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quinta-feira, 8 de novembro de 2012

O rebelde se vai

16 de outubro de 1996
Com a morte de Renato Russo, o rock brasileiro perde um ídolo muito talentoso e sofrido
Na tarde de domingo passado, o telefone tocou no apartamento do cantor e compositor Renato Russo, líder da banda Legião Urbana, em Ipanema. Ele atendeu. Do outro lado da linha estava o ator Marcelo Berê, querendo saber notícias do amigo. "Estou mal e eu não posso mais nem falar", disse-lhe Russo com um fiapo de voz e passou o fone para o enfermeiro que estava ao seu lado. Na sexta-feira passada, o corpo de Russo era transportado do apartamento para o cemitério do Caju, onde, conforme as instruções que dera à família, seria cremado no sábado. Renato Russo morreu à 1h15 da madrugada de sexta-feira, vítima de complicações pulmonares e renais decorrentes da Aids. Aos 36 anos, desapareceu como um dos mais bem-sucedidos artistas da MPB dos últimos quinze anos, com 5 milhões de discos vendidos. Calava-se o artista rebelde que com versos e rock nomeou a sujeira e o vazio de sua época.
Renato Russo foi mais do que um sobrevivente da explosão do rock nacional dos anos 80. Autor de todas as letras do Legião Urbana e homem de frente nos shows da banda, ele desenvolveu uma notável habilidade para traduzir as emoções e a inquietude dos jovens brasileiros de mais de uma geração. Seu público atual não era feito de trintões e quarentões nostálgicos, mas de adolescentes para os quais as mensagens de Russo continuavam a ser palavras de ordem. Em suas letras e interpretações, falava de amor como os jovens gostariam de saber falar. Bradava contra a miséria familiar como seu público gostaria de fazer na sala de jantar de casa. E, quando virava seu olhar para o governo e os políticos, enunciava opiniões às vezes extremadas, às vezes ingênuas, mas sempre raivosas. Esse era o segredo de sua popularidade.
Renato Russo soube que era portador do vírus da Aids em 1989, mas a doença só começou a se manifestar neste ano. Até janeiro passado, pôde levar uma vida normal e saía com os amigos. Depois, passou a contrair uma série de infecções oportunistas. Foi internado várias vezes com hepatite e males respiratórios. Em maio, começou a ingerir o coquetel de AZT e outros medicamentos que hoje costumam ser ministrados aos pacientes terminais. Costumava dizer que o coquetel é quase tão ruim quanto alguns sintomas da doença. "Quando o tomo, é como se eu estivesse comendo um cachorro vivo e ele me comesse por dentro", desabafou a um amigo. Por conta de uma profunda depressão, passou a ser acompanhado por um psiquiatra, que nos últimos tempos intensificou o tratamento com medicamentos.
Russo nunca tornou pública sua doença. Há quatro meses, mesmo debilitado, concluiu as gravações do novo disco do Legião Urbana, A Tempestade, que chegou às lojas há três semanas. Depois disso, recusou-se a posar para fotos de divulgação do disco ou a conceder entrevistas - a essa altura, já havia perdido 20 dos 65 quilos que sempre pesou. Ele passou as últimas semanas em casa, onde foi montado um pequeno hospital doméstico. Era acompanhado por uma equipe de enfermeiros e por seu pai, Renato Manfredini, alto funcionário aposentado do Banco do Brasil.
Solitário, poucas vezes saía do quarto. Precisava de ajuda para andar e vomitava quase tudo o que comia. Apesar disso, tentava reagir e estava compondo o que anunciava ser uma ópera. Na terça-feira, recebeu a visita do músico Dado Villa-Lobos, guitarrista do Legião Urbana, e de seu empresário, Rafael Borges. Disse a eles que não estava bem, sentindo-se sozinho, mas recusava-se a falar da doença ou da morte que a todos parecia iminente. "Sua saúde vinha definhando nos últimos três meses, mas na última semana ele piorou muito", diz o médico Saul Bteshe, um dos que assinaram o atestado de óbito do compositor.
Há dois meses, um jornalista de Brasília, Geraldinho Vieira, 37 anos, esteve no apartamento de Renato Russo, onde ficou a tarde inteira. Os dois tinham uma amizade antiga. Geraldinho foi casado com Lea Coimbra, a artista plástica que inspirou o compositor a fazer a personagem Mônica, da música Eduardo e Mônica, o primeiro grande sucesso do grupo. "Ele estava magro, muito cansado, mas o cérebro funcionava bem", recorda Vieira. Ele lembra que durante toda a tarde Renato Russo fumou apenas dois cigarros. O compositor já sabia que seu estado era terminal, mas era capaz de manter a conversação num tom controlado, explicando que queria "aproveitar ao máximo esse momento para aprender com a própria vida e com a morte". Pelas lembranças de Vieira, Renato Russo dizia essas coisas de forma "tranqüila e triste". Esboçando uma espécie de balanço da própria vida e também da carreira, disse que "o sucesso faz aparecer muita gente em volta de você. Empresários, artistas. Mas me sinto só".

Enfraquecido pela doença, seu ânimo apresentava um quadro de altos e baixos. Há quatro meses, quando terminou a gravação de A Tempestade, disse ao músico e produtor Renio Quintas que estava "saindo de uma maré braba, mas que agora estou legal". Ele se dizia feliz porque finalmente havia conseguido parar de beber e que, após ser internado numa clínica, se sentia bem melhor. Na mesma época, o ator Marcelo Berê apareceu para uma visita, quando o ouviu queixando-se de que seus últimos discos não haviam sido bem compreendidos. "Eu sou o mensageiro do bem", disse. Russo tinha um armário cheio de manuscritos, uma espécie de diário, em grande parte escrito em inglês. "Vou escrever um livro quando chegar aos 50", anunciou, num momento de maior alegria. "No fundo eu quero ser imortal."
Parte do fascínio que Renato Russo exercia sobre o público vinha também das confusões que marcaram a carreira de seu conjunto, típicas da melhor estética rock’n’roll. O Legião Urbana foi formado em Brasília, mas, na primeira vez que o grupo tocou na cidade depois de consagrado nacionalmente, o show acabou num quebra-quebra com um punhado de feridos e um Renato Russo transtornado, xingando a platéia. Em 1990, o compositor desmaiou no palco e teve de cancelar outras apresentações. O comportamento de Renato Russo também contribuía para desenhar a imagem do Legião de um grupo inesperado, com o qual tudo podia acontecer. Russo, na verdade, era uma personalidade bem mais complexa do que qualquer dos personagens que criou em suas letras, e teve uma vida mais atribulada do que as histórias contadas em seus discos.
Ele era alcoólatra desde a adolescência. Chegou a freqüentar sessões dos Alcoólicos Anônimos e passava períodos de abstinência. Neles, chegava a repreender quem estivesse bebendo perto dele - mas ele mesmo sempre voltava ao copo. Um amigo seu conta que, em sua última festa de aniversário, em março deste ano, ele serviu aos convidados apenas refrigerantes, mas escondia-se pela casa para sorver goles de bebida forte. O ator e diretor teatral Sérgio Britto, que costumava emprestar fitas de vídeo para Russo, lembra que, da última vez em que se encontraram, ficou triste por vê-lo bêbado e balbuciando coisas como "o amor é a única coisa que vale na vida". "Ele era um rapaz muito machucado pela vida", diz Britto. Russo teve também experiências amargas com as drogas, inclusive, durante um mês, com a mais devastadora delas, a heroína.
O sexo, para o compositor, foi também uma fonte de experiências sofridas. Até 1989 ele se declarava heterossexual, tinha namoradas - como a atriz Denise Bandeira - e levava tietes para quartos de hotéis depois dos shows. No ano seguinte, para surpresa até dos amigos, ele passou a se declarar homossexual e a escolher apenas parceiros do mesmo sexo. Sustentou que mantinha relações com mulheres apenas para satisfazer a família e a sociedade, mas que desde a adolescência sentia atração por homens. Segundo ele próprio admitiu, mantinha uma vida sexual promíscua, levando até meia dúzia de rapazes ao mesmo tempo para passar uma temporada em seu apartamento. Em 1990 conheceu em San Francisco, nos Estados Unidos, aquele que seria seu parceiro mais duradouro, Robert Scott. No ano seguinte, Scott mudou-se para o Brasil e passou a morar com Russo, mas foi embora em 1992. Segundo um amigo de Russo, o compositor entrou em depressão profunda e tentou suicidar-se.
Pessoas próximas têm como certo que ele tentou o suicídio duas outras vezes. A primeira, em 1984, quando o Legião Urbana teve o seu primeiro contrato rescindido pela gravadora EMI. Na ocasião, Renato Russo brigou com a gravadora por causa do arranjo a ser feito para a música Geração Coca-Cola. A briga teria coincidido com o rompimento de um namoro antigo que ele mantinha com uma mulher casada. Russo cortou os pulsos e foi encontrado pela família, ensangüentado, chorando dentro da banheira. O guitarrista Kadu Lambach, que integrou o Legião em seus primórdios, conta que foi visitá-lo na ocasião e viu curativos nos pulsos - mas não achou conveniente perguntar a origem do ferimento. A segunda tentativa de suicídio teria ocorrido quando Russo soube que era portador do vírus da Aids.

Renato Russo deixa um filho, Giuliano, de 7 anos. O compositor se negava sistematicamente até mesmo a revelar a identidade da mãe do menino, admitindo apenas que era uma pessoa com quem tivera um relacionamento fugaz, por uma, duas ou no máximo três noites. Sabe-se que ela era uma modelo paulista, morta num acidente automobilístico quando Giuliano tinha apenas 1 ano. Já sobre o filho, Russo gostava de falar. Uma de suas principais preocupações era alertá-lo para o fato de que, por ter um pai assumidamente homossexual, ele poderia ser alvo de cenas desagradáveis na escola. Giuliano sempre morou com os pais de Renato Russo, em Brasília. O compositor ficava contrariado porque o menino chama os avós de papai e mamãe, enquanto para Russo, que o visitava em média a cada três meses, era reservado o tratamento de titio. "É como se eu fosse o irmão mais velho", explicou o compositor numa entrevista à jornalista Maria Helena Passos.
Renato Manfredini Junior, o Russo, nasceu no Rio de Janeiro, na Ilha do Governador. Dos 7 aos 10 anos ele morou em Nova York, onde seu pai passou um período a serviço do Banco do Brasil. Na volta, a família se estabeleceu no Rio e três anos depois se mudou para Brasília. Russo tinha então 13 anos. Com o inglês que aprendera nos Estados Unidos, aos 15 ele começou a trabalhar como monitor e em seguida professor na Cultura Inglesa. Pouco depois, conheceria o primeiro grande revés em sua vida. Ele contraiu epifisiólise, doença que afeta a extremidade dos ossos, deixando-os frágeis. Submeteu-se a uma cirurgia para implantação de um pino de metal no fêmur, mas, segundo contava, foi vítima de erro médico. O cirurgião teria colocado o pino encostado no nervo, o que lhe causava dores horríveis. Russo passou dois anos entre a cama e a cadeira de rodas. Já recuperado, formou seu primeiro grupo, batizado de Aborto Elétrico, que seria o embrião do Legião Urbana e de sua carreira vitoriosa.
Poesia e contestação se fundem num resultado muitas vezes desconcertante na obra deixada por Renato Russo. Para dar vazão a seu universo conflituoso, Renato tomou emprestados versos de Camões, descreveu amores absurdos, passou lições de moral. Às vezes foi também repetitivo e até um pouco canastrão. Mas sempre manteve o controle sobre sua carreira, indiferente ao mito criado pelo fanático público da banda que ele liderou. O Legião Urbana era do contra - vendeu seus 5 milhões de discos sem nunca ter adotado procedimentos recorrentes da indústria fonográfica. Jamais quis tocar em festivais patrocinados por grandes empresas. Raríssimas vezes compareceu a programas de auditório em que seus colegas de profissão batem cartão para empurrar as vendas de discos. Raramente fazia shows e dava de ombros para os gêneros musicais em voga no mercado. Não usava o surrado recurso baiano de inventar polêmicas na imprensa sempre que lançava um disco. Adotou uma postura que nenhum outro artista ou grupo arriscaria. Talvez por isso tenha preservado sua autenticidade e carisma.
Renato Russo escreveu alguns dos hinos da geração roqueira dos anos 80. Será, música tocada em literalmente todos os shows do Legião por exigência dos fãs, Ainda É Cedo, Tempo Perdido, Pais e Filhos e uma dezena de outras canções que arrebataram o coração de estudantes. O estilo musical do grupo foi definido no álbum Dois, de 1986. O disco vendeu mais de 1 milhão de cópias e emplacou vários sucessos nas rádios, obrigando as emissoras a colocar no ar uma música de quase oito minutos - Eduardo e Mônica -, o que é totalmente fora dos padrões radiofônicos. Se com o grito de protesto Renato excitou a juventude, sua maior contribuição viria com a maturidade de seus versos. Isso fica claro no disco As Quatro Estações, de 1989. É nele que estão as letras mais densas de Renato, e também onde ele revela suas fontes de inspiração - um anônimo hindu, a Bíblia, Bukkyo Dendo Kyokai, Luís de Camões, entre outros. "O resultado da música que ele fez sobre o soneto de Camões é belíssimo, além de ser um procedimento pouco usual no ambiente do rock", diz o compositor e professor de letras José Miguel Wisnik.
Depois de se ter estabelecido como uma referência fundamental do rock brasileiro, Renato pôde dar asas a convicções mais pessoais. Sem desmantelar o Legião Urbana, gravou dois discos de sucesso. O primeiro, Stonewall Celebration, de 1994, é todo cantado em inglês e marca os 25 anos de um levante homossexual ocorrido em Nova York. Metade daquilo que o disco faturou foi doada à campanha contra a fome do sociólogo Betinho. No ano passado, lançou Equilíbrio Distante, no qual canta em italiano. O disco vendeu 544 000 cópias, forneceu tema para uma telenovela e ainda está tocando nas rádios, como um réquiem para o último rebelde do rock brasileiro.
***
"Estou mal e eu não posso mais nem falar."
Renato Russo, ao telefone com um amigo, domingo passado, cinco dias antes de sua morte
"Quando eu tomo o coquetel (de AZT e outros) é como se tivesse comendo um cachorro vivo. E o cachorro me come por dentro."
Renato Russo, há um mês
"A morte está perto e quero aproveitar ao máximo este momento para aprender com a própria vida e com a morte."
Renato Russo, há dois meses
"Depois desse trabalho (referindo-se ao último disco, Tempestade), eu quero descansar."
Renato Russo, em julho passado
"Quando chegar aos 50 anos, vou escrever meu livro."
Renato Russo, em janeiro passado
***
Geração Coca-Cola
(Renato Russo)
Somos os filhos
da revolução
Somos burgueses
sem religião
Nós somos o futuro
da nação
Geração Coca-Cola
Eduardo e Monica
(Renato Russo)
Quem um dia irá dizer
Que existe razão
Nas coisas feitas
pelo coração?
E quem irá dizer
Que não existe razão?
Perfeição
(Letra: Renato Russo)
Vamos celebrar
a estupidez humana
A estupidez de todas
as nações
O meu país e sua
corja de assassinos
Covardes, estupradores
e ladrões
Vamos celebrar
a estupidez do povo
Nossa polícia e televisão
Pais e Filhos
(Dado Villa-Lobos/Renato Russo/Marcelo Bonfá)
É preciso amar as pessoas
como se não houvesse amanhã
Porque se você parar para
pensar, na verdade não há.
Sou uma gota d'água
Sou um grão de areia
Você me diz que seus pais
não entendem
Mas você não entende
seus pais

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