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quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Popper e Wittgenstein


SOBRE A DISCUSSÃO ENTRE POPPER E WITTGENSTEIN

Em artigo publicado hoje no suplemento “tec”, da Folha de São Paulo, Luli Radfahrer se refere a um episódio famoso da história intelectual do século XX. Trata-se do desentendimento entre Karl Popper e Ludwig Wittgenstein. Segundo Radfahrer,

“Wittgenstein argumentava que as questões filosóficas não passavam de problemas linguísticos. Popper discordava. Para estimular o debate, a Universidade de Cambridge convidou Popper para expor suas ideias, com Wittgenstein e outros figurões no auditório.
“A expectativa era grande, mas não para o que ocorreu. Mal começado o evento, Wittgenstein pegou o espeto da lareira e, armado com ele, saiu gritando que Popper estava errado. A situação só não terminou em tragédia porque alguém da plateia gritou para que ele sossegasse. A lenda diz que a bronca veio de Bertrand Russell, pouco importa.”

Eis a versão que Popper conta dessa história:


No início do ano letivo de 1946-47,o secretário do Clube de Ciências Morais, de Cambridge, convidou-me a fazer uma exposição acerca de alguma ‘charada filosófica’. Estava claro que se tratava de uma formulação devida a Wittgenstein, por trás da qual estava sua tese filosófica de que, em Filosofia, não existem problemas genuínos, mas tão-somente charadas lingüísticas. Uma vez que essa tese estava entre minhas aversões prediletas, decidi falar a propósito de ‘Existem problemas filosóficos?’. Comecei meu trabalho (lido na sala de R.B. Braithawaite, no “King’s College”, no dia 26 de outubro de 1946) exprimindo surpresa por ter sido convidado pelo secretário a falar ‘a propósito de alguma charada filosófica’; e assinalei que, negando implicitamente a existência de problemas filosóficos, quem fizera o convite tomara posição, talvez inadvertidamente, num debate gerado por um genuíno problema filosófico.

Desnecessário dizer que, com isso, eu pretendia apenas fazer uma introdução provocadora e leve do meu tema. Mas, a essa altura, Wittgenstein pulou da cadeira e disse, alto e ,ao que me pareceu, em tom zangado: ‘O Secretário fez exatamente o que lhe foi dito que fizesse. Observou instruções minhas’. Não dei atenção e prossegui; mas, como ficou claro, alguns dos admiradores de Wittgenstein, ali presentes, deram atenção às suas palavras e, em conseqüência, tomaram minha observação, que pretendia ser uma brincadeira, como uma queixa séria contra o Secretário. E assim parece ter entendido o pobre Secretário, com se vê da ata em que ele refere o incidente, acrescentando em nota de pé de página: “Essa foi a forma de convite usada pelo Clube.”

Fui adiante, apesar de tudo, para dizer que, se eu não acreditasse na existência de problemas filosóficos genuínos, eu não seria por certo filósofo; e que o fato de muitas, talvez todas as pessoas acolherem irrefletidamente soluções insustentáveis para muitos, talvez para todos os problemas filosóficos, propiciava a única justificativa para ser-se filósofo. Wittgenstein ergueu-se de novo, interrompeu-me, e falou longamente acerca de charadas e da inexistência de problemas filosóficos. Em momento que me pareceu adequado, interrompi-o, apresentando uma lista de problemas filosóficos, por mim preparada, onde figuravam questões como “Conhecemos as coisas através de nossos sentidos?”, “Há conhecimento por indução?”
Wittgenstein rejeitou essas indicações, dizendo tratar-se de questões lógicas e não filosóficas. Mencionei então o problema de saber se existem infinitos potenciais ou talvez mesmo atuais, o que ele considerou uma questão de Matemática. (Isso consta da ata.) Aludi, em seguida, aos problemas morais e ao problema da validade das regras morais. A essa altura, Wittgenstein, que estava sentado junto à lareira e brandia nervosamente o atiçador de fogo, que por vezes usava como batuta de maestro, para sublinhar suas afirmações, lançou-me um desafio: “Dê-me um exemplo de regra moral”. Respondi: “Não ameaçar conferencistas visitantes com atiçadores de fogo”. Wittgenstein, com raiva, atirou longe o atiçador e precipitou-se para fora da sala, batendo a porta atrás de si”.

POPPER, Karl. Autobiografia intelectual. São Paulo: Cultrix, 1977.
POPPER CONTRA WITTGENSTEIN
Desidério Murcho
O Atiçador de Wittgenstein, de David Edmonds e John Eidinow
Lisboa: Temas e Debates, 2003, 294 p
O incidente levanta ainda hoje discussões acaloradas. Na única situação na qual dois dos maiores filósofos de origem austríaca (Popper e Wittgenstein) estiveram juntos, as coisas não correram bem. Popper apresentava uma conferência no King's College de Cambridge, no Clube de Ciência Moral, sobre a existência ou não de problemas filosóficos genuínos. Wittgenstein era o presidente do Clube e, como é sabido, defendia veementemente que não havia quaisquer problemas filosóficos genuínos: era tudo uma questão de confusões linguísticas, quebra-cabeças sem qualquer substância. Popper discordava. Anos depois, na sua autobiografia, Popper narrou o acontecimento de forma algo parcial. Aquando da morte de Popper, o jornal britânico Times Literary Supplement descreve o incidente tal como Popper o apresenta — e estalou a controvérsia, em inúmeras cartas apaixonadas. Os autores deste livro, intrigados com tanta paixão filosófica, decidiram pôr tudo em pratos limpos e investigar a verdade da coisa. O resultado, é um livro admirável, biográfica e historicamente informativo, de boa leitura e filosoficamente rigoroso.
Do modo como Popper descreve a coisa, foi assim: mal começou a falar, foi violentamente interrompido por Wittgenstein, que se recusava a aceitar a existência de problemas filosóficos genuínos. Wittgenstein desafia Popper a dar exemplos de problemas filosóficos genuínos — mas Popper estava preparado e levava uma lista de vários problemas filosóficos genuínos, como o problema da indução, a questão de saber o que é uma regra moral, etc. A discussão começou a aquecer, já com Wittgenstein de pé a gritar e a brandir ameaçadoramente o atiçador da lareira. No desfecho dramático, Wittgenstein exige que Popper dê um exemplo de um princípio moral (pois Wittgenstein acha que não há tal coisa) e Popper remata: "Não ameaçar conferencistas convidados com um atiçador". Wittgenstein sai disparado da sala e bate com a porta.
Tudo isto aconteceu em apenas cerca de 10 minutos. Meio século depois, ainda desperta discussões acaloradas. O que está em jogo são não apenas duas abordagens muito diferentes da filosofia, mas também duas personalidades difíceis, casmurras e pouco dadas à disputa civilizada. Mas o que provoca paixões exacerbadas é saber até que ponto Popper mentiu deliberadamente, ou se guardou apenas uma memória falsa do incidente. Para começar, o comportamento grosseiro de Wittgenstein era comum; geralmente, nas reuniões do clube, o conferencista quase não falava. Dizia apenas três ou quatro coisas e era interrompido por Wittgenstein, que continuava a falar sozinho. Quando o conferencista não se encolhia perante Wittgenstein, este saía da sala, muitas vezes de forma ruidosa. Há até quem diga que nunca viu Wittgenstein fechar uma porta civilizadamente. Depois, as testemunhas oculares ainda vivas e os diferentes relatos registados do encontro não confirmam inteiramente a história tal como Popper a contou. Wittgenstein brandiu ameaçadoramente o atiçador — mas costumava fazê-lo frequentemente. Saíu intempestivamente da sala, mas fazia-o muitas vezes, e muitas outras vezes nem sequer assistia às conferências do clube do qual era presidente. Há quem afirme que o atiçador estava incandescente, mas isso é falso. E há quem afirme que foi Russell, igualmente presente na sala, quem mandou Wittgenstein largar o atiçador.
O que os autores deste livro delicioso fazem é, a um tempo, satisfazer a curiosidade do leitor e guiá-lo pela história dos dois personagens principais. Isto conduz-nos a páginas muito informativas, do ponto de vista histórico, tanto relativamente ao passado dos dois filósofos, como relativamente à própria Europa, a braços com uma guerra absurda. Ficamos a conhecer mais de perto o Círculo de Viena e o seu fundador, Moritz Schlick. A este respeito, é arrepiante assistir à ascenção nazi na Áustria, com o apoio activo das universidades. Quando Schlick foi assassinado, os seus colegas e a imprensa começaram a circular a história de que o assassinato era político porque ele era comunista e amigo de judeus, quando na realidade foi assassinado por um desequilibrado mental que já o havia ameaçado várias vezes e contra o qual Schlick tinha pedido protecção policial. Mais significativo ainda foi o facto de a disciplina de filosofia da ciência, que Schlick leccionava, ter sido encerrada com a sua morte, declarando o departamento que não tinha necessidade de investigações fúteis sendo mais importante dedicar-se à história da filosofia. Mais aterrador ainda é o facto de este tipo de mentalidades nazis não ter desaparecido com a derrota da Alemanha. Anos depois, quando Popper já era famoso, depois de ter fugido da Áustria para a Nova Zelândia, onde deu aulas antes de ir para a London School of Economics e de lhe ser concedida a cidadania britânica, a Universidade de Viena convidou Popper para regressar à sua cidade natal, o que ele teria feito de bom grado. Contudo, as condições eram aterradoras: tudo o que ele escrevesse teria de ser previamente aprovado pelo ministro da educação, antes de ser publicado. Popper, evidentemente, recusou, e assim passou à história como um filósofo britânico de origem austríaca, e não como um filósofo austríaco. Quando se pensa na chamada "fuga de cérebros" da Europa talvez seja bom pensar se isso não acontece porque o ambiente académico europeu é sufocante, dado ter sido formado por quem não fugiu da guerra — ou por ser nazi, ou por ser tão anódino que não era perigoso para os nazis.
Com grande rigor histórico, biográfico e filosófico, este é um livro que ensina, ao mesmo tempo, alguns elementos simples de filosofia. O único deslize do livro é misturar argumentos e afirmações, quando explica a diferença entre o que só pode verificar-se empiricamente e o que não carece de tal verificação. A leitura é recomendável para o leitor absolutamente alheio à filosofia, e é quase obrigatória para estudantes e professores de filosofia, cuja curiosidade sobre este pedaço da nossa história pode agora ser satisfeito.
Desidério Murcho

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