SOBRE A DISCUSSÃO
ENTRE POPPER E WITTGENSTEIN
Em artigo publicado hoje no suplemento “tec”, da Folha de
São Paulo, Luli Radfahrer se refere a um episódio famoso da história
intelectual do século XX. Trata-se do desentendimento entre Karl Popper e
Ludwig Wittgenstein. Segundo Radfahrer,
“Wittgenstein argumentava que as questões filosóficas não
passavam de problemas linguísticos. Popper discordava. Para estimular o debate,
a Universidade de Cambridge convidou Popper para expor suas ideias, com
Wittgenstein e outros figurões no auditório.
“A expectativa era grande, mas não para o que ocorreu.
Mal começado o evento, Wittgenstein pegou o espeto da lareira e, armado com
ele, saiu gritando que Popper estava errado. A situação só não terminou em
tragédia porque alguém da plateia gritou para que ele sossegasse. A lenda diz
que a bronca veio de Bertrand Russell, pouco importa.”
Eis a versão que Popper conta dessa história:
No início do ano letivo de 1946-47,o secretário do Clube
de Ciências Morais, de Cambridge, convidou-me a fazer uma exposição acerca de alguma
‘charada filosófica’. Estava claro que se tratava de uma formulação devida a
Wittgenstein, por trás da qual estava sua tese filosófica de que, em Filosofia,
não existem problemas genuínos, mas tão-somente charadas lingüísticas. Uma vez
que essa tese estava entre minhas aversões prediletas, decidi falar a propósito
de ‘Existem problemas filosóficos?’. Comecei meu trabalho (lido na sala de R.B.
Braithawaite, no “King’s College”, no dia 26 de outubro de 1946) exprimindo
surpresa por ter sido convidado pelo secretário a falar ‘a propósito de alguma
charada filosófica’; e assinalei que, negando implicitamente a existência de
problemas filosóficos, quem fizera o convite tomara posição, talvez
inadvertidamente, num debate gerado por um genuíno problema filosófico.
Desnecessário dizer que, com isso, eu pretendia apenas
fazer uma introdução provocadora e leve do meu tema. Mas, a essa altura,
Wittgenstein pulou da cadeira e disse, alto e ,ao que me pareceu, em tom
zangado: ‘O Secretário fez exatamente o que lhe foi dito que fizesse. Observou
instruções minhas’. Não dei atenção e prossegui; mas, como ficou claro, alguns
dos admiradores de Wittgenstein, ali presentes, deram atenção às suas palavras
e, em conseqüência, tomaram minha observação, que pretendia ser uma
brincadeira, como uma queixa séria contra o Secretário. E assim parece ter
entendido o pobre Secretário, com se vê da ata em que ele refere o incidente,
acrescentando em nota de pé de página: “Essa foi a forma de convite usada pelo
Clube.”
Fui adiante, apesar de tudo, para dizer que, se eu não
acreditasse na existência de problemas filosóficos genuínos, eu não seria por
certo filósofo; e que o fato de muitas, talvez todas as pessoas acolherem
irrefletidamente soluções insustentáveis para muitos, talvez para todos os
problemas filosóficos, propiciava a única justificativa para ser-se filósofo.
Wittgenstein ergueu-se de novo, interrompeu-me, e falou longamente acerca de
charadas e da inexistência de problemas filosóficos. Em momento que me pareceu
adequado, interrompi-o, apresentando uma lista de problemas filosóficos, por
mim preparada, onde figuravam questões como “Conhecemos as coisas através de
nossos sentidos?”, “Há conhecimento por indução?”
Wittgenstein rejeitou essas indicações, dizendo tratar-se
de questões lógicas e não filosóficas. Mencionei então o problema de saber se
existem infinitos potenciais ou talvez mesmo atuais, o que ele considerou uma
questão de Matemática. (Isso consta da ata.) Aludi, em seguida, aos problemas
morais e ao problema da validade das regras morais. A essa altura,
Wittgenstein, que estava sentado junto à lareira e brandia nervosamente o
atiçador de fogo, que por vezes usava como batuta de maestro, para sublinhar
suas afirmações, lançou-me um desafio: “Dê-me um exemplo de regra moral”.
Respondi: “Não ameaçar conferencistas visitantes com atiçadores de fogo”.
Wittgenstein, com raiva, atirou longe o atiçador e precipitou-se para fora da
sala, batendo a porta atrás de si”.
POPPER, Karl. Autobiografia intelectual. São Paulo: Cultrix,
1977.
POPPER CONTRA WITTGENSTEIN
Desidério Murcho
O Atiçador de Wittgenstein, de
David Edmonds e John Eidinow
Lisboa: Temas e Debates, 2003,
294 p
O incidente levanta ainda hoje
discussões acaloradas. Na única situação na qual dois dos maiores filósofos de
origem austríaca (Popper e Wittgenstein) estiveram juntos, as coisas não
correram bem. Popper apresentava uma conferência no King's College de
Cambridge, no Clube de Ciência Moral, sobre a existência ou não de problemas
filosóficos genuínos. Wittgenstein era o presidente do Clube e, como é sabido,
defendia veementemente que não havia quaisquer problemas filosóficos genuínos:
era tudo uma questão de confusões linguísticas, quebra-cabeças sem qualquer
substância. Popper discordava. Anos depois, na sua autobiografia, Popper narrou
o acontecimento de forma algo parcial. Aquando da morte de Popper, o jornal
britânico Times Literary Supplement descreve o incidente tal como Popper o
apresenta — e estalou a controvérsia, em inúmeras cartas apaixonadas. Os autores
deste livro, intrigados com tanta paixão filosófica, decidiram pôr tudo em
pratos limpos e investigar a verdade da coisa. O resultado, é um livro
admirável, biográfica e historicamente informativo, de boa leitura e
filosoficamente rigoroso.
Do modo como Popper descreve a
coisa, foi assim: mal começou a falar, foi violentamente interrompido por
Wittgenstein, que se recusava a aceitar a existência de problemas filosóficos
genuínos. Wittgenstein desafia Popper a dar exemplos de problemas filosóficos
genuínos — mas Popper estava preparado e levava uma lista de vários problemas
filosóficos genuínos, como o problema da indução, a questão de saber o que é
uma regra moral, etc. A discussão começou a aquecer, já com Wittgenstein de pé
a gritar e a brandir ameaçadoramente o atiçador da lareira. No desfecho
dramático, Wittgenstein exige que Popper dê um exemplo de um princípio moral
(pois Wittgenstein acha que não há tal coisa) e Popper remata: "Não
ameaçar conferencistas convidados com um atiçador". Wittgenstein sai
disparado da sala e bate com a porta.
Tudo isto aconteceu em apenas
cerca de 10 minutos. Meio século depois, ainda desperta discussões acaloradas.
O que está em jogo são não apenas duas abordagens muito diferentes da
filosofia, mas também duas personalidades difíceis, casmurras e pouco dadas à
disputa civilizada. Mas o que provoca paixões exacerbadas é saber até que ponto
Popper mentiu deliberadamente, ou se guardou apenas uma memória falsa do
incidente. Para começar, o comportamento grosseiro de Wittgenstein era comum;
geralmente, nas reuniões do clube, o conferencista quase não falava. Dizia
apenas três ou quatro coisas e era interrompido por Wittgenstein, que
continuava a falar sozinho. Quando o conferencista não se encolhia perante
Wittgenstein, este saía da sala, muitas vezes de forma ruidosa. Há até quem
diga que nunca viu Wittgenstein fechar uma porta civilizadamente. Depois, as
testemunhas oculares ainda vivas e os diferentes relatos registados do encontro
não confirmam inteiramente a história tal como Popper a contou. Wittgenstein
brandiu ameaçadoramente o atiçador — mas costumava fazê-lo frequentemente. Saíu
intempestivamente da sala, mas fazia-o muitas vezes, e muitas outras vezes nem
sequer assistia às conferências do clube do qual era presidente. Há quem afirme
que o atiçador estava incandescente, mas isso é falso. E há quem afirme que foi
Russell, igualmente presente na sala, quem mandou Wittgenstein largar o
atiçador.
O que os autores deste livro
delicioso fazem é, a um tempo, satisfazer a curiosidade do leitor e guiá-lo
pela história dos dois personagens principais. Isto conduz-nos a páginas muito
informativas, do ponto de vista histórico, tanto relativamente ao passado dos
dois filósofos, como relativamente à própria Europa, a braços com uma guerra
absurda. Ficamos a conhecer mais de perto o Círculo de Viena e o seu fundador,
Moritz Schlick. A este respeito, é arrepiante assistir à ascenção nazi na
Áustria, com o apoio activo das universidades. Quando Schlick foi assassinado,
os seus colegas e a imprensa começaram a circular a história de que o
assassinato era político porque ele era comunista e amigo de judeus, quando na
realidade foi assassinado por um desequilibrado mental que já o havia ameaçado
várias vezes e contra o qual Schlick tinha pedido protecção policial. Mais
significativo ainda foi o facto de a disciplina de filosofia da ciência, que
Schlick leccionava, ter sido encerrada com a sua morte, declarando o
departamento que não tinha necessidade de investigações fúteis sendo mais importante
dedicar-se à história da filosofia. Mais aterrador ainda é o facto de este tipo
de mentalidades nazis não ter desaparecido com a derrota da Alemanha. Anos
depois, quando Popper já era famoso, depois de ter fugido da Áustria para a
Nova Zelândia, onde deu aulas antes de ir para a London School of Economics e
de lhe ser concedida a cidadania britânica, a Universidade de Viena convidou
Popper para regressar à sua cidade natal, o que ele teria feito de bom grado.
Contudo, as condições eram aterradoras: tudo o que ele escrevesse teria de ser
previamente aprovado pelo ministro da educação, antes de ser publicado. Popper,
evidentemente, recusou, e assim passou à história como um filósofo britânico de
origem austríaca, e não como um filósofo austríaco. Quando se pensa na chamada
"fuga de cérebros" da Europa talvez seja bom pensar se isso não
acontece porque o ambiente académico europeu é sufocante, dado ter sido formado
por quem não fugiu da guerra — ou por ser nazi, ou por ser tão anódino que não
era perigoso para os nazis.
Com grande rigor histórico,
biográfico e filosófico, este é um livro que ensina, ao mesmo tempo, alguns
elementos simples de filosofia. O único deslize do livro é misturar argumentos
e afirmações, quando explica a diferença entre o que só pode verificar-se
empiricamente e o que não carece de tal verificação. A leitura é recomendável
para o leitor absolutamente alheio à filosofia, e é quase obrigatória para
estudantes e professores de filosofia, cuja curiosidade sobre este pedaço da
nossa história pode agora ser satisfeito.
Desidério Murcho
Nenhum comentário:
Postar um comentário