expressões usadas por Pascal
para indicar o princípio ou o órgão das emoções, que é diferente do órgão ou do princípio dos raciocínios
e irredutível a este. Pascal diz: "Os que estão acostumados a julgar com o S. nada entendem das coisas do
raciocínio porque logo querem penetrar a questão com um lance de olhos, desacostumados que estão a
buscar princípios. Os outros, ao contrário, que estão acostumados a raciocinar por princípios, nada
entendem das coisas do S., porque buscam princípios, e não podem apreendê-los apenas com um lance de
olhos" {Pensées, 3). Ao S. ou ao coração deve-se a mesma certeza que têm os primeiros princípios do
raciocínio ("Os princípios são sentidos, as proposições são deduzidas, e em cada uma dessas duas formas
há certeza, embora obtida por caminhos diferentes"); ao S. e ao coração é atribuída a verdadeira
religiosidade, da qual o raciocínio pode somente aproximar-se e da qual só pode dar expectativas (Ibid.,
282). Assim, os moralistas ingleses e franceses acima citados contribuíram para a elaboração e o
reconhecimento da categoria do sentimento, por terem acentuado o papel dominante das emoções na vida
do homem. Finalmente, é preciso lembrar que a "volta à natureza", proclamada por Rousseau como meio
capaz de libertar o homem dos males produzidos pelos artificialismos sociais e de reconduzi-lo à bondade
original, é entendida por ele como volta ao primitivo S. natural. O S. natural é um instinto, uma tendência
originária que o conduz para o bem; quando não é alterada, afetada ou bloqueada, conserva o homem no
bem e no bem permite-lhe progredir. Nestas famosas teses de Rousseau talvez se encontre a primeira
aparição da categoria do S. como princípio autônomo da vida espiritual. Mas o primeiro a falar em termos
filosóficos sobre essa categoria e a incluí-la numa nova subdivisão dos poderes ou das faculdades
espirituais foi provavelmente Kant. Enquanto Wolff (e depois dele os wolffianos) admitia somente duas
atividades fundamentais do espírito humano, conhecimento e volição, objetos dos dois ramos
fundamentais da filosofia, o teórico e o prático, KANT reconheceu um terceiro poder ou faculdade, o
sentimento. "Todos os poderes ou faculdades da alma — diz KANT iCrít. do Juízo, Intr., § III) — podem
ser reduzidos a três, que não são redutíveis a um princípio comum: o poder cognitivo, o S. do prazer e da
dor e o poder de desejar." O S. de prazer ou dor deve ser inserido entre o poder cognitivo e o poder de
desejar; a ele cabe um princípio autônomo, que Kant chama às. faculdade de juízo (v.). Assim, o S. é o
campo de crítica da faculdade de juízo, assim como a faculdade de desejar é o campo de crítica da razão
prática. Kant caracteriza o S. como o aspecto irredutivelmente subjetivo da representação. Diz (Jbid., §
VII): "Aquilo que há de subjetivo numa representação e que não pode de modo algum tornar-se artigo de
conhecimento é o prazer ou a dor que estão ligados à representação; isso porque através deles nada
conheço do objeto da representação, ainda que eles possam ser efeito de algum conhecimento." Em
conformidade com esta reivindicação de autonomia do S. como categoria espiritual, em sua Antropologia
pragmática, Kant divide a primeira parte, dedicada ao "modo de conhecer interior e exterior do homem",
em três livros, dedicados respectivamente ao poder cognitivo, ao S. de prazer e dor e ao poder apetitivo.
Por sua vez, o segundo livro é dividido em duas partes principais, a primeira das quais dedicada ao "S. de
deleite e prazer sensível na sensação do objeto"; a segunda, dedicada ao "S. do belo, que é em parte
sensível e em parte intelectual, sendo próprio da intuição reflexa ou do gosto". Esta segunda parte resume
de forma mais acessível os resultados da Crítica do Juízo, a primeira contém uma série de observações
sobre o S. de prazer e dor em relação com os dados dos sentidos (cf. também Met. der Sitten, Intr. 1, nota)
(v. EMOÇÃO).
Com isso, o S. ingressara oficialmente na filosofia como categoria independente. O próprio Hegel aceitao como determinação do espírito subjetivo e define-o como "uma afeição determinada", mas determinada
de modo simples, isto é, de tal modo que, mesmo quando seu conteúdo é sólido e verdadeiro (o que nem
sempre acontece), ele assume a forma de "particularidade acidental". Hegel acrescenta: "Quando, ao
discutir sobre uma coisa, alguém não recorre à natureza e ao conceito da coisa, ou pelo menos à razão e à
universalida-
SENTIMENTO
876
SENTIMENTO
de do intelecto, mas a seu S., nada se pode fazer; porque desse modo essa pessoa está se recusando a
aceitar a comunhão da razão e fecha-se em sua subjetividade, em sua particularidade" (Ene, § 447). Nesse
aspecto, Hegel opõe-se à tendência literária do Romantismo, cuja bandeira foi a descoberta e a exaltação
do S., considerando-o a forma mais íntima e ao mesmo tempo mais livre de vida espiritual. Para os
românticos só pode ser artista quem — como diz Friedrich Schlegel (Ideen, § 13), — "tem uma religião
própria, uma intuição original do infinito". Essa intuição original do infinito é aquilo que os românticos
chamam de sentimento. Em outras palavras, S. é a manifestação do Infinito, de Deus, à intimidade da
consciência. Portanto, as características que definem o S. na concepção romântica são dois: ls
seu caráter
de extrema subjetividade, constituindo o que há de mais subjetivo no sujeito; 2Q
sua capacidade de revelar
o Princípio infinito da realidade. Em virtude deste segundo aspecto, o S. é entendido pelos românticos,
alternada ou concomitantemente, como órgão da arte, da filosofia e da religião. Schleiermacher
considerou-o órgão da religião, afirmando que "só o S. revela o Infinito" (Reden, II; trad. it., p. 43), tese
reexposta e defendida freqüentemente depois disso. Em tempos mais fecentes foi considerado órgão da
arte por Gentile (Filosofia da arte, 1931), porquanto a arte é "a subjetividade pura, íntima e inexprimível
do sujeito pensante", e o S. é precisamente isso. Na concepção de arte de Gentile, o S. conserva todas as
conotações românticas: é o infinito espiritual na própria forma de sua infinidade, livre de determinações
conceptuais necessitantes, constituindo "a subjetividade pura do sujeito" (Ibid., pp. 176 ss.); como tal, a
infinidade do S. é a infinidade do homem em sua universalidade, estando portanto acima e além da
diversidade empírica dos homens, considerados individualmente" (Ibid., p. 205). Mas a outra corrente do
Romantismo oitocentista, o positivismo, também não ficou alheia à exaltação do sentimento. Ao delinear
as características do futuro regime sociocrático (dominado e dirigido por uma corporação de filósofos
positivistas), Comte afirmou que esse regime será dominado mais pelo sentimento que pela razão e que,
portanto, atribuirá papel importante às mulheres, que representam o elemento afetivo do gênero humano
(Politiquepositive, I, pp. 204 ss.). Isto porque a moral dessa sociedade futura será o
altruísmo, mas um altruísmo tão desenvolvido que criará inclinações e instintos benévolos que, tanto
quanto o sentimento, agem sem necessidade de reflexão. As preocupações religiosas e morais de Comte
levaram-no a insistir no valor do S. e a exaltá-lo à maneira romântica.
Mas fora do Romantismo, e contra ele, o S. foi aceito como categoria fundamental da vida espiritual,
como uma das "faculdades" ou "poderes" do espírito. É curioso notar que, enquanto Kant admitia a
tripartição conheci-mentos-vontade-S. com base apenas num modesto mas válido motivo metodológico
(porque os três grupos de fenômenos não são redu-tíveis a um princípio único), logo depois dele essa
tripartição começa a ser dogmatizada: para Fries ela já é resultado imediato da auto-obser-vação
(Anthropologie, I, 1837, § 4). Herbart, conquanto negasse a doutrina das faculdades da alma,
considerando-as "conceitos de classe" segundo os quais os fenômenos estudados se organizam, nem por
isso deixou de incluir entre tais conceitos de classe o conceito de sentimento. Para Benecke, o S. era a
base da moral e da religião; esta última originar-se-ia do S. de dependência em relação a Deus, justificado
pelo caráter fragmentário da vida humana e pela exigência de completitude, que só pode vir de Deus
(System der Metaphysik und Reli-gionsphilosophie, 1840). Para Rosmini o S. era a consciência que cada
um tem de si, ponto de partida e base para o conhecimento da alma (Psicologia, % 69).
A tripartição das faculdades do espírito em conhecimento, sentimento e vontade manteve-se como
esquema praticamente constante na filosofia do séc. XIX. Para sua difusão muito contribuiu a obra de
Cousin, que estabeleceu a correspondência entre essa tripartição e três valores absolutos: o Verdadeiro, o
Belo e o Bem (Du vrai, du beau et du bien foi título da obra mais conhecida de Cousin, 1853). Se
deixarmos de lado as críticas de caráter metodológico sobre a oportunidade de semelhantes esquemas
rígidos de subdivisão no estudo dos fenômenos espirituais, podemos dizer que essa tripartição ainda hoje
é a mais difundida, tendo-se incorporado ao modo de pensar comum. Exceção é Croce, que reconduziu as
formas do espírito às duas formas admitidas por Wolff: a teórica e a prática, criticando o S. como
categoria espúria e ambígua. Para Croce, S. era uma palavra "usada para denominar uma classe de fatos
psíquicos constituída segundo o método
SENTIMENTO
877
SENTIMENTO
naturalista e psicológico": noção que várias vezes exerceu função negativa e crítica em estética,
historiografia, lógica e ética, pois contrapunha às interpretações demasiado limitadas e estreitas tudo o
que havia de "indeterminado" ou "semideterminado" fora dessas interpretações. O testemunho a que
recorria para rejeitar essa categoria é o da observação interior: "Quem quiser, investigue seu espírito e
tente indicar um ato sequer que, ao contrário dos indicados acima [atos teóricos e práticos], constitua algo
novo e original, e mereça a denominação especial de S." (Fil. daprática, I, I, c. 2). Mas esse tipo de
testemunho é extremamente variável e infenso a qualquer verificação; para Fries, p. ex., e para muitos
outros, a distinção entre S. e outras atividades espirituais era tão claramente provada pelo testemunho
interior quanto desmentida para Croce. Na realidade, o uso de tais categorias, como S., atividade teórica,
atividade prática, só pode ser discutido, portanto submetido a limites e regras, com base na análise precisa
de um grupo delimitável de fenômenos: análise que Croce nem sequer tentou. Contudo, na filosofia
contemporânea não faltam análises desse tipo, que figuram entre suas contribuições menos discutíveis
para o conhecimento do homem em seu mundo. Uma dessas contribuições — das mais importantes — é a
de Max Scheler, que se referiu às palavras de Pascal, "o coração tem razões que a razão desconhece", mas
sem interpretá-las no sentido freqüentemente encontrado na filosofia moderna e contemporânea (v.
CORAÇÃO), de que a razão deveria ter certa condescendência para com o S. e tentar corresponder às suas
exigências, porém no sentido de que o S. tem suas próprias leis, seus próprios objetos e constitui,
portanto, um mundo diferente do racional. Scheler começa fazendo a distinção entre os estados emotivos
simples, que não têm caráter intencional, ou seja, que não se referem imediatamente a um objeto próprio
(v. EMOÇÃO), e o S. originário e intencional, que, ao contrário, é uma reação particular ao estado emotivo
e consiste nas atitudes extremamente variáveis e mutáveis assumidas diante do estado emotivo: enfrentar,
tolerar, fruir, suportar, etc. Estado emotivo, p. ex., é o prazer sensível correspondente ao caráter agradável
de uma refeição, um perfume, um leve toque. O S. puro, ao contrário, consiste nas reações do eu a tal
estado emotivo: p. ex., fruir em maior ou menor grau, tolerar, etc. Assim, enquanto um
estado emotivo faz parte do conteúdo fenomenal, o S. puro está entre as funções destinadas a apreender
tal conteúdo. Desse ponto de vista,. a tendência a suportar ou a fruir nada tem a ver com a sensibilidade
em relação ao prazer e à dor. O grau de prazer ou de dor pode ser o mesmo, mas o sofrimento e o gozo
por eles provocados em dois indivíduos ou no mesmo indivíduo em momentos diferentes podem ser
completamente diferentes. Ora, enquanto os estados emotivos podem ser relacionados apenas de modo
indireto com os objetos ou os fatos de que são efeito ou sinal, os sentimentos puros referem-se
imediatamente a um objeto específico, que é o valor. Portanto, a relação entre S. e valor é a mesma
observada entre a representação e seu objeto: a relação intencional (v. INTENCIONALIDADE). Enquanto é
necessário um ato de reflexão para relacionar um estado emotivo com o objeto de que é sinal ou que
julgamos ter provocado, o S. relaciona-se com seu objeto específico, o valor, de modo imediato, como
acontece, p. ex., quando sentimos a beleza dos montes cobertos de neve ao pôr-do-sol. A conexão
intencional entre S. e valor não tem, pois, nada a ver com um vínculo causai entre S. e objeto, e independe
também da causalidade psíquica individual, ou seja, das leis que regem a vida psíquica do indivíduo. De
fato, quando as exigências dos valores não são satisfeitas, sofremos, p. ex., por não nos sentirmos tão
alegres quanto o valor de um acontecimento mereceria, ou por não nos sentirmos tão tristes pela morte de
um ente querido quanto esse fato exigiria (Formalismus, pp. 260 ss.). Assim, segundo Scheler, o S. dá
acesso a um mundo de objetos tão reais quanto as coisas ou os fatos que constituem o objeto da
representação, mas que nada têm a ver com eles, porque não são coisas nem fatos, mas valores. Scheler,
portanto, está de acordo com Kant ao julgar que o S. não é "artigo de conhecimento", mas discorda dele
quanto a julgar que ele não tem nenhum objeto e é, por isso, destituído de caráter intencional. Apenas as
emoções sensíveis são destituídas de objeto e por isso constituem estados emotivos puros, ao passo que os
sentimentos vitais e os psíquicos sempre podem revelar caráter intencional (referir-se a um ob-jeto-valor);
os S. espirituais revelam-no necessariamente (para a distinção entre os graus emocionais, V. EMOÇÃO). A
análise de Scheler é muito importante porque lança novas luzes sobre a vida emocional do homem.
Contudo, o próprio
SENTIMENTO
878
SER
Scheler usou sua análise como fundamento de uma verdadeira metafísica dos valores, em que estes não
são considerados somente objetos, no sentido próprio e restrito do termo (v. OBJETO), mas verdadeiras
realidades, no sentido em que são chamadas de reais as coisas, as entidades e os fatos, com a diferença de
que, diante de qualquer outra coisa, entidade ou fato, os valores seriam realidades últimas ou "absolutas".
Essa integração metafísica de uma análise meritória pelo modo como foi conduzida e pelas suas
conclusões pode levantar dúvidas quanto à sua legitimidade. Com efeito, pode-se considerar que um dos
resultados dessa análise é estender o significado de "objeto" como termo ou fim de um ato intencional, de
tal modo que não sejam chamados de objetos apenas os que possam ser considerados reais no sentido de
terem características de fatos ou entidades subsistentes. Por realidade entende-se, pois, de modo estrito e
rigoroso, o termo de um processo cognitivo passível de verificação (v. REALIDADE), e não há razão para
identificar a inten-cionalidade emotiva com a intencionalidade cognitiva; o próprio Scheler dá boas razões
para fazer o contrário. Se as coisas são assim, ou seja, se a intencionalidade do S. é diferente da
intencionalidade do conhecimento, sendo também diferentes seus respectivos objetos, deixa de ter
fundamento a crítica de Scheler à tendência da psicologia contemporânea, de negar a "função cognitiva"
dos S. Isto porque a psicologia contemporânea admite a função dos S. no comportamento vital do
organismo, e considera-os anúncio de situações presentes ou futuras, o que permite enfrentar tais
situações da mesma maneira como um dispositivo de alarme põe em movimento os meios de enfrentar
um perigo. Assim como Scheler, Heidegger reconheceu a importância fundamental do S., que ele
considera arraigado na substância humana, vale dizer, na estrutura ontológica de sua existência.
Heidegger chama de situação afetiva {Befindlichkeit) o tom emocional da ocupação cotidiana do homem,
e vê nesse tom uma manifestação essencial do ser do homem no mundo: "O estado da situação afetiva
constitui, essencialmente, a abertura do ser-aí no mundo" {Sein undZeit, § 29). Segundo Heidegger, a
situação fundamental de um ente que, como o homem, vive num ambiente que lhe fornece as coisas a
serem utilizadas e que, por isso, pode ameaçá-lo com a não-instrumentalidade, com a resistência das
coisas,
é a possibilidade de ser ameaçado pelas coisas e pelos acontecimentos do mundo e de reagir a essa
ameaça com medo ou com coragem. Também neste caso, se deixarmos de lado a linguagem específica da
ontologia de Heidegger, podemos dizer que sua análise concorda fundamentalmente com a da psicologia
contemporânea e que confirma a noção de S. como capacidade de apreender o valor que um fato ou uma
situação apresenta para o ser (animal ou homem) que deve enfrentá-la. Finalmente, é preciso lembrar que
para Hartmann o S. — que serviu de base para a sua ética — é a "principal sede em que os valores se
dão" {Ethik, 1926). SENTIMENTO FUNDAMENTAL (it. Sentimento fondamentalé) Com este termo
Rosmini designou a consciência que o homem tem de seu eu e da conexão (que o constitui) entre alma e
corpo. "Existe no homem, tal qual ele é por natureza no primeiro instante de sua vida, 1Q
) um sentimento
único constante-fundamen-tal, animal-espiritual; 2Q
) uma percepção racional, imanente, do sentimento
animal" {Psicologia, 1850, § 256).
SEPARAÇÃO (gr. StáKptmç; lat. Separatia, fr. Séparation; ai. Trennung; it. Separazione). Resolução de
um composto em suas partes ou em seus elementos. Este termo foi usado por Anaxágoras {Fr. 10, Diels) e
por Empédocles {Fr. 58, Diels) (cf. PLATÃO, Sof, 243 b; ARISTÓTELES, Mel, I, 4, 985 a 25).
SEQÜÊNCIA (lat. Sequentia-, in. Séquence, fr. Séquence, ai. Folge, it. Sequenzà). Conjunto de termos
entre os quais há uma relação de antes e depois (cf. PEIRCE, Coll. Pap., 3.562 B). SER (gr. xò õv; lat. Ens
ou Esse, in. Being; fr. Être, ai. Sein-, it. Esseré). Preliminarmente, convém distinguir os dois usos
fundamentais desse termo: 1Q
) o uso predicativo, em virtude do qual dizemos "Sócrates é homem", ou "a
rosa é vermelha"; 2e
) o uso existencial, em virtude do qual dizemos "Sócrates é" (= existe) ou "a rosa é"
(= existe). Embora nem sempre explicitamente formulada, essa distinção é assumida ou pressuposta quase
universalmente. Em Parmê-nides, Platão dá destaque à diferença entre a hipótese "o um é um" e a
hipótese "o um é"; nesta última "é" significa "participação no S." {Parm., 137 e; 142 b). Aristóteles
expressa de várias formas a mesma diferença: como diferença entre é como terceiro predicado e é como
segundo predicado {De int., 10, 19b 19); como diferença entre é como predicado por acidente ("Homero é
poeta") e é predicado por
SER
879
SER
si ("Homero é") (Deint., II, 21 a 25); como diferença entre "S. alguma coisa" e "S. absolutamente" (El.
sof., 5, 167 a 1). Na diferença entre S. predicativo e S. existencial baseia-se ainda a distinção aristotélica
entre tese e hipótese, como premissas do silogismo: a primeira não assume a existência do objeto a que se
refere; a segunda, sim (An. post., 1, 2, 72 a 18).
A diferença entre esses dois significados de S. permanece constante na tradição filosófica posterior a
Aristóteles. S. Tomás afirma: "S. tem dois significados: num modo significa o ato de S.; no outro significa
a composição da proposição que o homem encontra ao juntar o predicado ao sujeito" (S. Th., 1, q. 3, a. 4;
cf. De ente, 1). Na lógica terminista medieval dis-tinguia-se o verbo S. como segundo constituinte
(secundo adiacens) da proposição, do verbo S. que aparece como terceiro constituinte (tertio adiacens),
em função predicativa ou de cópula (OCKHAM, Summa log., II, 1; ALBERTO DE SAXÔNIA, Lógica, I, 5).
Kant estabeleceu a distinção entre a posição predicativa ou relativa, expressa pela cópula de um juízo, e a
posição absoluta ou existencial, com que se põe a existência da coisa (Der einzig môgliche Beweisgrund
zu einer Demonstration des Daseins Gottes, 1763, § 2). Na filosofia moderna e contemporânea, essa
distinção é lugar-comum, embora nem sempre seja explicitamente formulada. Na evolução sofrida pelas
interpretações desses dois significados de S. ao longo da história, pode-se perceber uma correspondência
entre as interpretações do primeiro significado e as do segundo. Contudo, por uma questão de clareza, o
estudo de cada uma delas deverá ser feito em separado.
I
a
Significado predicativo. Nas interpretações do significado predicativo é possível distinguir três
doutrinas fundamentais: A) inerência; B) identidade (ou suposição); O relação.
A) Segundo a doutrina da inerência, S., na relação predicativa, significa pertencer ou inerir (gr. vnápxexv;
lat. Inessé). "Sócrates é homem" significa que a Sócrates inere a essência homem; "a rosa é vermelha"
significa que à rosa pertence a qualidade vermelho, e assim por diante. O fundamento dessa doutrina é a
teoria aristotélica da substância (v.). De fato, as relações de inerência que podem ser expressas pelo verbo
S. são esclarecidas e distinguidas por Aristóteles com base nas relações entre a substância e sua essência
necessária, ou entre a substância e suas outras determinações categoriais ou acidentais. Aristóteles diz: "Inerir, inerir necessariamente e inerir possivelmente são coisas
diferentes" (An. pr., 1, 8, 29b 28). Inerência necessária é a da essência necessária (expressa pela definição)
à coisa da qual é essência; inerir ou inerir possivelmente é referir-se à coisa com uma qualidade,
quantidade ou qualquer outra das determinações catego-riais não incluídas na definição da coisa ou
puramente acidentais. Este é o significado da distinção aristotélica entre S. necessário (ouporsi) e S.
acidental. "Em sentido acidental, dizemos, p. ex., que o justo é músico, que o homem é músico e que o
músico é homem, ou dizemos que o músico constrói quando acontece de o construtor ser músico ou de o
músico ser construtor: em todos esses casos, dizer 'isto é aquilo' significa 'A isto acontece aquilo"'(Afeí.,
V, 7, 101 7 a 7). Ao contrário, a inerência necessária ou por si não tem caráter acidental, e, mesmo ao
especificar-se segundo as categorias, seu principal fundamento é a substância. Aristóteles diz: "Assim
como 'é'inere a todas as coisas de modos diferentes, pois a algumas inere de modo primário e a outras de
modo secundário, também o 'o quê' [essência] inere absolutamente à substância e só de certo modo às
outras coisas. A respeito de uma qualidade podemos até perguntar o que ela é, e por isso até uma
qualidade é exemplo de essência, mas não de modo absoluto. Assim, alguns afirmam que, por lógica, o
não-S. é, todavia não é de modo simples, mas apenas como não-S.: o mesmo se diga da qualidade" (Ibid.,
VII, 4, 1030 a 22). Portanto, segundo Aristóteles, o S. predicativo expressa a inerência ao sujeito de sua
essência necessária, de determinações categoriais (que, embora não pertencendo à essência, dependem
dela) ou de determinações acidentais. Esse significado de S. tem um sentido privilegiado, que é o inerir
substancial, ou seja, o inerir da essência necessária (expressa pela definição) à substância definida.
"Sócrates é animal bípede" é um caso de inerência predicativa privilegiada se "animal bípede" é definição
do homem, porque é a inerência da essência necessária à substância. As outras determinações, como p. ex.
"Sócrates é filósofo", constituem casos de inerência secundária ou acidental.
As características fundamentais desse conceito do ser predicativo são: 1Q
sua redução a um tipo único de
relação, qualificada como pertença ou inerência; 2Q
privilégio concedido à forma necessária dessa
relação, ou seja, à for-
SER
880
SER
ma como ocorre essa relação entre substância e essência. Estas características são mantidas pela doutrina
em exame ao longo de toda a sua história, que é longuíssima. A tradição lógica medieval até o séc. XIII
(quando do ressurgimento das doutrinas dos estóicos através da via moderna) não conhece alternativa. As
doutrinas modernas de caráter racionalista geralmente as compartilham. Leibniz diz: "Todo predicado
verdadeiro tem algum fundamento na natureza das coisas, e quando uma proposição não é idêntica, vale
dizer, quando o predicado não está compreendido expressamente no sujeito, é preciso que esteja
compreendido virtualmente: é isso que os filósofos chamam de in-esse, ao afirmarem que o predicado
está no sujeito" (Disc. de mét., 8). Do mesmo modo, para Hegel, o significado predicativo de S. é a
identidade entre individual e universal, ou seja, aquela mesma relação entre substância e essência que
para Aristóteles era o caso privilegiado de relação predicativa. Hegel diz.- "A cópula é vem da natureza
do conceito, que é de ser idêntico a si mesmo ao se tornar extrín-seco: como momentos seus, o individual
e o universal são determinações que não podem ser isoladas" {Ene, § 166). Segundo Hegel, o juízo tende
a expressar de modo mediato ou reflexo a unidade entre predicado e sujeito, vale dizer, a unidade de um
conceito único que, através do próprio juízo e, mais completamente, através do silogismo, articula-se em
suas determinações necessárias (Wissenschaft der Logik, III, I, cap. 2; trad. it., pp. 77 ss.). A doutrina
exposta por alguns hegelianos ingleses (BRADLEY, Principies of Logic, 1883; BOSAN-QUET, Logic, 1888),
de que S. predicativo significa referência de um conceito ao sistema total da realidade (de sorte que, no
juízo, o conceito é uma qualificação essencial da Realidade Universal), representa a forma assumida pela
doutrina hegeliana da cópula na filosofia contemporânea. Também nessa forma, pode-se reconhecer a
teoria da inerência: a substância ou realidade à qual o predicado inere é a totalidade do real, em vez de ser
(como na doutrina de Aristóteles) uma única substância.
B) A segunda interpretação fundamental de S. predicativo é de identidade (v.) ou suposição (v.): segundo
ela, a cópula significa identidade do objeto ao qual o sujeito e o predicado da proposição se referem ou no
lugar do qual estão {supponunt pró). Assim, p. ex., na expressão "Sócrates é branco", a cópula indicaria
simplesmente que o sujeito "Sócrates" e o predicado "branco" referem-se ao mesmo objeto existente, que,
portanto, pode ser qualificado com um ou com o outro dos dois termos. A origem desta doutrina está
provavelmente na lógica estóica, na qual é fundamental a referência de qualquer enunciado a uma
situação de fato imediatamente presente (v. ESSÊNCIA). Mas é expressa claramente só na lógica do séc.
XIII, em polêmica com a teoria da inerência. Ockham diz: "Proposições como 'Sócrates é um homem' ou
'Sócrates é um animal' não significam que Sócrates tem humanidade ou animalidade. Tampouco
significam que a humanidade ou a animalidade está em Sócrates, nem que o homem ou o animal é uma
parte da substância ou da essência de Sócrates, ou uma parte do conceito ou da substância de Sócrates.
Significam que Sócrates é na realidade um homem e é na realidade um animal: não no sentido de Sócrates
ser esse predicado 'homem' ou esse predicado 'animal', mas no sentido de que existe alguma coisa em
lugar da qual esses dois predicados estão; como quando acontece que esses predicados estão no lugar de
Sócrates" (Sumiria log., II, 2; Quodl, III, 5). Essa doutrina é expressa quase nos mesmos termos por
Hobbes: "A proposição é um discurso que consta de dois nomes conjuntos: quem fala pretende dizer que,
para ele, o segundo nome é um nome da mesma coisa cujo nome é o primeiro, ou — o que dá no mesmo
— o primeiro nome está contido no segundo. Por ex., o discurso 'O homem é animal', em que os dois
nomes estão reunidos pelo verbo é, é uma proposição porque quem a enuncia pretende dizer que, para ele,
o segundo nome 'animal' é nome da mesma coisa cujo nome é 'homem'" (De corp., I, 3, § 2). Essa
doutrina foi substancialmente reproduzida por Stuart MUI, que dis-tinguia as afirmações "essenciais", ou
seja, gerais, que só explicam a essência nominal de uma coisa (v. ESSÊNCIA), das proposições "reais", que
sempre implicam a existência do sujeito a que se referem "porque, no caso de um sujeito inexistente, a
proposição nada teria para asseverar" (Logic, I, VI, 2).
A referência à realidade imediatamente dada ou intuída é a primeira característica fundamental da
doutrina em exame. Os lógicos do séc. XIV chegavam a considerar falsa até mesmo proposições
tautológicas como "A quimera é quimera", quando nelas o sujeito representa um objeto inexistente
(OCKHAM, Summa log.,
SER
881
SER
II, 14). A segunda característica dessa doutrina é a identidade da referência objetiva dos termos da
proposição (identidade da coisa em lugar da qual estão).
O Segundo a terceira interpretação fundamental, a cópula é uma relação. Esta interpretação pode ser
dividida em duas alternativas: a primeira (d) considera que a relação predica-tiva é subjetiva; a segunda
(b) considera-a objetiva.
d) A interpretação do S. predicativo como relação que é ato ou operação do sujeito pensante tem como
pressuposto óbvio o princípio cartesiano de que o objeto imediato do conhecimento humano é apenas a
idéia. Desse ponto de vista, a proposição apresenta-se como juízo e começa a ter esse nome porque. juízo
é exatamente o ato com que o espírito escolhe ou decide. Descartes diz: "Dos meus pensamentos, alguns
são como imagens das coisas, e a eles só convém o nome de idéia: como quando represento um homem,
uma quimera, o céu, um anjo, ou Deus. Outros pensamentos têm, além destas, outras formas; p. ex.,
quando quero, temo, afirmo ou nego, estou concebendo alguma coisa como objeto da ação de meu
espírito, mas, com essa ação, acrescento alguma outra coisa à idéia desse objeto; desses pensamentos,
alguns são chamados de vontades ou emoções; outros, de juízos" (Méd, III). Portanto, segundo Descartes,
juízo é uma ação do espírito por meio da qual "se acrescenta alguma coisa" à idéia que se tem de um
objeto; em outros termos, é um ato de unificação ou síntese. Esta noção é claramente expressa na Lógica,
de Arnauld: "Quando digo 'Deus é justo', 'Deus' é o sujeito dessa proposição, 'justo' é o atributo, e a
palavra 'é' marca a ação do meu espírito que afirma, ou seja, que liga as idéias 'Deus' e 'justo' como
convenientes uma à outra" (Log., II, 3). A definição lockiana de conhecimento como "percepção de
vínculo e concordância ou de discordância e oposição entre nossas idéias" (Ensaio, IV, I, § 2) expressa
exatamente a mesma tese. Locke diz: "Tudo o que sabemos ou podemos afirmar sobre uma idéia qualquer
reside em ser ou não essa idéia igual a uma outra; em coexistir ou não com alguma outra idéia no mesmo
sujeito; em ter uma ou outra relação com alguma outra idéia; ou em ter existência real ou fora do espírito"
(Ibid., IV, I § 7). Portanto, mesmo em seu uso existencial, o verbo S. só faz expressar relações percebidas
pelo espírito, vale dizer, as
relações cuja realidade está no sujeito cognoscen-te, embora não somente nele. Kant expressou esse
mesmo conceito ao afirmar que o ato de juízo, atividade própria do intelecto, é a síntese: "Entendo por
síntese, no sentido mais amplo dessa palavra, o ato de unir diversas representações e compreender a sua
multiplicidade num só conhecimento" (Crít. R. Pura, § 10). Todas as interpretações idealistas da relação
predicativa no mundo moderno partem dessa afirmação kantiana. Atividade sintética, poder sintético do
espírito, síntese a priori, são expressões às quais a interpretação idealista do kantismo, a partir do
Romantismo, emprestou um significado enfático e criativo, que de certo não tinham na doutrina de Kant:
de qualquer modo, expressam o caráter subjetivo da atividade sintética, que como tal só pode operar entre
"idéias" ou "representações", vale dizer, entre elementos ou estados do mesmo sujeito. A dificuldade
fundamental que se opõe a essa doutrina é a óbvia consideração de que uma asserção qualquer não visa a
estabelecer uma relação entre duas idéias, representações ou conceitos, mas entre os objetos aos quais se
faz referência através deles. Quando se afirma "Sócrates é um homem", não se quer dizer que a
representação Sócrates é homem, mas sim o indivíduo real ao qual o nome se refere. É em observações
desse tipo que se baseia a alternativa objetivista.
b) A doutrina da cópula como relação objetiva foi apresentada pela primeira vez por De Morgan
(.FormalLogic, 1847, cap. 3) e adotada pelo criador da lógica matemática, Boole. Para este, a lógica tem
duas espécies de relações: entre coisas e entre fatos; estas últimas também podem ser chamadas de
relações entre proposições (Laws ofThought, 1854, I, § 6). De acordo com essa teoria, a relação expressa
pela cópula é a mesma em todas as formas proposicio-nais, não porque sua natureza esteja expressa na
proposição, mas porque é estabelecida por convenção. A cópula pode então expressar uma relação
qualquer. Nesse sentido, ela foi chamada por De Morgan (Cam-bridge Philosophical Transactions, X,
339) de cópula abstrata. Peirce distinguiu os vários tipos de cópula da seguinte maneira: "Cópula
transitiva é aquela para a qual é válido o modo Barbara. Schrõder demonstrou o importante teorema de
que, se usamos É para representar a espécie de cópula cujo exemplo é 'maior que', então existe algum
termo relativo r
SER
882
SER
tal que a proposição 'Sé P' seja precisamente equivalente a'5éraPeéra qualquer coisa à qual Pseja r'.
Cópula de inclusão cotrelativa é aquela para a qual são válidos tanto o modo Barbara quanto a fórmula
de identidade. Se representarmos essa cópula com é, existirá um termo relativo r tal que a proposição
'SéP' seja precisamente equivalente a 'Sé ra qualquer coisa à qual P é r'. Se a última proposição se seguir
da penúltima, qualquer que seja o termo relativo r, a cópula será a de inclusão, usada por Peirce, Schróder
e outros. De Morgan usa uma cópula que vale para qualquer relação que seja ao mesmo tempo transitiva e
conversível, como p. ex. 'igual a' ou 'da mesma cor de'. Para cada cópula desse tipo existirá algum termo
relativo rtal que a proposição 'SéP' será exatamente equivalente a '5 é r a cada coisa e só a cada coisa à
qual Pé r'. Tal cópula pode ser chamada de identidade cotrelativa. Se a última proposição se seguir da
penúltima, a cópula é a de identidade, usada por Thompson, Hamilton, Baynes, Jevons e muitos outros"
(Coll. Pap., 3, 622). Com mais simplicidade, hoje se costuma distinguir uma cópula de pertença,
simbolizada por e, que designa a relação entre um indivíduo e uma classe; uma cópula de inclusão,
simbolizada por 3, que designa a relação entre uma classe e outra classe; estas duas espécies de cópulas
são distinguidas de operador (ou quantificador) existencial (v. OPERADOR). De qualquer forma, a
característica fundamental desta concepção de S. pre-dicativo é a máxima generalidade: as outras
interpretações de cópula podem ser consideradas casos especiais de relação, e como tais analisados. Além
desses, é possível considerar outros casos. É exatamente essa teoria da cópula que possibilita a doutrina
da proposição como função, segundo a qual o predicado é a função, e o sujeito é a variável da função (v.
FUNÇÃO).
2
e
Significado existencial. O segundo significado fundamental de S., o existencial, deve ser dividido em
dois significados subordinados: I, como existência em geral; II, como existência privilegiada.
I. Em primeiro lugar, S. pode significar existência no l2
significado, geral e indeterminado, mas
especificável ou definível de acordo com um critério qualquer. É nesse sentido que Aristóteles afirma que
"o S. se diz de muitos modos" (Met., VI, 2, 1026 a 32) e que se pode até dizer que o não-S. é Qbid., VII,
4, 1030 a 23).
Mas, tomado nesse sentido, o significado de S. coincide com o de existência (no l9
sentido), e seu estudo
poderá ser encontrado no verbete EXISTÊNCIA.
II. Em segundo lugar, S. pode significar existência privilegiada ou primária, na sua modalidade primeira e
fundamental, da qual dependem todas as suas manifestações de-termináveis. Na maioria das vezes, este
segundo significado é preparado e anunciado pelo acima exposto (2S
, I). O S. se diz de muitos modos,
mas apenas um é seu significado primário e fundamental. Esse é o ponto de vista de Aristóteles (Met.,
VII, 4,1030 a 21). É justamente da relação entre os múltiplos significados que, à primeira vista, parecem
caber ao S. e o significado único e fundamental nos quais eles devem ser integrados, que nasce o
chamado "problema do S.". Trata-se do problema do significado primário, único e simples que se
presume no S., mas que permanece mais ou menos oculto na multiplicidade dos seus aspectos aparentes.
A investigação metafísica, na sua forma clássica, funda-se nesse problema. Trata-se de ver se existe um
significado primário de S.: em primeiro lugar, no sentido de expressar melhor que os outros a
existencialidade do S.; em segundo lugar, no sentido de possibilitar a integração dos outros significados,
servindo-lhes de fundamento ou princípio.
A indagação do problema do S. tende à determinação de um significado que preencha esses dois
requisitos. Mas a disputa a que dá origem só se compara à "batalha de gigantes" de que falava Platão
(.Sof, 246), em que se defrontam os gigantes, ou "filhos da terra", para os quais toda a realidade é corpo, e
os deuses, que afirmam a incorporeidade do S. e o reduzem às formas ideais. Na realidade, o significado
de S. não é suficientemente estabelecido pelo caráter de corporeidade ou pela sua negação, porque um ser
considerado corpóreo pode ter os mesmos caracteres formais de um S. considerado incorpóreo, como
ocorria com o S. de que falavam os dois grupos protagonistas da "batalha de gigantes". É bem verdade
que os caracteres formais do S. evidenciados como solução do problema, ou seja, como determinação do
significado primário de S., são sempre extraídos de uma esfera particular do S., ou pelo menos de um
grupo de entes, ou de um ente, de algum modo privilegiado e tomado como exemplo. Mas também é
verdade que em todos os casos só se pode obter resposta ao
SER
883
SER
problema do S. quando, entre os caracteres da esfera, do grupo ou do ente considerado, se escolhe um que
seja passível de generalização, vale dizer, que possa também referir-se às outras esferas, grupos ou entes.
Nesse sentido, Platão desafiava os materialistas a dizerem o que há de comum entre as coisas corpóreas e
as incorpóreas, desde que se diga que ambas são (Ibid., 247d). Mas, apesar de se procurar um significado
primário formal (generalizável) do S., pode-se dizer que todas as soluções para o problema só fazem
privilegiar, ou seja, considerar primária e "fundamental, uma modalidade determinada do ser. Ora, como
as modalidades pelas quais o S. pode ser enunciado ou asseverado são três (necessidade, possibilidade e
assertoriedade), teoricamente também são três as possíveis soluções para o problema do ser. Mas, uma
vez que (como veremos) a assertoriedade se reduz à necessidade, ao longo da história da filosofia
encontram-se duas soluções fundamentais, bem evidentes por trás das aparentes multiplicidades e
disparidades das soluções propostas. Para a primeira dessas soluções (que indicaremos com a) o S.
primário é a necessidade; para a segunda (que indicaremos com (3), o S. primário é a possibilidade. A
solução a corresponde à interpretação A do significado predicativo; a solução p corresponde às
interpretações Be C. Um caráter distintivo das duas soluções, mas que deve ser considerado secundário
por nem sempre estar presente, é o que exporemos a seguir. Na investigação do significado do ser, a
primeira delas não toma em consideração a própria investigação, enquanto a segunda pode tomar esse
fato em consideração, atribuindo-lhe importância na determinação do significado do ser. E o que fazem
Platão e os existencialistas.
a) A interpretação do S. segundo a modalidade da necessidade prevalece na metafísica clássica. A famosa
tese de Parmênides, "O S. é e não pode não ser" (Fr. 4, Diels), estabelece que o significado fundamental
do S. é a necessidade, o não poder não ser: no que se refere ao tempo, é eternidade (simultaneidade, totum
simul); no que se refere à multiplicidade, é unidade; no que se refere ao devir (nascer e morrer), é
imutabilidade (Fr. 8, 2-4, Diels). Aristóteles também dá prioridade à necessidade. Para ele, o princípio de
contradição, que fundamenta a sua "filosofia primeira" (ciência do S. enquanto S.), é o princípio que
postula a necessidade do S., que se realiza na substância.
Aristóteles diz: "Se a verdade tem significado, necessariamente quem diz homem diz animal bípede
porque isso significa homem. Mas se isso é necessário, não é possível que o homem não seja animal
bípede: necessidade significa exatamente isto: é impossível que o S. não seja" (Met., IV, 4, 1006 b 30). O
aspecto pelo qual é necessário que um S. seja (o único graças ao qual o S. é objeto de ciência, visto que
do S. acidental não há ciência, Ibid., VI, 2,1027 a) é a sua substância. Aristóteles diz: "É um só o
significado do S.: a sua substância. Indicar a substância de uma coisa é indicar o seu S." (Ibid., IV, 4,
1007 a 26). Portanto, para ele, a substância é o sentido primário do S.; é também o sentido fundamental,
no qual os outros significados podem ser integrados, visto que, para Aristóteles, todas as determinações
dis-tinguidas ou distinguíveis do S. são aspectos ou manifestações da substância (Ibid., VII, 17) (v.
SUBSTÂNCIA).
Este ponto de vista aristotélico foi decisivo para o desenvolvimento posterior do problema do S. Graças a
ele, o significado primário e fundamental do S. passou a ser (e continua sendo para grande parte da
filosofia) a necessidade, com os atributos, que traz consigo, de imutabilidade, eternidade, unidade, etc.
Mesmo quando esses atributos deixaram de referir-se à estrutura formal do S. (o que ocorreu no neoplatonismo antigo e árabe e no aristotelismo medieval), e passaram a referir-se a um ente privilegiado (ou
seja, não a todas as substâncias, mas à substância superior, Deus), considerou-se que as outras substâncias
derivariam ou participariam desta, e que derivariam ou participariam de sua necessidade e de seus
atributos. Assim, segundo S. Tomás, a participação das coisas criadas no S. de Deus é participação da
perfeição e da imutabilidade d'Ele (S. Th., I, q. 65, a. I). Mas o conceito que dominou a metafísica
medieval e, através dela, a moderna e a contemporânea, foi exposto por Avicena no séc. XI: a necessidade
do S. como tal. Todo S., enquanto tal, é necessário. Avicena dizia: "Se uma coisa não é necessária em
relação a si mesma, é preciso que seja possível em relação a si mesma, mas necessária em relação a uma
coisa diferente" (Met., II, I, 2). A propriedade essencial do possível é exatamente esta: precisar de outra
coisa que o faça existir em ato. Mas, por isso mesmo, o que existe em ato existe sempre necessariamente,
só que às vezes sua necessidade provém de outra coisa (Ibid.,
SER
884
SER
II, 2, 3). Os mesmos conceitos, expressos por Algazel (Mel, I, I, 8), fundamentaram a esco-lástica judaica
e cristã.
No mundo moderno, o conceito de S. como necessidade foi reafirmado principalmente por Spinoza e
Hegel. Spinoza viu o S. de Deus na necessidade, e o S. das coisas na necessidade com que derivam da
substância divina (Et, I, 8, scol. II). Hegel expressou esse mesmo conceito com o famoso aforismo que
serviu de base para toda a sua filosofia: "O que é racional é real; o que é real é racional." A racionalidade
do real é a sua necessidade; em virtude dela, o real, em suas determinações fundamentais, só pode ser o
que é. Por isso, Hegel diz que "a função da filosofia é entender o que é, pois o que é, é a razão" (Fil. do
dir., Pref.). Também por isso não existe um dever S., um ideal, uma perfeição que seja diferente do S. e
em cujo nome se esteja autorizado a criticar o S. ou a dar-lhe lições. "O que está entre a razão como
espírito autoconsciente e a razão como realidade presente, o que diferencia aquela razão desta e não
permite que se encontre satisfação nesta é o empecilho de alguma abstração que não se libertou e não se
tornou conceito" (Ibid., Pref.). Noutras palavras, só com falsas abstrações distingue-se o que deveria ser
do que é, racionalidade de S. real; isso significa que o S. real é tudo o que deve ser, e que sua modalidade,
seu sentido primário, é essa necessidade. Por outro lado, toda a filosofia de Hegel está voltada para a
demonstração da necessidade das determinações do S..- visa a mostrar que o S., em sua realidade, é tudo
o que deve ser (Ene, § I). A necessidade continua sendo o caráter primário do S. em concepções
filosóficas díspares. Quando Fichte afirma que S. e atividade do eu são a mesma coisa, está reconhecendo
como caráter essencial dessa atividade a necessidade com que ela se põe e o não-eu (Wissenschaftslehre,
1798, § 1). Conceber o S. como "Consciência" ou "Matéria" não faz diferença: as determinações
qualitativas não influenciam sua determinação formal primária. Tanto o Absoluto dos idealistas (Green,
Brad-ley e outros) quanto a matéria dos materialistas são S. necessários. Necessária é a História, de que
fala Croce, tanto quanto é necessário o Ato Puro, de que fala Gentile. Este afirmava: "A necessidade do S.
coincide com a liberdade do espírito" (Teoria generale, XII, § 20). Mesmo Rosmini, para quem a idéia do
S. como "S. possível" é fundamento do conhecimento humano,
vê na necessidade e na universalidade os caracteres primários do S. (Nuovo saggio, §§ 428-29). Husserl
afirma energicamente a necessidade do S. que ele considera primário, que é o S. da consciência: "À tese
do mundo, que é acidental, opõe-se a tese do meu eu puro e do viver do eu, que é necessária e indubitável.
Toda coisa dada, mesmo que presente em carne e osso, pode não ser; mas uma vivência, dada em carne e
osso, não pode não ser. Esta é a lei essencial que define essa necessidade e essa acidentalidade" (Ideen, I,
§ 46).
Característica típica dessa concepção do S., ou melhor, uma de suas teses fundamentais, é a identificação
entre S. e racionalidade, que serviu de princípio para a filosofia de Hegel. Algumas vezes essa
identificação foi entendida como imanentismo (v.), no sentido de ima-nência do S. na consciência.
Embora esta também seja uma tese hegeliana, nada tem a ver com a outra. Foi expressa pela primeira vez
por Parmênides, que, exatamente nesse sentido, identificou S. e pensar (Fr. 5; Fr. 8, 34-36, Diels).
Certamente a tese de Parmênides nada tinha a ver com o imanentismo, porque a noção de consciência
nem sequer tinha nascido (v. CONSCIÊNCIA): expressava apenas o caráter racional da necessidade
ontológica. Esse mesmo caráter era expresso por Aristóteles, na doutrina de que a determinação
fundamental da substância é a essência necessária, que é a razão de ser (logos) da coisa (Depart. an., I, 1,
639 b 15). Para Rosmini, o S. possível era a própria forma da razão (Nuovo saggio, § 396). A tese em
questão, ao mesmo tempo em que expressa a necessidade do S., postula um conceito correspondente de
razão em geral (v. RAZÃO).
Ao que parece, a ontologia de Hartmann escapa a essa tradição, pois não assume a necessidade como
significado primário do S., mas a efetividade (Wirklichkeit), à qual seriam redutíveis possibilidades e
necessidades. A efetividade é a terceira alternativa da modalidade do S., a assertoriedade. O S. ao qual o
dever-ser e o poder-ser se reduzem, segundo Hartmann, é o S. simplesmente existente, em sua pura
efetividade ou atualidade, o S. que, no domínio da realidade de fato, apresenta-se "desse modo e não de
outro", ou seja, como existência análoga à matéria. Mas os enunciados nos quais, segundo Hartmann, se
expressa a redução do necessário e do possível ao atual demonstram que, na realidade, a efetividade ainda
é e sempre foi necessidade. Esses enun-
SER
885
SER
ciados são os seguintes: I
a
o que é realmente possível é também realmente efetivo; 2- o que é realmente
efetivo é também realmente necessário; 3a
o que é realmente possível é também realmente necessário.
Negativamente: 4e
aquilo cujo S. é realmente impossível também é realmente inefetivo; 5a
o que é
realmente inefetivo também é realmente impossível; 6° aquilo cujo não-S. é realmente possível também é
realmente impossível (Mõglichkeit und Wirklichkeit, 1938, p. 126). Assim, o primado da asserto-riedade
não tem significado diferente do primado da necessidade. A ontologia de Hart-mann pretendeu apresentar
a terceira solução teoricamente possível para o problema do S., mas essa solução é idêntica, mesmo em
sua enunciação, à interpretação do S. como necessidade, típica da antiga metafísica.
P) O primeiro a formular a concepção de S. primário como possibilidade foi Platão, para quem essa
concepção atende a duas exigências fundamentais: em primeiro lugar, explicar por que se diz que tanto as
coisas corpóreas quanto as incorpóreas são(Sof, 247 d); em segundo lugar, levar em conta o fato de que o
S. é ou pode ser conhecido (Ibid., 248 e). A primeira exigência exclui que a materialidade ou a
imaterialidade possam fazer parte da definição do S. A segunda exclui que da definição do S. possam
fazer parte determinações necessárias; p. ex.: que o S. seja necessariamente imóvel (ou seja, que "tudo
seja imóvel), ou que o S. esteja necessariamente em movimento (ou seja, que "tudo esteja em
movimento"), etc. (Ibid., 249 d). Em vista disso, Platão afirma que o ser é apenas possibilidade (ôúva|
i,iç); portanto, pode-se dizer que qualquer coisa é, desde que tenha uma possibilidade qualquer de praticar
uma ação, ou então de ser submetida a uma ação por parte de outra coisa qualquer, ainda que
insignificante e mesmo que essa ação seja mínima e só ocorra uma vez {Ibid., 247 e). Nesse sentido,
possibilidade nada tem a ver com a potência de Aristóteles. A potência, de fato, é tal apenas em relação a
uma atualidade que, ela só, é o S. primário (v. ATO). Mas para Platão o S. primário é mesmo
possibilidade. Possibilidades são também as relações reais entre os entes: estes não se mesclam nem
deixam de mesclar-se em absoluto, mas apresentam determinadas possibilidades de relações. O mesmo
que acontece com as letras do alfabeto e com os sons — alguns podem misturar-se e outros não —
acontece com todas as coisas: desse
modo, não é tarefa da filosofia enunciar a tese universal da necessidade ou da impossibilidade da
comunicação, mas estudar em particular quais são as coisas que podem (èSéAiw) unir-se entre si e quais
as que não podem (Ibid., 252-53). Este conceito não dá ensejo a uma metafísica simetricamente oposta
àquela que interpreta o S. como necessidade: não dá ensejo a nenhuma metafísica. É essa sua principal
característica. De fato, se é possibilidade, o S. não tem determinações unívocas necessitantes: não é
necessário que ele seja um, e não muitos; imutável, e não mutável; imóvel, e não em movimento; eterno,
e não temporal, etc. De duas determinações opostas e contraditórias, não é necessário que uma lhe
pertença e a outra não: ambas podem pertencer-lhe em determinadas mas diferentes condições. Portanto,
não é possível enumerar definitivamente as determinações unívocas do ser. Platão chegara a essa
conclusão em Parmênides; neste diálogo mostra-se que o S. não é um ou muitos, mas um e muitos ao
mesmo tempo, no sentido de que tanto pode ser um quanto muitos (144 e), e que o mesmo vale para as
outras suas determinações eventuais. A desconcertante conclusão deste diálogo é que "o uno, sendo ou
não sendo, ele e as outras coisas, em relação a ele e entre si, todas, em tudo, são e não são, aparecem e
não aparecem" (166 c): palavras que reconhecem a possibilidade de determinações opostas do S. e
excluem que ele possa ser chamado de "um" ou "muitos", ou mesmo simplesmente "S." em sentido único
e absoluto. Deste ponto de vista, uma metafísica que seja o inventário sistemático das determinações
unívocas e absolutas do S. é manifestamente sem sentido. Portanto, não se deve esperar que essa
concepção dê formulações sistemáticas, análogas ou correspondentes à filosofia primeira de Aristóteles, à
metafísica clássica. Ao contrário, podemos dizer que essa concepção tende a evidenciar-se sempre que a
determinação das características universais e necessárias do S. cede lugar à investigação empírica: esta
última é busca de possibilidade, não de determinações necessárias. Deste ponto de vista, pode-se dizer
que a tradição filosófica empirista é herdeira e principal representante da concepção de S. cuja primeira
formulação se encontra no Sofista de Platão. Uma possibilidade pode ser determinada unicamente com
base na experiência, na observação dos fatos, nunca por meio puramente racional ou a priori. Atribuir
SER
886
SER
ao S. o significado de possibilidade significa abrir caminho a indagações específicas, destinadas a
determinar, em cada caso, de que possibilidade se trata. Com fundamento na concepção a, mesmo que as
determinações do S. mudem, é necessário que mudem, pois a mudança é determinada por princípio e
absolutamente previsível. Quanto à concepção (3, ao contrário, toda determinação, porquanto possível, só
pode ser confirmada por investigação ad hoc.
Sabemos que para os estóicos o significado do S. estava na possibilidade de praticar ou de sofrer uma
ação; por isso,.chamavam de entes apenas os corpos (PLUTARCO, Comm. Not., 30, 2,1073; DIÓG. L., VII,
56); mas, apesar de tê-los encaminhado para o materialismo, esse princípio não constituiu a base de um
empirismo coerente. O empirismo, ao contrário, surge sempre que se nega a tese fundamental da
concepção oposta, que é a redutibilidade do S. a predicado. Tal negação pode ser considerada uma tese
típica dessa concepção, assim como é típica da outra a identificação entre S. e racionalidade. No fim da
Escolástica, Ockham formulava a tese de que o S. ou o não-S. de uma coisa só pode ser alcançado pelo
"conhecimento intuitivo", que é a própria experiência (In Sent, II, q. 15 H; Ibid., Prol, q. 1 Z); de tal
modo, podia afirmar a irredutibilidade do S. a uma determinação conceituai e o seu significado de
possibilidade. E diz: "À pergunta 'a coisa existe?' só se pode responder quando se sabe se a coisa existe:
isso acontece quando se conhece uma proposição na qual o S. existencial é predicado do sujeito. Ora, uma
proposição assim discutível (...) de nenhum modo pode ser conhecida com evidência, se a coisa
significada pelo sujeito não for conhecida intuitivamente e em si: p. ex., se ela não for percebida por um
sentido particular ou se não for um inteligível não sensível que seja visto pelo intelecto de modo análogo
àquele pelo qual a faculdade visual externa vê o objeto visível. Assim, ninguém pode saber com evidência
que o branco éou pode ser se não viu algum objeto branco; e embora eu possa acreditar nas pessoas que
me falam da existência do leão, do leopardo e assim por diante, não conheço com evidência essas coisas"
(Summa log., III 2). Aqui o sentido primário do S. é posto na possibilidade da experiência.
Conseqüentemente, Ockham atribui necessidade apenas às proposições condicionais ("Se o homem é, o
homem
é um animal racional"), enquanto nega que uma proposição afirmativa qualquer possa ser necessária.
Todas as proposições afirmativas são contingentes porque a proposição "O homem é animal racional"
seria falsa por falsa implicação, se o homem não existisse (Quodl, V, q. 15). Esses reparos implicam duas
tese fundamentais: 1Q
o S. não é redutível a um predicado; 2- o S. é uma possibilidade que pode ser
expressa só por uma proposição contingente. Esta última tese revela a modalidade primária que as
observações de Ockham atribuem ao S.: essa modalidade é a possibilidade. O empirismo clássico do séc.
XVII-XVIII atém-se a essa modalidade. Locke contrapõe a certeza das proposições universais, que não
dizem respeito à realidade, à contingência das proposições particulares, que dizem respeito à existência.
"As proposições universais, de cuja verdade ou falsidade podemos ter conhecimento seguro, não dizem
respeito à existência; as afirmações ou negações particulares, que não seriam certas se transformadas em
gerais, referem-se apenas à existência, pois declaram somente a união ou a separação acidentais das idéias
em coisas existentes, idéias que, em sua natureza abstrata, podem não ter entre si nenhuma ligação ou
rejeição conhecida" (Ensaio, IV, 9, I). Portanto, com exceção apenas da existência de Deus, conhecida por
meio da demonstração, ou seja, por meio da relação que ela tem com outras existências, segundo Locke a
existência é conhecida de modo contingente e imediato, através de uma relação direta com o objeto:
relação que é intuição no caso da existência do eu e sensação no caso da existência das coisas. Isso exclui
que a existência seja um predicado ou que de qualquer maneira possa ser reduzida a uma determinação
conceptual. Locke diz: "Como, com exceção da existência de Deus, não existe nenhuma conexão
necessária de qualquer existência com a existência de algum homem em particular, segue-se que ninguém
em particular pode conhecer a existência de outro ser senão quando este, atuando sobre ele, passa a ser
percebido. O fato de se ter a idéia de uma coisa em mente não demonstra a existência dessa coisa, tanto
quanto o retrato de um homem não serve de testemunho de sua existência no mundo, ou tanto quanto as
visões de sonho não constituem, por si, uma história verídica" (Ibid., W, II, I). Esse conceito da sensação
como órgão de conhecimento do que existe nada mais é que o antigo
SER
887
SER
conceito estóico de representação cataléptica, que "deriva de um ente subsistente e é impressa e marcada
por ele, de tal modo que se conforma a ele" (DIÓG. L., VII, 46; SEXTO EMPÍRICO, Adv. math., VII, 248).
Essa doutrina eqüivale a definir o S. das coisas como possibilidade de manifestação delas à percepção ou
como percepção mesmo.
A definição de S. como possibilidade é explicitamente retomada pela filosofia alemã do séc. XVIII, em
especial por Wolff: "Ente é o que pode existir e, conseqüentemente, cuja existência não repugna" (Ont., §
134). Mas como o que pode existir é possível, o que é possível é ente (Ibid., § 1 35). Mas nesta definição
tudo depende, obviamente, do significado de possível. E a propósito Wolff retoma um conceito talvez
oriundo de Duns Scot (In Sent., I, d. 2, q. 7), que se encontra já formulado em Leibniz (Théod, II, § 224):
"possível é o que não implica contradição, vale dizer, o que não é impossível" (Ont., § 85). Desse ponto
de vista, a possibilidade era definida como simples ausência da impossibilidade, ou seja, como
necessidade negativa. Portanto, nessa doutrina, a concepção de S. em termos de possibilidade era simples
aparência. Kant, com muita firmeza, viu o que se escondia por trás dessa aparência: "O jogo de prestígio,
em virtude do qual a possibilidade lógica do conceito (que não se contradiz) é confundida com a
possibilidade transcendental das coisas (em virtude da qual ao conceito corresponde um objeto), pode
enganar e contentar só os inexperientes". A "possibilidade real" é a dada por uma intuição sensível, isto é,
pela experiência atual ou possível (Crít. R. Pura, Anal. dos princ, cap. II). Conseqüentemente, "S. não é
predicado real, ou seja, um conceito de alguma coisa que se pode acrescentar ao conceito de uma coisa.
(...) Se eu disser Deus é ou que Deus existe, não estarei afirmando um predicado novo do conceito de
Deus, mas apenas o conceito em si, com todos os seus predicados, e o objeto em relação ao meu conceito.
Ambos devem ter exatamente o mesmo conteúdo, porém nada se pode acrescentar ao conceito que
expressa simplesmente a possibilidade quando penso seu objeto como dado (com a expressão: 'Ele é')"
(Ibid., O ideal da razão pura, seção IV). Deste ponto de vista, está claro o caráter limitado e condicional
de qualquer possibilidade ou S., portanto o caráter fictício ou fantasioso de uma "possibilidade absoluta",
que valha sob
qualquer aspecto (Ibid., Anal. dos princ, Refu-tação do idealismo). Na filosofia contemporânea, as
doutrinas abaixo remetem-se a essa interpretação do significado do S.
d) Teorias que, em matemática, em física e nas ciências em geral, definem a existência como modo de S.
particular; p. ex., como "ausência de contradição", "possibilidade de construção" ou "possibilidade de
verificação". A modalidade não necessária do S. que assim se define é evidente (v. EXISTÊNCIA).
b) Formas do empirismo, que só reconhecem S. aos objetos de experiência possível. É a possibilidade de
experimentação e observação que define o significado do S. (v. EXPERIÊNCIA).
c) Teorias filosóficas que afirmam o primado da possibilidade. Seu precedente está na filosofia de
Kierkegaard, que foi o primeiro a propor uma interpretação da existência humana em termos de
possibilidade (V. EXISTÊNCIA, 3). Por outro lado, o mesmo ponto de vista pode ser reconhecido em alguns
aspectos da fenome-nologia de Husserl e nas doutrinas a ela ligadas. Embora Husserl privilegie o S. da
consciência e o considere necessário, ao contrário das realidades das coisas, a análise fenome-nológica,
sob esse aspecto, é uma análise de possibilidade; para ela, como disse Heidegger (Sein undZeit, § 7 C):
"mais elevada que a realidade está a possibilidade". Husserl diz: "Para mim, o fato de uma natureza, um
mundo cultural e humano, com as suas formas sociais, etc, existirem significa que as experiências
correspondentes me são possíveis, ou seja, que, independentemente de minha experiência real desses
objetos, posso, a qualquer instante, realizá-los e desenvolvê-los em certo estilo sintético. Isso significa
que me são possíveis outros modos de consciência correspondentes a essas experiências como atos de
pensamento indistinto, etc, e que é inerente a esses atos a possibilidade de eles serem confirmados ou
invalidados por meio de experiências de um tipo previamente estabelecido" (Cart. Med., § 37). Deste
trecho significativo, decorre que a análise fenomenológica é uma análise em termos de possibilidade; vale
dizer: a possibilidade é o significado primário que ela atribui ao ser. O mesmo acontece no
existencialismo. Heidegger disse: "O ser-aí, enquanto compreensão, projeta o seu S. em possibilidades"
(Sein und Zeit, § 32); na realidade, todas as análises de Heidegger têm como tema as possibilidades do
ser-aí, que constituem o
SER, GRANDE
888
SER-AÍ
tema da analítica existencial. Do mesmo modo, para Jaspers, as possibilidades objetivas constituem a
própria existência (Phil., § 18), enquanto Sartre afirma que "o possível é uma estrutura do para-si, ou seja,
da consciência" (Lêtre et le néant, p. 34). É verdade que, para Sartre, distinguir-se-ia dessa estrutura o S.
em si, que é o S. do fenômeno que não seria nem possível nem necessário, mas simplesmente existente.
Entretanto, Sartre atribui a esse mesmo S. o caráter de contingência e não acha possível analisar o S. em
si senão a partir do S. para si, a consciência: portanto, nessa doutrina, o primado da possibilidade é
evidente.
Cumpre observar, porém, que uma das características da concepção em exame é a recusa explícita das
soluções simples e globais para o problema do S., ou a desistência de encontrá-las; portanto, é o abandono
do tratamento "metafísico" desse problema. De fato, reconhecer o significado do S. como possibilidade
exige que se passe imediatamente à consideração e ao estudo das possibilidades, nos campos específicos
em que são condicionadas, onde têm "realidade". Logo, não é possível desenvolver uma metafísica da
possibilidade, tomando como modelo a metafísica clássica da necessi-cidade e visando a substituí-la.
Uma tentativa desse gênero só teria como resultado o retorno puro e simples à metafísica da necessidade:
isso se demonstra no próprio Heidegger, que, ao abandonar o terreno da análise existencial e passar à
elaboração do "problema do S. em geral", voltou às teses clássicas da metafísica tradicional com o
reconhecimento da necessidade do S. (Einführung in die Me-taphysik, Tübingen, 1953).
SER, GRANDE (fr. Grand Être). Foi desse modo que Comte designou a humanidade como primeira
pessoa da trindade positivista; a segunda pessoa seria o Grande Fetiche (a Terra) e a terceira, o Grande
Meio (o Espaço) (Synthèse subjective ou système universal des conceptions propres ã 1'humanité, 1856).
SER-AÍ (in. There-being ou Beingthereness, fr. Réalité-humaine, ai. Dasein; it. Esserct). O termo alemão,
que é o originário, começa a ser usado no séc. XVIII. Em italiano, o termo esserci é usado por Spaventa
(Princ. di fil, 1867, p. 134) para traduzir o correspondente termo hegeliano e, em inglês, There-being foi
usado por Stirling em Segredo de Hegel (1865) para traduzir o mesmo termo. Beingthereness,
em inglês, e Realité-humaine, em francês, são usados hoje para traduzir o significado existencialista do
termo. Ele significa, na origem, existência real, tanto das coisas finitas quanto a de Deus. Nesse sentido, é
empregado por Kant (Crít. R. Pura, Anal., II, cap. 2, seção 3, 4): "No simples conceito de uma coisa não
se pode encontrar nenhum caráter de sua existência real (.Dasein). Porque, ainda que ele seja tão
completo que nada lhe falte para pensar o objeto com todas as suas determinações internas, a existência
real nada tem a ver com isso, mas só com a questão de que uma coisa nos é dada, de tal modo que a
percepção dela possa sempre preceder o seu conceito". Nesse sentido, para Kant, é a segunda das
categorias da modalidade e opõe-se ao não-ser (Ibid., § 10). Usando essa palavra no mesmo sentido,
Jacobi dizia que a filosofia tem a tarefa de desvendar e revelar a existência (Werke, IV, p. 72). Hegel fazia
a distinção entre o Dasein, como simples determinação do ser, e a existência, que é o ser em relação. Diz:
"Etimologicanente, Dasein é estar em determinado lugar, mas a representação espacial não vem ao caso.
O Dasein, ou ser determinado, é em geral, em conformidade com seu devir, um ser com um não-ser, de
tal modo que esse nâo-ser está reunido em unidade simples com o ser" (Wissenschaft der Logik, 1,1, seção
I, cap. 1, A; trad. it., p. 109). Em palavras mais simples, o Dasein é o ser com determinado caráter ou
qualidade, aquilo que se chama em geral de "alguma coisa" (Ene, § 90). Mas, no uso filosófico
contemporâneo, essa palavra ingressou com o significado atribuído pelo existencialismo, sobretudo por
Heidegger, que a usou para designar a existência própria do homem. "Esse ente, que nós mesmos sempre
somos e que, entre as outras possibilidades de ser, possui a de questionar, designamos com o termo
Dasein." (Sein und Zeit, § 2). Assim entendido, o S. possui um "primado ôntico", no sentido de que deve
ser interrogado primeiramente, e um "primado ontológico", porquanto a ele pertence originariamente
certa compreensão do ser: por isso, ele é também o fundamento de qualquer ontologia (Ibid., § 4). Na
filosofia contemporânea, esse termo é habitualmente usado no significado específico estabelecido por
Heidegger, como ser do homem no mundo. Jaspers usa-o nesse sentido (Phil, I, 6 ss.). Com significação
semelhante, foi usado por Husserl, que com ele designa a existência da consciência, considerada
privilegiada por-
SERIE
889
SEXO
que necessária: "Na essência de um eu puro, em geral, e de uma vivência em geral funda-se a
possibilidade ideal de reflexão que tem o caráter de evidente e inextinguível tese do S." (Ideen, I, § 46).
SÉRIE (in. Series; fr. Série, ai. Reihe, it. Serie). 1. Conjunto de termos entre os quais haja qualquer
relação definível.
2. Relação assimétrica, transitiva e coerente. Neste sentido, S. não é conjunto de termos, ou seja, campo
de relação, mas a própria relação-, p. ex., as séries 1, 2, 3; 1, 3, 2; 2, 3, 1 são diferentes embora tenham o
mesmo campo (cf. B. RUSSELL, Introduction to Mathematical Philo-sophy, IV; trad. it., p. 47). (V.
RELAÇÃO.)
SERIEDADE (in. Earnestness; fr. Sérieux, ai. Ernst; it. Serietã). Kierkegaard fez da S. uma espécie de
categoria moral, definindo-a como "a originalidade conquistada pelo sentimento, conservada na
responsabilidade da liberdade e afirmada no gozo da bem-aventurança". A S. consiste na repetição e é
condição para que a repetição não diminua o valor dos atos repetidos (Der Begriff Angst, IV, § 2, c).
SER LANÇADO. V. DECADÊNCIA; FACnCIDADE.
SER PARA SI. V. PARA SI.
SERVO e SENHOR. V. ESCRAVIDÃO.
SEXO (in. Sex, fr. Sexe, ai. Sex, it. Sesso). 1. Raramente os filósofos trataram do sexo como componente
do homem. Em O Banquete, de Platão, ao falar da origem do sexo, Aristófanes expõe o mito dos
andróginos, dos quais, por meio de uma separação desejada por Zeus com fins punitivos, ter-se-iam
originado os dois sexos complementares (O Banq., 189 e). Mas as especulações platônicas não versam
propriamente sobre o sexo, mas sobre o amor. É o que também fazem muitos outros filósofos, inclusive
Schopenhauer, que, em Metafísica do amor sexual, considera o amor sexual como um expediente de que
se valeria o "gênio da espécie", ou Vontade de Vida, para favorecer a obra obscura e problemática da
propagação da espécie. No mundo moderno, a ação da psicanálise (v.) chamou a atenção dos filósofos
para o S.; foram especialmente os fenome-nologistas e os existencialistas que se interessaram pelos
fenômenos a ele relativos. Max Scheler, no livro Wesen und Formen der Sym-pathie (1923; trad. fr., pp.
168 ss.), tentou atribuir ao ato sexual o valor de forma de expressão da personalidade humana. Por outro
lado, enquanto Heidegger considerou o Dasein desprovido de sexualidade, Sartre considerou a
sexualidade como estrutura fundamental da existência: "Embora o corpo tenha uma tarefa importante,
precisa remeter-se ao ser no mundo e ao ser para os outros: desejo um ser humano, não um inseto ou um
molusco, e desejo-o na medida em que ele está, e eu estou, em situação no mundo, e na medida em que
ele é outro para mim e eu sou outro para ele" (Vêtre et le néant, 1943, pp. 452-53). O sexo seria a
estrutura fundamental da existência humana enquanto existência no mundo (cf. também ABBAGNANO,
StrutturadelVesistenza, 1939, §55) (v. AMOR, PSICANÁLISE).
2. Os filósofos, ao contrário, insistiram freqüentemente na diferença sexual. Para Aristóteles, a mulher
constitui uma monstruosidade da natureza, inevitável porém para a conservação da espécie (Degen. an.,
7, 775 a 15-17). A mulher difere do homem por participar em menor grau dos poderes da razão (Poi.,
1260 a 11-14): portanto, seu lugar é de subordinação ao homem, a este cabendo comandar e a ela
obedecer (Pol., 1254 b 13-15; 1259 b 2-10). Por um vínculo constante na tradição, essa desvalorização da
dignidade da mulher é acompanhada pela exaltação da família (que, segundo Aristóteles, existiria mesmo
que não houvesse sociedade) e das tarefas e virtudes familiares da mulher (Pol., 1260 a 29-31; Et. nic,
1162 a 19-27). Exatamente por isso Schopenhauer defendeu a poligamia, que estaria destinada a combater
as pretensões da mulher à equiparação e a eliminar o fenômeno da prostituição (Parerga und
Paralipomena, II, 27, § 362 ss.).
Por outro lado, Platão, mesmo admitindo a inferioridade da mulher (Rep., 455), considerava que homens
e mulheres deviam ser admitidos indiferentemente em todos os níveis da educação, para que às funções
exercidas pelas classes superiores tivessem acesso apenas os indivíduos que demonstrassem capacidade
de exercê-las, qualquer que fosse o sexo. Cínicos e estóicos afirmavam, como princípio, a igualdade entre
homens e mulheres. A mulher de Crates andava pelas ruas de Atenas usando, como o marido, o saio tosco
dos cínicos-, e um ponto da doutrina estóica era que homens e mulheres deveriam usar as mesmas roupas
(DIOG. L., VII, 33). As mulheres eram aceitas na escola de Epicuro, na qual muitas exerceram cargos de
direção.
Na antropologia contemporânea, não se subestima a diferença entre os S., tanto quanto qualquer outra
diferença biológica existente en-
SIGNIFICAÇÃO ou SIGNIFICADO 890 SIGNIFICAÇÃO ou
SIGNIFICADO
tre os indivíduos humanos, mas faz-se a distinção entre essa diferença e a exigência de paridade de
direitos, baseada no reconhecimento de que as funções subordinadas atribuídas à mulher, na maior parte
das sociedades conhecidas, é um produto cultural, para o qual pouco ou nada contribui a diferença entre
as funções biológicas.
SIGNIFICAÇÃO ou SIGNIFICADO (gr XEK-TÓV; lat. Significaticr, in. Meaning; fr. Signifi-cation; ai.
Bedeutung; it. Significató). Entende-se por este termo a dimensão semântica do procedimento
semiológico, ou seja, a possibilidade de um signo referir-se a seu objeto. Os aspectos (ou condições)
fundamentais do S. são dois: 1Q
um nome, um conceito ou uma essência (p. ex., "Alessandra Manzoni",
"homem", "autor de Os noivos"), usados com a finalidade de delimitar e orientar a referência; 2a
o objeto
(p. ex., respectivamente, Alessandra Manzoni, os homens, Alessandra Manzoni), ao qual o nome, o
conceito ou a essência se referem. Os dois aspectos são inseparáveis; o segundo é função do primeiro
porque é o nome ou conceito que determina a que objeto se faz ou não referência. Mas os dois aspectos
não se identificam porque o objeto pode ser o mesmo, ao passo que o nome ou conceito usado para a
referência é diferente, como no caso de "Alessandra Manzoni" e "autor de Os noivos", que se referem ao
mesmo objeto, mas são nomes diferentes. Tampouco as determinações que têm o mesmo objeto podem
ser consideradas equivalentes, porque não podem ser substituídas umas pelas outras; p. ex., perguntar se
"Alessandra Manzoni é o autor de Os noivos" não é o mesmo que perguntar "se Alessandra Manzoni é
Alessandra Manzoni". A diferença entre os dois aspectos do S. (ou a relação entre eles) constitui a base
dos problemas aos quais esse termo deu origem e das diferentes definições que ele recebeu.
Os estóicos, que fundaram a doutrina da S., reconheceram ambos os aspectos. "São três os elementos que
se inter-relacionam: o S., aquilo que significa e aquilo que é. O que significa é a palavra, como p. ex.
'Díon'. O S. é a coisa indicada pela palavra, que nós apreendemos ao pensarmos na coisa correspondente.
Aquilo que é, é o sujeito exterior, como p. ex o próprio Díon" (SEXTO EMPÍRICO, Adv math., VIII, 12).
Mais precisamente, para eles S. é uma "representação racional, graças à qual é possível expor por meio de
um discurso aquilo que é
representado" (Ibid., VIII, 70; DIÓG. L., VII, 63). Nestas observações, os dois aspectos do S. são
chamados respectivamente de "palavra", ou "representação racional", e "aquilo que é", ou "sujeito".
"Aquilo que é", ou "sujeito", é o S. como objeto; a "palavra", ou "representação racional", é o S. como
nome, conceito ou essência. Os estóicos reservam especialmente a este último aspecto o nome de S.;
nisso, são seguidos (como veremos) por alguns autores modernos. Na lógica medieval, a distinção entre
os dois aspectos foi expressa como distinção entre "significação" e "suposição". Pedro Hispano diz: "A
suposição e a significação diferem porque a significação é feita por meio da imposição de uma palavra
para significar um objeto, mas a suposição é a acepção de um termo já significante para alguma outra
coisa, como, p. ex., quando se diz o homem corre', e o termo 'o homem' está no lugar de Sócrates e no
lugar de Platão. Portanto, a significação precede a suposição, e as duas coisas não são idênticas porque
significar é próprio da palavra, e a suposição é própria do termo que já é composto de palavra e
significado" (Summ. log., 6.03). Aqui, entende-se por significatio o mesmo que os estóicos entendiam por
lékton-. o conceito ou a representação usada para a referência objetiva, ao passo que a própria referência
objetiva é designada como suppositio. Mas, além das idéias dos estóicos, essa doutrina inclui a separação
dos dois aspectos do S., atribuindo o primeiro aos termos tomados isoladamente, o segundo aos
conjuntos, ou seja, às proposições. Doutrina idêntica era exposta na Idade Média por Ockham (Sutnma
log., I, 63), por Buridan (Sophismata, 2) e por Alberto da Saxônia (Lógica, II, 1), ao passo que S. Tomás
aludia a uma doutrina diferente apenas do ponto de vista terminológico, segundo a qual S. e suposição
coincidem nos termos particulares mas não nos gerais, para os quais S. é essência (S. Th., I, q. 39, a. 4, no
início).
É na distinção entre os dois aspectos de S. que se baseia a distinção estabelecida pela lógica moderna de
cunho tradicional entre os dois elementos do conceito, chamados ora de compreensão e extensão (v.
COMPREENSÃO), ora de intenção e extensão (v. INTENSÃO), ora de conotação e denotaçâo (v.
CONOTAÇÃO). O primeiro par de termos foi introduzido pela Lógica de Port-Royal (I, 6); o segundo, por
Leibniz (Nouv. ess., IV, 17, § 9); o terceiro, por Stuart Mill (Logic, 1,1, § 5). Este último propunha
restringir o sentido de S. à
SIGNIFICAÇÃO ou SIGNIFICADO
891
SIGNIFICAÇÃO ou SIGNIFICADO
conotação, chamando-se de denotação a referência objetiva. Dizia: "Sempre que os nomes dados aos
objetos comportam alguma informação, ou seja, sempre que, propriamente, têm um S., o S. não reside
naquilo que eles denotam, mas naquilo que eles conotam. Os únicos nomes de objetos que nada conotam
são os nomes próprios; estes, a rigor, não têm significação" (Ibid., I, 2, § 5). O que ele entendia por
conotação aparece claramente no trecho seguinte: "A palavra homem, p. ex., denota Pedro, Joana, João e
um número indefinido de outros indivíduos, que ela designa como classe. Mas essa palavra é aplicada a
eles na medida em que possuem certos atributos, e para significar que os possuem" {Ibid.). Os atributos
que constituem o homem — p. ex., corpo-reidade, animalidade, racionalidade, etc. — formam, portanto, a
conotação do nome "homem": aquilo que a tradição filosófica chamava de "essência" ou, mais tarde,
"conceito".
Portanto G. Frege nada mais fazia além de expressar uma antiga e nova tradição, ao distinguir sentido e
significado. Dizia: "Ao pensar num signo (seja ele um nome, uma expressão com várias palavras, ou uma
simples letra) devemos relacioná-lo com duas coisas distintas: não só com o objeto designado, que se
chamará de significado (Bedeutung) desse signo, mas também com o sentido (Sinrí) do signo, que denota
o modo como nos é dado esse objeto". Frege advertia que, por sentido ou nome, entendia "uma indicação
qualquer que desempenhe a função de nome próprio, vale dizer, que seja um objeto determinado
(tomando a palavra objeto no sentido mais amplo)" (Über Sinn und Bedeutung, 1892, § 1; trad. it., em
Aritmética e lógica, pp. 218-19). A mesma distinção era feita por Peirce, mas com terminologia diferente:
Peirce falava de objeto do signo e de interpretante do signo, que é o sentido de Frege. Peirce diz: "O
signo cria alguma coisa no espírito do intérprete e esse alguma coisa, por ter sido criado pelo signo, foi
criado também, de modo mediato e relativo, pelo objeto do signo, embora o objeto seja essencialmente
diferente do signo. Essa criatura do signo é chamada de interpretante" (Coll. Pap., 8.179, o texto é de
1903). Essa terminologia foi substancialmente aceita por Morris, que deu ao objeto o nome de
designatum, e ao conceito o de interpretante (Foundations of the Theory of Signs, 1938, § 2). É verdade
que Morris considera inútil o termo "significado", que lhe parece
capaz de provocar muita confusão, e tenta evitá-lo em seu estudo (Ibid., § 12). Na realidade, porém,
consegue evitá-lo apenas porque introduziu em sua análise do signo, com outros nomes, os dois
componentes do S. que a tradição distinguiu constantemente. Os lógicos contemporâneos manifestam a
tendência, já presente em Stuart MiU, a restringir o uso da palavra significado à esfera da conotação.
Lewis, reservando esse termo para ambos os aspectos, faz a distinção entre significação (signification) do
termo (ou seja, a conotação) e sua referência objetiva, que ele distingue em denotação e compreensão: a
primeira seria a classe de todas as coisas reais às quais o termo se aplica, a segunda seria a classe de todas
as coisas possíveis às quais se aplica (Analysis of Knowledge and Valuation, 1946, cap. III, pp. 39 ss.).
Em seguida, Lewis faz a distinção entre significação e "significado-sentido" (sense mea-ning), que dela se
distinguiria por ser o modo como o espírito se refere à significação (Ibid., p. 113 e nota 3). Mas essas
distinções não modificam substancialmente a dicotomia tradicional do significado de significado. Essa
mesma dicotomia é expressa por Quine, como dicotomia entre S. (ou conotação, ou intensão) e
nominação (naming), que seria a extensão ou denotação (From a Logical Point ofView, 1953, II, 1), e por
Carnap, que nela baseia a dicotomia entre duas operações fundamentais possíveis em relação a uma
expressão lingüística dada: a de "analisar a expressão com a finalidade de entendê-la, de apreender seu S.,
e a que consiste na investigação da situação de fato à qual a expressão se refere" (Meaning andNecessity,
1947, § 45). Além disso, insistiu no fato de que o conceito de significado intencional, como condição
geral que um objeto deve preencher para que um falante X predique com esse significado o objeto, é
desprovido de qualquer referência psicológica e pode ser aplicado até a um robô (Ibid., p. 246 e nota 5).
Por sua vez, Church adotou a terminologia de Frege, chamando de sentido a conotação e de significado a
denotação, e introduzindo a palavra conceito: "Diremos que um nome denota ou nomeia a sua denotação
e expressa o seu sentido. Menos explicitamente, podemos dizer que um nome tem certa denotação e tem
certo sentido. Dizemos que o sentido determina a denotação ou é um conceito da denotação"
(Introduction to Mathematicallogic, 1956, § 01). Em confronto com essa sólida e — ressalvando-se a
varieda-
SIGNIFICAÇÃO ou SIGNIFICADO 892 SIGNIFICAÇÃO ou
SIGNIFICADO
de terminológica — uniforme tradição, estão as tentativas de modificá-la, quer unificando as duas
dimensões 04), quer acrescentando novas espécies de significados (B).
A) A tentativa de unificar as duas dimensões do significado foi feita em ambas as direções: reduzindo
sentido a significado, ou significado a sentido. A primeira tentativa foi feita por Russell e por
Wittgenstein. Toda a teoria exposta por Russell no artigo que escreveu em 1905 ("On Denoting",
atualmente in Logic and Knowledge, 1956, pp. 41 ss.), no primeiro capítulo de Principia mathematica,
que escreveu com Whitehead (1910), e no seu outro livro, An Inquiry into Meaning and Truth (1940),
consiste, nas próprias palavras do autor, no fato de que "não há significado, mas apenas, às vezes, uma
denotação" (Logic and Knowledge, p. 46, nota). Na realidade, para Russell, o S. de um símbolo se reduz
unicamente aos componentes do fato a que o símbolo se refere. "Os componentes do fato que tornam
verdadeira ou falsa uma proposição, conforme o caso, são os S. dos símbolos que devemos entender para
entender a proposição" (Logic and Knowledge, p. 196). Desse ponto de vista, a linguagem ideal é a que
tem apenas sintaxe e nenhum vocabulário, pois nela o vocabulário é inutilizado pela correspondência de
cada termo com um objeto simples e de cada objeto simples com um termo (Ibid., p. 198; cf.
LINGUAGEM). Essa doutrina foi expressa com rigor por Wittgenstein: "O nome significa o objeto. O
objeto é seu S." (Tractatus, 1922, 3- 203). "À configuração dos signos simples na proposição corresponde
configuração dos objetos na situação" (Ibid., 3.21). "O nome faz as vezes do objeto na proposição" (Ibid.
3.22). Desse ponto de vista, mesmo as proposições aparentemente sem sentido são legítimas porque "se
uma proposição não tem sentido, isso pode ser devido apenas ao fato de não termos dado S. a uma de suas
partes constitutivas" (Ibid., 5.4733), ou seja, de não termos estabelecido a correspondência entre essa
parte e um objeto. Essa conseqüência é importante porque constitui a redução ao absurdo do fato de se
eliminar o sentido (Sinri) do S.: a referência ao objeto, não sendo guiada ou limitada pelo conceito, é
sempre legítima, e só não aparece quando não é efetuada.
A redução inversa, de S. a sentido, vale dizer, a tentativa de reduzir S., em seu conjunto, à conotação ou
conceito, foi realizada por
Husserl. Este negou que o objeto constituísse o S. ou coincidisse com ele (Logische Untersu-chungen, II,
p. 46). Sua tese é que "o S. lógico é uma expressão", no sentido de que ele eleva o sentido (Sinri)
perceptivo da coisa "ao reino do logos, do conceituai, portanto do universal". Em outros termos, Husserl
substitui a dicoto-mia objeto-conceito pela dicotomia sentido (percebido)-conceito, na qual o conceito é a
essência da coisa, a sua conceituação ou expressão acabada (Ideen, I, § 124). Tentativa de redução
análoga a esta foi feita por Royce, que, depois de fazer a distinção entre S. externo de uma idéia, que é a
correspondência da idéia com o objeto, e seu S. interno, que é "o objetivo consciente incorporado na
idéia", reduz a este último o próprio S. externo, com o fundamento de que é "a própria idéia que escolhe o
objeto com o qual quer ser confrontada" (The World and the Individual, 1901, II, cap. I).
B) As principais tentativas de apresentar novas espécies de S. em acréscimo ou em concorrência com as
duas consagradas pela tradição são as seguintes:
I
a Definição de S. como uso. Esta é a tese encontrada em Philosophical Investigations (1953), de
Wittgenstein. "Para uma vasta classe de casos — embora não para todos —, nos quais empregamos a
palavra 'S.', esta pode ser assim definida: S. de uma palavra é seu uso na linguagem. O S. de um nome às
vezes é explicado indicando-se seu portador" (Op. cit., § 43). Mas, embora apresentada pelo próprio
Wittgenstein e por outros em concorrência com a definição semântica de S., a noção de uso pertence a
outra esfera de problemas e a outro nível de indagação. Com efeito, o problema a que diz respeito é o da
formação dos significados nas línguas naturais. O uso não éo S., mas determina-o, no sentido de que a ele
é devida a conexão entre um objeto e uma palavra (ou em geral um veículo "sígnico"). Sem dúvida, as
definições de um dicionário são estabelecidas pelo uso, mas exprimem a conotação e a denotação dos
termos. Portanto, a teoria do uso não é uma teoria do S., mas uma teoria sobre a origem e a formação das
línguas naturais.
2
a
A proposta de um S. emotivo, paralelamente ao S. "simbólico" ou "descritivo", foi feita por Ogden e
Richards (Meaning of Meaning, 1923, ed. 1952, p. 149 e passim) e expressa por E. L. Stevenson da
seguinte maneira: "S. emotivo é um S. em que a resposta (do ponto de vista de quem ouve) e o estímulo
(do ponto de
SIGNIFICAÇÃO ou SIGNIFICADO
893
SIGNIFICADO, ESPÉCIES DE
vista de quem fala) é um conjunto de emoções" (Ethics andLanguage, 1944, p. 59). O S. emotivo assim
entendido seria diferente do significado simbólico, que consistiria em sua referência ao objeto, e o próprio
significado poderia ser definido em geral como a qualidade disposicional de um signo a produzir uma ou
outra dessas reações, ou seja, um conjunto de emoções ou a referência ao objeto (Jbid., pp. 53 ss.).
Deixando de lado o fato de que o uso do termo emotivo para indicar normas legais, prescrições técnicas
ou comandos (coisas todas que caberiam na categoria dos significados emotivos) pode com motivo ser
considerado aberrante (v. EMOÇÃO), a doutrina em questão parece sugerida pelo fato de que o significado
denotativo é restringido à referência a coisas reais, de tal maneira que muitos signos simples ou
compostos parecem não ter denotação porque não se referem a coisas. Na realidade, a referência
denotativa vale para objetos em geral (v. OBJETOS), e objetos são tanto as coisas reais quanto as
quiméricas, tanto os planos, os projetos, os desejos e as aspirações quanto as qualidades sensíveis ou as
entidades percebidas. Portanto, um enunciado que expresse uma ordem, um desejo ou um projeto pode
ter, na situação a que tais coisas se referem, a sua denotação, vale dizer, seu objeto ou seu referente. Aliás,
nem mesmo do ponto de vista lógico, que é o da teoria do significado, tais objetos podem ser distinguidos
dos outros.
3
a
Na definição de significado como intenção de quem fala, o S. seria aquilo que o falante pretende dizer,
sem se levar em conta a referência objetiva da palavra ou do enunciado empregado. Neste sentido,
emprega-se "quer dizer..." (em inglês: lmean..., do verbo to mean, que tem a mesma raiz de meaning =
S.), para esclarecer ou corrigir uma declaração. Está bem claro que qualquer descrição ou esclarecimento
da intenção do falante só pode ocorrer através da determinação do objeto ao qual se refere, ou de sua
conotação, ou seja, por meio do uso das dimensões próprias do significado. Portanto, tais dimensões são
simplesmente pressupostas pela definição em foco. Às vezes é proposta como um S. acrescentado ao
tradicional (cf. M. BLACK, Problems of Analysis, 1954, pp. 55-56), porém está claro que a intenção do
falante não é outra espécie de significado, mas o modo como o falante usa as dimensões lógicas do
significado.
Associa-se a essa confusão entre intenção e S. o uso deste termo em frases como: "Um universo mecânico
não teria S.", "Se tudo acontecesse por acaso, a história não teria S.", nas quais a palavra S. obviamente
eqüivale a intenção ou objetivo, portanto a valor.
A- Proposta de um S. "pictórico" ou "ima-gético", paralelamente aos outros, porquanto "a linguagem pode
ser empregada com a intenção primária de exprimir ou evocar pinturas (ou imagens) de um modo que
difere do uso dos signos e formula possibilidades empiricamente significantes" (v. E. ALDRICH, Pictorial
Meaning and Picture Thinking", em Readings in Philoso-phical Analysis, 1949, pp. 175 ss.). Está claro
que também esta proposta é sugerida pelo pressuposto (estranho a qualquer teoria lógica do S.) de que o
objeto da referência é uma coisa real ou uma situação de fato e de que não pode ser de outra natureza. Na
realidade, os S. "pictóricos" têm conotação e denotação como todos os demais.
5
a
Definição do S. como vetor de campo, no sentido de que ele seria uma disposição atualizada pelo
objeto que se destaca do fundo de um campo ou contexto apropriado. Mais precisamente, ele seria a
ativação ou a atualização de uma resposta descritiva, provocada pelo objeto (A. P. USHENKO, The Field
Theory of Meaning, 1958, p. 109). Mas esta é uma teoria da formação dos S. (que pode ser discutida no
âmbito da teoria da linguagem) e não traz inovações no que se refere à composição do significado do S.,
que continua determinado por seus dois componentes: conotação e denotação (cf. Op. cit, pp. 75-76).
SIGNIFICADO, ESPÉCIES DE (in. Kinds of meaning; fr. Espèces de signification; ai.
Bedeutungsarten; it. Specie di significató). Podem-se distinguir várias espécies de S. quando se deixa de
fazer referência aos signos tomados isoladamente e passa-se a fazer referência aos conjuntos de signos,
aos enunciados. Estes podem ter: 1Q
um S. lógico; 2a
um S. factual; 3a um S. expressivo.
l
e
O enunciado tem S. lógico quando pode ser declarado verdadeiro ou falso com base no S. dos termos
que o compõem. Têm S. desse gênero proposições do tipo "nenhum solteiro é casado", que também são
chamadas de analíticas ou tautologias e são objeto da lógica. (V.
ANALÍTICO; LÓGICA.)
2
a
Têm S. factual os enunciados que, além de incluírem termos com S., são verificados por
SIGNIFICÂNCIA
894
SIGNO
um fato ou por um conjunto de fatos. Nesse sentido, têm S. factual as proposições das ciências naturais
(física, química, etc). Semelhantes enunciados também costumam ser chamados de sintéticos, para
distinguir dos enunciados analíticos da lógica. Reichenbach dividiu o S. factual em físico, que é a
possibilidade física, ou seja, não contradiz as leis empíricas, e técnico, que é a possibilidade técnica
definida por métodos práticos conhecidos ("Verifiability Theory of Meaning", em Proceedings of the
American Academy ofArts and Sciences, 1951, pp. 53 ss.).
O S. lógico e o S. factual costumam ser chamados de S. cognitivos ou teóricos; os enunciados que
possuem tais S. são reconhecíveis por possibilidade de serem declarados verdadeiros ou falsos.
3
C
Diz-se que têm S. expressivo as locuções que não têm S. teórico mas que apesar disso manifestam um
estado de espírito do sujeito que os emprega ou servem para produzir estados de espírito análogos no
sujeito que os ouve. As interjeições, as exclamações, as expressões metafóricas têm S. desse gênero.
Às vezes, especialmente por parte dos seguidores do empirismo lógico (v.), as expressões da metafísica
tradicional são consideradas enunciados desse gênero, negando-se-lhes qualquer valor cognitivo. Esse
uso, porém, é polêmico e só pode ser registrado como tal (v. ARTE;
METAFÍSICA; POESIA).
SIGNIFICÂNCIA (in. Significance, ai. Be-deutsamkeit; it. Significanzã). 1. O mesmo que significado
(v.).
2. Importância ou valor. Desse ponto de vista, diz-se, p. ex., que certos acontecimentos históricos são
significantes.
SIGNO (gr. OT||j.eíov; lat. Signum; in. Sign; fr. Signe, ai. Zeichen; it. Segnó). Qualquer objeto ou
acontecimento, usado como menção de outro objeto ou acontecimento. Esta definição, geralmente
empregada ou pressuposta na tradição filosófica antiga e recente, é genera-líssima e permite compreender
na noção de S. qualquer possibilidade de referência: p. ex., do efeito à causa ou vice-versa; da condição
ao condicionado ou vice-versa; do estímulo de uma lembrança à própria lembrança; da palavra a seu
significado; do gesto indicativo (p. ex., um braço estendido) à coisa indicada; do indício ou do sintoma de
uma situação à própria situação, etc. Todas essas relações podem ser compreendidas pela noção de signo.
No
entanto, em sentido próprio e restrito, essa noção deve ser entendida como a possibilidade de referência
de um objeto ou acontecimento presente a um objeto ou acontecimento nâo-presente, ou cuja presença ou
não-presen-ça seja é indiferente. Nesse sentido mais restrito, a possibilidade de uso dos S. ou semiose é a
característica fundamental do comportamento humano, porque permite a utilização do passado (o que
"não está mais presente") para a previsão e o planejamento do futuro (o que "ainda não está presente").
Nesse sentido, pode-se dizer que o homem é, por excelência, um animal simbólico, e que nesse seu
caráter se radica a possibilidade de descoberta e de uso das técnicas em que consiste propriamente sua
razão (v.).
Ainda hoje é válida a doutrina do S. formulada pelos estóicos. Estes chamavam de S., de modo geral,
"aquilo que parece revelar alguma coisa", mas em sentido específico chamavam de S. "aquilo que é
indicativo de uma coisa obscura", não manifesta (SEXTO EMPÍRICO, Adv. math., VIII, 143; Pirr. hyp., I, 99
ss.). Portanto, consideravam que os S. eram de duas espécies fundamentais: rememorativos, que se
referem a coisas apenas ocasionalmente obscuras, como p. ex. a fumaça, que é S. do fogo, e indicativos,
que nunca são observados juntamente com a coisa indicada, que é obscura por natureza; neste sentido,
diz-se que os movimentos do corpo são S. da alma (Jbid., VIII, 148-155). Sabemos também que na
capacidade de usar os S. os estóicos viam a diferença entre homens e animais (Jbid., VIII, 276), e que
consideravam o S. um produto intelectual, identificando-o com "uma proposição constituída por uma
conexão válida e reveladora do conseqüente" (Jbid., VIII, 245). Os epicuristas, ao contrário,
consideravam que o S. tem natureza sensível, capaz de permitir e fundamentar a indução (Ibid., VIII, 215
ss.; cf. INDUÇÃO). Mais tarde, nos moldes da doutrina estóica, o S. continuou sendo definido como
relação de referência entre dois termos conexos. S. Tomás não excluía que se pudesse chamar de S. a
causa sensível de um efeito oculto (S. Th., 1,70, a. 2, ad. 2Q
). A lógica terminis-ta distinguiu a referência
do S. àquilo que denota, que é a relação de significação instituída arbitrariamente, da suposição (v.), que é
a relação pela qual o termo compreendido numa proposição está em lugar de alguma coisa (cf. PEDRO
HISPANO, Summ. log., 6.03). Ockham definiu o S. como "tudo aquilo que, uma vez aprendido,
SIGNO
895
SIGNO
permite chegar a conhecer alguma outra coisa" (Summa log., I, 1), e fez a distinção entre S. natural, que é
o conceito (ou intenção da alma) enquanto produzido pela própria coisa do mesmo modo como a fumaça
é produzida pelo fogo, e S. convencional, instituído arbitrariamente, que é a palavra (Ibid., I, 14). A
filosofia inglesa dos sécs. XVII e XVIII valeu-se amplamente da noção de S., mas não o definiu de
maneira nova. Hobbes dizia: "S. é o antecedente evidente do conseqüente ou, ao contrário, o conseqüente
do antecedente quando antes já tiverem sido observadas conseqüências semelhantes; quanto mais vezes
tiverem sido observadas, tanto menos incerto será o S." (Leviath., I, 3). Berkeley utilizou a noção de S.
para definir a função das idéias gerais, que seriam idéias particulares "adotadas para representar ou
substituir outras idéias particulares do mesmo tipo" (Principies of Human Knowledge, Intr., § 12). No
último capítulo de Ontologia, Wolff apresenta uma doutrina lúcida e incisiva do S., definindo-o como
"um ente do qual se infere a presença ou a existência passada ou futura de outro ente" (Ont., § 952) e
distinguindo, conseqüentemente, o S. demonstrativo, que indica um objeto presente designado, o S.
prognóstico, cujo ser designado é futuro, e o S. rememorativo, cujo ente designado é passado Ubid., §
954). Com base nesses conceitos, é óbvio que qualquer procedimento cognos-citivo pode ser considerado
semiológico. Em oposição a isso, Kant considerou, por um lado, as palavras e os S. visíveis (algébricos,
numéricos, etc.) como simples expressões dos conceitos, ou seja, como "caracteres sensíveis que
designam conceitos e servem apenas como meios subjetivos de reprodução, e, por outro lado, os símbolos
como representações analógicas, in-fra-intelectuais, dos objetos intuídos (Crít. do Juízo, § 59; Antr., I,
38). Portanto, segundo Kant, "quem só sabe expressar-se de modo simbólico tem poucos conceitos
intelectuais, e aquilo que freqüentemente se admira na vivida expressividade presente nos discursos dos
selvagens (e às vezes também dos supostos sábios de um povo rude) não passa de pobreza de idéias,
portanto também de palavras para expressá-las" Ubid., 38). No entanto, os kan-tianos não foram tão
contrários quanto seu mestre a reduzir qualquer conhecimento ao uso de signos. H. Helmholtz
considerava as sensações como sinais produzidos em nossos órgãos dos sentidos pela ação de forças
externas, e atribuía a validade desses S. ao fato de terem entre si uma ordem que reproduz a ordem existente
entre as coisas, e não o fato de serem semelhantes às coisas (Die Tatsachen in der Wahrnehmung, 1879).
Na mesma linha de pensamento, E. Cassirer estudou as formas simbólicas da vida humana e seu
significado conceituai (Die Philosophie der symbolischen Formen, 3 vol., 1923-29), e chamou o homem
de animal symbolicum (Essay on Man, 1944, cap. II; trad. it., p. 49).
Quando, por influência da lógica matemática, á teoria dos S. volta a ser estudada na filosofia
contemporânea, seus traços fundamentais não variam, mas é-lhe acrescentada outra ordem de
considerações, mais precisamente as que se incluem na chamada pragmática (v.), vale dizer, as que
concernem à relação do S. com seus intérpretes. Pode-se dizer que, desse ponto de vista, o objeto da
semiótica, que é a teoria dos signos, não é mais o próprio S., mas a semiose (v.), ou seja, o uso dos signos
ou o comportamento semiótico. Essa orientação foi inaugurada por E. S. Peirce. Depois de dar a definição
tradicional do S. (como "algo que, uma vez conhecido, conhecemos outra coisa"), Peirce acrescentou que
"S. é um objeto que, por um lado, está em relação com seu objeto e, por outro, em relação com um
interpretante, de tal modo que produz entre o interpretante e o objeto uma relação correspondente à sua
própria relação com o objeto." O S. é, pois, uma relação triádica entre o próprio S., seu objeto e o
interpretante (Coll. Pap., 2.243 ss.; 8.332). Conseqüentemente, Peirce classificava os S. segundo três
pontos de vista diferentes: por si mesmos; em sua relação com o objeto; em sua relação com o
interpretante. Considerados em si mesmos, os S. podem ser: aparências ou qualissignos-, objetos ou
acontecimentos individuais, vale dizer, sinsignos (nessa palavra, sin é a primeira sílaba de semel, simul,
similar, etc); tipos gerais ou legissignos (Ibid., 8.334). Considerado em relação ao objeto representado, o
S. pode ser: um ícone, como p. ex. uma percepção visual ou auditiva; um índice, como um nome próprio
ou o sintoma de uma doença; ou um símbolo, que é um S. convencional (Ibid., 8.335). Em relação ao
objeto imediato, o S. pode ser de uma qualidade, de um ente ou de uma lei. Finalmente, em relação ao
interpretante, o S. pode ser um rema, um enunciado ou um tema, isto é, um termo, uma proposição ou um
raciocínio (Ibid., 8.337). Essa
SIGNO
896
SILOGISMO
classificação foi depois reexposta pelo próprio Peirce com outra terminologia, mais aceita. Chamou de
tipo a forma definidamente signi-ficante, que não é uma coisa única ou um evento único, que não existe
por si mas é determinada por coisas que existem; chamou de ocorrência (tokerí) o evento singular que
ocorre uma única vez, assim como uma palavra que se encontra numa única linha de uma única página de
uma única cópia de um livro; e chamou de tom (tone) o caráter significante indefinidamente significante,
como o tom de voz (Coll. Pap., 4.537). Essas três espécies correspondem ao legissigno, sinsigno e
qualissigno da classificação anterior (v. PALAVRA; TTPO).
Teve muito sucesso (imerecido) a classificação proposta por Ogden e Richards em The Meaning of
Meaning (1923). Distinguiram o uso simbólico do uso emotivo dos S.; o uso simbólico é a asserção, ou
seja, a referência do S. a um objeto; o uso emotivo tende a expressar e a produzir sentimentos e atitudes.
"Na função simbólica incluem-se tanto a simbolização da referência quanto a comunicação dela ao
ouvinte, vale dizer, a produção de referência semelhante no ouvinte. Na função emotiva incluem-se tanto
a expressão de emoções, atitudes, disposições, intenções, etc. do falante, quanto a comunicação dessas
emoções, etc, que é a sua evocação no ouvinte" (The Meaning of Meaning, 10a
ed., 1952, p. 149). Essa
classificação foi utilizada (especialmente por E. L. STEVENSON, Ethics and Language, 1944) na análise da
linguagem da moral e, em geral, da linguagem normativa, mas seus fundamentos não são consistentes,
sobretudo pela impossibilidade de propor um critério simples e suficientemente seguro para se fazer a
distinção proposta nos casos particulares. Classificação mais adequada e menos preconcebida é a de
Morris, que distingue os identificadores, que significam a localização no espaço e no tempo; os
designadores, que significam as características do meio; os apreciadores, que significam um status
preferencial; os prescritores, que significam a solicitação de respostas específicas (Signs, Language and
Behavior, 1946, III, 2; trad. it., p. 97). Desses S., chamados em conjunto de lexicais, Morris distingue os
S. formadores, que significam que "a situação significada de outro modo é uma situação alternativa"
ilbid., VI, 1). Estes últimos são divididos por sua vez em determinadores, como "todos", "alguns",
"nenhum"; em conectores, como vírgulas, parênteses, cópula, conjunções e, ou, etc.; e em modalizadores, que são, p. ex., pontos de
exclamação, etc. Morris revalidou na filosofia contemporânea a teoria do S. estabelecida por Peirce,
introduzindo uma terminologia útil: chamou de veículo o objeto ou o acontecimento que serve como S.;
de designado o objeto a que o S. se refere; de inter-pretante o efeito do S. sobre o intérprete, ou seja, o
sentido do S.; e de intérprete o sujeito do processo semiológico (Foundations of the Theory of Signs,
1938, II, 2). Na esteira de Peirce, Morris também insistiu no caráter comportamental do processo
semiológico; aliás, procurou definir o S. em termos exclusivamente comportamentais. A definição a que
chegou é a seguinte: "Se A orienta o comportamento para um objetivo de maneira semelhante (mas não
necessariamente idêntica) à maneira como B orientaria o comportamento para o mesmo objetivo no caso
de se observar B, então A é um S." (Ibid., I, 2; trad. it., p. 21). É evidente a influência que a teoria dos
reflexos condicionados exerceu sobre essa definição (v. AÇÃO REFLEXA). Camap — e com ele muitos
outros — aceitou os fundamentos da teoria de Morris, bem como a divisão da semiótica geral nas três
partes por ele propostas (cf. R. CARNAP, Foundations of Logic and Mathematics, 1939,1, 2; trad. it., pp.
6-7) (v. SEMIÓTICA).
SILÊNCIO (lat. Silentium; in. Silence, fr. Si-lence, ai. Schweigen; it. Silenzió). Atitude mística diante da
inefabilidade do ser supremo (cf., p. ex., BOAVENTURA, Ltinerarium mentis in Deum, VII, 5). Segundo
Jaspers, a atitude diante do ser da Transcendência (Phil., III, p. 223). Segundo Wittgenstein, a atitude
diante dos problemas da vida: "Sobre o que não se pode falar, deve-se calar" (Tractatus, 7).
SILOGISMO (gr. GDÀloYiaLióç; lat. Syllo-gismus; in. Syllogism; fr. Syllogisme, ai. Syllogis-mus; it.
Sillogismó). Essa palavra, que na origem significava cálculo e era empregada por Platão para o raciocínio
em geral (cf. Teet., 186 d), foi adotada por Aristóteles para indicar o tipo perfeito do raciocínio dedutivo,
definido como "um discurso em que, postas algumas coisas, outras se seguem necessariamente" (An. pr.,
I, 1, 24 b 18; I, 32, 47a 34). As características fundamentais do S. aristotélico são: ls
caráter mediato; 29
necessidade. O caráter mediato do S. decorre do fato de ser a contrapartida ló-gico-lingüística do conceito
metafísico de substância. Em virtude disto, a relação entre duas
SILOGISMO
897
SILOGISMO
determinações de uma coisa só pode ser estabelecida com base naquilo que a coisa é necessariamente: sua
substância; p. ex., para decidir se o homem tem a determinação "mortal", só se pode levar em
consideração a substância do homem (aquilo que o homem não pode não ser) e raciocinar da maneira
seguinte: "Todos os animais são mortais; todos os homens são animais; logo todos os homens são
mortais". Isso significa que o homem é mortal porque animal: a animalidade é a causa ou a razão de ser
de sua mortalidade. Nesse sentido, diz-se que a noção "animal" desempenha a função de termo médio do
S.: obviamente, o termo médio é indispensável no S. porque representa a substância, ou a alusão à
substância, e somente esta possibilita a conclusão (An. post., II, 11, 94 a 20). Portanto, o S. tem três
termos, a saber o sujeito e o predicado da conclusão e o termo médio, mas é a função do termo médio que
determina as diferentes figuras do silogismo (v. SILOGÍSTICA). Além das figuras, Aristóteles distinguiu
várias espécies de silogismo. O S. é por definição uma dedução necessária: portanto, sua forma primária e
privilegiada é o S. necessário, que Aristóteles chama também de demonstrativo, ou científico, ou S. do
universal (An. pr., I, 24, 25 b 29). Dele se distingue o S. dialético, que se baseia em premissas prováveis,
sendo, pois, apenas provável (Ibid., II, 23, 68b 10; An.post., II, 8, 93 a 15). É também chamado de
retórico-, uma espécie dele é o S. erístico, baseado em premissas que parecem prováveis mas não são
(Top., I, 1, 100 b 23). Dos S. necessários, a primeira e melhor espécie é a dos ostensivos (v.), que
Aristóteles contrapõe aos que partem de uma hipótese (An. pr., I, 23, 40 b 23). Estes últimos não são
aqueles que serão chamados depois de S. hipotéticos, mas aqueles cuja premissa maior não é a conclusão
de outro S., nem é evidente por si, mas é tomada como hipótese (Ibid., I, 44, 50 a 16). Uma das espécies
desses S. é aquele que conclui mediante a redução ao absurdo (Ibid., 50 a 29). Entre os S. ostensivos, os
mais perfeitos são os universais da primeira figura, nos quais é possível integrar todas as outras formas de
S. (Ibid., I, 7, 29 b 1). Finalmente, do S. dedutivo distingue-se o S. indutivo ou indução (Ibid., I, 23, 68b
15). Por outro lado, não são espécies de S. aquilo que Aristóteles chama de S. geométrico, médico,
político (Top., I, 9, 170 a 32) eprático(Et. nic, VI, 12,1044 a 31), que se distinguem entre si apenas pelo
conteúdo dos
princípios a que se referem, e não pela forma lógica. A rigor, tampouco são espécies de S. os S.
compostos, como o epiquirema ou o sorites; ou truncados, como o entimema-. sobre cada um deles, v. os
verbetes correspondentes. Também não é silogismo a divisão, que é um dos métodos da dialética de
Platão, que Aristóteles chama de "S. fraco" (An. pr, I, 31, 46 a 33).
Os estóicos, que não fundamentaram sua lógica com a teoria da substância, mas com a da percepção, não
consideraram como tipo fundamental de raciocínio o S., mas o raciocínio anapodítico, que tem somente
dois termos e cuja premissa maior é uma proposição condicional ("Se é dia há luz. Mas é dia. Logo há
luz"; v. ANAPODÍTICO). OS aristotélicos, a partir de Teofrasto, traduziram os raciocínios anapo-díticos dos
estóicos para os esquemas aristotélicos, acrescentando ao S. categórico de Aristóteles, como duas outras
espécies de S., o hipotético e o disjuntivo (cf. PRANTL, Geschichte derlogik, I, p. 375 ss.; os textos
fundamentais são apresentados por Alexandre, Ad an.pr., f. 134 a-b). Essa doutrina foi transmitida à
filosofia ocidental pela obra de Boécio, que se inspirava em autores posteriores, principalmente em
Galeno (De syllogismo hypothetico, em P. L., 64). A doutrina do S., assim completada, foi transmitida
pela tradição sem mudanças substanciais; depois disso, os lógicos só deram livre curso à fantasia,
atribuindo nomes para qualquer modificação insignificante nas estruturas tradicionais.
Já dissemos que o fundamento do S. aristo-télico é a teoria da substância (cf. VIANO, La lógica di
Aristotele, 1955, III, 6). Como estrutura necessária do ser, a substância garante a ligação entre as
determinações, cuja conexão é demonstrada pelo S.: assim, essa conexão nada mais é que a própria
necessidade com que se interligam as determinações da substância. A necessidade dessa ligação é
expressa na universalidade da predicação: universalidade que em Aristóteles serve de base para o "S.
perfeito". Segundo Aristóteles, "dizer que uma coisa está contida na totalidade de outra coisa é o mesmo
que dizer que um termo é predicado por todas as coisas do outro termo. E dizemos que se predica de todas
as coisas sempre que não haja coisa alguma daquelas pelas quais o sujeito pode ser tomado de que não
seja possível predicar a coisa em questâo"G4«.pr., I, 1, 24 b 26). Ser um termo na totalidade de outro
SILOGISMO
898
SILOGISMO
termo é a relação de inerência que, segundo Aristóteles, expressa a necessidade do ser predicativo (v.
SER). Nessa relação de inerência baseia-se a predicaçâo de omni, ou seja, a referência do predicado a
qualquer coisa indicada pelo sujeito. Em seguida, na lógica medieval, foi justamente o princípio de omni
que se reconheceu como fundamento do S. Eis como era expresso por Pedro Hispano: "Ser dito de omni é
quando não se admite no sujeito nada de que o predicado não seja dito, como p. ex. 'todo homem corre'.
Ser dito de nullo é quando não se admite no sujeito nada de que o predicado não seja removido, como p.
ex. 'nenhum homem cone'"{Summ. log., 4.01). Esta lei fundamental do S. foi expressa nos mesmos
termos por uma longa tradição (cf., p. ex., JUNGIUS, Lógica hamburgensis, III, 11,4; WOLFF, Log, § 346).
Na lógica tradicional, o dictum de omni et nullo nunca teve significado extensivo: a possibilidade de que
alguma coisa seja dita de omni não passa de inerência necessária do predicado ao sujeito. Kant quis dar ao
S. um fundamento semântico, que ele expressou com as seguintes regras: "a nota [característica] de uma
nota é uma nota da própria coisa" {nota notae est etiam nota rei ipsius); "o que repugna à nota repugna à
própria coisa {repugnans notae repugnat rei ipsi)", mas reconheceu que essa fórmula é apenas outro
modo de expressar o princípio de omni: modo cuja única vantagem é evitar a "falsa sutileza" da distinção
das quatro figuras {Die falsche Spitzfindigkeit der vier syllogistischen Figuren, 1762, § 2). Em Lógica
(1800), Kant recorreu ao fundamento tradicional do S., definindo-o como "o conhecimento da
necessidade de uma proposição mediante a subsunção de sua condição a uma regra geral dada" {Logik, §
56); o princípio geral do S. é assim expresso: "O que está sob a condição de uma regra está também sob a
própria regra". Kant observa que o S. pressupõe: a) uma regra geral; b) uma subsunção à condição que ela
expressa; e acrescenta que "o princípio de que tudo está sob o universal e é determinável em regras
universais também é o princípio da racionalidade ou da necessidade" {principium rationalitatis, seu
necessitatis) {Ibid., § 57).
Por outro lado, porém, Leibniz tentara expressar o fundamento do S. em termos de extensão, depois de
distinguir claramente extensão e intensão: "Ao dizer 'todo homem é animal' quero dizer que todos os
homens estão
compreendidos em todos os animais, mas ao mesmo tempo estou entendendo que a idéia de animal está
compreendida na idéia de homem. Animal compreende mais indivíduos que homem, mas homem
compreende mais idéias e mais formas; um tem mais exemplos, o outro tem mais graus de realidade; um
tem mais extensão, o outro tem mais intensão. Portanto, pode-se talvez dizer sem ferir a verdade que toda
a doutrina silogística poderia ser demonstrada pela doutrina do continente e do conteúdo, do
compreensivo e do compreendido, que é diferente da doutrina do todo e da parte, pois o todo sempre
excede a parte, ao passo que o compreensivo e o compreendido às vezes são iguais, como acontece nas
proposições recíprocas" {Nouv. ess., IV, 17, 8). Mas foi principalmente Hamilton quem impôs o ponto de
vista extensivo como fundamento do S., com base naquilo que ele chamava de "lei de identidade ou nãoidentidade proporcional", segundo a qual o S. se baseia unicamente nas três possíveis relações entre os
termos: I
a
de co-inclusão toto-total, ou seja, de identidade ou de absoluta conversibilidade ou
reciprocação; 2S
de co-exclusão toto-total, ou seja, de não-identidade ou de absoluta não-conversibilidade
ou não-reciprocação; 3a
de co-inclusão incompleta, que implica uma relação de co-exclusão incompleta,
ou seja, identidade ou não-identidade parciais, ou conversibilidade ou reciprocação relativas {Lectures on
Logic, II, 1866, pp. 290 ss.). O próprio Hamilton teve a preocupação de ressaltar os precedentes de sua
doutrina, mas não inclui entre eles o principal, que é Leibniz {Ibid., 346-48). A lógica posterior de
inspiração aristotélica não seguiu, nesse aspecto, a doutrina de Hamilton, retornando à interpretação
intensiva do fundamento do silogismo. Na realidade, o legado da proposta de Hamilton seria acolhido
principalmente pela lógica matemática; esta, porém, a partir de sua primeira manifestação, as Leis do
pensamento (1854) de G. Boole, alinhou-se com o empiris-mo (ver adiante) e negou ao S. seu primado de
forma fundamental e típica do raciocínio. Boole dizia: "O S., a conversão, etc. não são os últimos
processos da lógica. Baseiam em outros processos mais simples, que constituem os elementos reais do
método em lógica, e neles se resolvem. De fato não é verdade que qualquer inferência seja redutível às
formas particulares de S. e de conversão" {Laws of Thought, cap. 1, Dover Pubblications, p. 10).
SILOGÍSTICA
899
SILOGÍSTICA
Segundo Boole, "os processos elementares da lógica são idênticos aos processos elementares da
aritmética" ilbid., p. 11): afirmação que serviu de base para toda a evolução posterior da lógica
matemática. Mas com isso o S. era definitivamente derrubado de seu trono de tipo fundamental do
raciocínio dedutivo, feito que a crítica empirista não lograra totalmente. Desde então, o S. deixou de ser
um capítulo autônomo da lógica, e a preocupação dos lógicos em relação a ele consiste unicamente em
mostrar que ele pode ser resolvido e expresso nas fórmulas de cálculo que preferirem: preocupação que
não deixa de ser acompanhada por perplexidade (cf., p. ex., W. v. O. QUINE, Methods of Logic, 1952, §
14; A. CHURCH, Introduction to Mathematical Logic, 1956, § 46.22).
Como já dissemos, independentemente da discussão sobre seus fundamentos, a validade do S. foi
questionada várias vezes do ponto de vista do empirismo. Para Sexto Empírico, o S. ou era a repetição
inútil do que já se conhece, ou um círculo vicioso.- isso porque a premissa maior ("Todos os homens são
mortais") implicaria já a verdade da conclusão ("Sócrates é mortal") {Pirr. hyp., I, 163-64; II, 196). Stuart
Mill observava a propósito que não existe círculo vicioso, porque, ao se chegar à proposição geral, a
inferência terá terminado, e só nos restará "decifrar nossas observações" {Logic, II, 3, 2). Mas isso
significa reduzir o S. à simples decifração de notas já possuídas. Bacon observara que "o S. força o
assentimento, mas não a realidade" {Nov. Org., I, 13). Foi essa a idéia que, graças a Locke, prevaleceu no
que se refere à natureza do S.: este não descobre nem idéias nem a correlação entre idéias, que só a mente
pode perceber, mas "demonstra apenas que, se a idéia do meio concorda com as outras a que se refere
imediatamente de ambos os lados, então essas duas idéias distantes (ou das extremidades) certamente
concordam". Assim, "a conexão imediata de cada idéia com aquelas a que se aplica de ambos os lados —
conexão de que depende a força do raciocínio — é bem percebida tanto antes do S. quanto depois dele,
pois ao contrário quem faz o S. nunca poderia enxergá-la" {Ensaio, IV, 17, 4). Essa famosa crítica de
Locke deu início à perda de supremacia do S., o que terminaria com o predomínio da lógica matemática
na segunda metade do século XIX. SILOGÍSTICA (in. Syllogistic; fr.^ Syllogis-tique, ai. Syllogistik, it.
Sillogisticá). É a teoria
do silogismo (v.). Desenvolvida pela primeira vez por Aristóteles em Analytica priora, em poucos anos
transformar-se-ia no cerne da lógica, continuando como tal até o advento da lógica matemática
contemporânea. A parte mais antiga é a teoria do silogismo dedutivo categórico, exposta pelo próprio
Aristóteles. Este fixa os quatro modos válidos da primeira figura (as figuras são caracterizadas pela
posição do termo médio: na primeira, funciona como sujeito na premissa maior e como predicado na
menor; na segunda, é predicado em ambas as premissas; na terceira é sujeito em ambas, donde a
necessidade de converter uma das premissas. Os modos dispõem-se assim: em primeiro lugar, os que
concluem com uma proposição universal afirmativa, depois os que concluem com uma universal
negativa, em seguida os que concluem com uma particular afirmativa e finalmente os que concluem com
uma particular negativa). A seguir, passa à análise dos modos possíveis da segunda e da terceira figuras,
demonstrando sua redutibilidade, principalmente por meio da técnica de conversão^?), a modos
correspondentes da primeira. Depois disso, Teofrasto formulou os modos da quarta figura, mas parece que
seu reconhecimento e sua exposição como figura independente couberam a Galeno. Todavia, mais tarde,
vários lógicos como Averróis, Zabarella e, na idade moderna, Wolff e Kant, pronunciaram-se contrários a
ela, pois a consideraram substancialmente inútil. De fato os modos dessa figura não passam de modos
indiretos da primeira, com permuta das duas premissas; além disso, alguns deles (o primeiro e o quarto)
não "concluem necessariamente" (condição essencial, segundo Aristóteles, para que haja silogismo). A
essas quatro figuras, os lógicos modernos acrescentaram os cinco modos "fracos" obtidos da primeira e da
segunda (e quarta) por subal-ternação (substituição da conclusão universal por uma particular).
Essa teoria, já amplamente explorada pelos comentadores do fim da Antigüidade, peripa-téticos e
neoplatônicos, e depois sintetizada por Boécio, foi reelaborada pelos lógicos medievais, tornando-se
extremamente formalista. Com efeito, coube aos grandes terministas medievais transformar todos os
modos em fórmulas, de acordo com uma técnica complicada: com quatro vogais {a, e, i, o) indicaram os
quatro tipos de proposição (respectivamente: universal afirmativa [a], universal negativa [e], par-
SILOGÍSTICA
900
SILOGÍSTICA
ticular afirmativa [i]; particular negativa [o]); com B, E, D, F, indicaram os quatro modos da primeira
figura, designando-os com as pala-vras-fórmulas Barbara, Celarent, Darii, Ferio, em que as únicas letras
significativas são as iniciais e as três vogais (que indicam o tipo de proposição no que diz respeito à
premissa maior, à premissa menor e à conclusão). Quanto aos modos das outras três figuras, as três
primeiras vogais têm o significado de costume; as iniciais indicam a que modo da primeira figura se
reduzem; além disso, são significativas algumas letras minúsculas pospostas à vogai, que indicam
operações a serem realizadas nas proposições indicadas por aquela vogai: 5: conversão "simpliciter"; p.
conversão "per accidens"; m: metátese das premissas; c. "reductio ad impossibile". Ora, teoricamente, os
modos matematicamente possíveis em qualquer figura são 16, obtidos com a combinação dois a dois em
todos os modos possíveis (com repetição); as quatro letras a, e, i, o (pois no silogismo o que decide são as
premissas, e as premissas são duas): aa, ea, ia, oa; ae, ee, ie, oe, ai, ei, ii, oi; ao, eo, to, 00. Portanto,
resultariam 64 modos, mas desses são válidos somente os seguintes 19:
I
a
figura: Barbara, Celarent, Darii, Ferio;
2- figura: Cesare, Camestres, Festino, Ba-roco;
3
a
figura: Darapti, Disamis, Datisi, Felapton, Bocardo, Feriso;
4
a
figura: Baralipton, Celantes (ou Calemes), Dabitis, Fapesmo, Frisesmorum.
Mais os modos "fracos": Barbari, Celaront, Cesaro, Camestros, Calemos (obtidos de Barbara, Celarent,
Cesare, Camestres, Calemes).
Foram também os lógicos da Idade Média que introduziram o silogismo com proposições singulares
(como "Todos os homens são mortais; Sócrates é homem; logo Sócrates é mortal"), que não se incluíam
na S. propriamente aristotélica, totalmente baseada na acepção universal dos termos, portanto no uso dos
operadores "tudo" e "em parte" [alguns].
De origem estóica, mas devido em grande parte à elaboração dos lógicos medievais (a partir de Boécio) é
o importante capítulo da teoria do silogismo hipotético e disjuntivo. O silogismo hipotético consiste em
uma premissa (dita maior) que estabelece implicação entre um enunciado e outro ("se A, B"), em uma
premissa (dita menor) que afirma {modus ponens) ou nega {modus tollens), respectivamente, o
antecedente ou o conseqüente da implicação contida na maior; a conclusão afirma ou respectivamente
nega o conseqüente ou o antecedente:
modusponens. se A, B modus tollens: se A, B A não-B
logo B logonão-/!
Analogamente, o silogismo disjuntivo consiste em uma premisssa (maior) em que são afirmadas {modus
tollendo ponens) ou reciprocamente negadas {modusponendo tollens) duas proposições, em uma premissa
(menor) em que é negada, ou, respectivamente, afirmada uma das disjuntas da premissa maior, e na
conclusão, que consiste em afirmar ou, respectivamente, negar, a outra disjunta:
modus tollendo ponens: A ou B A ou B
não-B não-^4
logo A logo B
modus ponendo tollens: ou A ou B ou A ou B
A B
logo nâo-B logo não-A
Apesar de certas analogias forçadas, estes tipos de "silogismo" representam uma estrutura completamente
diferente da do silogismo categórico, de tal maneira que, se não se levasse em consideração a etimologia,
dificilmente poderiam ser chamados de silogismo; com efeito, para usarmos a linguagem da lógica
contemporânea, eles pertencem ao cálculo proposicional simples e baseiam-se em implicações materiais,
ao passo que os modos do silogismo categórico pertencem ao cálculo das funções pro-posicionais e
baseiam-se em implicações formais. Não obstante, na lógica moderna, principalmente no séc. XIX, foi
feita uma tentativa (mas em bases mais gnosiológicas e epistemológicas que propriamente lógicas) de
reduzir o silogismo categórico a silogismo hipotético, interpretando o primeiro como infe-rência
bipotético-dedutiva: "se todos os homens são mortais, e se Sócrates é homem, Sócrates é mortal". Mas a
exposição lógica completa desta última forma de inferência mostra que na realidade ela não se reduz a
nenhuma das duas formas clássicas, perdendo-se a concisão rigorosa e a estrutura ternária destas.
Faltaria considerar o silogismo indutivo, mas seu estudo não pertence à S. propriamente dita (v.
INDUÇÃO). G. P.
SIMBOLISMO
901
SIMPATIA
SIMBOLISMO (in. Symbolism; fr. Symbo-lisme, ai. Symbolismus; it. Simbolismó).
1. Uso dos signos, ou seja, comportamento semiológico ou semiose (v.).
2. Uso de um sistema de signos especial (p. ex., o "S. matemático").
3. Uso de símbolos no 2° sentido do termo: de signos convencionais e secundários (signos de signos,
como ocorre na arte, na religião, etc). Neste sentido, essa palavra é usada por Cassirer ao falar da
expressão simbólica como forma mais madura de desenvolvimento lingüístico, marcada pela distância
entre o signo e seu objeto" (ThePhilosophy of SymbolicForms, II, p. 237); de fato, essa distância é própria
do comportamento semiológico.
SÍMBOLO (in. Symbol; fr. Symbole, ai. Symbol; it. Símbolo). 1. O mesmo que signo. É com esta
significação genérica que a palavra é mais usada na linguagem comum.
2. Uma espécie particular de signo. Segundo Peirce: "Um signo que pode ser interpretado em
conseqüência de um hábito ou de uma disposição natural" (Coll. Pap., 4.531). Segundo Dewey, um signo
arbitrário ou convencional (Logic, Intr., IV, trad. it., p. 93). Segundo Morris: um signo que substitui outro
signo na orientação de um comportamento (Signs, Language andBehavior, I, 8). Segundo outros, um
signo típico, em contraposição ao signo individual, que é a palavra como significado (v. PALAVRA) (M.
BLACK, Language and Philosophy, VI, 2; trad. it., p. 181).
SIMETRIA (in. Symmetry, fr. Symétrie, ai. Symmetrie, it. Simmetrid). Mensurabilidade, proporção ou
harmonia. Diz-se que é simétrica a relação entre os dois termos nos dois sentidos: p. ex., a relação
"irmão" (v. RELAÇÃO).
SIMPATIA (gr. m)urax8eia; in. Sympathy, fr. Sympatie, ai. Sympatbie, it. Simpatia). Ação recíproca entre
as coisas ou sua capacidade de influência mútua. Esse conceito é antigo e desde a antigüidade foi aplicado
tanto à realidade humana quanto à física, mas foi usado pelos filósofos antigos principalmente em relação
ao mundo físico. Para os estóicos, a S. é o nexo que interliga as coisas, mantém-nas ou as faz convergir
para a ordem do mundo (ARNIM, Stoicorum fragmenta, II, p. 264). Para Plotino, a S. era o fundamento da
magia: "De onde provêm os encantamentos? Da S., graças à qual há uma concordância natural entre
coisas semelhantes e discordância natural entre as coisas diferentes, e graças à qual também há grande número de potências variadas que colaboram para a unidade desse grande animal que é o universo."
(Enn., IV, 4, 40). Plotino também dizia que "a S. é como uma corda esticada, que ao ser tocada numa das
pontas transmite o movimento para a outra ponta.(...) E se a vibração passa de um instrumento para o
outro por S., também no universo há uma harmonia única, que às vezes é feita de contrários, mas outras
vezes é feita também de partes semelhantes e congêneres" (Ibid., IV, 4, 41). A magia insere-se na S.
universal e, recorrendo a meios oportunos, aproveita-a para suas próprias finalidades, realizando assim
efeitos que parecem extraordinários e milagrosos. Esse conceito de S., que pressupõe a animação de todas
as coisas, é o fundamento da magia, sendo admitido igualmente por todos os mágicos da Renascença (cf.
CAMPANELLA, De sensu rerum, IV, 1; 14; AGRIPA, De occulta philosophia, I, 1; I, 37; CARDAN, De
varietate rerum, 1,1-2; G. B. ELMONT, Opuscula philosophica, I, 6, etc).
Com o declínio da magia no mundo moderno, o significado de S. limitou-se a indicar a comunhão de
emoções entre os indivíduos humanos. Hume foi o primeiro a insistir na importância da S. no que se
refere à formação de todas as emoções humanas: "Nenhuma qualidade da natureza humana é mais
importante em si mesma ou em suas conseqüências do que a propensão que temos a simpatizarmos uns
com os outros, a recebermos a comunicação das inclinações e dos sentimentos dos outros, por mais
diferentes que sejam dos nossos, ou mesmo contrários. (...) A esse princípio podemos atribuir a grande
uniformidade observável nos humores e nos modos de pensar dos membros de uma mesma nação: é
muito mais provável que essa semelhança surja da S. que da influência do solo e do clima, que, apesar de
serem sempre os mesmos, não conseguem manter inalterado por um século inteiro o caráter de uma
nação" (Treatise, 1738, II, 1,11). É de se notar que Hume atribuiu à S. o caráter que mais tarde seria
ressaltado por Scheler e rejeitado por autores mais modernos: o fato de ela não implicar nenhuma
identidade de emoções ou fusão emocional nas pessoas entre as quais ocorre. Adam Smith só fez adotar a
idéia diretiva de Hume, ao considerar a S. como base da vida moral e ao entendê-la como "a faculdade de
participar das emoções de outrem, sejam elas quais forem" (TbeoryofMoralSentiments, 1759, I, 1, 3).
Ocasionalmente, recorreu-se à S. no
SIMPLES
902
SINCATEGOREMATICO
campo estético e biológico, chamando-a às vezes de empatia (v.). Bergson devolveu à S. o caráter
instintivo e viu nela a possibilidade de apreender diretamente a natureza da vida: "O instinto é simpatia.
Se essa S. pudesse estender seu objeto e refletir sobre si mesma, dar-nos-ia a chave das operações vitais,
da mesma maneira como a inteligência, desenvolvida e retificada, nos introduz na matéria" (Évol. créatr.,
8
a
ed., 1911, P- 191)- Por outro lado, numa obra famosa sobre a S., Scheler distinguiu-a dos fenômenos
afins mas não idênticos, especialmente daquilo que ele chama de contágio emotivo ou fusão emotiva. A
fusão emotiva consiste em ter a mesma emoção de outrem; p. ex., os pais que perderam um filho sentem a
mesma dor. AS., ao contrário, não supõe a identidade de emoções: participar da dor alheia por sentir
piedade não significa sentir a mesma dor. Por isso, para Scheler a S. era o componente da compreensão,
que é condicionada pelo reconhecimento da alteridade entre as pessoas: "AS., a participação afetiva
autêntica, é uma função e não comporta um estado afetivo na pessoa que o sente. O estado afetivo de B,
implícito na piedade que sinto por ele, para mim continua sendo o estado afetivo de B: não passa para
mim, quando o lastimo, e não produz em mim um estado semelhante ou idêntico" (Sympa-thie, 1923, 1;
trad. fr., p., 69).
SIMPLES (gr. àiíkòoc,; lat. Simplex, in. Sim-ple, fr. Simple, ai. Einfach; it. Semplicé). Aquilo que carece
de variedade ou de composição, vale dizer, o que existe de um único modo ou é destituído de partes.
Aristóteles entendeu o S. no primeiro sentido, como falta de variedade: "No sentido primário e
fundamental o que é S. é necessário porque não é possível que o S. seja ora de um modo, ora de outro"
(Met., V, S, 1015 b 12). Leibniz usou essa palavra no segundo sentido, ao definir a mônada como
substância S., porque sem partes (Monad., § 1). Foi graças a Wolff que esse conceito se consolidou com
esse sentido (Ont., § 673). Na lógica terminista medieval usava-se com o mesmo sentido o termo
incomplexum (= não composto), como contrário de complexo>(v.): ou no sentido de um termo constituído
por uma só palavra, ou no sentido do termo de uma proposição, constituído por uma ou mais palavras (cf.
OCKHAM, Expositio áurea, p. 40 b).
Por simplicidade, como característica das hipóteses ou das teorias científicas, entende-se exigência de
economia (v.; v. também TEORIA).
Analogamente, por simplificação entende-se todo procedimento apto a tornar econômica a
conceitualização ou a teorização, ou seja, qualquer procedimento que reduza o número ou a complexidade
dos conceitos empregados.
SIMULACRO. V. ÍDOLOS.
SINAL (in. Signal; fr. Signal; ai. Signal; it. Segnalè). 1. O mesmo que signo (v.). Morris entende essa
palavra no sentido de signo natural (Signs, Language and Behavior, I, 8).
2. O mesmo que símbolo (v.). Neste segundo sentido, a palavra é empregada quando se fala, p. ex., de um
"S. de perigo", em que S. é um signo convencional, um símbolo.
SINCATEGOREMATICO (lat. Syncategore-maticum; in. Syncategorematic; fr. Syncaté-gorématique,
ai. Synkategorematisch; it. Sin-categorematicó). Assim são chamadas, na gramática e na lógica
medievais, as partes do discurso que não têm significação em si, mas só a adquirem em contato com as
outras partes do discurso; exemplos são as conjunções, as preposições, os advérbios, etc. Prisciano (II, 15)
diz: "Segundo os dialéticos, as partes do discurso são duas, o nome e o verbo, porque juntas, e só elas,
constituem um discurso completo; chamam as outras de sincategoremata, ou seja, co-significantes". Essa
distinção é retomada na lógica de Pedro Hispano (Summ. log., VII, 5, 11), em S. Tomás (In
Perihermeneias), em Duns Scot (In Praedicamenta, 12) e em Ockham (Summa log., I, 4), que assim a
expõe: "Alguns termos são categoremáticos, outros sincategoremãticos. (...) Estes últimos não têm
significado completo e preciso, e não significam coisas diferentes das significadas pelos categoremata;
assim como em aritmética o zero nada significa por si mesmo, mas acrescentado a outro algarismo
adquire significado". Ockham aplicou essa distinção ao conceito de infinito e fez a distinção entre infinito
catego-remático, que designa a quantidade do sujeito ao qual se aplica o predicado infinito, e o infinito S.,
que designa apenas de que maneira o sujeito se comporta com relação ao predicado. Nesse sentido,
infinito é aquilo que podemos tornar tão grande quanto queiramos, mas que apesar disso continua finito
(OCKHAM, In Sent., I. d. 17, q. 8): conceito que se tornaria fundamental na matemática moderna (v.
INFINITO). Essa palavra também se encontra nos lógicos modernos. Stuart Mill (Logic, I., cap. II, § 2)
emprega esse termo para indicar palavras que não podem ser usadas como nome mas como par-
SBVCATETESE
903
SINGULAR2
tes de nome. Esse termo é usado em sentido análogo por Husserl {Logische Untersuchun-gen, II, § 4).
Na lógica contemporânea, as partes S. da linguagem são chamadas mais freqüentemente de símbolos
impróprios (porquanto não têm significação própria) e divididos em conectivos (v.) e operadores (v.).
SINCATETESE. V. ASSENTIMENTO.
SINCRETISMO (lat. Synkretismus; in. Syn-cretism; fr. Symcrétisme, ai. Synkretismus; it. Sincretismó).
Termo introduzido na terminologia filosófica por Brucker para indicar uma "conciliação mal feita de
doutrinas filosóficas completamente diferentes" {Historia critica philosophiae, MAA, IV, p. 750). Desde
então, designa-se freqüentemente com essa palavra qualquer conciliação que se considere mal feita ou
mesmo os pontos de vista que auspiciem uma conciliação indesejável. Esse termo também foi empregado
na história das religiões, para indicar os fenômenos de sobreposição e fusão de crenças de origens
diversas. Neste caso o termo também é usado com disposição polêmica, para designar sínteses mal feitas,
não tendo, portanto, significado preciso.
Mais arbitrário ainda é o significado com que é empregado por alguns escritores franceses, para indicar a
visão geral e confusa de uma situação qualquer (cf. RENAN, Vavenir de Ia science, p. 301).
SINCRÔNICO. V. DIACRÔNICO.
SINDÓXICO (in. Syndoxic; fr. Syndoxique, it. Sindossicó). Termo empregado por J. M. Baldwin para
indicar o conjunto de conhecimentos comuns que se formam nos indivíduos que têm as mesmas
experiências, mas que nem por isso são necessariamente válidos ( Thought and Things, 1906, I, p. 146) (v.
SINÔMICO).
SEVECOLOGIA(al. Sinechologie). Teoria da continuidade no tempo e no espaço, que, segundo Herbart,
é uma parte da metafísica, ao lado da metodologia, da ontologia e da idololo-gia {Kurze Enciclopãdie der
Philosophie, 184, pp. 297 ss.).
SINEQUISMO (in. Synechism, fr. Synéchis-me, it. Sinechismó). Termo empregado por Peirce para
indicar o princípio de continuidade, que ele julga de primeira importância em todas as formas da realidade
(cf. Chance, Love and Logic, II, 3; trad. it., pp. 44 ss.).
SINERGIA (in. Synergy, fr. Synergie; ai. Synergie, it. Sinergia). Coordenação de diferentes faculdades ou
forças, ou então ação combinada de diferentes fatores. Esse termo é freqüente na linguagem comum e científica, sendo empregado,
p. ex., tanto para indicar a cooperação dos órgãos em um corpo vivo, quanto o fortalecimento recíproco
da ação dos medicamentos. Às vezes, mas raramente, foi empregado como sinônimo de simpatia ou de
cooperação inteligente (cf. RIBOT, Psychologie des sentiments, 1896, p. 229; FOUILLÉE, Morale des
idées-forces, 1908, p. 352).
SINERGISMO (in. Synergism; fr. Syner-gisme, ai. Synergismus, it. Sinergismó). Doutrina teológica
segundo a qual a salvação do homem não depende apenas da ação de Deus, mas também da vontade
humana, que colabora com ela para produzi-la. Essa doutrina foi sustentada por Melanchthon contra o
monegismo de Lutero, que atribuía a salvação unicamente à ação de Deus (v. GRAÇA).
SINGULAR1
(in. Singular, fr. Singulier, ai. Einzig, Singular, it. Singolaré). Termo ou uma proposição que
denota um único objeto; em outras palavras, "forma (ou expressão) que contém uma única variável livre"
(CHURCH, Introduction to Mathematical Logic, 1956, § 02; cf. QUINE, Methods of Logic, § 34).
SINGULAR2
(in. Single, fr. Singulier, ai. Ein-zeln; it. Singold). 1. Que é um indivíduo (v.).
2. O indivíduo considerado como valor metafísico, religioso, moral e político supremo. Neste sentido, é o
tema preferido de algumas filosofias modernas e contemporâneas. Kierke-gaard, polemizando com Hegel,
afirmava o valor existencial do S.: "A existência corresponde à realidade singular (o que já foi ensinado
por Aristóteles): não é abarcada pelo conceito e, de qualquer modo, não coincide com ele". {Diário, X2
A, 328). O S. é superior ao universal, ao contrário do que julgava Hegel. "Nos gêneros animais sempre
vale o princípio de que 'o indivíduo é inferior ao gênero'. O gênero humano, em que cada indivíduo é
criado à imagem de Deus, tem essa característica, de o S. ser superior ao gênero" {Ibid., X2, A, 426). Em
Kier-kegaard, essa exaltação do S. é acompanhada pela desvalorização da categoria "público", em que o
S. desaparece; mas o público não é a comunidade na qual, ao contrário, o S. é reconhecido como tal
{Ibid., X2, A, 390). O único (v.), de Stirner, e o super-homem (v.), de Nietzsche, são concepções análogas
à que Kierkegaard indicou como singular. No mesmo sentido, Jaspers insiste no caráter excepcional do S.
{Phil, II, p. 360).
SÍNOLON
904
SINTAXE
SÍNOLON (gr. tò avvokov, lat. Composi-turrí). Com este termo, que significa "uma coisa só", Aristóteles
indicou o composto de matéria e forma, a substância concreta. "A substância é a forma imanente, da qual,
juntamente com a matéria, deriva aquilo que se chama de S. ou substância: p. ex., a concavidade é a
forma da qual, juntamente com o nariz, (matéria) deriva o nariz achatado" (Met., VII, 11, 1037 a 30). A
tradução do termo é "composto" ou "concreto".
SINÔMICO (in. Synnomio, fr. Synnomique, it. Sinnomicó). Termo empregado por G. M. Baldwin para
indicar o conjunto de conhecimentos comuns que se formam nos indivíduos, quando esses conhecimentos
são considerados "aptos ou apropriados a todos os processos lógicos como tais" (Thought and Things,
1906, II, p. 270). Sindóxico, ao contrário, é aquilo que é comum mas sem caráter de normatividade (v.
SINDÓXICO).
SINONÍMIA. (in. Synonimy, fr. Synonymie, ai. Synonimie, it. Sinonimid). A relação de S. é importante
para os lógicos porquanto a utilizam para definir a noção de analiticidade(v.). Como o conceito de S.
como "identidade de significado entre duas formas lingüísticas" não é suficiente, os lógicos costumam
acrescentar alguma outra condição para definir a sinonímia. Lewis diz: "Duas expressões são sinônimas
se e apenas se: 1Q
têm a mesma intensão e se essa intensão não é zero nem universal, ou 2e
se sua intensão
é zero ou universal, mas elas são analiticamente confrontáveis" {Analysis of Knowledge and Valuation,
1946, p. 86). Por "expressões que têm intensão zero ou universal", Lewis entende expressões como "ser",
"entidade", "coisa", "qualquer coisa" ilbid., p. 87). Carnap, por sua vez, observou: "Se pedimos a tradução
exata de dada asserção de uma língua para outra, p. ex. de uma hipótese científica ou de um testemunho
em tribunal, costumamos esperar mais que a concordância das intensões dos enunciados. (...) Mesmo se
restringirmos nossa atenção a significados designativos (cognitivos), a equivalência lógica dos
enunciados não será suficiente; será preciso que pelo menos alguns dos desig-nadores constitutivos sejam
logicamente equivalentes ou, em outras palavras, que as estruturas intensionais sejam semelhantes". A S.
seria expressa, pois, por um "isomor-fismo intensional", cujas regras Carnap expõe {Meaning and
Necessity, 1957, §§ 14, 15).
Contudo, as exigências expressas por Lewis e Carnap para a definição de S. continuam no campo da
intensionalidade das formas lingüísticas. É o que acontece também com a definição de Church
(Introduction to Mathema-tical Logic, § 01). Quine demonstrou, nesse mesmo plano, como é difícil
utilizar a S. para definir a analiticidade, pois "dizer que 'solteiro' e 'homem não casado' são sinônimos do
ponto de vista cognitivo, significa dizer que é analítica a asserção 'todos os solteiros e só eles são homens
não casados'". Portanto, segundo Quine, a S. pode ser definida como a possibilidade de substituição
recíproca de dois termos, salva analyticitate, vale dizer, a possibilidade de, numa expressão, substituir
dois termos um pelo outro sem que a expressão perca o caráter analítico (From a Logical Point of View,
1953, II, 3).
SINÔNIMO (in. Synonym-, fr. Synonyme, ai. Synonym-, it. Sinônimo). Segundo a definição aristotélica
(Cat., 1 a 6; 3b 7), diz-se que são S. as coisas que têm em comum o nome e a definição da essência, assim
como o homem e o boi são chamados (e são) ambos animais. No uso moderno, porém, são chamados de
S. os vocábulos (ou enunciados) diferentes na forma da expressão, mas de igual conteúdo semântico. Na
lógica contemporânea são chamados de S. os enunciados que têm forma diferente mas o mesmo sentido
(designando a mesma proposição): no entanto nem sempre é fácil distinguir sinonímia (semântica) de
equivalência (sintática).
SINOPSE (gr. aúvounç; in. Synopsis; fr. Synopsis; ai. Synopsis; it. Sinossi). Visão de conjunto. Platão
emprega esse termo para indicar o primeiro momento do procedimento dialético, que consiste em reunir
uma multiplicidade numa única idéia iRep., 537 e; Fed., 265 d). Esse termo também foi empregado por
Kant na primeira edição da Crítica da Razão Pura, na expressão "a sinopse a priori da multiplicidade por
meio do sentido" \Crít. R. Pura, § 14, ao final), que seria a apreensão da multiplicidade sensível nas
formas da intuição (espaço e tempo), que ele distingue da síntese imaginativa e da síntese conceituai.
SINTAXE (gr. ■cruvTctÇiç; lat. Syntaxis; in. Syntax, fr. Syntaxe, ai. Syntax, it. Sintassi). 1. Qualquer
organização, combinação ou sis-tematizaçâo de partes. O estóico Crisipo define como "S. do todo" o
destino que governa a ordem do mundo {Stoicorum fragmenta, II, p. 293).
SEVTEUCO
905
SÍNTESE
2. Uma das dimensões do procedimento semiológico (v. SEMIOSE), que é a possibilidade de combinar
signos com base em regras deter-mináveis. Neste sentido pode-se falar, p. ex., de "S. dos sons" ou "das
cores", etc.
3. A ciência que estuda as formas gramaticais ou lógicas da linguagem, entendendo-se por formas as suas
possibilidades de combinação. Mais particularmente, Carnap definiu a S. lógica das linguagens como "a
teoria formal das formas lingüísticas, a declaração sistemática das regras formais que a regem, as
linguagens e as conseqüências decorrentes dessas regras". Carnap acrescenta que "uma teoria, uma regra,
uma definição, etc. deve ser chamada de formal quando não faz qualquer referência ao significado dos
símbolos (p. ex., das palavras) ou ao sentido das expressões (p. ex., dos enunciados), mas unicamente às
espécies e à ordem dos símbolos com que as expressões são construídas" (Logische Syntax der Sprache,
1934, § 1). Carnap identificou com a S. toda a lógica ou metodologia das ciências {Ibid., § 81), com base
na consideração de que "para determinar se um enunciado é ou não conseqüência de outro, não é
necessária qualquer referência ao significado dos enunciados"; portanto, "uma lógica especial do
significado é supérflua; uma 'lógica não formal' é uma contradição nos termos. A lógica é S." {Ibid., §
71). Mais tarde, o próprio Carnap admitiu a divisão da análise da linguagem ou semiótica em pragmática,
semântica e S., considerando o ponto de vista sintático como o procedimento que abstrai do fator
semântico (Foundations of Logic and Mathematics, 1939, § 8).
SINTEIICO (in. Syntelic; fr. Syntélique, it. Sintelicó). Termo empregado por G. M. Bald-win para
designar os elementos práticos comuns a vários indivíduos, mas nem por isso necessariamente válidos:
elementos que correspondem àquilo que é chamado de sin-dóxico no domínio do conhecimento ( Thought
and Things, 1906, III 79-80).
SINTÉRESE (gr. <xuvnípr|cn.ç; lat. Synteresis; in. Synteresis; fr. Syntérèse, ai. Synteresis; it. Sinteresi).
Diretriz da consciência moral do homem ou essa mesma consciência. Esse termo significa "conservação"
e foi empregado pela primeira vez para indicar a conservação do critério do bem e do mal por parte de
Adão, depois da expulsão do Paraíso. Nesse sentido, foi São Gerônimo o primeiro a usar a palavra,
designando com ela "a centelha de consciência
que não se extingue no peito de Adão depois de sua expulsão do Paraíso" {Comm. inEzech., em P. L., 25,
col. 22). Reaparece em outros padres da igreja (Basílio, Gregório, o Grande) e nos Vittorini. Mas foi só
em Bonaventura e em Alberto Magno que se transformou em faculdade natural de juízo moral, que guia o
homem para o bem e cria nele o remorso pelo mal. São Boaventura considera a S. como a iluminação que
Deus concede ao intelecto humano no domínio prático, correspondendo à iluminação que, no domínio
teórico, o leva para a ciência. {In Sent., II, d. 39 a. 2, q. 1). Portanto a S. é "o ápice da mente", o último
grau da ascensão a Deus, o que precede imediatamente o arreba-tamento final {Itinerarium mentis in
Deum, I, 6). Definição análoga aparece em Alberto Magno {S. Th., II, 16, q. 99). S. Tomás modificou seu
conceito, transformando-o de noção mística em noção moral, vale dizer, deixando de considerá-lo como
luz proveniente do alto, e considerando-o como hábito moral. Diz: "A S. não é um poder especial superior
à razão ou à natureza, mas é o hábito natural dos princípios práticos, assim como o intelecto é o hábito
dos princípios especulativos" {S. Th., I, q. 39, a. 12; De ver., q. 16, a. 1). Assim como o intelecto apreende
os princípios últimos que servem de fundamento à ciência, a S. apreende os princípios que servem de
fundamento à atividade prática. Esse conceito não foi alterado pelos escritores escolásticos posteriores
(cf. p. ex., DUNS SCOT, Op. Ox., II, d. 39, q. 2, a. 4). Essa noção reaparece, mas raramente, em escritores
posteriores: foi utilizada por Nicolau de Cusa, em seu significado místico {De visione Dei, ed.
Bohnenstadt, pp. 150 ss.); foi empregada com o mesmo significado por B. Gracián: "É o trono da razão, a
base da prudência, porque graças a ela custa pouco vencer. É presente do céu, o mais cobiçado. (...)
Consiste na propensão inata a tudo o que mais se conforma à razão, sempre em conjunto com o que há de
mais certo" {Oráculo manual, 1647, § 96).
SÍNTESE (gr. aúvBeoiç; lat. Synthesis; in. Synthesis; fr. Synthèse, ai. Synthese, it. Sintesi). Este termo,
além do significado comum de unificação, organização ou composição, tem os seguintes significados
específicos: I
a método cognitivo oposto a análise; 2
a
atividade intelectual; 3Q
unidade dialética dos
opostos; 42
unificação dos resultados das ciências na filosofia.
l
s
No primeiro significado, como um dos métodos fundamentais do conhecimento (em
SÍNTESE
906
SBVTESE
oposição a análise), a síntese pode ser considerada como o método que vai do simples ao composto, dos
elementos às suas combinações, nos objetos cuja natureza se pretende explicar. A oposição dos dois
métodos foi expressa pela primeira vez por Descartes (Rép. aux II objec-tíons; v. ANÁLISE); Leibniz
assim a expressava: "Chega-se muitas vezes a belas verdades por meio da S., indo do simples ao
composto, mas quando é preciso encontrar o meio de fazer aquilo que se propõe, a S. normalmente não
basta (...) e cabe à análise dar-nos o fio condutor, quando isso é possível, porque há casos em que a
natureza do problema exige que se proceda tateando, e nem sempre é possível cortar caminho" (Nouv.
ess., IV. 2, 7). Segundo Kant, o método sintético é "progressivo", ao passo que o analítico é "regressivo",
vai do objeto às condições que o possibilitam {Prol., § 5, nota). Segundo Kant, o procedimento da
filosofia é analítico, enquanto o da matemática é sintético, mas neste caso os dois termos não têm
nenhuma relação com a classificação dos juízos em analíticos e sintéticos. Em geral, assim como o
procedimento analítico é caracterizado pela presença de dados (inerentes ao objeto ou à situação a ser
resolvida) que o guiam e controlam, o procedimento sintético pode ser caracterizado pela ausência de tais
dados e pela pretensão, inerente a ele, de produzir por si mesmo os elementos de suas construções (v.
FILOSOFIA). 2- No segundo significado, o termo designa a união do sujeito e do predicado na proposição,
portanto o ato ou a atividade intelectual que realiza tal união. Foi neste sentido que Aristóteles utilizou o
termo, ao dizer que "onde está o verdadeiro e o falso está também certa S. de pensamento semelhante à S.
que há nas coisas" (De an., III, 6, 430 a 27), e "o que cria essa unidade é o intelecto" (Ibid., 430b 5). Mas
foi Kant quem mais utilizou o conceito de S., reduzindo a ela todas as espécies de atividade intelectual.
Definiu a S. em geral como "o ato de unir diferentes representações e de compreender essa unidade num
único conhecimento" (Crít. R. Pura, § 10), e distinguiu numerosas espécies de S. com base nos elementos
que nela se encontram. Em primeiro lugar, fez a distinção entre S.pura, na qual a multiplicidade não é
dada empiricamente, mas #príon(como a do espaço e do tempo), e a S. empírica, em que a multiplicidade
é dada empiricamente. A S. pura é "o ato originário do conhecimento, o primeiro fato ao qual devemos
dar atenção se
quisermos descobrir a origem primeira de nosso conhecimento" (Ibid). Portanto, a S. pura precede
qualquer análise, pois só se pode analisar o que já se deu unido num ato cog-noscitivo. A S. pura, que é
possível a priori, pode ser distinguida da S. figurada (Synthesis speciosd) e da síntese intelectual
(Synthesis in-tellectualis): ambas sào transcendentais porque constituem a possibilidade de qualquer
conhecimento, mas enquanto a segunda unifica uma multiplicidade puramente pensada, a figurada é uma
S. da multiplicidade da intuição sensível, ou melhor, é uma S. da imaginação entendida como "faculdade
de determinar a priori a sensibilidade" (lbid., % 24). É nessa S. transcendental da imaginação que se
baseia o cogito, ou apercepção originária (v.). Mas, como todo conhecimento é síntese e o conhecimento
efetivo, segundo Kant, é a experiência, Kant chama a experiência de "síntese, segundo conceitos, do
objeto dos fenômenos em geral" (Crít. R. Pura, Anal. dos princ, cap. 11, seç. II). Na primeira edição,
Kant falara em três espécies de S.: I
a S. da apreensão na. intuição; 2a S. da reprodução na imaginação; 3a
S. da recognição no conceito (Crít. R. Pura, I
a
ed., An. transe, I Livro, cap. 2, seç. 2). Mas tanto na
primeira quanto na segunda edição Kant reduziu qualquer espécie ou grau de atividade cognitiva a S. Esse
foi um dos aspectos mais evidenciados e discutidos de sua obra. Enquanto a noção de S. mudava de
natureza no idealismo (v. mais adiante), era retomada e adaptada por outros filósofos de maneiras
diferentes. Galluppi inverteu o ponto de vista kantiano, pondo a análise antes da síntese. "AS. é a
faculdade de reunir as percepções separadas pela análise. A análise é, pois, uma condição essencial para a
síntese" (Saggio fil. sulla critica delia conos-cenza, 1831, II, § 146). Além disso, fez a distinção entre a S.
ideal objetiva, que consiste em reconhecer as relações objetivas que existem entre as coisas, S.
imaginativa civil, que consiste em reunir numa representação complexa, que não corresponde a nenhum
objeto, diferentes representações, cada uma das quais tem um objeto, e S. imaginativa poética, que é uma
espécie da precedente (Ibid., III, §§ 147-149). Por sua vez, Rosmini chamava S. primitiva a sua
"percepção intelectiva" (Nuovo saggio, § 46; § 528, etc). Em geral, o conceito de S. continuou
expressando em filosofia a atividade ordenadora, organizadora e sistematizadora do intelecto. Os
neokantianos fizeram amplo
SÍNTESE
907
SINTETICIDADE
uso dessa noção. Para A. Riehl, em especial, a atividade sintética é a função fundamental da consciência e
o a priori de todo o conhecimento (Der philosophische Kriticismus, II, 2, 188 7, p. 68). Outros
neokantianos, como Cohen, preferiram o conceito de origem, e não de S. (Logik der reinem Erkenntnis,
1902, p. 36). Wundt introduziu esse conceito em psicologia e falou do "princípio da S. criativa", segundo
o qual "não só as partes que compõem uma S. aperceptiva adquirem, ao lado do significado que tinham
isoladamente, um novo significado, devido à sua conexão na representação total, como também essa
representação é um novo conteúdo psíquico, que é possibilitado pelas partes componentes, mas não
consiste nelas" (Grundriss der Psychologie, 1896, p. 394). Por outro lado, a filosofia fenomenológica
evidenciou a função da S. na "constituição das objetividades de consciência". Husserl acredita que todo
objeto de conhecimento em geral é uma "unidade sintética", uma S. de consciência (Ideen, I, § 86). Faz a
distinção entre S. continuativas, do tipo, p. ex., que constitui a espacialidade, e as S. articuladas, que são
os modos particulares, em que atos separados uns dos outros se conectam num único ato sintético de grau
superior. São S. articuladas, p. ex., os atos de preferência ou as emoções simpáticas; além disso, há as S.
coligantes, disjungentes (que visam a isto ou àquilo) e explicitantes, que determinam as formas da lógica
e da ontologia formal (Ideen, I, § 118).
3
2
A noção de S. como unidade dos contrários nasceu com o conceito correlato de dialética (v.) e foi
exposta pela primeira vez por Fichte, que diz: "O ato pelo qual se busca, nas comparações, a característica
graças à qual as coisas comparadas são opostas entre si chama-se procedimento antitético (chamado
ordinariamente analítico). (...) O procedimento sintético, ao contrário, consiste em buscar nos opostos a
característica graças à qual eles são idênticos" (Wissenschaftslehre, 1794, § 3-D, 3). A lei dessa identidade
é que "nenhuma antítese é possível sem uma S. porque a antítese consiste precisamente em buscar nos
iguais a característica oposta, mas os iguais não seriam iguais se antes não tivessem sido postos como
iguais por um ato sintético" (Ibid., § 3, D, 3). Schelling falava de um "processo que vai da tese à antítese e
depois à síntese", em virtude do qual o eu afirma o objeto, opõe-se a ele e finalmente volta a compreendê-lo em si mesmo (System des transzendentalen Idealismus, 1800, III, cap. I;
trad. it., pp. 58 ss.). Hegel, no entanto, preferiu os termos "identidade" ou "unidade", mesmo lamentando
que a palavra unidade indicasse, bem mais que "identidade" uma "reflexão subjetiva". A unidade ou a
identidade que fecha uma tríade dialética é uma conexão objetiva; segundo Hegel, seria melhor chamá-la
de "inseparabilidade" se, desse nome, não fosse excluída a natureza positiva da S. (Wissenschaft der
Logik, I, livro I, seç. I, cap. I, e, nota 2; trad. it., p. 85). Na linguagem filosófica francesa e italiana, a
palavra S. foi preferida a "identidade" ou "unidade" para indicar o momento resolutivo do procedimento
dialético, que é realmente o momento produtivo e criativo. O. Hamelin falou em método sintético, que
consistiria em "mostrar a conexão necessária entre noções opostas"; sua mola seria a correlação, graças à
qual os opostos remetem um ao outro e colaboram entre si (Essai sur les éléments principaux de Ia
représentation, 1907, p. 20). Os idealistas italianos (Croce e Gentile) empregaram a expressão S.
apriorino sentido de atividade produtiva ou criadora. Com ela Gentile entendeu auto-síntese, que seria
"posicionar-se na sua própria identidade e diferença", que é a autocriação (Sistema di lógica, II, 3
a
ed.,
1942, p. 83, cf. I, 2
a
ed., 1922, p. 27). Croce falou da S. a priori como atividade criadora do espírito: "A S.
a priori pertence a todas as formas do Espírito porque o Espírito, considerado genericamente, nada mais é
que S. a priori; e esta se explicita na atividade estética e na prática, bem como na atividade lógica"
(Lógica, 4-ed., 1920, p. 141). Para ele, a S. a priori era a identidade entre filosofia e história, pois ela
"contém em si a historidade que seu descobridor [Kant] omitia ou desconhecia" (Ibid., p. 369).
4
a
Finalmente, entendeu-se por S. a unificação dos resultados finais das ciências específicas no seio da
filosofia primeira, segundo o conceito positivista de filosofia (v.). Tal S. foi chamada de subjetiva por
Comte, que a considerava imprescindível em vista das necessidades naturais do homem (S. subjetiva ou
sistema universal das concepções próprias do estado normal da humanidade, 1856, I). Pelo mesmo
motivo, Spencer chamou o conjunto de sua obra de "Sistema de filosofia sintética"; o primeiro volume é
constituído pelos Primeiros princípios (1862).
SINTETICIDADE (in. Syntheticity). Validade das proposições que depende dos fatos.
SINTETISMO
908
SISTEMA
Pelo menos este é o significado que hoje se costuma atribuir ao adjetivo sintético quando se refere a
proposições ou enunciados. Kant, a quem se deve a introdução dos termos analítico e sintético,
empregou-os para distinguir os juízos explicativos e os juízos extensivos. Os primeiros nada acrescentam,
por meio do predicado, ao conceito do sujeito, mas limitam-se a dividir por meio da análise o conceito em
seus conceitos parciais, que nele já eram pensados, ainda que confusamente; os segundos, pelo contrário,
acrescentam ao conceito do sujeito um predicado que não estava contido nele nem podia ser dele
deduzido por análise" (Crít. R. Pura, Intr., § IV). Mas, segundo Kant, os juízos sintéticos são não apenas
os que se referem a coisas de fato, mas também os da matemática e da física pura, porquanto baseados na
intuição a priori do espaço e do tempo e nas categorias, sendo por isso chamados de "juízos sintéticos a
priori". Na filosofia contemporânea, porém, a S. como caráter das expressões foi entendida no sentido das
"proposições de fato" de Hume ou das "verdades de fato" de Leibniz (v. EXPERIÊNCIA; FATO), OU seja,
como proposições que se referem a situações ou estados de coisas e que podem ser verdadeiras ou falsas
em relação a elas. Carnap diz: "Um enunciado sintético é verdadeiro às vezes — quando existem certos
fatos — e às vezes falso; portanto, ele diz algo sobre quais os fatos que existem. Os sintéticos são os
enunciados autênticos acerca da realidade" (Logische Syntax der Sprache, § 14). Todavia, os lógicos
muitas vezes preferem definir negativamente os enunciados sintéticos, como enunciados que não são
analíticos nem contraditórios: é o que fazem, p. ex., Lewis (Analysis of Knowledge and Valua-tion, 1946,
p. 35) e Reichenbach (Theory of Probability, 1949, p. 20). Assim como as proposições analíticas (v.
ANALITICIDADE) são chamadas de "verdades necessárias" porque sua negação é impossível, também as
proposições sintéticas são chamadas freqüentemente de contingentes, no sentido de não serem nem
necessárias nem impossíveis (cf. CARNAP, Meaning and Necessity, § 39).
SINTETISMO (ai. Synthetismus). Esse nome, que se baseia na unidade de ser e saber, foi dado à sua
filosofia por um certo "Senhor Krug", que desafiou Hegel a deduzir nem que fosse a pena com que
escrevia, ao que Hegel respondeu que isso não seria impossível, quando a ciência tivesse progredido
suficientemente, e nada houvesse de melhor a fazer (cf. W. T. KRUG, Fundamentalphilosophie, 1818; HEGEL, Ene,
§ 250, nota). Rosmini chamou de S. a união do princípio senciente com o corpo, sentido no ser animado,
e em geral a união de elementos diferentes, um dos quais espiritual e o outro material, em todos os
aspectos da realidade. Neste sentido, ele disse que o S. "é lei e chave da natureza de todas as coisas do
universo" (.Antropologia, § 325; Psicologia, I, §§ 34 ss.).
SINTOMA. V. INCONSCIENTE; PSICANÁLISE.
SISTEMA (gr. aúcrrnLia; in. System, fr. Sys-tème, ai. System; it. Sistema). 1. Uma totalidade dedutiva de
discurso. Essa palavra, desconhecida neste sentido no período clássico, foi empregada por Sexto Empírico
para indicar o conjunto formado por premissas e conclusão ou o conjunto de premissas (Pirr. hyp., II,
173), e passou a ser usada em filosofia para indicar principalmente um discurso organizado
dedutivamente, ou seja, um discurso que constitui um todo cujas partes derivam umas das outras. Leibniz
chamava de S. o repertório de conhecimentos que não se limitasse a ser um simples inventário, mas que
contivesse suas razões ou provas e descrevesse o ideal sistemático da seguinte maneira: "A ordem
científica perfeita é aquela em que as proposições são situadas segundo suas demonstrações mais simples
e de maneira que nasçam umas das outras" (Me-thode de Ia certitude, Op., ed. Erdmann, pp. 174-75).
Wolff, por sua vez, dizia: "Chama-se de S. um conjunto de verdades ligadas entre si e com seus
princípios" (Log., § 889). A noção de S. moldava-se assim na de procedimento matemático. Kant
subordinou-a a outra condição: a unidade do princípio, que fundamenta o sistema, pois ele entendeu por
S. "a unidade de múltiplos conhecimentos, reunidos sob uma única idéia"; afirmou que o S. é um todo
organizado finalisticamente, sendo portanto uma articulação (articulatió), e não um amontoado
(coacervatió); pode crescer de dentro para fora (per intussusceptionem), mas não de fora para dentro (per
appositionem), sendo, pois, semelhante a um corpo animal, cujo crescimento não acrescenta nenhum
membro, mas, sem alterar a proporção do conjunto, torna cada um dos membros mais forte e mais apto a
seu objetivo (Crít. R. Pura, Doutr. do método, cap. III). Com base nisso, Kant fala de "unidade
sistemática do conhecimento, da qual as idéias da razão pura tentam aproximar-se" (Ibid.,
SISTEMA
909
SISTEMA
Dialética, cap. II, seç. I). A unidade do S., ou seja, sua possibilidade de derivar de um único princípio, é a
característica que determinou o sucesso dessa noção na literatura filosófica romântica. Constitui o ideal da
teoria da ciência de Fichte: "Se não deve haver somente um ou vários fragmentos de S., nem mesmo
vários S., mas um S. único e perfeito do espírito humano, então deverá haver um princípio fundamental
absolutamente primeiro e supremo. E embora, a partir dele, nosso saber se expanda por si em tantas
séries, das quais procedem outras séries e assim por diante, todas essas séries devem unir-se num só elo,
que não está preso a nada, mas se mantém e a todo o sistema por sua própria força" (Über den Begriff der
Wissenschaftslehre, 1794, § 2; trad. it., p. 19). Na filosofia romântica é lugar-comum considerar o S.
como forma da ciência, que supõe um princípio único e absoluto. A origem disso é o ideal matemático, no
qual Leibniz, Wolff e o próprio Kant se haviam inspirado; mas esse ideal acaba por voltar-se contra a
própria matemática e sendo reivindicado exclusivamente para a filosofia. Shelling dizia: "Admite-se em
geral que à filosofia convém uma forma especificamente sua, que se chama de sistemática. Pressupor tal
forma não deduzida cabe a outras ciências, que já pressupõem a ciência da ciência, mas não a esta, que se
propõe como objeto a possibilidade de semelhante ciência" (System des transzendentalen Idealismus,
1800, I, cap. I; trad. it., p. 27). Hegel só fez sancionar o mesmo ponto de vista: "A ciência do Absoluto é
essencialmente S., porque o verdadeiro, como concreto, é tal apenas na medida em que se desenvolve em
si, se reúne e mantém em unidade, vale dizer, como totalidade, pois só pela diferenciação e pela
determinação de suas diferenças são possíveis a necessidade destas e a liberdade do todo" (Ene, § 14).
Hegel acrescenta que "um filosofar sem sistema não pode ser nada científico" porque expressa um modo
de sentir subjetivo; e em oposição às doutrinas românticas irracionalistas ou fideístas ele impõe a
exigência sistemática. Essa mesma exigência manteve-se e foi valorizada nas filosofias idealistas. Croce
dizia: "Pensar determinado conceito puro significa pensá-lo em sua relação de unidade e distinção com os
outros todos; assim, o que se pensa nunca é realmente um conceito único, mas um S. de conceitos, o
Conceito" (Lógica, 4
a
ed., 1920, p. 172).
O ideal de S. como organismo dedutivo baseado num único princípio continuou sendo patrimônio da
filosofia, que o cultivou mesmo quando — a exemplo de Kant — declarou que esse ideal era inatingível
pelo conhecimento humano. Contudo, esse termo foi e é empregado também sem relação com este
significado, para indicar qualquer organismo dedutivo, mesmo que não tenha um princípio único como
fundamento. É o caso dos S. de que hoje se fala em matemática e lógica. Os S. hipotéti-co-dedutivos,
abstratos, axiomáticos, etc. não são S. por terem um princípio único; aliás, os seus princípios, que são os
axiomas, devem ser independentes entre si, não devem poder ser deduzidos um do outro (v. AXIOMA,
AMOMATIZAÇÃO). São chamados de S. unicamente por seu caráter dedutivo, e no mesmo sentido fala-se
de S. numérico e, às vezes, de "S. de axiomas" para indicar um simples conjunto não contraditório de
proposições primitivas (cf. M. R. COHEN E. NAGEL, "The Nature of a Logical or Mathematical System",
em Readings in the Philosophy of Science, 1953, pp. 129 ss.). Isso significa que o uso dessa palavra
perdeu o significado forte ou elogioso de discurso dedutivo.
2. Qualquer totalidade ou todo organizado. Neste sentido, fala-se em "S. solar", "S. nervoso", etc, e
também de "classificação sistemática" ou, mais simplesmente, de S. em lugar de classificação, como fez
Lineu, quando quis insistir no caráter ordenado e completo de sua classificação (Systema naturae, 1735).
Desse ponto de vista, às vezes se faz a distinção entre o S. como conjunto contínuo de partes que têm
inter-relações diversas e a estrutura (v.) ou a organização que os componentes dele podem assumir em
determinado momento (W. BUCKLEY, Sociology and Modem System Theory, 1967, p. 5).
3. Qualquer teoria científica ou filosófica, especialmente quando se quer ressaltar seu caráter
escassamente empírico. No séc. XVIII falava-se de "S. do mundo" para indicar as teorias cosmológicas
(cf., p. ex., D'ALEMBERT, (Euvres, ed. Condorcet, pp. 165 ss.). Leibniz chamava de S. suas teorias sobre a
relação entre a alma e o corpo ou entre as diferentes substâncias (Système nouveau de Ia nature et de Ia
com-munication dessubstances, 1695). Baumgarten chamava de S. psicológicos as "opiniões que parecem
aptas a explicar a relação entre alma e corpo" (Mel, § 76l); no mesmo sentido, mas de
SISTEMA LOGÍSTICO
910
SITUAÇÃO
maneira depreciativa, os iluministas falavam de S. e de espírito sistemático. Diderot dizia: "Chamo de
espírito sistemático o costume de traçar planos e criar sistemas do universo, para depois pretender
adaptar-lhes os fenômenos, pela razão ou pela força" (Giuvres, p. 291). D'Alembert falava igualmente de
S. como "sonhos dos filósofos" (cf. p. ex., CEuvres, ed. Condorcet, p. 234). Hegel queixava-se desse uso
dos filósofos franceses, para os quais, segundo ele, S. coincidia com unilateralidade ou o dogmatismo
(Geschichte der Pbilosopbie, I, cap. III, seç. I, B, 4; trad. it., II, p. 293; I, cap. III, seç. III, E; trad. it., III,
1, p. 29). Esse uso manteve-se na França mesmo no séc. XIX (cf. E. BERNARD, Introduction à Ia
medicine expéri-mentale, 1865, I, II, § 6).
SISTEMA LOGÍSTICO (in. Logistic system, fr. Système logistique, ai. Logistiches System; it. Sistema
logístico). Cálculo lógico ao qual não se dá nenhuma interpretação. Para constituir um S. logístico são
suficientes:
l
2
um vocabulário de símbolos primitivos;
2° as regras de formação que determinam quais as combinações de símbolos primitivos são permitidas e
quais não são;
3° regras de inferência, ou seja, de transformação das expressões compostas que dão origem a outras;
4
S
algumas proposições primitivas ou axio-mas.
Distingue-se do S. logístico a linguagem formal, pois a esta última é dada certa interpretação. Para passar
do S. logístico à linguagem formal são, pois, necessárias algumas regras semânticas que atribuam um
significado às fórmulas do sistema. Pode-se dizer também que a diferença entre S. logístico e linguagem
formal é que o primeiro tem somente regras sintáticas e a segunda tem também regras semânticas {d.,
sobre isso, A. CHURCH, "The Need for Abstract Entities in Semantic Analysis", em Proceedings ofthe
American Academy ofArts and Sciences, 1951, pp. 100 ss.; Introduction to Mathematical Logic, 1956) (v.
CÁLCULO, FORMALIZAÇÃO).
SISTEMÁTICA (in. Systematics; fr. Systéma-tique, ai. Systematik, it. Sistemática). Técnica, caminho ou
meio de realizar o sistema. Essa noção deriva do princípio kantiano de que o sistema é o ideal regulador
da investigação filosófica, e não sua realidade. "No entanto — diz Kant — o método pode sempre ser
sistemático. Pois nossa razão (subjetivamente) é por si mesma um sistema, mas em seu uso puro, por simples conceitos, é apenas um sistema de investigação,
segundo princípios, da unidade à qual a experiência só pode fornecer a matéria" (Crít. R. Pura, Doutr. do
mét, cap. I, seç. I). Essa noção firmou-se principalmente no criticismo alemão. Natorp falava de "S.
filosófica" no sentido de investigação destinada a conferir ao saber filosófico a unidade própria do
sistema {Philosophische Systematik, § 1).
SISTEMÁTICO (in. Systematic; fr. Systéma-tique, ai. Systematisch; it. Sistemático). 1. Que constitui
sistema ou pertence a um sistema, em qualquer dos sentidos dessa palavra. É neste sentido que se diz
"saber S." ou "erro S."
2. Que tende para o sistema, mas não é um sistema: com referência a sistemática. Neste sentido, N.
Hartmann distinguia na história da filosofia o pensamento-sistema, voltado para a construção do sistema,
e o pen-samento-problema, que se mantém na indagação aberta (Systematische Pbilosopbie, 1931, § DAlém disso, segundo ele, "já ficou para tráso tempo das visões S., e a filosofia S. acabou no terreno
despretensioso mas sólido da indagação problemática" {Derphilosophische Gedanke und seine
Geschichte, III, 4; cf. Zur Grundlegung der Ontologie-, 1935, p. 31).
SITUAÇÃO (in. Situation; fr. Situation-, ai. Situation; it. Situazione). A relação do homem com o
mundo, na medida em que limita, condiciona e, ao mesmo tempo, fundamenta e determina as
possibilidades humanas como tais. Esse termo foi introduzido por Jaspers, que assim o explicava: "A
situação externa, apesar de tão mutável e diferente, segundo o homem ao qual se aplica, tem a seguinte
característica típica: para todos tem duas faces, incita e obsta, inevitavelmente limita e destrói, é ambígua
e insegura" (Psychologie der Weltans-chauungen, 1925, cap. III, § 2; trad. it., p. 268). Jaspers falava
também de situações-limite que possuem em grau elevado as características próprias de qualquer S. do
homem no mundo. Tais são as situações imutáveis, definitivas, incompreensíveis, nas quais o homem se
acha como se estivesse diante de um muro contra o qual se choca sem esperança. São elas: estar sempre
em determinada situação; não poder viver sem luta e sem dor; a necessidade de assumir culpas; ter a
morte como destino {Phil, II, p. 209). Nessas situações Jaspers via a cifra (v.) (revelação negativa) da
existência.
SITVERUM
911
SOBERBA
Heidegger notou que esse termo também tem significado espacial, mas designa sobretudo a determinação
pela qual a existência, como ser no mundo, decide acerca de seu próprio lugar (Sein und Zeit, § 60). A
existência impessoal acha-se diante de "S. gerais" e perde-se nas oportunidades mais próximas. A
conclamação da consciência leva o homem à presença de sua situação própria e à exigência de uma
decisão autêntica (Ibid., § 60). Em sentido semelhante se disse.- "A necessidade da relação entre a
finitude do ente e a determinação constitutiva do mundo e do outro ente é a S. existencial do ente. (...) O
constituir-se do ente na S. que o individualiza na sua finitude é o acontecer do ente, sua historicidade
fundamental (ABBAGNANO, Estrutura da existência, 1939, §70). E Sartredisse: "Se opara-si[a
consciência do homem] nada mais é que sua situação, decorre que o ser em S. define a realidade humana,
dando conta ao mesmo tempo de seu estar aí e de seu estar além. Com efeito, a realidade humana é o ser
que está sempre além de seu ser-aí. E a S. é a totalidade organizada do ser-aí, interpretado e vivido por e
para o ser, além deste mesmo ser" (Vêtre et le néant, 1943, p. 634).
Em sentido psicológico, mais precisamente gestáltico (v. PSICOLOGIA), esse termo foi utilizado por
Dewey, que identificou a S. com o campo {Logic, 1939, I, cap. IV; trad. it., pp. 111 ss.). Mas o próprio
Dewey insistiu no caráter objetivo da S. (Ibid., cap. IV, § 1) trad. it., 159 ss.).
SIT VERUM. Uma das obrigações (v.) da lógica terminista medieval. Consiste em responder a uma
proposição como quem sabe que ela é falsa, ou como quem sabe que ela é verdadeira, ou como quem dela
duvida (cf. OCKHAM, Summa log, III, III, 44).
SOBERANIA (in. Sovereignty, fr. Souverai-neté, ai. Souverãnitát; it. Sovranitã). Poder preponderante ou
supremo do Estado, considerado pela primeira vez como caráter fundamental do Estado por Jean Bodin,
em Six livres de Ia republique(1516). Segundo Bodin, a S. consiste negativamente em estar liberado ou
dispensado das leis e dos usos do Estado; positivamente, consiste no poder de abolir ou criar leis. O único
limite da S. é a lei natural e divina (Six livres de Ia republique, 9
a
ed., 1576,1, pp. 131-32). O termo e o
conceito foram aceitos por Hegel: "As duas determinações, de os negócios e os poderes particulares do
Estado não serem
autônomos e estáveis nem em si mesmos, nem na vontade pessoal dos indivíduos, mas de terem raízes
profundas na unidade do Estado — que outra coisa não é senão a identidade deles — constituem a S. do
Estado" (Fil. do dir., § 278). Hegel esclarece esta noção dizendo.- "O idealismo que constitui a S. é a
mesma determinação segundo a qual, no organismo animal, as chamadas partes deste não são partes, mas
membros, momentos orgânicos cujo isolamento ou existência por si é enfermidade" (Ibid., § 278). Essas
determinações de Hegel são dirigidas contra o princípio afirmado pela Revolução Francesa, de que a S.
está no povo. Rous-seau qualificara de soberano o corpo político que nasce com o contrato social
(Contraí social, I, 7) e assim definira o seu poder: "O corpo político ou soberano, cujo ser deriva tãosomente da santidade do contrato, nunca pode obrigar-se, nem mesmo em relação a outros, a nada que
derrogue aquele ato primitivo, que seria a alienação de alguma parte de si mesmo ou a sua submissão a
outro soberano. Violar o ato graças ao qual existe significaria anular-se; e o que nada é nada produz "
(Ibid., I, 7). Portanto, o princípio da S. é ser o poder mais alto em certo território: isso não significa poder
absoluto ou arbitrário. Para a moderna teoria do direito, a S. pertence à ordenação jurídica (v. ESTADO),
sendo entendida como a característica em virtude da qual "acima da ordenação jurídi-co-estatal não existe
outra" (H. KELSEN, General Theory ofLaw and State, 1945; trad. it., p. 390). Segundo Kelsen, se
admitirmos a hipótese da prioridade do direito internacional, o Estado pode ser considerado soberano
apenas em sentido relativo-, se admitirmos a hipótese da prioridade do direito estatal, pode ser chamado
de soberano no sentido absoluto e originário da palavra. A escolha entre as duas hipóteses é arbitrária
(Ibid., p. 39DSOBERBA (gr. xawóxnç; lat. Superbia; in. Pride, fr. Orgueil; ai. Hochmuth; it. Superbia). Vício
correspondente à virtude da magnanimidade (v.) e que tem como extremo oposto a pusilanimidade, na
ética de Aristóteles. Segundo ele, "os soberbos são insensatos porque se enganam sobre si mesmos:
empreendem tarefas honradas acreditando serem dignos delas, mas com isso só demonstram sua própria
insuficiência" (Et. nic, IV, 3, 1125 a 27). Essa definição tornou-se tradicional e foi repetida muitas vezes.
Spinoza dizia: "A S. é uma alegria cuja
SOBRENATURAL
912
SOCIEDADE
origem está em o homem sentir-se mais do que é" {Ibid., III, 26, scol.).
SOBRENATURAL (in. Supernatural; fr. Sur-naturel; ai. Übernatürlich; it. Soprannaturalé). O que
acontece na natureza, mas não decorre das forças ou dos procedimentos da natureza e não pode ser
explicado com base neles. É um conceito próprio da teologia cristã, que atribui à fé a crença no S. assim
entendido (cf. S. TOMÁS, S. Th., I, q. 99, a. 1).
SOBRENATURALISMO (in. Supranatura-lism; fr. Surnaturalisme, ai. Supranaturalis-mus; it.
Soprannaturalismó).1. Em geral, a crença no sobrenatural. De modo mais específico, Kant chamou de S.
"a doutrina que julga necessária para a religião em geral a fé na revelação sobrenatural" (Religion, IV, 1;
trad. it., Durante, p. 169).
2. Corrente filosófica que defende a tradição católica; difundiu-se na Itália e na França entre o fim do séc.
XVIII e o início do XIX e conta com os nomes de De Bonald, De Maistre, Ros-mini, Lamenais, Gioberti.
Seus partidários foram também chamados de teocráticos ou ultra-mundanistas (v. TRADICIONALISMO).
SOBREVIVÊNCIA. V. IMORTALIDADE.
SOCIAL (in. Social; fr. Social; ai. Sozial; it. Socialé). Que pertence à sociedade ou tem em vista suas
estruturas ou condições. Neste sentido, fala-se em "ação S.", "movimento S.", "questão S.", etc.
2. Que diz respeito à análise ou ao estudo da sociedade. Neste sentido, fala-se em "economia S.",
"psicologia S.", etc. Em especial, a expressão ciências S. designa o conjunto das disciplinas sociológicas,
jurídicas, econômicas e às vezes também a ética e a pedagogia.
SOCIALIDADE (in. Sociality, fr. Socialité, ai. Geselligkeit; it. Socialitã). O mesmo que sociedade no
primeiro sentido. G. H. Mead entendeu a S. em sentido mais vasto, atribuindo-a ao universo inteiro. "O
caráter social do universo consiste na situação de o novo acontecimento estar ao mesmo tempo na velha
ordem e na ordem nova, cujo prenuncio é sua realização. S. é a capacidade de ser várias coisas a um só
tempo" (ThePhilosophyofthePresent, 1932, p. 49).
SOCIALISMO (in. Socialism; fr. Socialistne, ai. Sozialismus, it. Socialismo). Este termo, que se
difundiu na Inglaterra (em oposição a individualismo) nas primeiras décadas do séc. XIX, tem duas
significações principais:
l
s
Uma significação mais ampla, designando, em geral, qualquer doutrina que defenda ou preconize a reorganização da sociedade em bases coletivistas. Nesse sentido, são S. o de Platão e
o de Marx, o de Owen e o de Proudhon, o de Lênin e o de Stálin. Refere-se a esse significado a distinção
feita por Marx e Engels entre S. utópico, para o qual a sociedade socialista é um ideal que não leva em
conta as vias ou os modos de realizá-la, e o S. científico, que, sem apresentar qualquer ideal, prevê o
advento inevitável da sociedade socialista com base nas próprias leis que determinam o desenvolvimento
da sociedade capitalista (cf. sobre esta distinção, especialmente: ENGELS, Antidühring, 1878, introdução e
cap. I da III parte).
Neste sentido, o termo é muito vago e indica qualquer aspiração, ideal, tendência ou doutrina que tenha
em vista alguma transformação da sociedade atual em sentido coletivista.
2
S
Em sentido mais restrito, entendem-se por S. as correntes coletivistas que se distinguem do comunismo
(v.) e se opõem a ele, enquanto: a) excluem a necessidade da ditadura do proletariado; b) excluem que tal
ditadura possa ser exercida, em nome do proletariado, por qualquer partido político; c) excluem a
diferença radical, que se observa nos países de regime comunista, entre a qualidade de vida da elite
dirigente e a da maioria dos cidadãos; d) excluem a subordinação da vida cultural às exigências do
partido, à vontade de seus dirigentes; é) exigem respeito às regras do método democrático.
A distinção das formas históricas que o S. assumiu diz respeito à política mais que à filosofia, não
pertencendo, portanto, à sua alçada.
SOCIEDADE (lat. Societas; in. Society, fr. Société, ai. Gesellschaft; it. Società). No sentido geral e
fundamental: l9
campo de relações intersubjetivas, ou seja, das relações humanas de comunicação,
portanto também: 2° a totalidade dos indivíduos entre os quais ocorrem essas relações; 3Q
um grupo de
indivíduos entre os quais essas relações ocorrem em alguma forma condicionada ou determinada.
I
a O primeiro significado, como se disse, é o fundamental; foi introduzido na cultura ocidental pelos
escritores latinos — especialmente por Cícero — que o hauriram no estoicismo. Nos escritores clássicos
da Grécia, os aspectos estatal e social encontram-se fundidos e não se distinguem do conceito de polis;
graças ao cosmopolitismo dos estóicos, foram dissociados e, portanto, a S. passou a ser considerada
SOCIEDADE
913
SOCIEDADE
independente do estado, da organização política. Foi expondo a doutrina dos estóicos que Cícero disse:
"Nascemos para a agregação dos homens e para a S. e a comunidade do gênero humano" {De finibus, IV,
2, 4). Esse conceito de S. é retomado pelo jusnaturalismo moderno, no qual é acompanhado pelo conceito
de direito natural (o que já acontecia nos estóicos). O direito natural, aliás, é empregado pelos
jusnaturalistas para delimitar o campo da sociedade. Huig van Groot (Grócio), p. ex., diz que "a
conservação da S., em conformidade com a inteligência humana, é fonte do direito propriamente dito"
{Dejurebellisacpacis, 1625, Proleg., § 8). Analogamente, para Hobbes, a S. era uma associação
decorrente das necessidades humanas e do temor, vale dizer, constituída em última análise por relações
humanas de utilidade recíproca {De eive, 1642,12). Pufendorf fundamentava a lei natural com o princípio
seguinte: "Cada um, no que depender de si, deve promover e manter para com seus semelhantes um
estado de sociabilidade pacífica, condizente em geral com a índole e as finalidades do gênero humano", e
explicava que se devia entender por sociabilidade "a disposição do homem para com o homem, graças à
qual um se considera vinculado ao outro pela benevolência, pela paz e pela caridade" {De jure naturae,
1672, II, 3). Também é possível encontrar uma definição indireta da S. nos textos que insistem na
tendência natural do homem para a sociabilidade, como os que aparecem freqüentemente nas obras de
Kant. "O homem tem inclinação a associar-se porque no estado de S. sente-se mais homem, vale dizer,
sente que pode desenvolver melhor suas disposições naturais. Mas também tem forte tendência a
dissociar-se (isolar-se) porque tem em si também a qualidade anti-social de querer voltar tudo para seu
próprio interesse, em virtude do que deve esperar resistência de todos os lados e, por sua vez, sabe que
terá de resistir aos outros" {Idee zu einer allgemeinen Ges-chichte in weltbürgerlicher Absicht, 1784, IV;
trad. it., p. 127; Met. derSitten, II, § 47; Crít. do Juízo, § 41). Fichte expressava esse mesmo conceito ao
dizer: "Chamo de S. a relação recíproca entre seres racionais" {Die Bestimmung des Gelehrten, 1794, II).
Desse ponto de vista, a análise da S. pode ter como objetivo:
a) Os fins que a totalidade do gênero humano deve ter em vista e dos meios que a razão indica para a
consecução de tais fins. As teorias
políticas dos autores gregos, p. ex., de Platão e de Aristóteles, e as teorias jusnaturalistas analisam a S.
nesse sentido.
b) As condições que, de fato, possibilitam as relações humanas. Essas condições foram definidas de
várias maneiras, e sua definição pode ser considerada a primeira tarefa da sociologia (v.). Max Weber
identificou-as na atividade social, que se realiza segundo uma ordem deliberada e relativamente constante
{Über einige Kategorien der verstehenden Soziologie, 1913, V; trad. it., in // método delle scienze
storico-sociali, pp. 262 ss.). Durkheim considerou característicos da S. humana os modos de agir que são
impostos de fora e se consolidam nas instituições {Règles de Ia méthode sociologique, 1895, cap. I). E a
própria ação, ou comportamento, às vezes é considerada elemento objetivo que define o campo das
relações humanas (cf. TALCOTT PARSONS, The Structure of Social Action, 1949; 2a
ed., 1957). Este
segundo modo de entender a S. atribui-lhe explícita ou implicitamente o caráter de "campo" e a reduz
portanto a uma construeto conceituai, isentando-a do caráter de totalidade real e do caráter de ideal
normativo.
2° O conceito de S. como totalidade de indivíduos entre os quais há relações intersubje-tivas, ou seja,
como "mundo social", em geral está ligado ao conceito de S. como organismo ou "superorganismo". Os
antigos já haviam comparado a comunidade política, o Estado, a um organismo. Os estóicos compararam
toda a S. — como comunidade de seres racionais — a um organismo (cf. MARCO AURÉLIO, Memórias,
VII, 13); esse paralelo continua na Idade Moderna. Comte chama a sociedade de "organismo coletivo"
{Cours de phil. positive, IV, pp. 442 ss.). Por sua vez, Spencer chama de superorgânica a evolução que
conduz à S. e considera a própria S. como um organismo cujos elementos são, em primeiro lugar, as
famílias e depois os indivíduos isolados. Segundo Spencer, o organismo social difere do organismo
animal porque a consciência pertence apenas aos elementos que o compõem, pois a S. não tem órgãos de
sentido como os animais, mas vive e sente apenas através dos indivíduos que a compõem {TheStudy
ofSociology, 1873); Wundt expressou-se no mesmo sentido {System der Philosophie, 2
a
ed., 1897, pp. 616
ss.). A hipótese organicista continua por trás de muitas teorias políticas e sociológicas modernas. Pode ser
considerada uma variante dessa mesma
SOCIEDADE
914
SOCIOLOGIA
concepção a doutrina de Hegel, para quem a "S. civil" é uma fase imperfeita ou preparatória do Estado,
que é a Idéia Divina realizada na terra: "A substância que, enquanto espírito, se particulariza
abstratamente em muitas pessoas (a família é uma só pessoa), em famílias ou em indivíduos, que por si
estão em liberdade, são independentes e particulares, e perde seu caráter ético; isso porque essas pessoas,
enquanto tais, não têm na consciência e como objetivo a unidade absoluta, mas sua própria
particularidade e seu ser por si: daí nasce o sistema da atomística". Este sistema é precisamente a
sociedade civil como "conexão universal e mediadora de extremos independentes e de seus interesses
particulares" ou como "Estado exterior" {Ene, § 523; Fil. do dir., § 184). Neste sentido, segundo Hegel, a
S. civil compreende, em primeiro lugar, o sistema das necessidades; em segundo lugar, a administração da
justiça; em terceiro lugar, a polícia e a corporação, ou seja, os órgãos que detêm a tutela dos interesses
particulares {Fil. do dir., § 188). O próprio Marx manteve inalterado este conceito da S. civil, mas
inverteu sua relação com o Estado e adotou-o como princípio de explicação do próprio Estado e, em
geral, de todo o mundo ideológico: "Por meus estudos, fui levado à conclusão de que nem as relações
jurídicas nem as formas do Estado poderiam ser compreendidas por si mesmas ou pelo chamado
desenvolvimento geral do espírito humano, mas de que estão enraizadas nas relações materiais da
existência, cujo conjunto é enfeixado por Hegel com o nome de S. civil, a anatomia dessa S. civil deve ser
buscada na economia política" {Zur Kritik der politischen Õkonomie, 1859, Pref.; trad. it., Cantimori, p.
10). Conceito análogo de S. pareceu a Bergson ser o próprio ideal de S. "aberta", ou S. mística. "Uma S.
mística que abarque toda a humanidade e que, animada por uma vontade comum, marche para a criação
incessantemente renovada de uma humanidade mais completa, certamente se realizará no porvir tanto
quanto no passado existiram S. humanas funcionando de maneira orgânica à semelhança das S. animais.
A aspiração pura é um limite ideal como a obrigação nua" {Deux sources, I, trad. it., p. 87).
3
S
Na linguagem comum e nas disciplinas sociológicas a palavra S. costuma ser usada no terceiro
significado, de conjunto de indivíduos caracterizado por uma atitude comum ou institucionalizada. Neste
sentido, designa tanto um
grupo de indivíduos quanto a instituição que caracteriza esse grupo, como acontece nas expressões "S.
comercial", "S. capitalista", etc. Esse emprego é tão óbvio que em geral não é sequer definido. Às vezes é
definido em relação com cultura, como fazem Kluckhohn e Kelly: "S. refere-se a um grupo de pessoas
que aprenderam a agir em conjunto; cultura refere-se aos modos de vida que distinguem esse grupo de
pessoas" (R. LINTON, The Science ofMan in the World Crisis, 7
a
ed., 1952, p. 79).
SOCEVIANISMO (in. Socinianism; fr. So-cinianisme, ai. Socinianismus; it. Sociniane-simó). Doutrina
religiosa de Lelio Socini (1525-62) e Fausto Socini (1539-1604), que exerceu influência especialmente na
Polônia; seus principais pontos são os seguintes.- I
a
negação do dogma trinitário; 2Q
negação do pecado
original e da predestinação; 3e
negação do valor das obras e da necessidade de mediação eclesiástica; 4S
recurso direto à Bíblia como meio único de salvação; 5Q
recurso à razão como único instrumento para a
interpretação autêntica da Bíblia. Além da Polônia, o S. difundiu-se na Holanda e na Inglaterra, mas sua
influência foi enorme em toda a cultura liberal moderna (cf. D. CANTIMORI, Eretici italiani dei
Cinquecento, Florença, 1939).
SOCIOCRACIA, SOCIOLATRIA (in. So-ciocracy, sociolatry, fr. Sociocracie, sociolatrie, ai.
Soziokratie, Soziolatrie, it. Sociocrazia, so-ziolatrid). Termos criados por A. Comte para designar,
respectivamente, o regime político baseado na sociologia, que ele concebe como análogo ou
correspondente à teocracia medieval, baseada na teologia {Politique positive, 1851,1, p. 403), e o culto da
sociedade, que deveria tomar o lugar das religiões positivas {Catéchisme posüiviste, VI).
SOCIOLOGIA (in. Sociology, fr. Sociologie, ai. Soziologie, it. Sociologia). E a ciência da sociedade,
entendendo-se por sociedade o campo das relações intersubjetivas. Esse termo foi criado em 1838 por A.
Comte, para indicar "a ciência de observação dos fenômenos sociais" {Cours de phil. positive, IV, 1838),
e é usado atualmente para qualquer tipo ou espécie de análise empírica ou teoria que se refira aos fatos
sociais, ou seja, às efetivas relações intersubjetivas, em oposição às "filosofias" ou "metafísicas" da
sociedade, que pretendem explicar a natureza da sociedade como um todo, independentemente dos fatos e
de modo definitivo. Sem dúvida, na história do pensamento
SOCIOLOGIA
915
SOCIOLOGIA
ocidental sempre foram feitas observações úteis e decisivas no campo social, que encontraram lugar
especialmente na ética e na política. Contudo, tais observações não constituíam uma disciplina autônoma,
dotada de metodologia própria: isso só começou com Comte. É possível distinguir dois conceitos
fundamentais de S., sucessivos no tempo: 1Q
S. sintética (ou sistemática), cujo objeto é a totalidade dos
fenômenos sociais a serem estudados em seu conjunto, em suas leis; 2- S. analítica, cujo objeto são
grupos ou aspectos particulares dos fenômenos sociais, a partir dos quais são feitas generalizações
oportunas. Nesta segunda fase, a S. fragmenta-se numa multiplicidade de correntes de investigação e tem
certa dificuldade para reencontrar sua unidade conceituai.
I
9 Foi com Comte que nasceu a S. como sistema, como determinação da natureza da sociedade em seu
conjunto, através da determinação de suas leis. Nessa fase, tenta organizar-se à semelhança da física
newtoniana: como ciência que, através de leis rigorosas, delineia uma ordem necessária e o
desenvolvimento dessa ordem, não menos necessário. Portanto, Comte chamava a S. de física social, cuja
primeira parte seria o estudo da ordem social (estática) e a segunda, o estudo do progresso social
(dinâmica) (Cours de phil. positive, IV, p. 292). Além disso, Comte atribuía à S. a mesma função
atribuída às outras ciências a partir de Bacon: dominar os fenômenos de que tratam em proveito do
homem. Conseqüentemente, a S. teria a função de "perceber nitidamente o sistema geral das operações
sucessivas — filosóficas e políticas — que devem libertar a sociedade de sua fatal tendência à dissolução
iminente e conduzi-la diretamente a uma nova organização, mais progressista e sólida que a fundada na
filosofia teológica" (Ibid., IV, p. 7). A sociocracia (v.) seria assim o efeito inevitável da fundação da S.
como ciência. Mesmo isentando a S. da tarefa de fundar uma nova humanidade, Spencer conservou seu
caráter sistemático. Segundo ele, trata-se de uma ciência descritiva que visa a determinar as leis da
evolução superorgânica, que regem o progresso do organismo social. Neste sentido, a S. é o estudo da
ordem progressiva da sociedade como um todo (Principies of Sociology, 1876, I). Este conceito inspirou a
primeira organização da S. em todos os países do mundo. Aceito por W. G. Summer (Folkways, 1906) nos
Estados Unidos, e por Wundt (Volkerpsychologie,
1900), com o nome de psicologia dos povos, na Alemanha, foi um conceito constantemente dominado
pelo princípio de evolução, tomado em seu sentido otimista de progresso necessário: princípio que
inspirou também alguns estudos sociológicos que se tornaram clássicos (como, p. ex., os de E.
WESTERMARK sobre a Origem e desenvonvimento das idéias morais, 1906-1908). Mas a maior realização
da S. sistemática talvez seja o Tratado de s. geral (1916-23) de Vilfredo Pareto, que, sob outro aspecto, é
também o início da crise desse tipo de S. Com efeito, Pareto, ao mesmo tempo em que quer realizar a S.
como uma ciência positiva que estuda "a realidade experimental pela aplicação dos métodos já
comprovados em física, química, astronomia, biologia e nas demais ciências", por outro lado repudia
qualquer construção sistemática demasiado complexa e não hesita em qualificar de metafísicas e
dogmáticas as doutrinas sociológicas de Comte e Spencer (Tratado, § 5, 112). Segundo Pareto, o caráter
essencial da ciência é "lógico-experi-mental" e implica dois elementos: o raciocínio lógico e a observação
do fato. Contudo, o objetivo da ciência continua sendo o de formular leis necessárias que descrevam em
seu conjunto aquilo que Pareto chama de equilíbrio social, por ele comparado às vezes a um sistema
mecânico de pontos, outras vezes a um organismo vivo (Cours d'économiepolitique, 1896, § 619).
Entretanto, ele também insiste no simples caráter de "uniformidade experimental" da lei e no fato de que
todo fenômeno concreto é devido à intersecção de certo número de leis diferentes (Tratado, § 99); isso
significa que toda explicação científica é aproxima-tiva e parcial (Ibid., § 106). Ainda mais distante do
ideal sistemático de S. é o corpo de análises que Pareto apresenta em seu Tratado, cujo objeto é
principalmente aquilo que ele chama de "ações não lógicas", cujos elementos estariam nos resíduos e nas
derivações (v.).
2- Pode-se dizer que o marco da passagem da S. sintética para a analítica é a obra de E. Durkheim, que se
afasta do pressuposto fundamental da S. sistemática, de que a sociedade constitui um todo ou um sistema
orgânico. Durkheim diz: "O que existe, o que só é dado à observação, são as sociedades particulares que
nascem, se desenvolvem e morrem, independentemente umas das outras" (Règles de Ia méthode
sociologique, 1895, 11a
ed., 1950, p. 20). Paralelamente, Durkheim insistiu no cará-
SOCIOLOGIA
916
SOCIOLOGIA
ter exterior do objeto da ciência social: "Os fatos sociais consistem em modos de agir, pensar e sentir,
exteriores ao indivíduo e dotados de um poder de coerção graças ao qual se impõem a ele" {Ibid., p. 5).
Considerar os fatos sociais deste modo significa considerá-los como coisas, independentemente de
preconceitos subjetivos e das vontades individuais (Ibid., pp. 11 ss.). Os mesmos motivos foram
sistematizados na obra metodológica de Max Weber. A este cabe o mérito de ter sido o primeiro a
distinguir a S. das outras disciplinas antropológicas, especialmente das historiográ-ficas. Ele identificou o
objeto da S. na uniformidade da atitude humana, que é dotada de sentido, ou seja, acessível à
compreensão. Mais precisamente, atitude é a ação humana que: ls refere-se, segundo a intenção de quem
age, à atitude dos outros; 2e
seu curso é determinado também por essa referência; 3e
pode ser explicada
por essa referência (Über einige Kategorien der verstehenden Soziologie, 1913, trad. it., em // método
delle scienze storico-sociali, p. 243). A segunda conquista importante da S. de Max Weber é a nítida
separação que pretendeu estabelecer entre a investigação empírica ou lógica, por um lado, e as avaliações
práticas ou éticas, políticas ou metafísicas, por outro lado (Der Sinn der Wertfreiheit der soziologischen
und õkonomischen Wíssens-chaften, 1917; na coletânea citada, pp. 311 ss.). Ainda que, obviamente, seja
mais fácil propor essa separação como exigência do que realizá-la na pesquisa, ela vale até hoje como
regra que empenha a honestidade do pesquisador. Em terceiro lugar, da obra de Weber dimana a exigência
da investigação empírica particular, a única que pode determinar as unifor-midades de atitudes que
constituem o objeto da sociologia. Esses três pontos permaneceram no desenvolvimento posterior da S.
contemporânea. Esta aceitou com entusiasmo o convite de Weber no sentido da pesquisa empírica
particular e da formulação de técnicas adequadas de observação. Hoje a S. dispõe de um imponente
conjunto de técnicas que podem ser classificadas em quatro grupos fundamentais: 1° técnicas de
observação (observação direta, livre ou controlada, observação clínica, observação participante, etc); 2e
técnicas de entrevista, que vão desde a entrevista livre até os questionários; 3Q
técnicas de
experimentação e técnicas sociométricas. estas últimas tendem a descrever as relações sociais
espontâneas (consideradas
componentes elementares de todos os agrupamentos) através da participação ativa dos próprios sujeitos
estudados (cf. MORENCY, Who Shall Survíve?, 1934); 49
técnicas estatísticas, que a S. compartilha com
muitas disciplinas sociais (cf, para um quadro dessas técnicas, Traité de sociologie, dirigido por G.
Gurvitch, 1958, pp. 135 ss.). Com o uso dessas técnicas, foi realizado grande número de "pesquisas de
campo" nos sentidos mais díspares, tendo-se acumulado dessa maneira, sobretudo nos últimos trinta anos,
um material de observação volumoso e complexo.
Mas a pesquisa sociológica não se desenvolveu no mesmo sentido em todos os países. Na Inglaterra,
dedicou-se sobretudo a descrever o mundo dos primitivos, suas instituições e seus comportamentos
fundamentais (cf. especialmente a obra de G. FRAZER, The Golden Bough, 1911-14, 12 vols., e os textos
de B. Malinowski e A. R. Radcliffbrown). Na França, além de descrever a mentalidade dos primitivos (cf.
especialmente os textos de Lévy-Bruhl a partir de Les fonctions mentales dans les sociétés infé-rieures,
1910), conservou o caráter teórico, dedicando-se ao estudo de problemas fundamentais, em especial por
obra de Gurvitch (La vocation actuelle de Ia sociologie, 1950; Dé-terminismes sociaux et liberte
humaine, 1955). Na Itália, depois de haver dado uma contribuição importante à S. sistemática com a obra
de Pareto e de outros autores menores, calou-se no período entre guerras devido à influência negativa da
cultura idealista, e só hoje vai readquirindo força e capacidade, atualizando-se rapidamente nos métodos e
interesses e dedicando-se ao estudo da sociedade italiana. Mas é sobretudo nos Estados Unidos que a
pesquisa sociológica produziu uma quantidade considerável de trabalhos com as mais diferentes
orientações. Aqui só será possível indicar os principais caminhos tomados pela pesquisa sociológica:
a) S. urbana: desenvolveu-se nos Estados Unidos, principalmente graças ao incentivo de R. E. Park,
dando origem a obras clássicas como as de R. S. e H. LIND, Middletown (1929) e Middletown in
Transiction (1937) (cf. também o estudo clássico de PARK, The City, 1925, atualmente em Human
Communities, 1952).
b) Estudo da estratificação e da mobilidade social: iniciou-se nos Estados Unidos, na época da crise
(1929), e alcançou desde então resultados importantes (cf., para um balanço, G.
SOCIOLOGIA
917
SOFISMA
GADDA CONTI, Mobilitã e stratificazione sociale, 1959).
c) Estudo dos grupos étnicos: conta hoje com importante conjunto de obras, entre as quais a clássica obra
de Thomas e Znaniecki, The Polish Peasant in Europe and America (1918-21).
d) Estudo da família: deteve-se especialmente na análise da desorganização familiar e nos problemas
conjugais (cf., p. ex., E. V. HAMILTON, Estudos sobre o casamento, 1929).
é) Análise da opinião pública e dos instrumentos de propaganda, que conta hoje com uma riquíssima
literatura (cf., p. ex., R. K. MERTON, Mass Persuasion, 1947).
f) Estudo de pequenos grupos, cujos melhores resultados foram obtidos nos Estados Unidos (cf. E. SHILS,
LO stato attuale delia S. americana, em Quademi di S., 1953, n. 7).
g) S. industrial, termo com que se designa o estudo das relações em locais de trabalho e as influências
recíprocas entre essas relações e a organização industrial (cf., para um balanço, FRANCO FERRAROTTI, La
S. industriale in America e in Europa, 1959).
h) S. da religião, fundada por Max Weber {Die protestantische Ethik und der Geist des Kapitalismus,
1904; Die protestantische Sekten und der Geist des Kapitalismus, 1906, etc), que consiste na análise das
interações entre as relações sociais e os fatos religiosos; nos últimos anos não obteve grandes resultados.
i) S. do conhecimento, cuja fundação costuma ser atribuída a Marx, que foi o primeiro a insistir nas
interações entre o saber e as formas sociais; foi cultivada especialmente por Max Scheler (Die
Wissensformen und die Gesells-chaft, 1926) e por Karl Mannheim (Das Pro-blem einer Soziologie des
Wissens, 1926).
Como já dissemos, a quantidade de trabalhos realizados em muitos desses ramos da pesquisa sociológica
é enorme, mas a sua utilização conceituai não foi adequada. Shils disse: "O principal defeito da sociologia
americana é o inverso de sua principal virtude: sua indiferença, até agora dominante, para com a
formação de uma teoria geral está estreitamente ligada à sua avidez de precisão na observação imediata"
(Lo stato attuale delia S. americana, em QuadernidiS., 19S3, n. 8). Essa situação não é exclusiva da S.
americana, mas está presente em todos os países em que a pesquisa sociológica alcança certo grau de
desenvolvimento. Por isso, mesmo os que mais insistiram
na importância das técnicas objetivas às vezes sentem saudade da velha forma sistemática da S. (cf.
PITIRIM SOROKIN, Fads and Faibles in Modem Sociology and Related Sciences, 1956). Contudo, não
faltam à literatura sociológica moderna certas tentativas importantes e felizes de estabelecer uma teoria
sistemática do objeto da S., que é a ação social (cf., p. ex., T. PAR-SONS, The Structure of Social Action,
1937,2a ed., 1949), outras de consolidar a relação entre a teoria social e a pesquisa social (cf., p. ex., R. K.
MERTON, Social Theory and Social Structure), ou mesmo de realizar a S. como uma "tipologia
quantitativa e descontinuísta", altamente teórica, como é a de G. Gurvitch (Traité de sociologie, 1959, pp.
155 ss.). Portanto, o que se pode prever, dado o estado atual dessa disciplina, é a multiplicação e o
fortalecimento das tentativas de conceituação teórica do material a que se teve acesso através de pesquisas
especiais, sem contudo voltar à forma sistemática que a S. assumira na sua primeira fase dogmática.
SOCIOLOGISMO (in. Sociologism- fr. Socio-logisme, ai. Soziologismus-, it. Sociologismó). Termo
polemístico para designar a tendência a reduzir fenômenos morais ou religiosos a fatos sociais (cf.
BOUTROUX, Science et reli-gion, p. 342).
SOCIOMETRIA. V. SOCIOLOGIA.
SOCRATISMO (in. Socratism- fr. Socratis-me, ai. Socratismus-, it. Socratismo). Doutrina de Sócrates,
da forma como se consolidou na tradição antiga; seus fundamentos podem ser assim resumidos: ls
valor
da indagação filosófica, sem o que a vida não é digna de ser vivida; 2- a indagação restringe-se ao
homem, não havendo interesse por qualquer estudo da natureza; 3S
identificação entre ciência e virtude,
no sentido de que é possível ensinar e aprender a virtude, e não é possível praticar o bem sem conhecê-lo;
4
Q
importância atribuída ao ensinamento: nada se ensina, pois apenas se favorece a criação intelectual dos
ouvintes; 5S
método de interrogação e a ironia (v.).
SOFISMA (in. Sophism-, fr. Sophisme, ai. Sophisma; it. Sofismá). 1. O mesmo que falácia (v.).
2. Raciocínio caviloso ou que leva a conclusões paradoxais ou desagradáveis. Neste sentido, esse termo
tem uso muito vasto, e até os paradoxos (v.) e os argumentos duplos podem ser chamados de S.
SOFISTICA
918
SOLIPSISMO
SOFÍSTICA (in. Sophistics; fr. Sopbistique, ai. Sophistik, it. Sofistica). 1. Aristóteles chamou de S. "a
sabedoria (sapientia) aparente mas não real" (El. soph., 1, 165 a 21), e esse passou a indicar a habilidade
de aduzir argumentos capciosos ou enganosos.
2. Em sentido histórico, a S. é a corrente filosófica preconizada pelos sofistas, mestres de retórica e
cultura geral que exerceram forte influência sobre o clima intelectual grego entre os sécs. V e IV a.C. A S.
não é uma escola filosófica, mas uma orientação genérica que os S. acataram devido às exigências de sua
profissão. Seus fundamentos podem ser assim resumidos:
1
Q
O interesse filosófico concentra-se no homem e em seus problemas, o que os sofistas tiveram em
comum com Sócrates.
2° O conhecimento reduz-se à opinião e o bem, à utilidade. Conseqüentemente, reconhece-se da
relatividade da verdade e dos valores morais, que mudariam segundo o lugar e o tempo.
3
Q Erística: habilidade em refutar e sustentar ao mesmo tempo teses contraditórias.
4
Q
Oposição entre natureza e lei; na natureza, prevalece o direito do mais forte.
Nem todos os sofistas defendem essas teses: os grandes sofistas da época de Sócrates (Pro-tágoras e
Górgias) sustentaram principalmente as duas primeiras. As outras foram apanágio da segunda geração de
sofistas (cf. UNTERSTEINER, Isofisti, 1949).
SOLECISMO (in. Solecism; fr. Solécisme, ai. Solecismus; it. Solecismd). Em Aristóteles (El. sof,
passirri) e depois, na lógica de origem aris-totélica, designa um dos objetivos da dialética sofistica, qual
seja, a tentativa de induzir o interlocutor a aceitar um enunciado que contém uma impossibilidade
gramatical, como ho-mines currit. Esse termo passou a indicar uma aberração gramatical de natureza
morfológica ou sintática. G. P.
SOLIDÃO (in. Solitude, fr. Solitude, ai. Einsamkeit; it. Solitudinè). Isolamento ou busca de melhor
comunicação. No primeiro sentido, a S. é a situação do sábio, que, tradicionalmente, é autárquico e por
isso se isola em sua perfeição (v. SÁBIO). Afora esse ideal, o isolamento é um fato patológico: é a
impossibilidade de comunicação associada a todas as formas da loucura. Em sentido próprio, contudo, a
S. não é isolamento, mas busca de formas diferentes e superiores de comunicação: "Não dispensa os laços
com o ambiente e a vida cotidiana, a não ser em vista de outros laços com homens do passado e do futuro, com os quais seja possível
uma forma nova ou mais fecunda de comunicação. O fato de a solidão dispensar esses laços é, pois, uma
tentativa de libertar-se deles e ficar disponível para outras relações sociais" (ABBAGNANO, Problemi di
sociologia, 1959, XI, § 8).
SOLIDARIEDADE (in. Solidarity, fr. Soli-darité, ai. Solidaritãt; it. Solidarietã). Termo de origem
jurídica que, na linguagem comum e na filosófica, significa: le
inter-relação ou interdependência; 2-
assistência recíproca entre os membros de um mesmo grupo (p. ex.: S. familiar, S. humana, etc). Neste
sentido, fala-se de solidarismo para indicar a doutrina moral e jurídica fundamentada na S. (Cf. L.
BOURGEOIS, La solidarité, 1897).
SOLILÓQUIO (lat. Soliloquium). Colóquio da alma consigo mesma. Soliloquia foi o título que S.
Agostinho deu a uma de suas primeiras obras, em que declarava desejar conhecer apenas Deus e a alma, e
nada mais (Sol, I, 2). S. Anselmo chamou de Monologion o seu colóquio interior em torno da essência de
Deus.
SOLIPSISMO (in. Solipsism; fr. Solipsisme, ai. Solipsismus; it. Solipsismo). Tese de que só eu existo e
de que todos os outros entes (homens e coisas) são apenas idéias minhas. Os termos mais antigos para
indicar essa tese são egoísmo (cf. WOLFF, Psychologia rationalis, § 38; BAUMGARTEN, Met., § 392;
GANUPPI, Saggio filosófico sulla critica delia conoscenza, IV, 3, 24, etc), egoísmo metafísico (KANT,
Antr., I, § 2) ou egoísmo teórico (SCHOPENHAUER, Die Welt, I, § 19). Kant empregou o termo S. para
indicar a totalidade das inclinações que produzem felicidade quando satisfeitas (Crít. R. Prática, I, livro
1, cap. III; trad. it, p. 85); esse mesmo termo foi empregado para indicar o egoísmo metafísico por alguns
escritores alemães da segunda metade do séc. XIX (cf. SCHUBERT-SOL-DERN, Grundlagen zu einer
Erkenntnistheorie, 1884, pp. 83 ss.; W. SCHUPPE, Der Solipsismus, 1898; H. DRIESCH, Ordnungslehre,
1912, pp. 23 ss., etc). Como já notava Wolff, o S. é uma espécie de idealismo que reduz a idéias não só as
coisas, mas também os espíritos (Psychol. rat, § 38). Freqüentemente, o S. foi declarado irrefutável, pelo
menos com provas teóricas: tal era a opinião de Schopenhauer (loc. cit), muitas vezes repetida (cf.
RENOUVIER, Les dilemmes dela métaphysique purê, 1901; A. LEVI, Sceptica, 1921; SARTRE, Vêtre et le
néant,
SOLIPSISMO
919
SONHO
1943, p. 284). Na realidade, o S. só é irrefutável do ponto de vista idealista (com o qual coincide),
segundo o qual os atos ou as ações do sujeito são conhecidos de maneira imediata, privilegiada e
absolutamente segura.
Foi a aceitação (explícita ou implícita) dessa tese que por vezes levou a adotar o S. como ponto de partida
obrigatório da teoria do conhecimento (cf., p. ex., DRIESCH, Op. cit., p. 23) ou como procedimento
metodológico
(SCHUBERT-SOLDERN, Op. CÜ., pp. 65 SS.). Este
último ponto de vista foi adotado pelo positivismo lógico, especialmente por Wittgenstein e Carnap. O
primeiro, tendo observado que "os limites de minha linguagem constituem os limites de meu mundo"
(Tractatus, 5, 6), concluiu "ser absolutamente correto o significado do S., que, apesar de não poder ser
dito, manifesta-se. O fato de os limites da linguagem (da linguagem que só eu entendo) constituírem os
limites do meu mundo revela que o mundo é o meu mundo" (Ibid., 5.62) e que, portanto, "eu sou o meu
mundo" (Ibid., 5.63). Mas, assim entendido, o S. transforma-se imediatamente em realismo: "O S.
rigorosamente desenvolvido coincide com o realismo puro. O eu do positivismo reduz-se a um ponto
inextenso, e a realidade a ele se coordena" (Ibid., 5.64). O pressuposto desse discurso é a teoria segundo a
qual a correspondência entre os elementos da linguagem e os da realidade se dá termo a termo, e os
elementos da realidade se reduzem a fatos de experiência imediata, sendo, pois, apenas meus. Quando
faltam tais fatos, falta o significado (o objeto) da palavra, e eu não a entendo: portanto, Wittgenstein diz
que os limites de minha linguagem são os limites do mundo. O mesmo pressuposto leva Carnap a falar de
S. metódico. Com muita razão Carnap fala de S. a propósito da escolha dos elementos básicos
(Grundelemente), porque, como através de tais elementos (que servem de base para a construção lógica
do mundo) Carnap escolhe (assim como Wittgenstein) os fatos imediatos da experiência, ou, como diz
ele, "a base psíquica própria", seu procedimento é solipsista (Der logische Aufbau der Welt, 1928, § 64).
J. R. Weinberg já observava que no positivismo lógico o S. lingüístico é inevitável; por isso, uma vez que
é necessário superá-lo para atingir a objetividade científica, "ou se alteram necessariamente alguns
postulados do sistema para isentar o positivismo das idéias metafísicas, ou — se esse método falhar —
será preciso abandonar todo o sistema do positivismo lógico" (An Examination of Logical Positivism, cap. VII; trad. it., pp.
235 ss.). Na realidade, o pressuposto do positivismo que dá origem ao S. é reflexo da tese idealista na
teoria da linguagem: os elementos da linguagem são signos de experiências imediatas, porque as
experiências imediatas são a única realidade (v. EXPERIÊNCIA; LINGUAGEM).
SOMA LÓGICA (in. Logical sum; fr. Somme logique, ai. Logische Summe, it. Somma lógica). É a figura
(a + b) resultante de uma adição lógi-ca(v.). __ G.P.
SOMÁTICO (in. Somatic, fr. Somatique, ai. Somatisch; it. Somático). Corpóreo (v. CORPO).
SOMATOLOGIA (in. Somatology, fr. Soma-tologie, ai. Somatologie, it. Somatologid). Parte da
antropologia que considera os aspectos físicos do homem (V. ANTROPOLOGIA).
SOMBREAMENTO (ai. Abschattung). Termo empregado por Husserl para indicar o modo parcial e
aproximativo com que a coisa externa é dada à consciência perceptiva. P. ex.: "A mesma cor aparece em
seqüências contínuas de sombreamentos de cores. O mesmo vale para qualquer qualidade sensível e para
qualquer figura parcial. Uma única e mesma figura, dada em carne e osso como sempre a mesma, aparece
continuamente 'de modo diferente', em sombreamentos sempre diferentes de figura. Essa é a situação
necessária das coisas, que tem validade universal" (Ideen, I, § 4).
SONHO (gr. ÊvúiiTiov; lat. Somnium- in. Dream; fr. Rêve, ai. Traum; it. Sogno). Ação da imaginação
durante o sono. Esta é a definição já proposta por Platão (Tim., 45 e) e Aristóteles (Qesomniis, 1, 459 a
15), sendo também adotada pela psicologia moderna; nesta, dá origem a uma série de problemas que
escapam completamente à alçada da filosofia (cf. a propósito desses problemas E. SERVADIO, II sogno,
1955). Freud e os psicanalistas interpretaram o S. de / modo funcionatista, ao tentarem determinar 1 sua
função na vida do homem. Se^undoJFreud, o S. "é um meio de suprimir as excitações (psíquicas)
quejDerturbem o sono, supressão essa realizada através de satisfações alucinatórias" (Intr. à Ia
psychanalyse, 1932, p. 151). Ojjue encontra realização simbólica no S. na maioria das vezes são desejos
proibidos, inibidos pela censura, que,~portanto, sofrem uma elaboração radical, cabendo ao psicólogo
interpretá-la. (Ibid., pp. 189, 234). Essa teoria de Freud foi muito discutida, e não parece apta a explicar
SONHO
920
SORTE
todas as espécies de S. ou todos os seus aspectos; apesar disso, foi a única a propor o problema da
funcionalidade do S., vale dizer, da função que ele exerce na economia da vida psíquica.
Os filósofos algumas vezes se dedicaram à análise do S. para mostrar a incerteza da discriminação entre
ele e a vigília, utilizando-o como elemento de dúvida teórica. Platão dizia: "Nada nos impede de crer que
as conversas que agora mantemos sejam mantidas em sonho, e quando em S. cremos contar um S., a
semelhança das sensações no S. e na vigília é realmente maravilhosa" {Teet, 158 c). Por outro lado, "o
tempo /durante o qual dormimos é igual ao tempo em que estamos acordados, e em ambos nossa alma
afirma que só as opiniões que tem naquele momento são verdadeiras; desse modo, por igual espaço de
tempo dizemos que são verdadeiras ora estas, ora aquelas, e defendemos _umas e outras com a mesma
energia" {Ibid., 158 d). Nos sécs. XVII e XVIII esse tema foi freqüentemente repetido por poetas e
filósofos. Shakespeare dizia: "Somos feitos da mes-ma substância ~ãe que sao "feitos os S., enossa
fcu£tãj^^ênciaesTa~rômigãjíõ^ê7íod o"rk*i i m Isono" (TempesÇãxõlYrcênã I). Calderón de Ia Barca
utilizou o mesmo tema em A vida é S. (1635): "São as glórias tão semelhantes aos S. que as verdadeiras
passam por falsas, e as falsas por verdadeiras? É tão pouca a distância entre umas e outras que é preciso
saber se o que se vê ou frui é S. ou realidade?" (Ato III, cena X). Descartes empregava o mesmo tema
como elemento de dúvida: "O que acontece em sonho não parece tão claro e distinto quanto o que
acontece durante a vigília. Mas, pensando a respeito, lembro-me de ter sido muitas vezes enganado por
simples ilusões, enquanto dormia. E, detendo-me nesse pensamento, vejo com clareza que não há indícios
concludentes, nem sinais bastante seguros, que possibilitem distinguir com nitidez a vigília do S., a tal
ponto que fico admirado, e minha admiração é tanta que quase me convence de que estou dormindo"
(Méd., I; cf. Princ.phíi, I, 4). A teoria de Leibniz, segundo a qual a vida da mônada (substância espiritual)
é "um S. bem regulado", constitui outra manifestação do mesmo tema. Leibniz diz: "Metafisicamente
falando, não é impossível que haja um S. tão contínuo e duradouro quanto a idade de um homem. (...)
Mas, desde que os fenômenos estejam interligados, não importa que sejam
chamados de sonhos ou não, porque a experiência mostra que não nos enganamos ao aprendermos os
fenômenos, quando eles são aprendidos segundo as verdades de razão" {Nouv. ess., IV, 2, 14). Voltaire
dizia: "Se os órgãos, por si sós, produzem os S. da noite, por que não poderiam produzir, por si sós, as
idéias do dia? Se a alma, por si só, tranqüila no descanso dos sentidos e agindo sozinha, é a causa única e
o único sujeito de todas as idéias que temos dormindo, por que todas essas idéias são quase sempre
irregulares, irracionais, incoerentes?" (Dictionnairephilosophique, 1764, art. Songes). Schopenhauer
talvez seja o último a apresentar esse tema em sua forma clássica: "A vida e os S. são páginas de um
mesmo livro. A leitura contínua chama-se vida real. Mas quando o tempo habitual de leitura (o dia) chega
ao fim e vem a hora de descansar, então às vezes continuamos, fracamente, sem ordem e conexão, a
folhear aqui e acolá algumas páginas: às vezes é uma página já lida, muitas outras vezes uma outra ainda
desconhecida, mas sempre do mesmo livro" (Die Welt, I, § 5).
SONO e VIGÍLIA. V. SONHO.
SORITES (lat. Acervus; in. Sorites; fr. So-rite, ai. Sorites; it. Soritè). 1. Argumento de Eu-búlides contra
a multiplicidade (V. MONTÃO, ARGUMENTO DO).
2. Silogismo composto ou polissilogismo (v.), no qual a conclusão do silogismo que precede é adotada
como premissa do silogismo subseqüente, até se chegar a relacionar o antecedente do primeiro silogismo
com a conseqüência do último (cf. ARNAULD, Log., III, I; JUN-Gius, Lógica hamburgensis, III, 28;
WOLFF, Log., § 474; HAMILTON, Lectures onLogic, p. 366, etc). A expressão soriticus syllogismus deve
ter sido usada pela primeira vez por Mário Victo-rino (séc. IV) (cf. PRANTL, Geschichte der Logik, I, p.
663), mas foi difundida por Lourenço Valia (Dialecticae disputationes, III, 12).
SORTE (gr. m%i\; lat. Fortuna-, in. Fortune, fr. Fortune, ai. Glück, it. Fortuna). Segundo Aristóteles,
distingue-se do acaso (v.) porque se verifica no domínio das ações humanas e por isso não podem ter S.
ou falta de S. os seres que não podem agir livremente. "Os seres ina-nimados, os animais, as crianças, não
fazem nada por S. porque não têm escolha; e a boa ou a má S. só lhes é atribuída por semelhança, da
mesma maneira como Protarco disse que as pedras do altar têm sorte porque são homena-
SOTERIOLOGIA
921
SUBCONTRÂRIA, PROPOSIÇÃO
geadas, enquanto suas companheiras são pisadas" (Fís., II, 6, 197b 1). Essa significação manteve-se no
uso moderno da palavra. Seu conceito filosófico é, portanto, o mesmo de acaso (v.).
SOTERIOLOGIA (in. Soteríology, fr. Sote-ríologie, ai. Soteriologie, it. Soteriologid). Doutrina religiosa
da salvação. Sobre o aparecimento de tendências soteriológicas no ocidente, v. a obra de F. CUMONT, Les
religions orientales dans lepaganisme romain, 1906, 2- ed., 1909.
SPINOZISMO (in. Spinozism; fr. Spinozis-me, ai. Spinozismus-, it. Spinozismó). Doutrina de Baruch
Spinoza (1632-77), nos principais aspectos reconhecidos pela tradição filosófica, que podem ser assim
resumidos: 1Q
unicidade da substância do mundo e sua identificação com Deus, graças à qual Spinoza se
refere à substância com a expressão" Deus sive natura"; 2- ateísmo ou, como também se diz (com Hegel),
acosmismo (v.), segundo o qual Deus é o princípio e a ordem do mundo; 3S
o neces-sitarismo, segundo o
qual todas as coisas derivam por absoluta necessidade da substância divina; 4a
o geometrismo, afirmação
do caráter geométrico da necessidade cósmica que é o modelo do método geométrico da filosofia; 5S
redução da liberdade humana ao reconhecimento e à aceitação da necessidade da ordem cósmica; 6°
defesa da liberdade filosófica e religiosa do homem, fundada na redução da fé religiosa à obediência (v.
FÉ).
STATUS. Condição ou modo de ser, especialmente em sentido sociológico, como pertencente a
determinado estrato social.
STURM UND DRANG. Com esta expressão, que significa "tempestade e ímpeto" e foi título de um
drama de Klinger, escrito em 1776, designa-se um movimento filosófico e literário que surgiu na
Alemanha na segunda metade do séc. XVIII e constitui o antecedente imediato do Romantismo. As
atitudes peculiares desse movimento são simbolizadas pelas duas palavras acima. Trata-se de
manifestações irracio-nalistas cuja expressão filosófica se encontra nas doutrinas de Haman, Herder e
Jacobi: estas remetem aos limites impostos por Kant à razão apenas para irem além da razão e recorrer à
experiência mística ou à fé (v. FÉ, FILOSOFIA DA). Do "S. und Drang" passa-se para o Romantismo ao se
passar do conceito kantiano de razão finita — à qual se contrapõe a fé ou o sentimento, atribuindo-se-lhes
poder cognoscitivo superior — para o conceito de razão infinita ou
capaz de atingir o Infinito; isso tem início com Fichte, em quem realmente se encontra a primeira
inspiração do romantismo (v.).
SUAREZISMO (in. Suarezianism; fr. Sua-rézisme, it. Suarezismó). Doutrina do espanhol Francisco
Suárez (1548-1617), que é a maior expressão filosófica da Contra-Reforma católica. Trata-se,
substancialmente, de um retorno decidido e rigoroso ao tomismo: sua obra Disputationes metaphysicae é
um manual sistemático de metafísica tomista. Suárez, porém, faz uma importante concessão à escolástica
do séc. XIV, ao admitir a individualidade do real, •vale dizer, ao reconhecer que cada coisa é tal por si
mesma, e não pela matéria, pela forma ou por outro princípio qualquer. Afastou-se também do tomismo
na doutrina política exposta em De legibus (1612), ao afirmar que o poder temporal dos príncipes provém
apenas do povo; isso tem a finalidade de privilegiar o poder eclesiástico, que proviria diretamente de
Deus.
SUBALTERNAÇÃO (lat. Subalternaticr, in. Subalternation; fr. Subalternation; ai. Subalternation; it.
Subaltemazionè). Com este termo e com a expressão oposição subalterna, indica-se a relação entre a
proposição universal e a particular correspondente e da mesma qualidade; p. ex., entre "todo homem é
justo" e "alguns homens são justos", ou entre "nenhum homem é justo" e "alguns homens não são justos".
A proposição universal chama-se subal-ternante e a particular, subalternada (PEDRO HISPANO, Summ.
log., 1.14); JUNGIUS, Log. hamburgensis, II, 9, 15; B. HERDMANN, Logik, § 70). Hamilton chamou a S. de
restrição (Lec-tures on Logic, II2
, p. 269). (V. QUADRADO DOS OPOSTOS.)
SUBCONSCIENTE (in. Subconscious, fr. Sub-conscíent; ai. Unterbewusst; it. Subcosciente). O mesmo
que inconsciente. Alguns psicólogos franceses do século passado procuraram distinguir o S. do
inconsciente, considerando-o como consciência débil ou diminuída (Riboy, Janet e outros). Mas essa
distinção pareceu fa-laz, e a palavra caiu em desuso (v. INCONSCIENTE).
SUBCONTRÂRIA, PROPOSIÇÃO (lat. Fro-positio subcontraria; in. Subcontrary propo-sition; ai.
Subcontràrsatz; it. Proposizione sub-contrariã). Na lógica tradicional são assim chamadas, em suas interrelações, a proposição particular afirmativa e a particular negativa; p. ex..- "alguns homens correm" e
SUBCONTRARIEDADE
922
SUBLIME
"alguns homens não correm" (cf, p. ex., PEDRO HISPANO, Summ. log., 1.13) (v. QUADRADO DOS
OPOSTOS).
SUBCONTRARIEDADE (lat. Subcontrarie-tas, in. Subcontrary, fr. Subcontraire, ai. Sub-contràr, it.
Subcontrarietã). Relação de oposição entre proposições particulares. P. ex.: "Sócrates corre", "Sócrates
não corre" (PEDRO HISPANO, Summ. log., I. 27). Às vezes, a relação entre possível e não necessário
(JUNGIUS, Lógica hamburgensis, II, 12, 29).
SUBDIVISÃO. V. DIVISÃO.
SUBJETIVIDADE (in. Subjectivity, fr. Sub-jectivité, ai. Subjektivitüt; it. Soggettivita). 1. Caráter de
todos os fenômenos psíquicos, enquanto fenômenos de consciência (v.), que o sujeito relaciona consigo
mesmo e chama de "meus".
2. Caráter do que é subjetivo no sentido de ser aparente, ilusório ou falível. Nesse sentido, Hegel situava
na esfera da subjetividade o de-ver-ser em geral, bem como os interesses e as metas do indivíduo. Dizia:
"Uma vez que o conteúdo dos interesses e das metas está presente apenas na esfera unilateral do
subjetivo, e que a unilateralidade é um limite, essa falta manifesta-se aò mesmo tempo como inquietação,
como dor, como algo negativo" {Vorlesun-gen über die Àsthetik, ed. Glockner, p. 141). Kierkegaard quis
inverter o ponto de vista hegeliano, colocando a S. acima da objetividade: "O erro consiste principalmente
no fato de o universal, em que — segundo o hegelia-nismo — consiste a verdade (e o individual torna-se
verdade só se nele subsumido), é uma abstração: o Estado, etc. Ele não chega a dizer que é a S. em
sentido absoluto, e não chega à verdade, ou seja, ao princípio de que realmente, em última instância, o
individual está acima do universal" {Diário, X
2 A 426).
SUBJETTVISMO (in. Subjectivism, fr. Sub-jectivisme, ai. Subjectivismus; it. Soggettivismó). Termo
moderno que designa a doutrina que reduz a realidade ou os valores a estados ou atos do sujeito
(universal ou individual). Nesse sentido, o idealismo é S. porque reduz a realidade das coisas a estados do
sujeito (percepções ou representações); analogamente, fala-se de S. moral e S. estético quando o bem, o
mal, o belo ou o feio são reduzidos às preferências individuais. Esse termo é empregado na maioria das
vezes com intenções polêmicas, e por isso seu significado não é muito preciso.
SUBJETIVO (in. Subjective, fr. Subjectif, ai. Subjektiu, it. Soggettivó). Aquilo que pertence ao sujeito ou
tem caráter de subjetividade. Esse adjetivo teve dois significados, correspondentes aos do termo sujeito,
mas somente o segundo ainda é usado. 1. A partir da escolástica do séc. XIII, o adjetivo significa
simplesmente substancial. Ockham dizia: "Pode-se dizer com probabilidade que o universal não é algo
real que tenha existência substancial Cesse subjec-tivum) na alma ou fora da alma, mas que existe na alma
num modo de ser representativo {in esse objectivó) que corresponde àquilo que a coisa externa é na sua
existência substancial" {InSent., I. d. 2, q. 8, E; cf. DUNS SCOT, Dean., 17, 14). Este significado mantémse em toda a Idade Média.
2. O significado de S. como pertencente ao eu ou ao sujeito do homem é encontrado pela primeira vez em
alguns escritores alemães do séc. XVIII (sobre eles cf. CASSIRER, Erkenntnis-problem, 1908, livro VII).
Já Baumgarten falava da "fé considerada subjetivamente", em oposição à "fé considerada objetivamente",
que é o conjunto de crenças {Mel, 1739, § 993). Algumas décadas depois, discutia-se a beleza ou a
verdade: seriam subjetivas ou objetivas? Entendia-se por objetiva "uma propriedade dos objetos", e por S.
"uma representação da relação entre as coisas e nós, ou seja, uma relação com quem as pensa" (J. E.
Lossius, Physische Ursa-chen des Wahren, 1775, p. 65). A mesma distinção encontra-se em Tetens
{Philosophische Versuche, 1776,1, pp. 344, 560, etc). Foi desse uso do adjetivo que Kant extraiu o novo
significado atribuído ao substantivo sujeito.
SUBLIMAÇÃO (in. Sublimation; fr. Subli-mation; ai. Sublimierung; it. Sublimazione). Mecanismo
psicológico de defesa, que consiste em transformar os impulsos sexuais em atividades psíquicas
superiores, especialmente na produção artística. Esse mecanismo foi assim descrito por Freud: "As
excitações excessivas que derivam de fontes diversas da sexualidade são desviadas e utilizadas em outros
domínios, de tal modo que as disposições que no início eram perigosas produzirão um aumento apreciável
nas aptidões e nas atividades psíquicas {Trois essais sur Ia théorie de Ia se-xualité, trad. fr., p. 177).
SUBLIME (gr. üyoç; lat. Sublime; in. Sublime, ai. Erhaben; it. Sublime). 1. Forma lingüística, literária ou
artística que expresse sentimentos ou atitudes elevadas ou nobres. Essa
SUBLIME
923
SUBLIME
palavra começou a ser usada com tal sentido no séc. I a.C, tendo sido analisada no pequeno tratado Sobre
o S. do Pseudo Logino: "O S. é a ressonância da nobreza da alma, tanto que admiramos às vezes um
pensamento singelo, sem voz, por si, pela superioridade do sentimento. O silêncio de Ajax em Nekyia é
maior e mais nobre que qualquer discurso" (Desubi, IX). No mesmo significado, essa palavra foi usada
pelos autores latinos, principalmente por Quintiliano (Inst. or, VIII, 3, 18; VIII, 3, 74; XI, I, 3; XI, 3, 153,
etc). Este é também o significado com que essa palavra costuma ser usada; refere-se não só a expressões
lingüísticas ou literárias, mas também a ações ou atitudes consideradas nobres ou elevadas. Foi nesse
mesmo sentido que Croce entendeu o S., definindo-o como "afirmação subitânea de uma força moral
poderosíssima", para expungi-lo da arte (Estética, 4
a
ed., 1912, p. 107).
2. Em sentido próprio e estrito, o S. é o prazer que provém da imitação (ou da contemplação) de uma
situação dolorosa. Com esse sentido, essa noção vem diretamente do conceito aristotélico de tragédia.-
que deve provocar "piedade e terror"; por isso, como diz Aristóteles, o poeta trágico "deve propiciar o
prazer que nasce da piedade e do terror por meio da imitação" (Poet. 14,1453 b 10). No século XVIII,
essa noção de tragédia deu origem a um problema que foi examinado por Hume num dos seus Ensaios
morais epolíticos (1741): "Parece inexplicável o prazer que os espectador de uma tragédia bem escrita
aufere da dor, do terror, da angústia e de outras paixões que, em si mesmas, são desagradáveis e penosas"
(é assim que Hume inicia o ensaio intitulado Of Tra-gedy); sua análise serviu de fundamento para a obra
de Burke, que em Inquiry on the Origin ofour Ideas of Sublime and Beautiful (1756) distinguiu
claramente o S. do Belo: "O Belo e o S. são idéias de natureza diferente: um tem fundamento na dor e o
outro no prazer; embora possam depois afastar-se da verdadeira natureza de suas causas, estas
continuarão sendo diferentes uma da outra, e essa diferença nunca deverá ser esquecida por quem se
propuser suscitar paixões" (Inquiry on the Origin ofour Ideas of Sublime and Beautiful, 1756, III, 27). O
terror, a dor em geral, as situações de perigo são causas do S. (Ibid., IV, 5). O modo como essa causa pode
produzir prazer (porque o S. é um prazer) é um problema que Burke resolve da mesma maneira que
Hume; este, por sua
vez, inspirara-se em Fontenelle (Réflexions sur Ia poétique, 36): o prazer provém do exercício, ou seja, do
movimento que a dor e o terror provocam no espírito quando isentos do real perigo de destruição. Nesse
caso — como diz Burke — o que nasce não é exatamente o prazer, mas "uma espécie de horror deleitável,
de tranqüilidade matizada de terror; este, porém, quando provém do instinto de conservação, é uma das
paixões mais fortes. Isso é o S." (Ibid., IV, 7). Nas Observações sobre o sentimento do belo e do S. (1764),
Kant repetiu substancialmente os mesmos conceitos, robustecendo-os com vasta exemplificação, de valor
bastante duvidoso, pois continha entre outras coisas a caracterização dos diferentes povos, com base em
suas atitudes em relação ao S. e ao belo (Beobachtungen über das Gefühl des Schõnen und Erhabenen,
IV). Mas em Crítica do juízo, as idéias de Hume e Burke foram expressas com maior rigor conceituai,
ganhando forma clássica. Segundo Kant, o sentimento do S. tem dois componentes: 1Q
apreensão de uma
dimensão desproporcional às faculdades sensíveis do homem (S. matemático), ou de um poder
terrificante para essas mesmas faculdades (S. dinâmico); 2° o sentimento de conseguir reconhecer essa
desproporção ou ameaça, e, por isso, de ser superior a ambas. Kant diz: "A qualidade do sentimento do
sublime é ser ele, em relação a algum objeto, um sentimento de padecimento, representado ao mesmo
tempo como final; isso é possível porque nossa impotência revela a consciência de um poder ilimitado do
mesmo sujeito, e o sentimento só pode julgar esteticamente este último através da primeira" (Crít.
dojuízo, § 27). Por isso, Kant define o S. como "o que agrada imediatamente pela sua oposição ao
interesse dos sentidos" (Ibid., § 29, Obs. geral); com isso entende que, ao advertir a desproporção ou o
perigo que o S. representa para a sua natureza sensível, o homem se dá conta de que, justamente por
adverti-la, não é escravo dessa natureza, mas livre perante ela. Friedrich Schiller só fez expor e esclarecer
as idéias de Kant ao afirmar que "se chama de S. o objeto para cuja representação nossa natureza física
sente seus próprios limites, ao mesmo tempo em que nossa natureza racional percebe sua própria
superioridade, seu caráter ilimitado: um objeto diante do qual somos fisicamente fracos mas moralmente
superiores, graças às idéias" (VomErhabenen, 1793). Schiller distinguiu o S. teórico,
SUBLIMINAR
924
SUBSISTIR
que está em conflito com as condições do conhecimento sensível, do 5. prático, que está em conflito com
o instinto de conservação; no S. prático distinguiu o S. prático contemplativo e o S. prático patético: v.
PATÉTICO (cf. PAREYSON, A estética do idealismo alemão, I, pp. 175 ss.). Hegel, por sua vez, expressou
na oposição infi-nito-finito o conflito típico do Sublime: O S. é a tentativa de exprimir o Infinito, sem
encontrar, no reino das aparências, um objeto que se preste a essa representação" (Vorlesungen über die
Àsthetik, ed. Glockner, I, p. 483). Por isso, "as formas por meio das quais aquilo que se manifesta é
também abolido, de tal sorte que a manifestação dos conteúdos é também a superação das expressões, é a
sublimidade: portanto, esta não consiste" — como diz Kant — "na subjetividade pura do sentimento e em
seu poder de estar acima das idéias da razão, mas, ao contrário, baseia-se no significado representativo,
em virtude do qual se refere a uma Substância Absoluta" (Ibid., p. 484). Portanto, Hegel viu no S. uma
forma especial de arte, mais precisamente a arte simbólica. Nele, a dor e a situação de perigo que, para a
estética do séc. XVIII, representam a causa do S., foram substituídas pela inefabilidade e pela majestade
da Substância Infinita. Schopen-hauer, contudo, limitou-se a reafirmar a teoria tradicional e considerou
que o S. existe quando "os objetos, cujas formas significativas nos convidam à contemplação pura, têm
uma atitude hostil para com a vontade humana em geral (cuja objetividade se evidencia no corpo
humano) e se opõem a ela ou a ameaçam com sua força superior" (Die Welt, § 39). O último pensador a
expor o conceito de S. nesses termos foi Santayana: "A sugestão do terror faz que nos refugiemos em nós
mesmos; aí, como numa ação de ricochete, intervém a consciência da segurança ou da indiferença, e nós
sentimos a emoção de distanciamento e libertação, em que consiste, realmente, o S." ( The Sense of
Beauty, 1896, p. 60).
SUBLIMINAR (in. Subliminal; fr. Subliminal; ai. Subliminal; it. Subliminale). O mesmo que
inconsciente. Esse termo foi divulgado por F. Myers (Human Personnlity and its Sur-vival ofBodily
Death, 1903), que com ele designou o vasto domínio que está sob o limiar da consciência, onde se vai
acumulando aos poucos o material que depois é utilizado na criação genial.
SUBORDINAÇÃO (lat. Subordinatio; in. Subordination; fr. Subordination; ai. Subordination; it.
Subordinazionê). Relação entre dois conceitos: um deles (o subordinado) faz parte da extensão do outro
(o sobre-ordenadó) (HAMILTON, Lectures of Logic, I
2
, p. 188; SIG-WART, Logik, I, 2, pp. 343 ss.; v.
HUSSERL, Ideen, I, § 13).
SUBORDINACIONISMO (in. Subordina-tionism; fr. Subordinatianisme-, ai. Subordi-natianismus, it.
Subordinazionismd). Doutrina trinitária dos Padres gregos do séc. II, em particular de Orígenes: afirma
que o Filho tem natureza subordinada à do Pai. Assim, segundo Orígenes, a eternidade do Filho depende
da vontade do Pai: Deus é a vida, e o Filho recebe a vida do Pai. O Pai é Deus-Pai, o Filho é Deus
(Injohann., II, 1-2).
SUB-REPTÍCIO (lat. Surreptitius; in. Sur-reptitious; fr. Subreptice; ai. Erschlichen; it. Surrettiziò). No
sentido do termo latino, o que se possui, conquista ou faz clandestinamente ou sem direito. Em filosofia,
esse termo é usado especialmente para indicar um pressuposto ou uma hipótese de que se faz uso num
raciocínio, sem assumir ou declarar explicitamente. Foi nesse sentido que Kant denominou de subrepções das sensações ("Subreptione der Empfindungen", Crít. R. Pura, § 6) as qualidades sensíveis
atribuídas aos objetos empíricos com base nas sensações. . SUBSISTIR (lat. Subsistere, in. To Subsist; fr.
Subsister, ai. Subsistiren; it. Sussisteré). Existir como substância, ou existir independentemente do espírito
ou do sujeito pensante. No primeiro sentido, esse termo (que no uso latino comum significa persistir ou
durar) foi introduzido por Boécio (Phil. cons., III, 11), passando a ser usado desse modo na tradição
escolástica (GILBERTO DELA PORRE, In Boethi de trinitate, P. L. 64e
, 1281; S. TOMÁS, S. Tb., I, q. 29, a.
2). É usado com o mesmo significado pelos escritores modernos, como p. ex. Descartes (IVRép., I),
Arnauld {Log., 1, 2) e Kant, que chama de "categoria da inerência e da subsistência" a categoria da
substância (Crít. R. Pura, § 10).
No segundo sentido, de existência que não depende do espírito ou do sujeito pensante, esse termo foi
usado por Berkeley (Dialogues between Hylas and Philonous, I, Works, ed. Jessop, II, p. 199, r.42) e por
Kant (Crít. R. Pura, § 6, [B52, A361); foi retomado por Peirce, que com ele designou o ser das relações
("A relação por si é um ens rationis e uma mera pos-
SUBSTÂNCIA
925
SUBSTÂNCIA
sibilidade lógica; mas a sua subsistência tem natureza de fato" {Coll. Pap., 3-571, o texto é de 1903), e
estendido por Russell {Problems of Philosophy, 1912, cap. 9) ao modo de ser dos universais e pelos neorealistas americanos a todas as entidades neutras, constituintes do mundo, que, com sua agregação, podem
formar a consciência ou as coisas {The New Realista, 1912). Este segundo significado é ainda bastante
difundido na filosofia contemporânea.
SUBSTÂNCIA (gr. oúaía; lat. Substantia-, in. Substance, fr. Substance, ai. Substanz; it. Sostanzá). Esse
termo teve dois significados fundamentais: 1Q
de estrutura necessária; 2B de conexão constante. O
primeiro pertence à metafísica tradicional; o segundo, ao empi-rismo.
1
B
No primeiro significado, é S.: à) o que é necessariamente aquilo que é; b) o que existe
necessariamente. Ambas estas determinações foram expostas na metafísica aristotélica, que gira
inteiramente em torno do conceito de S. A primeira determinação é designada por Aristóteles com a
expressão lò xí nv eivai {quodquid erat esse), que pode ser traduzida como essência necessária; com
efeito, ao pé da letra, essa expressão significa aquilo que o ser era, onde o imperfeito "era" indica a
continuidade ou estabilidade do ser, seu ser desde sempre e para sempre. A essência necessária é expressa
pela definição (v.) e é objeto do conhecimento científico (v. CIÊNCIA). A segunda determinação relacionase com a primeira: é S. o que existe necessariamente. Aristóteles diz: "Temos ciência das coisas
particulares só quando conhecemos a essência necessária das mesmas, e com todas as coisas ocorre o
mesmo que ocorre com o bem: se o que é bem por essência não é bem, então nem o que existe por
essência existe, e o que é uno por essência não é uno; e assim com todas as outras coisas" {Met., VII, 6,
1031 b 6). Aristóteles aduz esse argumento contra a separação que Platão faz entre a idéia e as coisas,
mas, obviamente, esse argumento significa que tudo é o que é em virtude da essência necessária (que é a
sua causa intrínseca ou extrínseca) e que, portanto, tudo o que há de real ou de cognoscível nas coisas faz
parte da essência necessária e existe necessariamente. Assim, para Aristóteles, a S. constitui a estrutura
necessária do ser em sua concatena-ção causai, porque todas as espécies de causas são determinações da
S. (v. CAUSALIDADE). Precisamente neste sentido, Aristóteles afirma que
a forma das coisas é eterna e não pode ser produzida nem destruída {Met., VII, 8; VIII, 3), pois a forma é
a essência necessária das coisas compostas. Por outro lado, Aristóteles não se preocupou muito em
enumerar todos os modos de ser da substância. Começa dizendo que, comumente, se fala de S. em quatro
sentidos, senão em mais, a saber: como essência neces sária, como universal, como espécie e como
sujeito {Met., VII, 3, 1028 a 32). Mas a S. como universal ou como espécie é excluída pela crítica ao
platonismo, ou — o que dá no mesmo — é chamada por Aristóteles de substância segunda, em confronto
com a S. primeira, que é a autêntica {Cal, 5, 2 a 13). Restam, portanto, apenas a S. como essência
necessária e a S. como sujeito (v.). Neste último significado, a S. pode ser a forma, a matéria ou o
composto de ambas {Ibid., 1029 a 2). Em seus dois significados legítimos, a S. exprime o significado
fundamental do conceito do ser e, portanto, constitui o objeto da metafísica. "Aquilo que há muito tempo
vimos procurando e ainda procuramos, aquilo que sempre será um problema para nós (o que é o ser?)
significa isto: o que é a S." {Met., VII, 1, 1028 b 2). Por outro lado, a estrutura substancial do ser é o
fundamento do saber científico. A essência necessária das coisas que não têm causa fora de si é intuída
diretamente pelo intelecto e constitui os princípios primeiros que fundamentam a demonstração, ao passo
que a essência necessária das coisas que têm causa fora de si pode ser revelada, senão demonstrada, pela
própria demonstração. Em todos os casos, a necessidade da demonstração é a própria necessidade da S.
{An.post, II, 9, 43 b 21; cf. toda a discussão precedente). A história posterior do conceito de S. repete o
caráter que já havia servido a Aristóteles para defini-lo: a necessidade. Tal caráter é empregado
explicitamente por Plotino para a definição do termo {Enn., I., VI, 3, 4), mas é a Escolástica árabe, em
especial Avicena, que mais insiste nele: "Dizemos que tudo o que é tem uma S. {essentid) graças à qual é
o que é, e graças à qual é a necessidade disso e seu ser" {Logic, I). S. Tomás, que, com as equivalências
lingüísticas estabelecidas em De ente et essentia, pusera fim a um longo período de confusões terminológicas (v. ESSÊNCIA), reduz a S. (interpretando corretamente os textos de Aristóteles) à qüi-didade
(essência necessária) e ao sujeito {S. Th., I. q. 29, a. 2). Descartes só fazia expressar o mesmo caráter de
necessidade ao afirmar
SUBSTÂNCIA
926
SUBSTÂNCIA
que "quando concebemos a S., concebemos uma coisa que existe de tal modo que, para existir, não tem
necessidade de outra coisa senão de si mesma" {Princ. phil, I, 51). Spinoza observava com razão que essa
é a própria definição da S. infinita {R. cartesi principia phi-losophiae, 1663), e a adotava para definir esta
última: "Entendo por S. aquilo que é em si e se concebe por si mesmo, ou seja, aquilo cujo conceito não
precisa do conceito de outra coisa pela qual deva ser formado" {Et, I, prop. III). A definição proposta por
Wolff ("S. é o sujeito perdurável e modificável") é por ele mesmo considerada idêntica à definição
tradicional e à cartesiana {Ont, § 768, 772). A definição tradicional é simplesmente repetida por Baumgarten: "S. éo ente subsistente por si" {Met, § 191). Leibniz conseguiu expressar em termos modernos o
conceito tradicional de S.: "A natureza de uma S. individual ou de um ser completo é ter uma noção tão
perfeita que com ela seja possível abranger e deduzir todos os predicados do sujeito aos quais essa noção
é atribuída" {Disc. de mét., 1686, § 8). O próprio Leibniz aproximava esta noção da noção esco-lástica
tradicional de forma substancial {Ibid., § 11), mas, na realidade, era a própria noção de essência
necessária, que já Aristóteles concebia como o princípio do qual podem ser deduzidas todas as
determinações de um ente.
Nada muda quando Kant começa a considerar a S. como categoria mental, pois a função de tal categoria,
segundo ele, é constituir os próprios objetos da experiência. Mas, com esta transformação o conceito não
muda. A S. é a "necessidade interna de permanência dos fenômenos", e "para que o que se costuma
chamar de S. no fenômeno possa ser substrato de qualquer determinação temporal, é necessário que nele
qualquer existência, no passado ou no futuro, possa ser determinada de uma só e única maneira" {Crít. R.
Pura, Anal. dos Princ, cap. 11, seç. III, 3). Em outras palavras, a permanência que constitui a S. é
necessidade: é só poder ser de uma única maneira. Neste mesmo sentido, Fichte chamava o eu de
substância: "Na medida em que se considera que o eu abrange todo o círculo absolutamente determinado
de todas as realidades, ele é Substância.(...) S. é toda a reciprocidade pensada em geral; acidente é alguma
coisa determinada que varia com alguma outra coisa variável" {Wis-senschaftslehre, 1794, II, § 4, D; trad.
it., pp. 100-101). No mesmo sentido, Hegel afirmava ainda
que o conceito é S.: "O conceito é a verdade da S., e como o modo determinado de relação da S. é a
necessidade, a liberdade mostra-se como a verdade da necessidade e como o modo de relação do
conceito" (Wissenschaft der Logik, ed. Glockner, II, p. 7; trad. it., III, p. 10; cf. Ene, § 150, 152). A noção
de necessidade continuou a caracterizar a idéia de S. em todos os filósofos que a empregam. Rosmini
incluía na idéia de S. em universal: 1B
o pensamento da existência atual; 2Q
o pensamento do indivíduo
que existe; 3e
o pensamento "das determinações que ele deve ter para existir, isto é, o pensamento da
necessidade de que ele seja completo e tenha tudo o que lhe é necessário para existir" {Nuovo saggio,
589). Pode-se dizer que até Wittgenstein emprega esse termo neste sentido tradicional: "S. é aquilo que
existe independentemente do que acontece" {Tractatus, 2.024).
2
a
O segundo conceito de S., como conexão constante entre determinações simultaneamente dadas pela
experiência, é o produto da crítica empirista ao conceito tradicional. Essa crítica visa o caráter
fundamental tradicionalmente atribuído à S., a sua necessidade, porquanto tal necessidade não é resultado
da experiência. A incognoscibilidade da S. em si mesma, por não ser objeto da experiência e só se dar na
experiência como coleção de qualidades, já fora sustentada por Ockham no séc. XIV {In Sent, I, d. 2, q. 2;
Quodl, III, 6), mas coube a Locke difundir esse ponto de vista no mundo moderno. Neste sentido, a S. é
também chamada por ele de essência real ou forma substancial, e sua crítica encontra-se no cap. 6 do
Livro III, mais do que no famoso capítulo 23 do Livro II: "No conhecimento e na distinção das S., nossas
faculdades não vão além de uma coleção de idéias sensíveis que observamos nelas; esta, mesmo que
criada com a maior diligência e exatidão de que sejamos capazes, estará sempre distante da verdadeira
constituição interna de que tais qualidades derivam. (...) Quando nos ocorre examinar as pedras sobre as
quais caminhamos ou o ferro que manejamos todos os dias, logo descobrimos que não sabemos como são
feitos nem sabemos explicar as diversas qualidades que descobrimos neles. É evidente que a constituição
interna de que dependem suas propriedades nos é desconhecida" {Ensaio, III, 6, 9). Aqui Locke identifica
com justeza a S. com a "constituição interna" da qual deveriam
SUBSTÂNCIA
927
SUBSTRATO
derivar as qualidades da coisa: derivar no sentido de que deveriam ser deduzíveis dessa constituição, de
tal modo que pudessem ser explicadas e compreendidas em virtude dela. Esta era na realidade a S.
aristotélica como essência necessária das coisas. Declarando-a incognoscível, Locke reduz a S. a uma
simples "coleção de idéias", abandonando a noção de necessidade em favor da noção de simples
coexistência de fato das determinações percebidas. Assim, em Locke, o conceito de S. sofre uma
transformação análoga à que o conceito de causa sofrerá nas mãos de Hume: de necessidade racional
passa a ser uniformidade factual. A S. deixa de ser necessidade racional, em virtude da qual as
determinações de um ente estariam todas racionalmente interligadas e seriam deriváveis da determinação
fundamental que constitui a essência do ente, e passa a ser um conjunto de determinações que de fato
estão juntas, mas cuja necessidade não pode ser demonstrada. Hume expressava bem essa nova idéia de
S. ao dizer que "as qualidades particulares que formam uma S. costumam referir-se a algo desconhecido a
que elas supostamente inerem, ou, deixando de lado essa ficção, são consideradas estreita e
inseparavelmente interligadas por relações de continuidade e de causação" (Treatise, I, 1, 6; ed. SelbyBigge, p. 16). A conexão de contigüidade e causação tomou o lugar da necessidade racional. Formulação
ainda mais rigorosa do mesmo conceito foi proposta por Mach: "A S. não passa de persistência da
interconexão: persistência que nunca é absoluta ou rigorosa (Analyse der Emp/indungen, XIV, § 14; trad.
it., p. 382). No mesmo sentido, Dewey escreveu: "A condição, a única condição para que possa haver
subs-tancialidade, é que a interdependência entre certas qualificações seja um sinal seguro de que, em se
verificando certas interações, se-guir-se-ão certos resultados" (Logic, cap. VII; trad. it., p. 187).
A idéia de S., no seu significado tradicional de necessidade, e a idéia correlata de causa constituem os
eixos de qualquer metafísica (v.). Portanto, são aceitas integralmente por qualquer metafísica de cunho
tradicional, ao passo que as correntes empiristas tendem a ver no conceito de S. a interconexão que Hume
já entrevira, ou tendem até a desprezá-la, opon-do-lhe a idéia de função, vale dizer, de relação. Esta
última passagem já foi realizada
por Mach, porquanto a "persistência da interconexão" nada mais é que a uniformidade de certas relações.
SUBSTANCIAL (in. Substantial; fr. Substan-tiel; ai. Substantiell; it. Sostanzialé). 1. O que constitui uma
substância ou pertence a uma substância: que é essencial ou que existe necessariamente.
2. O que é, num sentido qualquer, importante ou decisivo: p. ex., "uma contribuição substancial".
SUBSTANCIALIDADE(in. Substantiality,íx. Substantialité, ai. Substantialitãt; it. Sostanzia-litã). O
modo de ser da substância (no sentido 1). Na primeira edição da Crítica da Razão Pura, Kant chamou de
"paralogismo da S." o fato de se atribuir ao "eupenso" o modo de ser da substância CCrít. R. Pura, A,
349). Depois disso, Hegel preferiu empregar esse termo com o simples significado de substância em geral
(cf. Wissenschaft der Logik, ed. Glockner, 1, p. 697).
SUBSTANCIALISMO (in. Substantialism- fr. Substantialisme, ai. Substantialismus-, it. Sostanzialismó). Termo com que a doutrina metafísica da substância foi às vezes designada pelos que a
combatiam (Renouvier, Hamelin e outros).
SUBSTITUIÇÃO (in. Substitution, fr. Subs-titution, ai. Unterschiebung; it. Sostituzioné). Uma das
operações fundamentais do pensamento em todos os campos. Leibniz definiu a igualdade e a identidade
(v.) como possibilidades de substituição. A matemática e a lógica podem ser consideradas sistemas de
regras de substituições na medida em que a fórmula a = b pode ser considerada uma regra segundo a qual
a, onde quer que apareça, pode ser substituído por b (F. WAISMANN, Einfürung in das ma-thematische
Denken, 1936, cap. IX, C; trad. it., p. 165).
Mais especificamente, fala-se em lógica de regra de S. como uma das regras primitivas fundamentais de
inferência, segundo a qual é permitido inferir de uma fórmula A uma outra fórmula de A substituindo uma
variável em A por uma fórmula B (cf. A. CHURCH, Intro-duction to Mathematical Logic, § 10; CARNAP,
The Logical Syntax of Language, § 6; Meaning and Necessity, § 11; QUINE, Methods of Logic, § 6, etc).
SUBSTRATO (lat. Substratum, in. Substra-tum; fr. Substrat; it. Sostrató). Esse termo foi introduzido
pela escolástica do séc. XTV para in-
SUBSUNÇÃO
928
SUICÍDIO
dicar o indivíduo real (substratum singulare. PEDRO AURÉOLO, In Sent., 1. d. 3S, q. 4, a. 1), sendo depois
retomado por Locke para designar aquilo que era tradicionalmente chamado de subjectum ou suppositum,
ou seja, o sujeito ou a substância como sujeito {Ensaio, 11, 23, 1). Aceito por Berkeley (Principies
ofHuman Knowledge, I, § 7) e por Leibniz (Nouv. ess., II, 23, 1), esse termo passou a ser muito usado e
acabou prevalecendo, não sem riscos de confusão (v. SUJEITO).
SUBSUNÇÃO (lat. Subsumptio; in. Subsumption; fr. Subsumption; ai. Subsumption; it. Sussunzione).
Em sentido próprio, a assunção da premissa menor do silogismo, chamada de hipolema por Hamilton,
para reservar o termo lema (v.) à premissa maior (Lectures on Logic, I
2
, p. 283; cf. WOLFF, Log., § 361).
Kant falou de "S. de um objeto sob um conceito" (Crít. R. Pura, Anal. dos Princ, cap. I), e em sentido
idêntico Husserl observava que "a S. de um indivíduo, em geral de um este aqui, sob uma essência não
deve ser confundida com a subordinação de uma essência a uma espécie ou a um gênero superiores"
(Ideen, I, § 13).
SUBTRAÇÃO (in. Subtraction; fr. Sous-traction-, ai. Subtraction; it. Sottrazioné). A noção de S. lógica
foi introduzida por Boole da seguinte maneira: "Se x representa uma classe de objetos, então 1 - x
representa a classe contrária ou suplementar de objetos, que contém todos os objetos que não estão na
classe x" (Laws of Thought, 1854, cap. III, Prop. III, Dover publ., p. 48; v. também PEIRCE, Coll. Pap., 3,
5, 9, 18, etc). Na lógica posterior essa noção desapareceu.
SUCESSÃO (in. Succession; fr. Succession; ai. Folge, it. Successioné). 1. O mesmo que série no
significado 2.
2. Uma série temporal; p. ex., "uma S. de eventos".
SUCESSO (in. Success; fr. Succès; ai. Erfolg; it. Successó). Algumas vezes o instrumentalismo
americano foi chamado de "Filosofia do S.", no sentido de ser uma filosofia que considera o S. a medida
dos valores. Na realidade, o instrumentalismo também acentuou o caráter sempre relativo e provisório do
S. Dewey disse: "O S. nunca é final ou terminal. (...) O mundo não pára quando a pessoa que obteve S.
conseguiu o que quis, nem ela mesma pára, e o tipo de S. que ela obteve, assim como sua atitude em
relação a ele, é um fator daquilo que advirá" (Human Nature and Conduct, p. 254).
SUFICIENTE, RAZÃO. V. FUNDAMENTO.
SUFISMO (in. Sufism; fr. Sufisme; ai. Sufis-mus; it. Sufismó). Misticismo árabe e persa (assim chamado
porque os mantos de seus adeptos eram feitos de pêlos de camelo) que se desenvolveu a partir do séc.
VIII por influência do cristianismo e culminou no neoplato-nismo de Algazali (séc. XI) (cf. J. A.
ARBERRY, Sufism, 1950).
SUGESTÃO (in. Suggestion; fr. Suggestion; ai. Suggestion; it. Suggestioné). 1. Em geral, qualquer tipo
ou forma de associação psíquica. Peirce, p. ex., diz: "O modo de S. com que a hipótese sugere os fatos na
indução é por conti-güidadé, conhecimento habitual de que as condições das hipóteses podem ser
realizadas em certos modos experimentais" (Coll. Pap., 7.218) (v. ASSOCIAÇÃO).
2. Qualquer influência exercida por uma pessoa sobre o comportamento de outra pessoa. Nesse sentido,
esse conceito pertence à psicologia.
SUICÍDIO (gr. è^aycoYií; in. Suicide; fr. Suicide, ai. Selbstmord; it. Suicídio). Os filósofos condenaram
o S. pelos seguintes motivos:
l
s
Porque é contrário à vontade divina. Platão afirma que "não é irracional que alguém não possa matar-se
antes que a divindade lhe comande essa necessidade" (Fed., 62 c). Este é o ponto de vista constantemente
afirmado pelos escritores cristãos (v. para todos eles: S. AGOSTINHO, Deciv. Dei, I, 20; S. TOMÁS, S. Th.,
II, 2, q. 64, a. 5). A afirmação de que o S. é contrário à ordem do destino (PLOTINO, Enn., I, 9) ou à lei
natural (S. TOMÁS, S. Th., II, 2, q. 64, a. 5) não é diferente, visto que o destino ou a lei natural são
manifestações da vontade divina. A esse argumento Hume replicava que nada escapa à vontade divina,
nem a morte, natural ou voluntária, e que por isso o S. não pode ser considerado contrário à vontade
divina ou à ordem das coisas (Of Suicide, em Essays, ed. Green e Grose, II, p. 412).
2
Q
Porque o S. não chega a separar completamente a alma do corpo. Este é o argumento aduzido por
Plotino contra o S.; segundo ele, "quando o corpo é coagido por violência a separar-se da alma, não é ele
que permite a partida da alma, mas foi uma decisão da paixão, seja ela tédio, dor ou ira" (Enn., I, 9). Esta
também é a razão aduzida por Schopenhauer, segundo quem "o S., longe de ser negação da vontade, é um
ato de forte afirmação da vonta-
SUICÍDIO
929
SUJEITO
de" porque "o suicida quer a vida e só está descontente com as condições que lhe couberam" (Die Welt, 1,
§ 69).
3
a
Porque é transgressão de um dever para consigo mesmo, pois, como diz Kant, "o homem tem a
obrigação de conservar a vida unicamente pelo fato de ser uma pessoa" iMet. der Sitten, II, parte I, § 6).
4
a
Porque é um ato de covardia. Fichte observava a propósito que também pode ser considerado um ato de
coragem. Se, de fato, falta ao suicida coragem "para suportar uma vida que se tornou insuportável", o S.
executado com fria premeditação é a expressão do domínio da razão sobre a natureza, que é o instinto de
autoconservaçâo. E concluía: "Se confrontado com o homem virtuoso, o suicida é um covarde; se
confrontado com o miserável que se submete à desonra e à escravidão para prolongar por alguns anos o
sentimento mesquinho de existir, é um herói" (Sittenlehre, 1798, em Werke, IV, p. 268).
5
a
Porque é injusto para com a comunidade à qual o suicida pertence. Esta é a razão aduzida por
Aristóteles (Et. nic, V, 11, 11 38a 9). A esse argumento Hume objetava que as obrigações do homem e da
sociedade são mútuas; assim, a morte voluntária não anula só as obrigações do homem para com a
sociedade, mas também as da sociedade para com ele (Of Suicide, em Essays, cit., p. 413).
Por outro lado, os filósofos consideraram o S. lícito ou necessário pelos seguintes motivos: I
a Porque pode
ser um dever renunciar à vida quando continuar vivendo impossibilita o cumprimento do dever. Era assim
que pensavam os estóicos, cuja doutrina Cícero expõe da seguinte maneira: "Quem possui em maior
número as coisas segundo a natureza tem o dever de continuar vivendo; quem, ao contrário, tem ou se
acredita destinado a ter em maior número as coisas contrárias, tem o dever de sair da vida. Donde se
segue que o sábio às vezes tem o dever de sair da vida mesmo sendo feliz, e o tolo, de continuar vivendo
mesmo sendo infeliz" (De finibus, III, 18, 60; v. SÊNECA, Ep., 12).
2
a
Porque é uma afirmação da liberdade do homem contra a necessidade. Epicuro dizia: "É uma
desventura viver na necessidade, mas viver na necessidade não é em absoluto necessário"; e Sêneca
comentava: "Agradecemos a Deus que ninguém possa ser retido em vida contra sua própria vontade: é
possível esmagar a própria necessidade" (Ep., 12). A exaltação da morte por Zaratustra tem o mesmo motivo: "Louvo
minha morte, a morte livre, que vem porque eu quero. E quando vou querer? Quem tem uma meta e um
herdeiro quer a morte na hora certa, pela sua meta e por seu herdeiro" (Also sprach Zarathustra, I, Da
livre morte).
3
a
Porque pode ser a saída para uma situação insustentável e o único modo de salvar a dignidade e a
liberdade. Desse ponto de vista Hume afirmava que "o S. está de acordo com o interesse e o dever
pessoal: isso não pode ser questionado por quem reconhece que a idade, a doença e a infelicidade podem
transformar a vida num peso insustentável e torná-la pior que o aniquilamento" (Of Suicide, em Essays,
cit., p. 414). Na filosofia contemporânea, Jas-pers aduziu o mesmo argumento em favor do S. (Phil, 11,
pp. 303 ss.), e Sartre escreveu: "Se estou mobilizado numa guerra, essa é a minha guerra: ela é à minha
imagem e eu a mereço. Mereço antes de tudo porque podia ter-me subtraído dela com o S. ou com a
deserção: essas possibilidades extremas devem sempre ser levadas em conta quando é preciso enfrentar
alguma situação" (Vêtre et le néant, p. 639).
SUI GENERIS. Expressão usada em frases escolásticas como: "Todas as coisas são medidas por alguma
coisa do mesmo gênero", como p. ex. o comprimento pelo comprimento, o número pelo número, etc. Essa
frase pode ser considerada uma premissa para se afirmar que, pelo fato de ser Deus a medida de todas as
substâncias, ele pertence ao gênero das substâncias. Mas a doutrina escolástica a propósito afirma, ao
contrário, que Deus não está em nenhum gênero, conquanto seja princípio do gênero das substâncias e de
todos os outros gêneros (v. S. TOMÁS, 5. Th., I., q. 3, a. 5; Contra Gent., I, 25).
SUJEITO (gr. tmoiceíuEvov; lat. Subjectum, Suppositum-, in. Subject; fr. Sujet; ai. Subjekt; it. Soggettó).
Esse termo teve dois significados fundamentais: I
a
aquilo de que se fala ou a que se atribuem qualidades
ou determinações ou a que são inerentes qualidades ou determinações; 2a
o eu, o espírito ou a consciência,
como princípio determinante do mundo do conhecimento ou da ação, ou ao menos como capacidade de
iniciativa em tal mundo. Ambos esses significados se mantêm no uso corrente do termo: o primeiro na
terminologia gramatical e no conceito de S. como tema ou assunto do dis-
SUJEITO
930
SUJEITO
curso; o segundo no conceito de S. como capacidade autônoma de relações ou de iniciativas, capacidade
que é contraposta ao simples ser "objeto" ou parte passiva de tais relações.
I
a O primeiro significado pertence à tradição filosófica antiga. Aparece em Platão (Prot., 349 b) e é
definido por Aristóteles como um dos modos da substância. Aristóteles diz: "S. é aquilo de que se pode
dizer qualquer coisa, mas que por sua vez não pode ser dito de nada" (Met., VII, 3,1028 b 36). Neste
sentido, o
5. pode ser entendido: d) como a matéria de que se compõe uma coisa, p. ex. o bronze; ti) como a forma
da coisa, como p. ex. o desenho de uma estátua; c) como a união de matéria e forma, como p. ex. a estátua
(Ibid., 1029 a 1). Essas determinações pertencem estritamente à metafísica aristotélica. Mas o que importa
é o sentido geral do termo: S. é o objeto real ao qual são inerentes ou ao qual se referem as determinações
predicáveis (qualidade, quantidade, etc). Este é também o conceito de sujeito dos estóicos, que o
consideraram como objeto externo ao qual se refere o significado, ou seja, como a denotação do
significado (SEXTO EMPÍRICO, Adv. tnath., VIII, 12; cf. SIGNIFICADO). Os epicuristas empregaram esse
termo com o mesmo sentido (EPICURO, Epístola, I, pp. 12, 24, Uesener). É com essa tradição que se
relaciona o uso gramatical do termo, que começou no séc. II d.C; Apuleio já chamava de subjectiva ou
subdita a parte do discurso que os antigos chamavam de nome, e de declarativa a parte que os antigos
chamavam de verbo (De dogmate Platonis, III, p. 30, 30; cf. MARCIANO CAPELA, De nuptiis, IV, 393).
Esse significado de "S." permanece inalterado através de longa tradição. Os escritores medievais adotam
as determinações de Aristóteles: chamam a substância de subjectum ou suppositum porquanto a ela
inerem as qualidades ou as outras determinações (cf. S. TOMÁS, S. Th., I, q. 29, a. 2; DUNS SCOT, Op. Ox,
II, d. 3, q.
6, n. 8; OCKHAM, In Sent, I, d. 2, q. 8, E). O significado desse termo não muda quando por S. é entendida
a alma como substância à qual inerem determinados caracteres ou da qual emanam determinadas
atividades. Hobbes diz: "O S. da sensação é o próprio senciente, ou seja, o animal" (De corp., 25, 3).
Locke chama o sujeito neste sentido de substratum ou suporte (Ensaio, II, 23, 1-2). É com esse mesmo
sentido que Hume se vale desse termo: "Eis que aparece Spinoza a dizer-me que só há modificações e que o S. ao qual elas inerem é simples, não composto e indivisível" (Treatise, 1, IV, 5, ed. SelbyBigge, p. 242). Por outro lado, esse mesmo significado mantém-se até mesmo no racionalismo alemão.
Leibniz pretende conservar o significado tradicional de S. (Nouv. ess., II, 23, 2) e, ao falar de disposições
"que vêm asubjecto, ou da própria alma", está falando de disposições que vêm da própria substância da
alma (Remarques sur le Livre de 1'origine du mal, em Op., ed. Erdmann, p. 645). Por sua vez, Wolff
define o S. como "o ente, enquanto dotado de essência e capaz de outras coisas além dela" (Ont., § 7 11).
No mesmo sentido, Baumgarten diz que o S. é o ente, determinado na matéria de que é constituído (Met.,
§ 344). Aliás, o próprio Kant recorre a essa noção tradicional de sujeito. Diz: "Há tempos observou-se
que, em todas as substâncias, o S. propriamente dito, aquilo que fica depois de retirados os acidentes
(como predicados), portanto o verdadeiro elemento substancial, nos é desconhecido" (Prol, § 46).
2
Q
O segundo significado desse termo, como o eu, a consciência ou a capacidade de iniciativa em geral,
teve início com Kant, que certamente teve em mente o significado que a oposição entre subjetivo e
objetivo assumira em alguns escritores alemães, seus contemporâneos (v. SUBJETIVO). Para Kant, S. é o
eu penso da consciência ou autoconsciência que determina e condiciona toda atividade cognos-citiva:
"Em todos os juízos sou sempre o S. determinante da relação que constitui o juízo". "Para o eu, para o ele
ou para aquilo (a coisa) que pensa, a representação é apenas de S. transcendental dos pensamentos, = x
que só é conhecido através dos pensamentos que são seus predicados e dos quais, à parte estes, não
podemos ter o menor conceito" (Crít. R. Pura, Dial. transcendental, II, cap. 1). Nessas palavras de Kant
pode-se reconhecer a passagem do velho para o novo significado de sujeito. O eu é S. na medida em que
seus pensamentos lhe são inerentes como predicados: este é ainda o significado tradicional do termo. Mas
o eu é sujeito na medida em que determina a união entre S. e predicado nos juízos, na medida em que é
atividade sintética ou judicante, espontaneidade cognitiva, portanto consciência, autoconsciência ou
apercepção; e este é o novo significado de sujeito.
A tradição pós-kantiana atém-se exclusivamente a este segundo significado. Para Fichte,
SUJEITO 931
SUJEITO
o S. é o Eu, que é "S. absoluto, não representado nem representável", que "não tem nada em comum com
os seres da natureza" (Wissens-chaftslehre, 1794, § 3, d). Segundo Fichte, a diferença entre a Substância
de Spinoza e o Eu Absoluto consiste no fato de que Spinoza não concebeu a substância como S. (Ibid.,
trad. it., pp. 78 ss.). Schelling fala no mesmo sentido de identidade ou unidade do S. e de objeto na
Autoconsciência Absoluta (System des transzen-dentalenIdealismus, 1800,1, cap. II; trad. it., p. 34). Por
sua vez, Hegel dizia: "Tudo depende de se entender e expressar o Verdadeiro não somente como
Substância, mas de maneira igualmente decidida como S. (...) A substância viva é o ser, que na verdade é
S. ou — o que dá na mesma — é o ser que na verdade é efetivo, mas somente na medida em que a
substância é o movimento de pôr-se a si mesma ou é a mediação do vir a ser outra consigo mesma"
(Phánomen. des Geistes, Pref., II, 1). No mesmo sentido, Hegel afirma que a Idéia Absoluta é unidade de
S. e objeto (Ene, § 214). E acrescenta: "A unidade da idéia é subjetividade, pensamento, infinidade, e
portanto deve ser distinguida essencialmente da idéia como substância do mesmo modo como se deve
fazer a distinção entre essa subjetividade domi-nadora, esse pensamento, essa infinidade e a subjetividade
unilateral, o pensamento unilateral, a infinidade unilateral, à qual ela se rebaixa ao julgar e definir" (Ene,
§ 215). Logo, a subjetividade como "subjetividade infinita", ou seja, não intelectual, prevalece sobre a
objetividade na "unidade S.-objeto" que é a Idéia ou o Absoluto. Mas Hegel também viu no S. como tal a
capacidade de iniciativa ou o princípio da atividade em geral. "O S. é a atividade da satisfação dos
impulsos, da racionalidade formal, vale dizer, é a atividade que traduz a subjetividade do conteúdo (que
sob esse aspecto é fim) na objetividade em que o S. se conjuga consigo mesmo" (Ene, § 475). Assim
como Fichte, Schopenhauer insistia na impossibilidade de representar o S.: "Aquele que tudo conhece e
não é conhecido por ninguém é o Sujeito. É ele, pois, que tem o mundo em si; é a condição universal e
sempre pressuposta de qualquer fenômeno, de qualquer objeto: porque o que existe, existe para o sujeito"
(Die Welt, I, § 2). É quase supérfluo observar como o idealismo contemporâneo abusou dessas noções,
especialmente o idealismo italiano. Gentile dizia: "A realidade espiritual objeto do
nosso conhecimento não é espírito e fato espiritual, mas pura e simplesmente espírito, como sujeito.
Como tal, ela só é conhecida na medida em que sua objetividade se resolve na atividade real do S. que a
conhece" (Teoriagenerale dello spirito, 1920, 11, § 3). Croce emprega a palavra S. para indicar o Espírito
do Mundo, a Razão ou a Humanidade, que é o princípio criativo da história (Storiografia e idealitã
morale, 1950, p. 21).
Ficaram poucos sinais dessa pesada mitologia no restante da filosofia contemporânea. Por um lado, as
correntes do neocriticismo(v), ao insistirem no aspecto lógico-objetivo do conhecimento, relegaram para
segundo plano a função do sujeito; aliás, evitaram empregar seu conceito e o próprio termo em suas
análises explicativas. Por outro lado, o S. como eu (ou o eu como S.) simplesmente desaparece em
algumas filosofias contemporâneas porque desaparece a função diretiva e construtiva que ele deveria
exercer. É o que acontece, p. ex., na filosofia de Mach, em que o eu se torna simplesmente um conjunto
de sensações, de elementos cognoscitivos, e não tem mais função como S. (Analyse derEmpfindungen,
1900,1, 12). Em sentido análogo, Wittgenstein diz que o S. "não existe. Se eu escrevesse um livro 'O
mundo como encontrei', deveria falar também de meu corpo, e dizer quais as partes dele que obedecem à
minha vontade e quais não, etc, o que seria um método de isolar o sujeito ou de mostrar que, em sentido
importante, não há sujeito. Com efeito, não se poderia falar dele sozinho nesse livro" (Tractatus, 1922,
5.631). O S. não existe porque "o S. não pertence ao mundo, mas é um limite do mundo" (Ibid., 5.632),
no sentido de que, assim como o olho, vê tudo mas não se vê a si mesmo, e portanto se resolve
inteiramente nos objetos vistos. Não é muito diferente o significado da tese de Santayana, de que "o
espírito não existe" (Scepticism and Animal Faith, 1923, cap. 26). Mas mesmo quando se reconhece a
existência do S., sua função é reduzida ao mínimo pela corrente realista. Ao afirmar que "S. e objeto são
sempre correlativos um ao outro e por isso inseparáveis", N. Hart-mann está reduzindo a função do S. a
"imagem, representação ou conhecimento do objeto", excluindo inclusive a possibilidade de que ele
modifique a natureza deste (Sistematische Philosophie, 1931, § 10). Finalmente, mesmo quando não
excluída, a função do S. não é considerada incondicionada ou criadora, mas
SUMA
932
SUPERAR
submetida a limites e condições, negando-se em todos os casos que ele possa valer como substância ou
força autônoma. Husserl diz: "O ego constitui-se por si mesmo na unidade de uma história. Ao se dizer
que, na constituição do ego, estão contidas todas as constituições de todos os objetos que existem para
ele, ima-nentes e transcendentes, reais e ideais, é preciso acrescentar que o sistema de constituições em
virtude das quais tais objetos existem para o ego só é possível no quadro de leis genéticas" {Cart. Med,
1931, 37). Desse ponto de vista, o S. é uma função, não uma substância ou uma força criadora. Heidegger
disse: "Se para o ente que nós somos e que definimos como ser-aí for escolhido o termo sujeito,
poderemos dizer: a transcendência implica a essência do S., é a estrutura fundamental da subjetividade.
Não que o S. exista antes como S. e depois, no momento em que alguns objetos se revelem presentes, ele
possa até mesmo transcendê-los. Ser S. significa ser existente na transcendência e enquanto
transcendência" {Vom Wesen des Grundes, 1929, II; trad. it., p. 30). É preciso lembrar que, para
Heidegger, transcendência (v.) é relação com o mundo; portanto, o S. é por ele identificado com essa
relação. De modo mais empírico, Dewey ressalta o caráter puramente funcional da subjetividade: "Uma
pessoa, ou — mais genericamente — um organismo, torna-se sujeito cognoscente em virtude de seu
empenho em operações de investigação controlada" {Logic, 1938, p. 526). Admitir que existe S.
cognoscente independente da investi-gação e anterior a ela significa supor algo que é impossível verificar
empiricamente e que, portanto, não passa de preconceito metafísico. Essa idéia fora exposta por Dewey já
em Studies in Logical Theory, de 1903 (cf. também Experience and Nature, 1926, cap. VI).
SUMA. No séc. XII começou-se a designar com este termo os breves tratados sistemáticos sobre algum
conjunto de conhecimentos. Abelardo escrevia no prefácio à sua Introdução à Teologia: "Escrevi uma
suma da sagrada erudição, como introdução à divina escritura" {P. L., 68°, col. 979). As S. costumavam
ter como título a matéria tratada {S. de vitiis et virtutibus-, S. de articulis fidei; S. sermonum; S.
grammaticalis, S. logicalis, etc). Depois do séc. XIII, começou-se a dar preferência a esse termo, em vez
de Sententiae, para. título das exposições sistemáticas de teologia. Os manuscritos da obra de Pietro da
Capua (escrita por volta de 1200) já
recebem o título de Summa. Nas grandes obras sistemáticas do séc. XIII esse termo é usado quase com
exclusividade, (v. M. GRABMANN, Geschichte der scholastischen Methode, II, pp. 23 ss.).
SUNTTAS (in. Sunnites-, fr. Sunnite, ai. Sun-niten-, it. Sunnití). Corrente islamita ortodoxa que admite a
validade de crenças práticas não prescritas no Alcorão, mas cuja origem seria o próprio Maomé. Os xiitas,
ao contrário, negam o valor da tradição.
SUPERADDITA, FORMA. Telésio extraiu essa expressão nos escolásticos de inspiração escotista para
designar a alma supranatural, diretamente infundida no homem por Deus, que ele admite estar ao lado da
natural e material, como sujeito da vida religiosa e da aspiração do homem pelo que está além da
natureza. Ao contrário da alma natural, a forma S. não seria corruptível {De rer. nat., V, 3).
SUPERAR (in. To sublate-, fr. Dépasser, ai. Aufheben-, it. Superaré). Termo usado por He-gel para
indicar o processo dialético que, ao mesmo tempo, conserva e elimina cada um de seus momentos. Hegel
dizia: "Na língua, a palavra S. tem sentido duplo porque, por um lado, significa conservar, reter, e, por
outro, fazer cessar, pôr fim. 'Conservar' já encerra o negativo, implica que algo foi privado de sua
imediação, portanto de uma existência aberta a influências externas, com o fim de ser retido. Assim, o que
é superado é ao mesmo tempo algo conservado que perdeu apenas a imediação, mas nem por isso é
anulado." {Wissens-chaft der Logik, I, Livro I, seç. I, cap. 1, nota; trad. it., pp. 105-06). Embora Hegel, no
mesmo trecho, faça um paralelo entre o significado do termo alemão e o latim tollere, o uso em italiano
estabeleceu a equivalência do termo com superar. Superação significa, conseqüentemente, progresso que
conservou o que havia de verdadeiro nos momentos precedentes, levando-o a completar-se. Como
exemplo desse conceito, pode-se citar o que Hegel diz sobre a superação no domínio da filosofia. "Toda
as filosofias foram necessárias e ainda são; nenhuma desapareceu, mas todas foram conservadas
afirmativamente na filosofia como momentos de um todo.- os princípios são conservados, e a filosofia
mais recente é o resultado de todos os princípios precedentes: nesse sentido, nenhuma filosofia foi
refutada. O que foi refutado não é o princípio de dada filosofia, mas apenas a sua pretensão de representar
a conclusão últi-
SUPEREROGATORIO
933
SUPERSTIÇÃO
ma e absoluta" {Geschichte der Philosophie, I, Intr., A, 3, b). O idealismo italiano entre guerras usou e
abusou desse termo.
SUPEREROGATORIO (in. Supererogato-ry). O que é feito ou dado sem estrita obrigação jurídica ou
moral; trata-se de doação supérflua, portanto meritória. Essa é uma possibilidade que a moral kantiana
excluiria, porque, segundo Kant, o homem está sempre em débito para com o dever (Religion, II, I, c;
trad. it., Durante, p. 67).
SUPERESTRUTURA (in. Superstructure, fr. Superstructure, ai. Überbau; it. Soprastrutturd). Termo
empregado pelos marxistas para designar a ordenação política e jurídica, bem como as ideologias
políticas, filosóficas, religiosas, etc, na medida em que dependem da estrutura econômica de dada fase da
sociedade. Marx diz: "O conjunto de relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade,
ou seja, a base real sobre a qual se ergue a S. jurídica e política e à qual correspondem formas
determinadas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona, em geral, o
processo social, político e espiritual da vida" {Zur Kritik der politischen Ôkonomie, 1859, Pref.) (v.
MATERIALISMO HISTÓRICO).
Esse termo também foi empregado por N. Hartmann para indicar um estrato ou plano do ser no qual se
conservem somente algumas das categorias do plano inferior; distinguir-se-ia da sobreformação
(Überformung) porque nesta se conservariam todas as categorias do plano inferior. Por ex., o plano
psíquico seria uma S. em relação ao plano orgânico, porque nele é abandonada a categoria espaço, que
ainda domina o ser orgânico. Assim, a diferença entre S. e sobreformação bloquearia o caminho para a
concepção mecanicista da vida psíquica {Aufbau der realen Welt, 1940). Algumas vezes o termo de
Hartmann é traduzido como sobreconstrução (it., so-pracostruzioné) (cf. BARONE, Nicolai Hartmann, p.
342).
SUPER-HOMEM (gr. Ú7iepáv6pü)7toç; in. Superman; fr. Surhomme, ai. Übermensch; it. Superuomó).
O termo que se encontra em Luciano {Cataplus, 16) e que algumas vezes foi usado para designar o
homem-Deus (= Cristo; v. T. TASSO, Lettere, V, 6), foi empregado antes por Ariosto (Orl. Fur, 38, 62)
para indicar uma humanidade extraordinária. Foi introduzido na Alemanha por Heinrich Müller
{Geistliche Erbauungstunden, 1664-66) e empregado por
vários escritores do Romantismo alemão, inclusive por Goethe {Fausto, 1, Noite). Mas foi só com
Nietzsche que esse termo assumiu significado filosófico e se tornou popular. O S. é a encarnação da
vontade de potência: "O homem deve ser superado. O S. é o sentido da terra. (...) O homem é uma corda
esticada entre o animal e o S., uma corda sobre o abismo" {Also sprach Zarathustra, I, 3). O S. é a
encarnação dos valores vitais que Nietzsche contrapõe aos valores tradicionais; para Nietzsche, é o
filósofo criador de valores, dominador e legislador, em oposição aos "operários da filosofia", que são os
comumente considerados filósofos (Jenseits von Gut undBõse, § 211). Apesar de o conceito nietzschiano
não ter nenhum significado político preciso, acabou servindo de pretexto ao racismo e às concepções
antidemocráticas em política.
SUPERIOR (lat. Superius; in. Superior, fr. Supérieur, ai. Hõher, it. Superioré) 1. Em sentido lógico: mais
extenso, que tem maior extensão ou denotação. Nesse sentido, fala-se de "gênero S.", de "conceito S." ou,
em geral, de "termo S.". Este uso remonta à lógica terminista do séc. XIV (PEDRO HISPANO, Summ. log.,
2.08; 3.02; 12.13; cf. PRANTL, Geschichte der Logik, IV, p. 49).
2. O que pertence a uma fase mais avançada da evolução biológica: nesse sentido, fala-se de "espécies S."
ou "animais superiores".
3. O que pertence à esfera das funções espirituais ou simbólicas do homem. Nesse sentido fala-se em
"funções S." ou "interesses superiores".
4. Aquilo a que, em algum sentido, se atribui grau mais elevado de dignidade ou valor; p. ex. "homem
S." ou "formas superiores de arte ".
SUPERSTIÇÃO (gr. SeiaiSaiixovía; lat. Su-perstitio; in. Superstition; fr. Superstition; ai. Aberglaube, it.
Superstizioné). Excesso ou aberrações da religião, ou então a forma de religião de que não se compartilha.
Foi Cicero quem definiu a S. no primeiro sentido: "Não só os filósofos mas também os nossos
antepassados distinguiram a S. da religião: aqueles que rezavam o dia inteiro e imolavam vítimas para que
os filhos sobrevivessem [lat. superstes, su-perstitis = sobrevivente] foram chamados de supersticiosos, e
depois essa palavra ganhou significado mais extenso" {De nat. deor., II, 28, 71-72). Essa definição foi
repetida substancialmente por S. Tomás: "A S. é o vício que, por
SUPERVERDADE
934
SUPRA-ENTE
excesso, se opõe à religião, pois se presta culto divino a quem não se deve ou na forma indevida" {S. Th.,
II, 2, q. 93, a. 1). No segundo sentido, foi definida por Hobbes: "O temor diante dos poderes invisíveis, se
estes forem imaginados pelo espírito ou sugeridos por narrativas publicamente admitidas, é religião; se
sugeridos por narrativas não admitidas publicamente, é S." {Leviath., 1, 6).
Na verdade, S. é um termo polêmico: para o estudo objetivo (antropológico ou sociológico) das crenças,
não existem superstições, e sempre que se fala em S., está-se tomando como referência determinado
sistema religioso, que é considerado o único verdadeiro. Assim, cada religião parece S. aos seguidores de
uma religião diferente, e a única descrição exata do termo é a que se encontra em Hobbes.
SUPERVERDADE (lat. Superveritas). Um atributo de Deus, segundo Scotus Erigena {De divis. nat., I,
14) (v. SUPRA-ENTE).
SUPOSIÇÃO (gr. ráóeecnç; lat. Suppositio, in. Supposition; fr. Supposition; ai. Voraus-setzung,
Supposition; it. Supposizioné). 1.0 mesmo que hipótese.
2. Na lógica terminista medieval, é o significado denotativo dos termos presentes na proposição, enquanto
o significado em sentido estrito é o conotativo (v. SIGNIFICADO). Nesse sentido, a S. é definida como uma
positio pro alio, um estarem lugar de alguma outra coisa: p. ex., quando dizemos "o homem corre", o
termo "homem" está em lugar de Sócrates, Platão ou algum outro (PEDRO HISPANO, Summ. log., 6.03;
OCKHAM, Summa log., I, 63; BURIDAN, Sophysmata, 3; ALBERTO DE SAXÔNIA, Lógica) Com exceção de
alguns casos isolados, a teoria da suppositio é mais ou menos uniforme em todos os lógicos do séc. XIV.
Eles distinguiam três espécies fundamentais de S.: pessoal, simples e material. Tem-se a S. pessoal
quando o termo está no lugar do objeto significado, qualquer que ele seja: coisa externa, palavra,
conceito, sinal escrito ou outra coisa. Assim, nas frases: "o homem é um animal", "o nome é parte da
proposição", "a espécie é um universal", os termos homem, nome e espécie têm S. pessoal porque estão
no lugar dos respectivos objetos. Tem-se S. simples quando o termo não está no lugar do objeto
significado, mas de seu conceito. Assim, quando se diz "o homem é uma espécie", o termo homem não
está no lugar de "o homem", mas do conceito "homem". Finalmente, tem-se S. material quando um termo está no lugar da palavra ou do sinal escrito, como nas frases "homem é substantivo" ou "está escrito
homem", onde homem está no lugar de uma palavra ou de um sinal escrito. Cada um desses atributos da
S. foi ainda subdividido pelos lógicos do séc. XIV e estudado em termos de dificuldades e problemas que
apresentam. Para se ter uma idéia desses problemas, eis como Ockham enfrenta a dificuldade apresentada
pela S. do termo "homem" na proposição "o homem é a mais elevada das criaturas". Aqui o termo
"homem" não pode ter uma S. simples porque não é o conceito homem que é a mais elevada das criaturas;
tampouco pode ter uma S. pessoal, porque, subs-tituindo-se 'homem' por algum homem individual, o
juízo torna-se falso. A solução é que a proposição tem uma S. pessoal, mas que deve ser limitada,
dizendo-se que o homem é a mais elevada de todas as criaturas que sejam diferentes dele. nesse caso, a
proposição é verdadeira para cada indivíduo humano {Summa log., I, 66).
A teoria da S. foi posta de lado quando a lógica terminista foi abandonada em favor da lógica mentalista,
sob a influência do carte-sianismo. Os problemas por ela tratados foram herdados pela teoria do conceito
(cf. E. ARNOLD, Zur Geschichte der Suppositionstheorie, em Symposion, III, 1954; E. A. MOODY, Truth
and Consequence in Mediaeval Logic, 1953).
SUPRA-ALMA (in. Oversoul). Foi assim que R. W. Emerson definiu Deus, concebendo-o princípio
imanente no mundo e no homem {Nature, 1836).
SUPRACONSCIÊNCIA (fr. Supraconscien-cé). Termo usado por Bergson para indicar uma "verdadeira
atividade criadora" ou uma "consciência pura", que, para ele, não é a vida {Évol. créatr., 8
a
ed., 1911. pg.
267, 283, etc).
SUPRACONSTRUÇAO. V. SUPERESTRUTURA.
SUPRA-ENTE (gr. ÚTtepoúoioç; ai. Über-seiend; it. Superessenté). Encontramos esse adjetivo pela
primeira vez em Proclo {Inst. theol, 115), mas Platão já dissera que o bem está além da substância {Rep.,
VI, 509 b), conceito que se tornou basilar na filosofia de Plo-tino, para quem o uno está "além do ser"
{Enn., V, 5, 6) ou "antes do ser" {Lbid., III, 8, 10). Dionísio, o Areopagita usou o termo "su-pra-essencial"
{De divinis nominibus, II, em P. L., 122s
, col., 1122), e Scotus Erigena valeu-se do termo superessentia
{Dedivis. nat, 1,14). O mesmo termo é encontrado ainda na tradição mística e teosófica. Mestre Eckhart
fala de Deus
SUPRALAPSARIANISMO
935
SYNKATATHESIS
como de "uma essência supra-essencial e um nada S." (Deutsche Mystiker des XIVJahrhun-derts, ed.
Pfeiffer, II, pp. 318-19). A mesma qualificação aparece em Schelling (Werke, I, X, p. 260) (v. TEOLOGIA;
TRANSCENDÊNCIA).
SUPRALAPSAMANISMO (in. Supralapsa-rianism, fr. Supralapsarianisme, ai. Supralapsa-rianismus;
it. Sopralapsarismó). No séc. XVII, foi esse o nome dado à doutrina de que Deus predeterminou a queda
(lapsus) de Adão ab aetemo, para pôr em ação seus instrumentos de salvação. Essa doutrina foi sustentada
por alguns teólogos calvinistas, mas negada por outros que se chamaram de infralapsarianos. Leibniz
discutiu longamente esses problemas no segundo livro da Teodicéia (1710) (v. GRAÇA; PREDESTINAÇÃO).
SUPRA-ORGÂNICO (in. Superorganic, fr. Superorganique, ai. Überorganisch; it. Superor-ganicó).
Termo usado pelo positivismo para indicar o que está além da vida orgânica, vale dizer, a vida psíquica ou
a vida social, especialmente esta última. Esse termo é usado freqüentemente por Spencer.
SUPRA-SENSÍVEL (in. Supersensible, fr. Suprasensible, ai. Übersinnlich; it. Soprasen-sibilé). Na
terminologia kantiana (que pôs esse termo em uso), o mesmo que númeno: "Aquilo que diz respeito à
faculdade especulativa da razão, mas de que nenhum conhecimento é possível (noumenorum non datur
scientià)" (Fortschrifte derMetaphysik, 1804, [A 55]). Portanto, o S. é o domínio das idéias da Razão
Pura, com tudo o que elas implicam para a vida moral do homem. Hegel empregou esse termo em sentido
análogo, mas positivo, para indicar aquilo que a aparência sensível é em sua natureza racional: "O S. é o
sensível e o percebido postos como são em verdade", portanto como "o universal simples, o universal em
que a multiplicidade não subsiste, em que nada há para conhecer": em suma, o universal do modo como
Schelling o entendeu (Pbãnomen. des Geistes, I, IV, B; trad. it., p. 127 e nota).
SUPREMO BEM. V. BEM SUPREMO.
SUSPENSÃO DO JUÍZO. V. EPOCHÉ.
SYNKATATHESIS. V. ASSENTIMENTO.
T
TABU (in. Taboo; fr. Tabou; ai. Tabu; it. Tabu). Termo polinésio que significa simplesmente proibir ou
proibido e que passou a indicar a característica sagrada da proibição em todos os povos primitivos e
qualquer proibição não motivada em todos os povos. A generalização nesse sentido do conceito é de
autoria de Salomon Reinach. A melhor explicação da função do T. encontra-se em A. R. Radcliffe-Brown,
que nele discerniu um instrumento para ressaltar a importância social de acontecimentos, ações,
interditos, normas, etc. Nesse sentido, o T. está ligado a qualquer prescrição ritual (Structure and
Function in Primitive Society, 1952, cap. VII). Freud comparou o T. à neurose obsessiva e viu entre as
duas coisas quatro pontos semelhantes: ls
falta de motivação das proibições; 2S
sua validação por meio de
uma necessidade interior; 3a
possibilidade de deslocamento e contágio dos objetos proibidos: 4
a
criação
de práticas cerimoniais e mandamentos derivados das proibições (Totem e T, 1913, cap. II; trad. it., p. 37.)
TÁBUA (lat. Tabula-, in. Table, fr. Table, ai. Tafel; it. Tavolá). Esse termo foi várias vezes usado para
indicar a apresentação organizada ou sistemático de conceitos. Os antigos falavam das tabulae logicae,
que era a apresentação hierárquica de conceitos dispostos segundo a maior generalidade: a árvore de
Porfírio (v.) é a mais conhecida dessas tábuas. No mesmo sentido, denominavam T. os conjuntos de
normas morais ou jurídicas (a lei das 12 tábuas, as T. de Moisés). Bacon deu o nome de T. às
coordenações das instâncias, ou seja, dos aspectos particulares de um fenômeno (Nov. org., II, 10) e
distinguiu as T. de presença, as T. de ausência, as T. dos graus ou comparativas e as T. exclusivas (Ibid. II,
11-13). A partir de
Kant fala-se de "T. das categorias" (v. CATEGORIA).
TÁBUA RASA (gr. rcívaE, àypoKpriç; lat. Tabula rasa). Expressão que indicou, às vezes, a condição da
alma antes da aquisição dos conhecimentos. Essa expressão nasce da comparação do processo de
aquisição de conhecimentos com o processo de impressão de sinais ou letras sobre tabuinhas cobertas de
cera ou de escrita sobre página. Trata-se de comparação bastante antiga, que já se encontra em Esquilo
(Prom., 789). Platão comparava a alma a um bloco de cera onde se gravam as sensações e os pensamentos
de que depois nos lembramos (Teet., 191 d; Pii, 39 a). Aristóteles comparava o intelecto a uma tabuinha
onde nada está escrito (De an., III, 4, 430 a I). Os es-tóicos comparavam a parte hegemônica da alma a
um papiro onde serão escritos os sinais das coisas, ou seja, as representações (PLUTAR-co, Plac, IV, 11; v.
GALENO, Hist. philos., 92; SEXTO EMPÍRICO, Adv. math., VII, 228). A mesma comparação é depois
repetida com freqüência (FÍLON, Ali. leg., I, 32; BOÉCIO, Phil. cons., V, 4; etc), mas a expressão "tabuinha
sem escrita" encontra-se pela primeira vez no comen-tador de Aristóteles, Alexandre de Afrodisia (cerca
de 200 a.C); na Idade Média foi usada por S. Tomás (De an., a. 8, resp.; S. Th., I, q. 89, a. 1, ad 3S
).
Locke utilizou essa imagem para expressar a tese da origem empírica dos conhecimentos (Ensaio, II, I, 2)
e Leibniz a usou na sua crítica a essa tese de Locke (Nouv. ess., II, I, 2). Desde então essa expressão
passou a indicar a tese empirista sobre a origem do conhecimento e a negação do inatismo.
TÁBUAS DE VERDADE (in. Truth tables; fr. Tables de vérité, ai. Wahrheitsmóglichkeiten;
TÁBUAS DE VERDADE
937
TÁBUAS DE VERDADE
it. Tavole di veritã). No cálculo das proposições, T. construídas pelo método de matrizes (v.), que permite
enumerar todas as possibilidades de verdade para certo número de proposições simples e assim identificar
se uma proposição é verdadeira. Essas tábuas são construídas com os símbolos dos conectivos lógicos (v.
CONECTIVO) e, com V e F, indicam respectivamente o valor de verdade e de falsidade de uma proposição.
Assim, utilizando o símbolo ~p para indicar a negação de p (ou que p é falso), tem-se a seguinte T.:
p ~P
V F F V
significando que, se pé verdadeiro, sua negação é falsa e, se p é falso, sua negação é verdadeira. Se
considerarmos a conjunção entre duas proposições, indicada pelo símbolo'.', teremos a seguinte T. de
verdade:
p 1 p.q
V V V
V F F
F V F
F F F
que indica todos os valores possíveis de verdade para cada tipo de conjunção entre as proposições; por
isso, pode ser assumida como a própria definição do conceito lógico de conjunção (v.). Significa que a
conjunção entre duas proposições conexas pela palavra "e" é válida só no caso de ambas as proposições
serem verdadeiras, como quando se diz "Está chovendo e há umidade".
Tem-se disjunção quando se insere entre duas proposições a palavra "ou", representada pelo símbolo v; na
língua corrente, pode ter dois significados: um significado inclusi-vo (em que "ou" corresponde ao latim
vel), como quando se diz "Pode-se ir a Roma por este caminho ou pelo outro", em que pelo menos uma
das duas proposições é verdade; e um significado exclusivo ("ou" nesse caso corresponde ao latim aui),
como quando se propõe uma alternativa: "Vamos a Roma ou a Paris", em que pelo menos uma das
proposições é verdadeira e pelo menos uma é falsa. A T. de verdade da disjunção geralmente é a seguinte:
p q pwq
V V V
V F V
F V V
F F F
que fornece o critério mais geral para a validade de uma disjunção qualquer.
Quanto à T. de verdade da relação condicional, expressa através do conectivo se... e pelo símbolo z>, ver
os termos IMPLICAÇÃO E CONDICIONAL.
Com base nessas tábuas, é possível construir outras mais complexas, como a seguinte, que dá os valores
de verdade das combinações condicionais possíveis entre as proposições condicionais e as disjuntivas (cf.
TARSKY, Intr. to Logic, § 3); para a função (p v q) (p.r), onde p, q, r representam proposições quaisquer:
p 1 r p.q pz>q (p.q)^(pz)v)
V V V V V V
F V V V F F
V F V V V V
F F V F F V
V V F V F F
F V F V F F
V F F V F F
F F F F F V
Para simplificar o significado dessa T., considere-se a quinta linha depois do cabeçalho: nela se supõe que
pe q são proposições verdadeiras e que ré uma proposição falsa. Com base na segunda T. fundamental,
obtém-se que "p.q" é uma proposição verdadeira e que "p o q" é uma proposição falsa; unindo-se "(p.q)
z> (p=> r)", obtém-se uma implicação em que o antecedente é verdadeiro e o conseqüente é falso e que,
com base na T. das implicações, é falsa.
O uso das T. pode ser ampliado a todos os teoremas do cálculo das proposições. Assim como da T. de
implicação material, das outras T. derivam conseqüências que se mostram paradoxais do ponto de vista da
linguagem corrente. Vejamos as seguintes:
se q é verdadeiro, então q se segue de qualquer p, ou, em outros termos, uma proposição
TALENTO
938
TAREFA
verdadeira se segue de qualquer outra proposição;
se p é falso, então p implica um q qualquer; ou, em outros termos, uma proposição falsa implica qualquer
outra proposição;
quaisquer que sejam pe q, ou p implica qou q implica p em outros termos, pelo menos uma de duas
proposições quaisquer implica a outra.
Essas conclusões derivam das T. de verdade, sobretudo da T. de implicação, que constitui a simplificação
e a generalização dos usos correntes na linguagem comum e nas disciplinas científicas (com exceção da
matemática), em que as relações puramente lógicas entre as proposições são submetidas a outras
condições mais restritivas. No entanto, continuam a dar ensejo a discussões que alguns lógicos (como
Tarsky) consideram ociosas.
Como dissemos no verbete IMPLICAÇÃO, a escola estóico-megárica, principalmente por meio de Fílon, foi
a primeira a criar a T. da implicação material. Na lógica moderna, a idéia da T. foi retomada por Boole
{Mathematical Analysis of Logic, 1847), por Frege {Begriffsschrift, 1879) e por Pierce (1885: cf. Coll.
Pap., 3.370 ss.), sendo difundida por Wittgenstein {Tractatus, 1921, 4.31).
TALENTO (lat. Talentum; in. Talent; fr. Talent; ai. Talent; it. Talento). O sentido metafórico desse termo,
derivado da parábola evangélica dos T. {Mat., 25, 14-30), é de "superioridade do poder cognoscitivo, que
não provém do ensino mas da aptidão natural do sujeito". Esta é a definição de T. encontrada em Kant
{Antr, I, § 54), que também distingue os T. em engenho produtivo, sagacidade e originalidade: este último
é o gênio. Essa doutrina kan-tiana foi repetida diversas vezes com poucas variações; está presente até na
psicologia moderna, embora acentuando-se a importância dos chamados T. específicos.
TALIÃO (gr. xò ávTUtE7tov9óç; in. Talion; fr. Talion; ai. Vergeltung; it. Taglione ou Contrap-passó).
Forma de justiça segundo a qual o ofen-sor deve sofrer o mesmo mal que causou ao ofendido. Segundo
relato de Aristóteles, foram os pitagóricos que definiram a justiça como retaliação {Et. nic, V, 5, 1132 b
21). Esse mesmo princípio inspira a lei mosaica do "olho por olho, dente por dente" {Levit., 24,17-21).
Dante modelou a estrutura moral do Inferno e do Purgatório segundo a lei de talião.
TALMUD. Este termo, que na língua hebraica significa "ensino", designa a coletânea enciclopédica da tradição judaica escrita em ara-maico, que foi compilada durante oitocentos anos (de 300
a.C. a 500 d.C.) na Palestina e na Babilônia. Essa obra não é um simples comentário do Antigo
Testamento, mas uma síntese de filosofia, teologia, história, ética e folclore judaicos, acumulados durante
oito séculos. O T. é composto por duas partes principais: o Misbnab, redigido na Palestina, e o Gemara,
que é um comentário do primeiro. O Gemara, compilado na Palestina, é denominado juntamente com o
Mishnah, T. de Jerusalém; por outro lado, o Gemara compilado na Babilônia é chamado, também com o
Mishnah, de T. da Babilônia (v. H. L. STRACK-P. BILLER-BECK, Kommentar zum Neuen Testament aus
Talmud und Midrasch, Mônaco, 1922-28).
TANATISMO (in. Thanatism, ai. Thanatis-mus; it. Tanatismo). Termo criado por E. Hae-ckel para
indicar a sua doutrina da mortalidade da alma, em oposição a atanatismo (v.).
TAOÍSMO (in. Taoism; fr. Taoisme, ai. Taois-mus; it. Taoismo). Doutrina de Lao-Tse (que viveu na
China provavelmente no séc. VI a.C), a quem se atribui o Tao Te Ching, isto é, o Livro do caminho e da
virtude. Em oposição ao caráter racionalista, terreno e prático do ensinamento de Confúcio, está o caráter
místico, religioso e contemplativo do ensinamento de Lao-Tse; nele encontramos vestígios do pan-teísmo
metafísico dos Upanishad. Os dois aspectos principais do T. são: monismo panteísta, segundo o qual o
tao, que é o caminho para a salvação, é também o princípio único do universo (todas as outras coisas suas
são manifestação); a ética do não fazer, ou seja, entrega à ação imanente do princípio cósmico e a
renúncia a interferir nele ou a obstá-lo. (v. A. WALEY, The Way and Its Power, 1934).
TAREFA (gr. êpTOV; lat. Officium; in. Task, fr. Tache, ai. Aufgabe, it. Compito). Limitação da atividade
de uma pessoa ou de uma coisa, para garantir o melhor resultado dessa atividade. Nesse sentido, Platão
entendia por T. de uma coisa "aquilo que só ela sabe fazer, ou pelo menos que faz melhor que qualquer
outra coisa" {Rep., I, 353 a); utilizava essa noção para definir a virtude (v.). No mesmo sentido e com o
mesmo fim, Aristóteles utilizou essa noção quando, para definir o que é felicidade, perguntava qual é "a
T. do homem"; e respondia que a T. do homem é a atividade da alma conforme à razão, e não
independentemente da razão {Et. nic, 1,6, 1098 a7). Esse conceito é freqüente, com o
TATO
939
TÉCNICA
mesmo significado, na filosofia contemporânea (v. FUNÇÃO; OPERAÇÃO).
TATO(in. Tact; fr. Tact; ai. Tact; it. Tattó). 1. Um dos cinco sentidos, que Condillac chamava de
"sentimento fundamental", porque este é o "sentimento que a estátua (v.) tem da ação recíproca das partes
do corpo e especialmente dos movimentos da respiração" {Traité des sensations, II, I). Segundo
Condillac, o T. é também o sentido do qual provém a noção do mundo exterior (Ibid., II, 8, 30 ss.).
2. Sabedoria do mundo ou espritdefinesse, como nas frases "ter T.", "proceder com T." ou "falar com T.",
etc.
TAT TWAM ASI. Uma das formas fundamentais da filosofia do Upanishad, que significa exatamente
"este és tu" e prescreve que todo homem deve reconhecer-se idêntico, em seu princípio (ou átmari), a
qualquer ser ou coisa que esteja diante dele, pois o princípio universal, ou Brahman, é idêntico em tudo.
Essa locução indiana encontra-se especialmente no Chandogya-Upanishad (VI, 8, 7 ss.).
TAUTOLOGIA (in. Tautology, fr. Tautolo-gie, ai. Tautologie, it. Tautologid). Na terminologia filosófica
tradicional, T. significa genericamente um discurso (em especial, uma definição) vicioso porquanto inútil,
visto repetir na conseqüência, no predicado ou no defi-niens o conceito já contido no primeiro membro:
"M. de Ia Palisse, quinze minutos antes de morrer, ainda estava vivo". É só na álgebra da lógica que o
termo "T" adquire significado técnico, porquanto se introduzem com o nome de lei de T. os teoremas (1) a
u a = a, (2) a n a = a [(1): a afirmação disjuntiva de uma mesma proposição p consigo mesma eqüivale à
simples afirmação de p, a soma de uma classe a a si mesma é igual à simples classe a; (2) a afirmação
conjuntiva de uma mesma proposição p consigo mesma eqüivale à simples afirmação de p, a interferência
de uma classe a em si mesma é igual à classe a pura e simples]. Ao lado dessa lei, em Principia
mathematica, Whitehead e Russell introduzem um princípio de T: p v p. D p. [a afirmação disjuntiva de
uma mesma proposição p consigo mesma implica materialmente a mesma p: "se p ou p, p"]. Em
Wittgenstein {Tractatus, 1922, 4.46), o conceito de T. adquire notável importância, passando a designar
uma proposição molecular (funcional), cujo valor-verdade é "verdadeiro", sejam quais forem os valoresverdades das proposições atômicas (variáveis proposicionais)
que a compõem; p. ex., "/>v ~ p' ["chove ou não chove' ]. Wittgenstein — adotado a contragosto por
Russell — chega a afirmar que a matemática pura (inclusive a Lógica) constam exclusivamente de T.,
aliás são a classe de todas as possíveis T. (Tractatus, cit., 6. I, 6.22). Na lógica atual (pós-Wittgenstein), o
conceito de T. perdeu importância e foi substituído por uma multiplicidade de noções análogas, como
proposição analítica, C-verdadeira, L-verda-deira, conforme os casos e conforme os pontos de vista
filosóficos dos diferentes autores. G. P. TAXIONOMIA (in. Taxonomy, fr. Taxino-mie, ai. Taxinomie, it.
Tassonomid). Teoria da classificação nas ciências naturais. Termo cunhado e usado no séc. XIX. São
chamadas de taxionômicas a botânica e a história natural.
TEÂNDRICO (in. Theandric; fr. Théan-drique, it. Teandricó). Termo da teologia cristã que se refere à
união da natureza humana e da natureza divina na pessoa do Cristo.
TEANTROPISMO (in. Theantrophism, fr. Théantropisme, ai. Theantropismum; it. Tean-tropismó). 1.
Doutrina da união da natureza divina e da humana na pessoa do Cristo. 2. O mesmo que antropomorfismo
(v.). TÉCNICA (in. Technic; fr. Technique. ai. Technik, it. Técnica). O sentido geral desse termo coincide
com o sentido geral de arte (v.): compreende qualquer conjunto de regras aptas a dirigir eficazmente uma
atividade qualquer. Nesse sentido, T. não se distingue de arte, de ciência, nem de qualquer processo ou
operação capazes de produzir um efeito qualquer: seu campo estende-se tanto quanto o de todas as
atividades humanas. É preciso, porém, chamar a atenção para o fato de que nesse significado do termo,
que é bastante antigo e geral, não se inclui o significado atribuído por Kant, que falou de técnica da
natureza para indicar a causalidade dela (Crít. do Juízo, § 72), mas negou que a filosofia —
especialmente a filosofia prática — pudesse ter uma técnica, porque não pode contar com uma
causalidade necessária (Met. der Sitten, Intr., § II). O pressuposto desse significado, porém, é a redução
de T. a procedimento causai, ao passo que esse termo foi entendido (da melhor maneira) como
procedimento qualquer, regido por normas e provido de certa eficácia.
Nessa esfera de significado generalíssimo incluem-se, portanto, os procedimentos mais díspares; estes,
porém, podem ser divididos, grosso modo, em dois campos diferentes: A) T.
TÉCNICA
940
TÉCNICA
racionais, que são relativamente independentes de sistemas particulares de crenças, podem levar à
modificação desses sistemas e são auto-corrigíveis; B) T. mágicas e religiosas, que só podem ser postas
em prática com base em determinados sistemas de crenças; não podem, portanto, modificar esses sistemas
e apresentam-se também como não-corrigíveis ou não-modificáveis. Essas T. constituem um dos dois
elementos fundamentais de qualquer religião e podem ser indicadas com o nome genérico de ritos (v.).
As T. racionais, por sua vez, podem ser distinguidas em: ls
T. simbólicas (cognitivas ou estéticas), que são
as da ciência e das belas artes; 2a
T. de comportamento (morais, políticas, econômicas, etc); 3fi T. de
produção.
l
s
As T. cognitivas e artísticas podem ser chamadas de simbólicas porque consistem essencialmente no uso
dos signos. Distinguem-se dos métodos (v.) que, a rigor, são indicações gerais sobre o caráter das T. a
serem seguidas. As T. simbólicas podem ser: de explicação, de previsão ou de comunicação, mas essas
distinções não são mutuamente excludentes.
2
S
As T. de comportamento do homem em relação a outro homem cobrem um campo extensíssimo que
compreende zonas díspares: vão das T. eróticas às de propaganda, das T. econômicas às morais, das T.
jurídicas às educacionais, etc. Nesse grupo também podem ser incluídas as T. organizativas, que visam a
encontrar condições para obter o rendimento máximo com o mínimo esforço em todos os domínios da
atividade humana. Essa técnica é tratada pela tectologia (v.) ou praxíologia (v.).
3
Q
O terceiro grupo de T. é o que diz respeito ao comportamento do homem em relação à natureza e visa à
produção de bens. Nesse sentido, a T. sempre acompanhou a vida do homem sobre a terra, sendo o
homem — como já notava Platão (.Prot., 321 c) — o animal mais indefeso e inerme de toda a criação.
Portanto, para que qualquer grupo humano sobreviva, é indispensável certo grau de desenvolvimento da
T., e a sobrevivência e o bem-estar de grupos humanos cada vez maiores são condicionados pelo
desenvolvimento dos meios técnicos. O primeiro filósofo a reconhecer essa verdade foi Francis Bacon, no
começo do séc. XVII. Para ele, a atuação da ciência tinha em vista o bem-estar do homem e visava a
produzir, em última análise, descobertas que facilitassem a vida do homem na terra. Quando, em
Nova Atlântida, quis dar a imagem de uma cidade ideal, não sonhou formas perfeitas de vida social ou
política, mas imaginou um paraíso da T., onde fossem levadas a efeito as invenções e as descobertas de
todo o mundo. O sansimonismo (v.) e o positivismo (v.) do séc. XIX compartilharam a exaltação baconiana da técnica. Só depois do fim do século passado e nas primeiras décadas do séc. XX foi que começou a
manifestar-se o que hoje se chama de problema da T. que nasceu das conseqüências produzidas pelo
desenvolvimento da T. do mundo moderno sobre a vida individual e social do homem. Antes da Segunda
Guerra Mundial, o conflito entre homem e T. foi o tema predileto da literatura profetizadora. Os profetas
da decadência e da morte da civilização ocidental (p. ex., O. SPENGLER, Der Mensch unddie Technik,
1931), os defensores da espiritualidade pura (p. ex., D. ROPS, Le monde sans âme, 1932) haviam já
identificado na máquina a causa direta ou indireta da decadência espiritual do homem. Segundo esses
diagnósticos, o mundo em que a máquina domina não tem alma, é nivelador e mortificante: um mundo
onde a quantidade tomou o lugar da qualidade e onde o culto dos valores do espírito foi substituído pelo
culto dos valores instrumentais e utilitários. Depois do fim da Segunda Guerra Mundial, essas acusações
foram reforçadas e desenvolvidas; estão presentes em toda a obra de Albert Camus (v., p. ex., Ni
bourreaux ni victimes, 1946). Para outros, o mal do "maquinismo" estaria no desarraiga-mento que ele
produz no homem (S. WEIL, L'enracinement, 1948). Ao condenarem a T., outros ainda implicam a
"razão", que seria seu princípio, ou acalentam a utopia de um retorno à produção artesanal (M. DE CORTE,
Essaisurla fin d'une civilisation, 1949; L. DUPLESSY, La machine ou 1'homme, 1949). Por outro lado, a
partir da obra de HUSSERL, A crise das ciências européias (1954), a T. e a ciência em que ela se baseia
passaram a ser freqüentemente consideradas uma degradação ou uma traição da Razão Autêntica, pois
escravizam a razão a objetivos utilitários, ao passo que sua verdadeira função é o conhecimento
desinteressado do ser, a contemplação. Esse conceito constitui a base4e todas as críticas dirigidas à
sociedade contemporânea, que estaria fundada na técnica e dominada pela tecnocracia (v.).
Mas hoje há uma vasta literatura que, apesar de não partir de preconceitos metafísicos,
TÉCNICA
941
TECNOCRACIA
ideológicos ou teológicos, evidencia os aspectos negativos da T., que podem ser resumidos da seguinte
maneira:
I
a
exploração intensa dos recursos naturais, acima dos limites de seu restabelecimento natural, portanto o
empobrecimento rápido e progressivo desses recursos;
2
S
poluição da água e do ar por dejetos industriais, com a multiplicação dos meios mecânicos de
transporte e com a maior densidade demográfica;
3
a
destruição da paisagem natural e dos monumentos históricos e artísticos, em decorrência da
multiplicação das indústrias e da expansão indiscriminada dos centros urbanos;
4
a
sujeição do trabalho humano às exigências da automação, que tende a transformar o homem em
acessório da máquina;
5
a
incapacidade da T. de atender às necessidades estéticas, afetivas e morais do homem; portanto, sua
tendência a favorecer ou determinar o isolamento e a incomunicabilidade dos indivíduos.
No que diz respeito aos três primeiros fatores, pode-se recorrer a uma contratécnica, que seria uma T. (ou
um conjunto de T.) capaz de contrabalançar ou de corrigir os efeitos devastadores da T.: seus meios
seriam suficientemente potentes para diminuir (senão equilibrar) os efeitos da devastação. O quarto e o
quinto aspectos são humanos, morais e políticos; costumam ser considerados como constituintes do
fenômeno da alienação (v.).
Tanto em suas formas primitivas quanto nas requintadas e complexas, presentes na sociedade
contemporânea, a T. é um instrumento indispensável para a sobrevivência do homem. Seu processo de
desenvolvimento parece irreversível porque só dele dependem as possibilidades de sobrevivência de um
número cada vez maior de seres humanos e seu acesso a um padrão de vida mais elevado. Inclusive a
diferença entre T. e ciência, em que às vezes ainda se insiste, parece diminuir ou atenuar-se quando se
consideram as tarefas hoje atribuídas à ciência (v.). Hoje, o único remédio aos reais perigos da T. parecem
ser o seu robuste-cimento e o seu desenvolvimento em todos os campos, e não a renúncia a seus
benefícios. Isso se traduziria em, por um lado, buscar novos instrumentos que não só controlassem mas
também protegessem a natureza e, por outro, buscar novas T. de relacionamento humano que pudessem
controlar e corrigir os efeitos
malignos das T. produtivas sobre o homem. A esperança de que isso possa acontecer baseia-se apenas no
fato de que a própria T. produtiva está a exigir cada vez mais que o homem tenha exatamente as
capacidades de iniciativa, imaginação criativa e solidariedade que o próprio sistema tecnológico parecia
ameaçar.
TECNICISMO (in. Technicism, ai. Techni-zismus; it. Tecnicismó). 1. O mesmo que técnica. Kant usa
esse termo para indicar a técnica da natureza, ou seja, o mecanicismo (Crít. do Juízo, § 78).
2. Uso de palavras ou frases pertencentes à linguagem técnica.
TECNOCRACIA (in. Technocracy, fr. Tech-nocratie, ai. Technokratie, it. Tecnocrazid). Uso da técnica
como instrumento de poder por parte de dirigentes econômicos, militares e políticos, em defesa de seus
interesses, considerados concordantes ou unificados, com vistas ao controle da sociedade. Esse é o
conceito de T. que se encontra nos escritores mais qualificados (p. ex., C. W. MILLS, The Power Elite,
1956), que permite defini-la como "a filosofia autocrá-tica das técnicas" (G. SIMONDON, DU monde
d'existence des objets techniques, 1958). Assim, as críticas mais radicais feitas à sociedade
contemporânea trazem à baila a T. A ela é imputada não só a responsabilidade por todos os males da
técnica (para os quais, ver TÉCNICA) e por não poder nem querer fazer nada para eliminá-los, como
também a responsabilidade de suprimir ou bloquear a liberdade de escolha do homem em todos os
campos de atividade (do trabalho ao divertimento), com uma determinação interna que o impede de
exercer sua razão crítica e reprime seu instinto vital e a livre procura da felicidade. Marcuse escreveu: "O
aparato produtivo tende a tornar-se totalitário na medida em que determina não só as ocupações, as
habilidades e os comportamentos socialmente necessários, mas também as necessidades e as aspirações
individuais. (...) A tecnologia serve para instituir novas formas de controle e coerção social mais eficazes
e mais agradáveis" {One Dimensional Man, 164, p. XV). Desse ponto de vista, a T. (chamada também de
"The Establishment" ou "O Sistema" por antono-másia) exercitaria um determinismo necessitan-te sobre
todas as atividades humanas e impediria ou bloquearia qualquer forma de crítica social, qualquer
possibilidade de transformação. Por outro lado, porém, admite-se (como faz o próprio Marcuse, Ibid., p.
238) que "a racio-
TECNOLOGIA
942
TEÍSMO
nalidade pós-tecnológica" possa transformar a técnica em meio de pacificação e em instrumento para a
arte de viver, nesse caso, a função da razão — cujo uso instrumental deu origem à T. — convergiria para a
função da arte.
Outras vezes, põe-se em dúvida o caráter monolítico e necessitante da tecnocracia. Gal-braith fala de
tecnoestrutura para designar a formação pluralista e heterogênea dos grupos que dirigem a sociedade
industrial, admitindo a possibilidade de minimizar a subordinação das crenças às necessidades do sistema
industrial e de considerar este último apenas "uma parte da vida (uma parte em processo de diminuição)",
que pode ser subordinada aos fins estéticos que constituem a dimensão da vida e possibilitam a liberdade
individual ( The New Industrial State, 1964, p. 399). Às vezes também se apresenta uma conotação "não
pejorativa" de T. em correlação com o conceito mais compósito que se tem hoje de classe social (cf., p.
ex., A. Tou-RAINE, La sociétépos-industrielle, 1969, cap. I).
TECNOLOGIA (in. Technology, fr. Techno-logie, ai. Technologie, it. Tecnologia). 1. Estudo dos
processos técnicos de determinado ramo da produção industrial ou de vários ramos.
2. O mesmo que técnica.
3. O mesmo que tecnocracia.
TECTOLOGIA. Termo criado pelo filósofo russo A. Bogdanov para indicar uma "ciência organizativa
universal", que ensina a construir o mundo a partir dos elementos neutros dados na experiência
(Tektologija, 1923). Essa disciplina, que também cuida da organização de todas as atividades humanas
com o fim de determinar as condições de seu máximo rendimento, foi depois chamada (nesse aspecto) de
praxiologia (v.) por Kotarbinsky. Integra os estudos de organização e administração, de economia política
e cibernética (cf. CAUDE, MOLES e outros, Méthodologie vers une science de Tac-tion, Paris, 1964).
TÉDIO (in. Boredom; fr. Ennui; ai. Lan-gweile, it. Noia). Moralistas e filósofos algumas vezes insistiram
no caráter cósmico e radical desse sentimento. "Sem o divertimento" — dizia Pascal — "haveria o T., e
este nos levaria a buscar um meio mais sólido para sair dele. Mas o divertimento nos deleita e assim nos
faz chegar distraídos à morte" iPensées, 171). Sho-penhauer observou que "tão logo a miséria e a dor
concedem uma trégua ao homem, o T. chega tão perto que ele necessita de um passatempo"; por isso,
segundo ele, a vida oscilava continuamente entre a dor e o T. (Die Welt, I, § 57). Com mais profundidade e antecipando o existencialismo,
Leopardi via no T. a experiência da nulidade de tudo o que é: "O que é o T.?" — perguntava. "Nenhum
mal ou dor em especial (aliás, a idéia e a natureza do T. excluem a presença de qualquer mal ou dor), mas
apenas a vida plenamente sentida, experimentada, conhecida, plenamente presente no indivíduo,
ocupando-o por inteiro" (Zibaldone, VI, p. 421). Heidegger repetiu essas idéias, percebendo no T. o
sentimento que revela a totalidade das coisas existentes, em sua indiferença: "O verdadeiro T. não é
aquele provocado por um livro, por um espetáculo ou por um divertimento que nos maçam, mas o que
nos invade quando 'nos entediamos': o T. profundo que, como névoa silenciosa, recolhe-se nos abismos de
nosso existir, comunga homens e coisas, nós com tudo o que há em torno de nós, numa singular
indiferença. Esse é o T. que revela o existente em sua totalidade" (Was ist Me-taphysik?, 5
a
ed., 1949, p.
28). Nesse sentido, o T. está muito próximo da náusea (v.), de que fala Sartre, também ela experiência da
indiferença das coisas em sua totalidade. Seu precedente talvez possa ser vislumbrado na melancolia
(.Schwermui), que, segundo Kierkegaard, é a desembocadura inevitável da vida estética. "Se
perguntarmos a um melancólico qual a razão para ser assim e o que o desgosta, responderá que não sabe,
que não pode explicar. Nisso consiste a infinidade da melancolia" (En-tweder-Oder, em Werke, II, p. 171).
Nesse sentido, melancolia é a acídia medieval (Ibid., II, 168), sendo considerada por Kierkegaard a
"histeria do espírito", o pecado fundamental, porquanto "é pecado não querer com profundidade e
sentimento" (Jbid., p. 171).
TEÍSMO (in. Theisni; fr. Théisme, ai. Theis-mus, it. Teismo). Este termo, usado desde o séc. XVII para
indicar genericamente a crença em Deus, em oposição a ateísmo (assim também em Voltaire,
Dictionnaire philosophique, a. Théiste), foi definido por Kant, no seu significado específico, em oposição
a deísmo (v.). Kant diz: "Quem só admite uma teologia transcendental é chamado de deísta; quem admite
também uma teologia natural é chamado de teísta. O primeiro admite que com a razão apenas podemos
conhecer um Ser originário do qual só temos um conceito transcendental, de Ser que tem realidade mas
que não pode ter nenhuma determinação a mais. O segundo afir-
TELEGNOSE
943
TELEPATIA
ma que a razão tem condições de dar mais determinações do objeto segundo a analogia com a natureza,
ou seja, pode determiná-lo como Ser que, por intelecto e liberdade, contenha em si o princípio originário
de todas as outras coisas. Aquele representa esse Ser apenas como causa do mundo (sem decidir se é uma
causa que age pela necessidade de sua natureza ou por liberdade), este representa-o como um criador do
mundo" {Crít. R. Pura, Diál. transe, III, seç. 7). Em outros termos, o deísta pode ser também panteísta e
acreditar na necessidade da relação entre Deus e o mundo, embora também possa não ser; o teísta
contrapõe-se ao panteísta. Ademais, indo além daquilo em que a razão pura permite acreditar, o teísta
afirma a respeito de Deus qualidades ou características não testemunhadas pela razão, mas pela revelação;
nesse sentido, como Kant diz mais adiante, no mesmo trecho, ele crê num "Deus vivo" (v. também Crít.
do Juízo, § 72). Essas observações de KANT definiram o significado do termo no uso contemporâneo, em
virtude do que T. se contrapõe não só a ateísmo mas também a deísmo e a panteísmo, admitindo-se Deus
como pessoa, embora em sentido mais elevado do que o comumente atribuído ao homem.
Nesse sentido, o T. é um aspecto essencial do espiritualismo (ou personalismo) contemporâneo,
especialmente na sua reação ao idealismo romântico, que é sempre tendencialmen-te panteísta. O T. foi
explicitamente defendido tanto pelo espiritualismo que reagiu ao hege-lianismo clássico (Fichte Júnior,
Lotze e outros) ou ao positivismo (Renouvier, Boutroux e outros), quanto pelo espiritualismo que reagiu
ao neo-idealismo romântico surgido nas primeiras décadas do séc. XX na Inglaterra, nos Estados Unidos
e na Itália, do qual o próprio espiritualismo extrai muitos dos seus temas. (V. para o T. anglo-saxão W. E.
HOCKING, Meaning of God in Human Experience, 1912; A. SETH PRINGLE-PATTISON, Theldea ofGod in
theLightof Recent Philosophy, 1917; CLEMENT C. J. WEBB, God andPersonality, 1920, etc. Para o T.
italiano: as obras de Carlini, Guzzo, Sciacca e outros).
TELEGNOSE (in. Telegnosis). O mesmo que vidência: faculdade de conhecer acontecimentos distantes
sem auxílio dos meios de conhecimento normais (v. TELEPATIA).
TELEGRAMA, ARGUMENTO DO (in. Te-legram argument; ai. Telegrammbeispiel; it. Argomento deltelegrammd). Argumento ou exemplo aduzido por F. A. Lange para ilustrar a tese materialista
de que as reações psíquicas dependem dos estímulos físicos e de que é possível reduzir o que comumente
se chama de alma ou consciência a mecanismos fisiológicos. O T. que anuncia a um comerciante a
falência de um de seus correspondentes determina uma série de reações que podem ser fisiologicamente
descritas do mesmo modo como se descreve fisicamente (em termos de ondulações luminosas) o estímulo
que as provocou {Geschichte des Materialismus, II, III, 2 e anotação 39; trad. it., II, pp. 385 ss. e 661 ss.).
Algumas vezes esse argumento foi invertido e usado para demonstrar a relativa independência das
reações em relação aos estímulos. O T. "Seu filho morreu" difere só por uma letra do T. "Meu filho
morreu", mas produz uma reação completamente diferente que não corresponde à diferença física entre os
estímulos, nas pessoas que os recebem (v. C. D. BROAD, The Mind and its Place in Nature, 1925, pp. 118
ss.).
TELEÓCLISE (ai. Teleoklisè). Tendência à atividade finalista, considerada própria dos organismos
vivos. Termo raro.
TELEOFOBIA (ai. Teleophobié). Aversão ao finalismo.
TELEOLOGIA (in. Teleology, fr. Téléologie, ai. Teleologia; it. Teleologià). Este termo foi criado por
Wolff para indicar "a parte da filosofia natural que explica os fins das coisas" (Log., 1728, Disc. prael, §
85). O mesmo que finalismo (v.).
TELEONOMIA. (in. Teleonomy, fr. Téléo-nomie, it. Teleonomiã). Termo usado pelos biólogos modernos
para indicar a adaptação funcional dos seres vivos e de seus artefatos à conservação e à multiplicação da
espécie. Deu-se o nome de informação teleonômica à quantidade de informações que deve ser transmitida
para que as estruturas vitais sejam realizadas e conservadas (cf., p. ex., J. MONOD, Le hasard et Ia
necessite, 1970, pp. 26 ss.)
TELEOSE (ai. Teleosis). Perfeição. É a transcrição fonética da palavra grega.
TELEPATIA (in. Telepathy, fr. Télépathie, ai. Telepathie, it. Telepatia). Uma forma de teleg-nose, mais
precisamente a que consiste em conhecer os estados do espírito de pessoas distantes ou de saber o que
lhes está acontecendo, sem a ajuda dos meios de conhecimento normais. Esse termo foi proposto pela
Society for Psychical Researches, de Londres, em 1882,
TEMA
944
TEMPO
e comumente aceito. Às vezes, como sinônimo, usa-se Telestesia (v. D. J. WEST, Psychical Research
Today, 1954, cap. VI).
TEMA (lat. Thema; in. Theme, fr. Thème, ai. Thema; it. Tema). Assunto ou objeto de indagação, discurso
ou estudo. Na terminologia filosófica contemporânea são também usados os termos tematizar e
tematizaçâo para indicar a escolha ou a formação dos T., que é uma fase importante e muitas vezes
decisiva da investigação. Heidegger, em especial, entendeu por tematizaçâo a manifestação dos seres
intra-mundanos, em virtude do que tornam-se objetos (Sein und Zeit, 69 b).
TEMPERAMENTO (gr. Kpãoiç; lat. Tempera-mentum-, in. Temper, fr. Tempérament; ai. Tempérament;
it. Temperamento). Disposição do homem a agir de um modo ou de outro segundo a mescla de humores
que compõem seu corpo. A teoria do T. foi criada pelo pai da medicina, Hipócrates (séc. V a.C), e
propagou-se como teoria médica. Hipócrates admitia quatro humores fundamentais: sangue, fleuma
(linfa, soro, muco nasal e intestinal, saliva), bile amarela e atrabile ou bile negra (considerada como
secreção do pâncreas), correspondentes aos quatro elementos do macrocosmo. Conforme o humor
predominante, temos os quatro T. fundamentais: sangüíneo, fleumático, bilioso e melancólico ou
atrabiliário. {De nat. hom., 4). Encontram-se alusões a essa teoria ou a teorias semelhantes em Platão (O
Banq., 188a; Tim., 86B), em Aristóteles {Problem., 30, 1), em Sê-neca {De ira, II, 18 ss.), em Lucrécio
{De rer. nat., III, 288 ss.), em Plutarco {Quaest. nat., 26) e em outros, sem ligação com os pressupostos
filosóficos de que esses autores partem, como demonstra a sua unânime aceitação. Na Idade Média a
teoria dos T. também foi propagada por meio da medicina, especialmente árabe (Avicena e Averróis),
chegando aos médicos e magos do Renascimento. Paracelso substituiu os humores hipocráticos por seus
três elementos (enxofre, sal e mercúrio), na classificação dos temperamentos. Contudo, a noção de T. não
sofreu modificação até Kant, que, para resumi-la, distinguiu o aspecto fisiológico e o aspecto psicológico
do T. "Fisiologicamente falando, o T. é formado pela constituição física (estrutura forte ou fraca) e pela
compleição (fluido posto regularmente em movimento pela força vital, no que se inclui o calor ou o frio
produzido na elaboração desses humores). Psicologicamente falando, como T. da alma (do
poder afetivo e apetitivo), essa expressão, derivada da propriedade do sangue, refere-se à analogia entre
os sentimentos e os desejos com as causas físicas e motoras (das quais a principal é o sangue)" (Antr, II,
2). Depois, Kant retomaria a antiga classificação hipocrática dos T., que muitas vezes também teve
aceitação na psicologia moderna (p. ex., V. WUNDT, Phy-siologischePsychologie, II4
, pp. 519 ss.). Mas na
psicologia, essa palavra deixou de ser usada desde o fim do século XTX, sendo substituída por caráter
(v.).; que numa das suas acepções significa a estrutura orgânica originária que condiciona as disposições
naturais do indivíduo. O uso da palavra caráter marca também a passagem dessa noção do domínio da
medicina para o da psicologia e da filosofia.
TEMPERANÇA (gr. aaxppocrúvri; lat. Tempe-rantia; in. Temperance, fr. Tempérance, ai. Besonnenheit; it. Temperanza). Uma das virtudes éticas de Aristóteles, mais precisamente a que consiste no
justo uso dos prazeres físicos. Aristóteles notava que a T. não se refere a todos os prazeres físicos (não
compreende, p. ex., os que derivam da visão ou da audição), mas apenas os que derivam da alimentação,
da bebida e do sexo {Et. nic, III, 9-12). Platão definiu a T. de modo diferente: para ele, era "a amizade e a
concordância das partes da alma, existentes quando a parte que comanda e as que obedecem concordam
na opinião de que cabe ao princípio racional governar, e assim não se lhe opõem"; segundo Platão, isso é
T., tanto para o indivíduo quanto para o Estado {Rep., IV. 442 b). Os estóicos definiram a T. como "a
ciência das coisas a serem desejadas e das coisas a serem evitadas" Q. STOBEO, Ecl, II, 6, 102). A ética de
Demócrito também cuidou do assunto: "A sorte nos dá a mesa suntuosa; a T. nos dá a mesa em que nada
falta" {Fr. 210, Diels).
TEMPO (gr. xpóvoç; lat. Tempus; in. Time, fr. Temps; ai. Zeit; it. Tempo). Podemos distinguir três
concepções fundamentais: I
a
o T. como ordem mensurável do movimento; 2-o T. como movimento
intuído; 3a
o T. como estrutura de possibilidades. À primeira concepção vinculam-se, na Antigüidade, o
conceito cíclico do munijo e da vida do homem (me-tempsicose) e, na época moderna, o conceito
científico de tempo. À segunda concepção vincula-se o conceito de consciência, com a qual o T. é
identificado. A terceira concepção, derivada da filosofia existencialista, apresenta algumas inovações na
análise do conceito de tempo.
TEMPO
945
TEMPO
I
a A concepção de T. mais antiga e difundida considera-o como ordem mensurável do movimento. Os
pitagóricos, ao definirem o T. como "a esfera que abrange tudo" (a esfera celeste), relacionaram-no com o
céu, que com o seu movimento ordenado permite medi-lo perfeitamente (ARISTÓTELES, Fts., IV, 10, 218 a
33). Ao definir o T. como "a imagem móvel da eternidade", Platão {Tim., 37 d) pretende dizer que, na
forma dos períodos planetários, do ciclo constante das estações ou das gerações vivas e de qualquer
espécie de mudança, ele reproduz no movimento a imutabilidade do ser eterno {Ibid., 38 b-39 d). A
definição de Aristóteles, "o T. é o número do movimento segundo o antes e o depois" {Fís., IV, II; 219 b
1), é a expressão mais perfeita dessa concepção, que identifica o T. com a ordem mensurável do
movimento. Não é diferente o significado da definição dos estóicos, segundo a qual o T. é "o intervalo do
movimento cósmico" (DIÓG. L., VII, 141). Na verdade, intervalo não passa de ritmo, ordem, movimento
cósmico. Talvez não seja diferente tampouco o significado da definição de Epi-curo: "O T. é uma
propriedade, um acompanhamento do movimento" 0' STOBEO, Ecl., I, 8, 252). Na Idade Média, essa
concepção do T. foi compartilhada por realistas (ALBERTO MAGNO, S. Th., I, q. 21, a. I; S. TOMÁS, S. Th.,
1. q. 10, a. 1) e por nominalistas (OCKHAM, In Sent, II, q. 12), que repetiram unanimemente a definição de
Aristóteles. Telésio, que criticava essa definição, reduziu o T. à duração e ao intervalo do movimento {De
rer. nat., I, 29). Hobbes definiu o T. como "imagem (phantasmà) do movimento, na medida em que
imaginamos no movimento o antes e o depois, ou seja, a sucessão"; "; considerava que essa definição
estava de acordo com a de Aristóteles {De corp., 7, 3). Descartes simplesmente repetia essa última,
definindo o T. como "número do movimento" {Princ. phil, I, 5 7). Locke criticava a vincu-lação do T. ao
movimento, estabelecida pela definição de Aristóteles, só para afirmar que o T. está ligado a qualquer
espécie de ordem constante e repetível: "Qualquer aparição periódica e constante, ou mudança de idéias,
que acontecesse entre espaços de duração aparentemente eqüidistantes, e fosse constante e universalmente
observável, poderia servir para distinguir intervalos do T. tão bem quanto as que foram usadas na
realidade" {Ensaio, II, 14, 19). Para definir o T., Berkeley substituía a ordem do movimento pela ordem
das idéias,
ou melhor, a ordem do movimento externo pela ordem do movimento interno: "Se eu tentar construir uma
simples idéia do T. abstraindo da sucessão de idéias de meu espírito, que flui uniformemente e é
compartilhada por todos os seres, estarei perdido e embaraçado por dificuldades inexplicáveis"
{Principies ofHuman Knowledge, I, 98).
Essa concepção de T. fundamentou a mecânica de Newton, que distinguia o T. absoluto e o T. relativo,
mas a ambos atribuía ordem e uniformidade. "O T. absoluto, verdadeiro e matemático, na realidade e por
natureza, sem relação com nada de externo, flui uniformemente {aequabiliter) e também se chama
duração. O T. relativo, aparente e comum é uma medida sensível e externa da duração por meio do
movimento" {Naturalis philosophiae principia, I, def. VIII). Nessa definição de Newton, o uniforme fluir
da duração absoluta é confrontado com a uniformidade do movimento que é tomado como medida do
tempo. Leibniz esclarecia o mesmo conceito do seguinte modo: "Co-nhecendo-se as regras dos
movimentos não uniformes, é possível relacioná-los com os movimentos uniformes inteligíveis e prever
com este meio o que acontecerá a diferentes movimentos reunidos. Nesse sentido, o T. é a medida do
movimento, ou seja, o movimento uniforme é a medida do movimento não uniforme" {Nouv. ess., II,
14,16). Portanto, definia o T. como "uma ordem de sucessões" {Troisième lettre ã Clarke, § 4): definição
aceita por Wolff {Ont., § 572) e por Baumgarten {Mel, § 239)- Essa era a concepção a que Kant se referia
implicitamente, ao afirmar, em Estética transcendental, a idealidade transcendental do T., ao lado de sua
realidade empírica (v. mais adiante). Mas a principal contribuição de Kant na interpretação do conceito de
T. não está na Estética transcendental, mas na Analítica dos princípios, mais precisamente no estudo da
segunda analogia, ou "princípio da série temporal segundo a lei da causalidade". Aí Kant reduz ordejfl de
sucessão a ordem causai. Afirma que uma coisa só "pode conquistar seu lugar no T. com a condição de
que no estado precedente se pressuponha outra coisa à qual esta sempre deva seguir-se, ou seja, segundo
uma regra". A série temporal não pode inverter-se porque, "uma vez posto o estado precedente, o
acontecimento deve seguir-se infalível e necessariamente"; portanto, "é lei necessária de nossa
sensibilidade e, conse-
TEMPO
946
TEMPO
qüentemente, condição formal de todas as percepções que o T. precedente determine necessariamente o
seguinte". Isso realmente permite a distinção entre percepção real do T. e imaginação, que poderia e pode
inverter a ordem dos eventos, transformando a sucessão temporal em "único critério empírico do efeito
em relação à causalidade da causa" (Crít. R. Pura, Anal. dos princ, cap. II, seç. III, 3). Essa redução do T.
à ordem causai, defendida por Kant em relação ao conceito de T. dominante em sua época (derivada da
física newtoniana), foi reapresentada em nossos dias com relação à física einsteiniana. Ao afirmar a
relatividade da medida temporal, Einstein na realidade não inovou o conceito tradicional de T. como
ordem de sucessão: só negou que a ordem de sucessão fosse única e absoluta (v. Über die spezielle und
die allgemeine Relativitàtstheorie, 1921, §§ 8-9). Em confronto com a física de Einstein, H. Reichenbach
voltou a propor a tese kantiana da identidade do T. com a causalidade: "O T. é a ordem das cadeias
causais: este é o principal resultado das descobertas de Einstein" (Albert Einstein: Philosopher-Scientist,
ed. por P. A. Schilpp, 1949, pp. 289 ss.). "A ordem do T., a ordem do antes e do depois, é redutível à
ordem causai. (...) A inversão da ordem temporal para certos eventos, resultado que deriva da relatividade
da simultaneidade, é apenas uma conseqüência desse fato fundamental. Uma vez que a velocidade de
transmissão é limitada, existem eventos tais que nenhum deles pode ser causa ou efeito do outro. Para tais
eventos, a ordem do T. não é definida, e cada um deles pode ser chamado de posterior ou anterior ao
outro" (Ibid., 1949, pp. 289 ss.). Esses mesmos conceitos foram explicados por Reichenbach em seu livro
póstumo The Direction ofTime (1956), no qual identifica a ordem do T. com a causalidade, e a direção do
T. com a entropia crescente (v. especialmente §§ 6, 16).
A redução do T. a causalidade pode ser considerada a mais importante (mas não por isso a mais
consistente) proposição filosófica apresentada no campo da concepção do T. como ordem. Ao contrário,
tem bem menos importância a discussão — a que muitas vezes os filósofos se inclinaram — sobre a
subjetividade ou objetividade do T. Foi Aristóteles quem deu início a tais discussões, chegando à
conclusão de que, se por um lado o T. como medida não pode existir sem a alma — pois só a alma pode
medir —, por outro lado o movimento ao qual a medida se refere não depende da alma (Fís., IV, 14. 223 a
20-29). No séc. XIV, retomando essas considerações, Ockham afirmava que não existiria T. se a alma não
pudesse medir nem numerar (In Sent., II. q. 12). Até Hobbes chamava o T. de imagem (v. definição citada
anteriormente). Menos significativa é a redução do T., de autoria de Locke e de Berkeley, à ordem das
idéias: porque as idéias, para esses filósofos, são os únicos objetos de que se pode falar. Quanto ao
"subjetivismo" da concepção kantiana, segundo a qual o tempo é "intuição pura", condição de qualquer
percepção sensível, não passa de mal-entendido, pois só o T. pode ser considerado subjetivo com relação
às coisas em si, que estão além da consideração humana, mas é objetivo e real em relação às coisas
naturais, em virtude do que o T. tem "realidade empírica" indubitável (Crít. R. Pura, §§ 6, 7). Além disso,
o objetivismo da concepção kantiana é demonstrado pela redução do T. à ordem causai: tese a que os neoem-piristas chegaram sem conhecer sua prove-niência kantiana.
2- A segunda concepção fundamental de T. considera-o como intuição do movimento ou "devir intuído".
Esta última definição é de He-gel, que acrescenta ser "o T. o princípio mesmo do Eu = Eu, da
autoconsciência pura, mas é esse princípio ou o simples conceito ainda em sua completa exterioridade e
abstração" (Ene, § 258). Portanto, Hegel não identifica o T. com a consciência, mas com algum aspecto
parcial ou abstrato da consciência. Sem essa limitação, Schelling dissera: "o T. outra coisa não é senão o
sentido interno que se torna objeto para si" (System des transzendentalen Idealismus, seç. III, Segunda
época, D; trad. it., p. 141). A rigor, a concepção de T. como intuição do devir traz em seu bojo a redução
de T. a consciência. Isso já acontece em Plotino. Segundo este último, o T. não existe fora da alma: "é a
vida da alma e consiste no movimento graças ao qual a alma passa de uma condição de sua vida para
outra" (Enn., III, 7.11); assim, pode-se dizer que até o universo está no T. só na medida em que está na
alma, ou seja, na alma do mundo (Ibid., III, 7, 3). A S. Agostinho deve-se a melhor expressão e a difusão
dessa doutrina na filosofia ocidental. O T. é identificado por Agostinho com a própria vida da alma que se
estende para o passado ou para o futuro (extensio ou distensío animi). S. Agostinho diz: "De que modo
dimi-
TEMPO
947
TEMPO
nui e consuma-se o futuro que ainda não existe? E de que modo cresce o passado que já não é mais, senão
porque na alma existem as três coisas, presente passado e futuro? A alma de fato espera, presta atenção e
recorda, de tal modo que aquilo que ela espera passa, através daquilo a que ela presta atenção, para aquilo
que ela recorda. Ninguém nega que o futuro ainda não exista, mas na alma já existe a espera do futuro;
ninguém nega que o passado já não exista, mas na alma ainda existe a memória do passado. E ninguém
nega que o presente careça de duração porque logo incide no passado, mas dura a atenção por meio da
qual aquilo que será passa, afasta-se em direção ao passado" (Conf, XI, 28,1). A tese fundamental dessa
concepção de T. foi enunciada pelo próprio S. Agostinho: "A rigor, não existem três T., passado, presente
e futuro, mas somente três presentes: o presente do passado, o presente do presente e o presente do
futuro" (íbid., XI. 20, 1).
Na filosofia moderna, Bergson reexpôs essa concepção, contrapondo-a ao conceito científico de tempo.
Segundo ele, o T. da ciência é espacializado e, por isso, não tem nenhuma das características que a
consciência lhe atribui. Ele é representado como uma linha, mas "a linha é imóvel, enquanto o T. é
mobilidade. A linha já está feita, ao passo que o T. é aquilo que se faz; aliás, é aquilo graças a que todas as
coisas se fazem" {La pensée et le mouvant, 3
a ed., 1934, p. 9). Já em sua primeira obra, Essai sur les
données immédiates de Ia conscience, Bergson insistira na exigência de considerar o T. vivido (a duração
da consciência) como uma corrente fluida na qual é impossível até distinguir estados, porque cada
instante dela transpõe-se no outro em continuidade ininterrupta, como acontece com as cores do arco-íris.
Esse ficou sendo o conceito fundamental de sua filosofia. Segundo Bergson, o T. como duração possui
duas características fundamentais: ls
novidade absoluta a cada instante, em virtude do que é um processo
contínuo de criação; 2- conservação infalível e integral de todo o passado, em virtude do que age como
uma bola de neve e continua crescendo à medida que caminha para o futuro. Não muito diferente é o
conceito de Husserl sobre o "T. feno-menológico". Ele afirma: "Toda vivência efetiva é necessariamente
algo que dura; e com essa duração insere-se em um infinito contínuo de durações, em um contínuo pleno.
Tem necessariamente um horizonte temporal atualmente infinito de todos os lados. Isso significa que pertence a uma
corrente infinita de vivências. Cada vivência isolada, assim como pode começar, pode acabar e encerrar
sua duração; é o que acontece, p. ex., com a experiência de uma alegria. Mas a corrente de vivências não
pode começar nem acabar" ildeen, I, § 81). Isso significa que, assim como a duração bergso-niana, a
corrente de vivências tudo conserva e é uma espécie de eterno presente.
3
a
O terceiro conceito de T. transforma-o em estrutura da possibilidade. Esse é o conceito encontrado em
Heidegger na obra Ser e T. (1927), que já no título anuncia a identidade dos dois termos. A primeira
característica dessa concepção é o primado do futuro na interpretação do tempo; as duais concepções
anteriores fundam-se no primado do presente. O T. como ordem do movimento é uma totalidade presente
porque toda ordem pressupõe a simultanei-dade de suas partes, de cuja recíproca adaptação ela nasce. A
concepção de T. como devir intuído só faz interpretá-lo em função do presente, porque a intuição do devir
é sempre um agora, um instante presente. Heidegger, ao contrário, interpretou o T. em termos de
possibilidade ou de projeção: o T. é originariamente opor-vir {Zu-kunft); mais precisamente: quando o T.
é autêntico (originário e próprio da existência), é "o porvir do ente para si mesmo na manutenção da
possibilidade característica como tal". "Porvir não significa um agora, que, ainda não tendo se tornado
atual, algum dia o será, mas o advento em que o ser-aí vem a si em seu poder-ser mais próprio. É a
antecipação que torna o ser-aí propriamente porvindouro, de sorte que a própria antecipação só é possível
porque o ser-aí, enquanto ente, sempre já vem a si" (Sein und Zeit, % 65). O passado, como um ter-sido, é
condicionado pelo porvir porque, assim como são possibilidades autênticas aquelas que já foram, também
já foram as possibilidades às quais o homem pode autenticamente retornar e de que ainda pode apropriarse (Ibid., § 65). Tanto o T. autêntico, em que o ser-aí projeta sua própria possibilidade privilegiada (o que
já foi, de tal modo que suas escolhas são escolhas do já escolhido, isto é, da impossibilidade de escolher),
quanto o T. inautêntico, que é o da existência banal, como sucessão infinita de instantes, ambos são o sobrevir do que a possibilidade projetada apresenta ao ser-aí (isto é, ao homem); portanto são
TEMPO
948
TENSÃO
um apresentar-se, a partir do futuro, daquilo que já foi no passado {Jbid., § 80, 81). A análise
heideggeriana do T. sem dúvida contém um grande compromisso metafísico, porquanto o T. é
considerado uma espécie de círculo, em que a perspectiva para o futuro é aquilo que já passou; por sua
vez, o que já passou é a perspectiva para o futuro. Nesse sentido, Heidegger fala de T. finito, ou
autêntico, já que T. inau-têntico (que ele também chama de databi-lidade ou T. público) é o
desconhecimento parcial da natureza do T. e a sua concepção como linha aberta e sucessão infinita de
instantes {Sein undZeit, §§ 79-81). Todavia, a análise de Heidegger contém alguns elementos de interesse
filosófico notável porque constitui uma importante inovação na análise do conceito de tempo. Esses
elementos são os seguintes:
l
s
Mudança do horizonte modal, passando-se da necessidade à possibilidade: o T. já não é integrado numa
estrutura necessária, como a ordem causai, mas na estrutura da possibilidade. Esse aspecto pode ser
utilizado para expressar adequadamente a transformação a que a noção de T. foi submetida pela
relatividade de Einstein. Com efeito, se dois eventos são simultâneos segundo certo sistema de referência
mas podem não ser simultâneos segundo um outro, conclui-se que o T. não é uma ordem necessária, mas
a possibilidade de várias ordens.
2- O primado do futuro na interpretação do T. não constitui apenas uma alternativa diferente do primado
do presente e a ele oposta, na qual se baseiam as outras duas interpretações principais, mas também
oferece a possibilidade de não achatar sobre o presente as outras determinações do T. e de entendê-las em
sua natureza específica: o futuro como futuro (e não como "presente do futuro") e o passado como
passado.
3
e
A relação entre passado e futuro, que Heidegger enrijeceu num círculo, pode ser facilmente dissolvida
com a introdução da noção de possível. O passado pode ser entendido como ponto de partida ou
fundamento das possibilidades porvindouras, e o futuro como possibilidade de conservação ou de
mudança do passado, em limites (e aproximações) de-termináveis.
4
a
A introdução de novos conceitos inter-pretativos, expressos por termos como projeto ou projeção,
antecipação, expectativa, etc, mostraram-se úteis nas análises filosóficas e passaram a fazer parte do uso filosófico corrente.
TEMPORAL (in. Temporal; fr. Temporel; ai. Zeitlich; it. Temporalé). 1. O que pertence ao tempo, diz
respeito ao tempo ou acontece no tempo. P. ex., ordem T., esquema T., etc.
2. O que é mundano, pertence à ordem do tempo, em contraposição ao que é espiritual e pertence à ordem
da eternidade. A contraposição entre T. e espiritual é um dos temas dominantes do cristianismo paulino
(v., p. ex., Ad cor., II, IV, 18; Adhebr., XI, 25; etc).
TEMPORÁRIO (in. Temporary, fr. Tempo-raire, ai. Einstweilig; it. Temporaneó). De pouca duração,
provisório.
TENDÊNCIA (in. Tendency, fr. Tendance, ai. Trieb, it. Tendenzd). Entende-se porT. todo impulso
habitual e constante para a ação. Nisso a T. distingue-se do impulso (v.), que é a ação súbita e temporária.
Kant restringiu o significado desse termo a apetite habitual, de natureza sensível (Antr., § 73). Schiller
admitiu três T. fundamentais no homem; a primeira, de natureza sensível, instiga-o à mudança; a segunda,
ou T. à forma, instiga-o à imutabilidade; finalmente, a terceira, ou T. ao jogo, instiga-o a combinar as duas
primeiras (Briefe über die aesthetische Erziehung, 12, 13). A esta distinção Fichte contrapôs outra, entre a
T. ao conhecimento, que torna o homem um "ser representante", a T. prática, que visa à modificação e à
formação das coisas, e a T. estética, que visa a determinada representação só em vista dela mesma, e não
da coisa ou do conhecimento da coisa (Werke, VIII, pp. 278-79). Mais recentemente, Jaspers distinguiu
três ordens de T.: I
a
as sensíveis, com correlato somático (fome, sede, sexo, etc); 2a
as vitais mas sem
localização somática (T. à auto-exaltaçâo ou à submissão, à imigração, à sociabilidade, etc); 3a
as
espirituais, voltadas para a realização de valores {Allgemeine Psychopathologie, 1913).
TENSÃO (gr. tóvoç; in. Tension-, fr. Tension; ai. Spannung; it. Tensioné). 1. Conexão entre dois opostos
que estão ligados apenas por sua oposição. Segundo os antigos (v. FÍLON, Rer. div. Her., 43), esse conceito
constituía a grande descoberta de Heráclito; este dissera: "Os homens não sabem como aquilo que é
discordante está em acordo consigo: harmonias de T. opostas, como as do arco e da lira" {Fr. 51, DIELS).
Nesse sentido, os estóicos também falaram da T. que mantém o universo coeso (AR-
TEOCRACIA
949
TEOLOGIA
NIM, Stoic.fragm., II, 134). Enquanto a dialética (v.) é a unidade dos opostos como síntese ou conciliação,
a T. é o elo entre os opostos como tais, sem conciliação ou síntese. Por isso, as situações de T. não
permitem prever conciliação; essa palavra é usada com esse sentido mesmo na linguagem comum, como
quando se fala da "T. internacional". No mesmo sentido, fala-se de "T. psicológica" para indicar um
estado latente de conflito.
2. Os estóicos (mais precisamente Cleantes; v. ARNIM, Stoic. frag., I, 128) introduziram a noção de T.
como força tendente a um resultado: nesse sentido, é sinônimo de tendência ou de esforço, especialmente
de esforço prolongado ou penoso.
TEOCRACIA (in. Theocracy, fr. Théocratie, ai. Theokratie, it. Teocrazia). 1. Regime político em que o
governo é exercido pela casta sacer-dotal. Nesse sentido foram T. o estado hebraico, o estado maometano
e o calvinismo de Genebra.
2. Doutrina da supremacia do poder eclesiástico, do qual o poder civil extrairia direito e investidura. T.
nesse sentido encontrar-se-ia na Idade Média.
3. Mais em geral, qualquer doutrina segundo a qual toda autoridade provém de Deus (v. AUTORIDADE).
TEOCRASIA(gr. 6eoKpocoía; in. Theocrasy, fr. Théocrasie, ai. Tbeocrasie, it. Teocrasiá). União ou
mescla da alma com Deus, no misticismo (v. JÂMBLICO, De vita pythagorica, 33, 240).
TEODICÉIA (in. Theodicea; fr. Théodicée, ai. Theodizee, it. Teodiced). Termo criado por Leibniz e que
serviu de título a uma de suas obras {Ensaio de T. sobre a bondade de Deus, a liberdade do homem e a
origem do mal, 1710), para demonstrar que há justiça divina por meio da solução de dois problemas
fundamentais: o do mal e o da liberdade humana. Sobre o primeiro problema, a T. de Leibniz responde
mais especificamente às considerações desenvolvidas por Bayle em seu Dicionário (1697), que na
realidade só ampliavam o que epicuristas já haviam dito em polêmica com os estóicos: "Deus não quer,
ou não pode, ou pode e não quer, ou não quer nem pode, ou quer e pode eliminar o mal. Se quer e não
pode, é impotente: o que Deus não pode ser. Se pode e não quer, é invejoso, o que igualmente é contrário
a Deus. Se não quer nem pode, é invejoso e impotente, portanto não é Deus. Se quer e pode — única
coisa que convém a Deus —, qual a
origem da existência do mal e por que não os elimina?" {Fr. 374, Usener). A solução de Leibniz é a
tradicional: o mal não é uma realidade; portanto, a responsabilidade por ele não remonta a Deus (v. MAL).
Quanto ao problema da liberdade, Leibniz discute principalmente as várias formas assumidas pelo
determinismo teológico na literatura protestante de seu tempo, para reivindicar a liberdade do homem no
sentido tradicional de autodeterminação (v. LIBERDADE). Deus predispõe sem determinar, e a liberdade do
homem não consiste na indeter-minação absoluta, ou seja, no arbítrio de indiferença, mas na ausência de
necessidade e de coação (v. LIBERDADE). A partir de Leibniz, a T. passa a ser considerada parte
fundamental da teologia racional (v. TEOLOGIA).
TEOFANIA (lat. Theophania; in. Theopha-ny, fr. Théophanie, ai. Theophanie, it. Teofa-nid). Esse termo,
que significa "visão de Deus", foi usado por Scotus Erigena (séc. IX) para indicar o mundo como
manifestação de Deus. Segundo ele, T. é o processo de descida de Deus ao homem através da criação e de
retorno do homem a Deus através do amor. T. também é qualquer obra da criação que manifeste a
essência divina, que assim se torna visível nela e através dela {De divis. nat, I, 10; V, 23).
TEOGNOSE (ai. Theognosis). Conhecimento científico de Deus (v. C. F. KRAUSE, Vorlesun-gen über
das System der Phiolosophie, 1828, p. 27). Termo bastante raro.
TEOGONIA (gr. 8eoTOVÍa; in. Theogony, fr. Théogonie, ai. Theogonie, it. Teogonid). Geração dos
deuses e do mundo: cosmologia mítica (V. PLATÃO, Leis, X, 886 c) (v. COSMOLOGIA).
TEOLOGAIS, VIRTUDES (lat Virtutes theologicae, in. Theological virtues; fr. Vertus theologiques; ai.
Theologische Tugenden; it. Virtú teologiché). Foram assim chamadas na Idade Média a fé, a esperança e a
caridade, virtudes que dependeriam de dons divinos e que visaram a obter a bem-aventurança a que o
homem não pode chegar só com as forças da sua natureza. Por esse caráter sobrenatural, as virtudes T.
distinguem-se das éticas (v.) e dia-noéticas{v.) (v. S. TOMÁS, S. Th., II, 1, q. 62, a. 1). Para as virtudes em
separado, vejam-se os respectivos verbetes.
TEOLOGIA (gr. 0eo^oyía; lat. Theologia; in. Theology fr. Théologie, ai. Theologie, it. Teologia). Em
geral, qualquer estudo, discurso ou pregação que trate de Deus ou das coisas divi-
TEOLOGIA
950
TEOLOGIA
nas. Foi nesse sentido generalíssimo que essa palavra foi entendida pelo grande erudito romano Marco
Terêncio Varrão (séc. I a.C), cuja distinção de três T. foi transmitida por S. Agostinho: T. mítica ou
fabulosa; T. natural ou física; T. civil. A T. mítica ou fabulosa é utilizada pelos poetas e admite muitas
ficções contrárias à dignidade e à natureza da divindade. A T. natural é a dos filósofos e estuda "o que os
deuses são, o lugar em que residem, o gênero deles, sua essência, o tempo em que nasceram ou sua
perenidade, e se o princípio deles está no fogo, como crê Heráclito, nos números, como afirma Pitágoras,
ou nos átomos, como acredita Epicuro". Finalmente, a T. civil "deve ser conhecida e praticada pelos
cidadãos, principalmente pelos sacerdotes; ensina quais as divindades a serem veneradas publicamente e
quais as cerimônias e sacrifícios a serem realizados" (AGOSTINHO, De civ. Dei, VI, 5). Nesse sentido
varroniano, Viço considerava a sua "ciência nova" como "uma T. civil e racional da providência",
porquanto sua origem está na "sabedoria comum dos legisladores que fundaram as nações e que
contemplarem Deus com o atributo de providencial" (Sc. n., II, Corolário em torno dos aspectos
principais dessa ciência). Em sentido mais especificamente histó-rico-filosófico, é possível distinguir: I
a
T. metafísica; 2a
T. natural; 3a
T. revelada; 4B
T. negativa.
l
s
Aristóteles chamou sua "ciência primeira", a metafísica, de T.: entendeu-a ao mesmo tempo como
ciência do ser enquanto ser (ou seja, da substância) e como ciência da substância eterna, imóvel e
separada (ou seja, de Deus) (Met., VI, 1, 1026 a 10). Esse conceito de T. como metafísica persistiu por
longos séculos. O estóico Cleantes incluía a T. entre as partes da filosofia (DIÓG. L., VII, 41). Para
Plotino, a T. era a única ciência digna desse nome (Enn., V, 9, 7). Desse ponto de vista, os neoplatôni-cos
muitas vezes chamaram os filósofos — inclusive os físicos e os materialistas — de teólogos, porquanto
eles se ocupavam (como diz Proclo) dos "princípios primeiríssimos das coisas subsistentes por si
mesmas" (Plat. theol, I, 3). Esse é também o significado que Varrão atribuía à expressão "T. natural". Esse
uso perdurou na filosofia cristã: nem na patrística nem na primeira fase da escolástica seria possível
encontrar uma delimintaçâo exata entre T. e filosofia. S. Tomás mesmo, na primeira fase de sua obra,
aceitou a identidade entre T. e metafísica,
como se vê no prólogo ao seu comentário à Metafísica de Aristóteles, onde ele diz que, como a metafísica
considera em primeiro lugar as substâncias separadas ou divinas, em segundo lugar o ente como tal e em
terceiro lugar as causas ou os princípios primeiros, "é chamada de ciência divina ou T. quando considera
as substâncias separadas; de metafísica quando considera o ente; (...) e de filosofia primeira quando
considera as causas primeiras das coisas" (In Met., Proemium).
No séc. XVII começou-se a fazer a distinção entre "filosofia primeira", que também foi chamada de
ontologia (v.), e T.; começou-se também a fazer a distinção entre T. como ciência natural e T. baseada na
revelação. Essas distinções estão claramente estabelecidas em De augumentis scientiarum (1623) de F.
Bacon, que chamou de T. natural o conhecimento que se pode obter de Deus "através da luz da natureza e
da contemplação das coisas criadas" (De augm. scient., III, 2), e de T. inspirada ou sagrada a que se
baseia em princípios diretamente inspirados por Deus (Ibid., III, 1).
2
a
O segundo conceito de T. é, portanto, o de T. natural, que se distingue do anterior só pelo fato de
compreender uma parte da metafísica, e não a sua totalidade; mais precisamente a parte que tem por
objeto as coisas divinas. A expressão de Bacon, "T. natural", foi retomada e difundida por Wolff: ele a
definia como "a ciência do que é possível por obra de Deus", portanto como uma parte da filosofia, que é,
em geral, a ciência das coisas possíveis (Log., Disc. prael., 57). Baumgarten insistia no caráter racional da
T. assim entendida: "T. natural é a ciência de Deus, na medida em que pode ser conhecido sem fé" (Met.,
§ 800), e a considerava fundamento da filosofia prática, da T. e da T. revelada (Ibid., § 601). Foi esse
conceito de T. que, juntamente com seu conteúdo, Kant criticou em Crítica da Razão Pura. Ele, porém,
preocupou-se também em distinguir as várias espécies de T., e, partindo da distinção básica entre T.
racional e T. revelada, distinguiu na T. racional a T. transcendental— que "concebe seu objeto
simplesmente como razão pura, por meio de meros conceitos transcendentais (ens originarium,
realissimum, ens entiurri)" — e a T. natural, que utiliza "conceitos tomados da natureza". Por sua vez, a
T. transcendental pode ser cosmoteologia, se deduzir a existência de Deus da experiência em geral, ou
onto-teologia, se deduzir sua existência a partir de
TEOLOGIA
951
TEOREMA
conceitos, sem recorrer à experiência. Finalmente, a T. natural pode ser T. física, se remontar aos atributos
de Deus partindo da ordem e da constituição do mundo, ou T. moral, se considerar Deus como o princípio
da ordem e da perfeição moral (Crít. R. Pura, Dialética, cap. III, seç. VII). Algumas dessas distinções
persistiram e ainda são usadas no campo da T. eclesiástica.
3
Q
A T. revelada ou sagrada extrai seus princípios da revelação. A primeira formulação explícita desse
conceito é, provavelmente, tomis-ta: S. Tomás afirma que "a sagrada doutrina é ciência porque parte de
princípios conhecidos através da luz de uma ciência superior, que é a ciência de Deus e dos bemaventurados" (5. Th., I. q. 1, a. 2). A "ciência de Deus e dos bem-aventurados" coincide com os "artigos
de fé" ou com a "revelação divina" (Ibid., a. 78). Era essa a T. que Duns Scot considerava ciência
puramente prática, em confronto com a metafísica, que ele considerava a ciência teórica por excelência: o
único objetivo da T. seria persuadir o homem a agir em vista da salvação (Op. Ox., Prol, q. 4, n. 42), e
mesmo as verdades aparentemente teóricas teriam valor apenas prático como, p. ex., a proposição "Deus é
trino", que incluiria simplesmente o conhecimento do justo amor que o homem deve a Deus (Jbid., Prol.,
q. 4, n. 31). A negação do valor cognitivo da T. persiste, no fim da es-colástica, mesmo quando não se
atribui caráter prático à sua totalidade. Ockham não considerava a T. como ciência, mas como um simples
conjunto de conhecimentos diversos, teóricos e práticos, baseados exclusivamente na autoridade e cujo
único fim seria guiar o homem para a salvação (In Sent., Prol., q. 12, E-I). Esse conceito não difere muito
daquilo que Spinoza exporia mais tarde em Tratado teológico-político (v. especialmente cap. 15).
4
Q
O conceito da T. negativa surgiu e propagou-se no misticismo. A distinção entre T. positiva ou
afirmativa (que parte de Deus em direção ao finito por meio da determinação dos atributos ou nomes de
Deus) e T. negativa (que parte do finito em direção a Deus e o considera acima de todos os predicados ou
nomes com os quais possa ser designado) encontra-se nos tratados do Pseudo-Dionísio, o Areopagita {De
myst. theol, 1; De div. nom., I, 4; 4, 2; 13, 1; De eccl. hyerar, 2, 3), mas sua fonte está nos textos
neoplatônicos, para os quais Deus está acima de todas as determinações finitas e
do próprio ser (v. TRANSCENDÊNCIA). Essa distinção é repetida por Scotus Erigena (De divis. nat, II, 30) e
retomada pelo misticismo especulativo alemão do séc. XIV (v. ECKE-HART, em PFEIFFER, Deutsche
Mystiker des 14 Jahrhunderts, II, pp. 318-19) e pelo Renascimento, com Nicolau de Cusa (Dedocta
ignor., I, 24; 26) e Charles de Bouelles (De nihilo, 11, 1, 4). Pode-se considerar manifestação dessa T. —
revivida através da experiência de Kierke-gaard — a chamada "T. da crise" de K. Barth, salvo pelo fato
de esta não consistir na negação dos atributos finitos de Deus, mas em considerar a relação entre o
homem e Deus como a negação de todas as possibilidades humanas (crise), que se reduziriam a meras
impossibi-lidades, de tal modo que só dessa negação nasceria uma possibilidade de salvação, cuja origem
não é mais humana, porém divina (Rômerbrief, 1919).
TEOLOGIZANTE, FILOSOFIA. Foi esse o nome dado por Croce à filosofia que cuida de problemas
mal formulados e por isso irresolúveis, seja discutindo-os como problemas "máximos" ou "eternos", seja
resolvendo-os com sistemas "imaginários", seja assumindo atitude agnóstica diante deles ("Sobre filosofia
T. e as suas sobre-vivências", em Saggifilosofici, 1920, V, p. 297).
TEOMANCIA (in. Theomancy, ai. Theo-mantie, it. Teomanzià). Adivinhação inspirada pela divindade
(v. ENTUSIASMO).
TEOMONISMO (ai. Theomonismus). Doutrina segundo a qual Deus é a única realidade: o mesmo que
acosmismo (v.) ou panteísmo (v.).
TEONOMIA (in. Theonomy, fr. Théonomie, ai. Théonomie, it. Teonomid). Governo ou legislação de
Deus. Esse termo às vezes é contraposto a autonomia.
TEOPANTISMÓ (in. Theopantism; fr. Théo-pantisme, ai. Theopantismus-, it. Teopantismó). Doutrina
segundo a qual Deus é a única realidade: o mesmo que panteísmo (v.).
TEOPNEUSTIA (in. Theopneusty, fr. Théo-pneustíe, ai. Theopneustie, it. Teopneustià). Inspiração
divina, através da qual é comunicada a verdade revelada.
TEOREMA (gr. 0eúpr|Lia; lat. Theorema; fr. Théorème, ai. Theorem, it. Teorema). Qualquer proposição
demonstrável. Esse termo ingressou na linguagem matemática já na Antigüidade (v. ARISTÓTELES, Met.,
XIV, 2, 1090 a 14), mas conservou, fora da linguagem matemática, o significado de proposição não
primitiva mas derivada ou derivável de outras proposições.
TEORIA
952
TEORIA
TEORIA (gr. Becopía; lat. Theoria; in. Theory, fr. Théorie, ai. Theorie, it. Teoria)- Este termo possui os
seguintes significados principais:
1
Q
Especulação ou vida contemplativa. Esse é o significado que o termo teve na Grécia. Nesse sentido,
Aristóteles identificava T. com bem-aventurança (Et. nic, X, 8, 1178 b 25); T. opõe-se então a prática e,
em geral, a qualquer atividade não desinteressada, ou seja, que não tenha a contemplação por objetivo.
2° Uma condição hipotética ideal, na qual tenham pleno cumprimento normas e regras, que na realidade
são observadas imperfeita ou parcialmente. Este significado está presente quando se diz: "Teoricamente,
deveria ser assim, mas na prática é outra coisa". Kant examinou o problema da relação entre T. e prática
nesse sentido num escrito de 1793 (Über den Gemenspruch: Das mag in der Theorie richtig sein, taugt
aber nichtfür die Praxis), em que se encontram as seguintes definições de T. é prática: "Chama-se T. um
conjunto de regras também práticas, quando são pensadas como princípios gerais, fazendo-se abstração de
certa quantidade de condições que exerçam influência necessária sobre a sua aplicação. Inversamente, o
que se chama de prática não é um ato qualquer, mas apenas o ato que concretiza um objetivo e é pensado
em relação a princípios de conduta representados universalmente" (Op. cit., princ).
3
a
A chamada "ciência pura", que não considera Tslífflícãçolis^dircTencIíli técnica de produção, ou então
as ciências, ou partes de ciências, que consistem na elaboração conceituai ou matemática dos resultados;
p. ex., "física teórica".
4MJma_hip_ótese ou um conceito_científico. Este último significado deve ser considerado especialmente
neste verbete, visto que o problema da T. científica constitui um dos capítulos mais importantes da
metodologia das ciências. Os resultados principais das pesquisas nesse campo podem ser resumidos do
modo seguinte:
«)_A_T;_científica_é üma ^E2Íʧ.e ou> Pe
l° menos, contém uma ou mais hipóteses como
suas partes integrantes. A ciência moderna abandonou a repugnância da ciência dos sécs. XVIII e XIX
pelas hipóteses, tão bem expressa por Newton e outros (v. HIPÓTESE). Isso aconteceu porque a hipótese
deixou de ser uma suposição sobre as causas últimas ou ocultas dos fenômenos. Kant já condenara as
"hipóteses
transcendentais" que recorrem a simples idéias racionais e declarara-se favorável às hipóteses empíricas,
cuja característica é "a suficiência para determinar a priori as conseqüências que já estão dadas" (Crít. R.
Pura, Teoria do método, cap. I, seç. 3). Em 1865, ao falar das T., Claude Bernard afirmava seu caráter
indispensável e ao mesmo tempo hipotético, no sentido estrito do termo: "O experimentador formula sua
idéia [ou hipótese experimental] como uma questão, uma interpretação antecipada da natureza, mais ou
menos provável, da qual deduz logicamente conseqüências que a cada momento compara com a
realidade, por meio da experiência" (Introduction à Vétude de Ia médecine expérimentale, I, 2). E
reconhecia a fecundidade das hipóteses para a descoberta de fatos novos: "O objetivo cias hipóteses é não
só levar-nos a fazer experiências novas, mas também descobrir fatos novos que não teríamos percebido
sem elas" (Ibid., III, 1, 2). No início do séc. XX, Mach reconhecia expressamente a impossibilidade de a
hipótese científica (e a hipótese em geral) ser diretamente provada pelos fatos: "Damos o nome de
hipóteses às explicações provisórias cujo fim é facilitar a compreensão dos fatos, mas que ainda escapa à
comprovação pelos fatos" (Er-kenntniss undIrrtum, 1905, cap. XIV; trad. fr., p. 240). E Duhem
enumerava da seguinte maneira as condições às quais uma hipótese deveria corresponder para ser
escolhida como fundamento de uma T. física: I
a
a hipótese não deve ser uma proposição contraditória; 2a
não deve apresentar contradição com as outras hipóteses da mesma ciência; 3S
as hipóteses devem ser tais
que, de seu conjunto, seja possível deduzir matematicamente conseqüências que representem, com
aproximação suficiente, o conjunto das leis experimentais (La théorie physíque, II, 7, 1, p. 363). Poincaré,
por sua vez, insistiu na necessidade de hipóteses em qualquer procedimento experimental, mas também
na necessidade de não multiplicar hipóteses. Esta última advertência nada mais é que o antigo princípio
de economia (v.), ou navalha de Ockham, sempre eficaz no campo das formulações conceituais (La
science et Vhypothèse, 1902, cap. IX).
tí) Uma T. científica não é um acréscimo interpretativo ao corpo da ciência, mas é o esqueleto desse
corpo. Em outros termos, a T. condiciona tanto a observação dos fenômenos quanto o uso mesmo dos
instrumentos de ob-
TEORIA
953
TEÓRICO/TEORÉTICO
servação. Sobre esse ponto é clássico o livro de Duhem, A teoria física (1906; cf. especialmente o cap. IV
da segunda parte). Esse é um aspecto às vezes aproveitado para demonstrar o caráter relativo e imperfeito
do conhecimento científico. Foi o que fez, p. ex., E. Le Roy (Science et pbilosophie, 1899-1900).
Contudo, na realidade ele não invalida a ciência, mas apenas a tese da separação nítida entre observação e
T. e a tese da verdade absoluta da ciência.
c) Além da parte hipotética, uma T. científica contém um aparato que permite a sua verificação ou
confirmação. Duhem distinguia na T. física quatro operações fundamentais: I
a
a definição e a medida das
grandezas físicas; 2a
a escolha das hipóteses; 3a
o desenvolvimento matemático da T.; 4a
o confronto entre
T. e experiência (La théorie physique, I, 2, § 1). Obviamente, as três primeiras operações constituem a
construção e o deseuvolvimento da hipótese, enquanto a quarta é diferente e constitui a fase de
confirmação. Analogamente, Norman R. Campbell distinguiu em qualquer T. física dois grupos de
proposições: "um, que consiste em asserções sobre algum conjunto de idéias características da T.; outro,
que consiste nas relações entre essas idéias e outras idéias de natureza diferente". O primeiro grupo de
idéias é a hipótese-, o segundo é o dicionário. A finalidade do dicionário é possibilitar a verificação
indireta da hipótese. Campbell diz: "Deve ser possível determinar, independentemente do conhecimento
da T., se determinadas proposições que contêm as idéias do dicionário são verdadeiras ou falsas. O
dicionário relaciona algumas dessas proposições, cuja verdade ou falsidade é conhecida, com algumas
proposições que compreendem as idéias hipotéticas, afirmando que, se o primeiro conjunto de
proposições é verdadeiro, então também o segundo é verdadeiro e vice-versa; essa relação pode ser
manifestada pela asserção de que o primeiro conjunto implica o segundo" (Physics: the Elements, 1920,
p. 122). Analogamente ainda, G. Bergmann disse que uma T. científica consiste em: ls
axiomas; 2Q
teoremas; 3Q
provas dos teoremas; 4S
definições (Pbilosopby of Science, 1957, p. 35); nessa enumeração,
as "provas dos teoremas" constituem o aparato de verificação da teoria. Duas observações são muito
importantes a esse propósito. A primeira é que as modalidades e o grau da prova ou confirmação que uma
T. deve possuir para ser declarada ou considerada "científica" não são definíveis segundo um critério
unitário.
Obviamente, a verdade de uma T. psicológica ou de uma T. econômica exige um tipo de comprovação
completamente diferente do exigido por uma T. física, visto que as técnicas de verificação são
completamente diferentes. Até mesmo os graus de confirmação exigidos sào diferentes; muitas vezes,
fora do campo da física, são chamadas de "T." simples conjecturas que não incluem o menor aparato
comprobatório. A segunda observação é que cada aparato comprobatório exige a limitação das hipóteses
contidas na T.; isso porque, sempre que essas hipóteses puderem ser multiplicadas à vontade, a T. poderá
manter-se até contra qualquer desmentido empírico, e sua confirmação passa a ser irrelevante (foi o que
aconteceu, p. ex., com a T. dos epiciclos na cosmologia ptolemaica). Mas mesmo com essa limitação às
vezes é difícil decidir até que ponto a aquisição de algum dado experimental se concilia com a T. ou
questiona todo o seu conjunto
d) Uma T. não é necessariamente uma explicação do domínio de fatos aos quais se refere, mas um
instrumento de classificação e previsão. Duhem observava: "T. verdadeira não é aquela que dá uma
explicação das aparências físicas conforme à realidade, mas sim a T. que represente de modo satisfatório
um conjunto de leis experimentais" (La théorie physique, I, 2, 1). A verdade de uma T. está em sua
validade, e sua validade depende de sua capacidade de cumprir as funções às quais se destina. As funções
de uma T. científica podem ser especificadas da seguinte maneira: ls
uma T. deve constituir um esquema
de unificação sistemática de conteúdos diversos; o grau de abrangência de uma T. é um dos elementos
fundamentais na avaliação de sua validade: 22
uma T. deve oferecer um conjunto de meios de
representação conceituai e simbólica dos dados de observação. Sob esse aspecto, o critério ao qual deve
satisfazer é o de economia dos meios conceituais, vale dizer, simplicidade lógica; 3S uma T. deve
constituir um conjunto de regras de inferências que permitam a previsão dos dados de fato. Este é
considerado hoje uma das tarefas fundamentais das T. científicas, e a capacidade de previsão de uma T. é
critério fundamental para avaliá-la (v. S. TOULMIN, The Philosophy of Science, 1953, p. 42; M. K. MuNITZ, Space Time and Creation, 1957, IV, 1).
TEORICO/TEORÉTICO (gr. 6ecopT|TiKÓç,; lat. Speculativus; in. Theoretical; fr. Théorétique, ai.
Theoretisch; it. Teoretico). Esse adjetivo corres-
TEOSE
954 TERCEIRO EXCLUÍDO, PRINCÍPIO DO
ponde a especulação (v.); por isso, assim como este substantivo, possui dois significados fundamentais: ls
o que é puramente cognitivo e opõe-se a prático; 2° o que não é redutível à experiência e opõe-se a
empirico. No primeiro exemplo, fala-se de "ciências T."; no segundo, de "conceitos T.".
TEOSE. V. DEIFICAÇÀO.
TEOSOFIA (gr. 0£OGO(pía; in. Theosophy, fr. Théosophie, ai. Theosophie, it. Teosofid). Este termo já
era usado pelos neoplatônicos para indicar o conhecimento das coisas divinas, proveniente da inspiração
direta por Deus (POR-FÍRIO, Deabst., IV, 1 7; JÂMBLICO, Demyst., VII, 1; PROCLO, Theol. plat., V, 35).
Foi retomada com o mesmo sentido por Jacob Bôhme (Sex puncta theosophica, 1620; Quaestiones theosophicae, 1623) e pelos outros místicos da Reforma; Kant observava que a limitação da razão "impede
que a teologia se eleve à T., a conceitos transcendentais em que a razão se perde" {Crít. do Juízo, § 89). E
Schelling falava do teosofismo de Jacobi, entendendo por teósofos os filósofos que se consideram
diretamente inspirados por Deus (Münchener Vorlesungen em Werke, X, p. 165).
Em 1875, esse termo foi retomado pelos fundadores da Sociedade teosófica, entre os quais se encontrava
Helena Petrowna Bla-vatsky, autora de ísis sem véu (1877) e Doutrina secreta (1888), obras que
expunham a nova T.: uma mistura de ocultismo e de crenças orientais, que supostamente estariam
fundadas na inspiração direta por Deus. A atuação e as doutrinas dessa sociedade extrapolam o campo da
filosofia. Aqui nos limitaremos a aludir ao cisma provocado por Rudolff Steiner, que o levou à
formulação da antroposofia (v.).
TER (gr. £%evv; lat. Habere, in. To have, fr. Avoir, ai. Haben; it. Avere). Uma das dez categorias de
Aristóteles, na qual ele mesmo distinguiu muitos significados, desde que pode referir-se a qualidade,
quantidade, posse, disposição, uma parte do corpo, conteúdo de um recipiente, uma propriedade ("T. uma
casa ou uma fazenda"). Aristóteles também observa que se diz "T. uma mulher", mas que esse significado
é impróprio porque significa apenas que se mora com ela (_Cat., 15, 15 b 3 ss.). Essas distinções são
repetidas na lógica medieval (cf., p. ex., PEDRO HISPANO, Summ. log., 3.37-38; JUNGIUS, Lógica
hamburgensis, I, 14, 24). Num significado assim amplo esse termo
indica uma relação qualquer. Hegel, porém, queria restringi-lo à relação entre a coisa e suas propriedades
{Ene, § 125).
Mareei contrapôs o T. ao ser. O T. seria a categoria dominante na exterioridade das coisas, entre as quais o
homem vive em sua função social ou vital, enquanto o ser seria a categoria própria da subjetividade, que é
mistério (Être et avoir, 1935). No T., no fazer e no ser, Sartre viu as três grandes categorias da existência
humana. Mas o fazer se resolveria no T., visto que qualquer forma de ação ou de produção, inclusive o
conhecer, é uma forma de apropriação; por outro lado, o T. se reduz ao ser porque o desejo de T. no
fundo é redutível ao desejo de "estar em relação com certo objeto em certa relação de ser" (Vêtre et le
néant [1943], 1955, pp. 663 ss.).
Tanto na linguagem corrente quanto na lógica e na matemática, T. hoje indica apenas uma relação de
qualquer gênero.
TERCEIRO EXCLUÍDO, PRINCÍPIO DO (in. Principie of excluded middle, fr. Príncipe du milieu ou
tiers exclu; ai. Grundsalz vom ausgeschlossenen Dritten; it. Principio dei terzo escluso). Foi Baumgarten
o primeiro a dar nome a esse princípio, considerando-o independente do princípio de contradição (Met.,
1739, § 10), embora Wolff falasse da "exclusão do médio entre os contraditórios", como de um corolário
do princípio de contradição (Ont., § 53).
A história desse princípio está estreitamente relacionada com a do princípio de contradição, do qual não
se separou até Baumgarten. Contudo, Aristóteles formulou-o com toda a clareza ao dizer: "Entre os
opostos contraditórios não há meio termo. Na verdade, contradição é o seguinte: oposição em que uma
das partes está presente na outra, de tal modo que não há meio termo" (Met., X, 7, 1057 a 33). Essa
formulação não está isolada, porque (como se vê também no trecho citado), segundo Aristóteles, a
exclusão do T. não pode ser eliminada da contradição (V. G. A. VIANO, La lógica diAris-totele, 1955, pp.
35 ss.). A lógica medieval ignorou totalmente esse princípio, que só começou a ser diferenciado do
princípio de contradição por Leibniz. Este observou que o princípio de contradição contém dois
enunciados verdadeiros: "Um, segundo o qual o verdadeiro e o falso não são compatíveis na mesma
proposição, ou uma proposição não pode ser verdadeira e
TERCEIRO EXCLUÍDO, PRINCÍPIO DO 955
TERCEIRO HOMEM
falsa ao mesmo tempo; o outro, segundo o qual o oposto ou a negação do verdadeiro e do falso não são
compatíveis, ou não há um meio termo entre o verdadeiro e o falso, ou não é possível que uma proposição
não seja nem verdadeira nem falsa" {Nouv. ess., IV, 2, 1). A partir de meados do séc. XVIII, por obra de
Wolff e Baumgarten, o princípio do T. E.'era introduzido entre as "leis fundamentais do pensamento",
juntamente com os de identidade e de contradição.
Mas não teve a sorte dos outros: algumas vezes foi posto em dúvida. Segundo relato de Cícero, Epicuro
considerava-o duvidoso para desvalorizar a dialética {Acad, IV, 30, 97). Enquanto Hegel repetia contra
ele as críticas que habitualmente dirigia a todos os princípios lógicos tradicionais {Ene, § 119), Kant
procurava estabelecer uma exceção para ele na dissertação sobre as antinomias cosmológicas. Distinguiu
a oposição analítica, que é a da contradição e exclui o meio termo, da oposição dialética, que, ao
contrário, admite o meio termo. Se as duas proposições, "O mundo é infinito quanto à grandeza", "O
mundo é finito quanto à grandeza", forem consideradas em oposição analítica, o mundo só pode ser finito
ou infinito. Mas elas só podem ser consideradas em oposição analítica se admitirmos que o mundo é uma
"coisa em si", ou seja, se admitirmos como válida a idéia de mundo. Kant declara negar essa validade:
portanto, as duas proposições estão em oposição dialética, e pode-se afirmar que o mundo "não existe
nem como um todo em si infinito, nem como um todo em si finito" {Crít. R. Pura, Dial. transe, cap. II,
seç. VII). Isso eqüivale a declarar que o princípio do T. E. não é válido no caso da oposição dialética e a
introduzir um novo valor lógico ao lado do verdadeiro e do falso, o indeterminado.
A lógica contemporânea não deixou escapar a oportunidade de construir uma lógica que excluísse o
princípio do T. E. Lukasiewicz em 1920 e depois Lukasiewicz e Tarski em 1930 elaboraram uma lógica
de três valores, correspondentes ao verdadeiro, ao falso e ao possível, simbolizados pelos algarismos 1, 0,
1/2. Nessa lógica, o princípio do T. excluído não tem lugar, no sentido de que não é expressável por
símbolos da lógica e não constitui um de seus teoremas {Untersuchungen über den Aussagenkalküs, em
Comptes rendus des séances de Ia Société des Sciences et des Lettres de Varsovie, 1930, pp. 30-
50, 51-77). Os próprios autores ditaram as regras para a construção de um sistema com um número finito
n de valores de verdade {Phi-losophische Bemerkungen zu tnehrwertigen Systemen des Aussagenkalküls,
nos mesmos Comptes rendus, 1930, classe III, pp. 51-77). E. L. Post {Introduction to a General Theory of
Elementary Propositions, em American Journal ofMathematics, 1921, 43, 163) também elaborara um tipo
de lógica polivalente, e A. Heyting, por sua vez, construiu uma lógica formal intuicionista, com três
valores, verdadeiro, falso e indeterminado, que se aplica à teoria intuicionista da matemática de Brower e
implica a renúncia à demonstração por absurdo (Die formalen Regeln der intuitionistischen Logik, em
Sitzungesber. Preuss.Akad. Wiss. [Phys.-Math. Klasse], 1930, pp. 42-56).
A lógica de três valores constitui, portanto. uma alternativa aos sistemas lógicos tradicionais. C. I. Lewis
escrevia: "O princípio do T. E. não está escrito nos céus: reflete, sim, a nossa obstinação em aderir ao
mais simples de todos os modos de divisão e o nosso interesse predominante pelos objetos concretos, em
oposição aos conceitos abstratos. As razões pelas quais escolhemos um sistema lógico não derivam da
própria lógica, assim como não derivam de princípios matemáticos as razões para escolher as
coordenadas cartesianas em vez das polares ou das coordenadas de Gauss" (Alternative Systems of Logic,
em TheMonist, 1932, p. 505). H. Reichenbach demonstrou a utilidade da lógica de três valores para a
mecânica quântica, dada sua natureza probabilista {Philosophic Foundationsof Quantum Mechanics, §
30) (sobre essa questão, cf. também L. ROUGIER, Traité de Ia connaíssance, 1955, II, cap. VII).
TERCEIRO HOMEM (gr. xpíxoç av0pco-noç). Aristóteles alude várias vezes a um argumento assim
denominado, contrário à doutrina platônica das idéias, dando-o por conhecido. portanto deixando de
expô-lo {Met., I, 9, 990 b 17; VII, 13, 1039 a 2; El. sof, 178 b 36). Segundo Alexandre de Afrodisia {In
met, I, 9), esse argumento consistiria em dizer que, uma vez que um homem individual é semelhante ao
homem ideal, deve existir um terceiro homem do qual os dois participem. Mas esse é o argumento
aduzido contra a doutrina das idéias de Platão, que no entanto não menciona o exemplo do homem
{Parm., 132a). Alexandre, porém, menciona também outras formas desse argumento do T. Homem. I
a
Uma delas é a usada
TERMINISMO
956
TERMO
pelos sofistas: quando dizemos "o homem está passeando", não estamos falando nem da idéia de homem
(que é imóvel), nem de um homem em particular; devemos então estar falando de um homem de uma
terceira espécie. 2S
Fânias, discípulo de Aristóteles, em seu livro contra Diodoro Cronos, atribuía ao
sofista Polixeno o seguinte argumento: se o homem existe por participar da idéia de homem, deve haver
algum homem que possua o seu ser em relação com a idéia; mas não será nem a própria idéia, nem o
homem em particular. Finalmente, o próprio Alexandre nota que o argumento do T. homem, exposto na
primeira forma, pode ser repetido ao infinito, porque a relação entre T. homem, por um lado, e idéia do
homem particular por outro pode dar lugar ao quarto e quinto homem, e assim por diante.
Como Platão expõe o argumento por meio de Parmênides, contra a interpretação da doutrina das idéias
que estabelece uma separação nítida entre idéias e coisas, é provável que esse argumento fosse corrente
na própria escola platônica; sua origem, porém, parece ser megárica ou sofistica (cf. a nota de W. D. Ross
a Met., I, 9, na edição de Metafísica por ele organizada, bem como a nota de DIES a Parmênides, em Coll.
des Univ. de France, VIII, p. 21).
TERMINISMO (in. Terminism; fr. Termi-nisme: ai. Terminismus; it. Terminismo). Desde o começo do
séc. XV, são designados pelos nomes de terministas (terministae) ou nomi-nalistas (nominales) os
defensores da tese no-minalista na disputa sobre os universais (v. NOMINAUSMO; UNIVERSAL), que eram,
ao mesmo tempo, cultores da nova lógica, considerada como o estudo das propriedades dos termos. Jean
Gerson (que morreu em 1429) já fala da disputa entre formalistas e terministas {De conceptibus, em
Opera, 1706, IV, p. 806). Num manuscrito do mesmo século, da Biblioteca Colbert (publicado em parte
por S. BALUZI, Miscellanea, IV, p. 531 f), encontra-se: "São denominados nominalistas os doutores que
não multiplicam as coisas significadas pelos termos segundo a multiplicação dos termos; realistas, ao
contrário, são os que afirmam que as coisas se multiplicam segundo a multiplicidade dos termos. (...)
Também são chamados de nominalistas os que usam estudo e diligência para conhecer todas as
propriedades dos termos, das quais depende a verdade ou a falsidade das proposições; tais propriedades
são a suposição, a denominação, a extensão, a restrição, a
distribuição e os exponíveis, e que conhecem também as antinomias (obligationes) e os verdadeiros
fundamentos dos argumentos dialéticos" (transcrito em PRANTL, Geschichte der Logik, IV, p. 187). O
estudo das propriedades dos termos, de que se fala aí, partia da tendência geral desses filósofos e lógicos,
segundo os quais o conhecimento e a ciência só têm por objeto os termos. Ockham diz a respeito:
"Qualquer ciência, seja racional, seja real, é ciência só de proposições, e de proposições conhecidas,
porquanto só as proposições são conhecidas. Todos os termos dessas proposições são apenas conceitos, e
não substâncias externas" (In Sent., I, d. 2, q. 4, M, N) (v. LÓGICA;
NOMINALISMO; UNIVERSAL).
TERMINOLOGIA (in. Terminology, fr. Ter-minologie, ai. Terminologie, it. Terminologia). Qualquer
linguagem artificial: p. ex., "T. matemática", "T. hegeliana", etc.
TERMINUS A QUO, AD QUEM. Expressões usadas a propósito do movimento: T. a quo denomina-se
o lugar do qual um móvel procura afastar-se. T. ad quem denomina-se o lugar para qual o móvel procura
dirigir-se (HOBBES, De corp., 8, § 10; WOLFF, Cosm., § 161).
TERMO (gr. õpoç; lat. Terminus; in. Term-fr. Terme; ai. Terminus; it. Termine). Os significados
principais são os seguintes:
I
a Signo lingüístico ou conjunto de signos. Este é o significado que mais diz respeito à filosofia (v.
adiante).
2
a Qualquer objeto ou coisa a que um discurso se refira. Nesse sentido, é sinônimo de objeto (v.) ou de
coisa (v.).
3
Q
Limite de uma extensão.
A- Ponto de chegada de uma atividade ou resultado de uma operação. Nesse sentido, p. ex., o T. da
vontade é a ação, o T. do intelecto é o conhecimento;
5- Ponto de partida ou ponto de chegada de um movimento. Nesse sentido, fala-se de terminus a quo e de
terminus ad quem (v.).
No primeiro significado, que interessa à lógica, é possível distinguir os seguintes significados
subordinados:
a) os elementos que compõem as premissas do silogismo categórico: sujeito e predicado;
b) todos os componentes simples presentes nas proposições; nesse sentido, são T. não só o sujeito e o
predicado, mas também os verbos, as preposições e as conjunções, ou seja, os componentes
sincategoremãticos (v.), ao passo
TERRORISMO
957
TESTABIIIDADE
que as proposições não são T. porque não são simples;
c) todos os componentes das proposições, tanto simples quanto complexos. Nesse sentido muito geral,
são T. não só o sujeito, o predicado, o verbo e os componentes sincategore-máticos, mas também as
proposições, já que podem fazer parte de outras proposições, como quando se diz ' "Sócrates é homem' é
uma proposição".
O significado (d) é o definido por Aristóteles (An. pr., I, 1, 24 b 16); persistiu até a lógica medieval (v.
PEDRO HISPANO, Summ. log., 4.01). Os outros significados foram admitidos pela lógica terminista do séc.
XIV e podem ser encontrados em Ockham (Summa log., I, 2).
Em vista da diversidade de significados dessa palavra, foram numerosas e diversas as divisões do
conceito. A divisão que os lógicos terministas consideram fundamental é entre T. escrito, T. falado e T.
pensado, correspondentes às três espécies de proposições distinguidas por Boécio. Eles distinguiram
também os T. categoremáticose sincategoremãticos(v.); concretos e abstratos (v.); conotativos e
absolutos (v. CONOTAÇÃO); unívocos e equívocos (v.) (sobre essas divisões, cf. OCKHAM, Summa log., I,
3 ss.).
Na lógica moderna, essa palavra é assumida no significado mais extenso, no sentido (c) (v. CHURCH,
Introduction to Mathematical Logic, n. 4). Em matemática, é assumida com significado análogo,
entendendo-se por T. qualquer componente, simples ou complexo, de uma expressão.
TERRORISMO (in. Terrorism-, fr. Terroris-me, ai. Terrorismus; it. Terrorismo). Este termo pertence à
filosofia só no significado de T. moral, atribuído por Kant: seria a interpretação da história como
decadência ou regressão (Der Streit der Fakultãten, 1798, II, 3).
TESE (gr. 9éotÇ; in. Thesis; fr. Thêse, ai. The-se, it. Tesi). Este termo deriva dos textos lógicos de
Aristóteles, nos quais se encontra com dois significados principais:
l
s
para designar o que o interlocutor põe no início de uma dissertação como assunção sua (Top., II, 1, 109
a 9);
2
Q
para designar uma proposição assumida como princípio (An.post., I, 2, 72 a 14).
Esses dois significados conservaram-se na tradição filosófica. O primeiro encontra-se já em PLATÃO
(Rep., I, 335 a), e, segundo tradição
relatada por Diógenes Laércio, Protágoras teria sido o primeiro a mostrar como apoiar uma T. em
argumentos (DIÓG. L., IX, 53). Na terminologia dos lógicos medievais e dos matemáticos prevaleceu esse
significado: a T. designa uma proposição que se pretende demonstrar.
Com Kant, esse termo adquiriu novo valor filosófico: nas antinomias da razão pura T. é o enunciado
afirmativo da antinomia (v.).
Na dialética pós-kantiana, o momento da T. é o elemento positivo ou de posição, portanto inicial, do
processo ou do desenvolvimento dialético (v. DIALÉTICA, 4
e
). G. P.
TESTABUJDADEün. Testability, fr. Testabi-lité, ai. Testabilitàt;it. Testabilità ou Attestabilita). A
possibilidade de pôr à prova um enunciado, portanto de confirmá-lo ou de desmenti-lo. Esse termo é
freqüentemente usado na lógica e na metodologia contemporâneas. A testabili-dade compreende qualquer
possibilidade de confirmação, verificação, averiguação e aferição, na medida em que cada uma dessas
possibilidades pode redundar na prova (v.) ou na falta de prova do enunciado em questão.
Carnap, porém, restringiu o significado desse termo ao de verificação empírica incompleta, entendendo-o
como "um procedimento que conduz à confirmação, pelo menos em certo grau, do enunciado ou de sua
negação". Tem-se T. quando efetivamente se possui um procedimento desse gênero. Ao contrário, tem-se
apenas confirmabilidade quando, mesmo não se possuindo esse procedimento, conhecem-se as condições
nas quais o enunciado seria confirmado. Assim, um enunciado pode ser con-firmável sem ser testável: é o
que acontece quando se sabe que certa observação o confirmaria, mas não se têm condições de efetuar a
observação (Testability andMeaning, 1936, em Readings in the Philosophy of Science, 1953, p 47).
Carnap também distinguiu o que é diretamente e o que é indiretamente testável. Algo é diretamente
testável quando "são concebíveis circunstâncias nas quais consideremos o enunciado tão fortemente
confirmado ou não-confir-mado por uma observação ou por algumas observações, que o aceitamos ou o
rejeitamos sem outras considerações; como, p. ex.. 'há uma chave na minha mesa'". Tem-se a T. indireta
de um enunciado quando se "provam diretamente outros enunciados que estejam em relação lógica
específica com o enunciado em questão". Esses outros enunciados podem ser
TESTEMUNHO
958
TEURGIA
chamados de enunciados-prova (testsentences) (Truth and Confirmation, 1936, em Readings in
Philosophical Analysis, 1949, p. 124).
TESTEMUNHO (ín. Witnessing, Testimony, fr. Témoignage, ai. Zeugniss-, it. Testimonian-za). Recurso à
experiência alheia ou às as-serções alheias como método de prova para as proposições que expressem
fatos. Aristóteles já observara que é possível referir-se "a questões de fato ou a questões de caráter
pessoal", que também são questões de fato (Ret, I, 15, 1376 a 23). O valor do testemunho nesse sentido é
reconhecido pela Lógica de Port-Royal (1662): "Para julgar da verdade de um acontecimento e decidir-se
a crer ou a não crer nele, não é preciso considerá-lo em si, como se faria com uma proposição de
geometria, mas é preciso considerar todas as circunstâncias que o acompanham, internas ou externas.
Denomino internas as circunstâncias que pertencem ao fato em si, e externas as que dizem respeito às
pessoas por meio de cujo T. somos levados a crer nele" (ARNAULD, Log., IV, 13). Locke, por sua vez,
introduzia o T. como um dos dois fundamentos do juízo de probabilidade (o outro é "a conformidade de
uma coisa com o nosso conhecimento, observação ou experiência"). Segundo Locke, no T. dos outros é
preciso considerar: 1B
o número de testemunhas; 2S
sua integridade; 3Q
sua capacidade; 4e
a intenção do
autor, se o T. for extraído de um livro; 5Q
a coerência entre as partes e as circunstâncias da relação; 62
os
T. contrários" (Ensaio, IV, 15, 4). Leibniz admitia o valor do T. subordinada-mente ao caráter de
verossimilhança do acontecimento testemunhado, como argumento "não artificial", que se diferencia dos
"artificiais", deduzidos das coisas através do raciocínio. Todavia, observava que o T. pode fornecer um
fato que leva à formação de um argumento artificial (Nouv. ess., IV, 15, 4). Hamilton assim resumia a
teoria do T.: "O objeto do T. é chamado de fato (facturri); sua validade constitui o que se chama de
credibilidade histórica (cre-dibilitas histórica). Para avaliar essa credibilidade, é preciso considerar: ls
a
fidedignidade do T. (Jides testium); 2Q
a probabilidade objetiva do fato. A primeira baseia-se em parte na
sinceridade da testemunha e em parte na sua competência. A segunda depende da possibilidade absoluta e
relativa do próprio fato. O T. é imediato ou mediato. É imediato quando o fato relatado é objeto de
experiência pessoal; é mediato se o fato é objeto de experiência alheia" (Lectures on Logic, 2- ed., II, pp. 175-76). TESTSENTENCE. V. TESTABILIDADE. TÉTICA (ai. Thetik). Segundo Kant, "qualquer conjunto de doutrinas
dogmáticas", em oposição a Antitética(v.) (Crít. R. Pura, Dialética, livro II, cap. 2, seç. 2).
TÉTICO (in. Thetic; fr. Thétique, ai. The-tisch; it. Teticó). Que afirma ou põe. Fichte chamou de T. "o
juízo no qual alguma coisa não é posta como igual ou contrária a outra, mas apenas como igual a si
mesma". Esse juízo se dis-tinguiria do juízo antitético e do juízo sintético"; mais precisamente se oporia
ao juízo antitético. O supremo juízo T. seria "Eu sou", no qual, segundo Fichte, "nada se afirma do eu,
mas deixa-se vazio p lugar do predicado para a possível determinação do eu ao infinito". Este juízo seria
"a absoluta posição do eu" (Wissens-chaftslehre, 1794, I, § 3, D7).
Esse adjetivo foi usado na maioria das vezes em sentido análogo ao estabelecido por Fichte. Husserl
chamou de T. "os atos que põem o ser", ou seja, que têm caráter de crença (Ideen, I, § 103).
TETRÁCTIS (gr. texpociecúç). Segundo os pitagóricos, a soma dos primeiros quatro números, ou seja, o
número 10, representável por um triângulo cujo lado é o 4. (Carm. aur., 48). A figura constitui uma
disposição geométrica que expressa um número, ou constitui um número expresso por uma disposição
geométrica. Tinha caráter sagrado, e os pitagóricos costumavam jurar por ela.
TETRAFARMACON (gr. TetpacpáputtKov). Com este termo (que significa propriamente um
medicamento composto por quatro elementos), Filodemo (Herc. Vol., 1005, 4) indicou o conjunto das
quatro máximas fundamentais da ética epicurista: lâ
não temer a divindade, que não se preocupa com
homem; 2- não temer a morte; 3a
ter em mente a facilidade do prazer; 4- ter em mente a brevidade da dor
(cf. EPICURO, Ep. aMenec, 123, 124. 133)
TEURGIA (gr. Geotipyía; lat. Theurgia-, in. Theurgy, fr. Théurgie, ai. Théurgie, it. Teurgid). Poder
mágico ou purificador das técnicas religiosas, dos ritos. Já admitida por Porfírio (v. AGOSTINHO, De civ.
Dei, X, 9), segundo Jâmblico ela estaria acima da união espiritual com Deus, ou seja, do êxtase. Ainda
segundo Jâmblico, a característica da T. é o valor autônomo que os ritos possuem, independentemente de
quem os utiliza, vale dizer, sua capacidade de comover ou
TIMOCRACIA
959
TIRANIA
convencer as potências divinas {De myst. aegyp., II, 11). S. Agostinho dedicou grande parte de sua obra à
crítica da T., que, na sua opinião, se endereçaria indiferentemente aos demônios ou aos anjos {De civ. Dei,
X, 10 ss.). Kant considerou a T. como "a ilusão da fantasia que consiste em acreditar possuir a
inteligência de outros seres supra-sensíveis e de poder influir sobre eles"; para ele, assim como a teosofia,
a T. é impossibilitada pelo reconhecimento da limitação da razão (Crít. do Juízo, § 89).
TIMOCRACIA (gr. 'U|iOKpaTía; in. Timocra-cy, fr. Timocratie, ai. Timokratie, it. Timocraziá). 1. Forma
de governo baseada no desejo de honradas, que, segundo Platão, é uma corrupção da aristocracia {Rep.,
VIII, 545 b).
2. Forma de governo baseada na riqueza, segundo Aristóteles {Et. nic, VIII, 10, 1160 a 36).
TTMOLOGIA. V. AXIOLOGIA.
TÍPICA (in. Typics; fr. Typique, ai. Typik, it. Tipica). Kant chamou de "T. do juízo prático" o que na
Crítica da Razão Prática corresponde ao esquematismo (v.) transcendental da Crítica da Razão Pura. O
tipo da lei moral é a própria lei moral que "pode ser manifestada de forma concreta no objeto dos
sentidos", ou seja, livremente realizada no mundo sensível {Crít. R. Prática, livro I, cap. II).
TÍPICO (in. Typical; fr. Typique, ai. Typisch; it. Tipico). Em geral, o que corresponde a um tipo, a um
modelo ou a uma representação geral ou esquemática, ou então o que exprime ou realiza os caracteres do
tipo. Assim, p. ex., a "beleza T.", exaltada por Ruskin, é a beleza idealizada segundo certo modelo.
"Representação T." é uma representação generalizada e comum a uma classe de coisas. "Características
T." são as que distinguem o tipo, ao passo que uma "experiência T." é a que pode servir de modelo a
muitas outras experiências ou resume suas características comuns.
Como se vê, esse termo não tem um significado rigoroso, mas sempre implica a referência ao que é
comum e geral e que, justamente por isso, é considerado fundamental.
TIPO (gr. xÚ7toç; in. Type, fr. Type, ai. Typus; it. Tipo). No sentido de modelo, forma, esquema ou
conjunto interligado de características que pode ser repetido por um número indefinido de exemplares,
essa palavra já é usada por Platão {Rep, 379 a, 380 c, 396 e, etc.) e por Aristóteles {Et. nic, II, 2, 1104 a 1;
Ibid., II, 7, 1107 b 14, etc). Galeno usou-a para indicar as
formas da doença {Op., ed. Kühn, VII, 463), e essa palavra continuou com o mesmo significado em
muitos usos correntes da linguagem comum, científica e filosófica. A biologia e a psicologia utilizam
muito esse termo e o consideram fundamental. Kretschmer, p. ex., diz: "Aquilo que chamamos,
matematicamente, de pontos focais de correlações estatísticas, chamamos também, em prosa mais
descritiva, de T. constitucionais. (...) Pode-se reconhecer o T. verdadeiro pelo fato de ele sempre conduzir
a maiores conexões de importância biológica. Sempre que há muitas e renovadas correlações com fatores
biológicos fundamentais (...) estamos diante de pontos focais da máxima importância" {Kõrperbau und
Charakter, 1948). Em psicologia, o T. é analogamente definido como "um grupo de padrões correlativos", do mesmo modo como padrão é definido como um grupo de atos comportamentais ou de
tendências a ações correlativas (H. J. EYSENCK, The Structure ofHuman Personality, 1953, pp. 13 ss.).
O significado dessa palavra não muda na chamada "teoria dos T. lógicos" de Russell e Whitehead, na qual
designa as formas ou os modelos dos conceitos (v. ANTINOMIA). Para Peirce, T. é a palavra ou o signo que
não sejam uma coisa única ou um evento único, mas uma "forma definidamente significante" que, para
ser usada, deve ganhar corpo numa ocorrência {tokerí); esta deve ser o signo de um T., portanto do objeto
que o T. significa. P. ex., é T. o artigo "o" na língua portuguesa, que não pode ser visto ou ouvido porque
não é um evento único, mas determina os eventos únicos, vale dizer, as ocorrências ou os exemplos dele
no discurso escrito ou falado {Coil. Pap., 4.537) (v.
OCORRÊNCIA; PALAVRA; SlGNO).
TIPOLOGIA (in. Typology, fr. Typologie, ai. Typologie, it. Tipologia). Estudo dos tipos numa disciplina
ou ciência qualquer; p. ex., T. biológica, T. racial, T. psicológica, etc.
TIQUISMO. V. CAUSALIDADE.
TIRANIA (gr. túpavvtç; lat. Tyrannis; in. Tyranny fr. Tyrannie, ai. Tyrannei; it. Tiran-nide). Forma de
governo em que o arbítrio de uma ou várias pessoas representa a lei. O conceito de T. foi elaborado pelos
gregos, juntamente com o de constituição livre. A definição de tirano já se encontra nos versos de Eurípides.- "Não há pior inimigo que um tirano numa cidade, sob o qual desaparecem todas as leis comuns,
e só uma pessoa comanda, tendo
TIRANIA
960
TODO1
a lei em suas mãos" (Suppl, II, 429-32). Segundo Platão, a T. é conseqüência da excessiva liberdade em
que às vezes incidem as democracias. "Ao fugir da fumaça — como se diz — da servidão sob um
governo de homens livres, o povo acaba caindo, com a T., no fogo da servidão sob o despotismo de
servos e, em troca daquela liberdade excessiva e inoportuna, é obrigado a vestir a túnica do escravo e a
sujeitar-se à mais triste e amarga das servidões, a de ser servo dos servos" (Rep., VIII, 569 b-c).
Aristóteles diz que a T. acumula os males da democracia e os da oligarquia. Da oligarquia extrai a
finalidade, que é a riqueza (única condição para se manter o poder e o luxo), bem como a falta de
confiança no povo, que é privado de armas, e a agressão à população, que é afastada das cidades e
espalhada pelo campo. Da democracia toma a luta contra os notáveis, sua destruição pública ou oculta, o
seu exílio (Pol, V 1, 1311 a 8 ss.). Na Idade Média, ao mesmo tempo em que S. Tomás acha que "quando
a monarquia se transforma em T. o mal é menor do que quando um governo de maioria se corrompe" (De
regimine principum, I, 5) e condena o tiranicídio, recomendando paciência aos súditos para suportar a T.
ou confiando num poder superior para eliminá-la (Ibid., I, 6), João de Salisbury defende explicitamente o
tiranicídio por considerar que o tirano é um rebelde contra a lei à qual os reis, tanto quanto todos os
cidadãos, estão vinculados (Policraticus, IV, 7). Essas idéias depois foram freqüentemente repetidas pelos
adversários irredutíveis da monarquia e pelos jusnaturalistas do séc. XVI e XVII. Bodin dizia: "A maior
diferença entre o rei e o tirano é que o rei se conforma às leis da natureza e o tirano as esmaga; um cultiva
a piedade, a justiça e a fé; o outro não tem Deus, fé ou lei" (De Ia republique, 1576, II, 4, 246). Locke
afirmava: "Onde acaba a lei começa a T., quando a lei é transgredida em prejuízo de outros; e todo aquele
que, no exercício da autoridade, exceder o poder que lhe foi conferido pela lei e usar a força para realizar
em relação aos súditos o que a lei não lhe permite, está deixando de ser magistrado e, por estar
deliberando sem autoridade, pode sofrer oposição tanto quanto sofre oposição qualquer outro que viole
pela força os direitos alheios" (Two Treatises of Govemement, II, § 202). Hobbes, ao contrário, afirmara
que "quem se opõe a uma monarquia dá-lhe o nome de tirania" (Le-viath., II, 19, 2).
O conceito de T. acompanhou a formação do liberalismo político porque serviu de pedra de toque ou de
símbolo para tudo o que o liberalismo condenava. Como tal, também constitui um dos temas da retórica
revolucionária e liberal a partir do séc. XVI. Hoje esse termo é bem menos usado, não porque os regimes
tirânicos tenham desaparecido ou porque não haja mais o perigo de que estes se instaurem mesmo onde
vigore certo grau de liberdade, mas apenas porque ele parece pertencer a uma espécie de retórica fora de
moda. Absolutismoou totalitarismo são os termos que substituíram tirania, mas o conceito não mudou, e
estas mesmas palavras significam ainda: regime no qual o arbítrio individual ocupa o lugar da lei;
escravidão imposta por escravos; governo que não pode ser mudado nem corrigir a não ser pela violência.
TITANISMO. V. ROMANTISMO.
TODO1
(gr. TÒ 7CÕV; lat. Totum; in. Whole, fr. Tout; ai. Ali; it. Tutto). Um conjunto qualquer de partes,
independentemente da ordem ou da disposição das partes. Nisso o T. pode ser distinguido da totalidade,
em que a ordem das partes não pode ser modificada sem modificar a própria totalidade (v. MUNDO;
TOTALIDADE; UNIVERSO).
Com base nas determinações de Aristóteles (Met., V, 26, 1023 b 25), a lógica medieval dis-tinguia: ls
o T.
universal ou essencial, cujas partes constituem sua substância: p. ex., "corpo vivo"; 2- o T. integral, cujas
partes são quantidades: quantidades semelhantes como em "água", ou quantidades dessemelhantes como
em "árvore"; 3S
o T. na quantidade, que é o universal tomado universalmente como "todo homem" ou
"nenhum homem"; 4e
o T. no modo, que é o universal tomado sem determinação, como "o homem"; 5Q
o
T. no lugar, que é uma determinação que compreende adver-bialmente o lugar, como "em todos os
lugares" ou "em nenhum lugar"; 6S
o T. no tempo, que é uma expressão que compreende adverbial-mente
a totalidade do tempo, como "sempre" e "nunca" (PEDRO HISPANO, Summ. log., 5, 14-23). Nizolio reduzia
a duas estas espécies, argumentando que só duas se encontram na natureza, o T. contínuo (que é uma
coisa só) e o T. descontínuo, que é um conjunto de coisas singulares (De veris principiis, I, 10). A isso
Leibniz acrescentava o T. disjuntivo, como p. ex. "o animal é homem ou bruto" (nota ao trecho citado de
Nizolio). Outras distinções estão
TODO2
961
TOLERÂNCIA
registradas em Hamilton: o T. por si, em que as partes estão interligadas necessariamente, como o corpo e
a alma estão ligados no homem, e o T. per accidens, em que as partes estão ligadas contingentemente. O
T.porsi pode ser: lógico, como um universal; metafísico ou real; físico ou substancial; matemático,
quantitativo ou integral; e coletivo ou de agregação (Lectures on Logic, 2- ed., I, pp. 202 ss.).
Na lógica moderna T. é um operador, mais precisamente o quantificador universal simbolizado pela
notação "(x)" (v. OPERADOR). Quanto à diferença entre todo e qualquer, ver este último termo.
TODO2
. V. QUALQUER.
TODOS. V. QUALQUER.
TOKEN. V. OCORRÊNCIA.
TOLERÂNCIA (in. Toleration, fr. Tolérance; ai. Toleranz, it. Tolleranzà). Norma ou princípio de
liberdade religiosa. Algumas vezes se considerou pouco apta a designar esse princípio uma palavra que
significa "paciência", mas na realidade ela foi o emblema dessa liberdade, desde as primeiras lutas
empreendidas, por meio das quais se afirmou em formas ainda hoje frágeis ou incompletas. Por isso, não
poderia ser substituída por nenhum outro termo. Desde que essas lutas se iniciaram, a T. foi entendida
como coexistência pacífica entre várias confissões religiosas, sendo hoje entendida, em sentido ainda
mais geral, como coexistência pacífica de todas as possíveis atitudes religiosas. O critério para verificar se
essa exigência está sendo realizada nas situações históricas ou políticas é um só: a sua realização significa
que o cidadão não sofre violência, inquirição jurídica ou policial, diminuição ou perda de direitos ou
qualquer tipo de discriminação em virtude de suas convicções, positivas ou negativas, em matéria
religiosa.
O princípio de T., ou pelo menos um corolário imediato, que é a possibilidade de redenção mesmo fora da
fé cristã, encontra-se em alguns filósofos do séc. XIV, especialmente em Ockham. Este diz: "Não é
impossível que Deus designe como digno da vida eterna todo aquele que viva segundo os ditames da justa
razão e que só creia naquilo que sua razão natural indicar como digno de crença. E se Deus assim dispõe,
poderia salvar-se mesmo aquele que na vida só teve como guia a justa razão" (In Sent., III, q. 8, C). Por
outro lado, a T. religiosa já está implícita no conceito que Ockham tinha de Igreja infalível como
comunidade dos
fiéis que viveram desde os tempos dos profetas até hoje (Dialogus inter magistrum et discipu-lum, I, IV,
em GOLDAST, Monarquia, II, p. 402), e do papado como de um principado mi-nistrativus que não pode
negar a ninguém os direitos e as liberdades que Deus concedeu a todos os homens e que o cristianismo
veio reivindicar (De imperatorum etpontificum po-testate, IV, ed. Scholz, p. 458). O famoso conto de
Boccaccio dos três anéis (Decameron, 28) ilustra a possibilidade de salvação concedida igualmente a
maometanos, judeus e cristãos. Todavia, o princípio de T. começou a aparecer como elemento
indispensável da vida civilizada do Ocidente só depois da Reforma, nas lutas que opuseram as várias
facções da cristandade. E provável que tenha sido explicitamente afirmado pela primeira vez pelo grupo
de reformadores italianos que recusaram o dogma da Trindade, ou seja, os socinianos, obrigados por
Calvino a fugir para a Transilvânia e para a Polônia, onde propagaram a sua doutrina. Em 1565, Giacomo
Aconcio, em seu Stratagemata Satanae, via a intolerância religiosa como uma armadilha de Satanás e
afirmava que é essencial à fé apenas o que encoraja a esperança e a caridade. Em 1580, por motivos de
natureza política, Michel de Montaigne defendia a liberdade de consciência em um ensaio (Ess., II, 19).
Por volta de 1593, Jean Bodin defendia, em Colloquium heptaplomeres, a necessidade da paz religiosa, a
ser obtida com um retorno à religião natural que eliminasse as controvérsias dogmáticas. Por sua vez,
Huig van Groot considerava fundamentais as crenças da religião natural, e não coercitivas as crenças da
religião positiva, freqüentemente ambíguas. Para ele, acreditar no cristianismo só é possível com a ajuda
misteriosa de Deus; por conseguinte, querer impô-lo pelas armas é contrário à razão (De jure belli
acpacis, 1625, II. 20, 48-49). Em 1644, Milton escrevia seu discurso pela liberdade de imprensa,
intitulado Areopagitica. Todas essas defesas do princípio de T. aduzem em seu favor argumentos políticos
e religiosos, mais que filosóficos ou conceituais; aliás, na maioria das vezes os argumentos são
especificamente religiosos, tendo então valor apenas para quem compartilha as crenças religiosas a que
fazem apelo.
O primeiro a basear a defesa da T. em argumentos objetivos foi Spinoza, que apresentou em seu favor o
argumento por excelência, ou seja, a violência e a imposição não podem pro-
TOLERÂNCIA
962
TOMISMO
mover a fé; portanto, as leis que se propõem esse fim são inúteis (Tractatus theologico-po-liticus, 1670,
cap. 20). Desse ponto de vista, é clássica a Epístola sobre a T. (l689). Nesse texto, Locke demonstra que,
ao examinar independentemente o conceito de Estado e o de Igreja, o princípio de T. acaba sendo o ponto
de encontro de suas respectivas tarefas e interesses. O Estado é "uma sociedade de homens, estabelecida
unicamente para conservar e promover os bens civis", entendendo-se por bens civis a vida, a liberdade, a
integridade e o bem-estar físico, a posse dos bens externos, etc. Portanto, entre suas funções não está o
cuidado com as almas e a sua salvação eterna, porque em relação a essa tarefa o magistrado civil é
incompetente como qualquer outro cidadão e não possui nenhum instrumento eficaz, visto que seu único
instrumento é a coação, e ninguém pode ser obrigado a salvar-se. Por outro lado, a Igreja é "uma
sociedade livre de homens, unidos espontaneamente para servir a Deus, em público, do modo que
julgarem mais aceito por Ele, com o fim de obter a redenção de suas almas". Como sociedade livre e
voluntária, não pode vincular ninguém por meio da força, e as sanções de sua competência são as
exortações, as advertências e os conselhos, únicos capazes de promover a persuasão e a fé. O princípio de
T. garante igualmente o interesse religioso da Igreja e o interesse político do Estado, os direitos dos
cidadãos e as exigências do desenvolvimento cultural e científico.
Contudo, nem mesmo na Epístola de Locke o princípio de T. tem expressão completa, pois para Locke
"quem nega a existência de Deus não deve ser tolerado de nenhum modo". Foi só com o triunfo do
Iluminismo no séc. XVIII e do pensamento político liberal do séc. XIX que se chegou a reconhecer o
princípio de T. em sua forma completa, que é a exposta acima. No entanto, a literatura posterior pouco ou
nada acrescentou às justificações desse princípio apresentadas por Locke; nesse sentido, tampouco se
distingue o Tratado sobre a T. (1763) de Voltaire, cuja justa fama se deve à influência histórica que
exerceu.
O princípio de T. passou a fazer parte da consciência civil dos povos do mundo inteiro. Todavia, a sua
realização nas instituições que regem a vida de muitos povos é incompleta e está sempre sujeita a novos
perigos. As discussões a seu respeito muitas vezes são inspiradas pelo desejo de manter ou restabelecer
privilégios em favor de alguma confissão religiosa específica, procurando-se, na melhor das hipóteses, fazer
concessões formais ao princípio de T. (cf. em especial F. RUFFINI, La liberta religiosa, 1901; J. B. BURY,
A History of Freedom of Tbought, 1913; nova ed., 1952; W. K. JORDAN, The Development of Religious
Toleration in England, 1932 ss.).
2. Na linguagem comum e às vezes na filosófica, a T. também é entendida em sentido mais amplo,
abrangendo qualquer forma de liberdade, seja ela moral, política ou social. Assim entendida, identifica-se
com pluralismo de valores, de grupos e de interesses na sociedade contemporânea; às vezes se discerne
nesse pluralismo um meio para manter o controle dos grupos sociais existentes em toda a sociedade,
portanto um obstáculo à realização de uma nova forma de sociedade. Por "T. pura" entende-se às vezes a
T. que se estende às políticas, às condições e aos comportamentos que não deveriam ser tolerados por
impedirem, ou mesmo destruírem, as probabilidades de uma existência sem medo ou sofrimento. Marcuse
afirmou que, embora a T. indiscriminada se justifique nos debates inócuos e nas discussões acadêmicas,
sendo indispensável na religião e na ciência, nào pode ser admitida quando estão em jogo a paz, a
liberdade e a felicidade da existência, porque nesse caso eqüivaleria à repressão de todos os fatores de
inovação da realidade social {A Critique ofPure Tolerance, de WOLFF, MOORE JR. e MARCUSE, 1965).
Contudo, nesse significado mais genérico, a palavra T. não se distingue de liberdade, e seus problemas
são os mesmos dos limites e das condições da liberdade política.
TOLERÂNCIA, PRINCÍPIO DE. V CON TRADIÇÃO, PRINCÍPIO DE; CONVENCIONALISMO.
TOMISMO (in. Thomism; fr. Thomisme, ai. Thomismus; it. Tomismó). Fundamentos da filosofia de S.
Tomás, conservados e defendidos pelas correntes medievais e modernas que nele se inspiram. Podem ser
assim resumidos:
\° A relação entre razão e fé consiste em confiar à razão a tarefa de demonstrar os preâmbulos da fé (v.
PREAMBULA FIDEI), de esclarecer e defender os dogmas indemonstrá-veis e de proceder de modo
relativamente autônomo (excetuando-se o respeito das verdades de fé que não podem ser contraditas) no
domínio da física e da metafísica.
TÓPICA
963
TOTEMISMO
2
B Analogicidade do ser (v. ANALOGIA), segundo a qual o termo ser, usado com referência à criatura, não
tem significado idêntico, mas apenas semelhante ou correspondente, ao ser de Deus. Este princípio, que
S. Tomás extraía de Avicena, serve para estabelecer a distinção entre teologia e metafísica e a
dependência da metafísica em relação à teologia.
3
B Caráter abstrativo do conhecimento, que consiste em abstrair do objeto, em qualquer caso, a espécie
sensível ou a espécie inteligível (que corresponde à essência da coisa).
4
e
A individuação depende da matéria assinalada (v. INDIVIDUAÇÃO).
5
a
A clássica explicação dos dois dogmas cristãos da Trindade e da Encarnação (v. ENCARNAÇÃO; RELAÇÃO; TRINDADE).
Esses aspectos básicos distinguem claramente o T. do escotismo (v.), que foram duas doutrinas
proeminentes nos sécs. XIV e seguintes, e também constituem os tópicos de maior interesse da retomada
do T. pela neo-escolástica contemporânea. Para a formação histórica do T. contribuíram a obra de Alberto
Magno, mestre de S. Tomás, a obra de Avicena e a de Moisés Maimônides.
TÓPICA (gr. TOTUKÍI xéxvri; lat. Tópica-, in. Topics; fr. Topique, ai. Topik, it. Tópica). Teoria dos lugares
lógicos e a arte de inventá-los (v. LUGARES).
Kant chamou de T. transcendental a teoria dos lugares transcendentais, ou seja, as posições atribuídas aos
conceitos na sensibilidade ou no intelecto puro. Essa T. deveria evitar a anfibolia (uso duvidoso) dos
conceitos de reflexão (Crít. R. Pura, Analítica transe, nota a anfibolia).
Droysen falou também em T. historiogrãfi-ca, que seria a coletânea das exposições do que foi
historicamente investigado {Grundzüge derHistorik, 1882, § 18).
TOPOLOGIA (in. Topology, fr. Topologie, ai. Topologie, it. Topologia). Com este nome, ou com o de
analysis situs, designa-se, há um século, o estudo das propriedades das figuras geométricas que não
variam mesmo quando as figuras são submetidas a transformações tão radicais que perdem suas
propriedades métricas e projetivas. O precursor da T. foi L. Euler (1707-83), mas sua primeira formulação
encontra-se na obra de A. F. Moebius (1790-1868) (cf. especialmente O. VEBLEN, Analysis situs, 2- ed.,
1931, e as palavras GRUPO-, TRANSFORMAÇÃO).
Alguns dos conceitos da T. são aplicáveis a outras disciplinas, sobretudo no gestaltismo, que utilizou o
conceito topológico de região (com as suas várias determinações), que se presta a expressar o espaço vital
de um organismo (KURT LEWIN, Principies of Topological Psychology, 1936, esp. cap. XI e s.). (V.
CAMPO-,
PSICOLOGIA.)
TOTALIDADE (gr. tò õA,ov; lat. Universitas, in. Totality, fr. Totalité; ai. Allheit, Totalitàt; it. Totalitq).
Um todo completo em suas partes e perfeito em sua ordem. Este é o conceito de T. que se encontra em
Aristóteles, que se distingue de todo, cujas partes podem mudar de disposição sem modificar o conjunto
(Mel, V, 26, 1024 a 1). Nesse sentido, o mundo (cosmos) é uma T., mas o universo não (v. MUNDO).
Mesmo nas línguas modernas, a noção de T. conservou a característica da completitude e de disposição
perfeita das partes. Segundo Kant, a "T. das condições" corresponde, na síntese da intuição, à
universalidade do predicado na premissa maior do silogismo. A noção de T. das condições é a idéia da
Razão Pura. Portanto, segundo Kant, a idéia é a noção de uma perfeição, ainda que não de uma perfeição
real (Crít. R. Pura, Dialética, livro I, seç. I-II) (v. TODO).
TOTALITARISMO (in. Totalitarianism; fr. Totalitarisme, ai. Etatismus; it. Totalitarismo). Teoria ou
prática do Estado totalitário, vale dizer, do Estado que pretende identificar-se com a vida dos seus
cidadãos. Esse termo foi cunhado para designar o fascismo italiano e o nazismo alemão. Às vezes
também é usado para designar qualquer doutrina absolutista, em qualquer campo a que se refira (é usado
nesse sentido por G. H. SABINE, A History o/Political Theory, 1951, cap. 35; trad. it., pp. 708 ss.). Muitas
vezes, por extensão, entende-se por T. qualquer forma do absolutismo doutrinário ou político.
TOTEMISMO (in. Totemism-, fr. Totémisme, ai. Totemismus; it. Totemismó). Crença no totem, ou
organização social fundada nessa crença. O termo totem foi extraído do idioma dos índios norteamericanos e depois passou a indicar o fenômeno (presente em todos os povos primitivos) de transformar
uma coisa (natural ou artificial) em emblema do grupo social e em garantia da sua solidariedade. Foi
Durkheim quem mais enfatizou esse caráter do' totem, vendo nele a expressão da unidade do grupo social
em sua inteireza e, portanto, nas inter-re-
TOTO-PARCIAL, TODO-TOTAL
964
TRABALHO
laçòes dos clans em que o grupo se divide (Les formes élémentaires de Ia vie religieuse, 1912). Ao lado
desse caráter do T., A. R. Radcliffe-Brown evidenciou o seu caráter ainda mais universal, segundo o qual
o T. constituiria "uma representação do universo como ordem moral e social"; portanto, a regulamentação
da relação entre o homem e a natureza, além da regulamentação da relação entre os homens, seria um
elemento universal da cultura humana {Structure and Function in Primitive Society, 1952, cap. VI). LéviStrauss, porém, parece reduzir o T. a fenômeno lingüístico formal: "Aquilo que se chama de T. é apenas
uma expressão particular, através de uma nomenclatura especial formada por nomes de animais e de
plantas (ou, como diríamos, um código), que é seu único caráter distintivo, das correlações e opo-sições
que podem ser formalizadas de outros modos: p. ex., como acontece em certas tribos das Américas, por
oposições do tipo céu-terra, guerra-paz, em cima-embaixo, vermelho-bran-co, etc." (Le totémisme
aujourd'hui, 1962, p. 172). Por outro lado, Freud apresentou uma interpretação psicanalítica do T.: "Se o
animal totem é o pai, então os dois principais preceitos do T., de não matar o totem e de não usufruir
sexualmente de nenhuma mulher do totem, coincidem substancialmente com os dois crimes de Édipo (que
matou o pai e casou-se com a mãe) e com os desejos primitivos da criança, desejos cuja remoção
insuficiente ou cujo despertar talvez constituam a raiz de todas as psiconeuroses" {Totem e tabu, 1913, IV,
3; trad. it., p. 146). Para uma interpretação semelhante a esta de Freud, v. J. G. FRAZER, Totemism and
Exogamy, 1910.
TOTÒ-PARCIAL, TOTO-TOTAL (in. Toto-partial, Toto-total). Expressões usadas por W. Hamilton
para indicar, respectivamente, a proposição na qual o sujeito é considerado universalmente e o predicado,
particularmente (ex., os homens são animais), e a proposição na qual tanto o sujeito quanto o predicado
são considerados universalmente (ex. os animais são mortais) (Lectures on Logic, II, p. 287).
TRABALHO (gr. TTÓVOÇ; lat. Labor, in. Labor, fr. Travail; ai. Arbeit; it. Lavoró). Atividade cujo fim é
utilizar as coisas naturais ou modificar o ambiente e satisfazer às necessidades humanas. Por isso, o
conceito de T. implica: 1) dependência do homem em relação à natureza, no que se refere à sua vida e aos
seus interesses: isso constitui a necessidade, num de seus
sentidos (v.); 2) reação ativa a essa dependência, constituída por operações mais ou menos complexas,
com vistas à elaboração ou à utilização dos elementos naturais; 3) grau mais ou menos elevado de
esforço, sofrimento ou fadiga, que constitui o custo humano do trabalho.
Era principalmente nesse aspecto que se baseava a condenação da filosofia antiga e medieval ao T.
manual (v. BANAUSIA). Com esse mesmo aspecto, na Bíblia o T. é considerado parte da maldição divina,
decorrente do pecado original {Gênese, III, 19). Num texto famoso de S. Paulo, o preceito "Quem não
quer trabalhar não coma" deriva da obrigação de não onerar os outros com o cansaço e o sofrimento do T.
(77 Tessal., III, 8-10). Era nesse mesmo sentido que S. Agostinho {De operibus monachorum, 17-18) e S.
Tomás {S. Th., II, II, q. 187 a. 3) prescreviam o T. como preceito religioso. Na exigência de distribuir
imparcialmente o sofrimento e a degradação do T. manual inspiraram-se Utopia (1516), de Thomas More,
e A cidade do Sol (1602), de Campanella, que prescrevem para todos os membros de sua cidade ideal a
obrigação do trabalho.
Com base nisso, fixava-se a contraposição entre trabalho manual e atividade intelectual, entre artes
mecânicas e artes liberais. Mesmo no Renascimento, a defesa quase unânime feita por literatos e filósofos
da vida ativa em oposição à contemplativa e a condenação unânime ao ócio (que perde o caráter de
disponibilidade para atividades superiores atribuído pela Antigüidade clássica) nem sempre levam à
revalorização do T. manual. Um trecho de Giordano Bruno afirma que a providência dispôs que o homem
"se ocupe na ação das mãos e na contemplação do intelecto, de tal maneira que não contemple sem ação e
não obre sem contemplação" {Spaccio delia bestia trionfante, 1584, em Op. itali, II, p. 152). Mas é
sobretudo nos textos científicos e técnicos que se afirma, a partir do séc. XV, a dignidade do T. manual.
Galileu reconhecia explicitamente o valor das observações feitas pelos artesãos mecânicos para a pesquisa
científica (Discorsi intorno a due nuovescienze, em Op., VIII, p. 49). Bacon fundamentava seu
experimentalismo nas "artes mecânicas", que agem sobre a natureza e se enriquecem com a luz da
experiência {Nov. Org., I, 74), e considerava, pois, indispensáveis as operações materiais ou manuais para
a obtenção de um saber que fosse ao mesmo tem-
TRABALHO
965
TRABALHO
po poder sobre a natureza, com vistas à satisfação das necessidades e dos interesses humanos {Ibid., I,
83). Se Descartes dava pouca importância à parte técnica ou instrumental da ciência (que para ele
continua sendo um sistema rigidamente dedutivo) e ao T. manual, Leibniz, ao contrário, insistia na
importância do T. dos artesãos, dos agricultores, dos marinheiros, dos comerciantes, dos músicos, não só
em proveito da ciência, mas também da vida e da civilização (Phil. Schriften, VII, pp. 180 ss.).
Essas idéias tornaram-se dominantes no Ilu-minismo, sobretudo graças a Bacon e a Locke; este último
reconhecia na investigação experimental, voltada para a determinação das propriedades dos corpos
físicos, único instrumento de que o intelecto humano dispõe para ampliar esse tipo de conhecimento, visto
que a substância dos corpos continua desconhecida {Ensaio, IV, II, 25). Na esteira de Bacon, o verbete
"Art", de Diderot na Encyclopédie, criticava a distinção das artes em liberais e mecânicas, considerando-a
preconceito, tendente a "encher as cidades de raciocinadores orgulhosos e de contemplativos supérfluos, e
os campos de tiranetes ociosos, preguiçosos e arrogantes". O Iluminismo, em geral, marca a reivindicação
da dignidade do T. manual, a partir do qual Rousseau desejava que Emílio adquirisse as primeiras idéias
sobre solidariedade social e sobre as obrigações que ela impõe {Émile, [1762], IV). Kant, mesmo fazendo
a distinção entre T. e arte, não considerava possível uma separação nítida porque até nas artes liberais "é
necessário algo de obrigatório e — como se diz — um mecanismo sem o qual o espírito não adquiriria
corpo e evaporaria" (Crít. do Juízo, § 43).
Foi só no Romantismo que se começou a estabelecer a relação entre o T. e a natureza do homem. Fichte
afirmava que até mesmo a ocupação mais reles e insignificante, se estiver ligada à conservação e à livre
atividade dos seres morais, é santificada tanto quanto a ação mais elevada {Sittenlehre, III, § 28). Foi
Hegel quem formulou a primeira teoria filosófica do T., utilizando os resultados a que chegara Adam
Smith na economia política (v.). Já em Lições de Iena (1803-04), Hegel considerava o T. como "mediação
entre o homem e seu mundo"; isso porque, diferentemente dos animais, o homem não consome de
imediato o produto natural, mas elabora de maneiras diferentes e para os fins mais diversos a matéria
fornecida pela natureza, conferindo-lhe assim valor e conformidade com o fim a que se destina {Fil. do dir., § 196). Só na
satisfação de suas necessidades através do T. é que o homem é realmente homem, porque assim se educa
tanto teoricamente. por meio dos conhecimentos que o T. exige, quanto na prática, ao habituar-se à
ocupação, ao adequar suas atividades à natureza da matéria e ao adquirir aptidões universalmente válidas.
Por isso, ao contrário do bárbaro, que é preguiçoso, o homem civilizado é educado no costume e na
necessidade da ocupação {Ibid., § 197 e Zusatz). Através do T., "o egoísmo subjetivo converte-se na
satisfação das necessidades de todos os outros", de tal modo que, enquanto "alguém adquire, produz e
usufrui, justamente por isso está produzindo e adquirindo para o usufruto de outros" {Ibid., § 199). Hegel
também evidenciou o crescimento indefinido das necessidades, a importância da divisão do T. e a
relevância assumida pela distinção de classes, com base nessa divisão {Ibid., §§ 195, 241, 245). Viu
também que a divisão do T. leva à substituição do homem pela máquina. Isso porque, com essa divisão,
aumenta realmente a facilidade do T. — portanto da produção —, mas ao mesmo tempo ocorre a
limitação a uma única habilidade, portanto a dependência incondicional do indivíduo ao contexto social.
A própria habilidade torna-se mecânica e ocasiona a substituição do T. humano pela máquina {Ene, §
526). Esses princípios hegelianos foram aceitos por Marx, que, no entanto, insiste no caráter natural ou
material da relação criada pelo T. entre o homem e o mundo, contra o caráter espiritual atribuído por
Hegel, que permitia considerá-lo um momento ou uma manifestação da consciência. Segundo Marx, os
homens começaram a distinguir-se dos animais quando "começaram a produzir seus próprios meios de
subsistência, progresso este condicionado pela organização física humana. Produzindo seus meios de
subsistência, os homens produzem indiretamente sua própria vida material" {Ideologia alemã, I, A; trad.
it., p. 17). Portanto, o T. não é apenas o meio com que os homens asseguram sua subsistência: é a própria
extrinsecação e produção de sua vida, é um modo de vida determinado. A produção e o T. não são, pois,
uma condenação para o homem: constituem o próprio homem, seu modo específico de ser e de fazer-se
homem. Pelo T., a natureza torna-se "o corpo inorgânico do homem", e o homem pode ascender à cons-
TRABALHO
966
TRADIÇÃO
ciência de si mesmo, não tanto como indivíduo, mas como "espécie de natureza universal" (Manuscritos
econômico-políticos de 1844, I, trad. it., pp. 230 ss.). O T. também transforma o homem num ente social
porque o põe em contato com os outros indivíduos, mais do que com a natureza: desse modo, as relações
de T. e de produção constituem a trama ou a estrutura autência da história, cujos reflexos são as várias
formas de consciência. Isso acontece, porém, no T. não alienado, que não se tornou mercadoria; no
trabalho alienado, que ocorre na sociedade capitalista, manifesta-se o contraste entre a personalidade
individual do proletário e o T. como condição de vida que lhe é imposta pelas relações das quais faz parte
como objeto, e não como sujeito (Ideologia alemã, I, C; trad. it., p. 75).
Do ponto de vista da ética religiosa, Kierke-gaard afirmava a estreita conexão do T. com a dignidade
humana: "Quanto mais baixo é o escalão em que está a vida humana, menos necessidade há de trabalhar;
quanto mais alto, tanto mais essa necessidade se manifesta. O dever de trabalhar para viver exprime o
universal humano, inclusive no sentido de ser uma manifestação da liberdade. É exatamente por meio do
T. que o homem se torna livre; o T. domina a natureza: com o T. ele mostra que está acima da natureza
(Entweder-Oder, II, em Werke, III, p. 301).
Essa estreita conexão do trabalho com a existência humana, que enobrece o T. e graças à qual ele é fim,
além de meio, passa a ser lugar-comum em filosofia e, em geral, na cultura contemporânea. Mesmo fora
do âmbito marxista, o caráter penoso do T. não é atribuído ao T. em si, mas às condições sociais em que
ele é realizado nas sociedades industriais. Dewey diz: "É natural que a atividade seja agradável. Ela tende
a encontrar saídas, e encontrá-las é, em si, gratificante porque marca um êxito parcial. O fato de a
atividade produtiva ter-se tornado tão inerentemente insatisfatória que os homens precisam ser induzidos
a empenhar-se nela por vias artificiais é prova de que as condições em que o T. se realiza impedem o
conjunto de atividades, em vez de promovê-las, irritam e frustram as tendências naturais, em vez de
orientá-las para a fruição" (Human Nature and Conduct, II, 3, pp. 123-24). Nietz-sche, porém, via no T.
uma traição à espiritualidade alegre e contemplativa que deveria ser própria do homem. Escreveu a
propósito
dos americanos: "O seu furibundo T. sem fôlego — vício peculiar do Novo Mundo — já começa, por
contágio, a asselvajar a velha Europa e a estender sobre ela uma prodigiosa falta de espiritualidade".
Notara que só o T. proporciona "a boa consciência" e que, ao contrário, a inclinação à alegria, chamada de
"necessidade de criação", começa a ter vergonha de si mesma (Die Froehlich Wissenschaft, 1882, § 329).
Vira no T. assim concebido a melhor polícia, que mantém todos subjugados e consegue impedir
vigorosamente o desenvolvimento da razão, do desejo violento, do gosto pela independência
(Morgenrõthe, 1881, § 173). A essas idéias de Nietzsche remete-se, implícita ou explicitamente, quem
contrapõe entretenimento e T. ou quer transformar o T. em entretenimento. "O entretenimento é
improdutivo e inútil" — escreveu Marcuse — "exatamente porque apaga as características repressivas e
exploradoras do T. e da riqueza; mas ele 'simplesmente se en-tretém' com a realidade". Por outro lado, o
próprio Marcuse afirma que uma ordem "não repressiva" do T. é uma ordem de abundância, que ocorre
"quando todas as necessidades fundamentais podem ser satisfeitas com um gasto mínimo de energia física
e psíquica, em tempo mínimo" (Eros ecivilização, cap. 9, trad. it., pp. 212-13). Por trás da condenação do
valor do T., mais que censura às formas alienadas que o T. assumiu na civilização contemporânea, está a
nostalgia da vida puramente contemplativa, a fé numa vida instintiva que, não fora reprimida pelo T.,
levaria o homem infalivelmente ao paraíso perdido.
TRADIÇÃO (gr. 7rapáSocnç; in. Tradition-, fr. Tradition; ai. Überlieferung; it. Tradizioné). Herança
cultural, transmissão de crenças ou técnicas de uma geração para outra. No domínio da filosofia, o recurso
à T. implica o reconhecimento da verdade da T., que, desse ponto de vista, se torna garantia de verdade e,
às vezes, a única garantia possível. Foi entendida nesse sentido pelo próprio Aristóteles, que, em suas
investigações, recorre freqüentemente à T., considerando-a garantia de verdade: "Nossos antepassados,
das mais remotas idades, transmitiram à posteridade tradições em forma mítica, segundo as quais os
corpos celestes são divindades e o divino abrange a natureza inteira. Outras T. foram acrescentadas em
forma de mito, para persuadir a maioria e como objetivo de reforçar as leis e promover a utilidade
pública; elas dizem que os deuses têm forma de ho-
TRADIÇÃO
967
TRADICIONAIISMO
mens ou de outros animais, dando sobre eles outros pormenores semelhantes. Mas, se considerarmos
apenas o essencial em separado do resto, ou seja, que as primeiras substâncias são tradicionalmente
consideradas divindades, poderemos reconhecer que isso foi divinamente dito e que estes e outros mitos,
ainda que explorados, aperfeiçoados e novamente perdidos pelas artes e pela filosofia, foram conservados
até hoje como antigas relíquias. É só desse modo que podemos tornar claras as opiniões dos nossos
antepassados e predecessores" (Met., XII, 8, 1074 b). Para Aristóteles, sua própria filosofia consiste em
libertar a T. de seus elementos míticos, portanto em descobrir a T. autêntica ao mesmo tempo em que se
funda na garantia oferecida por essa mesma T. Esse foi o ponto de vista que predominou no último
período da filosofia grega, especialmente na corrente neoplatônica. Plotino dizia: "É preciso crer sem
dúvida que a verdade foi descoberta por antigos e santos filósofos; a nós convém examinar quem as
encontrou e como poderemos chegar a compreendê-la" (Enn., III, 7, 1). Foi graças a essa idéia que, com
base numa suposta T., se tornou possível fabricar documentos fictícios quando os autênticos faltavam; e
as obras de falsas atribuições — as mais famosas foram as de Hermes Trismegisto — obedecem à
exigência de remeter ao passado a doutrina em que se acredita e de atribuir-lhe, embora fraudulentamente,
o prestígio e a garantia da tradição.
Desde então, o conceito de T. não mudou, conservando a aparência ou a promessa dessa garantia. O
grande retorno da idéia de T. está no Romantismo. Em Ideen zur Philosophie der Geschichte der
Menschheit (1783-1791), J. G. Herder exaltara a T. como "cadeia sagrada que liga os homens ao passado,
conserva e transmite tudo que foi feito pelos que os precederam". Hegel exaltou explicitamente ale
insistiu no seu caráter providencial: "A T. não é uma estátua imóvel, mas vive e mana como um rio
impetuoso que mais cresce quanto mais se afasta da origem. (...) O que cada geração produziu no campo
da ciência e do espírito é uma herança para a qual todo o mundo anterior contribuiu com sua economia, é
um santuário em cujas paredes os homens de todas as estirpes, gratos e felizes, afixaram tudo o que os
auxiliou na vida, o que eles hauriram das profundezas da natureza e do espírito. E esse herdar é, ao
mesmo tempo, receber a herança e fazê-la fortificar" (Geschichte der Philosophie, ed. Glock-ner, I, p. 29). Nesse sentido, obviamente, a T. é apenas
outro nome para designar o plano providencial da história (v. HISTÓRIA).
Foi esse o ponto de vista dominante em todo o Romantismo, sendo o chamado tradi-cionalismo (v.)
apenas uma de suas manifestações.
A antítese dessa valorização da T. é a concepção segundo a qual: I
a
nem todos os resultados, nem os
melhores produtos da atividade humana foram infalivelmente conservados e incrementados ao longo do
desenvolvimento histórico-, 29
o que esse desenvolvimento conservou nem por isso tem garantia de
verdade ou de valor. Concepção desse tipo foi assumida pelo Iluminismo (por isso mesmo
freqüentemente definido como anti-historicista por quem vê a história como ordem providencial ou T.). O
Iluminismo erigiu-se contra a T., afirmando que sua herança, na maioria das vezes, é erro, preconceito ou
superstição, e recorrendo ao juízo da razão crítica para contestá-la (v. ILUMINISMO).
Como se vê, as discussões filosóficas sobre o significado e a importância da T. na realidade são
discussões sobre história (v.). No campo da sociologia, porém, analisar a T. é o mesmo que analisar
determinada atitude, ou melhor, um tipo e espécie de atitude, mais precisamente a que consiste na
aquisição inconsciente (não deliberada) de crenças e técnicas. Na atitude tradicionalista, o indivíduo
considera como seus os modos de ser e de comportar-se que recebeu ou continua recebendo do ambiente
social, sem perceber que são modos de ser do grupo social. Na T., não há distinção entre presente e
passado, entre "mim" e os outros, sendo por isso uma forma de comunicação primitiva e imprópria
(ABBAGNANO, Pro-blemi di sociologia, 1959, XI, 3). Segundo esse ponto de vista, a atitude
tradicionalista opõe-se à atitude crítica, graças à qual o indivíduo tem certa liberdade de juízo (que no
entanto nunca é absoluta ou infalível) em relação às crenças e técnicas que hauriu da tradição. A atitude
crítica tem condições antitéticas em relação às da T.: alteridade entre presente e passado e entre os
indivíduos.
TRADICIONAIISMO (in. Traditionalism-, fr. Traditionalisme; ai. Traditionalismus-, it. Tradizionalismó). 1. Defesa explícita da tradição, cujos principais protagonistas pertencem ao Romantismo
francês: Madame de Staél (1766-
TRADUCIANISMO
968
TRÁGICO
1817), que, em De 1'Allemagne (1813), vê a história humana como progressiva revelação religiosa; René
de Chateaubriand (1769-1848), que, em Génie du christianisme (1802), vê o catolicismo como
depositário da tradição das humanidades; e em Louis de Bonald (1754-1840), Joseph de Maistre (1753-
1821) e Robert Lamennais (1782-1854), que se transformaram em paladinos das duas principais
instituições personificadoras da T., verberadas pelo Ilu-minismo e hostilizadas pela Revolução: a Igreja e
o Estado. Por isso, esses escritores também foram chamados de teocrãticos ou ultramon-tanistas (v.
TEOCRACIA).
2. Em sentido mais geral e filosófico, pode-se entender por T. o retorno à tradição que marcou o
Romantismo da primeira metade do séc. XIX, entre cujos defensores estariam seus principais
protagonistas (Fichte, Schelling, He-gel, Maine de Biran [1766-1824], Antônio Rosmini Serbati [1797-
1855], Vincenzo Gioberti [1801-52] e o próprio Giuseppe Mazzini [1805-72]) e outros escritores menores
em vários países (p. ex., o inglês J. Martineau [1805-1900]). A idéia comum de todos esses pensadores é
que tanto o pensamento individual quanto a tradição da humanidade baseiam-se numa revelação direta de
Deus, que o homem tem o dever de desenvolver com a reflexão individual e com a ação coletiva. A idéia
do ser, de Rosmini, é a melhor expressão conceituai dessa noção de revelação progressiva. Aplicado à
história, este conceito é o mesmo que providencialismo (v.).
TRADUCIANISMO (in. Traducianism; ai. Traducianismus; it. Traducianismo). Doutrina segundo a
qual a alma dos filhos provém da alma dos pais assim como um ramo (tradux) provém da árvore. Essa
doutrina já se encontrava nos estóicos (TEMÍSTIO, Dean., II, 5; GALENO, Op., IV, 699), foi aceita por
Tertuliano (De an., 22) e por outros escritores da patrística e defendida mais tarde pelos teólogos
protestantes que viam nela a possibilidade de explicar a transmissão do pecado original. Era aceita por
Leibniz (Théod., I, § 86).
A mesma doutrina foi, às vezes, indicada com o nome de generacionismo. A doutrina oposta, de que toda
as almas são criadas ex-novo chama-se criacionismo (v.).
TRÁGICO (in. Tragic; fr. Tragique, ai. Tra-gisch; it. Trágico). O conceito de T. foi, às vezes, discutido
pelos filósofos não só em relação à forma de arte que é a tragédia, mas também em relação à vida humana
em geral, ou ao
palco do mundo. O ponto de partida implícito ou explícito dessas discussões quase sempre é a definição
aristotélica de tragédia, segundo a qual ela é "imitação de acontecimentos que provocam piedade e terror
e que ocasionam a purificação dessas emoções" (Poet, 6, 1449 b 23). As situações que provocam "piedade
e terror" são aquelas em que a vida ou a felicidade de pessoas inocentes é posta em perigo, em que os
conflitos não são resolvidos ou são resolvidos de tal modo que determinam "piedade e terror" nos
espectadores. W. Haeger escreveu: "na tragédia grega a felicidade, como toda posse, não pode ficar muito
tempo com quem a detém; a perpétua instabilidade é inerente à sua natureza. A convicção de Sólon, de
que há uma ordem divina no mundo, encontrou nessa noção (embora tão dolorosa para o homem) o apoio
mais sólido. Esquilo também é inconcebível sem tal convicção, que pode ser chamada mais de noção que
de crença" (Paidéia, II, cap. I; trad. it., p. 449). As interpretações da natureza do T. no pensamento
moderno são três. I
a T. é o conflito continuamente resolvido e superado na ordem perfeita do todo; 2a
T. é
o conflito não solucionado e insolúvel; 3a
T. é o conflito que pode ser solucionado, mas cuja solução não é
definitiva nem perfeitamente justa ou satisfatória.
I
a O primeiro conceito de T. é de Hegel, para quem o conflito em que consiste o T., embora constituindo a
substância e a verdadeira realidade, não se conserva como tal, mas encontra justificação só na medida em
que é superado como contradição. "No entanto o objetivo e o caráter T. são legítimos" — diz Hegel —
"porque é necessária a solução do conflito em que ele consiste. Por meio dessa solução a eterna justiça se
afirma sobre os fins e os indivíduos, de tal modo que a substância moral e a sua unidade se restabelecem
com o ocaso das individualidades que perturbam o seu repouso" ÇVorlesungen über die Àsthetik, ed. Glockner, III, p. 530). Portanto, a solução T. restabelece a harmonia, e o que ela destrói é apenas a
"particularidade unilateral" que não pôde concertar-se com a harmonia (Ibid., ed. Glo-ckner, III, p. 530).
Obviamente, desse ponto de vista, que caracteriza o otimismo ou providencialismo de caráter romântico,
a tragédia é simplesmente a aparência de uma comédia substancial: tudo acaba bem, e o que se perde
TRÁGICO
969
TRANSAÇÃO
é a "particularidade unilateral" que não tem o mínimo valor.
2- A segunda interpretação do T. é de Schopenhauer, segundo a qual o T. é conflito insolúvel. Para ele, "a
tragédia é a representação da vida em seu aspecto terrificante. É ela que nos apresenta a dor inominável, a
aflição da humanidade, o triunfo da perfídia, o es-carnecedor domínio do acaso e a fatal ruína dos justos e
dos inocentes; por isso, ela constitui um sinal significativo da natureza do mundo e do ser" {Die Welt, I, §
51). Mas a inevita-bilidade e, portanto, a certeza de um destino maléfico ou de uma injustiça imanente,
assim como a inevitabilidade e a certeza da justiça e da harmonia, suprimem a tragicidade. Diante deles,
de fato, a única atitude possível é a resignação ou o desespero: atitudes que, assim como as que lhe são
opostas, excluem o conflito constitutivo do trágico.
3
a
A terceira concepção foi apresentada por Schiller na obra Über naive und sentimenta-lische Dichtung
(1795-96). Nela, oT. é apresentado como manifestação da poesia sentimental (v. INGENUIDADE), mais
precisamente da poesia que representa o conflito entre o real e o ideal. A poesia sentimental divide-se em
sátira e elegia: na sátira o poeta tem por objeto o geral, considerando-o insuficiente em relação ao ideal.
Ainda segundo Schiller, quando a insuficiência do real é representada pelo conflito entre o real e nossas
exigências morais, tem-se a sátira séria, que é o T. {Werke, ed. Karpeles, XII, p. 150). Em conceitos
semelhantes inspirava-se a chamada "pantragicidade" de Hebbel (v. Werke, X, p. 43). Bem mais
paradoxalmente, Nietzsche via no T., por um lado, o caráter terrificante da existência, por outro a
possibilidade de aceitar e transfigurar esse caráter ou por meio da arte ou da vontade de potência. A
primeira solução é a que Nietzsche atribui aos gregos em Die Geburt der Tragòdie (1872). O homem
grego, que tinha condições de distinguir com clareza o horrível e o absurdo da existência, conseguiu
transfigurá-la por meio do espírito dionisíaco, domando e sujeitando o horrível, que assim se transforma
em sublime (o objeto da tragédia), e libertando da aversão ao absurdo, que assim se transforma em
cômico (o objeto da comédia) {Die Geburt der Tmgõdie, § 7). Mais tarde, Nietzsche achou que a saída do
terrificante da vida estaria na aceitação da vida graças à vontade de potência, considerando o T. como
aceitação dionisíaca do
que é terrificante e incerto. Escreveu então^ "A profundidade do artista T. reside no fato de que seu
instinto estético considera as conseqüências remotas e não se detém com visão estreita nas coisas
próximas; de que ele afirma a economia ã larga, que justifica o que é terrível, maligno e problemático,
mas não se contenta apenas em justificá-lo" {Wille zur Macht, ed. 1901, § 374). Essa concepção do T. —
que costuma ser expressa com imperfeição ou mesclada com as outras duas — pode ser reconhecida pelo
fato de abrir espaço, em sua caracterização, à problematicidade da situação T., vale dizer, à possibilidade
de ela ser decidida de um modo ou de outro, sem que a decisão seja definitiva ou perfeita. Foi com esse
espírito que Miguel de Unamuno entendeu a tragicidade em Do sentimento T. da vida (1913),
expressando-a com o quién sabe? de Don Quixote. No mesmo sentido expressaram-se Scheller {Vom
Umsturz der Werte, 1953), Jaspers {Über das Tragische, 1952) e Cantoni {Trágico e senso comune,
1964). P. Romanell diz que, ao contrário da épica, em que o conflito se dá entre o bem e o mal, no T. o
conflito se dá entre bens diferentes, valores heterogêneos entre os quais a escolha é dolorosa e sempre
implica sacrifício {MakingoftheMexicanMind, 1952, p. 22). Esse caráter do T. é bem realizado na tragédia
grega. A tragédia de Sófocles baseia-se na convicção de que existe uma ordem divina no mundo, em
virtude da qual às vezes o inocente precisa pagar por um erro cometido por outros. O fato de a solução do
conflito não poder ser límpida, de algo se perder nessa solução e de esse algo não ser — como dizia Hegel
— uma "particularidade unilateral" é o que constitui o fascínio e a verdade da tragédia.
TRANQÜILIDADE. V. ATARAXIA.
TRANSAÇÃO (in. Transaction; fr. Transaction; ai. Transaction; it. Transazioné). Termo introduzido em
filosofia por Dewey e Bentley para indicar uma relação que não pressupõe os termos relativos como
entidades em si. Dewey diz: "Esse termo indica negativamente que nem o senso comum nem a ciência
devem ser considerados entidades, como à parte, completo e circunscrito.(...) Positivamente, indica que
devem ser marcados pelas características e pelas propriedades encontradas em tudo o que se reconhece
como T.: p. ex., um negócio ou uma T. comercial. Essa T. transforma um dos participantes em comprador
e o outro em vendedor: não existem compradores e vendedores a não
TRANSCENDÊNCIA
970
TRANSCENDÊNCIA
ser em T. e por causa da T. em que são empenhados" (Knowing and the Known, 1949, p. 270). Na Itália,
esse termo foi empregado por Romagnosi: segundo ele, "do comércio entre o interior e o exterior" do
homem nasce "sobre o pano de fundo do eu pensante uma T. que harmoniza as leis do mundo interior
com o exterior, para formar um único mundo e uma única vida" (Che cos'è Ia mente sana? [1827], ed.
1936, p. 100, 138).
TRANSCENDÊNCIA (in. Trancendence, fr. Transcendance, ai. Transzendez, it. Trascen-denzd). Esse
termo foi usado com dois significados diferentes: \° estado ou condição do princípio divino, do ser além
de tudo, de toda experiência humana (enquanto experiência de coisas) ou do próprio ser; 2- ato de
estabelecer uma relação que exclua a unificação ou a identificação dos termos.
1
Q
No primeiro sentido, esse termo vincula-se à concepção neoplatônica de divindade. Platão já dissera
que o Bem, como princípio supremo de tudo o que é, comparável como tal ao sol que dá vida às coisas e
as torna visíveis, está além da substância (èjiÉKetva Tfjç oüoíaç, Rep., VI, 509 b). A exemplo de Platão,
Plotino repete que o Uno está "além da substância" (Enn., VI, 8, 1 9), mas acrescenta que ele também está
"além do ser" (èratceivoc ÕVTOÇ, Ibid., V, 5, 6) e "além da mente" (è7rÍK£iva voO, Ibid., III, 8, 9), de tal
modo que é transcendente (Ú7t£pftepT|Ka)Ç) em relação a todas as coisas, mesmo produzindo-as e
conservando-as no ser {Ibid., V, 5, 12). Proclo diz: "Além de todos os corpos está a substância da alma;
além de todas as almas, a natureza inteligível; além de todas as substâncias inteligíveis, está o Uno" (Inst.
theol., 20). Escoto Erigena e outros usaram o termo supra-ente (v.) para designar a T. absoluta, graças à
qual Deus está além de todas as determinações concebíveis, até mesmo do ser ou da substância. Nem
sempre, porém, a T. é levada ao ponto de situar Deus além do ser, transformando-o de algum modo em
"nada". A escolástica clássica, reconhecendo a analogi-cidade do ser, não põe Deus além do próprio ser:
esta forma de T. é, ao contrário, própria da teologia negativa ou mística (v. TEOLOGIA, 4). Fora da
teologia, essa espécie de T. foi reconhecida por Jaspers, que a contrapôs à existência: T. é o que está além
da possibilidade de existência, é o ser que nunca se resolve no possível e com o qual a única relação que o
homem pode ter consiste na impossibilidade
de alcançá-lo. Nesse sentido, a T. se manifesta sob forma de cifra (v.) nas situações-limite (v.) e não pode
ser caracterizada nem como "divindade", sem incidir na superstição. A única certeza que se pode ter em
relação à T. é que "o ser é, e é assim" (Phil., III, p. 134).
Entrementes, as correntes realistas da filosofia contemporânea atribuíam T. às coisas, aos objetos do
conhecimento em geral ou ao ser de tais objetos. Nesse sentido, Husserl negava que uma coisa pudesse
ser dada como imanente em qualquer percepção ou consciência, e definia o ser da coisa como ser
transcendente, que é mais ou menos sombreado pelas aparições da coisa à consciência (ldeen, I, § 41). N.
Hartmann insistia na T. do ser em relação ao conhecimento, porquanto o ser fica sempre além do objeto
cognitivo imanente (Metaphysik der Erkenntniss, 2
a
ed., 1925, p. 50). No mesmo sentido, a T. era
combatida pelas várias formas do imanentismo (v.).
2- No segundo significado, T. é o ato de se estabelecer uma relação, sem que esta signifique unidade ou
identidade de seus termos, mas sim garantindo, com a própria relação, a sua alteridade. Esse conceito
também tem origem religiosa e neoplatônica. Plotino dizia que a contemplação é "para quem foi além de
tudo" (xto vmepfiávTi rcávTa, Enn., VI, 9, 11). Num trecho famoso, S. Agostinho dizia: "Se achares
mutável a tua natureza, transcende-te a ti mesmo", e acrescentava: "Lembra-te de que, ao te transcenderes
a ti mesmo, estás transcendendo uma alma racional e que, portanto, deves visar ao ponto do qual provém
a luz da razão" (De vera relig., 39).
Esse sentido ativo de T. ficou praticamente obliterado na filosofia tradicional e só foi retomado pela
filosofia contemporânea. Com referência à T. do ser ou da coisa em relação à consciência que a apreende
ou ao ato de conhecimento que é seu objeto, a própria consciência ou o ato de conhecimento foram
chamados de transcendentes. Assim, Husserl fala de percepção transcendente, que tem a coisa por objeto
e em relação à qual a coisa é transcendente, o que difere da percepção imanente, que tem por objeto as
experiências conscientes que são imanentes à própria percepção (Ideen, I, § 42, 46). N. Hartmann baseou
o seu realismo no conceito de T.: "O conhecimento não é um simples ato de consciência, como o
representar e o pensar, mas um ato transcendente. Um ato desses se liga ao sujeito só por um lado, mas
TRANSCENDÊNCIA
971
TRANSCENDENTAL
por outro fica fora; por este último, liga-se ao existente, que, graças a ele, se torna objeto. O
conhecimento é uma relação entre um sujeito e um objeto existente. Nessa relação, o ato transcende a
consciência" (Systematische Philoso-phie, § 11). No mesmo sentido ele chama de transcendente a relação
cognoscitiva (Ibid., § 10). No entanto, a mais importante utilização do conceito nesse sentido foi a de
Heidegger, que definiu como transcendente a relação entre o homem (Dasein, ser-aí) e o mundo. "O ser-aí
que transcende (eis uma expressão já por si tautológica) não ultrapassa nem um obstáculo anteposto ao
sujeito de tal modo que o obrigue a permanecer em si mesmo (imanência), nem um fosso que o separaria
do objeto. Por sua vez, os objetos (entes que lhe estão presentes) não são aquilo em cuja direção ocorre a
ultra-passagem. O que é ultrapassado é unicamente o ente, ou seja, qualquer ente que possa ser revelado
ou revelar-se ao ser-aí, portanto o ente que o ser-aí é, enquanto, existindo, é ele mesmo" (Vom Wesen des
Grundes, 1929, II). Em outros termos, é pelo ato de T. que o homem, como ente no mundo, se distingue
dos outros entes ou objetos e se reconhece como "ele mesmo". Heidegger, portanto, considera a T. como o
significado do ser no mundo. "Quem ultrapassa e, portanto, vai além, deve como tal sentir-se situado no
ente. O ser-aí, na medida em que se sente como tal, está incluído no ente de tal modo que, reabarcado
nele, é por ele conciliado consigo mesmo. A T. é um tal projeto do mundo que quem projeta é dominado
pelo ente que transcende e está já de acordo com ele. Com esse ser incluído do ser-aí, ligado com a T., o
ser-aí ganhou base no ente, obteve o seu fundamento" (Ibid., III). São características de Heidegger essa
reincidência e esse acha-tamento da T. nos objetos transcendidos, do projeto nas suas condições de
partida, do possível no efetivo, do futuro no passado. Heidegger chama de decadência ou facticidade (v.)
essa reincidência ou achatamento. Foi o que fez Sartre, que expressa o mesmo conceito de T. afirmando
que a consciência (opa-ra-si), ao transcender para o ser (o em-si), está apenas se anulando para revelar e
afirmar, através de si, o próprio ser (L'être et le néant, II, cap. III, espec. pp. 268-69). Para uma
interpretação da T. que fuja ao achatamento ou à nadificação, cf. ABBAGNANO, Struttura delTesis-tenza,
1939, § 18; ID., IntroduzioneaWe-sistenzia-lismo, I, 6; etc.
TRANSCENDENTAL (lat. Transcendentalis; in. Transcendental; fr. Transcendental; ai.
Transzendental; it. Trascendentalé). Com este termo ou com transcendente, começaram a ser
denominadas, no fim do séc. XIII, as propriedades que todas as coisas têm em comum, que por isso
excedem ou transcendem as diversi-dades de gêneros em que as coisas se distribuem. Esse nome já se
encontra em F. Mayron (morto em 1325, Formalitates, ed. 1479, f. 22, r. A), e com certeza Lorenzo Valia
(Dialecticae disputationes, I, 1) contribuiu para a sua difusão, mas os transcendentais ou transcendentes
já haviam sido definidos por S. Tomás como as propriedades "que se acrescentam ao ente e que
expressam um de seus modos que não é expresso pelo nome do ente"; e enumerava seis delas: ens, res,
unum, aliquid, bonum, verum (De ver., q. 1, a. 1), lista esta que se tornou a mais difundida e acreditada
entre todas.
Esse conceito de T., com alguma mudança ocasional na lista dos termos, foi repetido inúmeras vezes
depois disso (CAMPANELLA, Dialec-tica, I, 4; G. BRUNO, De Ia causa, IV; F. BACON, De augm. scient.,
III, I; JUNGIUS, Lógica ham-burgensis, I, 1, 45: SPINOZA, Et., II, 40, escólio I; BERKELEY, Principie of
Human Knowledge, § 118; WOLFF, Ont., § 495, 503; BAUMGARTEN, Met., § 72, 89; HAMILTON, Lectures
on Logic, I, p. 198). A essa tradição junta-se o uso kantiano do termo. Kant diz: "Esses supostos
predicados T. das coisas nada mais são que exigências lógicas e critérios para qualquer conhecimento das
coisas em geral e repousam nas categorias de quantidade (unidade, pluralidade e totalidade). Mas essas
categorias, que deveriam ser assumidas no significado material como pertencentes à possibilidade das
coisas, na verdade eram usadas pelos antigos só com valor formal, como constituintes da exigência lógica
para qualquer conhecimento; todavia, transformavam inadvertidamente esses critérios do pensamento em
propriedade das coisas em si mesmas" (Crít. R. Pura, Analítica, § 12). Em outros termos, Kant considera
que o antigo conceito de T. peca por dois motivos: 1° porque considera o T. simples conceito lógico-formal; 2a
porque considera esse conceito formal como propriedade das coisas em si. Ao contrário, o
conceito kantiano de T. consiste em: ls considerar o T. como condição da possibilidade da coisa, ou seja,
como conceito apriori ou categoria; 2a
considerar a coisa, cuja condição é o T., como fenômeno, e não
como "coisa em
TRANSCENDENTAL
972
TRANSCENDENTALISMO
si". Contudo, para Kant, o T. não se identifica com as condições a priori do conhecimento humano e dos
seus objetos (que são os fenômenos), mas é considerado o conhecimento (ou a ciência, se existe uma
ciência) dessas condições a priori. Kant diz: "Não chamo de T. o conhecimento que cuida dos objetos,
mas o que cuida do nosso modo de conhecer os objetos, e que seja possível a priori" (Ibid., Intr., VII). E
esclarece: "Não se deve chamar de T. qualquer conhecimento apriori, mas apenas o conhecimento que
possibilite saber que representações (intuições ou conceito) são aplicadas ou são possíveis exclusivamente
a priori e como isso se dá. Vale dizer: é T. o conhecimento da possibilidade do conhecimento ou do uso
dele a priori" (Ibid., Lógica, Intr., II; v. Prol, § 13, obs. III). Desse ponto de vista, T. não é "o que está
além da experiência", mas sim "o que antecede a experiência (apriori) mesmo não se destinando a outra
coisa senão a possibilitar o simples conhecimento empírico" {Prol, Apêndice, nota [A 204]). No entanto,
é preciso observar que KANT não se atem rigorosamente a esse significado do termo e que, muitas vezes,
chamou de T. o que é independente da experiência ou de princípios empíricos (cf., p. ex., Crít. R. Pura, O
ideal da mão pura, seç. 5, Descoberta e ilustração da aparência dialética). De qualquer forma, com base
no significado explicitamente aceito por Kant, podem ser chamados de T. apenas os conhecimentos que
têm por objetos elementos a priori, e não estes mesmos elementos. Portanto, são T. a estética, a lógica e
as suas partes, mas não o são as intuições puras, as categorias ou as idéias. Mas mesmo este uso não é
rigoroso, pois Kant chama de T. as idéias e de unidade T. o eu penso (lbid., § 16).
Esse termo foi retomado por Fichte para designar a teoria da ciência, pois mostra que todos os elementos
do conhecimento estão no Eu, ou seja, na consciência: "Essa ciência não é trancendente, mas continua T.
em sua profundidade. É verdade que ela explica a consciência com alguma coisa que existe
independentemente da consciência, mas mesmo nessa explicação não se esquece de conformar-se às suas
próprias leis; e assim que reflete sobre ela, o termo independente torna-se novamente produto da
faculdade de pensar, portanto algo dependente do Eu, porque deve existir para o Eu, no conceito do Eu".
(Wissenschaftslehre, 1794, § 5, II; trad. it., p. 231). Shelling entendia
esse termo no mesmo sentido; para ele, no saber T., "o ato do saber chega a absorver o objeto como tal",
de tal modo que é "um saber do saber, porquanto puramente subjetivo" (System des transzendentalen
Idealismus, 1800, Intr., § 2). Schopenhauer atribui o mesmo sentido idealista: T. é "o conhecimento que
determina e estabelece, antes de qualquer experiência, tudo o que é possível na experiência" (Über die
vierfache WurzeldesSatzes vom zureichen-den Grunde, § 20).
Como resultado destas determinações, o conceito do T. foi-se fixando na filosofia contemporânea como
aquilo que pertence ao sujeito ou à consciência como condição do objeto e da própria realidade. Portanto,
qualificou-se de T. qualquer atividade ou elemento da consciência de que dependa a afirmação ou a
posição da realidade objetiva. Assim, expressões como "ponto de vista T." ou "conhecimento T."
eqüivalem à expressão de Schelling "idealismo T.", ou seja, doutrina que mostra que na consciência
subjetiva estão as condições da realidade. Este conceito de T. persistiu tanto nas escolas de inspiração
kantiana mais estrita quanto nas escolas idealistas. Gentile chamava de "Eu T." o eu absoluto ou universal,
que cria a realidade pensando (Teoria generale dello spirito, 1920,1 § 5). Mantém-se o sentido idealista
também em Husserl, que qualifica de T. a experiência fenomenológica ou a reflexão que a ocasiona. "Na
reflexão fenomenológica T., saímos do terreno empírico praticando a epoché universal quanto à existência
ou à não-existên-cia do mundo. Pode-se dizer que a experiência do mundo assim modificada, a
experiência T. consiste no seguinte: examinamos o cogito trans-cendentalmente reduzido e o descrevemos
sem efetuar além disso a posição de existência natural implícita na percepção espontânea" (Cart. Med., §
15). Para Heidegger, porém, T. tem sentido objetivo porque indica "qualquer manifestação do ser no seu
ser transcendente" (Sein und Zeit, § 7 C).
TRANSCENDENTALISMO (in. Transcenden-talism; fr. Transcendentalisme, ai. Transzendentalismus; it. Trascendentalismó). Teoria do idealismo transcendental, vale dizer, do idealismo romântico.
O nome foi introduzido nos países anglo-saxões, especialmente nos Estados Unidos, por Emerson (v. O.
B. FRONTHINGHAM, Transcendentalism in New England, 1876; nova ed., 1959).
TRANSCENDENTE 973
TRANSFORMAÇÃO
TRANSCENDENTE (lat. Transcendem; in. Transcendent; fr. Transcendam-, ai. Transzen-dent; it.
Trascendente). Este termo tem dois significados fundamentais, correspondentes aos dois significados de
transcendência (v.): I
a
o que está além de determinado limite, tomado como medida ou como ponto de
referência; 2e operação de transposição.
1
B
No primeiro significado, essa palavra assume valores muito diferentes, segundo o que se considere
limite ou medida. As propriedades transcendentais (v.) eram chamadas assim por serem T. em relação aos
gêneros, dos quais eram consideradas independentes. Fala-se de "perfeição T." como perfeição que supera
todos os graus alcançáveis. Mais freqüentemente, esse termo é usado em filosofia para indicar o que
ultrapassa os limites de alguma faculdade humana ou de todas as faculdades e do próprio homem. Assim,
Boécio afirmava que "A razão transcende a imaginação porque apreende a espécie universal que está
ligada às coisas singulares" (Phil. cons., V, 4). S. Tomás afirmava que a teologia "transcende todas as
outras ciências tanto especulativas quanto práticas" porque é mais certa que elas e por tratar de coisas
"que, pela elevação, transcendem a razão" (S. Th., I, q. 1, a. 5). Ao tratar da identidade do mínimo
absoluto e do máximo absoluto em Deus, Nicolau de Cusa diz que "isso transcende o nosso intelecto, que
não pode combinar racionalmente as coisas que são contraditórias em seu princípio" (De docta ignor.,
1,4).
Foi mais precisamente a partir de Kant que T. passou a designar a noção que excede os limites da
experiência possível. Portanto, segundo Kant, são T. as idéias da razão pura: "Chamaremos de imanentes
os princípios cuja aplicação se mantém em tudo e por tudo nos limites da experiência possível, e de T. os
que devem ultrapassar esses limites" (Crít. R. Pura, Dialética, Intr., I; cf. Prol, § 40). É diferente dos
princípios T. o uso transcendental dos princípios imanentes, que se vale de princípios cognitivos
legítimos, mas sem levar muito em conta os limites da experiência (Ibid., Dialética, Intr., I; cf. Prol., §
40).
2
Q
Nos significados anteriores, a palavra T. designa o que está além de certo limite. Na filosofia
contemporânea, é muitas vezes usada para designar uma atividade ou uma operação correspondente ao 2°
significado de transcendência. Nesse sentido, segundo Husserl, é T. a
percepção das coisas em oposição à percepção que a consciência tem de si mesma (que é percepção
imanente) (Ideen, I, § 46). No mesmo sentido, Hartmann chama de ato T. o conhecimento (Systematische
Philosophie, § II). Heideg-ger define como T. "o que atualiza a ultrapas-sagem, o que se mantém na
ultrapassagem" ( Vom Wesen des Grundes, II; trad. it., p. 29) (v. TRANSCENDÊNCIA) .
TRANSCENDENTISMO. Termo que só se encontra no italiano, às vezes usado para designar as
doutrinas que admitem a transcendência do ser divino.
TRANSCRIAÇÃO (in. Transcreation; fr. Transcréation; it. Transcreazionè). Termo usado por Leibniz
para indicar a ação com que Deus dá razão à alma sensível ou animal. Leibniz prefere esta à hipótese
segundo a qual a alma animal se eleva à razão por meios puramente naturais (Théod., I, § 91).
TRANSEUNTE (in. Transeunt; fr. Transeunt; ai. Transeunt; it. Transeunte). 1. O mesmo que transitivo
(v.).
2. Mutável, passageiro.
TRANSFERENCIA. V. PSICANÁLISE.
TRANSFTN1TO (in. Transfinite, fr. Transfl-ni; ai. Transfinit; it. Transfinitó). Expressão usada por G.
Cantor para indicar os números que estão além dos números finitos. P. ex., se for T., o número ordinal da
classe que compreende todos os números ordinais finitos, em sua ordem natural (0, 1, 2, ...), será
denotado por um ômega minúsculo (G. CANTOR, Contribu-tion to the Founding of the Theory of
Transfinite Numbers, trad. in., 1915) (v. INFINITO). Conseqüentemente, por "indução transfinita" entendese a extensão da indução matemática (v.) a uma classe de números ordinais arbitrários de maneira
semelhante ao modo como a indução é aplicada a uma classe bem ordenada de números ômega.
TRANSFORMAÇÃO (in. Transformation; fr. Transformation; ai. Umformung, Transformation; it.
Trasformazione). Dewey viu na T. a categoria fundamental do raciocínio matemático. "A T. dos conteúdos
conceituais, segundo regras metódicas que satisfaçam determinadas condições lógicas, está implícita tanto
na conduta do raciocínio quanto na formação dos conceitos que fazem parte dele". Pode-se enunciar o
princípio lógico da T. da seguinte maneira: 1Q
o conteúdo do raciocínio consiste em possibilidades; 2Q
enquanto possibilidade, ele exige a formulação em símbolos (Logic, XX,
TRANSFORMISMO 974
TRIÂDICO
1; trad. it., p. 516). Costuma-se chamar de regras de T. as regras da inferência dos sistemas logísticos ou
das linguagens formais (v. SISTEMA LOGÍSTICO).
TRANSFORMISMO (in. Transformism-, fr. Transformisme, ai. Transformismus; it. Trasfor-mismo).
Com esse termo indica-se o evolu-cionismo biológico, que admite a transformação de uma espécie viva
em outra (v. EVOLUÇÃO).
TRANSnTVIDADE (in. Transitivity, fr. Tran-sitivité, ai. Transitivitãt; it. Transitivitã). Caráter de uma
relação que, se ocorrer entre x e y e entre y e z, também ocorre entre x e z. Esse caráter é próprio das
relações de identidade ou de igualdade como também das relações menor, precede, ã esquerda de, etc. (v.
B. RUSSELL, Introduction to MathematicalPhilosophy, cap. IV; trad. it., p. 44).
No cálculo proposicional, as leis de T. da implicação material e da equivalência material são as
seguintes: "Se p implica q e q implica r, então p implica r (isto é: [p z> q] [qDrblpD r]). Se p é equivalente
a q e q é equivalente a r, então p é equivalente a r (isto é: [p = q] [q = r] ([p = r]) (v. A. CHURCH,
Introduction to Mathematical Logic, I, § 48 etc). TRANSMIGRAÇÃO. V. METEMPSICOSE.
TRANSMUTAÇÃO DE VALORES (f r. Trans-mutation des valeurs; ai. Umwertung aller Wer-te-, it.
Trasmutazione dei valorí). Frase famosa com que Nietzsche resumiu a finalidade de sua filosofia:
"Inversão de todos os valores, eis minha fórmula para um ato de supremo reconhecimento de si mesma
por parte da humanidade, ato que em mim tornou-se carne e gênio. Meu destino exige que eu seja o
primeiro homem honesto, que me sinta em oposição às mentiras de vários milênios" (Ecce homo, § 4). A
inversão de valores consiste em substituir a tábua tradicional de valores, que se baseia na renúncia à vida,
pelos novos valores oriundos da aceitação entusiástica (dionisíaca) da vida, mesmo em seus aspectos mais
cruéis (Ge-nealogie der Moral, I, § 10; Die froeliche Wissenschafte, § 344 etc.) (v. VALOR).
TRANSNATURAL(fr. Transnaturel; it. Trans-naturalé). Termo proposto por M. Blondel para indicar a
situação do homem, que está posto entre a natureza e a supranatureza e durante a vida mortal está
destinado a preparar-se para a vida eterna (Histoire et dogme, 1904, p. 68). TRANSOBJETIVO (ai.
Transobjektiv- it. Transobbiettivo). Termo usado por N. Hartmann
para indicar a parte da realidade que fica além dos limites do conhecido, portanto além do objeto de
conhecimento (Metaphysik der Erkennt-nis, 2
a
ed., 1925, p. 50).
TRANSPARÊNCIA (ai. Durchsichtigkeii). Assim Heidegger chamou a intuição que o ser-aí tem de si
mesmo: "Existindo, o ser-aí tem a visão de si só à medida que se faz, de modo originário, transparente em
seu ser no mundo e em seu ser com os outros momentos constitutivos da sua existência" (Sein undZeit, %
31).
TRANSPATIA (in. Transpathy). Termo usado por escritores ingleses para indicar o contágio emotivo ou
a fusão emotiva, que difere da simpatia (v.).
TRANSPOSIÇÃO (in. Transposition; fr. Transposition-, ai. Transposition; it. Trasposizio-né). É assim
chamado o teorema do cálculo proposicional, segundo o qual de "se p, então q" pode-se inferir "não q,
então não p".
TRANSRACIONALISMO (in. Transratio-nalism-, fr. Transrationalisme, ai. Transrationa-lismus, it.
Transrazionalismo). Termo usado por A. Cournot para indicar a disposição natural do homem a crer no
sobrenatural, no misterioso ou, em geral, no que está além da razão (Ma-térialisme, vitalisme,
rationalisme, 1875, p. 385).
TRANSUBJETIVO (in. Transubjective, ai. Transsubjektiv; it. Transoggettivó). O mesmo que
Transcendente (v).
TRANSUBSTANCIAÇÃO (lat. Transustan-tiaticr, in. Transubstantiation-, fr. Transubstan-tiation-, it.
Transustanziazioné). Interpretação do sacramento do altar, segundo a qual a substância do pão e do vinho
se transforma na substância do corpo ou do sangue de Cristo e, portanto, seus acidentes ficam sem
substância. Essa é a interpretação de S. Tomás (S. Th., III, q. 77, a. 1), que foi aceita pelo Concilio de
Trento. A interpretação alternativa, aceita pela Reforma, é a da consubstanciação (v.).
TRIÂDICO (in. Triadic; fr. Triadique, ai. Triadisch; it. Triadicò). A divisão T. gozou freqüentemente de
certo privilégio em filosofia. Sem falar da perfeição que os antigos pitagó-ricos atribuíam ao número três,
Plotino reconheceu três fases da emanação, portanto três hipóstases da divindade, o Uno, o Logos e a
Alma (Enn., II, 9, D. Mas foi principalmente Proclo quem privilegiou o procedimento T., discernindo três
fases em todo e qualquer processo (ou emanação): I
a
aquilo que procede permanece semelhante a si
mesmo; 2a
diferencia-se de si mesmo; 3a
retorna para si mesmo
TRIADISMO
975
TRINDADE
(Inst. tbeol., 31). Sobre essas três fases da emanação Hegel moldou suas três fases da sua dialética, que
consistem respectivamente: 1* na identidade de um conceito consigo mesmo; 2a na contradição ou na
alienação do conceito em relação a si mesmo; 3a
na conciliação e na unidade das duas primeiras fases (v.
Ene, §§ 79-82). Segundo essa divisão T., Hegel interpretou tanto a lógica quanto a natureza e o espírito
(Wissenschaft der Logik, ed. Glockner, II, pp. 340 ss.). Embora Hegel atribua a Kant q mérito dessa
triadicidade dos processos racionais e — portanto — de toda a realidade (Ibid., p. 344), a justificação de
Kant para o fato de suas "divisões em filosofia pura serem quase sempre T." é completamente diferente e
provém da lógica. Kant disse: "Se for necessário fazer uma divisão apriori, esta poderá ser: analítica,
segundo o princípio de contradição, e então será feita sempre em duas partes (quodlibet ens est aut A aut
non A); ou sintética, e nesse caso deverá derivar de conceitos apriori (...) e conterá (1Q
) a condição, (2a
)
um condicionado e (3B
) o conceito que nasce da união da condição com o condicionado, acabando assim
por ser necessariamente uma tricotomia" (Crít. do Juízo, Intr., Nota final).
TRIADISMO (in. Triadism; fr. Triadisme, ai. Trialismus, it. Triadismo ou Trialismó). Doutrina de
origem estóica que considera o homem formado por três princípios: alma, corpo e pneuma ou espírito; é
repetida nas epístolas de S. Paulo (v. PNEUMA).
TRIBUNAL (in. Tribunal; fr. Tribunal; ai. Gerichtshof; it. Tribunalé). Esse termo foi usado por Kant
para definir a finalidade da filosofia crítica: "A crítica da razão pura pode ser considerada o verdadeiro T.
para todas as suas controvérsias, porque esta não se imiscui nas controvérsias que se referem
imediatamente aos objetos, mas é instituída para determinar e para julgar os direitos da razão em geral,
segundo os princípios da sua primeira instituição" (Crít. R. Pura, Doutr. do mét., cap. I, seç. 2).
TRICOTOMIA (in. Trichotomy, fr. Tricho-tomie, ai. Trichotomie, it. Tricotomia). Divisão em três partes,
elementos ou classes. Esse termo é usado quase exclusivamente para a doutrina da tríplice composição da
alma, que se chama também triadismo.
A teoria lógica da T. foi elaborada no séc. XVII, com a advertência de que é preciso reduzir a T. à
dicotomia sempre que dois membros da dicotomia tenham uma noção em comum.
Pode-se dizer que o triângulo pode ser retân-gulo ou obliquângulo, podendo-se ainda dividir o triângulo
obliquângulo em obtusângulo e acutângulo (v. JUNGIUS, Lógica hamburgensis, 1638, IV, 7, 13).
TRILEMA (in. Trilemma; fr. Trilemme; ai. Trilemma; it. Trilemma). Os lógicos do séc. XIX deram esse
nome ao esquema de inferên-cia que tenha como premissa maior uma tricotomia, em vez da dicotomia do
dilema (v.): "Cada coisa é ou P ou Q ou M; S não é nem Aí nem Q; logo, Sé P". No mesmo sentido, falase de tetralema ou de polilema, mas trata-se de esquemas de inferência pouquíssimo aplicados.
TRINDADE (in. Trinity; fr. Trinité; ai. Dreifaltigkeit; it. Trinitã). Um dos dogmas fundamentais do
cristianismo, que afirma a unidade da substância divina na T. das pessoas. A fórmula desse dogma foi
fixada pelo Concilio de Nicéia em 325, e em sua formulação desempenharam papéis importantes a obra
do bispo Ata-násio e a polêmica contra a doutrina de Ário, que tendia a acentuar a subordinação do Filho
em relação ao Pai e praticamente ignorava a terceira pessoa da Trindade. A explicação clássica desse
dogma [assim como do dogma da en-camação(v.)] foi dada por S. Tomás, por meio do conceito da
relação. A relação, por um lado, constitui as pessoas divinas na sua distinção e, por outro, identifica-se
com a mesma e única essência divina. As pessoas divinas são constituídas por suas relações de origem: o
Pai, pela paternidade (ou seja, pela relação com o Filho); o Filho, pela filiação ou geração (ou seja, pela
relação com o Pai); o Espírito, pelo amor (ou seja, pela relação recíproca de Pai e Filho). Essas relações
em Deus não são acidentais (nada existe de acidental em Deus) mas reais; subsistem realmente na
substância divina. Portanto, a substância divina em sua unidade, ao implicar as relações, implica as
diferenças das pessoas (S. Th., I, q. 27-32 e esp. q. 29, a. 4). Esta interpretação basta, segundo S. Tomás,
para mostrar que "o que a fé revela não é impossível". Do ponto de vista lógico, implica uma doutrina
historicamente importante sobre a natureza das relações (v. RELAÇÃO).
No último período da escolástica, porém, o dogma da T. recebeu duas interpretações: foi considerado
"verdade prática", por Duns Scot (Op. Ox., Prol. q. 4, nQ
31), ou algo que está além de qualquer
possibilidade de entendimento, como fez Ockham (In Sent., I. d. 30, q. 1 B).
TRINITARISMO
976
TUTIOMSMO
O dogma da T. também foi aceito pelas igrejas protestantes, com exceção da tendência representada pelo
socinianismo (v.), que retomou as doutrinas de tipo ariano, comuns nos primeiros séculos do cristianismo.
Essas doutrinas foram retomadas pelos chamados unitários, que constituíram um movimento religioso
difundido principalmente na Inglaterra e na América do Norte a partir da segunda metade do séc. XVIII
(v. UNITARISMO).
TRINITARISMO (in. Trinitarianism; fr. Trinité, it. Trinitarismó). Doutrina oficial da Igreja cristã sobre
a natureza de Deus como uma única substância em três pessoas iguais e distintas (v. TRINDADE).
TRITEÍSMO (in. Tritheism; fr. Trithéisme, ai. Tritheismus; it. Triteismó). Com este termo designa-se
comumente a heresia trinitária que consiste em admitir três substâncias divinas relativamente
independentes. Essa heresia foi sustentada no sec. V por João Filopono e no séc. XI por Roscelin, que,
segundo relato de S. Anselmo, afirmava que "as três pessoas da trindade são três realidades, como três
anjos e três almas, embora sejam absolutamente idênticas em vontade e potência" (Dejide trinitatis, 3).
Gilbert de Ia Porrée também se inclinava ao T., chamando de deidadea única essência divina, da qual
participariam as três pessoas diferentes; é provável que Gioacchino Da Fiore (séc. XII) adotasse esse
ponto de vista. Trata-se de uma doutrina constantemente condenada pela Igreja.
TRÍVIO. V. CULTURA, 1.
TROPOS (gr. Tpórcoi; lat. Tropes; fr. Tropes; ai. Tropen; it. Tropí). Assim eram chamados os modos ou
os caminhos indicados pelos cép-ticos para chegar à suspensão do assentimen-to. Estes T. consistem na
enunciação das situações das quais resultem oposição de opiniões ou mesmo contradições. Enesidemo de
Cnossos enumerava dez deles, que são os seguintes: ls
a diferença entre os animais, que estabelece uma diferença entre suas representações; 2S
a diferença entre
os homens, pelo mesmo motivo; 32
a diferença entre as sensações; 4a
a diferença entre as circunstâncias,
que também influem na diversidade das opiniões; 5a
a diferença das posições e dos intervalos; 6a
a
diferença das misturas; 7~ a diferença entre os objetos simples e os objetos compostos; 8e
a diferença
entre as relações, visto que as opiniões mudam segundo as relações das coisas com o sujeito judicante; 9a
a diferença entre a freqüência ou a raridade dos encontros entre o sujeito judicante e as coisas; 10a
a
diferença da educação, dos costumes, das leis, etc. {Pirr. hyp., I, 36-163).
Por sua vez, Agripa acrescentava outros cinco tropos, como objeções contra a possibilidade de atingir a
verdade: I
a
a discordância das opiniões; 2e
o processo ao infinito em que se incide quando sé quer aduzir
uma prova, já que esta prova precisa de outra, e esta outra de uma mais uma, e assim por diante; 3Q
a
relação entre o sujeito e o objeto, que leva à variação da aparência do objeto; 4a
a hipótese, que é o
recurso a uma assunção sem demonstração, portanto insustentável; 59
o dialeto, ou círculo vicioso,
quando se assume como princípio de prova exatamente o que se deve provar (SEXTO EMPÍRICO, Pirr.
hyp., I, 164-69).
Finalmente, Sexto Empírico enuncia outros dois tropos, que são argumentos segundo os quais não se pode
compreender uma coisa nem com base em si mesma nem com base em outra coisa {Pirr. hyp., I, 178-79).
TRUÍSMO (in. Truism; fr. Truisme, it. Truis-mo). Uma verdade evidente mas óbvia, portanto pouco
importante ou pouco útil. Tanto o termo quanto a noção são próprios da língua inglesa.
TUTIORISMO. V. PROBABILISMO.
u
U. Na lógica tradicional, símbolo da proposição modal que consiste na negação do modo e na negação da
proposição: p. ex., "não é possível que não p' (v. ARNAULD, Log., II, 8) (v. PURPÚREA).
UBI. Com esse advérbio latino (onde) Duns Scot indicou a determinação qualitativa que o corpo em
movimento adquire a cada instante do seu movimento. O U. não é o lugar (v.) porque o lugar de um corpo
não é um atributo dele, mas está nos corpos que o cercam; é semelhante ao calor, que é adquirido pelo
corpo que se aquece (Quodl, q. II a. 1). Essa noção foi criticada por Pedro Auréolo (In Sent. I, d. 17, a. 4),
por Ockham (In Sent., II, q. 9 c) e por Gre-gório de Rimini (In Sent., II, d. 6, q. I, a. 2), que reduziram o
movimento do corpo que se move. Também é lembrada, com desprezo, por Locke (Ensaio, II, 23, 21).
UBICAÇÃO. V. LUGAR.
UBIQÜIDADE (lat. Ubiquitas; in. Ubiquity, fr. Ubiquité, ai. Allgegenwart; it. Ubiquitã). O modo de ser
no espaço que os escolásticos do séc. XIV chamavam de definitivo (definítivus); consiste em estar tudo
em todo o espaço, e tudo em qualquer parte do espaço. Esse modo de ser era distinguido do chamado
circunscritivo(circums-criptivus), que consiste em estar tudo em todo o espaço (ocupado) e parte em cada
parte dele (v., para esta distinção, OCKHAM, In Sent., IV, q. 4; Quodl., VII, q. 19; Decorp. Christi, 6). O
conceito de existência espacial definitiva servia para entender a presença do corpo de Cristo no pão e a
onipresença de Deus no mundo. Quanto a esta última, Leibniz (lembrando os dois primeiros modos, que
chama de ubietés), fala de uma ubieté repletiva (Nouv. ess., II, 23, 21).
UCRONIA (fr. Uchroniê). É o titulo de um romance de Charles Renouvier (Uchroniê,
1'utopiedans Vhistoire, 1876), em que o autor se propõe reconstruir "a história apócrifa do
desenvolvimento da civilização européia, como poderia ter sido, mas não foi". A finalidade do romance é
mostrar a ausência da necessidade em história (v. HISTÓRIA).
ÚLTIMO (gr. tò êaxa-cov; in Ultimate, fr. Ultime, ai. Letzt; it. Ultimo). Um dos dois extremos de uma
série, mais precisamente aquele em que a série acaba. Como é possível considerar que uma mesma série
termine em um dos extremos no que se refere a determinados objetivos (ou pontos de vista) ou no outro
extremo no que se refere a outros objetivos (ou pontos de vista), a palavra U. muitas vezes é ambivalente,
e as mesmas coisas são declaradas U. e primeiras. É o que acontece com freqüência na terminologia
aristotélica: nela. o motor imóvel é qualificado de U. por ser o primeiro da série dos movimentos (Fís.,
VIII, 2, 244 b 4); no entanto, é chamada de U., também, a espécie mais próxima do indivíduo (Met., III, 3,
998 b 15). Aristóteles também chama de U. um sujeito como a água ou o ar (Ibid., V, 6, 1016 a 23), mas
qualifica a substância de U. substrato (Ibid., V, 8, 1017 b 24) e considera o princípio de contradição "uma
opinião U." (Ibid., IV, 3, 1005 b 33). Também chama de U. o fim (Ibid., V, 16, 1021 b 25).
Todos estes usos, ou outros bastante semelhantes a estes, permaneceram na tradição filosófica. Na Idade
Média a bem-aventurança foi chamada de "fim U.", porquanto é o fim além do qual não se pode
prosseguir (cf. S. TOMÁS, S. Th., II, I, q. I, a. 4). Hoje se fala de "problemas U." ou de "razões U." no
mesmo sentido em que se poderia falar de problemas primeiros ou máximos e de razões primeiras: isso
demonstra ainda uma vez que o termo pertence
UM, UNO
978
UNIÃO
principalmente à retórica do discurso filosófico e tem pouco valor conceituai (v. EXTREMO).
UM, UNO (gr. eíç; lat. Unus, in. One, fr. Un; ai. Ein; it. Uno). 1. O elemento de um conjunto ou de uma
classe qualquer, como quando se diz "O homem é um animal". Nesse aspecto, diz-se que uma relação é de
muitos para U, se para cada x do seu campo houver um só y que tenha relação com x. Fala-se que a
relação é de U.para muitos se para cada y dominante inverso do seu campo houver um único x que tenha
relação com y. Afirma-se finalmente que a relação é de U. para U. se ela e o seu inverso forem de um
para muitos e de muitos para um. Nesse caso fala-se também de uma correspondência de U. para U. (A.
CHURCH, Introduction to Mathematical Logic, pp. 556, 564).
2. O que é único, como quando se diz "Deus é U." (v. ÚNICO).
3. A unidade no sentido próprio do termo (v. UNIDADE).
4. O número U., ou seja, o primeiro termo da série natural dos números ou, em geral, o primeiro termo de
uma série qualquer.
5. O U. hipostático ou teológico: Deus ou o Bem como primeiro termo do processo de emanação e último
termo do processo do retorno. Nesse sentido Heráclito dizia "de todas as coisas o U., e do U. todas as
coisas" (Fr. 10 DIELS; cf. EMPÉDOCLES, Fr. 17, I). Mas foram principalmente os neoplatônicos que
usaram esse termo para designar a divindade ou o bem, que é transcendente em relação ao ser e à
inteligência, portanto, está além de qualquer multiplicidade. Plotino dizia: "É preciso que antes de todas
as coisas haja alguma coisa simples e diferente de todas as coisas que vêm depois dela; ela é em si
mesma, não se mistura com as que a seguem, mas pode estar de algum modo presente nas outras: esse é o
{/., não alguma coisa que seja una, mas simplesmente o U" (Enn., V, 4, I). Assim, a unidade do primeiro
princípio deve ser entendida tão rigorosamente que o próprio nome "U." parece impróprio a Plotino. "Este
nome U talvez só contenha a exclusão da multiplicidade. Os pitagóricos os designavam simbolicamente
como Apoio, para indicar a negação de muitos. (...) Pode-se usar essa palavra para começar a indagação
com uma palavra que designe a máxima simplicidade, mas afinal é preciso negar esse mesmo atributo,
que não merece mais que os outros designar a natureza que não pode ser atingida pelo ouvido nem
compreendida por quem a denomina, mas apenas por quem a contempla" (Ibid., V, 5, 6). Essas especulações sobre
o U. foram freqüentemente retomadas pela teologia negativa e pelo pan-teísmo. Em Plotino e nos outros,
são acompanhadas pela exaltação da função da unidade em todo o domínio do conhecer e do ser (v.
UNIDADE). Foi o que aconteceu nas especulações platônicas do Renascimento e também no Romantismo,
que assumiu o Uno-Todo como princípio do mundo coincidente com o próprio mundo, o que se vê de
modo mais explícito na filosofia da natureza de Schelling (Werke. I, III, p. 276). Hegel, por sua vez, que
via concreção na unidade (v.), via na U. abstração ou imediação e insistia na relação do U. com muitos,
ilustrando-a de modo fantasioso, com o uso das noções, arbitrariamente, manipuladas, de atarraco e
repulsão (Wissenschaft der Logik, I, I, seç. I, cap. III, B; trad. it., pp. 181 ss.). O conceito de U. nesse
sentido é usado com freqüência tanto pelas doutrinas teístas quanto pelas panteístas. Entre os que o
utilizaram de modo mais amplo e rigoroso, deve-se lembrar Piero Martinetti (La liberta, 1928, p. 490;
Ragione e fede, 1942, 402), embora na especulação de Martinetti se sinta o efeito da separação radical
entre Deus, como U. absoluto, e realidade empírica e multíplice, em que insistira Africano Spir (Denken
und Wirklichkeit, 1873).
UNHEIMLICH (Heidegger). Desambienta-do, estranho. Segundo Heidegger, esse sentimento é um dos
aspectos da angústia (v.). Sentir-se estranho, desambientado, significa "não se sentir em casa" no mundo;
do ponto de vista ontológico-existencial, esse é o "fenômeno mais originário" (Sein und Ziet, § 40).
UNIÃO (in. Union; ir. Union; ai. Verhíndung; it. Unione). Qualquer forma de relação que permita
considerar (a qualquer título) o conjunto dos termos como um todo. Esta é a definição dada por Leibniz
(De arte combinatoria, 1666; Op., ed. Erdmann, p. 8). Um todo não é necessariamente uma unidade ou
uma totalidade (v. TODO), e os graus de coesão entre suas partes podem ser muito diferentes. Assim
também os graus da U. podem ser muito diferentes. Kant dividiu a U. em composição (compositio) e nexo
(nexus). A primeira é uma síntese não necessária; não liga necessariamente os seus termos; para Kant,
pertencia à matemática e se dividia em agregações, que dizem respeito às quantidades extensivas, e em
coalizão, que diz respeito às quantidades in-
ÚNICO
979
UNIDADE
tensivas. O nexo, ao contrário, é uma síntese necessária; p. ex. a síntese do acidente com a substância e do
efeito com a causa. Pode subsistir mesmo entre termos heterogêneos; pode ser* física (nexo entre os
fenômenos) ou metafísica (U. dos fenômenos na faculdade cognitiva a priori) (Crít. R. Pura, Analítica,
livro II, cap. 2, seç. 3, n. [B 202]).
Essa diferença de significado encontra-se tanto no uso corrente do termo quanto no filosófico e no
teológico. A teologia fala de uma "U. hipostática" (substancial ou necessária) entre a natureza humana e a
natureza divina na pessoa do Cristo (v. ENCARNAÇÃO), mas fala também de U. mística da alma com
Deus, que não é nem substancial nem necessária. A filosofia fala de U. entre matéria e forma, e entre
substância e acidente, que são necessárias, e fala ainda de U. entre alma e corpo, que não é necessária (cf.
LEIBNIZ, Op., Erdmann, p. 127). Na linguagem comum estão ultrapassados alguns desses usos; além disso
se fala, p. ex., de "U. carnal"; ou de U. no sentido de concórdia, de solidariedade ou de associação para a
defesa de interesses comuns (U. operária, etc).
ÚNICO (lat. Unicus; in. Unique, fr. Unique, ai. Einzig; it. Único). 1. O que não é a espécie de um gênero,
entendendo-se por gênero uma determinação de que possam participar várias espécies. Nesse sentido só
Deus é U. (v. S. TOMÁS, S. Th., I, q. 3, a. 5).
2. O que está só na sua espécie, isto é, o único indivíduo pertencente a determinada espécie. Nesse
sentido, na metafísica tradicional podem-se dizer que os anjos são U., pois é impossível existirem dois da
mesma espécie, porquanto são desprovidos de matéria, que distingue os pertencentes a uma mesma
espécie (cf. S. TOMÁS, S. Th., I, q. 50, a. 4). Stirner entendia do seguinte modo a unicidade: "Eu, o U., sou
o homem. A pergunta 'o que é o homem?' Em 'oquê?' procurava-se o conceito; em 'quem?', a questão
resolvida, porque a resposta é dada por quem pergunta" (Der Einzige und sein Eigentum, 1845; trad. it., p.
270). O "oqué' é o u
quem", a espécie é o indivíduo (v. ANAR-QUISMO).
3. O que não é substituível em seu valor ou em sua função. Nesse sentido, qualifica-se de U. uma pessoa
ou uma obra de arte; em matemática, o valor de uma função.
4. O que não se repete ou não se repete de modo idêntico. Nesse sentido qualifica-se
de U. o acontecimento histórico como tal (v. HISTÓRIA).
5. O que pode ser efetuado de um só modo; nesse sentido dizemos que uma operação é U.: p. ex., a
decomposição de um número em fatores primos.
UNIDADE (gr. u.ot>òcç; lat. Unitas; in. Unity, fr. Unité, ai. Einheit; it. Unita). 1. Em sentido próprio, o
que é necessariamente uno, indivisível: ou no sentido de ser desprovido de partes ou de suas partes serem
inseparáveis da totalidade e inseparáveis entre si. Este foi o conceito elaborado por Aristóteles, que
distinguiu o que é uno por si, ou essencialmente, do que é uno por acidente (Met., V, 6, 1015 b 16);
definiu a U. (uotxxç) como alguma coisa indivisível, absoluta ou quantitativamente (Ibid., 1016 b 24), e
distingiu quatro espécies fundamentais de U.: a) a das totalidades contínuas, como p. ex. os organismos;
b) a das formas ou substâncias; c) a numérica; d) a definitória, ou seja, a U. de coisas que têm a mesma
definição (Ibid, X, 1052 a 15-1052 b 15; v. V, 6, 1016 a I-1016 a 35). Essas determinações aristotélicas
não são perfeitamente coerentes porque, ao mesmo tempo que definem a U. como indivi-sibilidade,
incluem entre suas formas a continuidade que o próprio Aristóteles define como a divisibilidade em partes
por sua vez divisíveis (v. CONTÍNUO). Seu significado, porém, está bem claro. A U., ou seja, o uno por si,
é, por um lado, a identidade da forma ou da substância consigo mesma; por outro, a identidade dos
objetos que têm a mesma definição (identidade dos indiscerníveis) e por outro ainda é o elemento ou o
princípio do número.
No que diz respeito ao número, esse conceito de U. durou muito tempo (v. NÚMERO), mas das outras duas
formas distinguidas por Aristóteles, a U. formal ou substancial foi a mais freqüentemente assumida como
conceito ou ideal de U. na tradição filosófica. Os neoplatô-nicos ilustraram e exaltaram a U. como
condição necessária do ser, negligenciando a distinção aristotélica entre a U., que é necessária, e o uno,
que não é. Para Plotino, a U. é sempre necessária: "Separados do um, os seres não existem mais. O
exército, o coro, o rebanho não existiriam se não fossem um exército, um coro. um rebanho. A casa e a
nave não são se não têm unidade, porque a casa é uma casa e a nave é uma nave, e, se perdessem a
unidade, não seriam nem casa nem nave. Nem as grande-
UNIDADE 980
UNIFORME
zas contínuas existiriam se não tivessem unidade. Divida-se uma grandeza: perdendo a U., seu ser se
transforma. O mesmo acontece para os corpos das plantas e dos animais, que, se perdem a U. e se
dividem em muitas partes, perdem o ser que possuíam e não são mais o que eram; transformam-se em
outros seres que, em sendo, são um ser cada um {Enn., VI, 9,1). Essas considerações foram decisivas para
a história ulterior do conceito de unidade. Repetidas por Proclo {Inst. theoi, 21, etc.) e por Dionísio, o
Areopagita {De div. nom., XIII, C-D), passaram para a filosofia medieval (v. S. TOMÁS, S. Th., I, q. II, a.
I) e foram retomadas por Nicolau de Cusa {Dedocta ignor, I, 5), que identificou a U. absoluta com o
máximo absoluto e ambas as coisas com Deus, inspirando as especulações correspondentes de G. Bruno
sobre o assunto. A substância das coisas consiste na U. {De Ia causa, princípio et uno, V, em Op., ed.
Guzzo e Ameno, p. 409).
Locke foi o primeiro a polemizar o conceito de U. substancial. Afirma que "a U. de substância" não
permite entender as várias espécies de identidades, como p. ex. a identidade da substância do homem, da
pessoa, etc, e que tais identidades devem ser esclarecidas ou explicadas independentemente umas das
outras {Ensaio, II, 27, 8). Mas já Leibniz voltava à defesa da identidade substancial, "única U. verdadeira
e real" {Nouv. ess., II, 27, 4). Wolff redefiniu a U. no sentido tradicional, entendendo-a como "a
inseparabilidade das coisas por meio das quais o ente é determinado" {Ont., § 328); segundo Wolff,
determinação do ente nada mais é que a razão ou a forma do ente {Ibid., § 116). O papel determinante que
Kant atribui à síntese (v.), em todos os graus e formas do conhecimento e, em geral, da atividade humana,
orienta-se pelo mesmo privilégio concedido à noção de unidade. Para Kant, U. é sinônimo de síntese ou
de nexo necessário. Seu caráter específico é, em outros termos, a inseparabilidade do que é unificado ou
sintetizado. Como fundamento de todos os graus ou formas de U., que constituem as formas e os graus do
conhecimento, Kant põe "a U. objetiva da percepção", que se manifesta com o uso da cópula é, em
sentido objetivo. Segundo Kant, essa cópula designa "a U. necessária" do sujeito com o predicado e a
relação dessa U. necessária com a apercepção originária. Isso não quer dizer que as representações ligadas
pela cópula sejam "necessariamente subordinadas uma à
outra", mas sim que elas são "subordinadas uma à outra por meio da U. necessária da apercepção" {Crít.
R. Pura, § 19). Como se vê, o uso kantiano do conceito de U. é, rigorosamente, tradicional: Kant transfere
para o eu penso, ou "U. necessária da apercepção", o fundamento da U. necessária dos objetos, mas a
noção mesma de U. necessária" é aristotélica. Nem mesmo Hegel se afasta dessa noção, lamentando que
ela pudesse ser entendida como "reflexão subjetiva" e afirmando que deveria, ao contrário, ser entendida
no sentido de "não-separação e inseparabilidade". Mas este é justamente o conceito aristotélico de U.
{Wissenschaft der Logik, I, livro I, seç. I, cap. I, n. 2). O uso desse termo, presente em toda a obra de
Hegel para indicar o terceiro momento da dialética, o da U. ou identidade dos opostos, conforma-se
perfeitamente a esse conceito.
No uso filosófico corrente, esse termo nem sempre conserva o significado próprio de indi-visibilidade ou
inseparabilidade, ou seja, de nexo necessário. Contudo, esse significado está presente quando se fala da
U. de Deus, do mundo, da natureza, ou da história, e mesmo quando se fala de U. idéias ou normativas,
como "U. da humanidade" ou "U. da família", etc.
2. Em correlação com o significado acima, os filósofos chamam de U. os elementos constitutivos ou os
princípios gerais do ser. Sabemos que, nesse sentido, para os pitagóricos "a U. é o princípio de todas as
coisas" (DIÓG. L., VIII, 25; J. STOBEO, Eci, I, 2, 58). No mesmo sentido, o neoplatonismo falou em
Manadas ou de Énades (PROCLO, Inst. theol, 64) e Leibniz chamou de Manadas (v.) as substâncias
espirituais que, segundo ele, seriam os elementos do mundo. Nesses usos, o termo conserva o significado
de substância indivisível.
3. Em sentido genérico e impróprio o mesmo que um/uno (v.).
UNIFICAÇÃO DAS CIÊNCIAS. V. ENCICLOPÉDIA.
UNIFORME (gr. ÓLiO£i8f|Ç,; lat. Uniformis; in. Uniform; fr. Uniforme, ai. Einfórmig; it. Uniforme). 1.
O que pertence à mesma espécie ou à mesma essência ou substância; esse era o sentido atribuído por
Aristóteles {Met., V, 2, 1013 b 31; I, 9, 991 b 23; VII, 7, 1032a 24, etc.) e aceito por S. Tomás {In Sent, II,
d. 48, q. I, a. 1). Assim, qualificam-se de U. os objetos que têm o mesmo gênero, a mesma espécie ou, em
geral, a mesma natureza.
UNITARISMO
981
UNIVERSAIS, DISPUTA DOS
2. O que permanece constante, imutável ou pelo menos relativamente constante e imutável. Nesse
sentido fala-se da uniformidade das leis da natureza (v. INDUÇÃO).
3. O que apresenta analogias ou semelhanças parciais, evidenciadas pela abstração preci-siva, e é
suscetível de previsão. Nesse sentido, fala-se de uniformidade da natureza ou da uniformidade da história
ou do mundo humano e social. Peirce ilustrou a uniformidade da seguinte maneira: "Se escolhermos
muitos objetos, seguindo o princípio de que eles devem pertencer a determinada classe, e julgarmos que
todos têm um caráter comum, perceberemos que, com grande freqüência, a classe inteira tem o mesmo
caráter. Ou, se escolhermos muitos caracteres de uma coisa ao acaso e depois acharmos uma coisa que
tem todos esses caracteres, geralmente percebemos que a segunda coisa é bastante semelhante à primeira"
(Coll. Pap., 7.131). Como observa o próprio Peirce, uniformidade nesse sentido poderia ser encontrada
mesmo num mundo em que tudo ocorresse ao acaso (Ibid., 7.136). São essas as uniformidades de que se
valem as disciplinas científicas, tanto as naturais quanto as sociais, assim como o senso comum. O léxico
de uma linguagem qualquer nada mais é que a expressão de uniformidades desse tipo. A repetibili-dade é
o caráter fundamental da uniformidade nesse sentido.
4. O que está em conformidade com uma ordem, ou seja, com uma regra ou uma lei qualquer. Nesse
sentido, são qualificados de U. os fenômenos naturais que obedecem a leis, mas na realidade essa espécie
de uniformidade e a precedente são a mesma coisa, visto que uma lei científica nada mais é que uma
uniformidade no sentido 3. Isso foi evidenciado por J. Stuart Mill (System of Logic, III, IV, I) (v.
REGULARIDADE).
UNITARISMO (in. Unitarianism; fr. Unita-risme, ai. Unitarismus, Unitismus, it. Unitarismó). 1.
Corrente religiosa que defende a unidade de Deus, em oposição à fórmula trinitária do cristianismo.
Embora se ligue a antigas heresias religiosas, o socinianismo (v.) foi a primeira forma moderna de U.,
constituindo depois a corrente religiosa mais tolerante e liberal do mundo moderno. Desenvolveu-se
quase exclusivamente na Inglaterra e na América do Norte. Na Inglaterra, a Associação Unitarista foi
criada em 1825, e dela deriva o nome assumido por
essa corrente mesmo fora da associação ou em numerosas outras associações da Inglaterra e da América
do Norte. V. W. E. CHANMNG, Works, 1886; Unitarian Christianity and Other Essays, ed. I. H. Barlett,
1957; A. A. BOWMAN, TheAbsur-dity of Christianity and Other Essays, ed. C. W. Hendel, 1958.
2. Em alemão, especialmente, esse termo eqüivale a panteísmo (v.). Fichte diz: "Se perguntássemos qual o
caráter da teoria da ciência no que se refere a unitarismó (ev Kod Ttõv) e dualismo, a resposta seria: ela é
unitarismó em seu aspecto ideal por saber que, como fundamento de todo o saber, encontra-se o eterno
Uno, que está além do saber; e é dualismo no aspecto real, ao pôr o saber como real" (Wissenschaftslehre.
1801, § 32, em Werke, II, p. 89).
UNIVERSAIS, DISPUTA DOS (in. Contro-versy about universais; fr. Querelle des univer-saux, ai.
Universalienstreit; it. Disputa degli universali). Essa expressão designa a disputa sobre o status
ontológico dos U. (gêneros e espécies), que começou na Escolástica do séc. XI e caracterizou toda a
filosofia medieval, continuando depois, com formas pouco diferentes, na filosofia moderna. Essa disputa
foi motivada por um trecho da Isagoge (Introdução) de Porfírio às Categorias de Aristóteles e pelos
comentários de Boécio a ela relativos. O trecho de Porfírio é o seguinte: "Dos gêneros e das espécies não
direi aqui se subsistem ou se são apenas postos no intelecto, nem — caso subsistam — se são corpóreos
ou incorpóreos, se separados das coisas sensíveis ou situados nas coisas, expressando seus caracteres
comuns" (Isag., I). Das alternativas indicadas por Porfírio nesse trecho, apenas uma não se encontra na
história da disputa: aquela segundo a qual os U. seriam realidades corpóreas. Em compensação, uma
alternativa que Porfírio não previra verificou-se historicamente, pelo menos segundo dizem: o U. não
existe nem no intelecto e é apenas um nome, um flatus voeis. Essa é a solução atribuída a Roscelin por S.
Anselmo (Defide Trinitatis, 2) e por João de Salisbury (Metal, II 13; Policrat., VII, 12). As soluções
dadas a esses problemas na Escolástica e depois dela foram muito numerosas, e muitas vezes diferem por
ninharias. Realismo (v.) e nominalismo (v.) são as soluções fundamentais, mas Ockham, na refutação
sistemática que quis fazer ao realismo, enumerava seis formas fundamentais deste (In Sent., I, d. 2. q. 4-8;
UNTVBERSAIS, DISPUTA DOS
982
UNIVERSAL
Quodl, V, q. 10-14; Summa log., I, 15-17; v. ABBAGNANO, G. de Ockbam, II, § 8-II).
Mas o fundamental para entender tanto a origem histórica da disputa quanto o alcance permanente que ela
pode ter é que suas duas soluções fundamentais, realismo e nominalis-mo, correspondem às duas
tendências fundamentais da lógica antiga e medieval, a platônico-aristotélica e a estóica. Essas duas
tendências correspondem à lógica antiga e à lógica moderna, nomes medievais daquilo que mais tarde foi
chamado de formalismo e de terminismo (v. TERMINISMO). A primeira dessas correntes defendia as
doutrinas lógicas tradicionais; a segunda, a doutrina da suposição (v.) e os raciocínios antinômicos. Os
tratados lógicos da Idade Média justapõem os dois troncos doutrinários, mas a inconciliabilidade e o
antagonismo deles se manifesta na disputa dos U., que denuncia a presença ativa, na Escolástica, de uma
tradição lógica antiaristotélica, que é a estóica, haurida nas obras de Boécio e de Cícero.
Realismo e nominalismo constituem, portanto, as duas soluções típicas e iniciais do problema. Para o
realismo, isto é, para a tradição lógica platônico-aristotélica, o U. é, além de conceptus mentis, a essência
necessária ou substância das coisas. Para o nominalismo, ou seja, para a tradição estoicizante, o U. é um
signo das coisas. O realismo e o nominalismo medievais constituem, assim, as duas alternativas sempre
presentes na teoria do conceito (v. CONCEITO).
Mais especificamente, no que diz respeito ao realismo, é possível distinguir três formas fundamentais, que
podem ser chamadas de platonizante, aristotélica e semi-aristotélica. A forma platonizante do realismo é
atribuída por Abelardo ao seu mestre Guilherme de Cham-peaux (séc. XI): o U. seria a substância, e os
indivíduos constituiriam acidentes dessa substância (ABELARDO, CEuvres, ed. Cousin, p. 513). A solução
aristotélica é a mais comumente defendida na escolástica, sendo expressa por S. Tomás, para quem o U.
está in re como forma ou substância das coisas, post rem como conceito no intelecto e ante rem na mente
divina como Idéia ou modelo das coisas criadas {In Sent., II, d. 3, q. 2, a. 2). Esses três U. perfazem
apenas um, vale dizer, identificam-se com a essência, a substância ou a forma da coisa, que existe ab
aeterno no intelecto divino e que o intelecto humano abstrai da coisa (S. Th., I, q. 85, a. I). Finalmente,
pode ser chamada de
semi-aristotélica a solução encontrada por Duns Scot, segundo o qual o verdadeiro U. existe somente no
intelecto, enquanto nas coisas existe uma natureza comum que se distingue formalmente da
individualidade das coisas, e não numericamente (Op. Ox., II, d. 3, q. 6, n. 15). O caráter peculiar dessa
solução está no princípio de distinção formal (v. DISTINÇÃO), que é uma das características da filosofia de
Duns Scot.
Por outro lado, o nominalismo é mais uniforme. Excetuando a mencionada tese de Roscelin (sobre a qual,
de resto, não existem documentos convincentes), o nominalismo, de Abelardo a Ockham, sempre
sustentou as mesmas teses fundamentais, a redução do U. à função lógica da predicabilidade, dividindo-se
apenas no que diz respeito à atribuição ou não de realidade psíquica ao U. Ockham mostra-se indiferente
a este último problema: nega, obviamente, que o U. seja uma species (v.), mas considera indiferente
identificá-lo com o ato do intelecto ou negar que tenha uma realidade qualquer na alma {In Sent., I, d. 2,
q. 8, E). Seu caráter fundamental é a função de signo, isto é, a suposição (v.). Esses foram os princípios
fundamentais da lógica terminista depois de Ockham; noção análoga de U. encontra-se na teoria do
conceito defendida pelo empirismo inglês a partir do séc. XVII: Locke, Berkeley e Hume (v. CONCEITO,
2).
UNIVERSAL (gr. KOCGÓAOU; lat. Universalis; in. Universal; fr. Universel; ai. Allgemein; it.
Universale). Esse termo teve dois significados principais: le
significado objetivo, em virtude do qual
indica uma determinação qualquer, que pode pertencer ou ser atribuída a várias coisas; 2° significado
subjetivo, em virtude do qual indica a possibilidade de um juízo (que diga respeito ao verdadeiro e ao
falso, ao belo e ao feio, ao bem e ao mal, etc.) ser válido para todos os seres racionais.
1
Q
O primeiro significado é o clássico; Aristóteles diz que Sócrates foi o descobridor do universal {Met.,
XIII, 4, 1078 b 28). Nesse sentido, o U. pode ser considerado no duplo aspecto ontológico e lógico.
Ontologicamente, o U. é a forma, a idéia ou a essência que pode ser partilhada por várias coisas e que
confere às coisas a natureza ou o caráter que têm em comum. O U. ontológico é a forma ou a espécie de
Platão (v., p. ex., Parm., 132 a) ou a forma ou substância de Aristóteles: por isso, este afirma-
UNIVERSAL
983
UNIVERSAL
va que só existe ciência do U. {Dean., II, 5, 417 b 23). Logicamente, o U. é, segundo Aristóteles, "o que,
por sua natureza, pode ser predicado de muitas coisas" (De int., 7, 17 a 39): definição que foi quase
universalmente aceita na história da filosofia. Foi o U. nesse sentido que os lógicos medievais atribuíram
o caráter de signo (v.) e a função de suposição (v.). Era este o U. que M. Nizolio interpretava como um
todo coletivo ou multitudo rerum singularium, de modo que a preposição "o homem é animal" ou
significaria "todos os homens são animais" (De verisprincipiis, I, 6); a isso Leibniz contestava que, ao
contrário, se trata de um todo distri-butivo, e assim a proposição significa que este ou aquele homem, seja
ele qual for, é animal (Op., ed. Erdmann, p. 70). Desse modo, nesse aspecto Leibniz reproduzia
substancialmente a doutrina nominalista da suposição do U. (OCKHAM, Summa log, I, 70). Está claro que
U., nesse sentido, não é senão outro nome para conceito, signo ou significado: por isso, os problemas a
ele relacionados devem ser considerados sob esses verbetes.
Por outro lado, o status ontológico do U. dava ensejo à chamada disputa sobre os U., que ocupou boa
parte da filosofia medieval e de algum modo continuou e continua na filosofia moderna (v. UNIVERSAIS,
DISPUTA DOS). Como dissemos, o U. no significado ontológico é a forma ou a substância das coisas:
conceito que não é somente aristotélico e medieval. Locke também observada que o fundamento da
universalidade das proposições só pode ser a substância, com o nexo necessário que ela implica entre suas
determinações, e que onde falta o conhecimento da substância a universalidade não é rigorosa (Ensaio,
IV, 6, 7). Analogamente, Kant observava que a universalidade empírica nunca é rigorosa ou verdadeira, e
que a universalidade autêntica precisa estar fundada nas formas a priori do conhecimento, ou seja, nas
formas que constituem as coisas como fenômenos (Crít. R. Pura, Intr., II ). Hegel, por sua vez, insistia na
unidade do U. e do particular, que éoíí concreto, Idéia ou Conceito Real. Portanto, ao U. abstrato, que é
contraposto ao particular e ao indivíduo, ele contrapunha o U. concreto, que é a essência ou a natureza
positiva do particular (WissenschaftderLogik, II, livro III, seç. I, cap. I, A; trad. it., III, pp. 42 ss.), e
considerava ser tarefa da filosofia conhecer o U. concreto: "E tarefa da filosofia demonstrar,
contra o intelecto, que o verdadeiro, a Idéia, não consiste em generalidades vazias, mas em um U. que, em
si mesmo, é o particular, o determinado" (Geschichte der Philosophie, ed. Glockner, I, p. 58). No mesmo
sentido, Croce escrevia: "Se o conceito é U. transcendente em relação à representação singular, tomada na
sua singularidade abstrata, por outro lado é imanen-te em todas as representações, portanto também na
singular", identificando assim conceito com razão ou idéia (Lógica, 1920, p. 28). A "con-creção do U." de
que falam os escritores idealistas nada mais é que o status ontológico atribuído ao U. pela metafísica
tradicional.
Ao U. ontológico ligam-se também alguns outros usos do termo universal. Assim, "história U." é a
história que tem por objeto a forma ou a ordem global do mundo humano (v. HISTÓRIA). A "gravitação
U." é uma força ou um princípio que rege a totalidade do mundo, e assim por diante. Nestes usos do
termo o seu significado objetivo está unido ao seu alcance ontológico.
2
S
No segundo significa, U. é o que é ou deve ser válido para todos. O conceito de U. nesse sentido
nasceu no domínio da análise dos sentimentos, especialmente dos sentimentos estéticos (v. GOSTO). Já
Hume se propunha procurar uma regra do gosto, "por meio da qual possam ser harmonizados os vários
sentimentos dos homens" (Essays, I, pp. 268 ss.), mas foi Kant que, além de usar esse tipo de
universalidade no domínio da estética, estendeu-o para o domínio moral e elucidou suas características
específicas, definindo-o como validade comum ou universalidade subjetiva. No que diz respeito à esfera
estética, Kant via no juízo de gosto simplesmente "a necessidade objetiva de concordância do sentimento
de cada um com o nosso próprio sentimento", e nesse sentido definia o belo como "um prazer
necessário", no sentido de ser um prazer que todos devem sentir do mesmo modo (Crít. do Juízo, § 22).
No domínio da ética, Kant afirmava que uma lei só é prática se for "válida para a vontade de todos os
seres racionais" (Crít. R. Prática, § I), e considerava a universalidade subjetiva (possibilidade de uma
máxima valer como lei para todos os seres racionais) o critério para julgar se uma máxima é ou não uma
lei moral (Grundlegung der Metaphysik der Sitten, II). Mas ele também evidenciava a diferença entre essa
universalidade subjetiva e a universalida-
UNIVERSALISMO
984
UNÍVOCO e EQUÍVOCO
de objetiva. Dizia: "Cada juízo objetivamente U. é sempre subjetivo; isso significa que, quando o juízo é
válido para tudo que está compreendido em dado conceito, também é válido para qualquer um que
represente um objeto segundo esse conceito". Todavia, o inverso nem sempre é verdadeiro, isto é, nem
todo juízo que tem universalidade subjetiva ou validade comum também é objetivamente U.; esse é o caso
da universalidade estética, que possui universalidade subjetiva, mas não objetiva (Crít. do Juízo, § 8). A
partir de Kant, a universalidade subjetiva tornou-se lugar-comum em filosofia, tanto quanto a noção de
validade (v.).
Talvez com mais exatidão, essa espécie de U. é hoje indicada pelo termo intersubjetivo (v.). A referência à
intersubjetividade constitui o significado desse termo em muitas expressões correntes, como "linguagem
U.", "educação U.", "consenso U.", "amor U.", etc. Em outras expressões, esse termo pode ter tanto o
significado subjetivo quanto o objetivo e lógico: p. ex., "gênio U.", que pode ser entendido como o gênio
que todos devem reconhecer ou reconhecem, ou como o gênio que é gênio em relação a qualquer ramo do
conhecimento.
UNIVERSALISMO (in. Universalism; fr. Uni-versalisme, ai. Universalismus, it. Universalismo). 1. Em
sentido teológico, doutrina de que Deus quer salvar todos os homens, não existindo, pois, predestinação à
danação. É a doutrina sustentada, entre outros, por Leibniz, que nesse sentido fala da oposição entre
"universalistas" e "par-ticularistas" (Tbéod., I, § 80).
2. Em sentido ético, qualquer doutrina contrária ao individualismo que afirme a subordinação do
indivíduo a uma comunidade qualquer (Estado, povo, nação, humanidade, etc).
UNIVERSALIZAÇÃO. V. GENERALIZAÇÃO.
UNIVERSO (gr. TO rtãv; lat. Universuni; in. Universe, fr. Univers; ai. Universum; it. Universo). 1. Um
todo qualquer: p. ex., "U. do discurso", "U. das estrelas fixas" ou "U. visível".
2. O todo da natureza física, sem mencionar sua ordem. Este é o significado atribuído a esse termo por
Aristóteles (Met., V, 26, 1024 a I) e pelos estóicos 0- STOBEO, ECL, I, 21, pp. 442 ss.).
3. O mesmo que mundo. Este uso prevalece entre os modernos (v. MUNDO; TOTALIDADE; TODO).
UNIVERSO DO DISCURSO (in. Universe of discourse, fr. Univers du discours; it. Universo dei
discorsó). Esta expressão foi introduzida por
De Morgan (Formal Logic, 1847, p. 37) e divulgada por Boole (Laws of Thought, 1854, III, § 4) para
indicar, em geral, "a extensão do campo em cujo interior estão todos os objetos do nosso discurso".
Mais tarde e com maior precisão, esse termo passou a indicar, na álgebra da lógica, uma classe não vazia,
da qual, e somente da qual, sejam extraídos todos os elementos com que são constituídas todas as classes
sobre as quais o cálculo é feito. Daí se conclui facilmente que o U. do discurso é a soma lógica de todas
as classes que podem ser formadas com tais elementos. É indicado com o símbolo "v" ou "1". Na
interpretação proposicional, será constituído pela disjunção (soma lógica) de todas as proposições sobre
as quais é feito o cálculo, ou da conjunção (produto lógico) de todas as proposições verdadeiras.
Na lógica das relações, o U. do discurso é, ainda, formado por todos os elementos que podem entrar nas
relações consideradas; nesse caso deve conter pelo menos dois elementos, se forem consideradas apenas
relações diádicas; pelo menos três elementos, se forem consideradas também as relações triádicas... pelo
menos n elementos se forem consideradas as relações w-ádicas. A relação-U. é a relação "a v b" que
existe entre todos os pares possíveis de elementos do universo.
Na lógica contemporânea, esse conceito perdeu importância: quando usado, é-o no sentido acima
definido. Na prática, porém, usa-se com freqüência a expressão "U. do discurso", para indicar o conjunto
de elementos (termos e proposições) que constituem o campo de determinada disciplina.
G. P.
UNÍVOCO e EQUÍVOCO (gr. OWCÒvuLloç., óncóvuLioç; lat. Univocus, aequivocus; in. Uni-vocal,
equivocai; fr. Univoque, equivoque, ai. Eindeutig, Aequivok, it. Univoco, equivoco). Estes dois termos
receberam definições diferentes, segundo tenham sido atribuídos ao objeto ou ao conceito (ou nome).
1. Aristóteles atribuiu-os ao objeto e entendeu por unívocos (ou sinônimos) os objetos que têm em
comum tanto o nome quanto a definição do nome: assim, p. ex., tanto o homem quanto o boi são
chamados de animais. Chamou de equívocos (ou homônimos) os objetos que têm o nome em comum,
enquanto as definições evocadas pelo nome são diferentes: nesse sentido, chama-se de animal tanto o ho-
URDOXA ou URGLAUBE
985
ÚTIL
mem quanto um desenho (Cat., I, Ia I-II). Essas definições são repetidas com freqüência na escolástica (p.
ex., PEDRO HISPANO, Sumtn. Log., 3.01) e encontram-se em lógicos mais recentes (p. ex., JUNGIUS,
Lógica hamburgensis, I, 2, 4-9).
2. A lógica terminista julgou "imprópria" a referência dos dois termos aos objetos e julgou que eles
deveriam referir-se propriamente apenas aos signos, ou seja, aos conceitos ou nomes. Desse ponto de
vista, as definições de Ockham são as seguintes. "U. é ou a palavra ou o signo convencional que
corresponde a um único conceito ou, mais estritamente, é aquilo que, por si só, pode ser predicado de
várias coisas, ou é o pronome demonstrativo de uma coisa. Equívoco, por outro lado, é o nome que,
significando várias coisas, não está subordinado a um único conceito, mas é único signo de vários
conceitos ou intenções da alma. O U. pode derivar do acaso, como acontece quando o nome de Sócrates é
imposto a vários homens, ou de deliberação, quando se impõe certo nome a certas coisas e se o subordina
a um único conceito, mas depois, graças à semelhança desse conceito com outros, estende-se a outros o
mesmo nome" (Summa log., I, 13).
Ainda hoje esses termos recebem as definições terministas. As discussões sobre a natureza da
univocidade tinham imediata ressonância teológica na Idade Média-, quanto à disputa entre os defensores
da univocidade e os da analo-gicidade do ser, v. ANALOGIA.
URDOXA ou URGLAUBE. Husserl usou esse termo (que significa crença originária) para indicar a
certeza que caracteriza a crença, ou seja, a referência segura da crença a um objeto existente (Ldeen, I, §
104) (v. CRENÇA).
URPHAENOMENON. Termo usado por Goethe, que explicava da seguinte forma o seu conceito: "Na
experiência, o mais das vezes captamos apenas casos que, com certa atenção, podem ser enquadrados em
rubricas empíricas gerais. Estas, por sua vez, subordinam-se a rubricas científicas que remetem mais
além, de forma que acabamos conhecendo melhor algumas condições indispensáveis do que aparece. Daí
para a frente, tudo se sistematiza gradualmente sob regras e leis superiores, que não se manifestam ao
intelecto por meio de palavras e hipóteses, mas à intuição por meio de fenômenos. São estes os
fenômenos que chamamos de originários, porque na aparência nada está acima deles, e, assim como antes subimos, eles nos permitem descer gradualmente até o caso mais comum
da experiência cotidiana". (Farben-lehre, 1808, § 175).
USIOLOGIA (in. Usiology, fr. Asiologie, ai. Usiologie, it. Usiologia). Doutrina das essências. Termo
raro.
USO (in. Use, fr. Usage, ai. Gehrauch; it. Uso). O ato ou o modo de empregar meios, instrumentos ou
utensílios. Esse termo é usado em filosofia sobretudo com referência a instrumentos ou meios intelectuais
ou com referência à própria razão. Kant falou de U. lógico da razão, por meio do qual são feitas
inferências imediatas, isto é, silogísticas, e de U. puro, por meio do qual a razão se faz "uma fonte
especial de conceitos e de juízos". Este último é o U. dialético da razão iCrít. R. Pura, Dialética, Intr., II,
B-C). Kant distinguiu também o U. teórico e o U. pratico da razão (Crít. R. Pura, Pref. à segunda ed.) e
finalmente fez a distinção entre U. empírico dos conceitos, que significa a sua referência a objetos da
experiência possível, e U. transcendental, que significa a sua referência a objetos que estão além de tal
experiência (v. TRANSCENDENTAL).
Wittgenstein lançou mão da noção de U. para definir o significado dos termos lingüísticos: "Para uma
ampla classe de casos — embora não para todos — nos quais empregamos a palavra 'significado', ela
pode ser assim definida: o significado de uma palavra é o seu U. na linguagem" {Philosophical
Investigations, §43)
(v. LINGUAGEM; SIGNIFICADO).
Os lógicos contemporâneos fazem a distinção entre U. de uma palavra e sua menção. Na frase "o homem
é um animal racional", a palavra "homem" é usada mas não mencionada. Ao contrário, a frase "em
português, a tradução de man tem cinco letras", a palavra homem é mencionada mas não usada.
Finalmente, na frase "a palavra homem tem cinco letras" a palavra homem é ao mesmo tempo usada e
mencionada. Este último U. foi chamado pelos escolásticos de suposição material (v. SUPOSIÇÃO) e por
Carnap de U. autônimo (CARNAP, Logical Syntax ofLanguage, § 64; QUINE, Me-thods of Logic, § 7;
CHURCH, Introduction to Mathematical Logic, § 80).
ÚTIL (in. Useful; fr. Utile, ai. Nützlich; it. Utilé). 1. O que é meio ou instrumento para um fim qualquer.
Nesse sentido, a utilidade foi definida por Alberto Magno (5. Th., I, q. 8,
UTILIDADE MARGINAL
986
UTILITARISMO
a. 3), Geulinex {Ethica, III, 6) e Haumgarten {Met., § 336); é um caráter das coisas.
2. Mais especificamente, a partir de Hobbes, chamou-se de Ú. o que serve à conservação do homem ou,
em geral, satisfaz às suas necessidades ou atende aos seus interesses. Hobbes afirmava, a propósito, que
cada homem é por direito natural árbitro do que lhe é Ú., e que "a medida do direito é a utilidade"(£)e
eive, 1642, 1, 9-10). Seguindo Hobbes, Spinoza identificava o comportamento racional do homem com a
procura do Ú.: "A razão, não exigindo nada de contrário à natureza, requer por si só, antes de mais nada,
que cada um se ame e procure o que lhe é Ú. e que realmente assim seja." Entre as muitas coisas Ú. e
desejáveis, as mais importantes são as que convém à natureza humana; por isso, a mais importante de
todas é a conservação do homem, na sua própria pessoa e na do outro. "Os homens que são governados
pela razão, ou seja, os que procuram o que lhe é Ú. segundo a direção da razão, não desejam para si nada
que também não desejem para os outros homens justos, fiéis e honestos" {Et, IV, 18, schol.). Nesse
sentido, por um lado a utilidade tornou-se fundamento da doutrina moral chamada utilitarismo (v.) e, por
outro lado, conceito fundamental da economia política (v.). Na primeira direção, Hume já perguntava
"por que a utilidade agrada", e encontrava a resposta a esta pergunta na natural simpatia do homem para
com o outro homem {Inq. Cone. Morais, V). A coincidência da utilidade individual com a social estava
assim já postulada e passou a ser um dos temas do utilitarismo. Bentham definia utilidade como "a
propriedade de um objeto em virtude da qual ele tende a produzir benefício, vantagem, prazer, bem ou
felicidade {Intro-duetion to the Principies of Morais, 1789, I, D-No campo da economia política, por Ú.
entendeu-se habitualmente "tudo o que satisfaz uma necessidade"; a percepção de que nem sempre o que
satisfaz uma necessidade econômica (é desejado como tal) satisfaz a necessidade biológica induziu Pareto
a introduzir a noção de ofelimidade (v.), que é o Ú. no contexto econômico {Traitéd'économiepolitique, n.
2028).
UTILIDADE MARGINAL. V. ECONOMIA POLÍTICA.
UTTLITARISMO (in. Utilitarianism, fr. Uti-litarisme, ai. Utilitarismus; it. Utilitarismo). Embora se
possa dizer que a identificação do bom
com o útil remonta a Epicuro (v. ÉTICA), do ponto de vista histórico, o U. é uma corrente do pensamento
ético, político e econômico inglês dos sécs. XVIII e XLX. Stuart Mill afirmou ter sido o primeiro a usar a
palavra utilitarista (utili-tariarí), extraindo-a de uma expressão usada por Galt em Annals of Paris (1812);
de fato, a ele se deve o sucesso desse nome. Contudo, essa palavra foi usada ocasionalmente por
Bentham, a primeira vez em 1781. Os aspectos essenciais do U. podem ser resumidos do modo seguinte:
1
Q
Em primeiro lugar, o U. é a tentativa de transformar a ética em ciência positiva da conduta humana,
ciência que Bentham queria tornar "exata como a matemática" {Introduction to the Principies of Morais,
em Works, I, p. V). Essa característica faz do U. um aspecto fundamental do movimento positivista, ao
mesmo tempo em que lhe garante um lugar importante na história da ética (v.).
2
a
Por conseguinte, o U. substitui a consideração do fim, derivado da natureza metafísica do homem, pela
consideração dos móveis que levam o homem a agir. Nisto, liga-se à tradição hedonista, que vê no prazer
o único móvel a que o homem ou, em geral, o ser vivo, obedece (v. HEDONISMO). Nesse aspecto, assim
como no precedente, o U. foi tratado sobretudo por J. Bentham (1748-1832).
3
S
Reconhecimento do caráter supra-indivi-dual ou intersubjetivo do prazer como móvel, de tal modo que
o fim de qualquer atividade humana é "a maior felicidade possível, compartilhada pelo maior número
possível de pessoas": fórmula enunciada primeiramente por Cesare Beccaria {Dei diritti e delle pene, \
1(A, § 3) e aceita por Bentham e por todos os utilitaristas ingleses. A aceitação dessa fórmula supõe a
coincidência entre utilidade individual e utilidade pública, que foi admitida por todo o liberalismo
moderno (v. LIBERALISMO). A obra de James Mill e de Stuart Mill dedicaram-se principalmente a
justificar essa coincidência. Para James Mill, ela decorria da lei da associação psicológica: cada um deseja
a felicidade alheia porque ela está intimamente associada com a sua própria felicidade {Analysis ofthe
Phenomena of the Human Mind, ed. 1869, II, pp. 351 ss.). Para Stuart Mill essa mesma vinculação estava
ligada ao sentimento de unidade humana, que Comte evidenciara com sua religião da humanidade
{Utilitarianism, 2- ed., 1871, p. 61).
UTOPIA
987
UTOPIA
4
Q
Associação estreita do U. com as doutrinas da nascente ciência econômica. Dois dos fundadores dessa
ciência, Malthus (1766-1834) e David Ricardo (1772-1823), foram utilitaristas e compartilharam o
espírito positivo e reformador do U.
5
Q
Espírito reformador dos utilitaristas no campo político e social: preocuparam-se em pôr sua doutrina
moral a serviço de reformas que deveriam aumentar o bem-estar e felicidade dos homens em vários
campos. Nesse aspecto, o U. também foi denominado radicalismo.
Cf. S. LESLIE, The English Utilitarians, três vols., 1900; E. ALBEE, A History of English Uti-litarianism,
1901, 2a
ed., 1957.
UTOPIA (lat. Utopia; in. Utopia-, fr. Utopie, ai. Utopie, it. Utopia). Thomas More deu esse nome a uma
espécie de romance filosófico {De optimo reipublicae statu deque nova insula Utopia, 1516), no qual
relatava as condições de vida numa ilha desconhecida denominada U.: nela teriam sido abolidas a
propriedade privada e a intolerância religiosa. Depois disso, esse termo passou a designar não só qualquer
tentativa análoga, tanto anterior quanto posterior (como a República de Platão ou a Cidade do Sol de
Campanella), mas também qualquer ideal político, social ou religioso de realização difícil ou impossível.
Como gênero literário, U. extrapola a consideração filosófica: aqui só observaremos que ela foi e ainda é
muito divulgada, sendo adaptada até para romances de ficção científica. Cabe à filosofia avaliar a U.,
tanto a expressa em forma de romance quanto a expressa em forma de mito ou ideologia, etc; quanto a
essa avaliação, os filósofos não estão de acordo. Para Comte, cabia à U. a tarefa de melhorar as
instituições políticas e de desenvolver as idéias científicas {Politique positive, I, p. 285). Marx e Engels,
ao contrário, condenaram como "utópicas" as formas assumidas pelo socialismo em Saint Simon, Fourier
e Proudhon, contrapondo a elas o socialismo "científico", que prevê a transformação infalível do sistema
capitalista em sistema comunista, mas exclui qualquer previsão sobre a forma que será assumida pela
sociedade futura e qualquer programa para ela (v. SOCIALISMO). No mesmo sentido, à U. — "obra de
teóricos que, depois de observarem e discutirem os fatos, procuram estabelecer um modelo ao qual
possam ser comparadas as sociedades existentes para medir o bem e o mal que encerram" — Sorel
contrapunha o mito, expressão de um grupo social que se prepara para a revolução {Reflexions sur Ia
violence, 4* ed., p. 46). Mannheim, ao contrário, considerou a U. como algo destinado a realizar-se, ao
contrário da ideologia (v.), que nunca conseguiria realizar-se. Nesse sentido, a U. seria o fundamento da
renovação social Udeologie und Utopie, 1929, II, I; v. R. K. MERTON, Social Theoty and Social Structure,
1957, 3a
ed., cap. XIII). Em geral, pode-se dizer que a U. representa a correção ou a integração ideal de
uma situação política, social ou religiosa existente. Como muitas vezes aconteceu, essa correção pode
ficar no estágio de simples aspiração ou sonho genérico, resolvendo-se numa espécie de evasão da
realidade vivida. Mas também pode tornar-se força de transformação da realidade, assumindo corpo e
consistência suficientes para transformar-se em autêntica vontade inovadora e encontrar os meios da
inovação. Em geral, essa palavra é considerada mais com referência à primeira possibilidade que à
segunda. Ao primeiro significado está ligada a chamada "teoria crítica da sociedade", desenvolvida por
Horkheimer, Adorno e Marcuse (especialmente por este último), que se concentra sobretudo na crítica
arrasadora da sociedade contemporânea. Marcuse escreveu: "A teoria crítica da sociedade não possui
conceitos que possam lançar uma ponte entre o presente e o futuro, não faz promessas e não mostra
sucessos, mas permanece negativa" {One Dimensional Man, 1964, p. 257). E ainda: "Se hoje pudéssemos
formular uma idéia concreta da alternativa, não seria a de uma alternativa: as possibilidades da nova
sociedade são tão abstratas, tão distantes e incôngruas em relação ao universo de hoje, que levariam ao
malogro qualquer tentativa de identificá-la em termos deste universo" {An Essay on Liberation, 1969;
trad. it., p. 101).
V
VACUÍSTAS (in. Vacuists; fr. Vacuistes; ai. Vacuisten). Com este termo ou com o termo antiplenistas,
são designados os defensores da teoria do espaço vazio, enquanto seus adversários foram chamados de
plenistas (v. LASSWITZ, Geschichte der Atomistik, II, p. 291).
VÁCUO ou VAZIO (gr. KEVÓV; lat. Vaccum; in. Vacuum-, fr. Vide, ai. Leere, it. Vuoto). A existência do
V. é um dos aspectos fundamentais da concepção do espaço como continente dos objetos (v. ESPAÇO).
Leibniz falou de um "V. de formas" (vacuum formarurrí), que existiria se não existissem substâncias
capazes de todos os graus de percepção, tanto inferiores quanto superiores aos homens (Op., ed.
Erdmann, p. 431).
VAGO (in. Vague, fr. Vague, ai. Unbestimmt; it. Vago). Diz-se que uma palavra (ou um conceito ou uma
proposição) é V. se o seu significado não for suficientemente determinado, de tal modo que haverá casos
em que parecerá impossível decidir se ela é aplicável ou não. Assim a palavra distante é V. porque
existem casos nos quais é impossível decidir se é possível falar de distância ou não; entretanto, não é V. a
expressão "distante trinta quilômetros''. Peirce definiu esse termo da seguinte maneira: "Uma proposição é
V. sempre que sejam possíveis estados de coisas tais que quem fala, mesmo os contemplando, ficaria
intrinsecamente indeciso quanto a serem afirmados ou negados na proposição. Por intrinsecamente
indeciso pretendemos falar do que é duvidoso, não pela ignorância de quem interpreta, mas pela
indeterminação da linguagem de quem fala" (em BALDWIN, Dictionary of Philosophy, II. p. 748). A
indeterminação não deve ser identificada com ambigüidade nem com generalidade. B. Russell, porém, insistiu na dificuldade de distinguir o V. do geral inclinando-se à interpretação
subjetiva da incerteza inerente ao que é V. (Analysis ofMind, 1921, p. 184). Max Black fez uma análise
exaustiva da noção de V., provocando uma discussão muito fértil a esse propósito ( Vagueness em
Language and Philosophy, 1952, cap. II; na tradução italiana, Vangueness é traduzido por Indeterminatezza).
VAIDADE (in. Vanity fr. Vanité, ai. Eitelkeit; it. Vanità. 1. Nulidade, coisa vã. É nesse sentido que essa
palavra é empregada freqüentemente na Bíblia (v. Eclesiastes, 1, 2: "V. das V., disse o Eclesiastes; V. das
V., é tudo V.").
2. Ambição mesquinha, vangloria, egocentrismo (v.).
VAISESICA. Um dos principais sistemas filosóficos da índia antiga, cuja fundação é atribuída a um
brâmane chamado kanada, que afirmou uma espécie de atomismo, considerando que a matéria é formada
por elementos indivisíveis e se caracteriza por seis determinações fundamentais: substância, qualidade,
movimento, generalidade, particularidade e inerên-cia. Esse sistema também admite a existência das
almas, demonstrada, por inferência, a partir da impossibilidade de atribuir ao corpo eventos como o
conhecimento, o prazer, o amor, etc.; também admitia a existência de Deus, considerado como causa e
regulador do Karman (v. G. Tucci, Storia delia filosofia indiana, 1957, pp. 112 ss.).
VALÊNCIAGn. Valency fr. Valence, ai. Wer-theit; it. Valenza). Correspondente objetivo ou noemático do
valor, segundo Husserl: "Por um lado falamos da simples coisa que é 'valente', tem caráter de valor, tem
V.; por outro, falamos
VALIDADE
989
VALOR
dos próprios valores concretos ou da objetividade de valor" ildeen, I, § 95).
Peirce estabelecera uma analogia entre as propriedades das proposições e a V. química (Coll. Pap., 3,
470-71).
VALIDADE (in. Validity, fr. Validité, ai. Gül-tigkeit; it. Validitã). 1. Universalidade subjetiva (v.
UNIVERSALIDADE, 2): nesse sentido, é válido o que é (ou deve ser) reconhecido como verdadeiro, bom,
belo, etc. por todos.
2. Conformidade com regras de procedimento estabelecidas ou reconhecidas. Nesse sentido, diz-se que
há validade na inferência que se conforme às regras da lógica, na lei que se conforme às regras
constitucionais, na sentença que se conforme às leis, na ordem que seja dada pela pessoa a quem cabe dála e nas formas estabelecidas pelas regras. Com esse sentido, V. deve ser distinguida de valores de
verdade, de justiça, e te. De fato, uma inferência válida, isto é, realizada em conformidade com regras
lógicas, não é uma inferência verdadeira, mas só será verdadeira se as suas premissas forem verdadeiras.
Assim, uma lei ou uma sentença válidas nem por isso são justas, etc. (v., sobre a V. lógica nesse sentido,
Peirce, Coll. Pap., 3168; 7.461).
3. Utilidade ou eficiência de um meio ou de um instrumento qualquer. Nesse sentido, Dewey afirmou que
as proposições, como meios pro-cessivos para conduzir uma pesquisa, não são verdadeiras nem falsas,
mas apenas válidas (sólidas, eficientes) ou inválidas (débeis, inadequadas) {Logic, XV; trad. it., pp. 382-
83). É a esse significado de V. que se apela sempre que se usa a expressão válido para. O que se segue ao
para é o fim ou a função em relação à qual se considera eficiente o instrumento, o meio ou a condição de
que se trata. P. ex., um bilhete de viagem é válido para determinado percurso; determinada organização é
válida para determinadas funções, etc.
4. Mais particularmente e no domínio da lógica, Carnap propôs que se chamasse de válido o enunciado
(ou a classe de enunciados) que seja conseqüência de uma classe nula de enunciados, e de contraválido o
enunciado do qual qualquer enunciado possa ser conseqüência. Os dois termos, nesse sentido,
correspondem, respectivamente, a analítico e contraditório (The Logical Syntax of Language, § 48).
Analogi-camente, Quine propôs chamar de válido o esquema lógico que continua verdadeiro seja qual for
a interpretação dada a seus símbolos. P. ex.,
o esquema pípé um esquema válido, enquanto o esquema/», 'qé coerente, mas não é válido, porque é só
verdadeiro quando p é interpretado como verdadeiro e q como falso (Methods of Logic, § 6). Nesse
sentido, V. significa apenas analiticidade ou verdade lógica.
VALOR (gr. áÇía; lat. Aestimabile, in. Value, fr. Valeur, ai. Wert; it. Valore). Em geral, o que deve ser
objeto de preferência ou de escolha. Desde a Antigüidade essa palavra foi usada para indicar a utilidade
ou o preço dos bens materiais e a dignidade ou o mérito das pessoas. Contudo, esse uso não tem
significado filosófico porque não deu origem a problemas filosóficos. O uso filosófico do termo só
começa quando seu significado é generalizado para indicar qualquer objeto de preferência ou de escolha,
o que acontece pela primeira vez com os estói-cos, que introduziram o termo no domínio da ética e
chamaram de V. os objetos de escolha moral. Isso porque eles entendiam o bem em sentido subjetivo (v.
BEM, 2), podendo assim considerar os bens e suas relações hierárquicas como objetos de preferência ou
de escolha. Por V., em geral, entenderam "qualquer contribuição para uma vida segundo a razão" (DIÓG.
L., VII, 105), ou, como diz Cícero, "o que está em conformidade com a natureza ou é digno de escolha
(selectione dignurri): (Definibus, III, 6, 20). Por "estar em conformidade com a natureza", entendiam o
que deve ser escolhido em todos os casos, ou seja, a virtude; como "digno de escolha", entendiam os bens
a que se deve dar preferência, como talento, arte, progresso, entre as coisas do espírito; saúde, força,
beleza entre as do corpo; riqueza, fama, nobreza, entre as coisas externas (DIÓG. L, VII, 105-06). A
divisão entre V. obrigatórios e V. preferenciais será mais tarde expressa como divisão entre V. intrínsecos
ou finais e valores extrínsecos ou instrumentais.
A retomada dessa noção no mundo moderno só ocorre com a retomada da noção subjetiva de bem: isso
acontece com Hobbes: "O V. de um homem, como o de todas as outras coisas, é seu preço, o que poderia
ser pago pelo uso de suas faculdades: portanto, não é absoluto, mas depende da necessidade e do juízo de
outro. O preço de um hábil comandante militar é alto em tempo de guerra, presente ou iminente, mas não
em tempos de paz" (Leviath., I, § 10). Todavia, a noção de V. só suplantou a de bem nas discussões
morais do séc. XIX, e mesmo nessa época isso aconteceu porque foi
VALOR
990
VALOR
estendido o significado do termo que fundamentava então as ciências econômicas (v. ECONOMIA
POLÍTICA). Kant identificara o bem com o V. em geral: "Cada um chama de bem aquilo que aprecia e
aprova, isto é, aquilo em que há um V. objetivo"; e acrescentava que nesse sentido o bem é bem para
todos os seres racionais (Crít. do Juízo, § 5). No entanto, limitava-se a designar com a palavra V. o bem
objetivo, excluindo o agradável e o belo. A extensão do termo para indicar não só o bem, mas também o
verdadeiro e o belo, se deve aos Kantianos, principalmente à corrente psicologista do Kantismo.
Polemizando contra o próprio Kant, Beneke afirmava que a moralidade não pode determinar uma lei
universal da conduta, mas pode e deve determinar a ordem dos V. que devem ser preferidos nas escolhas
individuais; os próprios V. são determinados pelo sentimento (Grundlinien der Sittenlehre, 1837, I, pp.
231 ss; Grundlinien des Naturrechtes, 1838, I, pp. 41 ss.). Essa orientação da ética para os V., em
filósofos que se inspiravam em Kant, sem dúvida é devida à tendência psicologizante, que tem como
corolário a noção subjetivista do bem. Mas foi principalmente Windelband quem falou, nos ensaios
depois reunidos em Prelú-Í#05(1884), de um "V. de verdade" e de um "V. de beleza", além de um "V. de
bem". Para a difusão desse conceito e do termo V., Nietzsche contribuiu muito com suas obras
fundamentais Jenseits von Gut undBôse(1886) e Zur Genealo-gie der Moral (1887). Foi mais ou menos a
partir dessa época que o conceito de V. passa a ser fundamental em filosofia, e as discussões em torno
dele esgotam quase totalmente o campo dos problemas morais.
É também a partir da mesma época que tende a reproduzir-se, no campo da teoria dos V., uma divisão
análoga à que caracterizara a teoria do bem: entre um conceito metafísico ou absolutista e um conceito
empirista ou subjetivista do V. O primeiro atribui ao V. um status metafísico, que independe
completamente das suas relações com o homem. O segundo considera o modo de ser do V. em estreita
relação com o homem ou com as atividades humanas. A primeira concepção é motivada pela intenção de
subtrair o V., ou melhor, determinados valores e modos de vida neles fundados, à dúvida, à crítica e à
negação: essa intenção parece pueril, se pensarmos que o v. mais solidamente ancorado na consciência
dos homens e que mais paixões provoca também é o v. mais mutável e
relativo, a tal ponto que às vezes os filósofos se recusam pudicamente a considerá-lo autêntico: o V.-
dinheiro.
1
Q
A primeira concepção deve, por um lado, insistir na ligação do V. com o homem e por outro na
independência do V. A primeira determinação é, de fato, constitutiva do V. e marca a característica que o
distingue do bem, como é tradicionalmente entendido. A segunda determinação visa a conferir caráter
absoluto ao V. O conceito Kantiano do apriori parecia conter ambas as determinações; por isso, com
Windelband e Rickent o conceito de V. foi elaborado em relação com o de apriori. Para Windelband, o V.
é o dever-ser de uma norma que também pode não se realizar de fato, mas que é a única capaz de conferir
verdade, bondade e beleza às coisas julgáveis (Praludien, 4.a
ed., 1911, II, pp. 69 ss.). Nesse sentido, os V.
não são coisas ou supra-coisas, não têm realidade ou ser, mas seu modo de ser é o dever-ser(solleri).
Rickert repete esse ponto de vista e reitera que o ser dos V. não consiste na sua realidade, mas em seu
dever-ser. Contudo, em Rickert os V. se transformam em realidades transcendentes. Rickert distingue
seis domínios do V.: lógica, estética, mística (que é o domínio da santidade impessoal), ética, erótica (que
é o domínio da felicidade) e filosofia religiosa. A cada um desses domínios corresponde um bem (ciência,
arte, uno-todo, comunidade livre, comunidade de amor, mundo divino); uma relação com o sujeito (juízo,
intuição, adoração, ação autônoma, unificação, devoção); e determinada intuição do mundo
(intelectualismo, esteticismo, misticismo, moralismo, eudemonismo, teísmo ou politeísmo) (System der
Philosophie, 1921). A mediação entre a realidade e os V. é esclarecida por Rickert com o conceito de
sentido (Sinrí): sentido é a referência da realidade, ou de parte dela, ao mundo dos V., por meio da qual os
V. ingressam na história e são realizados pelo homem (System der Philosophie, I, pp. 319 ss.). Teorias dos
V. muito semelhantes a esta foram elaboradas pelo teuto-americano Ugo Münsterberg em Philosophie der
Werte, de 1908, pelo americano W. M. Urban (Valuations; its Nature and Laws, 1919; The
Intellegible World, 1920), pelo italiano Guido delia Valle (Teoria generale e formale dei V., 1916) e por
numerosos outros escritores. Todas essas teorias omitem o problema que está por trás de sua formulação
ou lhe dão soluções ilusórias. Por um lado, reconhecem que o V.
VALOR
991
VALOR
está de algum modo presente no homem, nas atividades humanas ou no mundo humano cuja norma ou
dever-ser constitui; por outro, exigem que ele seja independente do reconhecimento ou dos feitos
humanos e que possua um status indiferente em relação ao mundo humano. Nessas teorias, tende-se a
atribuir aos V. as características do ser perfeito: unidade, universalidade e eternidade, em contraposição à
multiplicidade, à particularidade e à mutabi-lidade das manifestações empíricas cuja regra eles deveriam
constituir. Por outro lado, como regras dessas manifestações, os V. devem ter com elas uma relação
essencial, sem a qual não poderiam servir nem para julgá-las nem para dirigi-las.
O conceito Kantiano do a priori transcendental não se revelara eficaz como modelo para uma solução
desse problema. Procurou-se outro tipo de solução, atribuindo-se a intuição do V. a uma experiência
suigeneris, de natureza sentimental. Segundo Scheler, o sentimento é "uma forma de experiência cujos
objetos são completamente inacessíveis ao intelecto, que é cego para eles assim como a orelha e o ouvido
são insensíveis às cores"; essa forma de experiência nos apresenta autênticos objetos dispostos numa
ordem hierárquica eterna, que são os V. {Der Formalismus in der Ethik, 3
a
ed., 1927, p. 262). Em outros
termos, o V. é o objeto intencional do sentimento, assim como a realidade é o objeto intencional do
conhecimento; e esse objeto é apreendido em sua relação hierárquica com os outros objetos da mesma
espécie. A intuição sentimental do V. é também um ato de escolha preferencial que segue a hierarquia
objetiva dos valores, constituída por quatro grupos fundamentais: V. do agradável e do desagradável,
correspondentes à função do gozo e do sofrimento; V. vitais, correspondentes aos modos do sentimento
vital (saúde, doença, etc); V. espirituais, ou seja, estéticos e cognitivos; e V. religiosos (Op. cit., pp. 103
ss.).
Esta solução de Scheler, porém, trazia de novo à tona, no domínio da intuição fundamental, a mesma
antinomia que caracteriza a interpretação neocriticista ou transcendental do valor, E essa antinomia era
justamente tomada como rqn .cteriy.acao do V. por Hartmann; este por um lado afirma que os V. são V. só
em relação ao ser do sujeito, reconhecendo portanto a relacionabilidade (e não relatividade) deles {Ethik,
3
a
ed., 1949, p. 141). Por outro lado,
afirma que os V. têm um "ser em si" independente das opiniões do sujeito e que constituem autênticos
objetos; estes, embora não sejam reais como os objetos das ciências naturais, têm um modo de ser
igualmente imutável e absoluto ilbid., p. 153). Com terminologia diferente porque de natureza teológica,
mas análoga, os mesmos dois aspectos antônimos do V. foram expressos por R. Le Senne, para quem o V.
é um Deus-conosca, Deus, que é único e transcendente; como conosco está em relação com o homem e é
capaz de guiá-lo {Obstacleet valeur, 1934, pp. 220 ss.).
2
Q
O sucesso do termo V. no mundo moderno se deve em grande parte à obra de Nietz-sche e ao
escândalo que provocou com a pretensão de inverter os valores tradicionais. Nietzsche declarava
depositar suas esperanças "em espíritos fortes e suficientemente independentes para dar impulso a juízos
de V. opostos, para reformar e inverter os valores eternos, em precursores ou homens do futuro, que no
presente constituam a semente que obrigará a vontade dos milênios a abrir novos caminhos, etc. (Jenseits
von Gut und Bóse, § 203). Nietzsche considerou que a missão de sua filosofia era a inversão dos V.
tradicionais, ironizados como "V. eternos" {Ecce homo, § 4). Essa inversão consistia substancialmente em
substituir os V. da moral cristã, fundada no ressentimento (v.), portanto na renúncia e o ascetismo, pelos
V. vitais, que nascem da afirmação da vida, de sua aceitação dionisíaca (Genealogie der Moral, I, §10).
Essa concepção de Nietzsche foi considerada uma espécie de relativismo dos V., e como tal serviu de alvo
para a polêmica de todas as doutrinas absolutistas. Na realidade, em Nietzsche, são poucos os indícios de
uma relatividade dos V.: sua intenção é, antes, restabelecer uma tábua autêntica de V., que é a dos V.
vitais, em lugar dos V. fictícios, adotados pela moral do ressentimento. A tese autêntica de Nietzsche é de
intrínseca relação entre o ser do V. e o homem, de tal maneira que não há V. que não seja uma
possibilidade ou um modo de ser do homem. É esta a tese característica da interpretação do V. que
chamamos de empirista ou subjetivista. Meinong foi o primeiro a reapre-sentar explicitamente essa tese,
ao reduzir o V. de um objeto à sua "força de motivação" ("Über Werthaltung und Wert" em Archiv für
syste-matische Philosophie, 1895, p. 341). Ehrenfels,
VALOR
992
VALOR
observando que, com base nessa definição, só teriam V. os objetos existentes, definiu o V. como simples
"desejabilidade" {System der Wertheorie, I, 1897, p. 53). Essa definição de Ehrenfels é importante porque
introduz pela primeira vez e de modo explícito a conotação da possibilidade na noção de V. V. não é a
coisa desejada, mas o objeto desejável: não é coisa no sentido de não ser necessariamente um objeto real:
não é desejado porque simplesmente pode sê-lo. Não tem significado diferente a definição de V.
apresentada alguns anos mais tarde por R. B. Perry, para quem "todo objeto, qualquer que seja, adquire V.
quando é investido por um interesse qualquer" {General Theory ofValue, 1926, 2a
ed., 1950, p. 116): de
fato, o interesse, diferentemente do desejo, é apenas uma possibilidade.
Foi exatamente no âmbito dessa concepção de V. que nasceu o relativismo dos valores; isso aconteceu no
coração do historicismo, da consideração da relação entre os V. e a história. O primeiro a defender o
relativismo dos V. foi Dilthey: "A própria história é a força que produz as determinações de V., idéias e
metas, com base nos quais se determina o significado de homens e acontecimentos" {Gesammelte
Schriften, VII, p. 290). Portanto, os V. e as normas nascem e morrem na história e não subsistem fora dela
nem acima de seu curso (Jbid., p. 290). O relativismo dos V. em relação à história foi afirmado ainda mais
explicitamente por Simmel. Partindo do reconhecimento da relatividade do V. econômico, Simmel chegou
ao reconhecimento da relatividade de todos os V.: o V. nunca é uma entidade objetiva, mas sua
objetividade deriva apenas da correlação entre sujeito e objeto. Portanto, não existem V. absolutos, e são
V. só aqueles que, em determinadas condições, os homens reconhecem como tais. A esfera dos V.
distingue-se da esfera da realidade, não com base num status ontológico próprio, mas por uma
qualificação categorial, que pode ser aplicada a qualquer objeto (Philo-sophie des Geldes, 1900, I, § I). O
historicismo alemão, todavia, não foi unânime em reconhecer essa relatividade; considerou-a sempre
como um perigo, mas às vezes quis evitá-la. Foi Troeltsch o primeiro a formular claramente a antítese
entre relatividade histórica e absolutis-mo dos V., ao mesmo tempo em que procurava recuperar esse
absolutismo no próprio âmbito do historicismo. A solução que ele deu à antítese é a coincidência entre os
dois termos
antinômicos: cada ponto da história está em relação direta com a esfera dos V. absolutos e contém em si
tais V. sem relativizá-los à sua mu-tabilidade {Der Historismus und seine Pro-bleme, 1922, Gesammelte
Schriften, III, p. 211). Do mesmo modo, Meinecke afirmava que a relação com o Absoluto é constitutiva
da história, mas que essa relação vai do infinito para o finito, e não o inverso: de sorte que, enquanto a
história encontra fundamento nos V. que realiza, o modo de ser destes V. é irredutível à relatividade
histórica e conserva validade incondicional {Die Entstehung des Historismus, 1936, II, p. 645).
Como se vê, no interior desta segunda interpretação fundamental do V., reproduz-se uma situação análoga
à que se verificou na primeira: a atribuição de duas características opostas ao V., absolutidade e
relatividade: a primeira constituiria o modo de ser do valor em si, o segundo o seu modo de ser na
história. O pressuposto dessa oposição é o caráter de relatividade atribuído à história e em geral a tudo o
que encontra lugar na história, entendida segundo o esquema de Bergson como uma criação contínua, em
que tudo se cria e se destrói a cada instante. Portanto, não há vestígio de relativismo dos V. onde não há
vestígio de relativismo histórico e onde há um conceito menos superficial e diletante de história. Mesmo
insistindo na pluralidade dos V. e das esferas de V., Max Weber não via na história uma incessante criação
de V., cada um deles relativo a um momento da história, nem uma relação fugaz com V. Absolutos, mas
uma luta entre diferentes V. à escolha do homem {Gesammelte Politische Schriften, p. 63; v. PIETRO
ROSSI, Lo storicismo tedesco contemporâneo, pp. 367 ss.). O mesmo reconhecimento da multiplicidade
dos V. e da importância da escolha que essa multiplicidade está sempre a exigir do homem encontra-se
em Dewey, que, exatamente por isso, definiu a filosofia como "crítica dos V.".- "A confusão em que todas
as teorias do V. incidiram, entre determinada posição na relação causai ou sucessiva e o V. propriamente
dito, é uma prova indireta de que toda valoração inteligente é também crítica, isto é, juízo da coisa que
tem V. imediato. Toda teoria do V. é necessariamente um ingresso no campo da crítica" {Experience and
Nature, 1926, p. 397). Mas a crítica dos V. nesse sentido nada mais é que a disciplina inteligente das
escolhas humanas. Tal disciplina implica em primeiro lugar a con-
VARIAÇÕES CONCOMITANTES
993
VELEIDADE
sideração da relação existente entre meios e fins, de tal modo que não se pode julgar dos fins a não ser
julgando ao mesmo tempo dos meios que servem para alcançá-los (Theory of Valuation, 1939, p- 53)- Por
outro lado, a crítica dos V. não poderia ser eficazmente instituída sem levar em conta outro aspecto dos V.
em que R. Frondizi insistiu muito: a conexão entre V. e situação: "A organização econômica e jurídica, os
hábitos, a tradição, as crenças religiosas e muitas outras formas de vida que transcendem a ética
contribuem para configurar determinados valores que, ao contrário, são considerados existentes num
mundo estranho à vida do homem. Embora o V. não possa derivar exclusivamente de elementos de fato,
tampouco pode prescindir de conexão com a realidade. Uma separação dessas condena quem a executa a
manter-se no plano desencarnado das essências" (Qué son los valores?, 1958, p. 127). Os estudos
contemporâneos, elaborados com base nesse pressuposto negativo, evidenciaram os seguintes aspectos:
I
a O V. não é somente a preferência ou o objeto da preferência, mas é o preferível, o desejável, o objeto de
uma antecipação ou de uma expectativa normativa (v. DEWEY, The Field of Value: a Cooperative Inquiry,
ed. Ray Lepley, 1949, p. 68; CLYDE KLUCKOHN e outros, em 7b-ward a General Theory ofAction, ed.
Parsons e Schils, 1951, p. 422).
2
B
Por outro lado, não é um mero ideal que possa ser total ou parcialmente posto de lado pelas
preferências ou escolhas efetivas, mas é guia ou norma (nem sempre seguida) das escolhas e, em todo
caso, seu critério de juízo (v. C. MORRIS, Varieties ofHuman Value, 1956, cap. I).
3
e
Conseqüentemente, a melhor definição de V. é a que o considera como possibilidade de escolha, isto é,
como uma disciplina inteligente das escolhas, que pode conduzir a eliminar algumas delas ou a declarálas irracionais ou nocivas, e pode conduzir (e conduz) a privilegiar outras, ditando a sua repetição sempre
que determinadas condições se verifiquem. Em outros termos, uma teoria do V., como crítica dos V.,
tende a determinar as autênticas possibilidades de escolha, ou seja, as escolhas que, podendo aparecer
como possíveis sempre nas mesmas circunstâncias, constituem pretensão do V. à universalidade e à
permanência.
VARIAÇÕES CONCOMITANTES, MÉTODO DAS (in. Method ofconcomitant variations; fr.
Méthode des variations concomitantes; ai.
Methode der einander begleilenden Verãn-derungen; it. Método delle variazioni conco-mitantí). Foi esse
o nome dado por J. Stuart Mill a um dos métodos indutivos já ilustrados por Herschel (A Discourse on the
Study of Natural Philosophy, § 145), que se expressa com a seguinte regra: "Qualquer fenômeno que varie
de qualquer maneira sempre que outro fenômeno variar de alguma maneira particular é causa ou efeito
desse fenômeno ou está ligado a ele por meio de algum fato de causação" (.Logic, III, VIII, § 6). As
outras regras da indução são o método da concordância, o método da diferença e o método dos resíduos,
sobre os quais v. os respectivos verbetes.
VARIÁVEL. V. CONSTANTE.
VEDANTA (in. Vedanta; fr. Vedanta, ai. Vedanta; it. Vedanta). Um dos grandes sistemas filosóficos da
índia antiga, codificado no Brahma-sutra ou Vedântasutra, atribuído a Badarayana (talvez séc. III d.C). O
princípio do sistema é o Brahman ou Átman, considerado como única realidade: o mundo é aparência
enganadora, maya. Segundo esse sistema, Sankara supunha que o eu individual é idêntico a Brahman ou
Átman, enquanto Ramanuja elaborava um sistema teísta, distinguindo de Brahman tanto o mundo criado
quanto as almas individuais (DAS GUPTA, A History of Indian Philosophy, 1932-55, III; C. Tucci, Storia
delia filosofia indiana, 1957, pp. 136 ss.).
VEÍCULO SIGNITIVO (in. Sign Vehiclé). Um dos quatro componentes do processo semioló-gico (ao
lado do designado, do interpretante e do intérprete), segundo Morris; mais precisamente, o objeto ou
coisa que funciona como signo (Foundations ofthe Theory ofSigns, 1938, § 2) (v. SIGNO).
VELEIDADE (in. Velleity, fr. Velléitê, ai. Vellei-tát; it. Velleitã). Esforço impotente ou malsu-cedido.
Esse termo encontra-se em Locke, que com ele designa "a gradação mais baixa do desejo, que está mais
próxima da inexistência" (Ensaio, II, 20, 6). Esse termo aparece com sentido análogo em Leibniz, para
quem é "uma espécie bastante imperfeita de vontade condicional", ou seja, de uma vontade que, se
pudesse, se empenharia, mas não pode (Théod., III, 404). Esta consideração está muito mais próxima do
significado moderno do termo, sendo também, por outro lado, o significado mais antigo. S. Tomás
entendia por V. uma vontade antecedente, que pode ser ou permanecer sus-
VERACIDADE
994
VERDADE
pensa, assim como a vontade do juiz que, como homem, gostaria que o réu vivesse, mas que, no entanto,
deseja que ele seja enforcado (S. Th., I, q. 19, a. 6, ad. I
a
).
VERACIDADE (in. Truthfulness- fr. Véra-cité, ai. Wahrhaftigkeit; it. Veracita). 1. Caráter do discurso
que exprime a convicção de quem o pronuncia e, portanto, não pode ser fonte de engano em quem ouve.
Nesse sentido, Locke chamava a V. de "verdade moral", e a distin-guia de verdade "metafísica", que é a
conformidade das idéias às coisas {Ensaio, IV, 5, II). Mas para isso Leibniz usava a palavra V. (Nouv.
ess., IV, 5, 11).
2. Às vezes, V. significa sinceridade, que não é uma qualidade do discurso, mas da pessoa que faz
habitualmente discursos verazes. Nesse sentido, Descartes falara em "V. divina", afirmando que Deus não
pode enganar-nos, no sentido de não poder ser causa de erros (Méd., IV).
VERBAUSMO (in. Verbalism, fr. Verbalisme, it. Verbalismó). 1. Expressão verbal de pouco significado
ou de significação indefinido; tendência a valer-se dessas expressões. 2. Uma expressão verbal. VERBO1
.
V. LOGOS.
VERBO2
(gr. pf\\ia-, lat. Verbum; in. Verb, fr. Verbe, ai. Zeittvort; it. Verbo). Como parte do discurso, o V.
foi definido por Aristóteles como "o nome em cujo significado há uma determinação temporal, cujas
partes nada significam separadamente e que é o signo das coisas que se dizem de outra coisa" {De int, 3,
16 b 6). Essa definição foi conservada pela lógica medieval (v. PEDRO HISPANO, Summ. log., 1.05). Na
lingüística moderna, a distinção entre nome e verbo tornou-se muito menos importante, visto que, embora
comum a muitas línguas, não existe em outras (BLOOMFIELD, Language, 1933, p. 20).
VERDADE (gr. àXÍ]Q£ia; lat. Ventas; in. Truth; fr. Vérité, ai. Wahrheit; it. Vertia). Validade ou eficácia
dos procedimentos cognoscitivos. Em geral, entende-se por V. a qualidade em virtude da qual um
procedimento cognoscitivo qualquer torna-se eficaz ou obtém êxito. Essa caracterização pode ser aplicada
tanto às concepções segundo as quais o conhecimento é um processo mental quanto às que o consideram
um processo lingüístico ou semiótico. Ademais, tem a vantagem de prescindir da distinção
entre definição de V. e critério de V. Essa distinção nem sempre é feita, nem é freqüente; quando feita,
representa apenas a admissão de duas definições de V. P. ex., quando se faz a distinção entre teoria da
correspondência e critério de V., este é definido como evidência recorren-do-se ao conceito de V. como
revelação, e a teoria da V. como conformidade a uma regra, apresentada por Kant como critério formal ao
lado do conceito de V. como correspondência, torna-se então uma definição da própria V.
É possível distinguir cinco conceitos fundamentais de V.: Ia
a V. como correspondência; 2° a V. como
revelação; 3° a V^como conformi-chde_aumaregra; 4a
a V_cqmo coerência; j"a V^ comõ~utilidade. Essas
concepções tem importâncias diferentes na história da filosofia: as duas primeiras, em especial a primeira,
sem dúvida são as mais difundidas. Não são nem mesmo alternativas entre si: é possível encontrar mais
de uma no mesmo filósofo, embora usadas com propósito diferente. No entanto, por serem díspares e
mutuamente irredutíveis, devem ser consideradas distintas.
l
s
O conceito de V. como correspondência é o mais antigo e divulgado. Pressuposto por muitas das
escolas pré-socráticas, o primeiro a formulá-lo explicitamente foi Platão, na definição do discurso
verdadeiro feita em Crãtilo. "Verdadeiro é o discurso que diz as coisas como são; ?also é aquele que as
diz como não são" {Crat., 385 b; v. Sof., 262 e; Fil, 37 c). Por sua vez, Aristóteles dizia: "Negaraquilo
queée_afirmar aquilo que não é^é falsõTenquanto afirmãroque è__e_pegar o que^não é, é a verdade"
{Met., IV, 7, 1011 b 26 ss.; v. V, 29, 1024 b 25). Aristóteles enunciava também as duas teses fundamentais
dessa concepção de verdade. A primeira é que a V. está no pensamento ou na linguagem, não no ser ou na
coisa {Mel, VI, 4, 1027 b 25). O segundo é que a medida da V. é o ser ou a coisa, não o pensamento ou o
discurso: de modo que uma coisa não é branca porque se afirme com V. que ela assim é, mas afirma-se
com V. que ela é branca porque é {Met., IX, 10, 1051 b 5).
Nas doutrinas anteriores a definição de V. e o critério de V. coincidem. Em outras doutrinas, mesmo
mantendo-se fixa a definição de V., o critério de V. é considerado diferente; é o que acontece no
estoicismo e no epicurismo. Estói-cos e epicuristas continuam admitindo que a V. é a correspondência
entre o conhecimento e a coisa (SEXTO EMPÍRICO, Adv. math., VIII, 38; II, 9),
VERDADE
995
VERDADE
mas julgam que o critério da V. é diferente, porque para os estóicos ele está na representação cataléptica
(v.), que é a manifestação do objeto para o homem, enquanto para os epicuristas ele está na sensação, que
é o próprio manifestar-se da coisa (DiÓG. L., X, 31). Nesses casos, a distinção entre V. e critério eqüivale
a reconhecer dois conceitos de V., considerados compatíveis (ou não incompatíveis).
Ademais, a coexistência de dois conceitos de V. não é rara. Muitas vezes a teoria da correspondência é
acompanhada pela teoria da V. como manifestação ou revelação. S. Agostinho, por um lado, define a
verdade como "aquilo que é como aparece" (Solil, II, 5) e por outro considera como V. "aquilo que revela
o que é, ou que se manifesta a si mesmo"; nesse sentido, identifica a V. com o Verbum ou Logos, que é a
primeira manifestação imediata e perfeita do ser, ou seja, de Deus (De vera rei, 36). Por sua vez, S.
Tomás, retomando uma definição de Isaac Ben Salomon, do século IX, define a V. como "adequação
entre o intelecto e a coisa" (S. Th., I, q. 16, a. 2; Contra Gent., I, 59; Dever., q. I, a. I), mas, ao mesmo
tempo em que mantém, com relação ao homem, a tese aristotélica de que as coisas — e não o intelecto —
são a medida da V. inverte essa tese no que diz respeito a Deus.- "O intelecto divino é mensurante, e não
mensurado; a coisa natural é mensurante e mensurada, mas o nosso intelecto é mensurado, e não
mensurante, em relação às coisas naturais; é mensurante só em relação às coisas artificias" (De ver., q. I,
a. 2). Portanto, existe também uma V. das coisas, que é aquilo em virtude do que as coisas se assemelham
ao seu princípio, que é Deus; nesse sentido Deus é a primeira e suprema V. (S. Th., I, q. 16, a. 5). Esses
conceitos são freqüentes na filosofia medieval. O conceito de V. como correspondência é amplamente
empregado. Pedro Hispano (Summ. log., 3-34), Herveus Natalis (Quodl., III, I), Antônio Andréa (Super
artem veterem, ed. 1508, f. 45rA) mantêm a teoria da V. como conformidade entre intelecto e coisa,
embora polemizando sobre o modo de ser da coisa, ou mais exatamente dos objetos aos quais o intelecto
deve conformar-se. Em geral, na Escolástica da segunda metade do séc. XIII e na do XIV, especifica-se
que a "coisa" à qual o intelecto deve conformar-se é a "res intellecta", isto é, a coisa como é apreendida
pelo intelecto, não exterior ao próprio intelecto (v. Também DURAND DE
SAINT-POURÇAIN, In Sent, I, d. 19, q. 5). O conceito de adequação ou conformidade, porém, perde
alcance metafísico e teológico para assumir significado estritamente lógico ou, como hoje se diria,
semântico. A identificação polêmica, defendida por Ockham, entre "V." e "proposição verdadeira"
eqüivale propriamente à negação do valor metafísico da palavra V. (Sumtna log., I, 43; Quodl., V. q. 24).
Os platônicos de Cambridge mantêm, por motivos óbvios, o caráter metafísico e teológico da noção de
correspondência, falando de conformidade da coisa consigo mesma ou com a sua essência contida no
intelecto divino (v. HERBERT DE CHERBURY, De veritate, 1656, pp. 4 ss.), mas Hobbes insiste no ponto de
vista nominalista da V. como simples atributo das proposições (De corp., 3, § 7); isso também foi feito
por Locke (Ensaio, II, 32, 3-19) e até por Leibniz, que rejeita a noção metafísica de V. como "atributo do
ser" e limita-se a ver na V. "a correspondência das proposições, que estão no espírito, com as coisas das
quais se trata" (Nouv. ess., IV, 5. 11). Wolff unia o conceito de V. como "concordância do nosso juízo com
o objeto, ou seja, com a coisa representada" (Log., § 505) — que ele chamava de definição nominalàn V.
— com a noção lógica da V. como "determinabilidade do predicado por meio da noção do sujeito" — que
ele chamava de definição real (Ibid., § 513). Baumgarten retornava à noção de V. metafísica como
"ordem da multiplicidade na unidade" (Met., § 89), enquanto Kant declarava pressupor simplesmente a
"definição nominal da V." como "acordo do conhecimento com o seu objeto", e propunha o problema de
encontrar um critério para a V. Excluindo a possibilidade de um critério geral, válido para qualquer
conhecimento, ele se detinha no critério formal da V., que é a conformidade do conhecimento com as suas
regras (Crít. R. Pura, Lógica, Intr., III; v. adiante). Esse conceito de V. como correspondência nunca
esteve ausente, nem na filosofia mais recente, pela qual às vezes é assumido como simples pressuposto, às
vezes explicitamente defendido. Isso aconteceu especialmente nas correntes realistas (v., p. ex.,
BOLZANO, Wissenschaft-slehre, I, § 25; A. MEINONG, Über Annahmen, pp. 125 ss.). Exatamente no
espírito do realismo, N. Hartmann defendeu a concepção da V. como "coincidência com um objeto que
deve ser entendido como tal" (Systematische Philo-sophie, § 9). Hartman estende o conhecimento
VERDADE
996
VERDADE
como "reflexão do ser sobre si mesmo" {Meta-physik der Erkenntnis, 1921, cap. 27, b).
Os lógicos contemporâneos também recorrem à doutrina da correspondência, procurando formulá-la de
tal modo que ela seja independente de qualquer hipótese metafísica. Deste ponto de vista, quem melhor
formulou essa teoria foi Alfred Tarski, que retomou explicitamente, além da definição aristotélica acima,
também algumas definições análogas ou dependentes delas, como aquela segundo a qual "um enunciado é
verdadeiro quando designa um estado de coisa existente" (B. RUSSEIX, An Inquiry into Meaning and
Truth, 1940, pp. 362 ss.). Tarski partiu de uma equivalência do seguinte gênero: "O enunciado 'a neve é
branca' é verdadeiro se, e somente se, a neve for branca", para generalizá-la na fórmula: "X é verdadeiro
se, e somente se, p". Utilizando a noção semântica de satisfação entendida como a relação entre objetos
arbitrários e determinadas expressões chamadas de "funções enunciativas" do tipo "xé branco", "xé maior
que y", etc, Tarski chegou à seguinte definição de V.: " Um enunciado será verdadeiro se for satisfeito
por todos os objetos; caso contrário, será falso". Tarski salientou o fato de que a noção semântica de V.
(como ele a chamou e como habitualmente se chama) nada implica quanto às condições nas quais um
enunciado como "a neve é branca" pode ser asseverado. Indica só que, sempre que afirmamos ou
rejeitamos esse enunciado, deveremos estar prontos a afirmar ou rejeitar o enunciado correlativo "O
enunciado 'a neve é branca' é verdadeiro". Desse modo, ele considera que o conceito semântico de V.
pode conciliar-se com qualquer atitude epis-temológica, sendo neutro em relação a qualquer concepção
realista ou idealista, empirista ou metafísica do conhecimento (The Semantic Conception of Truth", 1944,
em Readings in Philosophical Analysis, 1949, pp. 52-84; a concepção de Tarski foi exposta pela primeira
vez num texto polonês de 1933, traduzido para o alemão em Studia phüosophica, de 1935, pp. 261-405).
Carnap aceitava essa concepção da verdade, mas ressaltava que ela diferia fundamentalmente dos
conceitos de crença, verificação, confirmação, etc. {Introduction to Semantics, § 7). M Black enfatizou a
insignificância filosófica dela (Language and Philosophy, IV, § 8).
2
Q
A segunda concepção fundamental de V. considera-a como revelação ou manifestação.
Tem duas formas fundamentais: uma empirista e outra metafísica ou teológica. A forma empirista consiste
em admitir que a V. é o que se revela imediatamente ao homem, sendo, portanto, sensação, intuição ou
fenômeno. A forma metafísica ou teológica afirma que a V. se revela em modos de conhecimento
excepcionais ou privilegiados, por meio dos quais se torna evidente a essência das coisas, seu ser ou o seu
princípio (Deus). A característica fundamental dessa concepção é a ênfase dada à evidência, assumida ao
mesmo tempo como definição e critério da verdade. Mas a evidência, obviamente, nada mais é que
revelação ou manifestação.
No sentido empirista, a V. era considerada como revelação pelos cirenaicos, que viam nas sensações a
própria evidência das coisas (SEXTO EMPÍRICO, Adv. math., VII, 199-200), pelos epicuristas, que
consideravam a sensação como o critério da V. (DIÓG. L., X, 31-32), e pelos estóicos, para os quais esse
critério estaria na representação cataléptica (v.) (DIÓG. L., VII, 54). Em Ockham, a noção de
conhecimento intuitivo é a noção de manifestação imediata das coisas para o homem (das coisas em seus
caracteres e nas suas relações) {In Sent., Prol., q. I, Z). No mesmo espírito, Telésio dizia que as coisas
"retamente observadas manifestam por si mesmas a grandeza que cada uma tem, bem como sua
capacidade, suas forças, sua natureza"; para ele, a sensação era essa revelação imediata das coisas {De
rer. nat., I, Proem.). Em geral todas as doutrinas que confiam à sensibilidade o conhecimento das coisas
tendem a discernir na sensibilidade a revelação da natureza das coisas e identificam com tal revelação a
própria verdade ou o critério de verdade.
Por outro lado, da própria interpretação metafísica ou teológica da V. como correspondência nasce o
conceito de V. como manifestação do ser ou do princípio supremo. Plotino dizia: "A verdade verdadeira
não está de acordo com outra coisa, mas de acordo consigo mesma: ela não enuncia nada fora de si, mas
enuncia o que ela mesma é" {Enn., V, 5, 2). Nesse sentido, a V. é hipostasiada: não é o caráter formal de
certos procedimentos cognoscitivos, mas princípio metafísico ou teológico que tem a mesma
substancialidade e a mesma dignidade do princípio que nela se manifesta, ou seja, Deus. Esse conceito é
tema de numerosas especulações na filosofia patrística e escolástica. S. Agostinho afirma dever existir
uma natureza que esteja tão
VERDADE
997
VERDADE
próxima da unidade que a reproduz em tudo e é una com ela; essa natureza é a V. ou Verbo de Deus (De
vera rei., 36). É comum na Escolás-tica a doutrina de que a verdade é o próprio intelecto ou Verbo de
Deus (ANSELMO, De Veritate, 14; S. TOMÁS, De ver., q. I, a. 4).
Mais tarde, o mesmo conceito de V. como revelação levou a reconhecer, com base no critério de
evidência, a existência de V. eternas. Descartes viu no cogito (v.) a evidência originária, pela qual a
existência do sujeito pensante se revela ao próprio sujeito pensante, e considerou que deveria ser
considerado como verdadeiro tudo o que se manifesta de modo evidente. No âmbito do que se manifesta
desse modo, Descartes pôs as V. eternas, estabelecidas e garantidas pela imutabilidade de um decreto de
Deus (Méd., IV; Princ.phil., I, 49). Segundo Descartes, as V. eternas são garantidas e reveladas
diretamente por Deus, e por isso são eternas (Repouses, IV, 4). Assim também pensava Malebranche,
embora para ele, ao contrário de Descartes, elas não seriam postas, mas simplesmente reconhecidas e
validadas por Deus (Recherche de Ia vérité, X éclairissement). Mas o conceito da V. como revelação foi
muito prezada pelo Romantismo, que, em seu aspecto essencial, poderia ser classificado como filosofia da
revelação (v. ROMANTISMO). Hegel dizia.-"A idéia é a V.: porque a V. é a correspondência entre a
objetividade e o conceito. Não no sentido de que se as coisas externas correspondem às minhas
representações: estas são, nesse caso, apenas representações exatas que eu tenho como indivíduo. Mas no
sentido de que todo o real, enquanto verdadeiro, é a idéia e só tem V. por meio da idéia e nas formas da
idéia" (Ene, § 213). Em outros termos, a Idéia é "a objetividade do conceito", a racionalidade do real, mas
à medida que se manifesta à consciência na sua necessidade, ou seja, como saber ou ciência (System der
Philosophie, ed. Glockner, I, p. 423; Wissenschaft der Logik, ed. Glockner, II, p. 275): e o saber e a
ciência são a automanifes-tação da Idéia, vale dizer, sua autêntica e completa revelação.
Como meio-termo entre a forma empírica e a forma teológica dessa concepção de V., está a concepção
fenomenológica e existencialista. A fenomenologia é, segundo conceito próprio, um método que
possibilita às essências manifestar-se ou revelar-se como tais. A epoché (v.) fenomenológica, ao pôr entre
parênteses a atitude naturalista que consiste em afirmar a realidade das coisas no mundo, tende a possibilitar que as
próprias coisas manifetem sua essência. Desse ponto de vista, a V. é a evidência com que os objetos
fenomenológicos se apresentam quando a epoché é efetuada (Ideen, I, § 136). Portanto, segundo Husserl,
V. e evidência pertencem não só aos objetos teóricos, mas a todos os objetos da consideração
fenomenológica, sejam eles valores, sentimentos, etc. (Ibid, § 139). Por sua vez, Heidegger insistiu no
caráter de revelação ou de descobrimentodàV'., recorrendo inclusive à etimologia da palavra grega.
Assim, por um lado insistiu no nexo estreito entre o modo de ser da V. e o modo de ser do homem, ou
ser-aí, porquanto só ao homem a V. pode revelar-se e revela-se (Sein und Zeit, § 44). Por outro lado,
insistiu na tese de que o lugar da. V. não é o juízo, e que a V. não é uma revelação de caráter predicativo,
mas consiste no ser descoberto do ser das coisas, ou das próprias coisas, e no ser descobridor do homem
(Ibid., § 44 b; v. Vom Wesen des Grandes, I, trad. it, p. 20). Heidegger, porém, também ressaltou o fato de
que cada descobrimento do ser, por ser parcial, também é um cobrimento dele; esse tema é recorrente
sobretudo nos seus textos do segundo período. "O ser subtrai-se, ao mesmo tempo em que se revela, ao
ente. Desse modo o ser, ao iluminar o ente, desencaminha-o ao mesmo tempo para o erro" (Holzwege, p.
310).
J
1 A terceira concepção considera a V. como conformidade com uma regra ou um conceito. O primeiro a
enunciar essa noção foi Platão. "Ao tomar como fundamento o conceito que considero mais sólido, tudo o
que me pareça estar de acordo com ele será por mim posto como verdadeiro, quer se trate de causas, quer
se trate de outras coisas existentes; o que não me pareça de acordo com ele será por mim posto como não
verdadeiro" (Fed., 100 a). Essa concepção reaparece esporadicamente na história da filosofia. S.
Agostinho afirmava que "acima da nossa mente há uma lei chamada V." e que nós podemos julgar todas
as coisas em conformidade com essa lei, que no entanto escapa a qualquer juízo (De vera rei, 30-31)- Na
literatura de inspiração agostiniana, esse tema retorna com freqüência, porém a mais importante expressão
deste conceito de V. encontra-se em Kant. Este, de fato, não se vale dessa noção para a definição da V.
(pois como dissemos, ele declara pressupor a definição nominalàa. V., que
VERDADE
998
VERDADE
é a da correpondência), mas como critério de V. Segundo Kant, o critério pode referir-se só à forma da V.,
ou seja, do pensamento em geral, e consiste na conformidade com "as leis gerais necessárias do
intelecto". "O que contradiz essas leis" — afirma Kant — "é falso, porque o intelecto nesse caso contradiz
suas próprias leis, portanto a si mesmo." Todavia, esse critério formal não basta para estabelecer a
verdade material, ou objetiva, do conhecimento; aliás, a tentativa de transformar esse cânone de avaliação
formal em órgão de conhecimento efetivo não passa de uso dialético, ou seja, ilusório da razão {Crít. R.
Pura, Lógica, Intr., III; Logik, Intr., VII). Esse critério foi acolhido e acentuado pelos neokantianos,
sobretudo pelos da Escola de Baden. Windelband considerava que o objeto do conhecimento, aquele que
mede e determina a V. do conhecimento, não é uma realidade externa (que como tal seria inalcançável e
incognoscível), mas a regra intrínseca do próprio conhecimento {Pràludien, 1884,4a
ed., 1911, passim).
Rickert identificava o objeto do conhecimento com a norma à qual o conhecimento deve adequar-se para
ser verdadeiro {Der Gegenstad der Erkenntnis, 1892). Nesses neokantianos, a conformidade com a regra
— que Kant propusera simplesmente como critério formal de V. — torna-se a única definição de V.
4
B
A noção de V. como coerência aparece no movimento idealista inglês da segunda metade do séc. XIX
e é compartilhada por todos os que participaram desse movimento na Inglaterra e nos Estados Unidos.
Aparece pela primeira vez em Lógica ou morfologia do conhecimen-to(1888) de B. Bosanquet, mas sua
difusão se deve à obra de F. H. Bradley, Appearance and Reality (1893). A crítica de Bradley ao mundo
da experiência humana partia do princípio de que aquilo que é contraditório não pode ser real; isso o
levava a admitir que V. ou realidade é coerência perfeita. A coerência, porém, atribuída à realidade última,
ou seja, à Consciência Infinita ou Absoluta, não é simples ausência de contradição; é abolição de qualquer
multiplicidade relativa e forma de harmonia que não se deixe entender nos termos do pensamento humano
{Appearance and Reality, 2- ed., 1902, pp. 143 ss.). Segundo Bradley, os graus de verdade que o
pensamento humano alcança podem ser julgados e classificados segundo o grau de coerência que
possuam, embora essa coerência seja sempre aproximativa e imperfeita {Lbid., p. 362). Esses conceitos aparecem em grande número de pensadores da mesma tendência (v.
IDEALISMO), sem que a noção de coerência seja por isso modificada ou esclarecida (v. COERÊNCIA). OS
precedentes dessa doutrina não estão tanto em Hegel (a quem, todavia, os idealistas ingleses se referiam
com mais freqüência), mas em Spinoza. Na realidade, não passa de transcrição daquilo que Spinoza
chamava de "terceiro gênero de conhecimento" ou "amor intelectual por Deus": conhecimento da ordem
total e necessária das coisas, que Spinoza identificava com o Deus {Et., V, 25).
5° A definição da V. como utilidade pertence a algumas formas da filosofia da ação, especialmente o
pragmatismo. Mas o primeiro a formulá-la foi Nietzsche: " Verdadeiro err^geral significa apenas_o que é
apropriado à conservação 3a humanidade. O quejne jaz perecer quandojhe JÍQII fé não é verdade para
mim: é uma relação arbitrária e ilegítimajjp meu ser com as coisas externas" {Wille zurMacht, ed. Krõner,
78, 507). Foi o pragmatismo que difundiu essa noção, defendida primeiramente por W. James. Este,
porém, identificou utilidade e V. só nos limites das crenças empiricamente não verificáveis ou não
demonstráveis, tais como as morais e as religiosas {The Will to Be-lieve, 1897). A equação entre utilidade
e V. foi estendida a toda a esfera do conhecimento por F. C. S. Schiller {Humanism, 1903 e textos
seguintes). Desse ponto de vista, uma proposição, qualquer que seja o campo a que pertença, só é
verdadeira pela sua efetiva utilidade, ou seja, por ser útil para estender o conhecimento ou para, por meio
deste, estender o domínio do homem sobre a natureza, ou então por ser útil à solidariedade e à ordem do
mundo humano. Critério semelhante foi apresentado por H. Vaihinger em Filosofia do como se {Philosophie des Ais, 1911) e divulgado por M. De Unamuno em Vida de Don Quijote y Sancho (1905) (v.
PRAGMATISMO). Talvez se possa entrever uma forma diferente dessa mesma concepção na tese de Dewey,
da Insírumentalidade dos procedimentos cognoscitivos e do conhecF mento em seu ranjunto^com vistas
ao aperfei-çoamento da vida humana no mundo. Contudo, em Dewey não se encontra a definição de V.
como utilidade, mas apenas a afirmação do caráter instrumental — portanto válido, mas não verdadeiro
— das proposições {Logic, XV, trad. it, p. 382-83) (v. VALIDADE).
VERDADE DUPLA
999
VERIFICAÇÃO
VERDADE DUPLA. V. DUPLA VERDADE.
VERDADEIRO (gr. à\r\Béç, lat. Verum, in. True, fr. Vrai; ai. Wahr, it. Vero). Os estóicos distinguiam V.
de verdade, porque o V. é um enunciado, logo é incorpóreo, enquanto a verdade, como ciência que
contém todos os V., é um modo de ser da parte hegemônica do homem, portanto corpórea. Ademais, o V.
é simples, enquanto a verdade consta de muitos V., e a verdade pertence à ciência, portanto ao sábio,
enquanto o V. pode ser também do néscio (SEXTO EMPÍRICO, Pirr. hyp., II, 81-83; Adv. dogm., I, 38-42).
Na Escolástica o V. foi considerado um dos transcedentais (v.), isto é, dos caracteres que pertencem às
coisas como tais, independentemente dos seus gêneros, e por V. foi entendida a inteligibilidade da coisa
(S. TOMÁS, S. Th., q. 16, a. \ ad. 3e
).
VERÍDICO (in. Veridical; fr. Vêridique, ai. Wahrhaftig; it. Verídico). 1. O mesmo que ve-raz ou
verdadeiro (v. VERACIDADE).
2. O que contém uma parte ou um indício de verdade. P. ex., "sonho V", "alucinação V.", etc.
VERIFICABILIDADE. V. VERIFICAÇÃO.
VERIFICAÇÃO (in. Verification-, fr. Verification; ai. Verifikation; it. Verificazioné). 1. Em geral,
qualquer procedimento que permita estabelecer a verdade ou a falsidade de um enunciado qualquer. Uma
vez que os graus e os instrumentos da V. podem ser inumeráveis, esse termo tem alcance generalíssimo e
indica a aplicação de qualquer procedimento de atestação ou prova (v.). Esse termo também pode ser
usado para indicar a aferição de uma situação qualquer com base em regras ou instrumentos idôneos;
nesse sentido, fala-se em verificar as contas, os graus de um ângulo ou a autenticidade de certos
documentos, etc. Neste sentido geral, esse termo também é empregado sem referência à experiência ou
aos fatos, poden-do-se falar em V. de uma expressão matemática, de um enunciado analítico da lógica,
assim como em V. de um enunciado factual ou hipótese científica. Por outro lado, a noção de V. às vezes é
ampliada para nela incluir não só o procedimento que permite estabelecer a verdade ou a falsidade de um
enunciado, mas também o que permite estabelecer a verdade, a falsidade ou a indeterminaçâo do
enunciado: isso com referência a uma lógica de três valores, e não de dois (cf. REICHENBACH, "The
Principie of Anomaly in Quantum Mechanics", 1948,
em Reading in the Phil. of Science, 1953, pp. 519-20).
2. Em sentido restrito e específico, a V. diz respeito aos enunciados factuais e é um procedimento que
recorre à experiência ou aos fatos. Foi exatamente nesse sentido que o empb-rismo lógico (v.) entendeu a
V. como critério do significado das proposições: critério que o Círculo de Viena (v.) interpretava da forma
mais rigorosa, declarando desprovidos de sentido todos os enunciados que não se prestassem a uma
absoluta verificação empírica. Esse ponto de vista foi expresso com todo o rigor por Carnap em sua obra
Der logische Aufbau der Welt (1928). A possibilidade de uma verificação absoluta foi, porém, negada, no
âmbito do próprio Círculo de Viena, por K. Popper (lo-gik der Forschung, 1935) e depois por Lewis
("Experience and Meaning", em Philosophical Review, 1934) e por Nagel (em Journal of Phi-losophy,
1934). Assim, o próprio Carnap modificava seu ponto de vista, e num ensaio de 1936 ("Testability and
Meaning", agora em Readings in the Phil. of Science, 1953, p. 47-92) falava de confirmação
(confirmation) dos enunciados, em vez de V. Sempre que a V. completa não seja possível (e quase nunca é
possível no campo da ciência), o princípio da verificabilidade expressa a exigência de uma confirmação
gradualmente crescente ilbid., p. 49). Deste ponto de vista, a aceitação ou a recusa de um enunciado
factual contém sempre um componente convencional, que consiste na decisão prática que se deve tomar
para considerar o grau de confirmação de um enunciado como suficiente para a sua aceitação. Este ponto
de vista é hoje amplamente aceito.
3. No que diz respeito ao procedimento de V. factual, pouco foi dito até agora pelos filósofos.
Reichenbach dividiu esse procedimento em duas fases, que são: ls
introdução de uma classe fundamental
O de enunciados observa-cionais, ou seja, de significados primitivos ou diretos que não estão sob
indagação durante o curso da análise; 2Q
um conjunto de relações derivativas (ou regras de
transformação) D, que permitem ligar alguns termos com as bases O. Depois de definidas por indagação
específica tanto a base O quanto as relações derivativas D, o termo "verificado" pode ser definido como
"o ser derivado da base O nos termos das relações D'. A esta descrição Reichenbach acrescenta uma
determinação importante: a condição do sig-
VEROSSÍMIL
1000
VIDA
nificado não é a atual, mas a V. possível (sem a qual os enunciados históricos, p. ex., não teriam
significado); portanto, a noção de V. pressupõe a de possibilidade, e a esse respeito Rei-chenbach
distingue a possibilidade lógica, a possibilidade física e a possibilidade técnica, distinguindo
correspondentemente três espécies de significados ("Verifiability Theory of Meaning", em Proceedings of
the American Academy of Arts and Sciences, 1951, pp. 46 ss.). Assim, a teoria de V. está ligada à noção da
possibilidade (v.).
VEROSSÍMIL (gr. EÍKÓÇ ; lat. Verisimiles; in. Líkely, fr. Vraisemblable, ai. Wahrscheinlicb, it.
Verisimile). 1. O que é semelhante à verdade, sem ter a pretensão de ser verdadeiro (no sentido, p. ex., de
representar um fato ou um conjunto de fatos). Portanto, uma narrativa, seja um romance ou uma tragédia,
pode ser V. sem ser minimamente provável, sem que exista qualquer probabilidade de que os fatos
mencionados se tenham verificado ou venham a verificar-se. Nesse sentido, foi constante o emprego do
conceito de V. na estética, a partir de Aristóteles. "Narrar coisas efetivamente acontecidas" — dizia
Aristóteles — "não é tarefa do poeta; dele seria a tarefa de representar o que poderia acontecer, as coisas
possíveis segundo verossimilhança ou necessidade" (Poet., 9, 1451 a 36). Nesse sentido, V. é o caráter de
enunciados, teorias e expressões que não contradigam as regras da possibilidade lógica ou as das
possibilidades teóricas ou humanas. Um acontecimento humano imaginado é V. se for considerado
compatível com o comportamento comum dos homens ou encontrar explicações ou respaldo nesse
comportamento.
2. O mesmo que persuasivoCy.) ou provável (v.). Popper, contudo, fez a distinção entre verossimilhança
(verisimilitudê) e probabilidade, porque, enquanto esta última representa a idéia de aproximação da
certeza lógica ou da verdade tautológica por meio da gradual diminuição do conteúdo informativo, a
verossimilhança representa a idéia da aproximação da verdade abrangente e, assim, combina verdade e
conteúdo, enquanto a probabilidade combina verdade e falta de conteúdo (Conjectures andRe-futations,
1965, p. 237).
VERUMIPSUM FACTUM. Fórmula utilizada por G. B. Viço para expressar o princípio de que o
homem pode conhecer só o que ele mesmo fez, porque o conhecimento de uma coisa é o
conhecimento da sua gênese (De antiquissima italorum sapientia, 1710, § 1). Mas esse conceito foi
extraído de Hobbes, que o expusera em De homine (1658). Hobbes reduzira o domínio do conhecimento
humano, por um lado, à matemática, cujos objetos são inteiramente produzidos pelo homem, e por outro
lado à política e à ética, que também tratam de objetos (leis, convenções, princípios) criados pelo homem
(De bom., 10). Analogamente, Viço inicialmente limitou o domínio do conhecimento humano à
matemática (De antiquissima), e depois o estendeu para a história. Scienza nuova (1725).
VETOR (in Vector, fr. Vecteur, ai. Vector, it. Vettoré). Em matemática, uma grandeza determinada em
quantidade, direção e sentido. É habitualmente representado por uma flecha. Whitehead utilizou esse
termo para indicar o referir-se da experiência sensível ao exterior (Process and Reality, 1929, p. 249).
VÍCIO (gr. KOCKÍOC ; lat. Vitium; in. Vice, fr. Vice, ai. Laster, it. Vizio). 1. O contrário da virtude nos
vários significados deste termo. Com referência ao conceito aristotélico-estóico de virtude como hábito
racional da conduta, o V. é um hábito (ou uma disposição) irracional. Neste caso, são V. os extremos
opostos cujo meio-termo é a virtude: p. ex., a abstinência e a intem-perança diante da moderação, a
covardia e a temeridade diante da coragem, etc. Neste sentido, a palavra V. só se aplica às virtudes éticas.
Com referência às virtudes dianoéticas ou in-telectivas, V. significa simplesmente a falta delas: falta que,
segundo Aristóteles, é vergonhosa somente como participação malograda nas coisas excelentes de que
participam todos os outros, ou quase todos, ou pelo menos os que são semelhantes a nós, ou seja, os que
têm nossa idade ou que são de nossa cidade, família ou classe social (Ret., II, 6,1383b 19; 1384a 22).
2. Portanto, o sentido mais geral de V. é a falta ou deficiência de alguma característica que um objeto
qualquer (no sentido mais amplo) deveria ter segundo a regra ou a norma que lhe diga respeito. Nesse
sentido geral, pode-se falar e fala-se de V. lógico ou de V. jurídico, etc.
VIDA (gr. Çarf|, pUoç; lat. Vita-, in. Life, fr. Vie; ai. Leben; it. Vita). Característica que têm certos
fenômenos de se produzirem ou se regerem por si mesmos, ou a totalidade de tais fenômenos. Essa
caracterização é aqui dada apenas por ser aquela em torno da qual é mais amplo o açor-
VIDA
1001
VIDA
do entre filósofos e cientistas, e a título puramente descritivo, sem que o reconhecimento de uma
característica própria dos fenômenos da V. implique o reconhecimento de um princípio ou de uma causa
em si desses fenômenos. Veremos, aliás, que em certos níveis de V. a própria distinção entre o que é V. e o
que não o é torna-se muito difícil ou perde sentido. A disputa entre vitalismo e antivitalismo não concerne
ao problema da caracterização da V., mas ao da origem e do desenvolvimento da V.; quanto a esse
problema, v. VITALISMO.
Desde a Antigüidade os fenômenos da V. têm sido caracterizados com base em sua capacidade de
autoprodução, vale dizer, com base na espontaneidade com que os seres vivos se movem, se nutrem,
crescem, se reproduzem e morrem, de um modo que, pelo menos aparente e relativamente, não depende
das coisas externas. Platão identificava alma e V. (Fed., 105 c), porque considerava própria da alma a
capacidade de "mover-se por si" (Fed., 245 c). Aristóteles entendia por V. "a nutrição, o crescimento e a
destruição que se originam por si mesmos" (Dean., II, I, 412 a 13), e conseqüentemente considerava que a
V. é própria dos seres animais, pois estes "possuem em si mesmos uma potência ou um princípio tal que
sofrem aumento ou diminuição nas direções opostas" (Ibid., II 413 a 27). Com base no mesmo conceito
de V., Plotino afirmava que "toda V. é pensamento" e que o pensamento "vive por si mesmo" (Enn., III, 8,
8). S. Tomás afirmava que V. significa "a substância à qual convém por natureza mover-se ou conduzir-se
espontaneamente e de qualquer modo à ação" (S. Tb., I, q. 18, a. 2); portanto, a alma é seu princípio
(Ibid., I, q. 75, a. 1).
Quando, com Descartes e Hobbes, surgiu o conceito mecanicista da V. e começou-se a comparar o
homem e, em geral, o organismo vivo a uma máquina bem montada, o conceito de V. não mudou, visto
que a hipótese mecanicista era inspirada aos filósofos exatamente pela crença de que "os autômatos
podem mover-se por si" (DESCARTES, Traité de Vhomme, p. I; HOBBES, Leviath, I, Intr.). O que se negava
neste caso era a identidade entre alma e V.: assim, considerava-se possível que a mesma matéria corpórea, em certas formas de organização, teria condições de mover-se ou de desenvolver-se por si. A
disputa entre vitalismo e mecanicismo (v. VITALISMO) versa sobre o seguinte: o mecanicismo afirma que a V. é devida a certa organização físico-química da matéria corpórea, enquanto o
vitalismo considera que essa organização não é suficiente, e que a V. depende de um princípio de natureza
espiritual, que é, p. ex., a archeus (v.) de Helmont, a natureza plástica (v.) de Cudworth, o dominante(v.)
de Reinke, a enteléquia (v.) de Driesch, o elã vital(v.) de Bergson.
Leibniz objetava ao mecanicismo e ao vitalismo que ambos contradizem o "grande princípio da física",
segundo o qual "um corpo só se move se impelido por um corpo vizinho e em movimento"; considerava
que a única teoria da V. compatível com esse princípio é a da harmonia preestabelecida, segundo a qual a
V. consiste na concordância da ação das substâncias, preestabelecida por Deus (Sur le príncipe de vie,
1705, em Op., ed. Erdmann, pp. 429 ss.). O conceito da V. como auto-regulação parece ser simplesmente
pressuposto tanto por aquela disputa quanto pela observação de Leibniz. E também por Kant, quando este
afirma que "a V. é a capacidade de atuar segundo a faculdade de desejar", entendendo por faculdade de
desejar "a faculdade de, por meio das representações, ser causa dos objetos dessas representações" (Crít.
R. Prática, Pref, anotação; Anfangsgründe der Naturwissenschaft, III, teor. 3, anotação). O conceito de
vida como auto-regulação também era pressuposto por Schel-ling, para quem a diferença entre o orgânico
e o inorgânico consiste no fato de que o orgânico tem em si sua própria organização ou sua própria forma
de V., enquanto o inorgânico é privado dela e faz parte de uma organização mais ampla, que é a V. da
natureza em seu conjunto (Werke, I, III, pp. 89 ss.). Em sentido análogo, Hegel identificava a V. com "o
princípio que dá início e movimento a si mesmo" (Wissenschaft der Logik, ed. Glockner, II, p. 250), ou,
em outros termos, com "o todo que se desenvolve, resolve seu desenvolvimento e mantém-se simples
nesse movimento" (Phãnomen. des Geistes, I, IV, 1). Por outro lado, Claude Bernard escrevia: "As
máquinas vivas são criadas e construídas de tal modo que, ao se aperfeiçoarem, vão-se tornando mais
livres no ambiente cósmico geral. (...) A máquina viva mantém-se em movimento porque o mecanismo
interno do organismo repara, por meio de ações e forças sempre renascentes, as perdas constituídas pelo
exercício das funções. As máquinas cria-
VIDA
1002
VIOLÊNCIA
das pela inteligência do homem, embora infinitamente mais rudimentares, não são construídas de outra
forma" (Intr. à 1'étude de Ia medicine expérimentale, II, 1,8). Finalmente, é preciso notar que o elã vital,
em que Bergson reconheceu a fonte da V., outra coisa não é senão consciência, e consciência criadora,
que extrai de si mesma tudo o que produz. Bergson diz: "O elã de V. de que falamos consiste numa
exigência de criação. Não pode criar de modo absoluto porque encontra diante de si a matéria, ou seja, o
movimento que é o inverso do seu ponto. Mas ele se apodera dessa matéria, que é a própria necessidade e
tende a nela introduzir a maior soma possível de ^determinação e liberdade" (Évol. créatr., 8
a
ed., 1911, p.
273). Parece ter o mesmo significado a expressão de Whitehead, de que a vida é "autofruição individual e
absoluta" (Nature and Life, 1934, II).
Por outro lado, parece que a própria ciência recorre a uma caracterização nâd muito diferente dos
fenômenos vitais, embora, como é óbvio, evite hipostasiar em entidades ou princípios essa caracterização.
Os fenômenos que a ciência considera próprios da V. (metabolismo, plasticidade, reatividade, reprodução)
são justamente aqueles em que é evidente o caráter de uma auto-regulação. Quando J. B. S. Haldane
afirma que se pode considerar vivo "qualquer modelo de reação química capaz de autoperpetuar-se"
("The origin of Life", em Rationalist Annual, 1928, pp. 148-53), está apenas expressando, com outras
palavras, o velho conceito da auto-regulação, ao qual recorrem também, embora de modo indireto ou com
expressões ambíguas ou disfarçadas (como "totalidade", "ciclicidade", "autonomia", "seletividade", etc),
inclusive os cientistas de nítida inspiração materialista.
Mas, apesar de serem quase unânimes as opiniões em torno do conceito de auto-regulação, este
dificilmente poderia ser considerado uma caracterização suficiente dos fenômenos vitais em todos casos.
Por um lado, realmente, em certos extremos da escala biológica (p. ex., para os vírus), não é possível
afirmar que se trate de corpos vivos ou não. Em vista disso, já houve quem considerasse sem sentido o
uso da palavra V. para referir-se aos sistemas situados na zona limítrofe, entre a V. e a matéria inorgânica
(N. W. PIRIE, The Meaninglessness ofthe Terms "Life"and "Living", emj. NEEDHAM e D. R. GREEN,
Perspectives in Biochemistry, 1937, pp. 21 ss.).
Por outro lado, a teleonomia (v.), atribuída aos organismos vivos e interpretada como atividade orientada,
coerente e construitiva, não impede que a biologia moderna (baseada sobretudo na genética e na
bioquímica) considere os seres vivos como máquinas químicas, dotadas de unidade funcional e capaz de
autoconstruir-se. Essas máquinas exigem a intervenção de um sistema cibernético que governe e controle
a atividade química nos pontos estratégicos. Embora hoje estejamos distantes do dia em que a estrutura
dos sistemas que constituem os organismos superiores será totalmente esclarecida, a tendência da ciência
moderna nas pesquisas biológicas continua sendo marcada pela cibernética e pela bioquímica (cf., p. ex.,
MONOD, Lehasard et Ia necessite, 1970, cap. II).
VIDA, FILOSOFIAS DA (in. Philosophies of life, fr. Philosohies de Ia vie, ai. Lebensphiloso-phien; it.
Filosofe delia vita). Com esta expressão, utilizada especialmente na Alemanha, são denominadas as
filosofias que têm em comum a característica de considerar a filosofia como V., mais que reflexão sobre a
vida. Trata-se de uma expressão polêmica que permite aproximar filosofias diferentes como as de
Nietzsche, Dilthey, Simmel, Spengler, James, Bergson e outros; foi empregada com fins polêmicos no
título de um livro de Rickert (Die Philosophie des Lebens, 1920).
VIDA, TERCEIRA (fr. Troisième vie). Foi esse o nome que Maine de Biran deu à vida religiosa ou
mística do homem, que se distingue da vida simplesmente humana por ser a libertação dos afetos e das
paixões, e da vida animal, que se caracteriza pelas sensações e pelos instintos (Nouveaux essais
d'anthropolo-gie, 1823-24, em (Euvres, ed. Naville, III, p. 519). A terceira V. é a mesma que no
Evangelho de João se chama de "V. segundo o espírito".
VINGANÇA. V. TALIÃO.
VIOLÊNCIA (gr. píct; lat. Violentia; in. Vio-lence, fr. Violence, ai. Gewaltsamkeit; it. Violen-zd). 1. Ação
contrária à ordem ou à disposição da natureza. Nesse sentido, Aristóteles distin-guia o movimento
segundo a natureza e o movimento por V.-. o primeiro leva os elementos ao seu lugar natural; o segundo
afasta-os (De caei, I, 8, 276, a 22) (v. FÍSICA).
2. Ação contrária à ordem moral, jurídica ou política. Nesse sentido, fala-se em "cometer" ou "sofrer V.".
Algumas vezes esse tipo de V. foi exaltado por motivos políticos. Assim, Sorel fez
VIRTUAL
1003
VIRTUDE
a distinção entre a V. que se destina a criar uma sociedade nova e a força, que é própria da sociedade e do
estado burguês. "O socialismo deve à V. os altos valores morais com que oferece salvação ao mundo
moderno" (Réflexions surla violence, 1966, trad. it., p. 133).
VIRTUAL (in. Virtual; fr. Virtuel; ai. Virtuell; it. Virtualè). O mesmo que potencial (v.).
VIRTUDE (gr. àpevf]; lat. Virtus; in. Virtue, fr. Vertu-, ai. Tugend; it. Virtü). Este termo designa uma
capacidade qualquer ou excelência, seja qual for a coisa ou o ser a que pertença. Seus significados
específicos podem ser reduzidos a três: ls
capacidade ou potência em geral; 2a
capacidade ou potência do
homem; 3S
capacidade ou potência moral do homem.
l
s
No primeiro sentido, que é o da definição geral, a V. indica uma capacidade ou potência qualquer, como
p. ex. de uma planta, de um animal ou de uma pedra. Maquiavel fala da "V." da arte da guerra {Opríncipe,
14), e Berkeley fala das "V. da água de alcatrão" (Subtítulo de Siris, 1744).
2
a
No segundo sentido, a V. é uma capacidade ou potência própria do homem. Assim, p. ex., chama-se de
virtuoso/virtuose quem possui uma habilidade qualquer, como p. ex., para cantar, tocar um instrumento ou
usar a gazua. Nietzsche quis retomar esse sentido de V..- "Reconheço a V. no seguinte: 1Q
ela não se
impõe; 2a ela não supõe a V. em todo lugar, mas precisamente uma outra coisa; 3S
ela não sofre pela
ausência da V., mas considera essa ausência como uma relação de distância graças à qual há algo de
venerável na V.; 4
a
ela não faz propaganda; 5a
não permite que ninguém se erija em juiz, porque é sempre
uma V. por si mesma; 6a ela faz exatamente tudo o que é proibido (a V., como a entendo, é verdadeiro
vetitum em toda a legislação do rebanho); 7a
ela é V. no sentido renascentista, V. livre de moralidade"
{Wille zurMacht, ed. 1901, § 431).
3
o
No terceiro sentido, o termo designa uma capacidade do homem no domínio moral. Deve tratar-se de
uma capacidade uniforme ou continuativa, como já declarava Hegel (Fil. do dir., § 150, anexo), porque
um ato moral não constitui virtude. Essa condição, porém, nem sempre é respeitada, e Locke, p. ex., fala
de V. e de vício no sentido de atos morais isolados (.Ensaio, II, 28, 11). As definições de V. nesse sentido
estão compreendidas nas seguintes rubricas: a) capacidade de realizar uma tarefa
ou uma função; b) hábito ou disposição racional; c) capacidade de cálculo utilitário; d) sentimento ou
tendência espontânea; e) esforço. d) A V. como capacidade de realizar uma tarefa determinada é conceito
platônico. Assim como os órgãos (p. ex., a função dos olhos é ver, e a possibilidade de ver é a V. dos
olhos), a alma tem suas próprias funções, e sua capacidade de cumpri-las é a V. da alma (Rep., I, 353). Por
isso, segundo Platão, a diversidade das V. é determinada pela diversidade das funções que devem ser
cumpridas pela alma ou pelo homem no Estado. As quatro V. fundamentais ou cardeais (v.) são
determinadas pelas funções fundamentais da alma e da comunidade.
b) A concepção da V. como hábito (v.) ou disposição racional constante encontra-se em Aristóteles e nos
estóicos, sendo a mais difundida na ética clássica. Segundo Aristóteles, a V. é o hábito que torna o homem
bom e lhe permite cumprir bem a sua tarefa (Et. nic, II, 6, 1106 a 22); é um hábito racional (Ibid., II,
2,1103 b 32) e, como todos os hábitos, uniforme ou constante. Os estóicos, por sua vez, definiam a V.
como "uma disposição da alma coerente e concorde, que torna dignos de louvor aqueles em quem se
encontra e é louvável por si mesma, independentemente de sua utilidade" (CÍCERO, Tusc, IV, 15, 34;
STOBEO, Ecl, II, 7, 60). Essas definições foram repetidas inúmeras vezes na filosofia antiga e medieval e
também no pensamento moderno. Encontram-se, p. ex., em Abelardo (Theol. christ., II), Alberto Magno
(5. Th., II, q. 102, a. 3), S. Tomás (S. Th., II, I, q. 55), Leibniz (que faz a distinção entre V. como hábitos,
e as ações correspondentes, Nouv. ess., II, 28, 7) e Wolff (Phil. practica, I, § 321).
c) O terceiro conceito considera a V. como capacidade de cálculo utilitário. Foi Epicuro o primeiro a
expor essa noção, considerando como V. suprema (da qual todas as outras derivam) a sabedoria, que é
capaz de julgar dos prazeres que devem ser escolhidos e dos prazeres de que é preciso fugir, e destrói as
opiniões causadoras das perturbações da alma (DIÓG. L., X, 132). No Renascimento esse conceito foi
defendido por Telésio, para quem a V. era a faculdade de estabelecer a medida certa das paixões e das
ações, para que delas não proviessem prejuízo ao homem (De rer. nat. IX, 5). Mais tarde, concepção
análoga foi defendida por Hu-me (Ink. Cone. Morais, I) e, em geral, pelo uti-litarismo inglês, em especial
por Bentham, que
VIRTUDE
1004
VISÃO
definia a V. como "disposição para produzir felicidade" (Deontology, X). Apesar de ser peculiar ao
empirismo, esse conceito de V. foi compartilhado por Spinoza: "Para nós, agir absolutamente segundo a
V., nada mais é que agir, viver e conservar o próprio ser (três coisas que significam o mesmo) segundo a
orientação da razão sobre o fundamento da busca do útil" (Et., IV, 24).
d) O conceito de V. como sentimento ou disposição, vale dizer, como espontaneidade, encontra-se nos
analistas ingleses do séc. XVIII, a começar por Shaftesbury: "Numa criatura sensível, que não é feito por
meio de uma afeição não produz nem bem nem mal em sua natureza, pois essa criatura só pode ser
chamada de bondosa quando o bem ou o mal do sistema com o qual ela está em relação for objeto
imediato de alguma emoção ou afeição que a mova" (Characteristics ofMen, Treatise IV, livro I, part. 2,
seç. I). Com base nisto, Hutchinson postulou um sentido moral como fundamento da V. (System of Moral
Sentiments, 1754, III, I) e Adam Smith definiu esse sentido moral como simpatia (Theory ofMoral
Sentiments, 1759, III, 1). Mas foi principalmente o Iluminismo francês que divulgou esse conceito:
Rousseau falava da piedade como "V. natural", que é "uma disposição conveniente a seres tão débeis e
sujeitos a tantos males quanto os homens", que antecede a reflexão (De 1'inégalité parmi les hommes, I);
no mesmo sentido, Voltaire considerava que V. outra coisa não é senão "fazer o bem ao próximo"
(Dictionnairephilosophique, art. Vertu). A ética do positivismo ateve-se a essa concepção, considerando a
V. como manifestação do instinto altruísta (COMTE, Catéchisme positiviste, p. 48; SPENCER, Data
ofEthics, § 46). Na filosofia contemporânea, pode-se distinguir concepção análoga na chamada "moral
aberta" de Bergson, que é a manifestação do elã vital (Deux soucers, 1932, cap. I).
é) Finalmente, a concepção de V. como esforço foi enunciada por Rousseau e adotada por Kant. Rousseau
dizia: "Não existe felicidade sem coragem, nem V. sem luta: a palavra V. deriva da palavra força; a força
é a base de toda virtude. A V. pertence apenas aos seres de natureza débil, mas de vontade forte:
exatamente por isso homenageamos o homem justo; também por isso, mesmo atribuindo bondade a Deus,
não dizemos que Ele é virtuoso, porque suas boas obras são por ele cumpridas
sem esforço algum" (Émile, V.). Nesse espírito, Kant definiu a V. como "intenção moral em luta", que não
teria sentido caso o homem tivesse acesso à santidade, ou seja, à coincidência perfeita da vontade como
lei (Crít. R. Prática, I, livro I, cap. III). Assim como Cícero (v. CORAGEM) e Rousseau, ele uniu
estreitamente a noção de V. com a de coragem: "A qualidade especial e o propósito elevado com que se
resiste a um adversário forte mas injusto chama-se coragem (fortitudo); quando se trata do adversário
encontrado pela intenção em nós mesmos, chama-se V. (virtus, fortitudo moralis). Portanto, a parte da
doutrina geral dos deveres que submete a liberdade interna (e não a externa) a leis é uma doutrina da V."
(Met. der Sitten, II, Intr., I). Em polêmica com Kant, Schiller procurou integrar a doutrina Kantiana na
concepção de V. como espontaneidade ou sentimento, dizendo: "Não tenho bom conceito do homem que
pode confiar tão pouco na voz do instinto que precise silenciá-lo o tempo todo diante da lei moral;
respeito e estimo mais aquele que se entrega ao instinto com certa segurança, sem o risco de ser por ele
desenca-minhado" (Über Anmut und Würde, 1793, em Werke, ed. Karpeles, XI, p. 202). O conceito de
alma bela (v.) nascia exatamente dessa noção da V. como espontaneidade, à qual Kant respondia que, se
"o temperamento da V. for corajoso e portanto alegre", a V., entre os seus outros benefícios, também pode
ser acompanhada pela graça (Religion, I, Observ., nota).
Já Hegel observava que no seu tempo não se falava mais tanto de V. (Fil. do dir., § 150, Zusatz), pois
"falar de V. confina facilmente com declamação vazia, pois assim se fala apenas de algo abstrato e
indeterminado"; e que o discurso sobre a V. destina-se ao indivíduo enquanto arbítrio subjetivo (Ibid., §
150). A observação de Hegel também se aplica aos nossos tempos, em que a discussão do problema moral
deixou de ter forma de discurso sobre a V., para assumir a forma de discurso sobre valores e normas, de
um lado, e sobre atitudes e modos de vida de outro (v. ÉTICA).
VIRTUDES CARDEAIS, DIANOÉTICAS, ÉTICAS, TEOLOGAIS. V. CARDEAIS, VIRTUDES;
DlANOÉTICO; ÉTICAS, VIRTUDES; TEOLOGAIS, VIRTUDES.
VISÃO (in. Vision; fr. vision; ai. Anschauung, Trãumerei; it. Visioné). 1. No sentido propriamente
filosófico, o mesmo que intuição (v.).
2. O sentido da vista.
VISIONÁRIO
1005
VTTALISMO
3. Alucinações, sonhos, imagens de fantasmas ou de espíritos desencarnados, consideradas reais.
VISIONÁRIO (in. Visionary, fr. Visionnaire, ai. Geisterseher, it. Visionário). Quem tem visões no
terceiro sentido do termo. Este é o sentido da palavra do título da obra de Kant, Sonhos de um visionário
esclarecidos por sonhos da metafísica (1766), em que ele fazia uma analogia entre "os sonhadores da
sensação", que são os que acreditam ver espíritos desencarnados, e os "sonhadores da razão", ou
metafísicos, que também vivem num mundo de sonhos ou de visões particulares.
VITALIDADE (in. Vtíality, fr. Vitalité, ai. Vita-litã; it. Vitalita). No sentido corrente do termo, potência
ou plenitude de vida. Esse termo começou a ser usado quando Nietzsche evidenciou e exaltou os "valores
vitais", opondo-os aos valores renunciatórios da moral tradicional (v. TRANSMUTAÇÃO).
VITALISMO (in. Vítalism- fr. Vitalisme, ai. Vitalismus, it. Vitalismó). Termo oitocentista para indicar
qualquer doutrina que considere os fenômenos vitais como irredutíveis aos fenômenos físico-químicos.
Essa irredutibilidade pode significar várias coisas, pois vários são os problemas cujas soluções dividem os
partidários e os adversários do V. l
s
Em primeiro lugar, significa que os fenômenos vitais não podem ser
inteiramente explicados com causas mecânicas. 2S
Em segundo lugar, significa que um organismo vivo
nunca poderá ser produzido artificialmente pelo homem num laboratório de bioquímica. 3S
Em terceiro
lugar, significa que a vida sobre a terra, ou, em geral, no universo, não teve origem natural ou histórica
decorrente da organização e do desenvolvimento da substância do universo, mas é fruto de um plano
providencial ou de uma criação divina. ls
Segundo o primeiro ponto de vista, podem ser chamados de
vitalistas todos os conceitos clássicos que, identificando a vida com a alma, excluem-na de qualquer
influência das forças materiais. Em sentido mais preciso, V. é a doutrina defendida por filósofos e
cientistas entre meados do séc. XVIII e meados do séc. XIX, segundo a qual o fundamento dos
fenômenos vitais é uma força vital que não depende de mecanismos físico-químicos. É característica do
V. declarar inútil a investigação científica dos fenômenos vitais, portanto ela nunca conseguirá apreender
a força que constitui a
essência da vida. O V. nesta forma foi invalidado pelas descobertas da bioquímica, que, a partir de 1828
(data em que foi efetuada a fabricação sintética da uréia), demonstrou a possibilidade de produzir
substâncias orgânicas em laboratório. O neovitalismo, levando em conta essa possibilidade, reconhece a
utilidade da investigação físico-química dos fenômenos vitais, mas continua admitindo a irredutibilidade
desses fenômenos às forças físico-químicas, afirmando que eles são dirigidos por um elemento específico
que recebe vários nomes {dominante [v.] em Reinke, enteléquia [v.] em Driesch, elã vital [v.] em
Bergson.
A dificuldade principal desse aspecto do V. é a inoportunidade de admitir uma causa desconhecida e
inacessível, pouco mais que um nome e, além disso» capaz de tornar insignificante ou descabida a
observação científica dos fenômenos vitais. Uma causa assim, exatamente por fugir à observação, nada
explica ao pretender tudo explicar; é um asilo da ignorância ou da razão indolente.
2° Quase todas as formas de V. contemporâneo compartilham, além da tese da irredutibilidade no sentido
acima, a profecia de que é impossível a ciência produzir vida em laboratório. Obviamente, essa profecia
está além de tudo o que a ciência pode afirmar legitimamente. É fato que a investigação bioquímica até
hoje não conseguiu produzir sínteses orgânicas que tenham características evidentes de matéria viva, mas
que ela não possa chegar a isso não é fato, e sim uma asserção que só pode estar apoiada num conceito
ultracientífico ou metafísico da vida. Desse ponto de vista, o interesse da ciência é um materialismo
metodológico que admite: I
a
que os fenômenos vitais tem características próprias, diferentes das
características do fenômenos físico-químicos, mas não tão diferentes que criem um abismo entre ambas as
ordens de fenômenos e impossibilitem qualquer passagem de um para outro; 2S
que se pode e deve levar
adiante a análise científica dos fenômenos vitais, como a única capaz de explicar os fenômenos. Esse é o
ponto de vista de um grupo numeroso de biólogos contemporâneos (cf. a respeito G. G. SIMPSON,
TheMea-ning ofEvolution, cap. X).
3
a
Quanto ao problema da origem da vida na Terra ou, em geral, no universo a antiga crença na geração
espontânea admitia como fato normal, não miraculoso, que a vida se ori-
VITORIOSO, ARGUMENTO
1006
VOCAÇÃO
gina da matéria inorgânica. Essa crença já refutada pelas experiências de Francesco Redi (1668) e de
Lazzaro Spallanzani (1765), foi definitivamente alijada da ciência por Pasteur (1862). Por outro lado, a
hipótese da panspermia (v.), que admite a migração de sementes vitais no universo, ao mesmo tempo que
não constitui uma resposta ao problema da origem da vida, parece ser contraditada pelas condições
supostamente existentes nos espaços interestelares, sobretudo pela ação bactericida dos raios ultravioleta.
Nessa situação, só existem duas soluções alternativas. Pela primeira, a vida é obra direta ou indireta de
Deus, de tal forma que sua origem nada tem de natural, mas é fruto de uma criação que ocorreu em dado
ponto da história cósmica ou ocorre incessaate e continuamente. Esta última é a versão aceita por Bergson
iÉvo-lution créatrice, 1907) e retomada por Teilhard de Chardin (Lephénomèríe humain, 1955).
A segunda alternativa admite a possibilidade de que a vida na Terra tenha uma origem natural ou histórica
que se deu a partir de determinada fase da organização da matéria inorgânica. Essa possibilidade pode ser
exemplificada com boas razões científicas; isso foi feito, p. ex., por A. I. Oparin (L'origine delia vita sula
terra, trad. it., 1956). Os últimos avanços da biologia devidos à genética (v.) e à bioquímica, dão destaque
a essa possibilidade, que no entanto só se realizaria se a ciência conseguisse reproduzir vida em
laboratório e, assim, determinar as condições que possibilitam efetivamente o seu desenvolvimento a
partir da matéria inorgânica. Mas está claro que, se isso acontecesse, toda a discussão da origem da vida
perderia sentido, pois estaria determinada inclusive a data provável de sua origem em relação a história da
Terra.
VITORIOSO, ARGUMENTO (gr. ó Kupi eúrav Xóyoç). Argumento famoso, com o qual Diodoro
Cronos, um dos seguidores da escola socrática de Mégara (séc. IV-V a.C), mostrava a identidade entre o
possível e o necessário. Esse argumento era assim formulado: "Do que é possível não pode seguir-se algo
impossível. Ora, é impossível que aquilo que passou seja diferente do que foi. Mas se, num momento
anterior, tivesse sido possível algo diferente do que foi, do possível teria surgido o impossível: logo, o que
é diferente do que foi não era possível em nenhum momento. Por conseguinte, é impossível que possa acontecer algo que não aconteça realmente" (EPICTETO, Diss., II, 19, I; v. CÍCERO, De
fato, 6 ss.). Limitando a possibilidade ao que realmente aconteceu, Diodoro afirmava a necessidade de
tudo o que acontece, ou seja, é impossível que o que acontece possa acontecer de modo diferente de como
acontece (v. NECESSÁRIO; POSSÍVEL). Na filosofia contemporânea, esse argumento é adotado por N.
Hartmann, com explícita referência a Diodoro Cronos (Mòglicbkeit und Wirklichkeit, 1938, pp. 186 ss.).
VTVACIDADE (in. Vivacity). Característica fundamental que estabelece a distinção entre impressões e
idéias, segundo Hume: impressões e idéias assemelham-se, mas as primeiras têm mais "força e V.", e
assim inclinam à crença (Treatise, I, I, 1; I, III, 7).
VIVÊNCIA (ai. Erlebnis). Experiência viva ou vivida, a V. designa toda atitude ou expressão da
consciência. Dilthey utilizou bastante essa noção assumindo-a como instrumento fundamental da
compreensão histórica e, em geral, da compreensão inter-humana. Caracterizou-a do seguinte modo: "A
V. é, antes de mais nada, a unidade estrutural entre formas de atitude e conteúdos. Minha atitude de
observação, juntamente com sua relação com o objeto, é uma V., assim como meu sentimento de alguma
coisa ou meu querer alguma coisa. A V. é sempre consciente de si mesma" (Grundlegung der
Geisteswissenschaften, II, 1, 2). Do mesmo modo, Husserl considerou a V. como um fato de consciência,
logo, como um entre os demais conteúdos do cogito. "Consideramos as V. de consciência em toda a
plenitude concreta com que se apresentam em sua conexão concreta — o fluxo da consciência — e na
qual se unificam graças à sua própria existência. Portanto, é evidente que toda V. do fluxo que o olhar
reflexivo consegue apreender tem uma essência própria, a ser captada intuitivamente, em conteúdo que
pode ser considerado em sua característica intrínseca" ildeen, 1, § 34). Carnap falou de V. elementares
(Elementarerlebnisseri) como elementos originários de que se vale a construção lógica do mundo,
juntamente com as relações (Der logische Aufbau der Welt, 1928, § 65).
VOCAÇÃO (gr. KÀf|cn.ç; lat. Vocatio, in. Vo-cation; fr. Vocation; ai. Beruf; it. Vocazioné). Na origem,
um dos conceitos fundamentais do cristianismo paulino: "Quem for chamado numa
VOLUNTÁRIO
1007
VONTADS
V., nela permaneça" (Adcor, I, VII, 20). A V. é hoje um conceito pedagógico e significa propensão para
qualquer ocupação, profissão ou atividade. É diferente da aptidão, por ser a atração que o indivíduo sente
por determinada forma de atividade, para a qual pode ser ou não apto. A aptidão pode ser controlada
objetivamente; a V. é subjetiva. Uma V. pode portanto ser também um beco sem saída (blind-alley
vocatiorí).
VOLUNTÁRIO (in. Voluntary, fr. Volontaire, ai. Freiwillig; it. Volontarió). 1. Que pertence à vontade ou
diz respeito à vontade.
2. O mesmo que livre (v. LIBERDADE).
VOLUNTARISMOCin. Voluntarism, fr. Volon-tarisme, ai. Voluntarismus, it. Volontarismô). Este termo,
usado pela primeira vez por Tõnnies em 1883 e divulgado por Wundt (v. EUCKEN, Geistige Strõmungen
der Gegenwart, p. 33), foi empregado para indicar duas tendências doutrinais diferentes: I
a
a que afirma o
primado da vontade sobre o intelecto; 2a
a que vê na vontade à substância do mundo.
I
a A primeira tendência é a gnosiológica e ética. Esse tempo foi aplicado para caracterizar algumas
correntes da filosofia medieval. Henrique de Gand (morto em 1293) afirmou a superioridade da vontade
sobre o intelecto porque o hábito, a atividade e o objeto da vontade são superiores aos do intelecto. De
fato, o hábito da vontade é o amor; o do intelecto é a sabedoria; o amor é superior à sabedoria. A atividade
do querer identifica-se com o objeto dele, que é o fim, enquanto a atividade do intelecto é sempre distinta
e separada do seu objeto. Finalmente o objeto do querer é o bem, que é o fim absoluto, enquanto o objeto
do intelecto é o verdadeiro, que é um dos bens, portanto subordinado ao fim último (Quodi, I, q. 14).
Duns Scot afirmou o primado da vontade, mas com outro fundamento: não é a bondade do objeto que
causa necessariamente o assenti-mento da vontade, mas é a vontade que escolhe livremente o bem e
livremente luta pelo bem maior (Op. Ox., I, d. I, q. 4, n. 16). A esta doutrina está ligada outra, segundo a
qual o bem e mal consistem no mandamento divino. "Deus não pode querer algo que não seja justo
porque a vontade de Deus é a primeira regra" (Ibid, IV, d. 46, q. I, n. 6). No último período da Escolástica
o V. ocorre numa ou noutra dessas formas.
Análogo a essas concepções medievais é o V. psicológico, encontrado em Tõnnies (Gemeinschaft und Gesellschaft, 1887, pp. 99 ss.) e principalmente nas obras de Wundt, que divulgou conceito e
termo. Nesse sentido, V. não significa reduzir todos os processos psíquicos a V., mas explicar esses
processos segundo o modelo apresentado pelos processos da vonta^ de (WUNDT, Grundzüge der
physiologischen Psychologie, 1902, 5a
ed., pp.17 ss.). Esse V. foi defendido na França por Fouillée
(Psychologie des Idées-forces, 1893) e adotado por numerosos psicólogos nas primeiras décadas do séc.
XX. 2
â
O V. metafísico foi iniciado por Scnopen-hauer, para quem a vontade é substância ou número do
mundo, enquanto o mundo natural é manifestação ou revelação da vontade. Como aparência ou
fenômeno, o mundo é representação; como substância ou número, é vontade. A vontade é a essência do
corpo humano, no qual é conhecida diretamente e está em si mesma, e essência de qualquer outro corpo,
identificando-se com qualquer força do mundo (Die Welt, I, § 19). Como tal, a vontade determina o
mundo da representação, definido por Schopen-hauer como "objetividade da vontade", e sub-julga esse
mundo, mostrando-o nas formas de espaço, tempo e causalidade, que são as formas do fenômeno (Ibid., §
23). Essas idéias muitas vezes foram parcialmente acolhidas pelos filósofos do fim do século passado:
basta aqui lembrar Novos ensaios de antropologia (1813-24), de Maine de Biran, e Filosofia do
inconsciente, de Eduard von Hartmann (1869). VOLUPTUOSIDADE. V PRAZER VONTADE (gr.
(3oúA.riOT.ç; lat. Voluntas; in. Will; fr. Volunté, ai. Wille, it. Volonta). Esse termo foi usado com dois
significados fundamentais: 1Q
como princípio racional da ação; 2a
como princípio da ação em geral.
Ambos os significados, porém, pertencem à filosofia tradicional e à psicologia oitocentista, porque
ligados à noção de faculdade, ou poderes originários da alma que se combinaram para produzir as
manifestações do homem (v. FACULDADE). Mas hoje nem a filosofia nem a psicologia interpretam desse
modo a conduta do homem. As noções de comportamento (v.) e de forma (v.), bem como a tendência
funcionalista da psicologia (v.), não permitem falar de "princípios" da atividade humana e, portanto, a
classificação intelecto-V. ou intelecto-sentimento-V. perderam o significado literal. Às vezes, o termo V. é
conservado, mas unicamente para indicar determinados tipos de conduta ou certos aspectos da
VONTADE
1008
VONTADE
conduta. É nesse sentido que devem ser entendidas as referenciais à psicologia contemporânea contidas
neste verbete.
I
a O primeiro significado é o da filosofia clássica: para ela, a V. é apetite racional ou compatível com a
razão, distinto do apetite sensível, que é o desejo (v.). A distinção entre estas duas coisas está em Platão,
para quem retores e tiranos não fazem o que querem, embora façam o que lhes agrada ou parece, visto
que fazer o que se quer significa fazer o que se mostra bom ou útil. e isso é agir racionalmente {Górg.,
466 ss.). Aristóteles definiu a V. como "apetição que se move de acordo com o que é racional" {Dean., III,
10, 433 a 23); o termo voluntário é usado por Aristóteles para definir a escolha (v.), que seria "a apetição
voluntária das coisas que dependem de nós" {Et. nic, III, 3, 1113 a 10). Os estóicos concordaram com
esse conceito de V., por eles definida como "apetição racional" (DiÓG. L., VII, 116). Cícero referia-se a
essas doutrinas afirmando que "a V. é um desejo compatível com a razão, enquanto o desejo oposto à
razão, ou demasiado violento para ela, é a libidinagem ou a cupidez desenfreada que se encontra em todos
os insensatos" {Tusc, IV, 6, 12).
Esta concepção prevalece durante toda a Idade Média e é repetida por Alberto Magno (5. Th., I, q. 7, a. 2),
S. Tomás {S. Th., I, q. 80, a. 2), Duns Scot {Rep. Par., III, d. 17, q. 2, n. 3; Op. Ox., III, d. 33, q. 1, n. 9) e
Ockham {In Sent., IV, 9, 14 G).
Todas são repetições liberais do conceito tradicional de V. como apetite racional. Menos liberal é a
repetição desse conceito em Spinoza, que entende por V. "a faculdade de afirmar ou de negar, e não o
desejo.- faculdade graças à qual a mente afirma ou nega o que é verdadeiro ou o que é falso, e não desejo
com que a mente deseja ou repele as coisas" {Et., II, 48, scol.). Entretanto, ainda literal é a repetição desse
conceito por Wolff (chama-se "V. o apetite racional que nasce da representação distinta do bem", Psicol.
empírica, § 880) e pelo próprio Kant, que entende por V. a razão prática, isto é, a "faculdade de agir
segundo a representação de regras" {Grundlegung der Metaphysik der Sitten, II). Fichte não pensava em
nada muito diferente ao afirmar que a V. é a faculdade "de efetuar com consciência a passagem da
indeterminação para a determinação": faculdade que a razão teórica obriga a pensar que existe
{Sittenlehre, § 14). Em sentido análogo,
Hegel afirma que a V. é universal, "no sentido de universal como 'racionalidade'" {Fil. do dir., § 24). A
distinção de Croce entre a forma econômica, utilitária, e a forma ética ou moral da atividade prática
corresponde à distinção tradicional entre desejo e vontade. Segundo Croce, a forma econômica seria
voliçâo do particular, ou seja, do útil; a forma moral seria voliçâo do universal, ou seja, apetição racional
{Filosofia delia pratica, 1909, pp. 217 ss.).
Na noção de V. como apetite racional também pode ser integrada a tendência da psicologia moderna a
fazer distinção entre V. e impulso e a considerar a V. condicionada por uma manipulação de símbolos. G.
Murphy, p. ex., diz: "V. é o nome com o qual se designa um complexo processo interior que influencia
nosso comportamento de tal modo que nos toma presa menos fácil da pura força bruta dos impulsos.
Falamos com nós mesmos, introduzimos modos diferentes de expressar nossa situação, imaginamos as
conseqüências dos vários tipos de resposta e procuramos avaliar quanto cada um deles nos agradará"
Untroduction to Psychology, 1950, cap. IX, trad. it., p. 163). O que a psicologia moderna chama de
"elaboração de símbolos" é o mesmo que na terminologia tradicional se chamava "processo racional".
Finalmente, a mesma noção de V. está implícita nas expressões V.pura, boa V., V. geral, V. de crer.
Segundo Kant, V. pura é a V. determinada apenas por princípios a priori, por leis racionais, e não por
motivos empíricos particulares {Grundlegung der Met, der Sitten, pref.).
Boa V., também segundo Kant, é a V. de comportar-se exclusivamente de acordo com o dever; desse
modo, é exaltada por Kant como o que existe de melhor no mundo ou também fora do mundo {Ibid., I).
V. geral é concebida pelos iluministas como a própria razão. Diderot diz: "A V. geral é em cada indivíduo
um ato puro do intelecto que raciocina no silêncio das paixões sobre o que o homem pode exigir de seu
semelhante e sobre o que o seu semelhante tem direito de exigir dele" {Ari droit naturel, na Encyclopédie, V, p. 116). Rousseau fazia a distinção entre "V. de todos", que pode errar, e V. geral, que nunca erra
porque só tem em mira o interesse comum {Contraí social, II, 3).
Finalmente, a V. de crer, de que fala James, nada mais é que a racionalidade da fé, o direito de crer no que
não é absurdo, no que torna a
VONTADE
1009
VONTADE
vida mais aceitável e, às vezes, é posto em ser pela própria fé {The Will to Believe, 1897).
2
Q
Por outro lado, a V. às vezes foi identificada com o princípio da ação em geral, ou seja, com a apetição.
O primeiro a expor esse conceito generalizado da V. foi S. Agostinho, segundo quem "a vontade está em
todos os atos dos homens; aliás, todos os atos nada mais são que vontade" {De civ. Dei, XIV, 6). S.
Anselmo repetia essa noção {Libero arbítrio, 14, 19), que na idade moderna foi aceita por Descartes.
Este, assim como S. Agostinho, chamou de V. todas as ações da alma, em oposição às paixões: "O que
chamo de ações são todas as nossas V., porque sentimos que elas vêm diretamente do nosso espírito, e
parece que dependem só dele, enquanto as afeições são todas as percepções ou conhecimentos que se
encontram em nós mas não foram produzidos por nossa alma, que, portanto, os recebeu das coisas
representadas" {Pass. de Vâme, I, 17). Hobbes faz uma crítica explícita à noção tradicional: "Não é boa a
definição de V. como apetite racional, comumente proferida pelas escolas. Pois se fosse, não poderiam
existir atos voluntários contrários à razão. (...) Mas se, em lugar de apetite racional, dissermos apetite
resultante de deliberação anterior, então a V. será o último apetite a deliberar" {Leviath., I, 6). O último
apetite é o mais próximo da ação, ao qual a ação se segue. Desse ponto de vista, a V. humana não é
diferente da apetição animal {De corp., 25, § 13). De modo análogo, Locke definia a V. como "o poder de
começar ou não começar, continuar ou interromper certas ações do nosso espírito, ou certos movimentos
do nosso corpo, simplesmente com um pensamento ou com a preferência do próprio espírito" {Ensaio, II,
21, 5). E Hume declarava: "Por V.mão entendo outra coisa senão a impressão interior que sentimos ou de
que somos côns-cios, quando conscientemente damos origem a um novo movimento do nosso corpo ou a
uma nova percepção do nosso espírito" {Treatise, II, III, I). Hume negava também qualquer influência da
razão sobre a V. assim entendida, reduzindo as chamadas volições racionais às emoções tranqüilas,
ligadas a instintos originários da natureza humana (como benevolência e ressentimento, amor pela vida,
gentileza para a criança) ou ao apetite geral pelo bem e a aversão ao mal {Ibici., II, III, 3). Muito
semelhante a esta é a definição de Condillac: "Por V. se
entende um desejo absoluto, em virtude do qual pensamos que a coisa desejada está em nosso poder"
{Traité des sensations, I, 3, 9). Concepções muito semelhantes encontram-se freqüentemente nos
iluministas e nos ideólogos do séc. XVIII e do início do séc. XIX. Mach retomava essa concepção
{Populãrwissenschaftlische Vorlesungen, 1896, p. 72), e Dewey repetia quase literalmente a definição de
Hobbes ao dizer: "A V. não é algo oposto às conseqüências ou separado delas. É a causa das
conseqüências; é a causação em seu aspecto pessoal; o aspecto que precede imediatamente a ação"
{Human Nature and Conduct, p. 44). À mesma tendência geral pertence a interpretação da V. como modo
de ser do cuidado (v.), segundo Heidegger, sendo o cuidado a manifestação fundamental da existência do
homem no mundo, que consiste propriamente em preocupar-se com as coisas e cuidar dos outros {Sein
und Zeit, § 41). Por outro lado, certas interpretações da psicologia contemporânea podem ser enquadradas
na mesma tendência geral: é o que acontece com a famosa interpretação de McDougall, segundo a qual a
volição seria "o apoio ou o reforço que um desejo ou uma conação recebe da cooperação de um impulso
excitado no sistema dos sentimentos de autoconsideraçào" (Introduction to Social Psycology, 1908).
Segundo essas interpretações, de fato, seriam atos voluntários aqueles nos quais o impulso determinante é
constituído por uma atitude de respeito ou de exaltação do Eu diante de si mesmo.
Finalmente, nas expressões V. de viver e V. de potência, a V. é entendida no sentido mais geral.
A V. de viver que, segundo Schopenhauer, é o número do mundo, nada tem de racional: "é um ímpeto
cego, irresistível, que já vemos aparecer na natureza inorgânica e vegetal, assim como também na parte
vegetativa de nossa própria vida". Portanto, "o que a v. sempre quer é a vida, justamente porque esta é
apenas o manifestar-se da V. na representação, e é simples pleonasmo dizer V. de viver era vez de V." {Die
Welt, I, § 54).
Analogamente, V. de potência é, segundo Nietzsche, um impulso fundamental que nada tem de causação
racional: "A vida, como caso particular, aspira ao máximo sentimento de potência possível. Aspirar a
outra coisa não é senão
VÓRTICE
1010
VULGAR
aspirar à potência. Essa V. é sempre o que há de mais íntimo e profundo: a mecânica é uma simples
semiótica das conseqüências iWille zurMacht, ed., 1901, § 296).
VÓRTICE (gr. 8tvoç; lat. Vortex, in. Vortex, fr. Vortex, ai. Wirbel; it. Vórtice). Conceito fundamental da
física antiga. Anaxágoras considerava o V. como o meio de que se vale o intelecto divino para ordenar o
mundo (CLEMENTE, Strom., II, 14). Demócrito considerava-o como "a causa da geração de todas as
coisas" e identificava-o com a necessidade (DióG. L., IX, 45). Epicuro retomava o mesmo conceito ilbid.,
X,
90), que na Idade Moderna ainda foi utilizado por Descartes (Phil. princ, II, 33).
VULGAR (lat. Vulgares-, in. Vulgar, fr. Vulgaire, ai. Gemein; it. Volgaré). Essa palavra foi usada em
sentido não pejorativo por Tertuliano, que deu valor ao testemunho contido nas expressões usadas pelo
povo; elas são "V. porque comuns, comuns porque naturais, naturais porque divinas" {De testimonio
animae, 6). Viço dizia: "as tradições V. devem ter possuído razões notórias de verdade, em vista do que
nasceram e foram propagadas por povos inteiros por longos intervalos de tempo" (Sc. nuova, diga, 16; v.
dign., 17)
1
w
WELTANSCHAUUNG. V. INTUIÇÃO DO MUNDO.
X
X. 1. Às vezes a letra xé usada em filosofia como símbolo da incógnita. Foi usada por Kant na primeira
edição da Crítica da Razão Pura e em Opus postumum: "O objeto transcendental significa alguma coisa
= x, da qual nada sabemos e da qual (segundo a atual constituição do nosso intelecto) nada podemos
saber, mas que pode servir apenas como um correlato da unidade da aper-cepçào" (Crít. R. Pura, A, 250;
v. Opus postumum, IX, 2, pp. 280, 308, 418, etc). Outras
vezes, nos neokantianos, o x constitui o indeterminado que o processo tende a determinar, o incógnito ser
do qual cada passo do conhecimento serve para evidenciar um aspecto (NATORP, Philosophie, 1921, 3g
ed., pp. 41 ss.).
2. Na lógica contemporânea, "x" é o argumento qualquer de uma função (v.). O símbolo "(x)" é o
quantificador universal, um dos operadores lógicos fundamentais (v. OPERADOR).
2
ZELOTIPIA (lat. Zelotypid). Segundo Baum-garten, é o amor que deseja que o amor do ser amado lhe
seja proporcional (Mel, § 905).
ZEN. Corrente budista fundada por Bodhi-dharma na China, no ano 527 d.C., e introduzida no Japão por
Ei-Sai em 1191, onde se desenvolveu com características próprias. Seu ensinamento fundamental é a
eliminação da oposição — típica do budismo — entre o mundo das aparências (samsard) e o nirvana-,
sua tarefa é ensinar a ver (e realizar) o nirvana nas mais simples e modestas manifestações da vida diária.
Um mestre do Z. enumera da seguinte maneira os dez passos sucessivos que constituem o trabalho de
toda a vida de um partidário do Z.:
1- o partidário do Z. deve crer que existe um ensinamento (o Z.), transmitido fora da doutrina budista
geral;
2- deve ter conhecimento definido desse ensino;
3
a
deve entender por que tanto o ser senciente quanto o não senciente podem pregar o dharma (a lei do
mundo);
4- deve ser capaz de ver a substância como se contemplasse algo vivido e claro bem na palma de sua
mão; o seu passo deve ser sempre resoluto e firme;
5
e
deve ter "o olho do dharma";
6
Q
deve trilhar "a senda dos pássaros" e "a estrada do além" (ou "estrada do milagre");
7
Q
deve saber desempenhar tanto um papel positivo quanto um papel negativo no drama do Z.;
8
e
deve destruir todos os ensinamentos heréticos e enganadores e apontar para os justos;
9
a
deve conquistar grande força e flexibilidade;
10Q
deve participar da ação e praticar diferentes modos de vida.
Nos últimos anos o Z. suscitou grande interesse nos países ocidentais, especialmente nos Estados Unidos,
onde às vezes é estudado em relação com vários aspectos da cultura ocidental (cf. a bibliografia contida
na tradução italiana de A. W. WATTS, The Spirit of Z., 1935. Para os dez graus da iniciação do Z., v.
CHANG-CHENG-CHI, The Practice of Z, 1959, p. 33).
ZERO (in. Zero-, fr. Zero; ai. Null; it. Zero). O Z. foi introduzido como número só na matemática
moderna. Peano incluiu-o entre as noções primitivas do seu sistema lógico (v. ARITMÉTICA). Russell
definiu o Z. como "a classe cujo único membro é a classe nula" (Introduction to MathematicalPhilosophy,
III; trad. it., p. 35).
Em sentido metafórico, às vezes se diz ponto Z. para indicar o ponto de encontro ou de equilíbrio de
possibilidades diferentes. Kierkegaard diz: "O que eu sou é um nada; isso me dá, e ao meu gênio, a
satisfação de conservar minha existência no ponto Z, entre o frio e o calor, entre a sabedoria e a estupidez,
entre alguma coisa e o nada, como um simples talvez" (Werke, IV, p. 246).
ZETÉTICO (gr. ÇnTnTiKóÇ; lat. Zetetic, fr. Zététique; ai. Zetetisch; it. Zetetico). Investigativo ou
inquisitivo. Este termo foi primeiramente aplicado por Trasilo para indicar um grupo de diálogos de
Platão (DIÓG. L., III, 49; V. ARISTÓTELES, Pol, 1256 a 12). Em seguida, foi assumido como denominação
da atitude céptica: "A corrente céptica é chamada de Z. por procurar e investigar; suspensiva pela
disposição da alma que, depois da indagação, mantém em relação ao objeto indagado; e dubitativa por
duvidar e indagar de todas as coisas (SEXTO EMPÍRICO, Pirr. hyp., I, 7).
ZOOLATRIA
1014
ZWINGLIANISMO
Algumas vezes se chamou de zetética a forma de análise matemática que se refere à determinação das
grandezas desconhecidas.
ZOOLATRIA (in. Zoolatry- fr. Zoolatrie; ai. Zoolatrie, it. Zoolatrià). Culto aos animais, considerados
manifestações ou encarnações da divindade. A Z. esteve presente em muitas religiões antigas: egípcia,
frígia e siríaca (V. F. CUMONT, Les religions orientales dans le pa-ganisme romain, 1906 passim) (v.
TOTEM).
ZOROASTRISMO (in. Zoroastrianism; fr. Zoroastrisme, ai. Zoroastrismus; it. Zoroastris-mo). Religião
persa, conhecida também como masdeísmo ou parsismo, estabelecida por Zoroastro ou Zaratustra (século
VI a.C), cujo principal documento no Zendavesta. O ensinamento principal dessa religião é o dualismo
entre dois princípios opostos, chamados respectivamente Ormuz (Ahura Mazdatí) e Ari-man (Angra
Manyu), graças ao qual ela se
apresenta como solução para o problema do mal (v. MAL, I, b).
ZWINGLIANISMO (in. Zwinglianísm; fr. Zwinglianisme, ai. Zwinglianismus; it. Zuin-glismo).
Doutrina do reformador suíço Ulrich Zwinglio (1484-1531), que compartilhou com o humanismo a idéia
de que há uma sabedoria religiosa originária, da qual proviriam tanto os textos das Sagradas Escrituras
quanto os dos filósofos pagãos. Portanto, para Zwinglio a revelação é universal, e Deus é a força que rege
o mundo e revela-se em todas as coisas.
São também características da doutrina de Zwinglio a predestinação (v.) e a interpretação dos
sacramentos, inclusive da Eucaristia, como cerimônias simbólicas. É sobre esse aspecto que Lutero e
Zwinglio discordam, pois, ao contrário de Lutero, Zwinglio negava também o valor absoluto da
autoridade política.
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