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sexta-feira, 23 de novembro de 2012

CARTA DE ROUSSEAU A VOLTAIRE E DE VOLTAIRE A ROUSSEAU


Carta de Rousseau dirigida a Voltaire

por Jean-Jacques Rousseau - (10_de_agosto_de_1755)



Sou eu, senhor, quem tenho de vos agradecer por tanta consideração. Em resposta à generosa oferta que fizestes aos esboços de meus devaneios, eu não creio que tenha uma colocação digna, mas me desembaraço de um dever, e vos presto uma homenagem, que todos nós vos devemos, como nosso líder. Mesmo distante, fico comovido pela honra que concedeis à minha pátria, e compartilho o reconhecimento aos meus concidadãos. Tenho a expectativa que ele tão somente aumentará, enquanto eles se beneficiarem das instruções que vós podereis lhes ceder. Enfeitas o refúgio que vós escolhestes, esclareceis um grupo digno de vossas lições, e sabereis que, se pintar bem as virtudes e a liberdade, aprenderemos à amá-las pelos costumes assim como amamos pelos vossos escritos. Tudo que de vós se aproxima aprende convosco o caminho da glória e da imortalidade.

Vereis que eu não aspiro nos fazer regressar à animalidade, embora eu, de minha parte, muito lamente o pouco que dela perdi. Ao vosso respeito, senhor, este retorno seria um milagre tão grande que somente Deus poderia fazê-lo, e tão prejudicial que somente o Diabo poderia querê-lo. Não tente, então, recair nas quatro patas, pois nenhuma pessoa no mundo teria menos sucesso que vós. Vós nos endireitais muito bem sobre nossos dois pés para cessar de se manter sobre os vossos. Eu concordo que todas as desgraças perseguem os homens célebres na literatura, e concordo também acerca dos males inerentes à humanidade, que parecem independentes do nosso vão conhecimento; os homens abriram sobre si próprios tantas causas de infortúnio que, quando o azar desvia a alguém, já não são mais tão felizes. Além disso, existe no progresso das coisas uma lição escondida que o vulgo não distingue, mas que não escapa em nenhum detalhe do olho do filósofo, quando este se dedica a refleti-la.
Não foi Terêncio, Cícero, Virgílio ou Sêneca que causaram os crimes dos romanos ou as desgraças de Roma. Mas sem o veneno lento e secreto que corrompeu gradualmente o mais poderoso governo que a história faz menção, nem Cícero, nem Lucrécio, nem Salústio nem todos os outros teriam existido, nem sequer escrito. O agradável Século de Lélio e Terêncio conduziu de longe ao século brilhante de Augusto e de Horácio, e por fim aos séculos horríveis de Sêneca e de Nero, de Tácito e Domitian. A inclinação para as ciências e as artes nasce em um povo através de um vício interior que, por sua vez, aumenta rapidamente, e se é verdade que todos os progressos humanos são perniciosos à espécie, também é que a vivacidade e conhecimento aumentam o nosso orgulho e multiplicam nossos distúrbios, acelerando rapidamente nossas desgraças. Mas chegará um tempo em que ele necessariamente terá de parar de aumentar: é este o ferro que é necessário deixar na ferida, o medo que aflige a vítima não cessará lhe arrancando.
Quanto a mim, se tivesse seguido minha primeira vocação, e não houvesse nem lido, nem escrito, seria sem dúvida mais feliz. No entanto se as letras estivessem hoje apoiadas no vazio, eu seria privado do único prazer que me resta. É no seu seio que consolo-me de todos meus males. É em meio aos seus ilustres filhos que experimento as doçuras da amizade, que aprendo a desfrutar a vida e desprezar a morte. Eu lhe devo o pouco que sou, eu lhe devo mesmo a honra de ter vos conhecido. Mas consideremos a nossa questão, e a veracidade de nossos escritos: por que têm de esclarecer o mundo e conduzir seus cegos habitantes os filósofos, os historiadores, e os verdadeiros sábios, se, como bem disse o sábio Mêmnon, eu não conheço nada tão louco quanto um grupo de sábios? Admita então, senhor, que se é bom que os grandes gênios instruam os homens, também falta que os vulgos recebam suas lições. Se cada um se meter a ministrá-las, quem serão os que irão recebê-las? Os mancos, disse Montaigne, são inapropriados para o exercício do corpo, e as almas mancas são para os exercícios do espírito. Mas nesse século sábio não vemos mais do que mancos querendo ensinar os outros a andar.
As pessoas aceitam os escritos dos sábios para lhes criticar, e não para se instruir. Jamais vimos tantos Dandins; o teatro em efervescência, os cafés ressonando suas sentenças, que superabundam em seus escritos, e eu me inclino a analisar o Orphelin, porque o aplaudiram com tamanho pedantismo que, de tão incapaz de lhe apontar os defeitos, mal aprecio suas belezas.
Pesquisemos a primeira causa de todas as desordens da sociedade, descobriremos que os males dos homens lhes vêm mais pelo erro do que da ignorância e o que nós não sabemos nos prejudica muito menos do que o que nós julgamos saber. Ora, qual o meio mais certo para correr do que a fúria de tudo querer saber? Se não se pretende saber que a terra gira, não se pode punir Galileu por haver dito que ela gira. Se apenas os filósofos reclamaram o título, a Enciclopédia pode não ter tido perseguidores, se cem homenzinhos não aspirassem à glória, você gozaria agradavelmente da vossa, ou pelo menos teria apenas adversários dignos de vós. Então não existe muita surpresa em se sentir alguns espinhos inseparáveis das flores que coroam os grandes talentos. As injúrias de vossos inimigos são o cortejo de vossa glória, como nas aclamações satíricas em que se aclamavam os vencedores. É o entusiasmo que o público tem por vossos escritos que produz os roubos que vós vos queixais; mas as falsificações não são fáceis, porque nem o ferro nem o chumbo misturam-se ao ouro.
Permita-me que diga-vos o apreço que tenho pela vossa resposta e à nossa instrução: desprezais os clamores vãos pelos quais procuram menos fazer-vos mal do que afastar-vos de fazer bem. Quanto mais vos criticam, mais devem vos admirar. Um bom livro é uma resposta terrível a uma malvada injúria. Ei! Quem ousaria atribuir-vos escritos que não são seus, enquanto continuardes a fazer escritos inimitáveis? Estou sensibilizado pelo vosso convite, e se este inverno me deixar em condições de ir na primavera à minha pátria, tirarei proveito de vossa bondade. Mas então gostaria mais de beber a água de vossa fonte do que o leite de vossas vacas. E quanto às plantas de vosso jardim, eu temo não encontrar senão a lótus que não é mais que a pastagem dos animais, ou a moli que impede os homens de evoluir.
De todo o coração e com respeito, etc
J.-J. Rousseau, cidadão de Genebra.

Fonte: http://pt.wikisource.org/wiki/Carta_de_Rosseau_%2810_de_agosto_de_1755%29


Carta de Voltaire dirigida a Rousseau, em resposta a ele.

30 de Agosto de 1755


Recebi, senhor, vosso novo livro contra o gênero humano, e vos agradeço por isso. Vós agradareis aos homens, sobre quem fala vossas verdades, e não os emendará. Ninguém poderia pintar um quadro com cores mais fortes dos horrores da sociedade humana, para os quais nossa ignorância e debilidade tem tanta esperança de consolo. Ninguém jamais empregou tanta vivacidade em nos tornar novamente animais: pode-se querer andar com quatro patas, quando lemos vossa obra. Entretanto, como já faz mais de sessenta anos que perdi este costume, percebo, infelizmente, que é impossível recomeçar, e deixo essa maneira natural àqueles que são mais dignos que vós e eu. Já não posso mais embarcar para encontrar os selvagens do Canadá, em primeiro lugar, porque as doenças de que sofro me prendem ao redor do maior médico da Europa, e não encontraria a mesma assistência junto aos Missouris. Em segundo, porque a guerra está sendo travada lá naquele país, e o exemplo de nossas nações tornou os selvagens quase tão perigosos quanto nós. Devo me limitar a ser um selvagem pacífico, na solidão que escolhi, perto de vossa pátria, onde vós devíeis estar.
Concordo convosco que a literatura e as ciências causaram ocasionalmente muitos danos. Os inimigos de Tasso fizeram de sua vida uma longa série de infortúnios. Os de Galileu fizeram-no gemer dentro da prisão, aos setenta anos de idade, por haver entendido como a Terra se movimenta; e o que é ainda mais desonroso, obrigaram-no a desdizer-se. Desde que vossos amigos começaram a publicar o Dicionário Enciclopédico, os rivais os desafiam com o tratamento de deístas, ateus e mesmo de jansenistas.
Se porventura eu puder me incluir entre aqueles cujos trabalhos não trouxeram mais do que a perseguição como única recompensa, poderei mostrar-vos o tipo de gente perseguidora que me prejudica desde que produzi minha tragédia Édipo; uma biblioteca de calúnias ridículas impressas contra mim. Um ex-padre jesuíta, que salvei da desgraça total, me pagou o serviço que lhe prestei com um libelo difamatório; um homem, ainda mais culpado, imprimiu minha própria obra sobre o século de Luís XIV com notas nas quais a mais crassa ignorância vomitou as mais baixas imposturas; um outro, que vendeu a um editor, usando meu nome, alguns capítulos de uma pretensa História Universal; o editor, ávido o suficiente para imprimir esse amontoado de erros crassos, datas erradas, fatos e nomes mutilados; e, finalmente, os homens covardes e vis o suficiente para me responsabilizar pela publicação desta rapsódia. Eu mostrar-vos-ei a sociedade contaminada por este tipo de homens - desconhecido em toda a antiguidade - que, não podendo abraçar uma profissão honesta, seja de trabalho manual ou de serviço, e desafortunadamente sabendo ler e escrever, se tornam agentes literários, vivem de nossas obras, roubam os manuscritos, alteram-nos, vendem-nos. Eu poderia lamentar-me porque fragmentos de uma zombaria, feitos há pelo menos trinta anos, sobre o mesmo sujeito que Chapelain foi burro o bastante para tratar seriamente, circulam hoje pelo mundo, graças à traição e avareza desses infelizes, que misturaram suas grosserias às minhas pilhérias, e preencheram as lacunas com uma estupidez equiparada somente à sua malícia e que, ao cabo de 30 anos, vendem por toda parte um manuscrito que é apenas deles, e digno tão somente deles.
Eu poderia acrescentar, em último lugar, que roubaram uma parte do material que eu juntei nos arquivos públicos para usar na História da Guerra de 1741, quando era historiador da França; que venderam a uma livraria de Paris esse fruto de meu trabalho; que nessa época invejaram minhas posses, como se eu estivesse morto e pudessem colocá-las à venda. Eu poderia mostrar a ingratidão, a impostura e o roubo me perseguindo por quarenta anos, do pé dos Alpes ao pé do meu túmulo. Mas o que eu concluiria de todos esses tormentos? Que não tenho o direito de reclamar; que o Papa, Descartes, Bayle, Camões e centenas de outros sofreram injustiças iguais, ou ainda maiores; que este destino é o de quase todos daqueles que foram inteiramente seduzidos pelo amor às letras.
Admita, senhor, que estas coisas são pequenas desgraças particulares de que a sociedade pouco se apercebe. Que importa para a humanidade que alguns zangões roubem o mel de poucas abelhas? Os homens das letras fazem grande estardalhaço de todas estas pequenas querelas, enquanto o resto do mundo ou os ignora ou disso gargalha.
De todos os desgostos afetando a vida humana, esses são os menos graves. Os espinhos ligados à literatura, ou um pouco menos de reputação, são flores quando comparados aos outros males que a todo momento inundam a terra. Admita que Cícero, Varrão, Lucrécio ou Virgílio não tiveram a menor culpa nas proscrições. Mário era um ignorante, Sila, um bárbaro, Antônio, um crápula, o imbecil Lépido leu um pouco de Platão e Sófocles; enquanto Otávio César, covardemente apelidado de Augusto, esse tirano sem coragem, agiu apenas como um assassino detestável no momento em que privou a sociedade dos homens de letras.
Admita que Petrarca e Boccaccio não fizeram nascer os problemas da Itália; que as brincadeiras de Marot não produziram São Bartolomeu, e que a tragédia de Cid não produziu a guerra da Fronde. Os grandes crimes são cometidos apenas pelos grandes ignorantes. O que faz e fará sempre deste mundo um vale de lágrimas é a avidez e o indomável orgulho dos homens, desde Thamas-Kouli-Kan, que não sabia nem ler, até um oficial de alfândega, que não sabe nem contar. As letras alimentam, endireitam e consolam a alma; elas vos servem, senhor, durante o tempo que escreveis contra elas. Vós sois como Aquiles, que se encolerizava contra a glória, e como o padre Malebranche, que, com sua imaginação brilhante, escrevia contra a imaginação.
Se alguém tem o direito de queixar-se da literatura, sou eu, porque em todos os momentos e em todos os lugares ela serviu à minha perseguição; mas deve-se amá-la, não obstante o mau uso que dela fazem; como deve-se amar a sociedade na qual tantos homens maldosos corrompem os suscetíveis; como deve-se amar a sua pátria, mesmo que ela nos trate com alguma injustiça; como se deve amar o Ser Supremo, apesar das superstições e do fanatismo que desonram tão freqüentemente o seu culto.
M. Chappuis disse-me que vossa saúde anda muito mal, deveis restabelecê-la na terra natal, aproveitando junto à sua liberdade, beber comigo o leite de nossas vacas, e passear em seus campos.
Muito filosoficamente e com a mais alta estima, etc

Fonte: http://pt.wikisource.7val.com/wiki/Carta_de_Voltaire_%2830_de_agosto_de_1755%29

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